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APOSTILA DO CURSO PANORAMA DO NOVO TESTAMENTO
BIBLIOGRAFIA BÁSICA UTILIZADA:
BRUCE, F.F. Paulo o apóstolo da graça: sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Shedd
Publicações, 2003.
CARSON, D.A., MOO J. Douglas; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São
Paulo: Ed. Vida Nova, 2002.
GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1978.
APRESENTAÇÃO:
O pano de fundo – uma visão histórica e política do período intertestamentário.
1 - O NOVO TESTAMENTO
Ele é composto de 27 livros e ocupa a segunda parte da nossa Bíblia, cobre menos
de um século de história, mas sua importância é incontestável para a fé cristã porque
através de sua leitura compreendemos o divino plano de redenção dos homens por meio de
Jesus em cumprimento às profecias messiânicas.
Ele foi escrito em grego entre os anos 45 e 95 depois de Cristo e seus principais
autores são: os apóstolos Pedro, João, Mateus e Paulo e alguns antigos escritores cristãos:
João Marcos, Lucas, Tiago e Judas. Os livros na nossa Bíblia não se encontram em ordem
cronológica, eles estão organizados conforme a tradição cristã.
Em primeiro lugar, apresentando os fatos mais importantes da vida de Jesus estão os
evangelhos, sendo que Mateus abre a lista porque é o que mais se aproxima do Antigo
Testamento, uma vez que faz constante referência ao mesmo. Depois temos Atos, que
dando seqüência aos evangelhos, narra o feliz surgimento da Igreja na Palestina e daí para a
Síria, Ásia Menor, Macedônia, Grécia e até lugares bem distantes como Roma na Itália.
Na seqüência estão as epístolas e finalmente o livro de Apocalipse, que descrevem o
significado teológico da história da redenção, além de ensinarem alguns princípios éticos.
Entre as epístolas, as primeiras são as paulinas, que em nossa Bíblia estão em ordem
decrescente, exceção feita às cartas pastorais (I e II Timóteo e Tito) que estão antes de
Filemon que é a mais breve das epístolas de Paulo que temos conhecimento. Depois vem a
maior das epístolas não paulinas, Hebreus, e depois dela vêm as epístolas que chamamos de
Gerais, que foram escritas por Tiago, Pedro, Judas e João, e finalmente, somos desafiados a
olhar para a eternidade, para o retorno do nosso Senhor, através do Apocalipse que conduz
o fechamento do Novo Testamento a um ponto de clímax.
O estudo do Novo Testamento é fundamental. Historicamente, descobrimos através
dele, a explicação do fenômeno do cristianismo; culturalmente, descobrimos como a
influência do cristianismo se faz sentir em meio à cultura ocidental, conhecê-lo se torna
extremamente relevante; teologicamente, seu estudo descortina a narrativa divinamente
inspirada sobre a missão remidora de Jesus nesse mundo que se torna padrão de fé e prática
da Igreja; e devocionalmente, por meio do seu estudo, o Espírito Santo nos conduz a um
vivo e crescente relacionamento com Deus.
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O Antigo Testamento se encerra com o cativeiro que a Assíria impôs ao Reino do
Norte, Israel, seguido pelo cativeiro babilônico do Reino do Sul, Judá, e com o regresso à
Palestina, de parte dos exilados, quando por ocasião do Império Persa, nos séculos VI e V
a.C. O período chamado intertestamentário é compreendido pelos quatro séculos que
separam o Antigo Testamento do Novo Testamento. Durante esse período Alexandre o
Grande se tornou o senhor do Antigo Oriente Médio, dominando os Persas. Isso
impulsionou o chamado helenismo, quando a cultura grega avança, o idioma grego torna-se
a língua usada nas relações diplomáticas e comerciais. Alexandre fundou 70 cidades onde
se misturou a cultura grega com a oriental. Quando ele morreu (323 a.C.) seus principais
generais dividiram o império em quatro porções, duas das quais são importantes no
desenvolvimento histórico do Novo Testamento, a dos Ptolomeus e a dos Selêucidas. O
império dos Ptolomeus centralizava-se no Egito, e sua capital era Alexandria. Cleópatra que
morreu no ano 30 a.C. foi o último membro da dinastia dos Ptolomeus. Já o império
Selêucida tinha por centro a Síria e Antioquia era sua capital. Alguns dos membros da
dinastia receberam o apodo de Seleuco e outros foram chamados Antíoco. Quando Pompeu
tornou a Síria uma província romana, em 64 a.C. chegou ao fim o Império Selêucida.
Estando entre o Egito e a Síria, a Palestina tornou-se vítima das rivalidades entre os
Ptolomeus e os Selêucidas. No começo os Ptolomeus dominaram a Palestina por cento e
vinte e dois anos (320 a 198 a.C.). Os judeus então usufruíram boas condições de vida
nesse período. Conforme uma antiga tradição foi durante esse período (285-246 a.C.) que
setenta e dois eruditos judeus começaram a tradução do Antigo Testamento hebraico para o
grego. Essa versão se chamou Septuaginta, realizada no Egito e provavelmente por
Egípcios.
As muitas tentativas dos Selêucidas de dominarem a Palestina, quer por invasão,
que por alianças matrimoniais, fracassaram. Em 198 a.C. Antíoco III derrotou o Egito.
Surge então entre os judeus duas facções: 1 - “a casa de Onias” (pró-Egito) e, 2 - “a casa de
Tobias” (pró-Síria). Antíoco IV ou Epifânio (175-163 a.C.), rei da Síria, substituiu o sumo
sacerdote judeu Onias III pelo irmão deste, Jasom, que era um helenizante, que planejava
transformar Jerusalém em uma cidade grega. Nesse período foi construído um ginásio com
pista de corrida, e os judeus começaram a se exercitar despidos, como os gregos faziam, e
isto ultrajou os judeus piedosos. As competições aconteciam com cultos a divindades
pagãs. O processo de helenização avançava e isso fez surgir os judeus chamados Hasidim,
“os piedosos” que se opunham à paganização de sua cultura.
Durante o processo de invasão do Egito, Antíoco Epifânio substituiu a Jasom, seu
próprio escolhido para ser o sumo sacerdote, por Menelau, um outro judeu helenizante, que
ofereceu a Antíoco um tributo mais elevado. É bem provável que ele não pertencesse a
nenhuma família sacerdotal e seu ingresso deixou os piedosos muito ressentidos.
A tentativa de Antíoco de anexar o Egito falhou, Roma não queria que o império
selêucida se fortalecesse mais. Roma exigiu que ele respeitasse o seu poderio.
Enquanto Antíoco estava ausente, chegou aos ouvidos de Jasom, o sumo sacerdote,
que Antíoco tinha sido assassinado no Egito. Ele então retorna imediatamente a Jerusalém,
vindo de seu refúgio na Transjordânia. Então Jasom retira de Menelau o controle da cidade
e o toma para si. Antíoco fica amargurado em virtude da derrota psicológica que sofrera nas
mãos dos romanos, ele interpreta a atitude de Jasom como uma revolta e envia seus
soldados para punirem os rebeldes e reintegrarem a Menelau no ofício sumo sacerdotal.
Nesse ínterim os soldados saqueiam o templo de Jerusalém e passam ao fio da espada a
muitos de seus habitantes. O próprio Antíoco retorna à Síria e após dois anos (168 a.C.)
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então ele envia seu general, Apolônio, com um exército de vinte e dois mil homens para
coletar tributo, tornar ilegal o judaísmo e estabelecer o paganismo à força, como um meio
de consolidar o seu império e de refazer o seu tesouro. Os seus soldados então saquearam
Jerusalém, derribaram suas casas e muralhas e incendiaram a cidade. Mataram os homens e
escravizaram as mulheres e crianças. A partir desse momento circuncidar era ofensa digna
de morte, assim como guardar o sábado, celebrar festividades judaicas ou possuir cópias do
Antigo Testamento. Muitos manuscritos foram destruídos. Tornou-se obrigatório sacrificar
aos falsos deuses. Foi construído um altar a Zeus e erguida uma estátua em sua homenagem
dentro do templo, os animais que a lei de Moisés proibia foram sacrificados sobre esse altar
e a prostituição chamada de “sagrada” começou a ser praticada dentro do templo de
Jerusalém.
Diante de tudo isso surgem os MACABEUS
Os judeus não podiam aceitar isso parados. Eles então resistem. Na aldeia de
Modim, um agente real de Antíoco provoca um velho sacerdote chamado Matatias, a que
desse exemplo aos habitantes da aldeia oferecendo um sacrifício pagão. Matatias se recusa
a fazer isso. Um outro judeu dá um passo a frente apoiando Matatias, mata o agente real,
destrói o altar e em seguida foge para uma região montanhosa na companhia de cinco de
seus filhos e de outros simpatizantes. E foi assim que teve início a revolta dos Macabeus,
em 167 a.C. sob a liderança da família de Matatias, coletivamente chamados de
Hasmoneanos, por causa de Hasmon, bisavô de Matatias, ou de Macabeus, devido ao
apelido “Macabeu” (Martelo) conferido a Judas, um dos filhos de Matatias.
Judas Macabeu encabeçou uma campanha de guerrilhas de extraordinário sucesso,
até que os judeus se viram capazes de derrotar os sírios em campo de batalha regular. A
Revolta dos Macabeus, entretanto, foi também uma guerra civil deflagrada entre os judeus
pró-helenistas e os anti-helenistas. O conflito prosseguiu mesmo após a morte de Antíoco
Epifânio (163 a.C.). Finalmente, os Macabeus recuperaram a liberdade religiosa,
consagraram novamente o templo, conquistaram a Palestina e expeliram as tropas sírias da
cidadela que ocupavam em Jerusalém.
No ano 160 a.C. Judas Macabeu morre em batalha e seus irmãos Jônatas e depois
deste Simão, o sucedem na liderança. Eles se auto declararam herdeiros presuntivos do
trono selêucida, um em oposição ao outro, obtendo assim favor dos judeus. Jônatas
começou a reconstruir as muralhas danificadas e os edifícios de Jerusalém. Ele também
assumiu o ofício sacerdotal. Simão obteve o reconhecimento da independência judaica da
parte de Demétrio II, um dos que brigavam pela coroa dos Selêucidas, tendo renovado um
tratado com Roma que originalmente fora firmado por Judas. Simão foi proclamado o
grande sumo sacerdote, comandante e líder dos judeus e concentrou para si a liderança
religiosa, militar e política do estado judeu.
Como resultado o que se segue da dinastia hasmoneana (142-37 a.C.) é uma história
de guerras internas, fruto de ambição pelo poder. Os interesses políticos e as intrigas dos
Hasmoneanos separaram muitos dos Hasidim, de inclinações religiosas, que se tornam mais
tarde nos fariseus e nos essênios, muito parecidos com aqueles que produziram os Papiros
do Mar Morto, que viviam em Qumran. Os saduceus são o grupo que surge dos partidários
aristocráticos, com tendências políticas, do sacerdócio hasmoneano. No ano 63 o general
romano Pompeu subjuga a Palestina e então durante o período do Novo Testamento a
Palestina está dominada pelos romanos.
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Roma foi fundada no século VIII a.C. e no século V foi organizada a forma de
governo republicana. Após guerrear por dois séculos com a cidade rival de Cartago na
África do Norte venceu (146 a.C.). O domínio romano foi se expandindo como fruto das
conquistas realizadas por Pompeu, Gália e Julio César. Após o assassinato de Júlio César,
Otávio que mais tarde tornou-se conhecido como Augusto, derrotou as forças de Antonio e
Cleópatra, na batalha naval de Ácio na Grécia, 31 a.C. e torna-se imperador de Roma. E
Roma passa dessa forma de um período de expansão para outro de paz – que ficou
conhecido como a paz romana. No entanto a província da Judéia interrompeu essa paz em
virtude das revoltas que os romanos esmagaram nos anos 70 e 135 d.C. Mas é notório que a
estabilidade política e a hegemonia sob o domínio do império Romano favoreceram a
propagação do evangelho quando do seu surgimento.
Os imperadores romanos abaixo relacionados fazem parte das narrativas do Novo
Testamento:
- Augusto (27 a.C. – 14 d.C.) Jesus nasce nesse período, e o recenseamento está
ligado a esse nascimento assim como o “gérmen” do culto ao imperador.
- Tibério (14 – 37 d.C.) Jesus realiza o Seu ministério público e é morto durante seu
domínio.
- Calígula (37 – 41 d.C.) foi quem exigiu ser cultuado ordenando que sua estátua
fosse colocada no templo de Jerusalém, contudo ele morreu antes da estátua ser
colocada no templo.
- Cláudio (41 – 54 d.C.) foi quem expulsou de Roma os residentes judeus, entre os
quais estavam Áquila e Priscila, por motivo de distúrbios civis;
- Nero (54 - 68 d.C.) famoso por perseguir os cristãos, embora provavelmente
somente nas cercanias de Roma, foi o responsável pelo martírio de Pedro e Paulo.
- Vespasiano (69 – 79 d.C.) enquanto ele ainda era um general romano começou a
esmagar uma revolta dos judeus, tornou-se imperador e deixou o término do
trabalho aos cuidados de seu filho Tito numa campanha que culminou com a
destruição de Jerusalém e seu templo, em 70 d.C.;
- Domiciano (81 - 96 d.C.) perseguiu muito os cristãos. É provável que sua
perseguição serviu de pano de fundo para a escrita de Apocalipse, como
encorajamento para os cristãos oprimidos.
A Palestina era governada, com permissão dos romanos, por nativos subordinados a
Roma, Herodes o Grande, foi um deles, ele foi aquele que governou o país sob os romanos
de 37 a 4 a.C. Seu pai Antipater, subiu ao poder graças a favores obtidos dos romanos e
lançou Herodes na carreira política e militar. O senado romano aprovou o ofício real de
Herodes, mas ele foi forçado a obter o controle da Palestina por meio da força armada. Seus
antepassados eram os idumeus (descendentes de Esaú), por isso mesmo ele não era visto
com bons olhos pelos judeus. Herodes era indivíduo astuto, invejoso e cruel, assassinou
duas de suas próprias esposas e pelo menos três de seus próprios filhos. Foi ele quem
mandou matar as crianças em Belém, conforme vemos narrado em Mateus. Era um
governante eficiente e sabia atuar politicamente. Por exemplo: ele trocou a lealdade que
tinha por Antonio e Cleópatra pela lealdade a Augusto e conseguiu convencê-lo de sua
sinceridade. Ele tinha uma forma de governo muito dura com toque de recolher e tributos
altíssimos, no entanto, distribuía cereais e vestimentas no tempo de fome e frio. Foi ele o
responsável pelo embelezamento do templo, o que agradou muito aos judeus. Apesar de
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não crer na fé judaica, decorou o templo com mármore branco, ouro e pedras preciosas.
Herodes o Grande morreu de hidropsia e câncer nos intestinos, em 4 a.C.
Seus filhos restantes passaram a governar porções separadas da Palestina. Arquelau
– Judéia, Samaria e Idumeia; Herodes Filipe, Itureias, Traconites, Gaulanites , Auranites e
Batanéia e Herodes Antipas tetrarca da Galiléia e Peréia. João Batista repreendeu a Antipas
por haver se divorciado de sua esposa para casar-se com Herodias, mulher de seu meio-
irmão. Quando Herodias induziu sua filha dançarina a que pedisse a cabeça de João Batista,
Antipas cedeu a horrenda solicitação (vide Marcos 6:17-29) e Mateus 14:3-12). Jesus
chamou a Herodes Antipas de “essa raposa” (Lucas 13:32) e mais tarde teve de enfrentar o
juízo deste em tribunal (vide Lucas 23:7-12). Herodes Agripa I, neto de Herodes o Grande,
executou o apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, e também encarcerou Pedro (vide Atos 12).
Herodes Agripa II, bisneto de Herodes o Grande, ouviu Paulo em sua auto-defesa (vide
Atos 25 e 26).
Como resultado de seus abusos de poder na Judéia, em Samaria e na Iduméia,
Arquelau foi removido por ordens de Augusto em 6 d.C. Foi por causa de um desses
excessos que José, Maria e Jesus ao voltarem do Egito tiveram de estabelecer-se em Nazaré
da Galiléia, ao invés de faze-lo em Belém da Judéia (vide Mateus 2:21 a 23). Depois que
Arquelau foi retirado, o território passou a ser dirigido por governadores romanos, salvo
por breves períodos. O juiz de Jesus, Pôncio Pilatos, foi um desses governadores. Os
governadores Felix e Festo ouviram a exposição do caso de Paulo (vide Atos 23-26). E
quando o governador Floro saqueou o tesouro do templo, isso foi o estopim da revolta dos
judeus, em 66-73 d.C. Agora, vale ressaltar que apesar dos governadores romanos e de
Herodes, era o sacerdócio judaico e o Sinédrio (um tipo de Tribunal Superior dos judeus)
que controlavam boa parte das questões locais no que diz respeito ao dia a dia do povo.
Quando Jerusalém foi destruída no ano 70 d.C. cessou também a adoração
formatada com seu sistema sacrificial. Visando suprir essa lacuna, os rabinos judeus
estabelecem, como medida substitutiva, uma escola na cidade costeira mediterrânea de
Jamnia, onde se fizessem estudos mais intensivos da Tora, ou lei do Antigo Testamento. A
situação de incerteza continuou na Palestina até os dias do imperador Hadriano, que
mandou erguer um santuário e o dedicou a Júpiter, deus romano, no local exato em que
estivera o templo, e além disso, proibiu o ritual da circuncisão. Outra vez os judeus se
revoltam, desta vez liderados por Bar Cochba que foi recebido por muitos como se fosse o
Messias (132 d.C.). Mas os romanos abafaram o levante em 135 d.C. Eles reconstruíram
Jerusalém dentro dos moldes de uma cidade romana e expulsaram os judeus, proibindo-os
de entrar na cidade. Assim terminou o estado judaico que deixou de existir oficialmente até
ser reavivado em 1948.
2 – O AMBIENTE SECULAR DO NOVO TESTAMENTO
A população judaica que vivia no Império Romano era de aproximadamente quatro
milhões e correspondia a 7% da população total do mundo Romano. Os judeus que viviam
na Palestina atingiam a setecentos mil. Havia mais judeus na Alexandria e no Egito do que
em Jerusalém; e mais na Síria do que na Palestina. E mesmo em certas partes da Palestina
como na Galiléia onde Jesus se criou a maior parte da população era composta de gentios.
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Quanto à língua falada, a oficial do império romano era o latim, mas o idioma
comum falado era o grego; além do grego na Palestina também se falava aramaico e
hebraico. É bem provável que Jesus e seus discípulos fossem trilingües.
O transporte na Palestina era precário e não havia estradas pavimentadas. A escrita
era realizada em papiros ou pedaços de cerâmica, os textos mais importantes eram escritos
em couro ou pergaminho.
O habitante típico da Palestina morava em um apartamento em um edifício, no nível
do chão, que possuía apenas um aposento, o piso era de terra batida, o eirado era utilizado
para as pessoas dormirem no calor, secar frutas, e lugar de oração. Os leitos consistiam de
um colchão no chão. As pessoas dormiam vestidas com suas roupas de uso diário.
Enquanto os romanos faziam quatro refeições diárias, os palestinos (judeus) faziam
apenas duas refeições diárias. Sua dieta era constituída principalmente de frutas e legumes.
Carne assada ou cozida somente em dias de festa, uvas passas, mel, tâmaras, figos e peixe.
Comiam reclinados em divãs e nas refeições informais se assentavam.
Quanto ao vestuário, os homens usavam túnicas que eram vestes parecidas com
camisas que iam dos ombros até os joelhos e uma faixa ou cinto era enrolado em volta da
cintura; as sandálias para os pés eram grosseiras, e eles usavam um turbante ou chapéu na
cabeça. Nos meses de frio usavam também uma manta ou capa pesada sobre a túnica. As
vestes eram geralmente brancas. As mulheres usavam uma túnica curta como roupa de
baixo e algumas vezes usavam uma túnica externa brilhantemente colorida que descia até
aos pés. As mais elegantes usavam cosméticos, batom, sobras nos olhos, pintura para
sobrancelhas e jóias que incluíam brincos e pendentes para o nariz. As mulheres palestinas
costumavam usar um véu, mas não tapavam seu rosto. Os homens mantinham o cabelo
curto, raspado com navalha. Os homens e mulheres tingiam os cabelos para disfarçar os
grisalhos. Usavam perucas e na Palestina os homens deixavam a barba crescer.
Entre os pagãos as camadas sociais eram desniveladas, havia os aristocratas,
proprietários de terras e os contratados pelo governo, que viviam no luxo; e os escravos que
faziam o trabalho pesado. Entre os judeus, o desnível social era um pouco menor por causa
da influência do judaísmo. Os rabinos formavam a classe média alta e os fazendeiros,
artesãos, pequenos negociantes formavam a maior parte da população. Os cobradores de
impostos (publicanos) eram objeto especial de aversão como classe.
A família era a unidade social básica. Para encorajar a família greco-romana típica
que contava com baixa taxa de nascimentos o governo oferecia benefícios especiais aos
pais de dois ou mais filhos, enquanto que os solteiros pagavam impostos especiais.
Na Palestina era comum a família de muitos membros. Havia alegria no nascimento
de um menino e tristeza no nascimento de uma menina. Muitas delas eram abandonadas e
eram acolhidas e criadas para serem prostitutas. Os nomes eram muito repetitivos e como
não havia sobrenomes a distinção era feita ora por meio da profissão que era acrescida ao
nome, ora por meio da adição do nome do pai, ou da cidade de origem. Ao perder um ente
querido eles costumavam rasgar suas vestes ou jejuarem em sinal de luto, e também podiam
contratar pessoas “carpideiras profissionais” para conduzir uma lamentação.
No que diz respeito à moralidade no mundo greco-romano percebe-se, pelas listas
nas cartas paulinas, que os pecados sexuais encabeçam a lista das proibições. A prostituição
embora já existisse como instituição bem reconhecida era condenada. Meninas escravas
eram vítimas desses excessos. Alguns homens vendiam suas próprias filhas e mulheres. Era
fácil divorciar, e o assassínio era uma prática comum.
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Quanto ao lazer, a forma mais espetacular de diversão era as lutas dos gladiadores.
Eles podiam ser escravos, cativos, criminosos ou voluntários. Havia muito derramamento
de sangue nesses eventos.
Peças teatrais exibiam a imoralidade da época. Havia também os jogos olímpicos
que eram eventos esportivos que atraíam muita gente. Havia boa música e literatura. As
crianças brincavam com brinquedos como chocalhos, bonecas, casas e móveis em
miniatura, balanços, jogos como a amarelinha, esconde-esconde, cabra-cega.
Em se tratando de negócios e trabalho, as uniões trabalhistas eram prefiguradas por
divindades patronas. Esses grêmios se ocupavam de intrigas políticas, prestavam auxílio a
seus membros em situação precária e distribuíam benefícios a viúvas e órfãos, na Palestina
eles regulavam os dias e as horas de trabalho.
A indústria era limitada a pequenas oficinas locais, o transporte via fluvial era
possível apenas nos meses calmos do verão. A agricultura era muito avançada com a
utilização de diferentes tipos de fertilizantes, pesticidas, seleção de sementes e rotatividade
da região de plantio.
Algumas companhias exploravam a atividade bancária de modo muito parecido ao
dos dias de hoje. As taxas de juro variavam entre quatro e doze por cento ao ano.
A ciência no período do Novo Testamento já existia. Na verdade desde três séculos
antes de Cristo um homem chamado Eratostenes, bibliotecário em Alexandria ensinava que
a terra era esférica e calculou que ela teria 24 mil milhas de circunferência (errou apenas
em oitocentas milhas de acordo com o cálculo moderno) e calculou a distância entre a terra
e o sol em 92 milhões de milhas (a estimativa atual é de 93 milhões de milhas). Ele também
conjecturou a existência do continente americano.
A medicina, pelo menos a cirurgia estava bem mais avançada do que imaginamos.
Lucas foi um médico. Os cirurgiões faziam intervenções cirúrgicas no crânio,
traqueotomias, amputações. Preenchiam as cavidades dos dentes com ouro e as dentaduras
eram feitas com os dentes dos falecidos ou de animais. Algumas vezes usavam pós-
abrasivos para branquear os dentes.
3 – AMBIENTE RELIGIOSO DO NOVO TESTAMENTO
3.1. O paganismo
No mais alto escalão das divindades gregas estava Zeus, filho de Cronos. Ele
abafava rebeliões por parte dos outros deuses. Para os gregos os deuses eram superiores aos
homens no que diz respeito ao poder, inteligência e imortalidade, contudo não no que diz
respeito à moralidade.
Grande parte do panteão e da mitologia grega foi assumida pela religião romana. As
divindades romanas vieram a ser identificadas com os deuses gregos (Júpiter com Zeus,
Vênus com Afrodite, e assim segue). É também de influência grega a adição, feita pelos
romanos, de certas características como a de um sacerdócio sobre o qual o próprio
imperador atuava como sumo sacerdote.
O culto ao imperador aprovado pelo senado romano seguiu essa idéia ao deificar
após a morte a Augusto e a subseqüentes imperadores que porventura tivessem servido bem
como tais. Alguns deles antecipavam essa deificação pós-morte entre eles – Calígula, Nero
e Domiciano – contudo eles não foram honrados com tal distinção ao morrerem.
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É fato que houve uma larga popularidade e influência das religiões misteriosas dos
gregos, egípcios e povos orientais sobre o primeiro século cristão. Havia os cultos de
Eleusis, Mitra, Isis, Dionísio, Cibele e inúmeros cultos locais. Eles promoviam a
purificação e a imortalidade do indivíduo. Freqüentemente esses cultos giravam em torno
de mitos sobre uma deusa cujo amante ou filho fora arrebatado dela, usualmente através da
morte, para ser subseqüentemente restaurado. Esses mistérios envolviam ritos secretos de
iniciação e outras cerimônias, como banhos, aspersão de sangue, alimentos sagrados,
intoxicação alcoólica, êxtase emocional e muito luxo visando promover união mística dos
devotos com os deuses.
Havia muitas supertições e sincretismo e o contraste dualista concebido por Platão
entre o mundo invisível das idéias e o mundo visível da matéria, formava o substrato do
gnosticismo do primeiro século de nossa era, segundo o qual, a matéria era equiparada ao
mal, ao passo que o espírito seria equivalente ao bem. Daí resultavam dois modos opostos
de conduta: 1 – a supressão dos desejos do corpo, devido à sua conexão com a matéria má
(ascetismo) e 2 – a indulgência quanto às paixões físicas por causa da irrealidade e
inconseqüência da matéria (libertinagem ou sensualismo). Em ambos casos as noções
religiosas orientais haviam corrompido as idéias originais de Platão. Por considerarem a
carne como má a ressurreição era abominável. No entanto, buscava-se a imortalidade do
espírito, podendo-se chegar a ela por meio do conhecimento de doutrinas secretas e de
senhas através das quais a alma, por ocasião da morte, conseguiria escapar da vigilância de
guardiões demoníacos dos planetas e das estrelas em seu vôo da terra para o céu. Para eles
o problema religioso não passava pela culpa humana e necessidade de perdão, mas estava
relacionado à ignorância e era necessário obter conhecimento para resolve-lo. De fato, o
vocábulo gnosticismo vem de gnosis, termo grego que significa conhecimento. A fim de
assegurar-se a pureza do Deus supremo, era este separado do universo material, e, portanto
mau, mediante uma série de seres progressivamente menos divinos, chamados “aeons”, que
emanaram dele. Assim, uma elaborada angelologia se desenvolveu juntamente à
demonologia.
Parece que por trás de algumas heresias que são atacadas no Novo Testamento estão
algumas idéias gnósticas. No entanto, o conteúdo da biblioteca gnóstica, descoberta na
década de 1940, em NAG Hammadi ou Chenoboskion, no Egito, parece confirmar que não
existia conceito gnóstico de um redentor celestial, quando começou o movimento cristão.
Ao que parece o gnosticismo tomou por empréstimo do cristianismo, em data posterior, a
doutrina de um redentor celeste.
Havia grande interesse em retornar a formas filosóficas mais puras. O epicurismo
defendia que os prazeres (não necessariamente de ordem sensual) eram o sumo bem da
vida. O estoicismo ensinava que a aceitação racional da própria sorte, determinada por uma
Razão impessoal, que governaria o universo e da qual todos os homens fazem parte, é dever
do homem. Os cínicos, antigas contrapartes dos modernos “hippies” reputavam a virtude
suprema como se fosse uma vida simples e sem convenções, rejeitando a busca popular
pelo conforto, pelas riquezas e pelo prestígio social. Os céticos tendo abandonado em seu
relativismo toda esperança de qualquer coisa em termos absolutos, sucumbiam ante a
dúvida e a conformidade para com costumes prevalecentes.
O cristianismo penetrou em uma sociedade religiosa e filosoficamente confusa. A
antiga confiança dos primeiros gregos desaparecera. O enigmático universo desafiava a
compreensão. A filosofia não conseguiu dar respostas satisfatórias. A religião tradicional
também não. Os homens se sentiam impotentes diante da sorte ditada pelas estrelas, as
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quais eram considerados seres angélico-demoníacos. O que vigorava era uma atitude de
desespero, marcada pelo pessimismo.
3.2. O Judaísmo
O judaísmo, como era conhecido no primeiro século, iniciou-se perto do final do
período do Antigo Testamento, durante o exílio assírio-babilônico. A idolatria da nação
israelita foi punida por Deus, conforme predito pelos profetas, com o exílio. Essa punição
curou a nação de sua idolatria. Com a perda temporária do templo, durante o exílio, houve
um incentivo ao estudo e observância da lei (Tora) do Antigo Testamento, e, a instituição
de centros de adoração (sinagogas?).
Alguns eruditos questionam se as sinagogas tiveram origem justamente durante o
exílio ou mais tarde, já no período intertestamentário. Uma conjectura razoável, entretanto,
é que em face de Nabucodonosor haver destruído o primeiro templo (o de Salomão) e haver
deportado da Palestina a maioria de seus habitantes, os judeus estabeleceram centros locais
de adoração intitulados sinagogas (assembléias) onde quer que pudessem ser encontrados
dez judeus adultos do sexo masculino. Uma vez instituída como uma instituição, as
sinagogas prosseguiram em existência até a reconstrução do templo, sob a liderança de
Zorobabel.
Sabe-se que uma sinagoga típica era um auditório retangular com uma plataforma
elevada para o orador, atrás dela ficava uma arca portátil ou um nicho, contendo rolos do
Antigo Testamento. A congregação se assentava em bancos de pedra, que estavam
alinhados ao longo de duas ou três paredes, ou em esteiras e, possivelmente, assentos de
madeira no centro do salão. Na frente, com seus rostos voltados para a congregação,
assentavam-se os dirigentes ou anciãos da sinagoga. As músicas não eram acompanhadas
por instrumentos musicais. Quando ia ler algum rolo do Antigo Testamento, o orador se
levantava. Ao pregar, ele se sentava. Todos se levantavam para realizar suas orações.
Em um culto típico de uma sinagoga havia: a recitação responsiva do Shema
(Deuteronômio 6:4 e ss. - texto áureo do judaísmo) e do Shemone Esreh (uma série de
louvores a Deus); oração, cântico de salmos, leituras do Antigo Testamento hebraico, da lei
e dos profetas, com um targum, ou seja, frouxa tradução oral para o aramaico (ou para o
grego) que muitos judeus entendiam melhor que o hebraico. Um sermão (se alguém
competente para tanto estivesse presente) e, uma benção proferida. Havia ampla liberdade
no fraseado da liturgia. Toda a congregação dizia “Amém”, no final das orações. O chefe
da sinagoga selecionava diferentes membros da congregação para conduzir as recitações,
ler as Escrituras e orar. Os visitantes que estivessem habilitados eram convidados a falar,
uma prática que abriu muitas oportunidades para Paulo pregar o evangelho nas sinagogas.
O chefe ou presidente eleito da sinagoga presidia as reuniões e fazia a apresentação
dos estranhos. O atendente (ou hazzan) cuidava dos rolos e dos móveis, acendia as
lâmpadas, soprava a trombeta que anunciava o dia de sábado, punha-se ao lado dos leitores
para assegurar a pronúncia correta e a leitura acurada dos textos sagrados, e algumas vezes,
ensinava na escola da sinagoga. Uma junta de anciãos exercia superintendência espiritual
sobre a congregação. Os membros que caíssem em erro eram punidos por meio de açoites
ou de exclusão. As esmolas recolhidas pela sinagoga eram distribuídas entre os pobres. Os
primeiros cristãos, principalmente judeus, assimilaram de forma natural a organização da
sinagoga como um modelo básico para suas igrejas locais.
10
A sinagoga representava muito mais que um centro de adoração religiosa a cada
sábado. Durante os dias úteis da semana ela se tornava em centro de administração de
justiça, de reuniões políticas, de serviços fúnebres, de educação de jovens judeus, e de
estudos do Antigo Testamento. O estudo da Tora nas sinagogas tendia por obscurecer a
importância da oferenda de sacrifícios no templo judaico, razão pela qual o rabino, ou
mestre da lei, começou a ultrapassar ao sacerdote em importância.
Conforme a lei mosaica, os sacrifícios só podiam ser legitimamente oferecidos no
santuário central. Por isso o segundo templo continuou a ser importante, até à sua
destruição por Tito, em 70 d.C. As exortações dos profetas Ageu e Zacarias haviam
impulsionado a reconstrução do templo durante o período de restauração do Velho
Testamento, depois do desterro. Saqueado e aviltado por Antíoco Epifâncio, em 168 a.C. o
templo fora reparado, purificado e reconsagrado por Judas Macabeu três anos mais tarde.
Herodes o Grande deu início a um grande programa de embelezamento do templo que
findou depois de sua morte, mas de nada adiantou, pois o templo foi outra vez destruído.
O templo havia sido erguido em meio a átrios e abóbadas que cobriam cerca de
vinte e seis acres. Os gentios podiam entrar no átrio exterior; mas inscrições em latim e
grego os advertia, sob ameaça de morte, a não entrarem nos átrios mais interiores,
reservados aos judeus com exclusividade. Do lado de fora do templo havia o altar dos
holocaustos e o lavatório cheio de água para ser usado pelos sacerdotes, em suas abluções.
Já no Lugar Santo, havia um candeeiro com sete hastes, alimentado por azeite, uma mesa
com o pão da presença (de Deus), ou pães da apresentação, e um pequeno altar onde era
queimado o incenso. Uma pesada cortina separava o lugar santo do lugar chamado Santo
dos Santos, no qual apenas o sumo sacerdote entrava, e isso apenas um dia no ano, no Dia
da Expiação.
A arca da aliança, a única peça de mobília que havia no Santo dos Santos, durante
os dias do Antigo Testamento, desde há muito havia desaparecido em meio aos distúrbios
das invasões e do cativeiro. Além dos sacrifícios particulares, holocaustos diários em prol
da nação inteira eram sacrificados no meio da manhã e no meio da tarde, conjuntamente
com a queima de incenso, orações, bênçãos proferidas pelos sacerdotes, libação de vinho
(oferenda líquida), o toque das trombetas e um cântico por parte de um coro formado por
levitas, com acompanhamento de harpas, liras e instrumentos musicais de sopro. Os
sábados, as festividades e outros dias santos requeriam cerimônias adicionais.
A adoração no templo estava intimamente relacionada às festividades religiosas e
dias santos dos judeus. Aproximadamente em setembro/outubro tinha início o ano civil
judeu e o ano religioso começava em março/abril.
O calendário religioso dos judeus era cheio de festas. Elas eram distribuídas assim:
Entre março/abril – 15-21 (Nisã) celebrava-se a Páscoa que comemorava o êxodo do Egito
e marcava o início da colheita do trigo. O Pentecoste também chamado de Semanas –
ocorria em abril/maio (Iyar) e maio/junho – 6 (Sivã) e marcava o fim da colheita do trigo.
Ocorria também em junho/julho (Tamuz); julho/agosto (Ab); agosto/setembro (Elul).
Havia também a festa das Trombetas ou Rosh – ou Hashanah – marcando o início do ano
civil e o fim das colheitas da uva e da azeitona – Tisri (setembro-outubro) 1 e 2.
O Dia da Expiação ou Yom Kippur – visando o arrependimento nacional, jejum e expiação
(não era chamado de festa) – Tisri (setembro-outubro) 10.
Havia também a festa dos Tabernáculos ou colheita – comemorando o viver em tendas a
caminho de Canaã, após o êxodo no Egito – era uma festividade alegre, durante a qual o
povo vivia em cabanas de ramos – Tisri (15-22)
11
E a festa das Luzes, Dedicação ou Hanukkah – comemorando a rededicação do Templo,
por Judas Macabeu, com luzes brilhantes nos recintos do Templo e nos lares dos judeus –
Heshvan (outubro-novembro) Quisleu (novembro-dezembro) 25 e Tebete (dezembro-
janeiro) 2 e 3.
E finalizando havia a chamada de Purim – comemorando o livramento de Israel ao tempo
de Éster, com a leitura pública do livro de Éster nas sinagogas – Shebet (janeiro-fevereiro)
Adar (fevereiro-março) 14.
Era prescrito pela lei mosaica os seis primeiros itens do calendário (da Páscoa - ao
Tabernáculo). Os dois restantes (Hanukkah e Purim) surgiram posteriormente, e à parte de
mandamento bíblico. Os peregrinos enchiam as ruas de Jerusalém vindos de toda parte da
Palestina e também de países estrangeiros, por ocasião das três principais festividades
religiosas. Páscoa - Pães Asmos, Pentecoste e Tabernáculos.
O Antigo Testamento existia em três idiomas, para proveito dos judeus do primeiro
século: o hebraico original, a Septuaginta (uma tradução para o grego) e os Targuns
(traduções orais para o aramaico, que estavam começando a ser postas em forma escrita. Os
Targuns também continham materiais tradicionais que não figura no texto bíblico).
Escritos em hebraico, aramaico e grego, e datados dos períodos inter e neotestamentário, os
livros apócrifos do Antigo Testamento contêm história, ficção e literatura de sabedoria. Os
judeus, e posteriormente os primitivos cristãos, de modo geral não reputavam esses livros
como Escritura Sagrada, razão por que o termo apócrifo, que inicialmente significava
“oculto, secreto e por isso profundo”, terminou por significar “não canônico”. Os livros
apócrifos incluem os seguintes:
I e II Esdras, Tobias, Judite, Adições ao livro de Éster, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico,
ou Sabedoria de Jesus, filho de Siraque, Baruque, Epístola de Jeremias, Oração de Azarias,
Cântico dos Três Jovens, Susana, Bel e o Dragão, Oração de Manasses, I e II Macabeus.
Outros livros que datam da mesma era são intitulados pseudepígrafos (falsamente escritos)
porquanto alguns deles foram escritos sob a alegação de que seus autores foram figuras do
Antigo Testamento desde há muito falecidas, a fim de assumirem foros de autoridade.
Alguns desses escritos pseudepígrafos também cabem dentro da categoria de literatura
apocalíptica (que visavam encorajar o povo a suportar as perseguições, até que se
inaugurasse o reino messiânico).
Essa literatura não possui limites conhecidos, possui autores anônimos cujo conteúdo é
lendário. Alguns desses livros são: I e II Enoque, II e III Baruque, Oráculos Sibilinos,
Testamento dos Doze Patriarcas, Testamento de Jô, Vidas dos Profetas, Assunção de
Moisés, Martírio de Isaías, Paralipômenos de Jeremias, Jubileus, Vida de Adão e Eva,
Salmos de Salomão, Epístola de Aristéias, III e IV Macabeus.
Em adição a estes, os documentos encontrados entre os rolos de Qumran: Documento de
Damasco, Regra da Comunidade ou Manual da Disciplina, Guerra entre os Filhos da Luz e
os Filhos das Trevas, Descrição da Nova Jerusalém, Hinos de Ação de Graças, Salmos de
Josué, vários comentários (peshers) sobre Salmos, Isaías, Oséias, Miquéias, Naum,
Habacuque e Sofonias.
O Talmude judaico era o registro escrito do conjunto de tradições orais
concernentes às decisões rabínicas sobre casos que envolviam questões de interpretação
acerca da lei do Antigo Testamento. Afirmando que as leis orais remontavam ao tempo de
Moisés, os rabinos elevaram suas contraditórias interpretações do Antigo Testamento a uma
posição de maior importância que o próprio Antigo Testamento. Duas famosas escolas
rabínicas de interpretação eram a escola moderada de Hilel e a escola rigorosa de Shammai.
12
Apesar de seu espírito nacionalista o judaísmo atraía grande número de prosélitos
(plenamente convertidos) e de tementes a Deus (gentios dispostos a praticar o judaísmo em
parte - não circuncidado).
A fé judaica era resultado da ação de Deus na história e frisava o destino da nação,
(o período intertestamentário registrou a crescente ênfase no destino do indivíduo), mas o
nacionalismo e a consciência de pertencer ao povo escolhido nunca acabou.
Os judeus esperavam o Messias. Eles realmente aguardavam o aparecimento de
certa variedade de personagens messiânicas – profética, sacerdotal e real. Mas, de modo
geral, não esperavam que o Messias fosse um salvador sofredor e moribundo, e nem um ser
divino. Tinham a esperança que Deus viesse a usar a figura humana para trazer livramento
político militar da opressão e domínio romanos. Ou então o próprio Deus haveria de libertar
Seu corpo (povo), para em seguida introduzir o Messias como governante.
Seitas e outros grupos do judaísmo:
Os fariseus (separados – provavelmente em sentido ritual) surgem após a revolta
dos Macabeus, como um desenvolvimento dos hasidim, que se opunham à helenização da
cultura judaica. A maioria deles era da classe média leiga e compunham a mais numerosa
das seitas religiosas dos judeus, embora consistissem tão somente de seis mil decididos, no
tempo de Herodes o Grande. Eles formavam a coluna mestra do judaísmo. Guardavam
tanto as leis rabínicas quanto às mosaicas. Um fariseu não podia comer na casa de um
pecador (alguém que não praticasse o farisaísmo), mas podia receber um pecador em sua
própria casa. Ele precisava dar-lhe vestes, para que as roupas do próprio pecador não
fossem ritualmente impuras. Observavam o sábado. Alguns fariseus rabinos proibiam que
se cuspisse no chão desnudo, em dia de sábado, a fim de que a perturbação da poeira não
viesse a constituir aragem e, portanto, quebra do sábado por meio desse trabalho. As
mulheres não poderiam olhar no espelho no dia de sábado para não serem tentadas a
arrancarem algum cabelo branco (isso seria considerado trabalho). Quando lhes convinha
os fariseus planejavam desculpas, por exemplo: embora uma pessoa não pudesse levar nos
braços as suas roupas no dia de sábado caso houvesse um incêndio, ela poderia vestir-se
com várias camadas de roupas antes de sair da casa e assim livra-las do incêndio. Não era
lícito que um fariseu viajasse no sábado mais de um quilômetro. Mas se ele desejava ir
mais longe, depositava na sexta feira alimentos suficientes para duas refeições a um
quilômetro distante de sua residência, na direção em que quisesse ir. O depósito de
alimentos tornava aquele lugar um lar seu, distante de casa, pelo que, em dia de sábado,
era-lhe possível viajar um quilômetro extra. Jesus e os fariseus por repetidas vezes entraram
em choque em virtude do artificialismo de tal legalismo. O judeu comum admirava os
fariseus, como perfeitos modelos de virtude.
Os saduceus eram os aristocráticos herdeiros dos hasmoneanos do período
intertestamentário. Eles constituíam um menor grupo que os fariseus, mas detinham maior
influência política, porque controlavam o sacerdócio. Alguns relacionam o termo saduceu
aos membros do concilio supremo, outros a Zadoque, sacerdote nos tempos de Davi e
Salomão. Em virtude de seus contatos com os dominadores estrangeiros eles reduziam sua
devoção religiosa e estavam mais abertos a helenização. Eles eram diferentes dos fariseus,
davam importância somente aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (o
Pentateuco, lei mosaica ou Tora) como únicos plenamente autoritativos, e desprezavam as
leis orais dos rabinos não sacerdotais. Eles não criam na preordenação divina, em anjos, em
espíritos e nem na imortalidade da alma e na ressurreição do corpo, conforme criam os
fariseus.
13
Apesar de serem estritos em certo sentido os fariseus eram de tendências
progressistas, pois continuavam aplicando a lei do Antigo Testamento a novas e mutáveis
circunstâncias da vida diária. Já os saduceus confortavelmente situados na vida como
estavam, queriam manter o status quo, e assim sendo resistiam a qualquer contemporização
com a lei, a fim de que não viessem a perder suas favoráveis posições de abastança e
riqueza. Com a destruição do templo em 70 d.C. o partido dos saduceus se desintegrou. Os
fariseus, porém, sobreviveram tendo-se tornado no alicerce do judaísmo ortodoxo dos
séculos posteriores.
Os essênios formavam uma seita menor, com cerca de quatro mil adeptos. Assim
como os fariseus eles se originaram entre os hasidim (aqueles que se desgostavam dos
expansivos alvos políticos hasmoneanos). Alguns essênios viviam em comunidades
monásticas, como aquela de Qumran, onde foram descobertos os papiros do Mar Morto. A
admissão requeria um período de prova de dois a três anos, abandono de propriedades
privadas e das riquezas, doadas ao tesouro comum. Os elementos mais estritos não
casavam. Chegavam a ultrapassar os fariseus no extremo legalismo. Não ofereciam
sacrifícios de animais no templo, usavam vestes brancas como símbolo de pureza, se
consideravam o remanescente vivo dos eleitos, esperavam o aparecimento do profeta (um
messias político-militar) e se preparavam para uma guerra de 40 anos. Foram influenciados
pelo “Mestre da Justiça” um antigo mestre em suas crenças e práticas.
Os herodianos não eram uma seita religiosa, era um grupo formado por uma
pequena minoria de judeus influentes – que pertenciam em sua maioria a aristocracia de
sacerdotes saduceus – e que apoiavam a dinastia dos Herodes e de forma encoberta ao
governo romano, que colocou os Herodes em posição de mando. Contrastando com eles os
zelotes eram revolucionários que se dedicavam à derrubada do domínio romano, recusando-
se a pagar as taxas impostas por Roma, eles consideravam a lealdade a César um pecado,
iniciaram muitas revoltas, inclusive a rebelião judaica que culminou com a destruição de
Jerusalém em 70 d.C. Os eruditos em geral identificam os zelotes como sicários
(assassinos) que tinham o costume de carregarem adagas escondidas. Talvez estes fossem o
ramo extremista dos zelotes. Um dos doze discípulos de Jesus fora um zelote (Simão
chamado Zelote). Lucas 6:15 e Atos 1:13.
Em se tratando dos escribas, eles não eram nem uma seita religiosa e nem um
partido político, mas constituíam um grupo de profissionais. Eram doutores, mestres da lei,
também chamados “rabinos” que literalmente quer dizer “meu grande” ou “meu mestre”,
professor. Sua origem está com Esdras, conforme uma certa tradição. Eles eram
responsáveis por interpretar e ensinar a lei do Antigo Testamento baixando decisões
judiciais sobre os casos que lhes eram apresentados. Sua função interpretativa era
necessária em virtude da aplicação dos preceitos da lei à vida diária. Por exemplo: o que
consistia em trabalho no sábado? Os discípulos (aprendizes dos escribas) seguiam atrás
deles por onde quer que fossem, e aprendiam por rotina de memória as minúcias das
tradições do Antigo Testamento e rabínicas. Os escribas ensinavam no recinto do templo e
nas sinagogas e ocasionalmente debatiam na presença de seus discípulos.
Na época de Jesus a maioria dos escribas pertencia à seita dos fariseus, agora nem
todos os fariseus possuíam o treinamento teológico que era necessário a um escriba Uma
vez que o trabalho do escriba era gratuito, eles se sustentavam por meio de algum outro
ofício. Por exemplo: Paulo, que recebera treinamento rabínico, era fabricante de tendas
(vide Atos 18:3). Apesar de não ter recebido educação teológica formal, Jesus foi chamado
Rabi e cercou-se de discípulos. Com freqüência Ele ensinava em estruturas rítmicas fáceis
14
de memorizar, declarações concisas e vívidas parábolas. Sempre ensinava com grande
autoridade.
Muitas das questões religiosas e domésticas dos judeus eram resolvidas por eles
mesmos com a permissão dos romanos. Por causa disso, existiam numerosos tribunais
locais. O superior tribunal dos judeus era o Sinédrio, ele se reunia na área do templo
diariamente, exceto aos sábados e outros dias santificados. Eles inclusive comandavam a
força policial. O sumo sacerdote presidia a setenta outros juízes, membros do tribunal,
vindos dos partidos dos fariseus e dos saduceus. O Novo Testamento se refere ao Sinédrio
usando os termos “Concílio”, “principais sacerdotes, anciãos e escribas”, “principais
sacerdotes e autoridades” ou simplesmente “autoridades”. Os judeus palestinos, as massas
do povo comum, chamadas “o povo da terra”, permaneciam desvinculados das seitas e dos
partidos políticos. Isso acontecia em virtude do seu desconhecimento da Lei e eles eram
desprezados. Jesus misturava-se com essa gente e foi muito criticado por isso.
A Diáspora
Distantes da Palestina, os judeus da diáspora (dispersão) estavam divididos em duas
categorias: 1 – os hebraístas, que retinham não só sua fé judaica mas também o idioma
judaico e seus costumes palestinos; e 2 - os helenistas que haviam adotado o idioma, o
estilo de vestes e os costumes gregos, ao mesmo tempo em que se apegavam à fé judaica
em distintos níveis de intensidade. O filósofo judeu Filo, foi notável exemplo de judaísmo
helenista. Ele viveu no primeiro século cristão e morava em Alexandria. Ele combinava o
judaísmo e a filosofia grega usando alegorias baseadas no Antigo Testamento. Sem dúvidas
o judaísmo da diáspora era menos estrito e mais influenciado pelo mundo grego. No
entanto, como as influências gregas já permeavam a Palestina, o judaísmo palestino é muito
diferente do Talmude que representa um estágio mais avançado e com tendências mais
monolíticas do judaísmo. Após os fracassos das revoltas contra Roma em 70 e 135 d.C., o
judaísmo da Palestina seguiu uma tendência em direção à uniformidade a partir de um
farisaísmo que buscava eliminar os elementos apocalípticos; quanto aos saduceus, eles
haviam perdido a sua base de influência, que era o templo, e os romanos tinham se
encarregado de destruir as esperanças de seitas menores com tendências apocalípticas,
como eram, por exemplo, os essênios.
A educação judaica e a educação greco-romana
Era em casa que as crianças judias recebiam suas primeiras lições de história e de
religião, de seus progenitores, inclusive habilidades práticas e quiçá, também capacidade de
ler e escrever. A própria Lei e o livro de Provérbios, no Antigo Testamento, contêm muitas
referencias nas quais essa responsabilidade é atribuída aos pais, isso incluía o emprego de
punições físicas, para crianças que não aprendessem do modo devido. Os meninos judeus
iam às escolas das sinagogas locais a partir dos seis anos de idade. Na Sinagoga o manual
de leitura e escrita era O Antigo Testamento. As lições também incluíam aritmética
simples, tradições judaicas extrabíblicas e os complexos rituais do judaísmo. Eles também
aprendiam uma profissão com o fim de tornar-se um erudito avançado como seu pupilo.
Por exemplo, Paulo, antes de sua conversão, estudou aos pés do famoso rabino Gamaliel
(veja em Atos 22:3).
15
Contrastando com o modelo de educação judaico a educação greco-romana tinha
base liberal. Eram os escravos que supervisionavam os meninos greco-romanos em seus
primeiros anos, ensinando-lhes as suas primeiras lições, e depois os acompanhando às
escolas particulares e de volta das mesmas, até que chegassem à idade adulta, em meio a
grande cerimonial. Ao se tornarem adolescentes eles passavam a freqüentar universidades
em Atenas, Rodes, Tarso, Alexandria e outras localidades, onde estudavam filosofia,
retórica (oratória), leis, matemática, astronomia, medicina, geografia, botânica. Se
quisessem também poderiam freqüentar as preleções de um filósofo peripatético (andarilho)
assim chamados porque iam ministrando seus conhecimentos enquanto caminhavam. A
elevada taxa de alfabetismo, que é evidenciado pelos papiros remanescentes, mostra que a
educação era generalizada. Era comum pessoas carregarem cadernetas de anotações,
anotarem as compras de mercado, os encontros e outros memorandos. Até mesmo a
taquigrafia já era usada.
Todos estes conhecimentos somados nos auxiliam no processo de compreensão do
Novo Testamento.
4 - O CANON
O Cânon (vara de medir, padrão) do Novo Testamento é formado pelos livros que
foram aceitos pela Igreja Primitiva como Escrituras inspiradas por Deus, constituindo regra
de fé e prática.
No começo os cristãos não possuíam nenhum dos livros que fazem parte do nosso
Novo Testamento. Eles dependiam do Antigo Testamento, de uma tradição oral acerca dos
ensinamentos e da obra de redenção de Jesus, e de revelações diretas da parte de Deus,
através de profetas cristãos. Agora, mesmo depois de já terem sido escritos os livros do
Novo Testamento, muitos desses livros não haviam ainda sido geograficamente distribuídos
por toda a Igreja. E antes de serem colecionados para formação do Novo Testamento,
escritores cristãos haviam produzido alguns outros livros sendo alguns deles bons, e outros
de inferior qualidade. Os livros como as cartas de Paulo e os evangelhos foram canonizados
sem maiores problemas. Mas uma autoria incerta de outros como Hebreus fez com que sua
canonicidade fosse posta em dúvida por algum tempo. A segunda epístola de Pedro, por
exemplo, demorou a ser aceita pela igreja primitiva como sendo de autoria petrina uma vez
que no grego o seu estilo difere da primeira. Outros livros por terem circulação limitada e
não se tornarem amplamente conhecidos só foram adicionados ao cânon mais tarde.
Algumas citações retiradas dos livros do Novo Testamento, e isso de maneira
autoritativa, pelos primeiros pais da Igreja, nos ajudam a reconhecer os livros que eles
consideravam canônicos. Mais tarde a Igreja compilou listas formais de livros, ou cânons.
Um dos primeiros foi o cânon de Marciom (cerca de 144 d.C.). Ele era um herege gnóstico,
que ensinava a existência de um severo Deus no Antigo Testamento e de um amoroso Deus
no Novo Testamento. Para Marciom esses “deuses” se opunham mutuamente. Ele ensinava
também que Jesus Cristo veio como mensageiro do amoroso Deus do Novo Testamento e
que fora morto pelo Deus do Antigo Testamento. Dizia também que Jesus confiara o
evangelho aos doze apóstolos, mas estes não tinham evitado a corrupção do mesmo e que
Paulo se tornara o único pregador do verdadeiro evangelho. Assim, pois, Marciom separou
apenas aqueles livros que ele considerava livres do Antigo Testamento e do judaísmo e
contrários ao mesmo, como por exemplo: Lucas (com algumas omissões) e a maior parte
16
das epístolas de Paulo. A violenta reação de cristãos ortodoxos contra a breve lista
preparada por Marciom demonstra o fato que, como um todo, a Igreja já havia aceitado os
livros do Novo Testamento que Marciom rejeitou. Por isso mesmo o cânon de Marciom
causou tanta perturbação. No século IV d. C. todos os livros que compõem hoje o Novo
Testamento já haviam sido reconhecidos de modo geral, ao passo que outros livros tinham
sido rejeitados. Os concílios eclesiásticos dos séculos IV e V d.C. formalizaram a crença e a
prática então existente, no que diz respeito ao cânon do Novo Testamento.
Podemos ver que Deus guiou a Igreja primitiva em sua avaliação de vários livros. O
processo de seleção precisou de algum tempo, e levantaram-se diferenças de opinião.
Porém, podemos estar gratos porque a Igreja primitiva não aceitou certos livros sem a
devida avaliação, e, algumas vezes, sem debate. A maioria dos leitores que faz a
comparação dos escritos sub apostólicos e dos livros apócrifos do Novo Testamento com os
livros canônicos do Novo Testamento, de todo coração endossa o julgamento crítico dos
cristãos primitivos.
Foram vários os critérios de canonicidade, como a consonância com a doutrina oral
apostólica do primeiro século de nossa era, ou como o efeito moral edificante. O critério
mais importante – de fato, crucial – era o da apostolicidade, isto é, autoria da parte de um
apóstolo ou de um associado de algum dos apóstolos, e, por conseguinte, também haver
sido escrito numa data dentro do período apostólico.
Marcos foi companheiro tanto de Pedro quanto de Paulo. Lucas foi companheiro de
Paulo. E quem quer que tenha sido o autor da epístola aos Hebreus, exibe contatos
teológicos bem próximos a Paulo. Tiago e Judas eram meio-irmãos de Jesus, associados
dos apóstolos na primitiva igreja de Jerusalém. Tradicionalmente, todos os demais autores
cujas obras fazem parte do Novo Testamento eram apóstolos – Mateus, João, Paulo e
Pedro. A crítica moderna lança dúvidas sobre a exatidão da atribuição tradicional a certos
autores. Porém, mesmo segundo pontos de vista críticos negativos, usualmente não é
negado que livros não apostólicos tivessem sido escritos, dentro da tradição apostólica, por
seguidores dos apóstolos.
O próprio Jesus asseverou a total autoridade do Antigo Testamento como Escritura.
Ele também conferiu às suas próprias palavras e ações um privilégio igualmente
autoritativo e prometeu aos apóstolos que o Espírito Santo haveria de relembrar-lhes o Seu
ministério, ensinando-lhes a significação do mesmo (João 14:26; 16:12-15). O cânon do
Novo Testamento, pois, é o registro e a interpretação autoritativos da revelação que Deus
fez de Si mesmo por meio de Jesus Cristo – um registro interpretativo autenticado pelo
nosso Senhor em pessoa.
É bem provável que o papiro tenha sido o material de escrita da maioria, e talvez, de
todos os nossos livros do Novo Testamento. Os escritores, que poderiam ser ou os próprios
autores ou seus amanuenses usaram o antigo formato do rolo, embora alguns dos livros
possam ter sido escritos em forma de códex, com páginas separadas e vinculadas, como nos
livros modernos. Era muito comum um autor ditar a um amanuense. E muitas vezes o autor
dava a seu amanuense certo grau de liberdade na escolha das palavras.
Não existe nenhum dos documentos originais. Eles receberam o nome de
autógrafos. No começo, quando os indivíduos e igrejas particulares desejavam cópias, um
leitor ditava com base em um exemplar para uma sala repleta de copistas. Gradualmente,
erros de vista e de sons, omissões e reiterações inadvertidas, notas marginais e
“melhoramentos” teológicos e gramaticais deliberados foram penetrando no texto. A
preocupação com a pureza do texto provocou o confronto de manuscritos com manuscritos
17
anteriores, ocasionalmente por diversas vezes. Apesar de tudo, o número de equívocos foi
aumentando cada vez mais.
Na medida que a igreja foi percebendo a natureza sagrada e santa do Novo
Testamento ela foi desenvolvendo, material de escrita de melhor qualidade e de maior
durabilidade que passou então ser usado, como o velum (pele de vitela) e o pergaminho
(pele de carneiro). Os primeiros manuscritos foram escritos totalmente em letras maiúsculas
(ou unciais) mas depois houve manuscritos em letras cursivas (ou minúsculas). No começo
não existia a separação de palavras, os sinais de pontuação e as divisões em capítulos e
versículos. Eles foram desenvolvimentos depois. Estevão Langton (morto em 1228) dividiu
o texto em capítulos; R Stephanus em versículos, em sua edição impressa em 1551. Os
mais antigos manuscritos que estão nas mãos dos eruditos pertencem ao século II d.C.,
sendo que o mais antigo, o Fragmento Rylands do evangelho de João é datado de cerca de
135 d.C. As fontes primárias é que nos permitem determinar qual o texto original do Novo
Testamento são os manuscritos gregos, as antigas versões (isto é traduções geralmente em
siríaco e latim) e citações nos escritos dos primeiros pais da Igreja ou então lecionários
(textos de leitura extraídos do Novo Testamento para ocasiões litúrgicas). Através da
comparação dessas fontes os eruditos chegam a uma decisão entre textos e variantes, com
regular grau de certeza. Entre os seus mais importantes critérios para avaliação estão: a
preferência pelo texto dos manuscritos e versões mais antigos e copiados com maior
cuidado, a preferência pela forma que melhor explica o desenvolvimento de outras formas,
a preferência pela forma mais difícil (por ser mais provável que um copista procurasse
facilitar e não dificultar a expressão), a preferência pela forma mais curta (o copista optaria
por adicionar algo ao texto no lugar de apagar algo).
5 - A VIDA DE JESUS – Fontes
1. A história extrabíblica e os ágrafos
Apesar de não terem sido os primeiros documentos a serem escritos no Novo
Testamento (algumas epístolas foram escritas antes deles), os quatro evangelhos canônicos
- Mateus, Marcos, Lucas e João – com todo o direito estão em primeiro lugar constituindo-
se nas principais fontes de estudo sobre a vida de Jesus. As demais fontes informativas não
canônicas – o historiador judeu do primeiro século Josefo (com posteriores inserções feitas
por copistas cristãos), o Talmude Babilônico e os escritores romanos Plínio o Jovem,
Tácito, Suetônio e Luciano - são tão resumidas que não acrescentam dados importantes na
tentativa de reconstituição da vida de Jesus. Mas servem para confirmar que Ele realmente
viveu, tornou-se uma figura pública e morreu sob Pôncio Pilatos e que no espaço de doze
anos após a sua morte, a adoração à sua pessoa já havia chegado a lugares tão distantes
quanto Roma. Há também algumas declarações de Cristo registradas fora dos quatro
evangelhos canônicos. Paulo, por exemplo, cita uma afirmação dominical que
desconhecemos em qualquer outra fonte: “Mais bem-aventurado é dar que receber.” (Atos
20:35). Essas declarações são chamadas de ágrafos e diferem das declarações de Jesus nos
evangelhos, mas são citados por escritores cristãos primitivos e algumas vezes aparecem à
margem de antigos manuscritos do Novo Testamento, ágrafo vem do termo grego que
significa não escrito. É lógico que essas afirmações foram escritas (senão não as
conheceríamos) mas como não foram registradas nos evangelhos recebem o nome de
18
ágrafo. Existem também outros registros como os papiros de Oxyrhynchus e o suposto
evangelho de Tomé que constituem coletâneas de declarações de Jesus. Algumas dessas
declarações são semelhantes as que estão registradas nos evangelhos canônicos. Outras
declarações obviamente se originam de afirmativas canônicas, mas foram alteradas. Ainda
outras diferem totalmente de qualquer coisa que se possa ler no Novo Testamento. Existe
um consenso geral de que os papiros de Oxyrhynchus e o evangelho de Tomé refletem uma
tradição quase inteiramente corrupta a respeito das palavras de Jesus. Agora, Lucas já
registra que havia numerosos registros evangélicos, escritos antes do terceiro evangelho,
mas nenhum desses, excetuando o de Marcos e talvez o de Mateus, sobreviveu.
Os evangelhos apócrifos pós-apostólicos, entretanto, não perduraram. Eles
mesclavam crenças heréticas com imaginações piedosas e procuravam preencher o
intervalo entre a morte e a ressurreição de Jesus ou apresentar detalhes sobre sua infância.
Dados esses que os evangelhos omitem.
2. A prioridade do evangelho de Marcos
Vários estudiosos têm apresentado um certo número de argumentos em favor da
prioridade do evangelho de Marcos. Em Lucas 1:1-4 o escritor sagrado chega realmente a
afirmar que utilizou outros documentos dos quais obteve material registrado por
testemunhas oculares para escrever seu próprio evangelho. Essa informação ao menos abre
a possibilidade que Marcos tenha sido um desses documentos por trás do evangelho de
Lucas. Mateus incorpora praticamente todo o evangelho de Marcos e Lucas incorpora em
seu texto quase a metade do evangelho de Marcos. Tanto Mateus quanto Lucas, com
freqüência, repetem as mesmas palavras de Marcos e utilizam a mesma seqüência dos
eventos da vida de Jesus que Marcos descreveu; no entanto, tanto Mateus quanto Lucas
alteram o fraseado de Marcos buscando quem sabe, esclarecer melhor o sentido, mudando o
estilo, anulando material desnecessário para seus próprios propósitos ou cujo significado
poderia ser mal entendido e destacando diferentes implicações teológicas. A prioridade de
Marcos goza de considerável favor, é acerca da hipótese “Q” que se concentram as maiores
incertezas.
3. A hipótese “Q”
Por causa das semelhanças que existem entre Mateus e Lucas no seu material
didático que não está no evangelho de Marcos, eruditos tem defendido a hipótese da
existência de um segundo documento ao qual denominam “Q” – usualmente vinculada ao
vocábulo alemão Quelle que significa fonte, que é tido como uma antiga coletânea de
declarações de Jesus, com o mínimo de arcabouço histórico. Contudo essa hipótese
apresenta alguns problemas pertinazes. Por exemplo, o grau de concordância entre Mateus
e Lucas sobre declarações tradicionais varia muito. Isto leva alguns eruditos a suporem que
Mateus e Lucas utilizaram diferentes traduções gregas do documento “Q” que foi
originalmente escrito em aramaico.
4. A crítica da forma dos evangelhos
19
Primeiramente precisamos nos lembrar que os cristãos primitivos não possuíam
qualquer dos quatro evangelhos. Já no século XX a erudição alemã se encarregou da
ambiciosa tarefa de inferir, através de uma análise literária (história da forma) dos
evangelhos, como seria a tradição oral concernente a Jesus, antes dela assumir sua forma
escrita. Procurando determinar a natureza e o conteúdo da tradição oral, classificando as
unidades individuais do material escrito dos evangelhos, de conformidade com a forma
literária e o uso comum na Igreja primitiva. As categorias comuns são: sermões, relatos de
milagres, parábolas, lendas que visavam magnificar a grandiosidade de Jesus. Essa
abordagem parte da premissa que os cristãos primitivos modificaram as informações sobre
Jesus, chegando mesmo a inventar narrativas e declarações para satisfazer às necessidades
que surgiam da pregação missionária, das instruções catequéticas, dos sermões, da
formação de liturgias, das controvérsias doutrinárias e de questões de disciplina
eclesiástica. Logo então os evangelhos narrariam mais a situação de vida da Igreja primitiva
que narrar a respeito de Jesus. Visando chegar à verdade seria nessa visão necessário
eliminar os acréscimos editoriais, as observações geográficas e cronológicas, e quanto aos
lances miraculosos e os elementos doutrinários, eles seriam posteriores ao da vida de Jesus.
O mais conhecido crítico da forma foi E. R. Bultmann que concluiu depois de cuidadosa
análise que quase toda a tradição dos evangelhos não passava de fabricação ou está
altamente distorcida, uma vez que os cristãos ao crerem na messianidade de Jesus
inventaram histórias de milagres visando justificar essa crença. Logo, Bultmann propõe ser
necessário “desmitologizar” os evangelhos (despi-los dos mitos) a fim de tornar a
mensagem cristã aceitável para o homem moderno, o qual, de seu ponto de vista
naturalístico, não mais pode acatar as reivindicações sobrenaturais dos evangelhos a favor
de Jesus.
Os críticos da forma não deram lugar à possibilidade de que a tradição dos
evangelhos foi preservada meramente por expressar a verdade e também porque provia
excelente material para o evangelismo, para o ensino e para a liturgia dos cristãos. Eles
desconsideraram a possibilidade das testemunhas oculares cristãs e anticristãs terem sido
um entrave para a criação e distorção, em larga escala, de informações. Numerosas
referências por todo o Novo Testamento indicam que os cristãos davam alto valor ao
elemento de testemunho ocular como fator digno de confiança.
4.1. A vida de Jesus
Precisamos partir do pressuposto que nem todos os antigos aceitavam de forma
crédula e sem questionar cada relato sobrenatural que ouviam. Isto porque o ceticismo era
generalizado no mundo grego-romano. Lendo os evangelhos percebemos que até entre os
próprios discípulos fizeram-se necessárias evidências para dissipar as dúvidas, como no
caso de Tomé, que a princípio desacreditou no relatório dado pelos outros sobre a
ressurreição de Jesus. Agora, se Jesus não foi a pessoa maravilhosa que foi relatada nos
evangelhos, como podemos explicar a grande agitação em torno da sua figura? Por que Ele
foi crucificado? Por que as pessoas O seguiam, continuando a confiar Nele e a proclamá-lo
como salvador, mesmo depois que morrera a morte de um criminoso e, de fato, quase
imediatamente depois de sua execução? E, sobretudo, por que os judeus, que desde a tenra
idade foram treinados a adorar somente ao Deus invisível, se sentiram constrangidos a
adorar a um homem ao qual haviam conhecido? Como explicar a firmeza de coração que
20
conduziu os seguidores de Jesus até à morte? Que os manteve alicerçados durante séculos
de intensa perseguição? O dramático aparecimento do cristianismo e sua influência por toda
a história pedem uma explicação.
Um dos conhecidos pais da Igreja, Papias, declarou no começo do século II d.C.,
que Marcos registrou em forma escrita as reminiscências de Pedro a respeito de Jesus. Não
há motivos suficientes para duvidarmos da afirmação de Papias, ou da fidelidade dos
evangelhos em geral. Ao contrário, o texto dos evangelhos contém numerosas indicações de
autenticidade. Os detalhes realistas são abundantes; as descrições sobre práticas legais e
condições sociais na Palestina, são de uma exatidão impressionante. Se Marcos fosse
escrito por cristãos posteriores, qual seria o interesse deles em apresentar os apóstolos como
indivíduos desajeitados, cabeçudos, incrédulos e acovardados em muitas ocasiões? Por qual
razão teriam sido inventadas declarações de Jesus embaraçosamente difíceis de interpretar?
Apenas essas dificuldades já são suficientes para assegurar a autenticidade. Além do mais é
de duvidar que distorções e invenções tivessem sido preservadas ou tivessem produzido a
forma de poesia distintamente semítica dos ensinamentos de Jesus, conforme foi registrada
pelos evangelistas.
4.2. O kerigma
Com o objetivo de apresentar uma alternativa para a radical crítica da forma,
C.H.Dodd, um estudioso britânico distingue um padrão comum nos sermões dos primeiros
capítulos de Atos (especialmente 10:34-43), e nas epístolas de Paulo, especialmente onde
este, sumaria o evangelho (por exemplo, I Co 15:3 ss. e Rm 1:2,3, e 10:9).
Dodd chamou de Kerigma (vocábulo grego que significa “proclamação”) esse padrão que
ele encontrou. Segundo Dodd gradualmente, o esboço mais simples do kerigma foi sendo
preenchido com narrativas, declarações e parábolas extraídas da vida de Jesus. Os
evangelhos foram escritos para registrar de forma permanente estes fatos. E à medida que o
evangelho foi avançando para além das fronteiras da Palestina, onde não havia testemunhas
oculares do fato, tornou-se mais necessário o surgimento dos registros fieis que foram
usados pelos cristãos na sua pregação. Logo Marcos para Dodd é o registro escrito do
kerigma.
5. A crítica da redação
Reagindo a forma como os evangelhos estavam sendo tratados, pelos críticos da
forma, como se fossem meros retalhos ajuntados, alguns eruditos após a Segunda Guerra
Mundial passam a analisar os evangelhos como composições unificadas, cuidadosamente
editadas ou redigidas por seus autores que visavam proteger pontos teológicos distintivos.
Esse método de análise ficou conhecido como crítica da redação. O foco cai sobre os
evangelhos como unidades completas e não sobre declarações e relatos isolados. Um dos
mais conhecidos representantes dessa abordagem é H. Conzelmann, cuja hipótese é que
Lucas reinterpretou o ministério de Jesus como o ponto central histórico entre a era da
Igreja e a Segunda Vinda de Cristo a seguir-se, e não como o estágio final da história,
conforme ele alega que os cristãos primitivos criam.
6. O estudo da vida de Jesus
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Atualmente é generalizada a opinião dos estudiosos quanto à impossibilidade de se
produzir uma biografia de Jesus, em completa escala, uma vez que os evangelhos, principal
fonte de informação sobre Jesus, são por demais seletivos quanto ao volume e ao tipo de
informações que nos apresentam acerca dEle. Contudo, no século XIX, antes dessa
restrição haver sido tão agudamente sentida, apareceram diversas notáveis biografias de
Jesus.
Os seguidores de Bultmann continuam rejeitando a maior parte das tradições dos
evangelhos. Alguns dos anteriores estudantes de Bultmann, chamados de pós-
Bultmannianos, aceitam minúscula porção a mais como autêntica, mas a quantidade é
insignificante. Eruditos que ocupam uma posição intermediária aceitam como autêntica
uma proporção bem maior; mas se sentem na liberdade de rejeitar o resto. Eruditos
ortodoxos encontram boas razões históricas e teológicas para aceitarem na íntegra os relatos
dos evangelhos. Isso não dá a entender, contudo, que os evangelistas sempre citaram as
declarações de Jesus palavra por palavra. As diferenças existentes entre os evangelhos dão
a entender que houve freqüentes paráfrases e rearranjos editoriais, um modo perfeitamente
legítimo de transmitir os pensamentos de outra pessoa. Da mesma forma, os eruditos
ortodoxos não insistem em que seja necessária uma narração sempre completa e
cronológica das atividades de Jesus. Mas atendendo ao propósito para o qual foram escritos
que é o de proclamar as boas novas com respeito a Jesus Cristo, os evangelhos são dignos
de plena credibilidade.
6 - OS QUATRO EVANGELHOS
Quatro visões sobre Jesus – O Messias real judeu em Mateus, o divino Servo trabalhador
em Marcos, o maravilhoso Salvador em Lucas e o Filho encarnado de Deus em João.
6.1. MARCOS – JESUS O SERVO EM SUA AÇÃO REDENTORA
Autoria marcana - Tradição petrina.
Uma vez que os títulos são uma adição posterior a obra, partimos da tradição antiga
e das evidencias encontradas no próprio livro para tratar dos assuntos concernentes à
autoria.
É atribuída a João Marcos a autoria do primeiro dos evangelhos que foi escrito. Ele
foi companheiro de Paulo, Barnabé e Pedro, conforme informações do livro de Atos e das
epístolas. Papias, pai da Igreja antiga, segundo se sabe, disse na primeira metade do século
II d.C. que Marcos anotou cuidadosamente em seu evangelho, as lembranças de Pedro
sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, embora nem sempre em ordem cronológica ou
retórica, porque o seu objetivo era o da instrução espiritual, e não produzir uma crônica
artística dos acontecimentos. Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes e Jerônimo
confirmam a autoria de Marcos, em associação com Pedro.
Com raras exceções, Marcos é o evangelho da ação, e não dos longos discursos. Por
meio de uma movimentada narrativa, Marcos fala das atividades de Jesus na qualidade do
poderoso e autorizado Filho de Deus, destacando as curas e exorcismos. O reino de Deus
invade o reino do mal, enquanto Jesus combate às forças satânicas e demoníacas. Marcos
usa muito a expressão “imediatamente” ou “logo”, buscando por meio desse elemento de
22
transição transmitir a idéia que Jesus estava sempre em ação, executando alguma tarefa,
como o Servo que trabalha, que age.
O ápice da ação redentora de Jesus encontra-se na narrativa da paixão, da morte e da
ressurreição, que ocupa um espaço grande no evangelho de Marcos. Alguns até chamam
seu livro de história da paixão de Jesus com um prólogo. O ponto nevrálgico do evangelho
está na confissão de Pedro a respeito do caráter messiânico de Jesus, em Cesaréia de Filipe
(8:27-30). A partir daí Jesus começou a predizer Seus sofrimentos e Sua morte como o
Filho do homem, e a narrativa adquire um encadeamento em direção o fim. Os discípulos
estavam acostumados a pensar sobre o Filho do homem, expressão favorita de Jesus,
extraída da visão de Daniel acerca de uma figura semelhante a um ser humano, que viria
em glória para julgar a humanidade (leia Daniel 7:13, 14), em termos de majestade; logo,
eles não compreendem e nem aceitam facilmente as declarações de Jesus.
É bem provável que o propósito de Marcos fosse evangelizar. Ele narra a história de
Jesus a fim de ganhar convertidos à fé cristã. Para isso, Marcos constrói seu evangelho de
modo bastante simples. Ele começa por João Batista, o batismo de Jesus e a sua tentação
(1:1-13), prossegue falando sobre o ministério de Jesus na Galiléia e seus arredores (1:14-
9:50), continua pelo ministério de Jesus a caminho de Jerusalém, ao atravessar a
Transjordânia e a Judéia (10:1-52), e termina com as narrativas da paixão, da morte e da
ressurreição de Jesus, que foram planejadas por Deus (11:1 a 16:8).
Marcos é utilizado por Lucas. Lucas encerrou o livro de Atos sem descrever o
julgamento final de Paulo em Roma, logo, tal julgamento ainda não acontecera, portanto,
Atos deve ser datado em cerca de 61 d.C., o seu volume anterior o evangelho de Lucas,
deve ser datado em pouco antes disso, e , visto que o evangelho de Marcos foi utilizado por
Lucas, Marcos deve ser datado ainda em data mais recuada, na década de 50 ou fim da
década de 40 d.C.
A tradição endossa que Marcos escreveu para leitores romanos. Porque ele traduziu
expressões em aramaico para benefício de seus leitores (3:17, 5:41, 7:34, 14:36 e 15:34). E
porque ele esclareceu expressões gregas com seus equivalentes latinos (12:42 e 15:16)
tendo usado certo número de outros termos latinos. Ele menciona Rufo 15:21 que conforme
Rm 16:31 vivia em Roma. Em I Pedro 5:13, a presença de Marcos em Roma
(simbolicamente chamada Babilônia), combina com a declaração de Papias no sentido que
Marcos foi o intérprete de Pedro com a antiga tradição sobre o martírio de Pedro em Roma,
a indicação, no prólogo anti-marcionista de Marcos de que ele escreveu seu evangelho na
Itália, e posteriores declarações feitas por Clemente de Alexandria e Irineu, tudo isto
estabelece um testemunho externo a favor da origem romana do evangelho de Marcos e de
ter sido destinado a leitores romanos.
6.2. MATEUS: EIS O MESSIAS E O NOVO POVO DE DEUS
Foi também Papias, aquele que disse que Marcos registrou as memórias de Pedro,
quem declarou que Mateus registrou as logias (declarações ou oráculos) em hebraico ou
aramaico, que outros iam traduzindo de acordo com sua capacidade. Neste contexto logia
se refere a um evangelho. Não temos o evangelho que foi escrito pelas mãos de Mateus
nessas línguas semíticas, mas apenas o atual evangelho em grego, o qual não parece ser
uma tradução feita de um original semítico. Por exemplo, por que teria Mateus fornecido
tanto o original semítico como sua tradução grega de alguns poucos vocábulos como
“Emanuel” (vide 1:23) se o evangelho inteiro tivesse sido tradução do hebraico ou
23
aramaico? Alguns estudiosos dizem que Papias se referia mais propriamente ao estilo
aramaico ou hebraico e não propriamente ao idioma, outros dizem que as logias das quais
trata Papias dizem respeito ao documento “Q”. A verdade é que não podemos dizer com
certeza o que significava a declaração de Papias.
Embora os eruditos modernos neguem que o apóstolo Mateus tenha escrito o
evangelho que traz seu nome; as tradições da Igreja primitiva unanimemente atribuem a
Mateus o primeiro evangelho, e uma falsa atribuição a um apóstolo relativamente
desconhecido como foi Mateus, parece improvável até haver chegado uma época posterior,
quando todos os apóstolos foram canonizados na imaginação cristã.
É bem característico de um cobrador de impostos a habilidade de organização
exibida pelo autor do evangelho atribuído a Mateus. É interessante também que apenas
nesse evangelho é citado o episódio do pagamento de taxa do templo por parte de Jesus
(17:24-27). A narrativa do chamamento de Mateus ao discipulado usa o nome apostólico,
“Mateus”, ao invés do nome “Levi”, utilizado por Marcos e Lucas, e omite o pronome
possessivo “dele”, usado em conjunto com o termo “casa (lar)”, de que se valeram Marcos
e Lucas, ao descreverem o lugar onde Mateus entreteve Jesus em uma refeição (vide
Mateus 9:9-13 em confronto com Marcos 2:13-17 e Lucas 5:27-32). Todos estes detalhes
“incidentais” podem constituir notáveis indicações de que Mateus é o autor desse primeiro
evangelho, em apoio às tradições da Igreja primitiva.
Considerando que Mateus utilizou o evangelho de Marcos, e este é o do período de
45 – 70 d.C., então provavelmente Mateus pertence a uma data um pouco posterior, dentro
daquele mesmo período. Existem alguns eruditos que atribuem data posterior a Mateus (80-
90 d.C.) em virtude de ele ser o único que utiliza o termo igreja (16:18 e 18:17), mas a
doutrina da igreja já desempenha papel importantíssimo nas epístolas paulinas, todas elas
escritas antes de 70 d.C. E se Mateus escreveu com o objetivo de evangelizar aos judeus,
parece menos provável que ele tenha escrito depois de 70 d.C., quando aumentou mais a
lacuna entre a igreja e a sinagoga.
O evangelho de Mateus é o evangelho do Messias e do novo povo de Deus, a Igreja,
o qual, pelo menos por enquanto, toma o lugar da nação de Israel, no antigo pacto. O
primeiro evangelho começa com a natividade (cap. 1 e 2). Na seção média, mais extensa,
alternam-se a narrativa basicamente marcana (em geral de forma condensada) e discursos
de Jesus. Os capítulos 26-28 concluem o evangelho com narrativas da paixão e da
ressurreição de Jesus.
Os sermões mais ou menos longos são uma marca em Mateus e a eles foram
acrescentados ditos isolados de Jesus, em lugares apropriados. Cada discurso termina com
esta fórmula: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras...” Os discursos e seus temas
respectivos são: 1 – O sermão da montanha (cap 5-7): significado da verdadeira (interna)
retidão; 2 - A comissão dos doze (cap 10): significado do testemunho em prol de Cristo:
perseguição e galardões; 3 – As parábolas (cap.13): significado do reino; 4 - Sem qualquer
título geral (cap 18): significado da humildade e do perdão; 5 - A denúncia contra os
escribas e fariseus (cap 23) e o discurso do monte das oliveiras, freqüentemente chamado
de Pequeno Apocalipse (cap.24-25): significado da rejeição de Israel. Deus rejeitou a Israel,
porque a nação rejeitou a Jesus, o Messias; ocorrerá um hiato de tempo, Jerusalém será
destruída, as nações serão evangelizadas e então Cristo retornará.
Mateus retrata Jesus como um novo Moisés. Jesus profere como Moisés seus ensinos do
monte. Cinco discursos – Pentateuco. “... ouvistes o que foi dito... eu porém vos digo”
24
A maneira como os ensinos de Jesus estão apresentados, o conteúdo ético e a ênfase
sobre o discipulado levam a crer que o evangelista tinha a intenção de fornecer um manual
catequético para recém-convertidos, ou apresentar um manual escolástico para os líderes da
Igreja, adaptado à leitura. Mas o evangelho deixa a impressão mais clara ainda de ter sido
escrito para evangelizar aos judeus, confirmando-os na fé, após a sua conversão.
Outra marca desse evangelho é o universalismo. Ele encerra sua narração com a
Grande Comissão dirigida aos seguidores de Cristo, que ordena fazerem discípulos de todas
as nações (28:19-20). Ainda nos primeiros lances do evangelho, os magos gentios adoram
ao Messias infante, na narrativa da natividade (2:1-12). Jesus é citado como quem dissera
que “muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e
Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas
trevas...” (8:11, 12). “... o campo é o mundo...” (13:38). O reino será transferido da nação
de Israel a outros (21:33-43).
A natureza judaica do primeiro evangelho sugere que o mesmo foi escrito na
Palestina ou na Síria, particularmente em Antioquia, para onde haviam imigrado muitos dos
originais discípulos habitantes da Palestina (vide Atos 11:19, 27). Em harmonia com isso
temos de considerar o fato que o mais antigo testemunho acerca do conhecimento da
existência do evangelho de Mateus nos chega do antigo bispo da igreja de Antioquia, Inácio
(primeiros anos do segundo século) Epístola aos Esmirneanos 1:1 e Epístola a Policarpo
1:2, 3.
A ênfase posta por Mateus sobre o cumprimento das profecias messiânicas por parte
de Jesus, torna mui apropriada, neste ponto a consideração sobre o motivo do cumprimento,
que figura por todo o Novo Testamento. Os escritores do Novo Testamento e o próprio
Jesus viam, na nova era, o cumprimento tanto das predições conscientes quanto da tipologia
inconsciente do Antigo Testamento. (Tipologia é o termo que se refere a eventos históricos,
a indivíduos e a instituições divinas que Deus queria que fossem prefiguradores,
inteiramente à parte do fato que os autores do Antigo Testamento estavam ou não cônscios
do seu simbolismo preditivo).
6.3. LUCAS: O EVANGELHO É HISTORICAMENTE CONFIRMADO
É interessante observar que o autor do terceiro evangelho começa com uma
referência a narrativas prévias sobre os primórdios do movimento cristão, extraídas dos
relatórios daqueles que foram as “testemunhas oculares e ministros da palavra” (1:1, 2).
Logo a seguir ele refina seu projeto, e diz que ele é “uma exposição em ordem” sobre
aquela fidedigna tradição, o autor esclarece também que seu propósito é o de convencer
seus leitores sobre a exatidão histórica das tradições cristãs (1:3, 4).
Lucas é o autor do evangelho que leva seu nome e também do livro de Atos. Ambos
são dedicados a Teófilo e compartilham de interesses comuns e de um só estilo de redação.
Atos faz alusão a Lucas. (Atos 1:1).
É provável que Lucas fosse um gentio (ou um judeu helenista) podendo ter-se
convertido em Antioquia da Síria. Isso se infere do fato de seu nome ser de origem grega e
da sua facilidade no uso do idioma grego. O estilo grego de Lucas assim como o estilo de
Hebreus são os mais refinados de todo o Novo Testamento. Paulo chama Lucas de médico
amado em Cl 4:14, descrição essa confirmada pelo interesse acima do normal que Lucas
demonstrou por enfermidades, mediante seu uso freqüente de termos médicos em sua
redação.
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É provável que Teófilo, a quem Lucas dedica sua obra fosse um convertido recente
ou em potencial, ou então um patrono que patrocinou a circulação do terceiro evangelho (e
do livro de Atos). Lucas faz ambos os seus livros penderem mais para os gentios, sobretudo
aqueles dotados de um interesse franco nas origens históricas do cristianismo. Assim sendo,
Lucas estava interessado em estabelecer a inocência política de Jesus sob as leis romanas.
Lucas mostra que o evangelho é universal e que Jesus derrubara a barreira entre judeus e
gentios e inaugurara uma comunidade de âmbito mundial na qual as antigas desigualdades
entre escravos e libertos, entre homens e mulheres, não mais existem. Portanto Lucas se
dirigiu a uma audiência gentílica, ele não demonstra o interesse judaico pelas profecias
messiânicas cumpridas, com o mesmo grau de intensidade que faz Mateus. E também
modificou expressões peculiarmente judaicas, juntamente com alusões a costumes judaicos,
a fim de que seus leitores gentios pudessem compreender melhor o que lessem. Percebe-se
uma intenção em ligar os episódios da carreira de Jesus a datas da história secular (1:5; 2:1;
3:1, 2). Jesus é a luz para revelação aos gentios (2:32). Quando cita Isaías 40 inclui
palavras: “... e toda a carne verá a salvação de Deus” (3:6). Ao apresentar a genealogia de
Jesus não remonta somente até Abraão (como vemos em Mateus) mas até Adão, progenitor
de toda a raça humana (3:23-38). Ressalta que Jesus chamou atenção para o fato que Elias
foi abrigado por uma viúva fenícia, e não por uma israelita, e para o fato que Eliseu curou a
um leproso sírio (Naamã), e não um leproso israelita (4:25-27). Da mesma forma que
Mateus, Lucas inclui a Grande Comissão de evangelizar (a todas as nações - 24:47 – Mt
28:19,20). Mas enquanto o universalismo de Mateus recebe tons de um matiz mais
paroquial, o universalismo de Lucas é um universalismo helenista que desconhece os
limites judaicos. Ele inclui não apenas os gentios em geral, mas também os excretados
socialmente, como, por exemplo, a mulher de vida imoral que veio ungir os pés de Jesus
(7:36-50) assim como Zaqueu o publicano (19:1-10), como o criminoso penitente que
morreu na cruz ao lado da de Jesus (23:39-43), como o filho pródigo (15:11-32 - uma
parábola), como o publicano que se arrependeu (18:9-14 – uma parábola), como os
samaritanos e os pobres. Tiago e João foram repreendidos por haverem querido chamar
fogo do céu contra uma aldeia de samaritanos (9:51-56). O bom samaritano, em certa
parábola, aparece sob luz que lhe é favorável (10:29-37). O único leproso, dentre nove
outros, que voltou para agradecer a Jesus pela cura recebida era um samaritano, tendo sido
chamado “este estrangeiro” (17:11-19). Em Nazaré, Jesus pregou as boas novas “aos
pobres” (4:16-22). No Magnificat, Maria afirma que Deus exaltou os humildes e encheu de
bens os famintos e despediu vazios os ricos (1:52b,53). Na bem-aventurança acerca dos
pobres, falta a qualificação “de espírito” que se vê em Mateus (comparar Lucas 6:20 com
Mateus 5:3), como também na bem-aventurança sobre os famintos falta a qualificação “de
justiça”, que se vê em Mateus (Lc 6:21 – Mt 5:6). E Lucas equilibra as bem-aventuranças
concernentes aos pobres e famintos com os “ais” dirigidos aos ricos e satisfeitos (6:24,25).
Lucas é o único evangelista a incluir as palavras de Jesus: “ Quando deres um jantar ou
uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos
ricos... Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.”
(14:12,13) É Lucas quem chama os fariseus de “avarentos” (16:14), e é igualmente quem
nos expõe as parábolas do rico insensato, do gerente injusto que agiu com caridade (e, por
conseguinte, com astúcia) e do rico e Lázaro (12:13-21; 16:1-13, 19-31).
Lucas evidencia seu universalismo também pela atenção que ele dá às mulheres:
Maria, Isabel e Ana, na narrativa da natividade (1,2) cita mulheres desclassificadas
socialmente; cita o episódio da viúva de Naim (7:11-17), as mulheres sustentando Jesus
26
(8:1-3), a mulher imoral (7:36-50), Maria e Marta (10:38-42), a viúva pobre (21:1-4), as
mulheres que se lamentaram por Jesus (23:27-31), que observaram a crucificação (23:49), e
que tencionaram embalsamar a Jesus e acabaram por ser testemunhas do túmulo vazio e
deram a notícia sobre a ressurreição (23:55-24:11).
Lucas retrata Jesus como o salvador cosmopolita, o homem de oração (3:21; 9:28, 29;
10:21; 11:1; 22:39-46; 23:34,46;) e somente Lucas registra certas duas parábolas de Jesus a
respeito da oração (11:5-13; 18:1-8), e nos informa que Jesus orou por Pedro (22:31,32).
Dentre os sinópticos é Lucas quem destaca a obra do Espírito Santo. Ele revela-nos
que João Batista seria cheio do Espírito Santo desde o próprio ventre de sua mãe (1:15). O
Espírito Santo desceu sobre Maria (1:35). Isabel foi cheia do Espírito Santo (1:41, 42).
Zacarias cheio do Espírito Santo profetiza (1:67). O Espírito Santo repousava sobre Simeão
(2:25-27). Jesus é cheio do Espírito e guiado ao deserto (4:1). Jesus retorna à Galileia “no
poder do Espírito” (4:14). Quando da volta dos setenta Jesus exulta no Espírito (10:21); e
antes de sua ascensão promete que o Espírito Santo viria revestir Seus discípulos “de
poder” proveniente do alto (24:49). No evangelho sente-se o pulsar da graça divina
revelando-se na história humana. Ele escreve cheio de confiança no avanço inevitavelmente
bem sucedido do evangelho, inaugurado por Jesus, o Senhor (designação favorita de Lucas,
que ele aplicava a Jesus) e levado avante por seus discípulos, no poder do Espírito.
O lugar da escrita pode haver sido em Roma onde Lucas permaneceu em companhia
de Paulo, quando do encarceramento do apóstolo (embora a tradição antiga esteja dividida
entre Grécia e Roma, como local onde Lucas escreveu seus livros).
Quando Atos termina Paulo está esperando para ser julgado em Roma, logo, o livro de Atos
data de algum tempo antes de 64 d.C., a data tradicional e geralmente aceita para o martírio
de Paulo (e Pedro). Além disso, se Lucas escreveu seu evangelho antes do livro de Atos,
conforme parece lógico, o evangelho, deve datar de algum anterior ao ano de 64 d.C.
Dos evangelhos sinópticos Lucas é o mais completo. Ele é o mais volumoso livro de
todo o Novo Testamento. A última viagem a Jerusalém é a mais distintiva contribuição de
Lucas ao nosso conhecimento da carreira de Jesus. Naquela seção, ele apresenta o
ministério de Jesus na Peréia, registra muita das mais famosas parábolas em nenhum outro
lugar registradas (o bom samaritano, o rico insensato, o filho pródigo, o rico e Lázaro, o
fariseu e o publicano, e outras) e dá ênfase à significação de Jerusalém como o alvo
colimado pelo ministério de Jesus. (Mais tarde, no livro de Atos, vê-se que Jerusalém
tornar-se-ia o centro de onde o testemunho cristão partiria para evangelizar ao mundo). A
história da natividade, em Lucas, contém muitíssima informação que não se encontra em
Mateus, incluindo vários hinos e a narrativa do nascimento de João Batista. Concluindo,
Lucas nos presenteia com um material riquíssimo e é o único evangelista que narra a
ascensão de Jesus. Ele narra fatos relativos à ressurreição de Cristo que não se encontram
nos outros evangelhos. O valor de sua contribuição é imensurável.
6.4. JOÃO: CRENDO EM JESUS PARA A VIDA ETERNA
Embora tenha sido escrito em um estilo bastante simples, o último dos quatro
evangelhos apresenta uma profundeza teológica que ultrapassa à dos evangelhos sinópticos.
Conforme indicam as tradições da Igreja primitiva o apóstolo João escreveu o quarto
evangelho já no término do primeiro século da era cristã, em Éfeso, cidade da Ásia Menor.
Respaldando essa tradição está o testemunho de Irineu, discípulo de Policarpo, o qual, por
27
sua vez, fora discípulo do apóstolo João – uma direta linha de tradição, com um elo de
ligação entre Irineu e o próprio João.
Sabe-se que o autor do quarto evangelho declara ter sido testemunha ocular do
ministério de Jesus (1:4, 19:35 e 21:24, 25) além de demonstrar um estilo semítico em sua
redação e de possuir conhecimento acurado sobre os costumes dos judeus (7:37-39, 8:12).
Ele era também um profundo conhecedor da topografia da Palestina, conforme ela
era antes do holocausto (fonte com cinco pórticos, Porta das ovelhas (5:2) e a área
pavimentada que havia do lado de fora do Pátio (19:13), ambas coisas em Jerusalém e
confirmadas por descobertas arqueológicas recentes).
Visto que os evangelistas sinópticos nos informam que Tiago e João eram filhos de
Zebedeu, que trabalhavam como pescadores juntamente com Pedro, e que com ele
formaram o circulo mais interior dos Doze; e que desde há muito Tiago morrera como
mártir (Atos 12:1-5); e uma vez que Pedro figura como uma pessoa diferente da do
discípulo amado, resta-nos apenas João como discípulo amado e autor do quarto evangelho.
O evangelista João suplementa em sua obra os evangelhos sinópticos. Ele destaca o
ministério da Judéia, omite muitas parábolas e o tema do reino de Deus. Mas João deixa-
nos saber que houve pelo menos três, e talvez até quatro Páscoas, durante a carreira pública
de Jesus, pelo que também esta se prolongou pelo menos pelo espaço de mais de dois anos,
e provavelmente de três a três anos e meio.
A exceção de Mateus, o quarto evangelho contém discursos mais longos, feitos por
Jesus, do que os outros evangelhos sinópticos. Os discursos tendem por eliminar porções
históricas. Os discursos de Jesus são pontuados por perguntas e objeções feitas pelos
ouvintes. João apresenta-nos um Cristo que falava em estilo bastante diferente, em muitos
detalhes, daquilo que os evangelistas sinópticos nos dão a entender. Essas diferenças se
originam em parte da própria maneira pela qual João traduzia para o grego, em
ensinamentos dominicais, aquilo que originalmente fora dito em aramaico e hebraico (bem
como em grego), e em parte pelo próprio hábito que João tinha de parafrasear, com o
resultado que o vocabulário e o estilo do próprio evangelista com freqüência aparecem no
seu registro sobre os ensinamentos de Jesus.
Nos evangelhos sinópticos, a tradução evidentemente é mais literal e as paráfrases
são menos extensas. Muitas vezes, uma tradução mais fraca e a paráfrase podem transmitir
melhor a intenção do orador do que as citações diretas, portanto, a forma como João
escreve não é ilegítima sob hipótese alguma. É possível que João tivesse preservado os
aspectos mais formais do ensino de Jesus, seus sermões nas sinagogas e suas disputas com
os teólogos judeus.
Muitos temas teológicos importantes aparecem em diferentes combinações por todo
o quarto evangelho algumas vezes figurando novamente em I-III João e Apocalipse.
Utilizando uma habilidosa alternância de narrativas e discursos, João nos expõe esses temas
de tal maneira que as palavras de Jesus ressaltam o sentido mais interior de suas obras. É
atribuído portanto um valor simbólico a grande proporção das ações constantes nesse
evangelho, por exemplo, a lavagem dos pés, simbolizando sua obra remidora. Há também
um toque de ironia como podemos perceber em (10:32). Os atos e palavras de Jesus
freqüentemente encerram um segundo e um terceiro significado.
Os temas teológicos joaninos começam sob a categoria de revelação. Jesus é a
Palavra (logos), ele revela a verdade. Ele é a luz que dissipa as trevas (julgamento do
mundo). O mundo (sociedade humana) controlado por satanás é alvo do amor de Deus
28
(3:16). O amor veio por meio de Jesus e continua a manifestar-se através do amor que seus
discípulos têm uns pelos outros.
João é o evangelho da fé, acima de qualquer consideração. De fato, o verbo crer é a
palavra chave desse evangelho: cristológica em seu conteúdo, essa fé salienta
supremamente a divindade de Jesus, como o Filho de Deus único e preexistente, o qual, em
obediência a seu Pai, tornou-se um real ser humano a fim de morrer em sacrifício para
redimir a humanidade. Essa ênfase trabalha contra a negação de sua humanidade e de sua
morte, conforme faziam os gnósticos, primitivos hereges cristãos que pensavam que tudo
quanto fosse material ou físico teria de ser inerentemente mal. Desde modo não somente a
deidade de Jesus é encarecida (a começar pela declaração “o verbo era Deus 1:1”, e muitas
vezes destacada por todo este evangelho); mas também é destacada a sua humanidade: e o
verbo se fez carne (1:14) – Jesus cansou-se e sentiu sede (4:6,7 e 19:28), chorou (11:35) e
morreu fisicamente e voltou a vida (19:30-42; 20:12,7,20,27,28). João enfatiza em seu
evangelho a salvação desfrutada agora mesmo. Ele procurava evangelizar os incrédulos e
estabelecer firmemente os crentes em sua fé. É possível que o propósito subsidiário de João
fosse a correção das idéias de um culto que se desenvolvera em torno da figura de João
Batista. Atos 19:1-7 demonstra que continuava havendo seguidores de João Batista, em
Éfeso, algumas décadas antes, nos dias de Paulo, e conforme uma antiga tradição, Éfeso
teria sido a localidade onde o apóstolo João escreveu seu evangelho. Existe uma unidade de
estilo que permeia a obra inteira. O pano de fundo do evangelho consiste das reiteradas
rejeições de Jesus: “os seus não o receberam”(1:11) por parte dos judeus: quando purificou
o templo (cap.2) depois que curou o paralítico (cap 5) após ter multiplicado os pães (cap.6),
quando seus meio-irmãos procuraram trata-lo com sarcasmo (cap 7); quando Ele afirmou
ser a luz do mundo (cap 8); quando ele asseverou sua unidade com Deus Pai (cap 10); e
depois de haver ressuscitado a Lazaro (cap. 11). Em contraste à rejeição dos judeus (1:12)
“mas a todos quanto o receberam” alguns indivíduos acolheram a Jesus mediante o
encontro pessoal com Ele: André e João (cujo nome não figura no texto), Pedro, Filipe,
Natanael (cap.1); Nicodemos (cap.3), a mulher samaritana (cap.4), o cego de nascença (cap.
9) Maria e Marta (cap. 11); os onze, no cenáculo (cap. 13 – 16) e Maria Madalena (cap.
20).
“Deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus” - João descreve pormenorizadamente
certo número de milagres realizados por Jesus, mas intitula-os “sinais”, devido ao valor que
têm como símbolos do poder transformador da fé em Jesus: a transformação da água em
vinho ilustra a passagem do ritualismo judaico para a superior realidade do evangelho
(cap.2); a cura do filho do nobre aponta para a transformação que nos tira da enfermidade
para a higidez espiritual (cap.4), a cura do paralítico, da impotência para a força (cap.5), a
multiplicação de pães para os cinco mil, da penúria para a plenitude (cap.6); o caminhar
sobre as águas, do temor para o senso de segurança (cap.6), a devolução da vista a um cego,
das trevas para a luz (cap.9), a ressurreição de Lázaro, da morte para a vida (cap. 11), e a
pesca miraculosa, do fracasso para um sucesso quase incontrolável (cap.21).
Todas essas três linhas de pensamento convergem para a narrativa da paixão: “os seus não
o receberam – o julgamento e a crucificação; “mas a todos quanto o receberam” – as três
Marias e o discípulo amado, de pé ao lado da cruz; “deu-lhes o poder de serem feitos filhos
de Deus” – o poder transformador da ressurreição de Cristo.
29
COMPARAÇÃO DOS QUATRO EVANGELHOS
Evangelhos Marcos Mateus Lucas João
Data provável 50 60 60 80 ou 90
Lugar provável Roma Antioquia da Síra Roma Éfeso
Endereçados Gentios Judeus da Síria Gentios População Ásia menor
Ênfase Temática Atividades remidoras Jesus o Messias e o Certeza Fé em Cristo para
de Jesus novo povo de Deus histórica do evangelho a vida eterna
7 - ATOS DO ESPÍRITO DE CRISTO MEDIANTE OS APÓSTOLOS, EM JERUSALÉM
E CERCANIAS – Capítulos 1 a 12
Conforme a tradição o livro de Atos é uma seqüência do evangelho de Lucas. Nele
aparece o mesmo estilo e vocabulário de Lucas e também é freqüente o uso de termos
médicos. O autor ao utilizar o pronome “nós” deixa subentendido que ele mesmo participou
das viagens de Paulo. Conforme as epístolas de Paulo, nem Tito nem Silas o
acompanharam a Roma e nem estiveram ali em sua companhia. Não obstante, a narrativa
de sua viagem a Roma é uma daquelas chamadas seções “nós”. Por meio desses processos
de eliminação Lucas é o único provável candidato a autoria do livro de Atos.
A redação do livro de Atos é provida de um grego culto, assim como Lucas e
Hebreus. Agora quando se trata das fontes informativas semíticas o estilo grego às vezes é
áspero. Alguns eruditos têm afirmado que os discursos e sermões constantes em Atos são
criações literárias improvisadas pelo próprio Lucas, a fim de preencher suas narrativas com
algum estofo. Ainda que Lucas não nos tenha transmitido necessariamente palavra por
palavra os discursos e sermões que historiou, sem dúvida nos presenteia com uma descrição
cuidadosa do que foi dito. Isso é comprovado pelo paralelismo de expressões entre os
sermões de Pedro no livro de Atos e a primeira epístola de Pedro, ou entre os sermões de
Paulo no livro de Atos e as suas próprias epístolas. Esses paralelismos dificilmente
poderiam ter ocorrido por acidente, além de não haver outra evidência que nos indique que
Lucas imitara ou usara em qualquer outro sentido as epístolas dos apóstolos, ou, vice-versa,
que Paulo e Pedro imitaram o livro de Atos ao escreverem suas respectivas epístolas.
No que diz respeito ao material histórico de Atos, Lucas se valeu de suas próprias
memórias, sempre que possível. É possível que ele fosse registrando os acontecimentos em
um diário, a proporção em que se desenrolavam. Em adição a isso, não há que duvidar que
obteve informações da parte de Paulo, dos cristãos de Jerusalém, de Antioquia da Síria e de
outros companheiros de jornadas de Paulo, como Silas e Timóteo, como Felipe, o diácono e
evangelista, e como um antigo discípulo de nome Mnasom, em cujas residências ele ficara
hospedado (vide Atos 21:8 e 16). Também havia à sua disposição informes escritos, como o
decreto do Concílio de Jerusalém (vide Atos 15:23-29), e talvez documentos em aramaico e
hebraico, relatando os primeiros eventos do cristianismo, em Jerusalém e
circunvizinhanças.
De forma surpreendente descobertas arqueológicas confirmam a exatidão histórica
de Lucas. Sabe-se atualmente que o uso que Lucas fez dos títulos de vários escalões de
oficiais locais e governamentais de províncias-procuradores, cônsules, pretores, politarcas,
e outros – mostra-se acuradamente correto, correspondentes às ocasiões e lugares acerca
30
dos quais Lucas estava escrevendo. A sua exatidão torna-se duplamente notável porque o
emprego desses vocábulos se mantinha em constante estado de fluxo, devido às alterações
de situação política de varias comunidades.
O modo repentino como Lucas termina o livro de Atos quase nos espanta. Ele
descortina a história de Paulo até ao ponto em que o apóstolo, aprisionado em Roma, já
esperava por dois anos ser julgado na presença de César. A melhor solução é aceitar que
Lucas escreveu sobre os eventos até onde eles tinham tido lugar. Em outras palavras, ao
tempo em que ele escreveu, Paulo continuava esperando julgamento (cerca de 61 d.C). O
próprio final inesperado do livro de Atos sugere que a tarefa da evangelização mundial
estava incompleta.
O propósito central do livro de Atos foi o de traçar o triunfal progresso do
evangelho, a partir de Jerusalém, onde teve início, até Roma, a capital do império. Assim
sendo, Atos faz a exposição dos primórdios do cristianismo, na vida de Jesus e na extensão
do cristianismo, dentro da história da Igreja primitiva, a fim de convencer aos seus leitores
sobre o avanço irresistível do evangelho, mostrando que Deus, mediante o seu Espírito,
verdadeiramente está operando na história da humanidade, visando a redenção de todos os
homens.
Um segundo propósito do livro de Atos é o de demonstrar que o cristianismo
merece contínua liberdade, visto ter-se derivado do judaísmo, que tinha direito legal, e
também por não ser politicamente desleal a Roma. Por conseguinte, com freqüência Lucas
cita juízos favoráveis concernentes ao cristianismo e seus proponentes por vários tipos de
oficiais locais e provinciais do governo.
Atos 1:8 é um versículo chave, ele contém um esboço de todo o livro de Atos. 1 -
nos capítulos 1-7, o evangelho se propala por toda Jerusalém e a Judéia; 2 – nos capítulos
8-12, a Samaria e outras regiões das proximidades; e 3 – nos capítulos 13-28, a terras
distantes através dos esforços missionários de Paulo. Tal como Pedro foi a figura
dominante da evangelização primariamente entre os judeus nos capítulos 1-12, assim Paulo
é a personagem de maior destaque na evangelização primariamente entre os gentios, nos
capítulos 13-28.
Já foram realizados muitos debates quanto à escolha de Matias mediante o
lançamento de sortes a fim de substituir Judas, se essa ação teria sido uma providência
equivocada, em confronto com o fato que mais tarde, Deus escolheu a Saulo de Tarso.
Apesar dos primeiros embriões da Igreja retrocederem até antes da escolha dos
doze, o Pentecoste, após a ascensão de Jesus, assinala a data do nascimento da Igreja. O
ruído de vento quando o Espírito Santo desceu sobre os discípulos, representa o fato que o
texto grego conta com uma palavra somente para indicar “vento e Espírito”. As chamas em
forma de línguas, por cima das cabeças dos discípulos, simbolizaram a capacidade de falar
miraculosamente, em idiomas que não haviam aprendido, simbolicamente revertendo a
“confusão das línguas”, por ocasião da construção da torre de Babel. Os peregrinos não
residentes na Palestina, tanto judeus quanto prosélitos gentios, reconheceram, admirados,
que estavam sendo falados os idiomas de suas próprias terras de origem. Todavia, os
palestinos não as entendiam, e assim levantaram a acusação de que os cristãos estavam
embriagados.
Em seu sermão no dia de Pentecostes, Pedro argumenta que os judeus haviam tirado
a vida de Jesus, mas que Deus o ressuscitara dentre os mortos e o exaltara até a sua própria
mão direita. O derramamento do Espírito comprovava a exaltação de Jesus. Como saduceus
negavam a doutrina da ressurreição, encarceraram aos apóstolos, por estarem estes
31
proclamando a ressurreição de Jesus como fato já realizado e como garantia da ressurreição
de outras pessoas.
A morte de Ananias e Safira pode parecer-nos muito dura, porém tal como no
começo mesmo da história de Israel como nação redimida Deus fez morrerem os sacerdotes
desobedientes, Nadabe e Abiu (Lev. 10), também nos primórdios da história da Igreja Deus
puniu Ananias e Safira com a morte. Em ambas oportunidades Deus estava demonstrando
seu profundo interesse pela pureza fundamental de seu povo.
A partir do martírio de Estevão arma-se uma perseguição geral contra os cristãos,
por parte dos judeus incrédulos. Encabeçando essa perseguição achava-se Saulo, natural de
Tarso, cidade da Ásia Menor. Seu outro nome era Paulo. Saulo era meramente o nome
hebraico e Paulo o nome de som similar, um comum sobrenome romano (nome de família),
que às vezes era adotado como nome próprio de um indivíduo.
Como resultado da dispersão dos cristãos, por motivo da perseguição, ocorre um
evangelismo generalizado, conforme se vê exemplificado no caso de Filipe, em Samaria.
Filipe era outro diácono pregador, como Estevão.
É provável que não tenha sido real a professada conversão de Simão, o mágico, pois
ele desejava reter sua influência lucrativa sobre o povo. Uma antiga tradição atribui a
Simão Magus, o herege movimento gnóstico que houve na cristandade.
Enquanto Pedro e João não oraram e impuseram as mãos sobre os samaritanos em
sinal de solidariedade entre os crentes judeus e os crentes samaritanos o Espírito Santo não
desceu sobre os crentes samaritanos.
Prefigurando as missões de Paulo entre os gentios Lucas narra o episódio que
envolveu o eunuco etíope que provavelmente era um temente e não um prosélito declarado.
O primeiro nome dado ao movimento cristão era O Caminho em virtude de sua
forma distinta de fé e conduta. Quando Jesus disse a Saulo: Saulo, Saulo, por que me
persegues?, deixou o Senhor entendida a união entre Ele mesmo, nos céus, e seus
perseguidos na terra. A união entre Cristo e o crente veio a tornar-se parte vital do ensino
teológico de Paulo (Atos 9:7).
Logo após a conversão de Paulo inicia-se uma missão de pregação em Damasco e
pela região árabe circunvizinha (vide Gálatas 1:17, 18). Alguns estudiosos defendem a
possibilidade que a permanência de Paulo na Arábia incluiria um período de meditação,
durante o qual Paulo teria recebido revelações divinas, mas os textos bíblicos não tratam
dessa possibilidade. Mais tarde, Barnabé apresentou Paulo à igreja de Jerusalém. O trecho
de Gálatas 1:22 esclarece, entretanto, que Paulo continuou sendo desconhecido por toda a
grande área judaica em volta de Jerusalém.
O apóstolo Paulo nasceu em Tarso, cidade da porção suleste da Ásia Menor, e era
um cidadão romano. Como seu pai obtivera a cidadania romana (como ela foi adquirida se
por algum serviço prestado ou por pagamento de alguma soma de dinheiro não se sabe).
Porém, a cidadania romana conferia privilégios e uma proteção que serviram muito bem a
Paulo durante suas viagens missionárias. O pai de Paulo era um fariseu (vide Atos 23:6) e
criou seu filho dentro do judaísmo mais estrito (vide Filipenses 3:5, 6). Paulo passou a
maior parte de sua juventude em Jerusalém, onde estudou com o famoso rabino Gamaliel
(vide Atos 22:3). Também não estamos informados se Paulo chegou alguma vez a
encontrar-se com Jesus ou se ele se casou. Ele nunca cita uma esposa sua em suas epístolas;
contudo, como o celibato era extremamente raro entre os judeus, podemos deduzir inferir
que ele provavelmente se casou, mas sua mulher faleceu ou o abandonou.
32
Continuando a leitura de Atos, a partir de Atos 9 e até o capítulo 11 observa-se que
o propósito de Lucas, ao narrar a cura miraculosa de Enéas e a ressurreição de Tabita (ou
Dorcas), pelo ministério de Pedro, foi o de comprovar que Deus estava presente com Pedro,
durante o período mesmo em que aquele apóstolo pregava aos gentios e os acolhia como
participantes da Igreja, ações essas que judeus cristãos de visão estreita mais tarde
censuraram. O sermão de Pedro na casa de Cornélio é o exemplo mais claro citado por C.
H. Dodd acerca do Kerigma. De forma muito apropriada para ouvintes gentios, esse sermão
faz soar a nova nota da universalidade: “...todo o que nele crê...” - o evangelho não se
destina somente a judeus; é para todos! Em contraste com o que aconteceu em Samaria, um
apóstolo já estava presente como testemunha. Por isso, Deus concedeu imediatamente do
Seu Espírito a gentios, assim que foi exercida a fé, antes mesmo que Pedro terminasse a sua
pregação e antes do batismo ou da imposição das mãos terem sido administrados. Foi dessa
maneira dramática que Deus revelou que aceitava na Igreja a crentes gentios, e sob
condições iguais às que aceitara os crentes judeus ou samaritanos. Depois disto, Pedro foi
capaz de usar esse súbito ato de Deus em sua própria defesa contra cristãos judeus de
atitudes paroquiais, em Jerusalém, os quais o criticavam em razão do seu contato com os
gentios. A Igreja levou algum tempo para perceber que as sinagogas e o templo não eram
mais necessários como lugares de adoração, e que os convertidos gentios não precisavam
ser circuncidados. No entanto, o encontro na casa de Cornélio marcou um passo definitivo,
na separação entre o cristianismo e o judaísmo.
Partindo de Cornélio, Lucas passa a descrever o avanço do evangelho até Antioquia
da Síria. Ele queria introduzir Antioquia como futura base de operações das viagens
missionárias de Paulo com o objetivo de mostrar como Paulo se associou àquela igreja a
fim de estabelecer o elo entre as igrejas de Antioquia e Jerusalém. Jerusalém estava tão
interessada em Antioquia que lhe enviou Barnabé; e Antioquia estava tão preocupada com
Jerusalém que lhe enviou doações que a ajudasse no período de escassez. A alcunha
“cristãos”, pela primeira vez aplicada aos crentes, por incrédulos, em Antioquia tinha um
fim pejorativo; mas não deixa de ilustrar que gradualmente a Igreja estava sendo
reconhecida como algo mais que uma seita judaica – era um movimento distinto do
judaísmo. Através de sua conduta diária santa e graciosa, os cristãos, eventualmente,
transformaram esse apodo em um termo de respeito e admiração.
Narrando a perseguição aos cristãos Lucas cita Herodes. Este personagem que
figura nessa passagem foi Herodes Agripa I, neto de Herodes o Grande. Ele martirizou
Tiago, apóstolo e irmão de João, fingindo estar defendendo o judaísmo, além disso mandou
prender Pedro. O historiador judeu do primeiro século, Josefo, confirma a narrativa lucana
sobre a morte de Herodes Agripa, como uma enfermidade que, segundo a sua descrição,
muito se assemelha a câncer dos intestinos. A morte de Herodes Agripa ocorreu em cerca
de 44 d.C., pelo que o relato representa um retrocesso cronológico em relação à visita que
visava aliviar a fome (cerca de 46 d.C. vide Atos 11:27-30).
8 - ATOS DO ESPÍRITO DE CRISTO – Por toda parte, por meio de Paulo – 13 – 28
A partir do décimo terceiro capítulo de Atos Lucas relata os extensos
empreendimentos missionários de Paulo. Podemos perceber que sendo Lucas um escritor
habilidoso, ele preparou os seus leitores para a descrição da propagação do evangelho,
usando a pregação de Estevão aos judeus helenistas de Jerusalém, citando a dispersão dos
33
cristãos por causa de perseguição e mostrando aos leitores que como resultado da
perseguição houve a expansão do testemunho cristão, mediante a evangelização de Samaria
e a conversão do etíope eunuco, com a pregação de Filipe, por meio também da pregação
de Saulo (ou Paulo) em Damasco e aos helenistas de Jerusalém e também mediante a
missão de Pedro a Lida, Jope e Cesaréia, na última das quais ele foi o agente da conversão
de uma família de gentios, e mediante a propagação do cristianismo até Antioquia da Síria.
Lucas também já havia apresentado a Barnabé e Paulo como colegas, pois Barnabé havia
apresentado a Paulo à Igreja de Jerusalém, e ambos tinham ministrado em Antioquia e
tinham viajado juntos, levando mantimentos e, enviados da Igreja de Antioquia à Igreja de
Jerusalém. E, por fim, Lucas deixa claro o contraste estabelecido entre a morte de Herodes
Agripa I, que se opunha ao cristianismo, e a bem sucedida propagação do evangelho. A
cena para a introdução das viagens de Paulo está pronta. A partir daí os empreendimentos
missionários revestem-se de um caráter internacional.
Conforme se pode observar em Atos 13-14 Lucas deixa claro o duplo papel no
exercício missionário de Barnabé e Saulo: o envio da igreja e o respaldo do Espírito Santo
que dirige a Igreja. Nesta oportunidade a imposição de mãos não serviu de consagração
formal (Barnabé e Saulo tinham estado a pregar já desde muito tempo), mas foi indicação
de que a igreja sustentava a missão deles.
De forma bem natural, Barnabé e Paulo vão primeiro a ilha de Chipre, da terra natal
de Barnabé. Paulo tomou a iniciativa quando o mágico judeu Elimas (Bar Jesus) procurou
influenciar o procônsul romano Sergio Paulo, para que este se afastasse do evangelho
(certamente o mágico temeu por seus serviços tornarem-se dispensáveis caso Sergio Paulo
adotasse o cristianismo). Um dado interessante é que a partir desse ponto da narrativa
Lucas começa a registrar o nome de Paulo antes do de Barnabé. A única exceção a isso
ocorre no contexto que envolve Jerusalém, em Atos 15:12, onde Lucas escreve da forma
anterior, “Barnabé e Paulo”, provavelmente porque na mente dos cristãos de Jerusalém,
Barnabé continuava sendo o cristão de mais experiência e pai espiritual de Paulo. Lucas
aplica a Saulo o designativo “Paulo”, pela primeira vez, em Atos 13:9. Tendo em vista sua
missão entre os gentios tornou mais apropriado o seu nome grego do que o seu nome
semita. Em Perge da Panfília, João Marcos, primo de Barnabé e assessor tanto deste quanto
de Paulo, resolveu deixa-los. Lucas não diz o motivo. Quem sabe por saudades de casa ou
até por temor. Paulo o tem por inválido, mas Barnabé ao que parece é mais tolerante com
João Marcos.
Uma estratégia interessante que Paulo adotou era a de pregar nas cidades mais
importantes. Partindo dos epicentros o evangelho atingia todas as aldeias e os interiores
próximos. Outra estratégia interessante que Paulo adotou como padrão era a de pregar
primeiro nas sinagogas judaicas (onde houvesse alguma), em qualquer localidade em que
chegasse. È claro que ele se interessava muito por seus compatriotas judeus. Eles eram o
povo do antigo pacto, logo, tinham o direito de ouvir o evangelho em primeiro lugar.
Agora, as sinagogas eram os melhores lugares para alguém encontrar uma audiência
preparada, pois era costume das sinagogas convidar visitantes qualificados, como era o caso
de Paulo, para que usassem da palavra. Paulo não deixava escapar a oportunidade. Outra
coisa interessante é que entre os ouvintes das sinagogas havia sempre um grande número de
prosélitos e homens piedosos gentios, além dos próprios judeus. Na verdade, Paulo
geralmente era bem aceito entre esses gentios, que em virtude de seu interesse pelo
judaísmo já estavam preparados para ouvir Paulo. O resultado disso se faz sentir da
seguinte forma: os judeus incrédulos consideravam Paulo um hipócrita charlatão, que
34
tentava seduzir os gentios com o fim de que eles se convertessem do judaísmo para o
cristianismo, oferecendo-lhes a salvação sob condições mais suaves do que as da
observância da lei de Moisés.
Em seu sermão pregado na sinagoga de Antioquia da Pisidia (Essa Antioquia,
menor e menos importante que a da Síria ficava perto das fronteiras da Pisidia, embora não
exatamente na Pisidia), Paulo passou em revista a história de Israel, com o intuito de
proclamar as boas novas de que a história e a profecia do Antigo Testamento tinham
achado cumprimento em Jesus Cristo. Paulo pregava a justificação mediante a fé em Cristo,
à parte da obediência meritória à legislação mosaica. Essa é uma das teses familiares de
suas epístolas. Por isso, quando os judeus daquela cidade retornaram à sua sinagoga, no
sábado seguinte, encontraram multidões de gentios que ocupavam seus assentos e que
aguardavam ansiosamente que Paulo lhes dirigisse outro sermão. Os judeus ficaram irados,
eles instigaram a perseguição, e Paulo e Barnabé partiram dali, após terem ministrado aos
gentios às carreiras. Isso se tornou quase uma regra: eles pregavam nas sinagogas – faziam
sucesso entre os prosélitos e homens piedosos entre os gentios – eram tratados com
hostilidade por parte dos judeus – faziam sucesso entre os gentios – eram perseguidos pelos
judeus - fugiam e começavam tudo novamente em outro lugar.
Nesse primeiro momento a perseguição partia sempre dos judeus uma vez que o
governo romano continuava achando que o cristianismo era um ramo lateral do judaísmo e
como o judaísmo era uma religião permitida pelo império romano a liberdade de seu
exercício era concedida. Só mais tarde é que os romanos interditaram o cristianismo como
religião ilegal.
Em Listra Barnabé e Paulo foram confundidos com as divindades gregas Zeus e
Hermes, respectivamente. Ao se recusarem a receber adoração Paulo e Barnabé
provocaram uma reação adversa das multidões volúveis que resultou no apedrejamento de
Paulo, o qual por pouco escapou da morte. E já na viagem de retorno de Derbe, passando
por Listra, Icônio e Antioquia da Psídia, Paulo e Barnabé evitaram pregar publicamente
(pois ainda bem recentemente haviam sido expulsos daquelas cidades), mas preocuparam-
se em fortalecer aos crentes e a organizar igrejas locais, por meio da eleição de anciãos
encarregados das mesmas. Sendo assim, as igrejas locais foram organizadas ao molde de
sinagogas, cada uma das quais contava com um “junta de anciãos”. Quando voltaram
através de Perge, Paulo e Barnabé pregaram ali, pois aparentemente tinham feito uma
passagem muito rápida naquele lugar da primeira vez.
Lucas destaca que no relatório que apresentaram à igreja pátria em Antioquia da
Síria, Paulo e Barnabé ressaltaram a bem sucedida evangelização aos gentios. Agora sim, o
cenário para a disputa historiada no décimo quinto capítulo de Atos sobre a situação dos
crentes gentílicos está pronto. Até este momento, Lucas vinha narrando o desenvolvimento
do plano de Deus de entregar o evangelho tanto a gentios quanto a judeus. Já no capítulo15
de Atos lemos como o problema dos crentes gentios provocou a separação cristã do
judaísmo, como uma religião nova e separada, contra todos os esforços dos judaizantes. Os
judaizantes eram cristãos judeus (e seus seguidores gentios) que ensinavam que os crentes
gentios precisavam ser circuncidados e precisavam prometer observar a lei mosaica, ou
seja, era mister que entrassem na Igreja do mesmo modo que os gentios prosélitos eram
acolhidos no judaísmo. Paulo e Barnabé não concordavam com isso. E a igreja da
Antioquia entregou o problema à apreciação da igreja de Jerusalém.
Respaldados pelos líderes Pedro e Tiago, meio irmão de Jesus, o parecer da
influente igreja mãe de Jerusalém aprovou a idéia de isentar aos crentes gentios dos
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preceitos da lei mosaica, apesar de exortá-los a evitar as práticas que ofenderiam
desnecessariamente aos judeus: como a ingestão de carne que fora consagrado a algum
ídolo, antes de ser vendida; bem como ingerir carne de animais sufocados ou que ainda
contivesse sangue; e, por fim, a fornicação, ou seja, a imoralidade de modo geral, embora
talvez encontramos aqui um termo técnico que indicava o incesto (casamento com parentes
mais próximos do que aqueles permitidos no décimo oitavo capítulo de Levítico). A igreja
de Jerusalém enviou a dois dentre seu próprio número, Judas (Barsabás) e Silas, em
companhia de Paulo e Barnabé, a fim de confirmarem, na presença dos cristãos de
Antioquia da Síria, a veracidade do relatório apresentado por Paulo e Barnabé.
Apesar de Paulo haver recusado levar novamente João Marcos em sua companhia, e
a despeito da separação resultante entre Paulo e Barnabé, mais tarde Marcos figura como
um dos companheiros de Paulo em Roma (Cl 4:10, Fm 24), tendo merecido um comentário
favorável da parte de Paulo (II Tm 4:11).
Um novo companheiro adere a comitiva de Paulo, seu nome era Silas, ele era
proveniente da igreja de Jerusalém. Para Paulo era vantajoso contar com alguém vindo de
Jerusalém e que por isso mesmo poderia resistir com autoridade aos judaizantes que
gostavam de se apresentarem como representantes da igreja mãe. Quando Lucas relata o
encarceramento de Paulo e Silas, em Filipos, deixa margem para possibilidade de Silas
também ser cidadão romano.
A partir de Listra, outro companheiro ingressa na comitiva de Paulo, seu nome era
Timóteo. Por ter sido criado no judaísmo por sua mãe, Timóteo era um judeu aos olhos dos
gentios. Mas por ser pai de um incircunciso, para os judeus ele não passava de um gentio.
Visando evitar escândalo entre os judeus, aos quais pretendia evangelizar, Paulo ordenou a
circuncisão de Timóteo. Porém a fim de evitar a impressão resultante de que o apóstolo
estava recuando, diante da controvérsia judaizante, Lucas ressaltar que Paulo ia entregando
a decisão antijudaizante, ditada pelo concílio de Jerusalém, por todas as igrejas cristãs por
onde passava.
Entre os quatro distritos administrativos da Macedônia estava Filipos. Ela era uma
cidade colônia romana e não possuía nenhuma sinagoga estabelecida. É bem provável que
Lucas tenha permanecido um tempo em Filipos trabalhando como pastor ou evangelista.
Já em Tessalônica Paulo lida com a incredulidade e a hostilidade dos judeus e é
expulso. Seguindo viagem Paulo é conduzido a expor sua doutrina defronte do Areópago, o
conselho da cidade de Atenas que licenciava mestres. Já em Corinto, ele pôs-se a fabricar
tendas, em sociedade com colegas judeus, Áquila e Priscila. A decisão de Gálio que
permitia a evangelização cristã foi muito importante.
De acordo com Atos 18 a 19 o circuito da terceira viagem missionária de Paulo
começou uma vez mais em Antioquia da Síria, da mesma forma que tinha feito em sua
segunda viagem missionária, Paulo tornou a visitar a Galácia e a Frigia, regiões onde
estavam as cidades de Derbe, Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia.
Com o objetivo de preparar os leitores para narrar o ministério de Paulo em Éfeso,
Lucas conta sobre a pregação de Apolo em Éfeso. Apolo era um eloqüente judeu
alexandrino que pregava a Jesus, mas que conhecia apenas o batismo de João que tratava do
arrependimento. Dando seqüência à história Lucas conta que finalmente Paulo consegue
realizar seu antigo desejo de evangelizar a destacada cidade de Éfeso. Paulo rebatiza alguns
novos convertidos que recebem o Espírito Santo com a evidência de falar em línguas.Vale
destacar que a manifestação especial do Espírito Santo segundo Lucas em Atos autenticava
sua aprovação, com o ingresso de diferentes grupos na Igreja. Por exemplo: os crentes
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judeus originais (capítulo2), os samaritanos (capítulo 8), os gentios (capítulo10) e os
discípulos parcialmente instruídos de Éfeso (capítulo 19).
É muito provável que Paulo trabalhasse com tendas pelas manhãs e dedicasse suas
tardes ao ensino.
Por aquele período o exorcista judeu Ceva era “sumo sacerdote” por sua própria
aclamação (19:14). Havia uma idéia errada de em caso de exorcismo os demônios só
sairiam se a pessoa soubesse usar corretamente o nome de Deus. Logo os judeus poderiam
ser exorcistas eficazes uma vez que somente eles sabiam como pronunciar de forma correta
o nome Yahweh. Neste tempo os filhos de Ceva, aprendizes da arte do exorcismo
procuraram sem sucesso expulsar demônios em nome de Jesus. Descobriram de forma
desconcertante que o resultado não dependia da recitação do nome de Jesus como uma
fórmula mágica.
Após permanecer por mais de dois anos em Éfeso Paulo parte para a Macedônia e a
Acaia, nesse ínterim recolhia a oferta para a igreja de Jerusalém e avançava. Ele pretendia
ir a Roma, após entregar a oferta. Na verdade ele vai a Roma de forma muito distinta da
que ele imaginava. Ele vai preso. Em todas as suas apologias registradas na porção final do
livro de Atos Paulo põe em destaque a ressurreição com um elemento crucial da fé cristã e
como ponto comum entre o cristianismo e o judaísmo ortodoxo (embora os judeus
negassem a doutrina da ressurreição). Na seqüência Lucas narra os encontros de Paulo com
Felix, Drusila, Festo, Herodes Agripa II; a viagem tempestuosa de Paulo a Roma e estando
em Roma a demora de pelo menos dois anos para que Paulo fosse submetido a julgamento.
Fato é que Lucas desejava que seus leitores notassem que o evangelho não era proibido
como religião ilegal e que sua propagação seguiu um curso triunfante de Jerusalém até
Roma.
9 - EPÍSTOLAS PAULINAS
9.1. A primeiras epístolas
As epístolas de Paulo são várias vezes maiores do que as cartas médias da
antiguidade, em função da sua natureza teológica e comunitária. Paulo empregava os
serviços de amanuenses, (Rm 16:22, I Co 16:21, Gl 6:11, Cl 4:18, II Ts 3:17, comparar
com Fm 19).
Gálatas – a carta patente da liberdade cristã
Quando Paulo escreve aos Gálatas está tratando de questões com respeito à
controvérsia judaizante, que culminou com a reunião do concílio de Jerusalém. O tema que
gerava tantos problemas era: deveriam os cristãos gentios ser obrigados a submeter-se à
circuncisão e a praticar o modo de vida judaico, conforme era exigido dos prosélitos
gentios que ingressavam ao judaísmo? Existia uma cidadania de segunda classe, para os
cristãos que não quisessem tornar-se totalmente judeus, como no caso dos “tementes a
Deus” gentios, dentro do judaísmo? O que tornava um indivíduo cristão era exclusivamente
sua fé em Cristo, ou a fé em Cristo mais a aderência aos princípios e às práticas do
judaísmo?
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Ele escreveu sua epístola para pessoas residentes na região conhecida por Galácia.
Paulo inicia a epístola com uma saudação que reafirma seu apostolado visando contrapor os
judaizantes. A seguir ele redige um argumento autobiográfico que defende o evangelho da
graça de Deus, que ele recebeu diretamente de Jesus Cristo é superior a mensagem
judaizante que requeria a aderência à lei mosaica como condição para salvação. Paulo
destaca o caráter temporário da lei que servia para conduzir o homem a Cristo. Ele chama
novamente a atenção dos irmãos utilizando para isso o seu argumento no estilo rabínico,
permeando de alegorias, e propondo que Sara simboliza o cristianismo com sua capital na
Jerusalém celestial, Isaque o filho prometido e livre representando todos os direitos
espirituais de Abraão e logo aqueles que seguem a fé de Abraão são libertados da lei em
Cristo Jesus.
A aparente contradição entre Gl 6:2 e Gl 6:5 se desfaz diante do contexto. No
primeiro momento Paulo está tratando a questão da ajuda mútua e no segundo momento ele
está tratando do juízo vindouro onde cada um prestará contas individualmente por sua
forma de agir.
Paulo ataca o legalismo (conjunto de regras errôneas impostas) e ao mesmo tempo
apresenta um conjunto de preceitos que deveriam governar a conduta cristã como resultado
da comunhão e obediência a Deus. Ele conclui sua epístola com sua própria caligrafia e
chama a atenção dos cristãos da Galácia para que avaliem e julguem quem exercia o
ministerio movido por motivos mais puros, ele ou os judaizantes.
I Tessalonicenses: Ele vai voltar!
É por meio das cartas de Paulo à igreja em Tessalônica que obtemos grande parte de
seu ensino sobre a parousia. Essa cidade era a capital da Macedônia e estava situada na Via
Egnácia que constituía na principal via de acesso entre Roma e o Oriente. Esta cidade tinha
seu próprio governo e lá também havia uma colônia de judeus. Foi durante sua segunda
viagem missionária que Paulo evangelizou os tessalonicenses e dentre eles alguns judeus, e
muitos gregos e mulheres de alta posição se converteram a Jesus. Quando Paulo fala sobre
isso em sua carta fica claro que se tratavam que a maior parte da igreja era formada de
gentios, porque os judeus não eram idólatras e Paulo fala do abandono de ídolos (I Ts 1:9).
A maior parte dos judeus de Tessalônica se opôs a pregação do evangelho, há registros de
que assaltaram a casa de Jason onde Paulo estava e que depois perseguiram Paulo até
Beréia.
Podemos observar lendo Atos 17:2 que Paulo ficou pouco tempo em Tessalônica.
Ele pregou por apenas três sábados na sinagoga de lá. É provável que Timóteo tenha
passado mais tempo lá ensinando a doutrina cristã. De acordo com Atos 18:5 Paulo
escreveu a carta aos tessalonicenses estando em Corinto. O relatório de Timóteo a Paulo
sobre a fidelidade dos irmãos deixou Paulo muito animado, conforme podemos observar
nos primeiros três capítulos da carta. Eles estavam servindo de exemplo aos irmãos da
Grécia e da Macedônia.
A segunda parte da carta aos Tessalonicenses consiste de exortações, contra a
conduta imoral (4:1-8), a respeito de um crescente amor mútuo (4:9,10) e acerca do consolo
e da vigilância, em face da volta de Cristo (4:11, 5:11 e com respeito a uma variedade de
questões práticas relativas à conduta cristã (5:12-28).
É impressionante a forma como Paulo passa de congratulações a exortações,
animando os cristãos a avançarem. Paulo defende o trabalho manual, sabe-se que os gregos
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não viam isso com bons olhos. Paulo assegura que os mortos vão ressuscitar antes do
arrebatamento, e que serão arrebatados juntos com os cristãos que estiverem vivos quando
acontecer o arrebatamento.
Depois de exortar Paulo começa a advertir sobre a importância dos cristãos
vigiarem para não serem tomados de surpresa, isso se conduzindo em obediência aos
mandamentos de Deus.
II Tessalonicenses – Entendendo a Segunda Vinda
Quando Paulo estava em Corinto escreveu a segunda epístola aos Tessalonicenses,
isso aconteceu durante sua segunda viagem. O espaço que separa as duas cartas é marcado
por um crescente fanatismo na igreja de Tessalônica. Eles criam que Jesus retornaria
imediatamente, provavelmente a perseguição contribuiu para o crescimento dessa crença.
Paulo então escreve a segunda epístola para corrigir os erros das idéias escatológicas dos
cristãos de Tessalônica.
Paulo inicia sua carta com agradecimentos a Deus pelo progresso espiritual dos
cristãos de Tessalônica e por sua perseverança. Paulo então os encoraja a continuarem
perseverantes e declara que na segunda vinda do Senhor Jesus ele julgará os perseguidores.
Ao que parece alguns falsos mestres estavam profetizando falsidades e utilizando
falsamente a idéia de serem endossados por Paulo em seus ensinos heréticos;
provavelmente por isso Paulo enfatiza que a escreveu a carta de próprio punho (3:17).
Paulo ao citar o “homem da iniqüidade” faz uma alusão ao anticristo, um líder
mundial que se caracterizará por sua iniqüidade e perseguirá aos cristãos nos dias finais.
De acordo com D. A. Carson, a segunda epístola aos Tessalonicenses aprofunda os
mesmos assuntos tratados na primeira. Em alguns aspectos a primeira carta tinha tido
sucesso e não havia necessidade de repetição. É assim que Paulo passa boa parte do tempo
em I Tessalonicenses defendendo-se de ataques caluniosos, porém não trata disso na
segunda carta. É evidente que ele havia calado a oposição. Mas em outros aspectos ele
enfrenta os mesmos problemas. Existe ensino novo (como a questão do iníquo 2:8), mas na
maior parte da carta parece que Paulo está reforçando aquilo que escrevera na anterior. O
problema da ociosidade persistia e, portanto, recebe maior ênfase na segunda epístola (2 Ts
3:6-13). Havia mal entendidos em relação à parousia e também existiam alguns cristãos
vacilantes que precisavam de encorajamento, quanto aos pecadores eles precisavam
emendar seus caminhos. Como vemos a segunda epístola de Paulo aos Tessalonicenses é
mais uma obra de aconselhamento pastoral, um instrumento através do qual a jovem igreja
seria orientada para endireitar seus caminhos.
9.2. As epístolas principais
I Corintios – Problemas na igreja
Problemas eclesiásticos não são uma realidade recente. Já no primeiro século a
igreja lidava com questões e práticas muitas delas aberrantes, nas mais variadas áreas.
Paulo escreve essa carta visando lidar com esses problemas.Essa é uma carta de verdade
dirigida a pessoas específicas e motivada por temas concretos. Quando chegou em Corinto
na primeira vez Paulo não tinha os recursos necessários para garantir sua subsistência e,
portanto pôs-se a fabricar tendas juntamente com Áquila e Priscila. Aos sábados ele
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pregava na sinagoga. Após a chegada de Silas e Timóteo ele escreveu as duas cartas aos
Tessalonicenses, transferiu suas atividades de evangelismo para a casa de Tito Justo que
ficava ao lado da sinagoga, e se tornou o instrumento de Deus para conversão de Crispo
que era chefe da sinagoga, foi absolvido pelo governador romano Gálio de falsas
acusações, pregando por aproximadamente um ano e meio naquela cidade.
A partir da leitura de I Co 5:9 podemos perceber que essa não era a primeira carta
escrita por Paulo aos corintios. Logo a primeira epístola é a segunda escrita por Paulo
àqueles irmãos. Ele provavelmente a escreveu quando estava em Éfeso em sua terceira
viagem missionária e quando ele já planejava se retirar de lá.
Havia dois motivos principais para Paulo ter escrito essa carta: 1 – ele recebeu
relatórios orais por parte dos familiares de Cloé a respeito das discórdias que havia na
igreja (1:11) e 2 – chegou uma delegação da parte da igreja de Corinto-Estéfanas Fortunato
e Acaico – ambas trazendo uma oferta (16:17) e uma carta solicitando o parecer de Paulo
sobre problemas que ele aborda na carta, a saber: incesto (r.1-13), litígio entre crentes (6.1-
11) e idéias errôneas da parte de alguns homens na congregação de Corinto de sua suposta
espiritualidade que achavam que estavam livres pra se relacionarem com prostitutas,
presumivelmente com base no raciocínio de que isso envolvia apenas o corpo.
Com base na indagação escrita pelos corintios (7.1) Paulo passa a tratar de assuntos
que eles levantam. O primeiro diz respeito ao casamento e temas correlatos (7.1-40); o
segundo trata de comida sacrificada a ídolos (8.1 – 11.1), o terceiro diz respeito ao
relacionamento entre homens e mulheres (11.2-16), o quarto diz respeito à Ceia do Senhor
(11.17-34) e o quinto enfoca a distribuição e o exercício dos dons do Espírito (12.1 - 14.40)
A partir do capítulo 15, que é mais claramente teológico, Paulo trata da ressurreição dos
crentes insistindo que o protótipo correto é a ressurreição de Jesus Cristo, negando que seja
possível estabelecer qualquer distinção de espécie entre essas duas ressurreições, desse
modo levando seus leitores a dirigirem o olhar e as aspirações para o triunfo final. Paulo
conclui o exame dos assuntos levantados por escrito pelos corintios ao esclarecer algumas
perguntas sobre a coleta (16.1-11) e sobre a ida de Apolo (16.12) a epístola termina com
algumas exortações (16.13-18) e saudações finais (16.19-24).
Corinto estava situada em um estreito istmo, entre os mares Egeu e Adriático. Viajar
contornando o extremo sul da Grécia era muito perigoso por isso muitos navios eram
puxados ou tragados sobre toras rolantes pra o lado oposto do istmo e novamente lançado
ao mar. Corinto era uma cidade cosmopolita e portuária. Seus jogos atléticos só perdiam em
importância para os olímpicos. O teatro aberto acomodava vinte mil pessoas e o teatro
fechado acomodava três mil pessoas. Era cheia de templos, santuários e altares. Havia mil
prostitutas cultuais à disposição de qualquer um no templo da deusa Afrodite. A cidade
possuía um sistema de cisternas que mantinha as bebidas resfriadas. Baseado nestes fatos
entende-se porque havia tantos problemas na igreja de Corinto.
O relacionamento de Paulo e a igreja de Corinto
. Paulo evangelizou Corinto em sua segunda viagem missionária;
. Ele escreveu uma carta que se perdeu aos irmãos de Corinto ordenando que se separassem
dos irmãos que viviam na imoralidade;
. Ele escreveu I Corintios no período que estava em Éfeso durante sua terceira viagem
missionária para tratar de vários problemas que ocorriam lá;
40
. Paulo fez uma visita breve e que ele mesmo diz ter sido “dolorosa”(II Co 12.14 e 13.1,2) a
Corinto, tendo partido de Éfeso e para lá voltado na tentativa de corrigir erros que lá havia
mas não conseguiu o que pretendia;
. Paulo enviou outra carta que também se perdeu chamada de “carta triste”( II Co 2.4), onde
ordenava aos irmãos de Corinto que disciplinassem o seu principal oponente;
. Paulo deixou Éfeso e ansiosamente aguardou Tito em Trôade e então na Macedônia; (II
Co 2.12)
. Tito finalmente chegou com as boas novas de que a igreja disciplinou o oponente de Paulo
e que a maioria dos cristãos de Corinto se submetera à autoridade de Paulo;
. Paulo escreveu II Corintios estando na Macedônia (ainda durante sua terceira viagem)
respondendo o relatório que recebeu de Tito.
II Corintios – E Paulo era assim...
Em certo sentido, essa é a epístola mais autobiográfica de Paulo, porque nos permite
conhecer os sentimentos que ele nutria a respeito de si mesmo e de seu ministério
apostólico.
Paulo escreveu essa epístola estando na Macedônia, durante sua terceira viagem,
com os seguintes objetivos: 1 – expressar seu alívio e satisfação diante da reação favorável
da maior parte dos membros da igreja de Corinto, descrevendo seu ministério de forma
muito pessoal e vívida (capítulos 1-7); 2 – falar sobre a coleta que ele recolheria entre eles
para levar aos irmãos de Jerusalém (capítulos 8-9) e 3 - defender sua autoridade apostólica
diante da minoria que ainda o rejeitava (capítulos 11–13).
Contribuição de I e II Corintios:
. A variedade de temas abordados nos permite visualizar como o evangelho imutável,
ensinado nas línguas e culturas do primeiro século foi pela primeira vez aplicado a
circunstâncias mutáveis.
. Revela-nos o caráter do homem Paulo e nos deixa registrado seu convite para que o
imitemos assim como ele imitava a Cristo.
. Confronta uma espiritualidade que pressupõe independência em relação à ética e conduta.
. Contribui para doutrina da igreja ao tratar aspectos tais como sua natureza, unidade,
diversidade, interdependência, disciplina, conduta, apresenta também a mais importante
análise neotestamentária da natureza da ressurreição.
. Estas duas epístolas constituem, dentro dos escritos paulinos, a mais incisiva contribuição
no sentido de condenar a arrogância, auto-exaltação, vanglória, autoconfiança, descrevendo
em termos práticos a natureza da vida e testemunho do cristão, com destaque especial ao
serviço, ao negar-se a si mesmo, a importância da pureza e ao valor fraqueza como o
contexto no qual Deus revela sua força. É bem provável que o ponto alto seja a ênfase no
amor como o caminho mais excelente no qual todos os cristãos devem andar.
9.3. Romanos – Cartas da Prisão e Cartas Pastorais
9.3.1. Romanos - E Paulo expõe o evangelho
Romanos é considerada um tratado a respeito do evangelho que tinha entre seus
objetivos principais o de preparar os leitores de Paulo para seu futuro ministério oral entre
41
eles. Ela é a mais formal entre as epístolas paulinas, sendo a mais longa e teologicamente
mais significativa. Segundo Lutero “o mais puro evangelho”. Já fazia muito tempo que
Paulo queria visitar Roma, mas sempre havia algum empecilho (1.13 e 15.22 – 24 a). Ele
pretendia com sua visita fortalecer a fé dos irmãos (1.11,15) e também conseguir recursos
financeiros entre eles para auxiliar seu empreendimento missionário em direção à Espanha
(15.24,28).
Paulo escreveu aos romanos estando em Corinto, hospedado por Gaio. Após uma
introdução que contêm os costumeiros prefácio e ação de graças, Paulo passa a tratar o
tema do evangelho como a justiça de Deus mediante a fé (1.18 – 4.25) passando logo após
para o evangelho como o poder de Deus para salvação (5.1 - 8.39), o evangelho e Israel
(9.1 – 11.36), o evangelho e a transformação da vida (12.1 – 15.13) e a conclusão (15.14 -
16.27).
Quando Paulo escreve sua carta havia cristãos judeus e gentios em Roma,
provavelmente encontrando-se em diversas igrejas nos lares.
É provável que esta carta tenha sido escrita entre os anos 56,57 d.C. Não se tem
dado claro com respeito à origem da igreja em Roma nem de sua composição na época em
que Paulo escreveu sua carta. Por volta de 180 d.C., Irineu identificou Pedro e Paulo em
conjunto, como fundadores da igreja em Roma, e a tradição que se seguiu Pedro como o
fundador e primeiro bispo da igreja. Mas estas tradições não podem ser aceitas porque o
próprio Paulo deixa claro em sua carta que a igreja de Roma lhe era estranha
(1.10,13,15.22) e se Pedro foi o fundador dessa igreja seria muito improvável que Paulo
estivesse planejando fazer o tipo de visita que ele descreve em 1.8-15. Entre as
especulações mais prováveis está a de a igreja ter nascido a partir dos irmãos que se
converteram no dia de Pentecostes conforme lemos em Atos 2.10. É certo que havia
cristãos em Roma por volta do ano 49 d.C. isto é atestado pela declaração de Suetônio de
que o imperador romano Cláudio “expulsou os judeus de Roma por estarem constantemente
brigando, instigados por Cresto” (Vida de Cláudio 25.2). Se aceita que Cresto é uma
corruptura do grego Cristos “Cristo”.
Romanos fornece uma importante contribuição para formação da fé
neotestamentária. Ao relacionar o Antigo e o Novo Testamento, a lei e o evangelho, Israel e
a Igreja, estabelece um grau de continuidade e descontinuidade fundamental para alicerçar
a teologia cristã.
9.3.2. Efésios - Filipenses – Colossenses e Filemon – as cartas da prisão
Durante seu período de cativeiro Paulo escreveu as cartas que recebem por isso o
nome de Cartas da Prisão. Há dois períodos conhecidos de aprisionamento de Paulo, um em
Cesaréia, durante o período do governo de Felix e de Festo (Atos 23-26) e o outro em
Roma, enquanto Paulo esperava ser julgado perante César (Atos28). Alguns estudiosos tem
conjecturado um outro período de aprisionamento em Éfeso, durante o prolongado
ministério de Paulo lá. É fato que Paulo fala em suas cartas de estar sendo constantemente
preso como em (II Co 11.23, Atos 16.19-40). Tradicionalmente se aceita que as cartas da
prisão foram escritas durante seu cativeiro em Roma.
42
Filemon – E Paulo se identifica...
Um dos exemplos mais lindos de inserção social entre os escritos de Paulo está
nesta carta, onde Paulo pede a um certo cristão, proprietário de escravos que recebesse um
escravo recém convertido como se fosse a ele mesmo. Com base no amor Paulo pede por
Onésimo a quem chama de filho que ele diz ter gerado na prisão.
Filemom, morador de Colossos, se tornou cristão por meio da pregação de Paulo,
talvez em Éfeso. Uma congregação se reunia em sua casa. Onésimo seu escravo fugiu
levando consigo dinheiro de seu senhor e provavelmente em Roma entra em contato com
Paulo que se torna o instrumento usado por Deus em sua conversão. Os professores John
Knox e E. J. Goodspeed têm sugerido que Filemon tornou-se superintendente das igrejas do
vale do rio Lico, onde estavam localizadas as cidades de Colossos, Laodicéia e Hierápolis.
(Philemom among the Letters of Paul, 2ª ed. Nashville: Abingdon 1959).
Colossenses – Cristo é o cabeça da Igreja
Nessa epístola Paulo foca a pessoa divina e a obra criadora e remidora de Cristo,
contra atacando uma certa heresia que desvalorizava a obra de Cristo e ameaçava a igreja
em Colossos. Logo a seguir Paulo apresenta as implicações práticas dessa exaltada
cristologia no que toca à conduta e prática diária dos cristãos. A duplicação dos nomes
citados em Colossenses e Filipenses indica que provavelmente as epístolas foram escritas
no mesmo tempo e lugar. Colossos ficava no vale do rio Lico, num lugar montanhoso cerca
de 160 km de Éfeso. Essa igreja fora fundada por Epafras que estava em companhia de
Paulo quando ele escreveu esta epístola. Epafras tornou-se cristão por intermédio da
pregação de Paulo, embora Paulo ainda não tivesse visitado essa igreja, o relacionamento
entre eles foi estabelecido por meio de Epafras, era como se Paulo fosse um “avô” da
igreja, portanto seu juízo foi solicitado.
A maior parte dos cristãos de Colossos era de gentios e a epístola gira em torno da
“heresia colossense”. Algumas coisas que podemos inferir dessa heresia a partir do contra
ataque que Paulo faz à mesma são: ela detratava a pessoa de Cristo, por isso o apóstolo frisa
a proeminência de Cristo (1.15-19); ela enfatizava a filosofia humana em detrimento da
revelação divina (2.8); continha elementos da tradição judaica (2.11 - 3.11); incluía a
adoração a anjos, como intermediários, objetivando alcançar o Deus altíssimo.
A heresia colossense mesclava legalismo judaico com filosofia grega e misticismo
oriental. A maior parte dessas características aparece de forma plenamente desenvolvida no
posterior gnosticismo e nas religiões de mistérios; mas a presença de marcas judaicas
impede que equiparemos essa heresia ao gnosticismo que era naturalmente antijudaico.
A epístola aos Colossenses está dividida em duas seções: 1 – doutrinas (cap.1-2) e 2
- exortações (cap. 3-4). Paulo menciona a respeito de Cristo: seu reino, (1.13); sua obra
remidora (1.14); que ele é a representação externa de Deus em forma humana (1.15); que
ele é criador (1.16); sua preexistência e coesão do universo (1.17); sua preeminência sobre
a nova criação, a Igreja, e seu primazia por ter ressuscitado dentre os mortos (1.18).
Paulo tratando de seus sofrimentos como “o que resta das aflições de Cristo” (1.24)
mostra que os sofrimentos por que passamos na pregação do evangelho são necessários se
os homens tiverem de ser alvos, e também que Cristo continua a sofrer em companhia de
Suas testemunhas perseguidas, por motivo de sua união e solidariedade com Ele. O termo
43
“mistério”... Cristo em vós, alude à verdade espiritual oculta dos incrédulos mas revelada
aos cristãos.
Efésios – A Igreja Corpo de Cristo
Essa epístola não foi escrita em resposta a nenhuma controvérsia e nem visando
atender alguma circunstância específica. Alguns estudiosos indicam que provavelmente ela
foi escrita para combater alguma tensão que existia entre judeus e gentios e acreditam que
Paulo esteja tentando manter a unidade. Outros propõem que a carta tem o objetivo de
instruir convertidos gentios em aspectos importantes de sua nova fé. Alguns que atribuem à
carta uma data posterior a Paulo propõem que ela foi escrita para promover os interesses
eclesiásticos do catolicismo primitivo. Outros têm sido da opinião de que ela é uma
tentativa de expor algumas das maiores verdades que os cristãos primitivos defendiam.
Diante de tal diversidade, alguns estudiosos abandonam totalmente a tentativa de buscar um
único objetivo e concluem que existem vários objetivos que esta carta visava atender. Com
certeza ela tem um caráter solene e lhe faltam detalhes de questões específicas, isto mostra
que ela foi escrita para fazer uma descrição geral do que é útil para os cristãos.
Em toda carta fica claro que a pessoa de Cristo e sua obra são cruciais para o
caminho do cristão. Ela inicia enfatizando a ação divina operando a salvação, fala das
bênçãos espirituais que o cristão desfruta em Cristo e passa a declarar que ele nos escolheu
antes da fundação do mundo, que a salvação não é fruto de merecimento mas ação divina
(1.5 e 1.11). É Ele também que opera a reconciliação entre judeus e gentios na igreja, (2.11-
22) Ele é a paz. A igreja revela aos poderes das esferas celestiais a “multiforme sabedoria
de Deus” (3.10).
Efésios ressalta a importância do crescimento cristão no conhecimento,
conhecimento esse que é resultado da revelação divina; o cristão deve viver como filho da
luz, aprendendo a discernir o que é agradável ao Senhor, arraigado e alicerçado em amor, a
fim de compreender [...] a largura, o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o
amor de Cristo que excede a todo entendimento. A palavra amor ocorre mais vezes neste
livro do que em qualquer outro do Novo Testamento, excetuando I Corintios e I João. A
igreja é o santuário dedicado ao senhor, um edifício do qual Ele é a pedra angular,
habitação de Deus no Espírito, os membros da igreja são concidadãos dos santos. O escritor
claramente deseja que os leitores percebam a esplêndida visão de uma só igreja totalmente
unida ao Senhor e que presta um serviço significativo nesse mundo.
Filipenses – o segredo da alegria
Filipos localizava-se na região da Macedônia conhecida por ser o lugar de
nascimento de Alexandre, o Grande, o primeiro grande conquistador de impérios em
tempos passados. Depois, as sucessivas guerras e invasões deixaram-na bastante
empobrecida e despovoada. Foram os romanos que repovoaram a região, fundando diversas
cidades para os ex-soldados romanos, dentre elas, Filipos. Seus habitantes eram pessoas de
vidas modestas que viviam, principalmente, dos produtos do campo e do pequeno comércio
urbano. Também, havia na cidade uma pequena comunidade de judeus, cujo lugar de
oração provavelmente localizava-se fora da cidade. Foi para um local como esse que Paulo
e seu grupo se dirigiram para orar como era seu costume no sábado. Toda a história que se
segue marca o início da igreja em Filipos. (vide Atos 15-16).
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Muitos anos após esses acontecimentos, Paulo é preso, não sabemos onde, mas
provavelmente não muito longe de Filipos e nem muito tempo depois de sua primeira
passagem por lá. A igreja de Filipos manda um de seus irmãos Epafrodito, até Paulo, para
ter notícias a seu respeito e cuidar dele.Epafrodito leva consigo um presente da igreja para
Paulo. Acontece que esse irmão fica muito doente , o que preocupa toda a igreja. Paulo
ouve de Epafrodito acerca dos sério problemas entre alguns irmãos que lideravam a igreja.
Timóteo, que estava com Paulo, também estava de partida para Filipos. Então, em tais
circunstâncias, Paulo escreva à igreja para recomendar a Timóteo, corrigir os irmãos
briguentos e, sobretudo, agradecer pelo cuidado da igreja para com ele e para dar conta do
ocorrido com Epafrodito que leva a carta.
A carta aos Filipenses tem uma característica rara: é uma carta escrita a uma igreja
que o próprio Paulo fundou e com a qual está muito satisfeito em virtude do crescimento e
progresso na fé de seus participantes. Ele de fato se opõe ao ensino falso também nessa
carta, mas esse não é seu principal objetivo.
Destaca-se nessa carta o hino de 2.6-11 que apesar das muitas controvérsias sobre
seu significado leva aos leitores uma mensagem clara sobre a grandeza de Cristo e o fato
dele ter se esvaziado e ocupado um lugar humilde para nos trazer a salvação.
A carta nos incentiva a pregar o evangelho, o tom de alegria aparece por toda a
carta: alegria no sofrimento (1); alegria no serviço (2); alegria na fé (3); alegria em dar (4).
Em toda a carta há uma harmonia entre o escritor e os leitores, e ensinos sobre a
importância do trabalho desenvolvido em conjunto. Paulo ora pelos irmãos e os adverte
sobre os ensinos falsos, exortando-os a estarem firmes na vida cristã e envia-lhes Timóteo.
Esta carta é um belo quadro da harmonia cristã. Paulo ressalta a importância do serviço à
Cristo e chama a atenção para o fato de como o evangelho progride em meio a seus
sofrimentos. Ele termina a carta registrando que Deus é o que supre as necessidades dos
cristãos segundo sua imensa riqueza em glória.
9.2.3. I e II Timóteo e Tito: as cartas pastorais de Paulo
Paulo aconselha aos pastores jovens
Estas três cartas são chamadas de epístolas pastorais porque Paulo as escreveu
visando auxiliar jovens pastores. Elas foram dirigidas a indivíduos que tinham
responsabilidades pastorais e estavam incumbidos de nomear pastores. Não há nada que
indique que foram escritas na mesma data ou do mesmo local ou que o autor pretendesse
que fossem estudadas em conjunto. Mas elas são estudadas em conjunto no método
contemporâneo, apesar de suas diferenças que são importantes e precisam ser consideradas,
por exemplo: enquanto I Timóteo trata muito do ministério da igreja, II Timóteo não tem
essa ênfase e nem tampouco Tito. O que se observa de comum nessas três cartas é o ataque
aos falsos ensinos. Apesar da ortodoxia crítica alegar que as epístolas pastorais foram
escritas por outra pessoa e não Paulo, em virtude de questões e estilo, vocabulário, atenção
à ordem eclesiástica e atitude diante da ortodoxia de ensinos heréticos; observa-se que estas
cartas têm muitos elos com o ensino de Paulo e, portanto não seriam pseudôminas.
Uma hipótese que é bem aceita é que Paulo escreveu I Timóteo e Tito entre dois
períodos de aprisionamento (após seu primeiro período de aprisionamento em Roma, ele foi
declarado inocente, usufruiu de certa liberdade, conforme dados fornecidos pelas cartas
pastorais sobre seus passos, algum tempo depois foi novamente preso e condenado à morte,
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como mártir da fé cristã, que nesse ínterim foi declarada religião ilícita); já II Timóteo foi
escrita durante seu segundo aprisionamento, pouco antes de seu martírio. Se Paulo chegou a
ir a Espanha ou não, é algo que permanece desconhecido. Clemente de Roma, pai da igreja
primitiva escreveu que Paulo “atingiu os limites do Ocidente” (I Clemente 5:7), declaração
que pode ser interpretada como aludindo a Roma ou Espanha, no extremo ocidental da
bacia do Mediterrâneo.
Além das instruções relativas às responsabilidades administrativas de Timóteo e
Tito nas igrejas, Paulo convoca a Tito para que encontrasse com ele em Nicópolis, na costa
ocidental da Grécia. Já em II Timóteo, Paulo, relembrando sua carreira passada e
aguardando a sua execução, solicita a Timóteo que viesse vê-lo em Roma antes da chegada
do inverno.
Em primeira Timóteo, após a saudação e advertência a respeito dos mestres falsos,
que manipulavam de forma errada a lei, Paulo relembra sua experiência de conversão e sua
comissão ao apostolado, exortando a Timóteo para que se apegasse a fé e que tivesse
cuidado com os falsos mestres que ele, Paulo, excluíra da Igreja.
A partir do segundo capítulo Paulo exorta a prática das orações públicas em favor
de todos inclusive das autoridades governamentais, instrui sobre a conduta das mulheres na
igreja no que diz respeito à vestimenta e serviço ministerial.
Na seqüência, Paulo alista as qualificações necessárias aos bispos (também
chamados de episcopos ou presbuteroi – supervisor, ancião superintendente) e diáconos
(servos, assessores - que cuidavam dos assuntos seculares da vida eclesiástica, em
particular da distribuição das caridades). A lista das qualificações para as mulheres, podem
dizer respeito à ordem feminina das diaconisas ou aludir às esposas dos diáconos. A seção
se encerra com um hino antigo cristão que fala da carreira de Cristo.
No quarto capítulo, Paulo novamente trata da questão das falsas doutrinas e já no
quinto capítulo aborda questões do relacionamento apropriado entre Timóteo e diferentes
faixas etárias na igreja, acerca da posição ocupada pelas viúvas e acerca do tratamento que
se deve dar aos anciãos. Sendo ainda jovem, Timóteo deveria tratar com outros jovens
como irmãos, com homens de mais idade como se fossem seus pais, com mulheres idosas
como a mães, e com as donzelas como se fossem suas próprias irmãs.
Paulo orienta quanto às viúvas, que estas deveriam ser sustentadas por seus
familiares. No entanto, caso elas não contassem com a ajuda destes e tivessem mais que
sessenta anos e fossem piedosas, deveriam receber auxilio econômico da igreja.
E no que diz respeito aos anciãos, que pregassem e ensinassem, eles mereciam
receber sustento. Paulo traz orientações para Timóteo no que se refere a conhecer o caráter
de uma pessoa antes de ordená-la ao oficio ministerial. E conclui sua epístola com uma
série de instruções miscelâneas.
Tito – ensino correto, prática correta
Esta foi uma epístola que Paulo escreveu quando estava em Nicópolis, na costa
ocidental da Grécia. Ele a dirigiu a Tito. Paulo havia deixado Tito na ilha de Creta, com o
objetivo de organizar a igreja local. Da mesma forma que orienta Timóteo em sua primeira
carta dirigida a este, com respeito aos falsos mestres, Paulo orienta a Tito, e também
apresenta instruções acerca da conduta conveniente de várias classes de cristãos. É
interessante observar que Paulo baseia a doutrina de tais instruções na graça de Deus, que
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confere salvação, conduz à vida piedosa e brinda esperança da volta de Jesus. A base
experimental dessas instruções é a regeneração que o Espírito Santo opera.
II Timóteo – memórias e exortações
Esta é a última epístola de Paulo que se tem registro. Paulo a inicia abordando o chamado
dele e o de Timóteo, inserindo exortações e fazendo algumas observações no tocante a
alguns que o haviam abandonado na prisão e citando outros que o apoiaram. Quando cita as
demais instruções a Timóteo, faz uma comparação das mesmas, ao trabalho disciplinado e
árduo dos soldados, atletas e agricultores. Contrapondo ao ensino herético Paulo trata do
valor da Escritura no processo de ensino. Fala do valor de se pregar a palavra de Deus e
declara que está disposto a enfrentar a morte no cumprimento dessa missão. Paulo termina
a epístola com notícias e pedidos pessoais.
Os homens citados por Paulo, Janes e Jambres (em 3:8) eram dois mágicos de Faraó
que se opuseram a Moisés, conforme o Targum de Jonatan sobre o Êxodo 7:11 e a
primitiva literatura cristã fora do Novo Testamento. Com certeza, os pergaminhos que
Paulo pede a Timóteo que traga para ele eram importantes. É possível que fossem os
documentos legais de Paulo, seu certificado de cidadania romana, ou quem sabe cópias do
Antigo Testamento, ou registros de vida e ensino de Jesus.
É possível interpretar de forma alegórica o “livramento da boca do leão” no caso de
Paulo, porque o leão era entendido mais especificamente como símbolo do diabo ou do
imperador Nero.
10 - Hebreus – Jesus é o grande sumo sacerdote
O autor de Hebreus retrata Jesus como o grande sumo sacerdote que ofereceu a si
mesmo como sacrifício totalmente suficiente pelos pecados e que agora ministra no
santuário celeste. O propósito da epístola é exibir a superioridade de Jesus Cristo sobre todo
aspecto e sobre todo o herói da religião revelada no Antigo Testamento, visando impedir
aos primeiros leitores o retorno ao judaísmo.
Já desde os primórdios era incerta a autoria dessa epístola. Por exemplo: em 95 d.C.
ela já era conhecida e usada conforme citado em I Clemente; e na porção oriental do
império romano Paulo era visto como seu autor. Pode-se perceber que realmente a teologia
de Hebreus, no que diz respeito à humilhação de Cristo, nova aliança e distribuição dos
dons do Espírito muito se assemelha à paulina. Contudo, a parte ocidental da igreja
duvidava da autoria paulina, e até chegou a excluir Hebreus do cânon, no princípio, em
função das dúvidas quanto à autoria do texto. Isso nos mostra que a igreja primitiva era
cuidadosa quanto à aceitação de um texto no cânon.
A igreja ocidental duvidada da autoria paulina porque esta epístola era anônima, seu
estilo grego era muito refinado e enquanto Paulo sempre apelava para sua autoridade
apostólica, o autor de Hebreus apelava para a autoridade das testemunhas oculares de Jesus
(2:3).
Alguns estudiosos têm sugerido ser Barnabé o autor de Hebreus, em virtude de seu
passado como levita (Atos 4:6) harmonizar-se perfeitamente com os interesses pelas
funções sacerdotais manifesto pelo autor de Hebreus ao longo de toda sua carta; e por sua
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proximidade com Paulo explicar a similaridade com a teologia paulina apontada ao longo
da carta.
Outro candidato a autoria seria Lucas, que foi companheiro de Paulo, logo explicar-
se-ia a influência da teologia paulina na carta, e por ser o estilo grego desenvolvido em
Hebreus tão polido quanto o de Lucas e Atos. No entanto, o desenvolvimento de Lucas e
Atos se reveste de uma perspectiva tipicamente gentílica enquanto que o de Hebreus é
altamente judaico.
Martinho Lutero sugeria que o autor provavelmente teria sido Apolo, cuja
familiaridade com Paulo (I Co 16:12) e instrução por Priscila e Áquila (Atos 18:26) pode
ser justificativa para a semelhança com a teologia paulina. E cuja eloqüência pode ser
explicada no estilo refinado de Hebreus.
Outro possível autor seria Silvano (Silas) que foi companheiro de Paulo, daí a
influência deste na teologia. Porém são escassos os argumentos em favor dele.
Apesar do título “aos Hebreus” muitos têm pensado que a epístola tenha sido
dirigida primeiramente aos gentios em função do grego polido e do contínuo uso da
septuaginta. Mas o uso freqüente do Antigo Testamento, o conhecimento de rituais
judaicos, a exortação a que seus leitores não revertessem ao judaísmo, além do título
original antiqüíssimo aponta para o fato de o livro ter sido endereçado originalmente aos
cristãos judeus.
É provável que a epístola tenha sido endereçada aos cristãos judeus de Roma, pois
os cristãos aos quais a epístola foi dirigida não conheciam o ministério terreno de Jesus, os
cristãos da Itália lhes enviaram saudações e eles haviam ajudado financeiramente a outros
cristãos, ao passo que os cristãos palestinos eram pobres.
Independente de onde habitassem os destinatários da epístola, eles eram bem
conhecidos pelo autor. Eles eram generosos, tinham sido perseguidos, o autor fala da
imaturidade deles e fala do desejo de ir vê-los novamente. Os leitores são exortados a se
reunirem com mais freqüência e a saudarem não somente os líderes e demais membros de
sua própria congregação, mas também “a todos os santos”. Isso pode indicar que se tratasse
de um grupo de irmãos que se reuniam em algum domicílio e que se tinham distanciado do
grupo central a fim de evitarem perseguições. O propósito da epístola é evitar a apostasia e
exortá-los ao retorno a comunhão cristã.
Uma vez que Clemente cita Hebreus em 95 d.C., isso demonstra que ela foi escrita
um tempo antes. Como a carta trata da questão de sacrifícios no templo utilizando o verbo
no presente e o templo foi destruído no ano 70 d.C. por Tito, provavelmente ela foi escrita
antes desse período também. No entanto, quando trata dos rituais a epístola não se refere
propriamente ao templo e sim ao tabernáculo pré salomônico e o uso do verbo no presente
pode dizer respeito a um recurso literário.
Como é próprio das epístolas, Hebreus termina com alusões pessoais, mas
diferentemente das outras epístolas da Bíblia não possui saudações introdutórias.
Objetivando impedir seus leitores o retorno ao judaísmo, o autor apresenta a
superioridade de Cristo em relação a tudo, aos profetas, aos anjos, a Moisés, a Josué, a
Arão. Alicerçando-se sobre a sugestão da assertiva de Salmo 110.4 que o rei messiânico
seria sacerdote segundo o padrão de Melquisedeque, o autor da epístola aos Hebreus
apresenta vários paralelos entre Cristo e Melquisedeque. O nome Melquisedeque significa
rei de justiça, ele era rei de Salém, que significa paz, no sentido de completa benção divina.
A justiça e a paz são características do ministério de Jesus. A ausência de uma genealogia
de Melquisedeque no Antigo Testamento tipifica a eternidade do ministério de Jesus, como
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filho de Deus. Assim como Melquisedeque abençoou a Abraão, pois o maior abençoa o
menor, (Hb 7.1;10.18) Jesus é o sumo sacerdote superior a Abraão. O autor de Hebreus
exorta os leitores a usarem o método superior de aproximação a Deus por intermédio de
Cristo, e não através do método ultrapassado do Antigo Testamento. Ele também alerta
seus leitores sobre o terrível julgamento que virá sobre aqueles que abandonam a fé cristã,
apesar de revelar sua confiança em que eles perseverarão mesmo diante das perseguições. E
nisto ele os encoraja, a perseverarem, e para tanto, cita heróis da fé do Antigo Testamento,
vinculando a eles os seus leitores, e finalmente cita a pessoa de Cristo como o mais
extraordinário exemplo de paciente perseverança sob os sofrimentos, após o que recebeu
seu galardão. Ele apresenta o sofrimento como uma excelente disciplina além de ser um
sinal de filiação (12:4-13). O autor também enfoca a superioridade do novo pacto
fundamentado como está sobre o sangue de Cristo e exorta os seus leitores ao amor mútuo,
a hospitalidade, à simpatia, ao uso saudável e moral do sexo, dentro dos liames do
matrimônio, à necessidade de evitar a avareza, à imitação do exemplo dado pelos líderes
eclesiásticos piedosos, à necessidade de evitar os ensinamentos distorcidos, à aceitação
conformada diante da perseguição, às ações de graças, à generosidade, à obediência aos
lideres eclesiásticos e à oração.
11 – Epístolas católicas ou gerais
A expressão católica (universal) ou geral foi aplicada às epístolas Tiago, I e II
Pedro, I, II, III João e Judas porque, todas, exceto II e III João não são dirigidas a uma
única localidade. Nota-se que receberam o nome de seus autores e não os dos destinatários,
como no caso das epístolas paulinas.
Tiago – Mostrando a fé pelas obras
De todos os livros do Novo Testamento, Tiago é o mais prático e menos doutrinário.
Esta epístola constitui um manual de conduta cristã, que parte do pressuposto de que seus
leitores estão alicerçados na fé.
Existe na carta um tom de admoestação pastoral com verbos no imperativo que
ocorrem mais nessa carta do que em qualquer outro livro do Novo Testamento; Tiago passa
rapidamente de um tema para outro, mudando de assunto depois de apenas uns poucos
versículos; outro aspecto é o uso amplo e eficaz de metáforas e figuras de linguagem, Tiago
também compartilha palavras e idéias com outros ensinos e obras de literatura da época.
O autor Tiago (forma grega do apelativo hebraico Jacó) era um líder da igreja
primitiva de Jerusalém (Atos 15:12; 21:18; Gl 2:9-12) e considerado meio irmão de Jesus.
É possível que ele fosse um dos meio-irmãos de Jesus por parte do casamento anterior de
José, antes de contrair matrimônio com Maria. Isso pode explanar a falta de
reconhecimento dos irmãos de Jesus quanto a seu ministério e também a falta de interesse
por Maria, que nesse caso seria apenas madrasta deles.
Com o objetivo de defender a perpétua virgindade de Maria, a igreja católica
romana tradicionalmente interpreta o termo irmão como primo.
Apesar de não ter se convertido durante o ministério público de Jesus, Tiago foi um
dos que o viu ressurreto (I Co 15:7) e estava entre aqueles que aguardaram a descida do
Espírito Santo em Pentecostes (Atos 1:14). E, apesar de Tiago ser adepto e praticante da lei
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mosaica, ele estava entre aqueles que apoiaram a Paulo, no sentido dos convertidos dentre
os gentios não precisarem guardar a lei mosaica (Atos 15:12-21).
A epístola de Tiago tem temas fortemente judaicos, inclusive destacando muito a
lei. No entanto, existe alguns paralelos interessantes no que diz respeito à epístola de Tiago
e o capítulo 15 de Atos. Entre os paralelos está o uso do termo “saudações” (no grego
chairein usado no Novo Testamento somente em Tiago 1:1 e Atos 15:23, o decreto redigido
sob a liderança de Tiago), o vocábulo “visitar”, ou seja, “preocupar-se com” (vide Tiago
1:27 e Atos 15:14 dentro do discurso de Tiago perante o concílio e Jerusalém) e outros
(comparar Tiago 2:5,7; com Atos 15:13,17). Quanto à objeção de haver sido Tiago o autor
da epístola por ser ele um Galileu da Palestina, sabe-se que os judeus, principalmente os
que viviam em uma região ocupada predominantemente por gentios, conheciam e
utilizavam o grego, assim como o aramaico e o hebraico.
Entre as dificuldades encontradas para a aceitação da epístola de Tiago no Cânon
estão: o fato de ser uma epístola muito breve, divulgada predominantemente entre os
cristãos judeus e com ênfase na prática e não na doutrina; o fato de Tiago não haver sido
um dos doze apóstolos originais, contudo essas dificuldades foram logo transpostas e a
epístola foi aceita no cânon.
Tiago escreveu provavelmente para cristãos judeus. Na epístola se observa uma
ênfase sobre diversos princípios permanentes da lei judaica e sobre o monoteísmo,
expressões idiomáticas hebraicas e alusões ao Antigo Testamento e ausência de polêmica
quanto à idolatria e à escravatura. Tudo isto indica que se tratavam de cristãos judeus e não
gentios.
O historiador Josefo datou o martírio de Tiago em 62 d.C. Logo a sua epístola é
datada antes desse prazo. Alguns estudiosos afirmam que o tom propriamente judaico da
epístola prova que quando ela foi escrita o cristianismo ainda não tinha se expandido para
fora da Palestina; outros apontam uma data anterior a 49 d.C. para a escrita da epístola
porque ela não trata da questão levantada pelos judaizantes, logo, deve ter sido escrita antes
do problema ter sido manifesto. No entanto, tudo isso é apenas hipótese, nos resta contentar
com o fato de que não há como precisar com certeza uma data para a escrita da carta.
Um fato notável é que a epístola de Tiago contém numerosas alusões a afirmações
de Jesus, também registradas nos evangelhos, sobretudo material associado ao sermão da
montanha. Existe por exemplo, um contraste em Tiago 1:22, entre ouvintes e praticantes da
palavra, que relembra a parábola do homem sábio, que edificou sua casa sobre a rocha
porque ouviu e praticou as palavras de Jesus e do homem insensato que construiu sua casa
na areia, porque ouviu e não praticou as palavras de Jesus (Mt 7:24-27 e Lc 6:47-49).
Traçar um esboço da epístola de Tiago é muito difícil porque ela foi escrita na
forma de um sermão profético esbraseado. Após a saudação inicial pode-se tão somente
alistar a série de exortações práticas que tratam de: regozijar-se nas tribulações (1:2,4);
petições confiantes (1:5-8); necessidade de não desejar riquezas materiais (1:9-11);
distinção entre os testes que procedem de Deus e as tentações (1:12-18); colocar em prática
a Palavra (1:19-27); necessidade de amar a todos igualmente (2:1-13); demonstrar uma fé
genuína (2:14-26); o controle da língua (3:1 – 4:10); evitar a calúnia (4:11-12); necessidade
da paciência até o retorno de Jesus (5:1-11); necessidade de honestidade (5:12);
necessidade de compartilhar com os outros das nossas preocupações e alegrias (5:13-18);
necessidade de recuperar os cristãos que errarem (5:19,20).
Entre as contribuições de Tiago destaca-se sua insistência em que a fé cristã
autêntica tem de se evidenciar em obras. Para Tiago o pecado fundamental é o coração
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dividido (1:8, 4:8) e ele insiste em que os cristãos se arrependam disto e voltem ao caminho
que conduz ao caráter integro e perfeito que Deus deseja. Em Tiago 2.14-16 o autor não
está negando a justificação pela fé pregada por Paulo, antes enquanto Paulo fala da
declaração por Deus de nossa retidão, Tiago fala da demonstração de nossa retidão. Outra
interpretação possível do termo justificar é como no judaísmo tendo sentido de “vindicar no
juízo final”. Nessa interpretação, tanto Paulo quanto Tiago estão se referindo à retidão do
pecador diante de Deus, mas Paulo está dando atenção à recepção inicial dessa condição, e
Tiago à maneira como essa condição é vindicada perante Deus no juízo.
I Pedro – salvos e perseguidos
Após uma saudação inicial (1:1,2) Pedro louva a Deus pela esperança e salvação
concedida por meio de Cristo (1:3-12). Isso forma a base para uma exortação à vida santa e
obediente (1:13-16) e um lembrete da obra redentora de Cristo (1.17-21), e como um
lembrete adicional a respeito da importância de viver em santidade e amor (1:22 - 2:2).
Logo a seguir, Cristo é apresentado como aquele em quem as profecias do Antigo
Testamento a respeito da “pedra” se cumprem (2:4-8), e a igreja é descrita em termos
empregados para o povo de Deus no Antigo Testamento (2.9-12). Os cristãos devem viver
na devida submissão às autoridades (2.18; 3.7). A comunidade cristã em geral é instada a
viver em harmonia e amor (3.8-12) e a seguir o exemplo de Cristo que lhes indica como
devem sofrer, se necessário for, quando não tiverem cometido erro algum (3.13-22). Os
crentes abandonaram o estilo pecaminoso de viver (4.1-6) devem viver de maneira que
resulte em louvor a Deus (4.7-11). Os leitores estão passando por uma tribulação dolorosa,
mas devem suportar o sofrimento da maneira correta (4.12-19). Depois vêm exortações aos
presbíteros (5.1-4), aos jovens (5.5-6) e a todos (5.8-9), conduzindo a uma doxologia (5.10-
11) e a uma conclusão epistolar normal (5.12-14).
A epístola possui expressões que nos fazem lembrar do discurso de Pedro em Atos e
apresenta alusões a declarações e feitos de Jesus conforme registrados nos evangelhos. É
provável que tenha sido escrita por volta do ano 63 d.C. pouco antes do martírio de Pedro
em Roma pelas mãos de Nero.
Pedro utilizou um amanuense para escrever esta carta, Silvano, que provavelmente é
o Silas que acompanhou Paulo em sua segunda viagem missionária. Pedro escreveu de
Roma que era chamada de “Babilônia” como um nome simbólico em virtude da sua
idolatria. Seus destinatários primeiros eram os cristãos judeus “eleitos que são forasteiros
da Dispersão”... “no meio dos gentios”. Mas o fato de citar pecado de idolatria e criticar
“paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância” sugere que havia um fundo
predominantemente gentílico dos leitores em mira.
Após a saudação Pedro exalta o nome de Deus ante a expectativa da gloriosa
herança celestial a qual torna suportável a perseguição. E diante da glória futura é
imperativo que os cristãos tenham uma conduta santa. Quando trata da pregação de Cristo
aos espíritos aprisionados, muito provavelmente significa que durante o intervalo entre a
sua morte e ressurreição Cristo desceu em Espírito ao hades e proclamou seu triunfo diante
dos demônios que haviam sido acorrentados por Deus. Outra possível forma de interpretar
esse texto é atribuir a esses “espíritos em prisão” a caracterização da geração antidiluviana
aos quais Cristo se apresentou como salvador.
No que trata do batismo, Pedro enfoca o arrependimento e a fé que se demonstra por
meio do batismo, como sendo o que conduz à remissão dos pecados.
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Ao tratar do sofrimento, Pedro conclama ao regozijo que devem ter aqueles que
sofrem por amor a Cristo, em virtude do seu testemunho cristão e não por uma má conduta.
Ele termina sua carta conclamando a postura de humildade no seio da igreja e à
resistência ante a perseguição.
II Pedro – em defesa da correta doutrina
Nesse tempo falsos mestres com sua moralidade fraca e suas doutrinas falsas
investiram seriamente na igreja. Eles negavam a volta de Cristo. Pedro escreve esta carta
contra os tais e ratificando o verdadeiro conhecimento da fé cristã frente a esses heréticos.
O estilo de I e II Pedro é diferente, mas isso pode ser devido a dois amanuenses
distintos. Embora muitos eruditos modernos duvidem da autoria de Pedro nessa segunda
carta, destacadas similaridades na fraseologia entre elas e o sermão da montanha e Atos nos
sugerem que a origem delas é comum e provavelmente Pedro é o autor de ambas as cartas.
Para defender a fé cristã Pedro afirma o verdadeiro conhecimento da fé cristã contra
os ensinos falsos. Ele declara que por meio das promessas magníficas de Deus se chega a
participar da natureza divina e, portanto, se faz necessário desenvolver as virtudes cristãs
entre os irmãos.
Pedro ressalta ainda quão digna de crédito é a fé cristã, provada pelo conhecimento
do Antigo Testamento e influenciada pelo Espírito Santo.
Visando condenar as falsas profecias, o apóstolo menciona a profecia autêntica. Os
mestres falsos são comparados aos profetas falsos do Antigo Testamento, e vão sofrer o
mesmo juízo condenatório deles.
Pedro exorta a não interpretar de forma errada a demora no retorno de Jesus. Ele
prolonga o retorno em virtude da sua paciência, desejando dar a esta geração mais
oportunidade de arrependimento. Diante disso Pedro exorta aos irmãos que vivam
retamente em função dos valores eternos antecipando o retorno de Jesus.
Ele conclama aos irmãos constantemente a que se lembrem, as predições de juízo se
cumprirão. Ele afirma que Deus falou nas Escrituras. Fica claro que Pedro não está
defendendo o papel da igreja como interprete oficial, mas afirmando numa linguagem
enfática a origem divina dos escritos proféticos e o papel de Paulo entre os escritores
(3:15,16) cujos registros já eram considerados Escrituras inspiradas.
Judas: Cuidado com os falsos mestres!
Seguindo a mesma linha de II Pedro, a epístola de Judas vai polemizar contra os
falsos mestres que invadiram a Igreja. Ele não vai dedicar-se a refutar as heresias
particulares de cada falso mestre, mas a combatê-los.
O autor se identifica como Judas, irmão de Tiago, provavelmente o Tiago líder da
igreja de Jerusalém (Atos 15 e Gl 1 e 2), meio irmão de Jesus e autor da carta que leva seu
nome. Quando a carta foi escrita existiam muitos hereges na Igreja.
Embora a primeira intenção de Judas tenha sido escrever um tratado doutrinário, em
virtude da invasão dos hereges na Igreja, ele altera a natureza de sua epístola para que os
cristãos lutassem com vigor na defesa da verdade do evangelho.
Ele descreve de forma calorosa tanto a iniqüidade dos falsos mestres quanto a forma
como foram condenados citando exemplos do juízo divino no passado: os israelenses que
morreram no deserto em razão da infidelidade, os anjos que caíram (provavelmente os
52
espíritos demoníacos que tinham corrompido a raça humana imediatamente antes do
dilúvio conforme lemos em Gn 6:1 e I Pedro 3:18), o caso das cidades de Sodoma e
Gomorra. Os falsos mestres não reverenciavam as realidades espirituais contrastando com o
arcanjo Miguel que foi cauteloso na disputa com Satanás em torno do cadáver de Moisés. A
epístola termina com uma doxologia.
Embora Judas nunca tenha ocupado o centro dos debates teológicos ele impressiona
muito os que se dedicam a seu estudo, o autor está demasiadamente preocupado em manter
uma atitude conservadora diante do depósito da verdade cristã se opondo de forma enérgica
a tudo aquilo que considera herético. Ele surge como um defensor dogmático das velhas
tradições e como um adversário intolerante dos divergentes a ela. Ele está interessado tanto
na salvação de que os cristãos participam quanto na fé que foi uma vez para sempre dada e
confiada aos santos.
Judas conclama seus leitores a considerarem o que acontece quando pessoas que
professam seguirem a Cristo negam a fé no ensino e na vida. Ele age contra uma situação
na qual as pessoas chamadas cristãs estão tendo um comportamento tão mal que poderiam
ser consideradas ímpias e que poderia até se dizer que elas negam a Cristo. Ele argumenta
contra os hereges não utilizando um método sistemático onde estuda seus ensinos heréticos
e os contrapõem, mas convidando seus leitores a observarem o modo de viver desses
hereges, eles negam com sua vida o que dizem pregar. Ele declara que o juízo divino é
certo e os hereges sofreram o castigo eterno.
Judas utiliza histórias onde escolhas erradas acarretaram o juízo de Deus e mostra
que não havia nada de surpreendente na situação em que Judas e seus leitores se achavam.
Os apóstolos haviam especificamente advertido que surgiriam hereges (17-19). Mas, se de
um lado não deviam ficar surpresos, por outro também não deveriam ser complacentes.
Eles foram desafiados a se oporem aos ensinos e práticas que professam ser cristãos mas
negam a essência da fé.
Esta carta nos ensina hoje como ensinou em todos os tempos que devemos ser
cautelosos principalmente num século que nos conclama a uma tolerância a qualquer coisa
que se denomina cristã não importando o quão distante esteja do evangelho.
É claro que a tolerância é importante, e existe perigo sempre que cristãos estão tão seguros de sua própria
retidão e sã doutrina que passam a se colocar na condição de juízes de todos os que deles divergem,
mesmo em questões relativamente pouco importantes. Existem muitas maneiras de olhar para a vida cristã
e o cristianismo autêntico encontra uma variedade de formas de expressão na igreja contemporânea. É
importante não se colocar na posição de juiz; é importante que tratemos como irmãos e irmãs as pessoas
cujo pensamento e prática constituem manifestações um tanto diferentes do evangelho autêntico. Mas
Judas nos lembra que existem limites. A igreja contemporânea deve perceber que é possível remodelar o
evangelho de uma forma tão radical que ele perde a sua essência. É possível reinterpretar a vida cristã de
tal forma que ela deixa de ser exigente demais e degenera num estilo de vida que não se distingue daquele
do mundo. Diante de atitudes assim, as advertências de Judas são de importância permanente.
CARSON:1997.
Referências a obras pseudepígrafas
Podemos observar que Judas vai citar o livro apocalíptico pseudepígrafo I Enoque nos
versículos 14 e 15 (trecho extraído de I Enoque 1:9). Quando fala da disputa que houve da
parte de Miguel e Satanás (verso 9) sobre o corpo de Moisés, é provável que estivesse
53
citando outro pseudepígrafo Assunção de Moisés (o texto completo desse livro não existe,
os fragmentos encontrados não contém tal relato).
Paulo se refere a uma certa midrash (exposição) rabínica sobre a rocha da qual manava
água e que “seguia” a Israel no deserto conforme lemos em I Co 10:4; cita escritores pagãos
no sermão que pregou em Atenas conforme lemos em Atos 17:28 e também citou os nomes
dos mágicos de Faraó que se opuseram a Moisés em II Tm 3:8 e extraiu esta informações
de alguma fonte não canônica.
Ao extrair essas informações o autor não está necessariamente canonizando o texto, poderia
apenas estar usando essas informações a título de ilustração.
12 - As epístolas joaninas – I, II e III João
I João – Como um pai instrui a seus filhos – II e III João – Como um pai instrui o povo
cristão.
Assim como Hebreus I João não é uma epístola formal. Ela foi escrita como uma
carta pastoral para ser lida por uma ou várias congregações. Há evidências em favor da
teoria de que a forma incomum da carta é devido à intenção do autor de enviá-la a várias
congregações junto com um bilhete em anexo que personalizava a entrega e que II João é
um desses bilhetes, no caso o único que chegou até nós, uma vez que III João não se
enquadra nessa caracterização.
Enquanto a sua estrutura I João é objeto de debates, ele trata de vários temas indo e
voltando aos mesmos em contextos ligeiramente diferentes. Uma forma de dividir a carta
seria em três grandes seções: 1 – capítulo 1.5 a 2.17 – comunhão com Deus como andar na
luz; 2 – capítulo 2.18 a 3.24 – situação da(s) igreja(s) a que João se dirige e, 3 - 4.1 a 5.12 –
separação dos que pertencem a Deus do “mundo”. Sendo assim teríamos três possíveis
teses para João: 1 – para os cristãos verdadeiros Cristo veio em carne; 2 – a crença que
Cristo veio em carne manifesta-se por meio de uma vida reta; 3 – a crença que Cristo veio
em carne manifesta-se por meio de uma vida em amor.
Quanto às cartas II e III João, existe ampla concordância de que essas duas e breves
epístolas têm a forma de carta sendo uma escrita “à senhora eleita e a seus filhos” e II João
dirigida à outra congregação para alertar contra os perigos inerentes em pregadores
itinerantes, alguns dos quais são “enganadores [que] não confessam Jesus Cristo vindo em
carne” (7). Mas ainda aí João insiste que a marca dos verdadeiros cristãos é andar não
apenas na verdade, mas também em amor, amor esse que se manifesta num relacionamento
transparente em conformidade com o mandamento que “ouvistes desde o princípio” (6).
Essa mensagem ocupa a seção central (4-11) entre a introdução (1-3) e a conclusão (12-13).
Contrastando com II João, que não cita ninguém pelo nome a não ser Jesus Cristo,
III João é dirigida a Gaio e trata das atividades de Diótrefes, que não apenas “gosta de
exercer a primazia” (9) mas também tornou-se poderoso a ponto de não receber os
emissários do escritor, expulsando da igreja aqueles que tem uma postura moderada. João
incentiva Gaio (que talvez tenha pertencido à igreja em que Diótrefes regia) a seguir, em
vez desse, o exemplo de Demétiro e adverte que estará chegando para desmascarar
Diótrefes.
Quanto à autoria das três epístolas, embora elas não tenham nenhuma evidência
interna que indique algum autor específico, elas se relacionam com o quarto evangelho;
54
portanto, elas são atribuídas a João filho de Zebedeu. Um argumento a favor da autoria
joanina é a citação que ele faz em 1.1,3;4.14;5.6-7 onde o autor faz distinção não apenas
entre, de um lado, ele próprio como escritor e, de outro, seus leitores, mas também entre ele
próprio como testemunha ocular e os crentes da segunda geração, e entre ele próprio como
mestre cujo ensino é autorizada àqueles que recebiam o ensino.
A procedência mais provável da carta é Éfeso e a data mais provável gira em torno
dos anos 80-85 d.C. e nesse caso se sustentará que as epístolas, ao contrário do evangelho,
foram escritas em parte para firmar e estimular a fé de cristãos em meio a crescente
controvérsia sobre protognosticismo, uma vez que este movimento estava em ascendência
no final do século I, logo, parece melhor atribuir a essas epístolas uma data posterior a do
quarto evangelho.
Quanto aos destinatários, a primeira epístola não menciona nenhum destinatário e
não preserva nenhuma saudação específica, ou agradecimento formal ou outros detalhes
formais. Já a segunda epístola é dirigida à senhora eleita e aos seus filhos, que quase com
toda a certeza não se trata de uma senhora e sua família, mas a uma congregação local.
Dificilmente se pode pensar que essa epístola seja dirigida à igreja universal, visto que
registra saudações da parte “da tua irmã eleita”, expressão que deve ser entendida como
saudação por outra congregação: a igreja universal não tem irmãs. A terceira epístola é
dirigida a um indivíduo de nome Gaio, o qual não deve ser confundido com o Gaio de
Corinto (I Co1.14; Rm16.23) ou com o Gaio da Macedônia (At19.29) e provavelmente
também não com o Gaio de Derbe (At 20.4). Gaio era um nome extremamente comum no
império.
Conforme podemos inferir a partir daquilo que é reconstruído do local de origem
dos documentos, as epístolas provavelmente foram enviadas a igrejas (e a um indivíduo)
localizadas na região de Éfeso, incluindo, talvez o território abrangido pelas sete igrejas de
Apocalipse (2-3).
Para tratar do propósito das epístolas joaninas, utilizaremos como texto base o material
extraído do livro Introdução ao Novo Testamento de Carson, págs. 501 a 505.
Propósito
Uns poucos estudiosos têm sustentado que I João é pastoral e não polêmica, e por
isso não existe a necessidade de reconstruir um grupo de hereges e que a epístola foi escrita
visando fortalecer e confirmar a teologia da comunidade impedindo assim um cisma que
poderia vir como conseqüência do uso incorreto dos dons proféticos.
Apesar de sabermos que João realmente procurou edificar seus leitores, esse ponto de vista
é visto como inadequado pela maioria dos eruditos. Percebe-se que alguns já saíram da
comunidade (I Jo 2.18-19) e que João está advertindo seus leitores sobre falsos mestres que
estão tentando enganá-los (2.26). A profecia de Paulo aos presbíteros efésios (Atos 20.29-
30), e que foi repetida a Timóteo (2 Tm 3.1-7, 4.3-4) infelizmente estava se cumprindo e
lobos vorazes estavam despedaçando o rebanho e João os chama de “falsos profetas” (I Jo
4.1) de enganadores (2 Jo 7) e anticristos (1 Jo 2.18;4.3;2 Jo7).
É possível que o propósito de João haver escrito as cartas tenha sido o de renovar o
ânimo dos fieis e explicar em termos claros e diretos as diferenças entre os dois grupos: os
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cristãos e os falsos profetas. Desta forma João daria aos cristãos uma base para sua própria
segurança e confiança diante de Deus (I Jo 5.13) nesse momento em que se sentiam
ameaçados e inferiores espiritualmente.
São bastante substanciais as diferenças que há entre os leitores e os oponentes de
João. Os sectários negavam que Jesus, humano, era o Cristo, o Filho (2.23, 4.15; 2 Jo 9).
Negavam a encarnação (4.2; 2 Jo 7). Não aceitavam que eram pecadores (I Jo1.6-10) e
2.26-27).
Vejamos agora três movimentos que ocorreram nos primeiros séculos da era cristã. É
possível que um deles tenha dado origem a toda essa série de heresias.
Gnosticismo. Ele é como uma colcha de retalhos. Seu pensamento principal baseava-se no
dualismo neoplatônico, que acreditava numa dicotomia (separação, divisão) entre a matéria,
que era considerada inerentemente má e o espírito que era bom. No mito gnóstico clássico,
que chegou até nós de fontes do século III existe um Pai primeiro, de quem emana uma
variedade de seres espirituais. Um desses seres era a Sabedoria. Ela procurou agir de forma
independente de outro ser o Pensamento e sem querer produziu um ser deformado chamado
Ialdabaote, que era seu filho. Este, roubou da sua mãe o suficiente para tornar-se o criador
dos poderes espirituais que governam este mundo e com cuja ajuda o universo físico,
inclusive Adão e Eva, vieram a existir. A partir deste mito os relatos bíblicos são então
reformulados para se ajustar às mudanças. A narrativa da queda de Gn 3 torna-se o exemplo
para uma tentativa de conceder o verdadeiro conhecimento (gnósis) àqueles que estão
aprisionados na matéria má devido à ação de seu criador mau. Adão por fim gera Sete, que
recebe um espírito puro. Isso estabelece uma dicotomia na raça humana, alguns têm origem
nessa vida espiritual, e outros não passam de matéria. Versões posteriores do mito falam de
um redentor gnóstico que explica suas origens aos “eleitos” (escolhidos por Deus e que por
isso tem capacidade para receber esse conhecimento) libertando-os. A estrutura dos mitos
gnósticos varia consideravelmente. No século II Valentino ensinava que a divindade é
constituída por 30 eões, considerados como pares masculino e feminino. Entre eles havia o
Intelecto e a Verdade, que produziram o Verbo e a Vida, que por sua vez produziram o
Homem e a Igreja. Qualquer que seja a estrutura exata, alguns estudiosos sustentam que os
hereges pressupostos por I e II João foram influenciados pelo gnosticismo e estão ocupados
em se libertarem da carne por meio da aquisição do conhecimento.
Docetismo – Mais especificamente, um ramo do gnosticismo. A palavra dokeo – parecer,
deu origem ao nome do movimento que aplicava o mesmo raciocínio gnóstico rejeitando a
encarnação. A grande questão levantada pelos docetas era: como um ser espiritual (bom)
como Cristo pode tornar-se carne (má)? Então eles têm uma idéia que ficou conhecida
como a heresia de Cerinto: o Espírito (Cristo) veio sobre Jesus por ocasião do seu batismo e
deixou-o para que sofresse sozinho na cruz (uma vez que por sua capacidade o
Espírito/Cristo não pode ele próprio padecer).
Contudo, sabemos que o gnosticismo em sua forma plena e amadurecida é quase
certamente uma amálgama de desvios judaicos, cristãos e pagãos, um movimento amorfo
cujo florescimento é posterior ao Novo Testamento, e que é tão variado em suas
manifestações que bem poucas generalizações são possíveis. A conclusão mais plausível é
que o movimento estava ganhando força quando João escreveu suas epístolas, e pode-se,
com certa hesitação, delinear a partir destas cartas alguns dos contornos da forma específica
que esse pensamento assumiu. É obvio que essa forma não pode ser identificada com
56
precisão com nenhuma das manifestações que chegaram ao nosso conhecimento de modo
independente. A questão é que bem poucas delas foram preservadas para nós, e o máximo
que podemos dizer é que, até onde as epístolas de João mostram, os erros discerníveis e as
práticas destrutivas a que elas estão se opondo têm muito em comum com o docetismo, o
cerintianismo de que sabemos tão pouco. Portanto parece melhor concluir que João está
combatendo um protognosticismo, um docetismo ou cerintianismo embrionário que já
causou divisões entre cristãos. Em oposição às ênfases de seus adversários, que com toda
franqueza ele coloca lado a lado com tudo o que não é cristão, João destaca a verdade de
que Jesus é Cristo vindo na carne e que a fé autêntica nesse Jesus redunda em obediência
aos mandamentos de Deus e em amor pelo povo de Deus.
Tomando essa interpretação como correta, podemos dizer que o propósito de II João
é basicamente advertir uma congregação ou uma igreja-casa a não receber mestres
itinerantes que esposam esses falsos ensinos. Já III João não revela nenhuma heresia
semelhante, talvez não passe de uma advertência apostólica contra alguém que está
tentando conquistar toda a autoridade local. Mesmo assim, teríamos de concluir que isso
estava acontecendo dentro do pano de fundo estabelecido pelas outras duas epístolas.
Podemos, portanto especular que Diótrefes estava usando o perigo da heresia para construir
sua própria base de dominação. Mas é difícil imaginar que ele próprio seja um herege, caso
contrário certamente João o teria denunciado.
Se analisarmos as epístolas joaninas em conjunto veremos que elas apresentam uma
clara demonstração da importância crucial de, tomando por base os elementos imutáveis da
revelação evangélica, por à prova todos as tentativas de reformular o evangelho.
Ao retornar para aquilo que era “desde o principio”, para o testemunho das
primeiras testemunhas oculares, para dados cristológicos inquestionáveis, para a novidade
perene do “velho” mandamento de amar uns aos outros, para o elo inquebrável entre a fé e
a obediência; de forma prática, que haja heresia ou não por trás de 3 João, esse enfoque
holístico insiste em que na igreja não há nenhum lugar para líderes subalternos que não se
curvem diante da admoestação e autoridade apostólicas.
As epístolas joaninas dão uma importante contribuição para a doutrina da segurança
(I Jo 5.13). Já que, de um lado, outros escritos neotestamentários deixam claro que o
fundamento objetivo para nossa confiança perante Deus está em Cristo e em sua morte e
ressurreição ocorridas em nosso favor, de modo que a certeza cristã da salvação não é
muito mais do que algo concomitante com a fé genuína, por outro lado estas epístolas
insistem em que se deve fazer distinção entre a fé genuína e a fé espúria. A fé espúria tem o
direito à segurança perante Deus; a fé genuína pode ser confirmada não apenas pela
exatidão de seu objeto (neste caso a convicção de que Jesus é o Cristo vindo em carne), mas
também pela transformação que opera no indivíduo: cristãos genuínos aprendem a amar uns
aos outros e a obedecer à verdade. Para João, a segurança cristã não é um bem abstrato; está
intimamente vinculada a um relacionamento constante e transformador com o Deus da
aliança, que se revelou e Jesus Cristo.
As epístolas joaninas oferecem uma vista sem igual de pelo menos uma parte da
igreja neotestamentária perto do final da era apostólica. Elas nos permitem esboçar, mesmo
que de modo não definitivo, as diferenças entre a igreja refletida nos documentos
neotestamentários mais antigos e a igreja no final do primeiro século.
13 - APOCALIPSE – E ELE VEM!
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O termo apocalipse significa desvendamento. Esta porção do Novo Testamento
possui as profecias mais extensas concernentes ao futuro que qualquer outro livro. Elas
declaram o triunfo escatológico de Cristo sobre as forças do Anticristo deste mundo.
Começando pela tribulação e atingindo seu clímax na parousia e chegando ao término com
a plena concretização do reino de Deus, visando o encorajamento dos cristãos diante de
uma sociedade incrédula.
A sua estrutura é objeto de acirrados debates, principalmente porque a conclusões
sobre este assunto influenciam radicalmente a compreensão que se tem dos referentes
históricos e da escatologia do livro. Há consenso geral de que 1.1-20 (ou 1.1-8) e 22.6-11
são, respectivamente, o prólogo e o epílogo, e que as cartas às sete igrejas nos capítulos 2-3
constituem uma unidade em separado. Parece haver uma base para essa divisão em 1.19,
onde é plausível pensar que “as coisas que viste” refere-se à visão do capítulo1; “as coisas
que são”, às cartas dos capítulos 2-3; e “as que hão de acontecer depois destas”, aos
capítulos 4 e seguintes.
Variadas tem sido as formas de estruturar o conteúdo de 4.1 a 22.5. A maneira mais
simples é assinalando os trechos onde a visão é interrompida e o vidente é convidado a “vir
e ver”. Se fizermos assim temos a seguinte divisão: 4.1-16.21; 17.1-21.9; 21.8-22.5. Outros
crêem que a seção é dividida ao meio, e que os capítulos 12-22 repetem o conteúdo dos
capítulos 1-11. Existem aqueles que comparam o livro de Apocalipse a uma peça teatral
com sete atos, sendo que cada um dos sete atos tem sete cenas. Outros estruturam o livro na
forma de quiasmo e mais freqüentemente as três séries de setes – selos (6.1-7, 8.1),
trombetas (8.2-9.21; 11.15-19) e taças (15.1-16.21) são empregados como a base da
estrutura. Sendo assim, os capítulos 4-5 (ou somente o capítulo 4) são considerados uma
visão inicial que estabelece o percurso que se segue, com 17.1-22.5 apresentando os
detalhes do desfecho escatológico. Entre o sexto e o sétimo selos (cap.7), entre a sexta e a
sétima trombeta (10.1-11.14) e entre a sétima trombeta e as taças (12.1-14.20) existem
ainda outras visões que dão ao leitor uma perspectiva sobre o desdobramento dos septetos
de juízo. Dentro desta abordagem o conteúdo é dividido da seguinte forma: 1 – prólogo
(1.1-20), 2 - mensagens às sete igrejas (2.1-3.22), 3 – uma visão dos céus (4.1-5.14), 4 – os
sete selos (6.1-8.5), 5 - as sete trombetas (8.6-11.19), 6 - sete sinais relevantes (12.1-14.20);
7 - as sete taças (15.1 – 16.21); 8 - o triunfo do Deus Todo-poderoso (17.1-20.15); 9 - um
novo céu e uma nova terra (21.1-22.5); 10 – epílogo (22. 6-11).
O Apocalipse é fortemente atestado como obra canônica e apostólica desde o mais
antigo período pos-neotestamentário da história da Igreja. Foi mencionado por Inácio (110-
117d.C.) e Barnabé (antes de 135) e provavelmente foi empregado pelo autor do Pastor de
Hermas (150). Foi citado também por Papias (falecido em 130), Justino (meados do século
II), Irineu (180) e é encontrado no Cânon Muratoriano (final do século II). As dúvidas
surgiram somente mais tarde, por causa do argumento de Dionísio no sentido que as
diferenças existentes entre o Apocalipse e o Evangelho de João excluem a autoria comum,
principalmente no estilo do grego de Apocalipse que é inferior ao do evangelho. A solução
mais simples consiste de dizermos que, na qualidade de prisioneiro na ilha de Patmos, no
mar Egeu, o apóstolo João não contava com o assessoramento de um amanuense que
suavizasse o seu estilo impolido, que também pode ter sofrido influência do seu estado
emocional de êxtase no ato da escrita.
No que tange ao local de origem, João escreve de Patmos, uma ilha rochosa e
escarpada com cerca de dez quilômetros de largura por quinze de comprimento, situada no
58
Mar Egeu a uns 65 quilômetros de Éfeso. A ilha era usada por autoridades romanas como
local para exílio e João diz que esse foi o motivo de ele estar ali: “por causa da palavra de
Deus e do testemunho de Jesus” (1.9).
Quanto à data a mais tradicional provável é o reinado de Domiciano (81-96 d.C.),
inclusive Irineu atribui a Apocalipse esta data e seu testemunho é muito impressionante
uma vez que ele foi discípulo de Policarpo que viveu entre (60 a 155 d.C.) e foi bispo de
Esmirna aprendendo a doutrina cristã sob a tutela do apóstolo João. Apesar de Domiciano
não haver perseguido de forma direta aos cristãos, o fato dele enfatizar sua divindade,
dando ordens para que as pessoas se dirigissem a ele como senhor e deus é um pressagio
das perseguições que viriam.
Para dar seqüência a nossos estudos precisamos saber que os pesquisadores atuais
empregam o termo “literatura apocalíptica” para descrever certo tipo de escatologia e a
palavra “apocalipse” para denotar um gênero literário. Esse gênero surge no século II a.C.
como forma de reação à perseguição e opressão. Os autores apocalípticos afirmavam
estarem transmitindo mistérios celestiais que recebiam da parte de um ser espiritual,
utilizando uma vasta gama de símbolos em seus resumos históricos. O estilo de escatologia
utilizada nesses livros “literatura apocaliptica” caracteriza-se por uma concepção dualista
da história: um mundo atual com seu pecado, rebeldia contra Deus e perseguição do povo
de Deus é fortemente contrastado com o mundo vindouro quando Deus intervirá para
estabelecer seu reino.
O Apocalipse de João apresenta três gêneros literários diferentes: o apocalipse
(revelação), a profecia (1.3) e epístola (1.4). Ele constitui um fenômeno literário complexo.
As visões constituem um retrato do final da história, na qual o mal haverá atingido seu
apogeu e Deus intervirá dando inicio a seu reino submetendo os ímpios a um julgamento e
os justos serão galardoados. Tudo isto é exposto com o objetivo de encorajar o povo de
Deus a não desistir diante das perseguições. João utiliza frases típicas do Antigo
Testamento, em especial dos livros de Daniel, Ezequiel e Isaías.
João dirige o registro de suas visões a sete igrejas da província romana da Ásia, que
abrangia aproximadamente o terço ocidental da Ásia Menor. Estas cidades estavam situadas
como centros de comunicação de tal modo que um mensageiro vindo de Patmos, trazendo o
Apocalipse, chegaria a Éfeso, viajaria por uma estrada secundária para o norte na direção
de Esmirna e Pérgamo e então iria para o leste pela estrada romana até Tiatira, Sardes,
Filadélfia e Laodicéia.
O texto Apocalipse dispõe de um número bem menor de manuscritos gregos do que
qualquer outro livro do Novo Testamento. Originalmente o Apocalipse circulou
independente do resto do Novo Testamento. O Oriente tinha suspeitas em relação ao livro e
como a maior parte dos manuscritos era produzida no Oriente, isso resultou um número
bem menor de cópias. Sobreviveram apenas cinco manuscritos em papiro. As dúvidas em
relação ao livro eram no que tangia (de acordo com a interpretação dos pais orientais) no
trato da doutrina das últimas coisas; os pais entendiam que o livro era excessivamente
centrado nas coisas terrenas, excessivamente materialista. Outro fato interessante é a
posição de Martinho Lutero em relação ao Apocalipse: “O meu espírito não se sente à
vontade com este livro. Há uma única e suficiente razão para tê-lo em pouca estima - que
Cristo não é ensinado nem reconhecido.” Extraído do prefacio à Bíblia de Lutero 1522.
Conforme observa CARSON: “... a esta altura é de se perguntar se Lutero estava lendo o
mesmo livro que temos em nossas Bíblias, o livro que faz do “cordeiro que foi morto” o
alicerce do plano de Deus para a história e a culminação da história.”(1997).
59
É importante que nenhum preconceito teológico afete nosso julgamento sobre o
lugar que Apocalipse deve ocupar no Cânon.
Para estabelecermos a contribuição de Apocalipse para nossa compreensão de
Cristo e do evangelho, precisamos tomar uma decisão quanto ao objetivo básico e o tema
do livro. A que se refém as visões de João? O que devemos aprender delas? A igreja jamais
chegou a uma posição unânime com respeito a esse assunto. O Apocalipse é um campo de
treinamento hermenêutico. Podemos classificar grande parte das interpretações em quatro
grupos:
1 – abordagem preterista. Essa abordagem também é chamada de abordagem histórica
contemporânea, é a mais comum hoje em dia. Ela insiste em que as visões de João surgem
e tratam de acontecimentos da própria época de João. Os símbolos das visões referem-se a
pessoas, países e acontecimentos do mundo da época, e o propósito de João é mostrar aos
seus leitores como Deus está na iminência de trazer juízo sobre aquele mundo que os está
oprimindo e, desse modo, livrá-los para seu reino eterno.
2 – abordagem histórica. Foram muitos os movimentos da Idade Média que surgiram a
partir de uma convicção de que o milênio estava por começar. Eles, para apoiar suas
convicções, viam em Apocalipse um esboço da história da época de Cristo até os seus
próprios dias. Essa abordagem também foi popular entre os reformadores, permitindo-lhes
identificar a besta de Apocalipse como o papado.
3 – abordagem futurista. Uma abordagem consistentemente futurista sistema que, a partir
do capítulo 4 até o final, tudo em Apocalipse se cumpre nos dias finais da história humana.
O ponto de vista também se apresenta de uma forma mais moderada, segundo a qual alguns
dos acontecimentos desses capítulos – em especial os primeiros – ocorrem na história antes
da chegada do fim.
4 – Abordagem idealista. Alguns estudiosos acreditam que estamos num caminho
totalmente errado ao tentarmos identificar os acontecimentos descritos nas visões de João.
Eles dizem que o simbolismo tem o propósito de nos ajudar a compreender a pessoa de
Deus e suas maneiras de tratar o mundo em geral, e não de nos ajudar a mapear um curso
de acontecimentos. Apocalipse nos ensina então, “a ação de grandes princípios e não
incidentes específicos”.
Existe algo de verdade em todos os pontos de vista, mas é a abordagem futurista que
mais se aproxima de fazer justiça à natureza e propósitos de Apocalipse. Como já vimos
Apocalipse adapta e modifica a perspectiva da literatura apocalíptica. Escritores
apocalípticos judeus se projetavam no tempo passado de sorte que podiam descrever a
entrada iminente do reino eterno de Deus na história como a culminação da história. Ao
escrever em seu próprio nome, João abre mão do enfoque histórico e confronta seus leitores
com uma elaborada visão do estabelecimento do reinado de Cristo na história. Apocalipse
trata de escatologia e não de história.
O ponto de vista futurista reconhece que o Apocalipse teve começo motivado pela
pressão exercida por Roma sobre a Igreja, durante o primeiro século cristão, e que o livro
falava diretamente àquela situação; mas também assegura que o volume maior da obra
descreve um período futuro angustioso e caótico, que recebe o título de “tribulação”,
seguido de perto pelo retorno de Cristo, pela inauguração do reino de Deus, pelo
julgamento final e pelo estado eterno. Os futuristas normalmente calculam que a tribulação
ou septuagésima semana de Daniel (Dn 9:24-27), terá a duração de sete anos, e que talvez
somente os últimos três anos e meio desse período é que sejam realmente angustiosos.
Outrossim, usualmente também afiançam ser veraz o ponto de vista pré-milenial, o qual
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afirma que, quando de Sua volta Cristo restabelecerá o reinado davídico sobre Israel e
governará o mundo por mil anos paradisíacos (o milênio), esmigalhará a rebelião inspirada
por Satanás que terá lugar perto do fim do milênio, e presidirá sobre o julgamento final,
antes de ter início o estado eterno.
Não existe consenso entre os futuristas (ou pré-milenistas) os quais opinam ou que a
Igreja continuará na terra durante todo o período de tribulação (pós-tribulacionismo), ou
que ela será evacuada da terra mediante uma vinda preliminar de Cristo, antes da tribulação
(pré-tribulacionismo), ou que ela será evacuada quando a tribulação estiver pela metade
(mid-tribulacionismo), ou que ela será evacuada somente quanto à sua porção piedosa,
antes da tribulação (arrebatamento parcial). As posições do pré-tribulacionismo e do pós-
tribulacionismo são as perspectivas mais largamente advogadas entre os futuristas.
Ainda que se adote o ponto de vista futurista é importante reconhecer como diz
GUNDRY H. Robert, “... que João estava escrevendo não somente para o fim desta era,
mas também para os cristãos a ele contemporâneos e, de fato, para os cristãos de cada
geração. Em particular, o conflito entre o cristianismo e os césares corresponde à peleja
entre o povo de Deus durante a tribulação (quer a Igreja ou outra porção desse povo) e o
Anticristo, o qual governará sobre o redivivo império romano. O Apocalipse retém sua
relevância de modo perene por causa da possibilidade que tem cada geração sucessiva de
ver o cumprimento do livro em suas predições” (1999).
O livro de Apocalipse contribui de forma significativa para várias áreas da teologia
do Novo Testamento. Ele transmite a idéia da soberania de Deus de uma forma que nenhum
outro escrito neotestamentário. A visão de Deus em seu trono nos ajuda a transcender além
da temporalidade circunstancial e nos render àquele que é o único digno de nossa adoração
e louvor.
A cristologia de Apocalipse é elevada, Jesus é descrito em termos apropriados
somente para Deus. Tanto o Pai como Jesus Cristo são chamados de Alfa e Omega
(1.8;22.13). Somos constantemente lembrados que o cavaleiro poderoso que vem montado
no cavalo branco é o cordeiro que foi morto. João deixa claro que tudo que Cristo faz para
dar conclusão à história humana está arraigado em sua morte sacrificial. Com seu enfoque
cirstológico, João redefiniu a típica perspectiva apocalíptica judaica.
Conforme declara CARSON, “... se conforme temos sustentado, Apocalipse gira em
torno do fim da história, então é na área da escatologia que o livro faz a sua contribuição
mais importante. Em nenhum outro lugar temos uma descrição mais detalhada dos
acontecimentos do fim; e, embora muitos intérpretes sejam culpados de enxergarem nas
visões de João muito mais detalhes do que seria permitido no simbolismo joanino e de, de
forma nada sábia, insistirem em que somente suas próprias circunstâncias se encaixam
nesses detalhes, não devemos cair no outro extremo e desconsiderar esses detalhes que João
tona relativamente claros”.
Mas é miopia pensar na escatologia apenas no sentido daquilo que acontecerá nos
tempos do fim. Pois o Fim, no pensamento bíblico, modela e estrutura o passado e o
presente. Saber como a história termina nos ajuda a entender como devemos nos encaixar
nela agora. Isso é particularmente válido porque o Novo Testamento deixa claro que
mesmo agora estamos “nos últimos dias”. Desse modo, Apocalipse nos lembra da realidade
e da gravidade do mal e das forças demoníacas que estão ativas na história. É esclarecedor
o comentário de Beasley Murray: „É irônico que o século que testemunhou a morte do
Diabo e do Anticristo na teologia tenha experimentado as mais assustadoras manifestações
da arte satânica de governar, as mais terríveis destruições causadas pela guerra e a mais
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disseminada opressão da fé cristã em toda a história.‟ As visões de João também deixam
bem clara a realidade do juízo divino. Virá o dia em que a ira de Deus será derramada, em
que as pessoas terão de dar conta de seus pecados, que o destino de cada indivíduo
dependerá de o seu nome estar ou não “escrito no livro da vida do Cordeiro”. Sem sombra
de dúvida está igualmente clara a recompensa que Deus tem reservado para aqueles que
“guardam a palavra da perseverança” e se opõem resolutamente ao diabo e seus lacaios
terrenos, mesmo ao custo da própria vida. As visões de João são uma fonte de consolo para
os crentes sofredores e perseguidos de todas as épocas.