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“PELA ESTRADA A FORA...”: SENSIBILIDADES E REPRESENTAÇÕES
SOBRE A VISITA DOMICILIAR
Daniel Péricles Arruda1
Patrícia da Silva Pinto2
RESUMO
A reflexão acerca da visita domiciliar é relevante, ainda mais em uma cotidianidade
densa, complexa e dinâmica. Escutamos os sujeitos que atendemos. Apreendemos as
suas demandas. Realizamos diversas intervenções. Mas, o que há de importante na
visita domiciliar? O artigo apresenta um debate reflexivo acerca dessa questão.
Palavras-chave: Visita Domiciliar; Sensibilidades; Representações.
1 Bacharel em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC Minas em Contagem. É mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo / PUC-SP (Ex-bolsista Ford Foundation International
Fellowships Program 2010-2012). Atualmente é doutorando em Serviço Social pela
PUC-SP, pesquisador do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Identidade (NEPI) do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP Site:
www.vulgoelemento.blogspot.com.br - @vulgoelemento
2 Bacharel em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC Minas em Contagem; Especialista em Políticas Públicas pela Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
Especialista em Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais.
Atualmente é mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Minas Gerais
(UEMG) pesquisadora da linha Culturas, Memórias e Linguagens em Processos
Educativos.
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1 Introdução
O Serviço Social é a profissão da práxis. As nossas ações não se fazem apenas
por meio da prática objetiva e concreta. Temos um legado histórico permeado de lutas,
conflitos, superações e transformações que nos possibilita criar novas reflexões e
práticas metodológicas para o exercício profissional.
A identidade do Serviço Social apresenta múltiplas fases e faces. Por isso, não
estamos sós, não somos uma coisa só. Prova disso é que ao longo dos anos fomos
elaborando novas formas de sermos o que somos. Isto é:
Somos profissionais que chegamos o mais próximo possível da vida cotidiana
das pessoas com as quais trabalhamos. Poucas profissões conseguem chegar
tão perto deste limite como nós. É, portanto, uma profissão que nos dá uma
dimensão de realidade muito grande e que nos abre a possibilidade de
construir e reconstruir identidades – a da profissão e a nossa – em um
movimento contínuo (MARTINELLI, 2006, p. 2).
Certamente, aproximar de uma realidade de maneira crítica possibilita a
ampliação do olhar. Porém, se não atentarmos para construção de uma identidade
crítica, nenhum olhar a partir de nós será crítico. O pensamento crítico corrobora para a
prática profissional. O pensamento crítico também é uma prática. (Grifo nosso).
Chamamos atenção para o fato de que a prática profissional acontece de acordo o
público atendido, por isso a importância de não naturalizarmos os instrumentos e as
instrumentalidades profissionais. É sempre bom olharmos para nós e analisarmos o
nosso fazer.
Assim, em especial, neste artigo, apresentamos algumas reflexões sobre a visita
domiciliar por compreendermos a sua relevância e, ao mesmo tempo, por identificarmos
poucas produções que abordam, diretamente, esse tema.
O artigo, além desta introdução, apresenta mais três partes: A primeira, “Era
uma vez...: visitar para julgar ou para compreender?”, faz uma leitura reflexiva
sobre a visita domiciliar com alusão ao conto da “Chapeuzinho Vermelho”.
A segunda parte, “Apresentações e representações da visita domiciliar:
análise crítica e autocrítica profissional”, discute a articulação da visita domiciliar
com os demais instrumentos da profissão.
Por fim, nas conclusões, retomamos alguns aspectos apresentados no artigo e
apresentamos algumas propostas no afã de contribuir com o tema.
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1 Era uma vez...: visitar para julgar ou para compreender?
Geralmente, os contos começam assim, “Era uma vez...”. Essa expressão é uma
forma de marcar um início sem precisar o tempo. É uma expressão que indica que o fato
já ocorreu e que não é relevante o seu tempo cronológico, e sim o valor do tempo em
que se escuta o conto. “Era uma vez...” pode ter acontecido ontem ou amanhã. É
importante o valor desse tempo. A prova disso é que contamos as histórias hoje, como
se elas fossem de um passado recente ou, até mesmo, no presente, como nas peças
teatrais. O surgimento dos principais contos é de longa data e suas origens são
discutíveis até hoje, bem como o contexto e o sentido moral de sua elaboração e de seu
uso social.
Temos, então, o conto da “Chapeuzinho Vermelho”. História conhecida por
muitos. A maioria dos estudos afirma que o conto surgiu na Europa medieval.
Entretanto, outros estudos acreditam que a história da “Chapeuzinho Vermelho” que
conhecemos hoje, tem raízes na Ásia e África. O que percebemos é que as adaptações
tiveram por base a cultura local. Percebemos, também, que boa parte das adaptações
conserva um elemento importante: a visita de Chapeuzinho Vermelho à sua avó. E é por
esse caminho que vamos desenvolver as nossas reflexões.
Decidimos por não reproduzir o conto aqui. Porém, para facilitar o acesso,
disponibilizamos nos anexos deste artigo uma versão do mesmo.
Quando falamos em visita domiciliar parece ser uma prática comum, pois já
estamos acostumados – na nossa vida particular – a visitar um amigo ou familiar. Essa
visita foi a que Chapeuzinho Vermelho fez. A pedido de sua mãe, a menina foi até a
casa de sua avó para levar alguns remédios e guloseimas. A sua visita tinha um
propósito definido.
Esse aspecto nos chama atenção para as seguintes indagações: Por que fazemos
visita domiciliar? Como fazemos visita domiciliar? Quais caminhos devemos percorrer?
O que levamos? Quem levamos? O que trazemos? Quanto tempo deve durar? Como
enxergamos o outro e as suas condições? Se a família nos oferecer alguma coisa para
beber ou comer, devemos aceitar? Se não, como podemos nos recusar? Devemos pedir
para entrar? Devemos pedir para conhecer a casa? Eis questões pertinentes para o
exercício prático-reflexivo.
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A visita domiciliar é de fundamental importância para a prática do assistente
social. Aqui, a visita é técnica e requer técnicas, ou seja, não é uma visita qualquer. Não
estamos visitando a “vovozinha”, e sim sujeitos em diversas condições materiais e
subjetivas.
Nunca sabemos do resultado da visita antes de fazê-la. Podemos, conforme os
atendimentos realizados anteriormente e de outras informações do caso, ter um suposto
conhecimento da condição da pessoa e de como ela se apresenta nesse lugar íntimo que
é a casa. Mas é somente a visita que nos apresenta o que não sabemos, e, mesmo assim,
nenhuma visita diz tudo, e não pode, e nem deve! Apreendemos apenas um momento. E
esse momento pode ser marcante na tomada de decisão acerca de um atendimento. Por
meio de uma visita domiciliar podemos identificar o “Lobo Mau” do caso ou, então,
podemos sê-lo, principalmente, por meio de leituras rasas e de posicionamentos
preconceituosos. Mas, também, não é o foco ir para uma visita para encontrar o “Lobo
Mau”, se ele estiver no enredo, se possível, cabe-nos ouvi-lo, também. Pois podemos
nos equivocar acerca da imagem que temos das pessoas. São vários os casos que
sabemos de uma determinada situação através da reunião com a rede, da pasta de
atendimento, do prontuário, porém, às vezes, sem ter contato direto com a história, com
o dono da história, que é o sujeito. Às vezes, pode não ter “Lobo Mau”, e sim, um
fantasma dele. A experiência nos ensina que não é preciso ser “Lobo Mau” para violar
direitos e deveres!
Por exemplo, um profissional realiza visita domiciliar à casa de uma família, em
uma segunda-feira, às 11 horas da manhã. O profissional chega à casa da pessoa e se
depara com a família dormindo, com vasilhames utilizados dentro da pia da cozinha e
vê roupas atiradas ao chão. Como a visita perpassa o âmbito do valor da família e do
local, implica também o valor do profissional, que deve ser um valor ético e não
moralista. Logo, esse técnico pode considerar esse cenário esdrúxulo e inóspito para a
convivência familiar e comunitária de uma criança a qual outra instância aguarda o seu
parecer técnico para avaliar melhor a decisão a ser tomada. O profissional pensa que ‘é
um absurdo a família estar dormindo uma hora dessa, com a casa bagunçada em plena
segunda-feira’. Esse exemplo, fala mais do problema de quem atende ao invés de quem
é atendido. O profissional não sabe que a família pode ter passado o domingo
trabalhando. Independentemente a isso, temos que ter muito cuidado ao entrar no
mundo dos outros, temos que ter sensibilidade para interpretar os diversos modos de
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vida. O profissional não sabe que a dinâmica da família não é a mesma que a sua. E
mesmo se soubesse, poderia continuar com o seu pensamento pífio. Provando ainda
mais o seu preconceito e a sua incapacidade de estar ali, eticamente, exercendo a
profissão.
Outro exemplo é o que chamamos de preconceito residencial. Isso ocorre,
principalmente, quando o profissional tem que visitar uma família pobre, que reside em
local nobre. Pois, erroneamente, acredita que trabalhamos com pobreza. Assim, a
pobreza só deve residir em lugares vulneráveis. Aqui, nessa leitura, a pobreza ganha
status de sujeito. Como se a pobreza fosse só material. Como se a fome fosse só de
comida, ou seja:
Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você tem fome de
quê? A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte. A
gente não quer só comida A gente quer saída para qualquer parte (Titãs -
Comida3)
E, nas vezes em que se visita uma família com melhores condições materiais, é
seduzido pelo brilho do lustre e do porcelanato. Esquece que não somos arquitetos ou
decoradores – com todo respeito a esses profissionais –, mas o nosso foco é a totalidade,
a dinâmica, a compreensão da família por meio do respeito e da sensibilidade.
Nós, assistentes sociais, devemos nos preocupar com a seguinte questão: como
vamos para a visita domiciliar? Chapeuzinho Vermelho vai como seu capuz,
cantarolando saltitante pelo caminho. Ao apanhar as flores, é abordada pelo Lobo Mau
que, astuto e sedutor, toma ciência de onde a menina vai, assim, rapidamente, teve a
ideia de adiantar-se para poder atacar a vovó e, depois, aí sim, atacar, Chapeuzinho.
Assim, podemos ser conhecidos e aguardados pela família, mas não pelo
território. Quanto mais desconhecidos somos, mais alteramos o lugar e a relação entre
as pessoas. E essa realidade se embaraça mais ainda. Isso acaba se tornando uma
armadilha, bem como o contato com o já conhecido, o local comum. Essa questão
reporta-nos a um estudo de caso em que um profissional se considerava ultra-
conhecedor do contexto, pois ele e o jovem atendido moravam na mesma comunidade.
Então, o profissional afirmava, ‘Eu conheço ele desde pequeno. Ele não tem jeito. Eu
3 Fonte: https://www.letras.mus.br/titas/91453
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sou nascido e criado aqui, conheço bem o lugar!’. Pois bem, conhecer o lugar e as
pessoas não significa que conhecemos a verdade, e vice-versa. Esse conhecimento é
patológico, limitado e hostil.
Se analisarmos bem, o conto apresenta três tipos de visita. A primeira foi a do
Lobo Mau que chega primeiro à casa, finge ser Chapeuzinho e consegue entrar e ataca a
Vovozinha. A segunda, foi a visita de Chapeuzinho. E a terceira foi a do Lenhador que
ao ouvir os gritos de socorro, invade a casa para salvar a menina e sua avó.
Numa abordagem constitucional, lembramos o que afirma a Constituição da
República Federativa do Brasil, em seu o artigo 5º, inciso XI:
a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
O Lobo Mau entrou na casa com o consentimento da moradora, mas utilizou de
falsa identidade para conseguir entrar. Chapeuzinho também entrou com o
consentimento “da moradora”, que era o Lobo. Já o Lenhador, não. Ele, ao ver a
situação entrou na casa, sem consentimento, para prestar socorro. A gravidade da
situação consentiu a sua entrada.
Então, pensemos, deve-se avisar a família que a visita domiciliar será realizada?
Consideramos que sim. Mas há situações em que não é possível agendar com a família.
Porém, mesmo que não seja possível agendar é necessário que a família saiba que a
visita poderá acontecer, e que ela saiba também de sua finalidade. Consideramos
inapropriada a prática de não avisar a família com o intuito de pegá-la de “surpresa” ou
para evitar que a família “maquie a realidade”. Práticas valiosas são aquelas criativas e
éticas. Por isso, cada caso exige uma forma específica de atendimento. Cada visita é
uma experiência particular. Há intervenções profissionais em que a visita não é
realizada com frequência em razão da dinâmica e necessidade do caso e, até mesmo, do
foco do próprio Serviço. Em outras instituições as visitas são práticas constantes.
Entendemos que existe um grande perigo na realização da visita sem que seja explicada
à família a razão de fazê-la, quando ela acontece sem motivo. Também há perigo
quando ela ocorre de modo invasivo e autoritário, por exemplo, ao destampar panelas e
abrir a porta da geladeira para saber se a família está se alimentando. A família nos
revela a sua condição por meio de sua narrativa, e o profissional toma consciência dessa
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realidade por meio de sua escuta e, também, por meio de sua leitura crítica acerca das
condições matérias apresentadas no contexto.
Se ao chegarmos em uma casa e a família não permitir a nossa entrada, é um
direito que ela tem. Um direito constitucional, diga-se de passagem. Essa não permissão
diz muito. E requer muito cuidado para interpretá-la. Indaguemos: nós avisamos a
família que faríamos a visita? A família consentiu em nos receber? A família sabia de
tudo e consentiu, mas na hora não pode nos receber, o que houve, então?
Devemos sempre lembrar que somos estranhos ao entrarmos no espaço do outro.
A casa é o lugar privado do ser. Assim, quem visita, incomoda. Incomodar no sentido
de atrapalhar e no sentido de modificar o que estava ali, antes da nossa chegada.
Receber uma visita pode ser bom para a família ou não. O dia, o horário, a finalidade, o
modo como falamos e até como vestimos, tudo isso, pode interferir negativamente ou
positivamente na visita domiciliar.
As apresentações e representações em visita domiciliar requer atenção e
habilidades para não ficarmos reféns de uma irrealidade. Inclusive, essa é uma das
questões que apresentamos no próximo item.
2 Apresentações e representações da visita domiciliar: análise crítica e autocrítica
profissional
A visita domiciliar é uma escolha técnica-operativa do profissional que facilita
sua aproximação à realidade do individuo; é também uma representação social, como
veremos a seguir. Assim, podemos dizer que a visita domiciliar é uma intervenção e um
estudo social no lócus, proporcionando coleta de dados e observações mais fidedignas a
realidade. Para Amaro (2007), o profissional que realiza a visita domiciliar precisa
adotá-la como técnica e como parte de um planejamento de atendimento, pois se trata de
um instrumento que possui vantagens e desvantagens que devem ser consideradas.
Dentre as vantagens está:
O fato de realizar-se num lócus privilegiado, o espaço vivido
do sujeito e, no geral contar com a boa receptividade do
visitado. O fato de acontecer no ambiente doméstico, no
cenário do mundo vivido do sujeito, dispõe regras de
convivialidade e relacionamento profissionais mais flexíveis e
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descontraídas do que as práticas do cenário institucional
(AMARO, 2007, p. 17).
Acredita-se que quando o assistente social está presente no espaço vivido pela
família, o profissional tem mais facilidade para apreender as necessidades dos
indivíduos e melhores condições para elaborar estratégias de intervenção mais coerente
com a realidade.
De acordo com Amaro (2007), a visita domiciliar pode ser fadada ao fracasso
quando:
À natureza da cotidianidade, reforçada na visita, na qual tanto
rotinas e práticas regulares como fatos imprevistos são
comuns. [...] o profissional, ao visitar, se insere no cotidiano do
outro e de alguma forma deve se ajustar às condições que
encontrar. O espaço ideal para aquele testemunho nem sempre
existe. [...] não se pode, no espaço do outro, repreendê-lo ou
corrigi-lo por gritar com o filho ou mesmo reagir colérico
contra um vizinho (AMARO, 2007, p. 17).
Transcorre que a visita domiciliar é vivenciada de forma singular por quem a
realiza e por quem recebe o visitador em sua casa. E cada participante da cena
produzida durante visita domiciliar a representa da forma mais significativa para si
mesmo e ao seu modo.
A multiplicidade de sentidos e usos do termo “representação” faz com que este
termo seja bastante abrangente. Diante disso, neste artigo termos como base a
perspectiva feita por Chartier (1990), segunda a qual busca-se identificar o modo como,
em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade é construída, pensada e
comunicada, de forma particular e historicamente determinada. Nesse sentido,
representação é compreendida como algo que permite “ver uma coisa ausente” ou ainda
a “exibição de uma presença”, considerada pelo autor como algo superior à
mentalidade. Ela é a “pedra angular” da nova história, sendo o conceito de apropriação
o seu “centro”. A apropriação é “uma história social das interpretações, remetidas para
as suas determinações fundamentais”, e estas interpretações são, segundo o autor,
“sociais, institucionais e culturais” (CHARTIER, 1990, p. 26).
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Para uma maior delimitação do conceito de representação4, o autor considera as
classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Os meios
intelectuais são produzidos pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo.
São esses meios intelectuais que criam as figuras que dão sentido ao presente, torna o
outro inteligível e o espaço ser decifrado. As representações do mundo social são assim
construídas, embora indiquem uma ideia de universalidades, as quais são sempre
determinadas pelos interesses de grupos que as moldam. Dessa forma, podemos inferir
que os discursos proferidos ocupam a mesma posição de quem os utilizam. Para balizar
os discursos que os assistentes sociais auto produzem e reproduzem no cotidiano
profissional é muito importante que não esqueçamos dos nossos princípios éticos e
políticos da profissão. E esses discursos devem estar atualizados com as legislações
sociais e com documentos orientadores das políticas públicas e setoriais no qual estão
inseridos no campo sócio-profissional; além do mais os profissionais devem buscar
formação de senso crítico que possibilite localizar sua posição no mundo e frente ao
mundo. Devido às tensões da vida cotidiana não podemos permitir sermos sugados por
discursos midiáticos, rasos e vazios de conteúdo que nada contribuem para emancipação
humana.
Chartier (1990) alerta que as percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros, pois produzem estratégias e práticas que tendem a impor um modo de
pensar em detrimento de outros, legitimam ou justificam um projeto para os próprios
indivíduos em função de algumas escolhas. Por isso, as representações estão sempre
posta em um campo de constante tensão/conflito e concorrência, cujos desafios são
enunciados em termos de poder e dominação. Nesse contexto, também se encontram
inseridos os assistentes sociais (e outros profissionais) que ao realizarem uma visita
domiciliar não chegam no campo isentos de seus valores. No caso da história de
“Chaupeuzinho Vermelho”, cada personagem foi até a casa da vovozinha com uma
intenção (positiva ou não!).
4 Outra vertente teórica trabalhada por Chartier propõe uma compreensão do conceito de representação
por meio da história cultural. No entanto, neste artigo, utilizaremos o conceito de representação
focalizado na perspectiva da função simbólica. Para um maior detalhamento dessa vertente, ver
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro:
Bertrand. 1989 – 1994.
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No entanto, os profissionais de Serviço Social tem o dever de zelar pela ética
profissional e procurar desvendar a situação da vida real embasados em seus princípios
éticos e legais e de outros recursos que possibilitem uma leitura mais próxima da
história. Segundo Amaro (2007), o profissional deve dirigir-se a cada visita disposto a
conhecer uma realidade distinta, e depois refletir sobre esta experiência que certamente
nos ensinará algo. Desse modo, não podemos nos satisfazer com o que está posto ou que
é dito, mas devemos investigar o que está nas entrelinhas. Para tanto é preciso se vestir
da vontade de estar ali, e, ali poder escutar de forma interessada o que o outro tem para
nos contar. É preciso valorizar o discurso, pois o discurso é a forma como o indivíduo
se apresenta e representa o mundo.
A visita domiciliar possuiu uma dimensão objetiva e uma subjetiva. Na
dimensão objetiva, o que é concreto e real que constitui o terreno da história mais
segura, são os documentos poupáveis e quantificáveis; enquanto que a dimensão
subjetiva está ligada a outra história que é vinculada aos discursos interiorizados, com
imagens mentais e com esquemas singulares (CHARTIER, 1990). Nesse sentido,
podemos dizer que a visita domiciliar possuiu uma dimensão objetiva e quantificável,
pois o simples fato de realiza-la já a materializa, pois será contada no relatório de
atividades no fim do mês. E outra dimensão subjetiva e qualitativa, que talvez seja a que
mais aproxima-se do fazer profissional do assistente social. Para o assistente social ao
fazer uma visita, por mais habituado e experiente que possa ser, uma visita sempre o
despertará algo novo.
A visita nos toca! E como não ser tocado pelo “cheiro do café”5, pelas
condições de sociabilidades dignas e outras tantas tão indignas. Somos tocados
cotidianamente pelas situações que presenciamos, escutamos e somos convocados a
intervir, na realidade da vida e na vida do outro. Nessa relação de causas e efeitos somos
transformados. Às vezes, nos sentimos inoperantes e impotentes diante de um modo de
produção capitalista que cada vez mais reduz as possibilidades de intervir e criar
alternativas em prol da população mais vulnerável e, até mesmo, da ausência do Estado.
Essa dimensão subjetiva traz efeitos imensuráveis para a prática do assistente social.
5 “O cheiro do café” refere-se a uma visita domiciliar realizada por um dos autores deste artigo. Nessa
visita, a atendida nos ofereceu um café. Percebíamos que na medida em que a usuária preparava o café,
ela conseguia, também, desenvolver melhor o diálogo com os profissionais. Percebíamos também que o
preparo do café deu-lhe segurança e foi uma maneira dela nos oferecer algo que fazia muito bem.
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A dimensão subjetiva também ocorre obviamente com a pessoa visitada.
Nem sempre a família está à vontade para receber uma visita e muito menos a visita de
um profissional, que representa uma instituição. É preciso entrar com cuidado, com
respeito. Por isso, é importante em um plano de atendimento familiar fazer uma
previsão ou uma programação da visita junto à família, desde já esclarecer os objetivos
da visita, o tempo previsto e outras informações relevantes para o contexto. Nossa
prática profissional tem uma dimensão investigativa, mas não somos investigadores de
polícia ou da justiça e esse tipo de posicionamento não nos compete e desonra as lutas
do Serviço Social Brasileiro.
De forma geral a visita domiciliar, como uma intervenção reúne pelo menos três
pontos essenciais: a observação, a entrevista e a história oral6. O assistente social por
meio da observação da visita domiciliar e da entrevista realizada, coleta as informações
fazendo a interpretação de um “recorte” da vida familiar, ou da situação presenciada.
Esse é um diagnóstico dinâmico, pois o momento da visita é uma parte da história e não
a história completa. Segundo Amaro (2007, p.20), a realidade é “bem maior do que o
nosso olhar ou percepção pode captar. [...] por que é tão fácil distorcermos os fatos e
construirmos interpretações equivocadas”. Ainda que, esse fator seja algo que dificulta a
intervenção, ao mesmo tempo é um desafio para o profissional.
Entre esses destacamos a “história oral” ou “o discurso do individuo”, como sendo o
ponto de maior investimento de escuta nesse processo. Durante a entrevista em um
espaço de atendimento ou visita o indivíduo nos conta de sua experiência pessoal ou
familiar. Esse é um momento íntimo e privado, pois ele está nos contanto a sua verdade,
a sua forma de representar-se e apresentar o mundo em que vive. Nesse contexto, não
existe uma única verdade, nem devemos querer descobrir a verdade, mas é importante
compreender o que é a verdade para aquela pessoa. E aceitar que para cada membro do
grupo familiar a história pode significar uma verdade e na mesma família pode haver
mais de uma verdade. A verdade aqui tem a ver com a vivência da pessoa e como ela a
representa em sua vida. Assim, buscar compreender a história oral em seu contexto
sócio-histórico e amarrado às representações sociais que foram construídas ao longo da
vida é um desafio cotidiano para os assistentes sociais.
6 Para aprofundamento vide a obra “A entrevista de Ajuda” do autor Alfred Bejamim (1996)
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Nesse ponto, podemos novamente dialogar com Chartier (1990) a partir da
relação indissociável da observação, entrevista e história oral, pode-se pensar a
construção da história que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos,
ou, por outras palavras, das representações do mundo social, que à revelia dos atores
sociais traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que,
paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam o que ela é, ou que gostariam
que fosse e como experienciam a vida, o cotidiano.
O momento da visita domiciliar não possui caráter formal de atendimento,
assim o indivíduo expõe com facilidade seus problemas e o assistente social pode
intervir de forma mais próxima prestando as informações e orientações para que possam
acessar os direitos e ter conhecimento dos seus deveres. Após a realização da visita
domiciliar é comum que os profissionais elaborem relatórios ou diagnóstico social. O
produto desse estudo pode ser apresentado durante a prática de estudo de caso em
equipe. Nesse espaço, o assistente social de forma atenta aos pressupostos éticos irá
trazer sua contribuição e poderá mencionar a realização da visita domiciliar e até
mesmo as informações relevantes para a compreensão do caso. Nesse contexto, o
assistente social está fazendo uma apresentação da história de vida familiar, está
representando por meio de seu discurso oral a experiência vivida durante a visita
domiciliar. A representação permite a presentificação daquilo que se encontra ausente, é
“re-apresentar” algo ou alguém que se encontra ausente naquele espaço. Porém, a
representação não é uma correspondência direta do real, sua imagem fiel, mas sim uma
construção elaborada através deste mesmo real (PESAVENTO, 2004).
Assim, as representações, elaboradas sobre o mundo, se colocam no lugar do
mundo, mas também fazem com que os sujeitos tenham percepção da realidade e
através delas tenham referência para sua própria existência. As representações
proporcionam a geração de matrizes que conduzem as práticas sociais e são marcadas
pela possibilidade de promover integração, coesão e explicação do real. “Indivíduos e
grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a
realidade” (PESAVENTO, 2004, p. 39).
Conclusões
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Estamos em um momento social muito diversificado, onde as famílias
apresentam novas formas de convivência, novos sentidos sociais, novas demandas. Se o
assistente social não estiver atento a essas mudanças poderá ter uma postura fora do
tempo sócio-histórico. Muitos anos de atuação profissional não garantem o exercício
ético da profissão, não impedem que caiamos nas armadilhas da visita domiciliar, não
nos blindam da inocência de “Chapeuzinho Vermelho” que conversou por duas vezes
com o “Lobo Mau”. Na primeira, disse-lhe aonde ia. Na segunda, ao chegar à casa de
sua avó, quando começou a perceber que algo estava estranho.
Entendemos que a visita domiciliar nos apresenta três principais aspectos. O
primeiro está na forma como o profissional se prepara, como ele se aproxima do outro e
como ele lida com as demandas apresentadas e percebidas durante a visita. O segundo
está no cuidado em analisar a diversidade do modo de vida do outro, o modo como ele
vive e convive socialmente. E terceiro refere-se ao tratamento destinado ao pós-visita e
à relação da visita domiciliar com as demais práticas dos Serviços, inclusive, na relação
com equipes multi e interdisciplinares e nas relações intersetoriais.
Portanto, ao conhecer o mundo do outro temos que ter sensibilidade para ler a
realidade e reflexão para interpretar e expressar os processos vivenciados em visita
domiciliar. Esses são pontos relevantes para não realizarmos a visita do modo como fez
“Chapeuzinho Vermelho”.
Referências Bibliográficas
AMARO, Sarita. Visita Domiciliar: guia para uma abordagem complexa. Porto Alegre:
Age, 2007.
BAPTISTA, Myrian Veras; & BATTINI, Odária. (Organizadoras). A prática
profissional do assistente social: teoria, ação, construção do conhecimento. São Paulo:
Veras Batista, 2009.
______________________. Planejamento social: intencionalidade e instrumentação.
3.ed. São Paulo: Veras Editora, 2013.
BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética: fundamentos sócio-históricos. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 2009.
BEJAMIM, Alfred. A entrevista de Ajuda. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
14
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1998). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso
em: 30 mai. 2012.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:
Difel/Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.
MARTINELLI, Maria Lúcia. Reflexões sobre o Serviço Social e o projeto ético-político
profissional, 2006. In http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/69/67
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. Belo Horizonte, MG:
Autêntica, 2004.
ANEXO
Chapeuzinho Vermelho
Era uma vez uma menina que ganhou um capuz vermelho de sua avó. Como ela só
usava este capuz recebeu o apelido de Chapeuzinho Vermelho.
Um dia a mamãe de Chapeuzinho Vermelho a mandou levar alguns doces para sua
avó. A garota saiu com os doces e enquanto passeava pela floresta encontra um lobo
faminto que quer devorá-la. O danado do lobo já tinha até um plano: apostou corrida
com a menina do capuz vermelho para ver quem chega primeiro na casa da vovó. Mas o
lobo conhece um atalho e chega antes.
Quando o lobo se aproxima da casa da boa velhinha, bate na porta e finge ser
Chapeuzinho Vermelho. Entra devagar, vai até o quarto e devora a vovó. Depois se
disfarça de avó e fica esperando pela menina.
Quando Chapeuzinho Vermelho chega à casa da vovozinha, bate na porta, entra e vai
até seu quarto para lhe entregar a cesta de doces. Chegando perto da cama ela percebe
que a avó está diferente e começa a fazer algumas perguntas:
- Que olhos grandes você tem?
- São para te ver melhor!
- Que orelhas grandes você tem?
- É para te ouvir melhor, minha netinha!
- Que nariz grande você tem?
- São para te cheirar melhor!
- E que boca e dentes grandes você tem vovó?
- São para te devorar!
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Neste momento Chapeuzinho Vermelho é atacada pelo lobo feroz. Ela corre e grita
por socorro. Um caçador que passa ali por perto ouve os gritos da menina. Corre até a
casa, salva Chapeuzinho Vermelho e a avó. Depois coloca pedras na barriga do lobo que
quando acorda sai correndo e foge, mas acaba se afogando em um rio ao tentar beber
um pouco de água.
Chapeuzinho Vermelho e a vovó foram felizes para sempre.
Fonte: http://www.dombosco.g12.br/noticia/conto-da-chapeuzinho-vermelho Acesso em 02 fev 2016, às
18h37.