Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Andressa Ferreira de Martini
As cotas nas universidades públicas brasileiras
Mestrado em Psicologia Social
São Paulo
2009
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Andressa Ferreira de Martini
As cotas nas universidades públicas brasileiras
Mestrado em Psicologia Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Dr. Salvador A. M. Sandoval.
São Paulo
2009
Banca Examinadora
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______________________________________
______________________________________
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho em especial
à memória de minha irmã Sandra
Regina Ferreira de Martini, que ao
partir levou um pedaço do meu
coração, mas deixou seu exemplo
de força, esperança e serenidade
para alcançar todos os sonhos em
que acreditava.
Também o dedico à memória de
meu pai Mauro de Martini e meu
avô Vicente Ferreira.
AGRADECIMENTOS
Acredito que este trabalho representa meus primeiros passos em direção
ao amadurecimento intelectual e pessoal. No decorrer do caminho, a sua
materialização contou com o apoio e colaboração de várias pessoas.
Portanto, registro aqui meu profundo agradecimento a todos que
contribuíram para que a presente dissertação se realizasse:
• Agradeço primeiramente à minha mãe que tanto amo. A sua
coragem e alegria com que vive a vida são qualidades nas quais me
inspiro para buscar ser uma pessoa melhor a cada dia.
• A Capes, que me forneceu apoio financeiro através de uma bolsa de
estudos para realizar este trabalho.
• Aos nossos entrevistados - na Unb, Unifesp e no Núcleo de
Consciência Negra da Usp - que nos disponibilizaram informações
preciosas para formação deste trabalho.
• Aos colegas do núcleo de Psicologia Política pelas contribuições
geradas durante as discussões nas aulas.
• De maneira especial, agradeço e dedico este trabalho aos meus
familiares pelas palavras de carinho e otimismo transmitidas nos
bons momentos e também nos mais difíceis.
• Agradeço à minha querida amiga Juliana, pelas dicas e idéias que
me ajudavam a refletir. A nossa longa e verdadeira amizade me faz
muito feliz e sei que continuaremos partilhando os momentos por
toda vida.
• Agradeço a Profª Drª. Palmira, a quem guardo um enorme carinho e
gratidão por me apresentar e ser inspiradora do meu interesse pelos
estudos do campo das relações raciais. Tenha certeza que aprendi
muito com os livros, mas, também, com as nossas viagens
inesquecíveis ao carnaval de Salvador. Obrigada por aceitar ler este
trabalho.
• Agradeço com carinho a Profª Drª. Sueli, que acompanhou meus
primeiros passos na vida acadêmica ainda na Faculdade de Serviço
Social. Tenha certeza que os conhecimentos adquiridos na
graduação também estão presentes nas linhas deste trabalho
desenvolvido por mim. Obrigada por aceitar ler esta pesquisa.
• Agradeço ao Profº Drº. Salvador Sandoval, quem eu considero o
verdadeiro exemplo de mestre, pois além dos conceitos e discussões
da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante as aulas com
as histórias que contava. A sua disposição em orientar este trabalho
me deixou profundamente feliz e agradecida.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo reunir os dados e as
informações referentes à implantação do sistema de cotas nas
universidades para apreender como as instituições têm tratado esse
processo. Entendemos que o ensino superior tem sido uma área
privilegiada do debate no Brasil como local para pensar os embates,
questões e hipóteses elaboradas em torno dessa proposta de ação
afirmativa.
A bibliografia especializada nos fez entender a importância da
referência norte-americana no Brasil sobre esse tema. Portanto,
reconstituímos o contexto histórico das ações afirmativas nos EUA através
do movimento de luta pela igualdade racial que reivindicou a ampliação dos
direitos dos cidadãos negros.
Na conjuntura nacional, a implantação das cotas revela que não
basta definir a reserva de vagas, pois os desafios avolumam-se quando
começam a operar, já que o alcance social inerente a ela em muito
extrapola a universidade e sua vinculação com os outros níveis do nosso
sistema educacional. Há processos políticos e sociais cruciais para a
construção do projeto nacional em jogo e a questão da supressão das
desigualdades raciais emerge como elemento central nesse sentido.
Palavras-chave: ação afirmativa, racismo, universidades brasileiras.
ABSTRACT
This work aims to gather data concerning the implementation of the
quota system in universities to learn how institutions have handled this
process. We believe that higher education has been a prime area of debate
in Brazil as a place to think the discussions, issues and assumptions made
about this proposal of affirmative action.
The specialized bibliography have done us understand the
importance of the North American reference in Brazil on this subject.
Therefore, constitute the historical context of affirmatives actions in the U.S.
through the movement of the struggle for racial equality that demanded the
expansion of the rights of black citizens.
We could note in the national context, the implementation of quotes
revels that define the reservation of vacancies only is not enough, because
the accumulating challenges when starting to operate, since the social reach
inherent to it in much beyond the university and its links with other levels of
the educational system. There are crucial social and political processes for
the construction of the national project in progress and the question of
abolition of racial inequalities emerge as a central element in that direction.
Key-words: affirmative action, racism, brazilian universities.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO______________________________________________11 A política de ação afirmativa______________________________________11 Estágio exploratório da pesquisa: nossos primeiros passos em campo_____17
2. CAPÍTULO I________________________________________________23 As Ações Afirmativas nos Estados Unidos 2.1 A referência norte-americana___________________________________23 2.2 Os conflitos raciais e a luta pela igualdade racial____________________24 2.3 Políticas de ação afirmativa no ensino superior_____________________34 2.4 A diversidade no ensino superior________________________________39 2.5 Estudos sobre o impacto da diversidade: criando ambientes inclusivos de aprendizado___________________________________________________41 3. CAPÍTULO II_______________________________________________48 A Construção das Ações Afirmativas no Brasil 3.1 O anti-racismo no Brasil______________________________________48 3.2 O Movimento pelas Reparações Já!_____________________________53 3.3 Os cursos pré-vestibulares____________________________________57 3.4 Grupo de Trabalho Interministerial______________________________62 3.5 Programa Nacional de Direitos Humanos_________________________64 3.6 Convenções Nacionais e internacionais: proposições políticas com participação popular_____________________________________________65 3.7 A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial___70 4. CAPÍTULO III_______________________________________________74 Os Aspectos Institucionais da Implantação das Cota s nas Universidades Públicas 4.1 Ação afirmativa: elementos da agenda governamental para o ensino superior______________________________________________________74 4.2 As universidades públicas brasileiras____________________________78 4.3 A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)__________________82
4.3.1 As primeiras leis que definiram as cotas na Uerj_______________82 4.3.2 O vestibular 2003_______________________________________84 4.3.3 Os primeiros programas de permanência____________________86
4.4 A Universidade de Brasília (Unb)_______________________________90 4.4.1 A proposta das cotas para estudantes negros_________________90 4.4.2 O vestibular 2004_______________________________________93 4.4.3 Programas de apoio aos cotistas___________________________97
4.4 A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)___________________99 4.4.1 A proposta das cotas____________________________________99 4.4.2 O vestibular 2005______________________________________101 4.4.3 Programas de auxílio aos cotistas_________________________103
5. Capítulo IV ______________________________________________105
Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas Univ ersidades Públicas
5.1 O princípio da igualdade e a ação afirmativa___________________105 5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e comunitaristas_______108 5.3 Os manifestos pró e contra as cotas_________________________111 5.4 Os casos de racismo nas universidades______________________115 6. Considerações Finais ____________________________________120 7. Bibliografia _____________________________________________122 8. Anexo I – Lista das universidades com cotas___________________127 9. Anexo II – Manifestos contra e a favor das cotas________________129 10. Anexo III – Roteiros das entrevistas_________________________137
11
INTRODUÇÃO
1.1 A política de ação afirmativa
“Jamais como em nossa época foram postas em discussão as três
fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça, o sexo e a classe
social”. Norberto Bobbio
A crença de que as sociedades devem aspirar tratar seus membros de
forma igualitária e combater as desigualdades de origem racial e étnica
ocupa uma posição central no que diz respeito ao debate das políticas de
ação afirmativa. Entende-se que os argumentos da sua justificação pública
apontam, em primeiro lugar, para a discussão de como as esferas
institucionais ao longo da história discriminaram por razões étnicas, raciais e
de gênero determinados grupos e indivíduos dificultando seu acesso aos
frutos do desenvolvimento do país, tais como a participação em processos
decisórios, acesso à saúde, à educação, ao emprego, aos bens materiais e
às redes de proteção social.
Num segundo momento, compreende-se que as bases democráticas
de uma sociedade multicultural, ou seja, que aglutina diferenças étnicas,
raciais, de origem nacional e lingüística e quando essas situam
freqüentemente os homens numa posição de desvantagem em relação aos
membros de outro grupo e realçam elementos para o tratamento desigual
levam à exigência do reconhecimento de que esse quadro constitui um
obstáculo ao desenvolvimento humano e social e que, portanto deve ser
alterado.
Desse modo, as ações afirmativas concentram o debate, primeiro
acerca da relação entre a destinação dos recursos públicos e o bem-estar
coletivo (Gomes, 2003), ou seja, “interferem em questões que remontam à
própria origem da democracia moderna, suscitando questionamentos acerca
de temas fundamentais do modelo de organização política preponderante no
12
hemisfério ocidental” (Gomes, 2003: 32), e ainda, como manter o equilíbrio
entre a acumulação e a equidade no país (Silvério, 2002).
Em segundo lugar, as ações afirmativas introduzem questões como a
busca pela afirmação das identidades étnicas e culturais atrelada aos
interesses econômicos e as reivindicações políticas dos grupos e indivíduos,
que se orientam também pelos fatos históricos, ou seja, reportam-se aos
recursos da memória como justificação para que sejam garantidos os direitos
que lhes foram furtados e que, portanto devem ser compensados. Por
exemplo, em relação aos negros as disparidades econômicas e sociais de
hoje são apontadas como conseqüências derivadas do período da
escravidão1.
Com efeito, Taylor nos aponta que determinados grupos buscam a
legitimidade pelo reconhecimento das suas especificidades culturais onde “la
exigencia aparece em primer plano, de muchas maneras, en la política
actual, formulada en nombre de los grupos minoritários o “subalternos”, en
algunas formas de feminismo y en lo que hoy se denomina la política del
“multiculturalismo” “ (1992). Assim como bem nos diz Taylor o desejo pelo
reconhecimento é fomentado pelo ideal de dignidade humana que aponta
para dois eixos: a proteção dos direitos dos indivíduos enquanto seres
humanos e o reconhecimento das necessidades particulares de cada
indivíduo enquanto membro de grupos culturais específicos.
O objetivo de estabelecer democracias multiculturais passou a integrar
o programa político de vários países e a agenda dos movimentos sociais,
pois “em todo o mundo, grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos
locais, suas identidades étnica, cultural e religiosa” (D’Adesky, 2005: 21) em
função da busca pelo reconhecimento de que não conseguiriam superar
quadros históricos de discriminação e pobreza se os Estados não se
comprometessem a aplicar investimentos públicos preferenciais.
1 O mecanismo da compensação pode ser entendido como “a regulação posterior, por meio de um dispositivo suplementar numa dada sociedade, para contrabalançar fontes conhecidas e reconhecidas socialmente de erros e/ou injustiças sociais. Enquanto política de Estado, na atualidade, a compensação tem ocorrido de duas formas distintas: por meio das chamadas políticas de ação afirmativa (affirmative action) e das reparações” (Silvério, 2002: 91).
13
Em alguns contextos nacionais como a Malásia, a Índia, a África do
Sul, a Europa Ocidental2 e os Estados Unidos a ação afirmativa foi
transformada em política pública e item obrigatório da bandeira dos
movimentos sociais há mais de 40 anos com o objetivo de criar
oportunidades para ascensão social de determinados grupos e corrigir as
desigualdades que o racismo e o sistema de segregação produziram. Em
outras palavras, os Estados passaram a levar em conta na implementação
das suas deliberações fatores como a raça, o sexo, a origem nacional e a
etnia.
Nos países em que foi aplicada seja no mercado de trabalho pela
contratação ou promoção de minorias ou nas universidades públicas, a ação
afirmativa ganhou forma de programa de ações e políticas governamentais
ou privadas, leis ou orientação de decisões jurídicas3. Os teóricos do direito
no Brasil trazem os elementos que explicam o enquadramento jurídico da
política: “a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos
desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma
forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na
sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica
efetiva; por ela afirma-se uma forma jurídica para se provocar uma efetiva
igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como
assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A
ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou
a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias” (Gomes, 2003: 28).
No plano jurídico discute-se ainda sobre a implementação do princípio
constitucional da igualdade, ou seja, o cerne do debate concentra-se no fato
de que o Estado deveria garantir certa “neutralidade processual” (Gomes,
2002) ou pelo contrário deveria criar mecanismos contemporâneos de
política orientador de ações que possibilitem a realização da igualdade de
2 Na Europa a política ficou conhecida pelo nome de discriminação positiva (discrimination positive) e ação positiva (action positive). 3 “No pertinente às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado)” (Gomes, 2002: 142).
14
resultados ou material entre os membros da nação. Gomes nos aponta que
“as nações que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal
são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça (...) já a
chamada igualdade de resultados tem como nota característica exatamente
a preocupação com os fatores “externos” à luta competitiva – tais como a
classe ou origem social, natureza da educação recebida - , que tem inegável
impacto sobre o seu resultado” (2002: 38).
Ainda com base nos aspectos conceituais da política os autores
assinalam que: “a ação afirmativa corresponde a qualquer medida que aloca
bens – tais como o ingresso em universidades, empregos, promoções,
contratos públicos, empréstimos comerciais e o direito de comprar e vender
terra – com base no pertencimento a um grupo específico, com o propósito
de aumentar a proporção de membros desse grupo na força de trabalho, na
classe empresarial, na população estudantil universitária e nos demais
setores nos quais esses grupos estejam atualmente sub-representados em
razão de discriminações passadas ou recentes” (Zoninsein; Junior, 2005:21).
No Brasil, a discussão teórica sobre a ação afirmativa é considerada
quase desconhecida pela maioria das pessoas, no entanto, não é de todo
estranha à história do nosso país. Com efeito, o Brasil já conheceu uma
modalidade de ação afirmativa concretizada na chamada Lei do Boi (Lei
5.465/68),
“Cujo art. 1º era assim redigido: os estabelecimentos de ensino médio
agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidas pela
União, reservarão, anualmente, de preferência, cinqüenta por cento de suas
vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de
terras, que residam com suas famílias na zona rural, e trinta por cento a
agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em
cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio”
(Gomes, 2003: 17).
A década de 1990 foi um período em que a ação afirmativa começou
a deixar de ser um tema desconhecido entre nós, tanto em sua concepção
quanto nas suas formas de implantação. Na conjuntura nacional, a
confluência de fatos históricos trazidos pelo movimento negro, os programas
15
desenvolvidos por organizações não-governamentais (Ongs), a inserção da
proposta das ações afirmativas nas plataformas eleitorais dos governantes,
as iniciativas e os programas promovidos pelo governo federal, a veiculação
de informações na imprensa e a implantação das cotas nos vestibulares se
configuraram como palco para discutir as implicações imediatas e futuras da
adoção de tais políticas.
Diante disso, as observações que se voltam para todo esse contexto
deixam entrever as expectativas que temas como as relações raciais, a
democratização do acesso ao ensino superior público, a função social da
universidade pública, o comprometimento por parte do poder público em
encampar programas e políticas que considerem as desigualdades entre os
segmentos da nossa sociedade, as avaliações em relação à qualidade e à
eficiência da ação afirmativa, entre outros, suscitam na opinião púbica
brasileira.
Hoje, as universidades públicas concentram as atenções no que diz
respeito às ações afirmativas, entendemos que se trata de um processo em
curso, cujas informações estão sendo gradativamente sistematizadas, e por
isso merecem um olhar mais criterioso por parte dos pesquisadores que
podem produzir dados para aprimorar a discussão. Entendemos que as
experiências das cotas nas universidades é algo que deve ser mais
observado e explorado analiticamente, pois poderão ser utilizadas como
respaldo para lapidar a replicação dessa política no momento atual em que
está sendo difundida em todo país. A implantação das cotas nos mostra que
não basta definir a reserva de vagas, pois os desafios avolumam-se quando
começam a operar, já que o alcance social inerente a ela em muito extrapola
a universidade e sua vinculação com os outros níveis do nosso sistema
educacional. Há processos políticos e sociais cruciais para a construção do
projeto nacional em jogo e a questão da supressão das desigualdades
raciais emerge como elemento central nesse sentido.
O ensino superior tem sido uma área privilegiada do debate no Brasil
como local para pensar os embates, questões e hipóteses elaboradas em
torno dessa proposta de ação afirmativa. Portanto, o presente estudo não
traz nenhuma indagação a ser respondida, ao contrário, optamos em realizar
16
uma pesquisa documental para reunir dados e informações de como as
universidades têm tratado o desafio das cotas. É verdade que as próprias
instituições ainda têm uma certa dificuldade no trato com os dados do
vestibular, desempenho acadêmico, índices de evasão e número de alunos
com aprovação nas disciplinas, tudo isso para acompanhar e avaliar a
trajetória dos estudantes cotistas, revelar as limitações e possíveis falhas das
universidades para aprimorar o sistema de cotas.
Por esse motivo, consideramos um desafio e ponderamos a
dificuldade em sistematizar os dados que compõem nossa pesquisa, uma
vez que os registros ainda são quase inexistentes. Mais adiante é possível
observar que trouxemos os dados do primeiro vestibular para análise já que
esses estavam mais disponíveis talvez pelo fato da inovação que as cotas
representavam no início.
Sendo assim, apresentamos no primeiro capítulo o desenvolvimento
da ação afirmativa nos Estados Unidos, onde as experiências completam
mais de quarenta anos. Reconstituímos seu contexto histórico através do
processo de luta pela igualdade racial que reivindicou a ampliação dos
direitos dos cidadãos negros; as formas que a ação afirmativa assumem nas
universidades e por fim os estudos sobre diversidade que avançam na
década de 1990.
No segundo capítulo, contextualizamos o debate sobre a política de
ação afirmativa no Brasil interpretada como instrumento de combate ao
racismo e de democratização do acesso ao ensino superior público.
Destacaremos o surgimento do Movimento Pelas Reparações Já!,
considerado o marco das discussões sobre reparações e ação afirmativa no
Brasil; discutiremos sobre a difusão pelo país ao longo dos anos 1990 dos
cursos pré-vestibulares para alunos negros e carentes considerados como
uma estratégia do movimento negro nas décadas de 1970 e 1980 que já
atuavam no sentido de aumentar o número de estudantes negros nas
universidades públicas; destacaremos as ações governamentais em prol da
ação afirmativa e as convenções nacionais e internacionais que situam a
ação afirmativa nos seus parágrafos.
17
No terceiro capítulo, procuramos entender como os atores
envolvidos nesse processo no Brasil estão entendendo as ações afirmativas,
para tanto, destacamos a agenda governamental do MEC em parceria com
outros órgãos no que se refere ao acesso e permanência dos estudantes nas
universidades; começamos a esboçar o quadro das universidades brasileiras
que implantaram as cotas através de dados que ilustram formas de
implantação, porcentagem de reserva de vagas e a quem se destinam;
destacamos três universidades para uma análise mais detalhada: Uerj, Unb e
Unifesp onde enfatizamos a diversidade de formas de implantação das cotas,
então mencionada, que nos possibilitou observar que esse processo não foi
uniforme e obedeceu a diferentes procedimentos e propostas internas
aperfeiçoadas ao longo do tempo com o auxílio de acadêmicos, militantes e
estudantes até ser aprovada pelos conselhos universitários; destacamos os
dados do primeiro vestibular em cada universidade e por fim os programas
de permanência encampados.
No quarto capítulo, analisamos as questões teóricas trazidas pela
idéia de igualdade subjacente as políticas de ação afirmativa; em seguida
analisamos as polêmicas suscitadas através do manifesto contra e a favor
das cotas que revelou publicamente posicionamentos e argumentos distintos
sobre a ação afirmativa no país; e por fim analisaremos os casos de racismo
nas universidades.
***
1.2 Estágio exploratório da pesquisa: nossos primeiros
passos em campo
Uma vez esboçado o propósito geral deste estudo, duas tarefas
igualmente importantes foram conciliadas: revisão da literatura referente à
questão com a qual nos ocupamos (políticas de ação afirmativa) e acesso
aos materiais de fontes primárias. No primeiro caso, nos dirigimos às
bibliotecas das seguintes universidades: PUCSP, USP e UNB (Universidade
de Brasília) nas quais acessamos livros, teses, dissertações e periódicos. Já
no que diz respeito às fontes primárias acessamos materiais de encontros,
congressos, eventos, seminários, plenárias, jornais e Internet os quais
18
visavam discutir propostas de combate às desigualdades raciais e a
emergência do debate público sobre políticas de ação afirmativa.
A partir daí foi possível observar que a década de 1990 representou
um marco no que diz respeito ao aumento das pesquisas sobre a temática
das relações raciais no campo da educação elaboradas dentro de diferentes
áreas do conhecimento das ciências humanas e sociais no Brasil. Nesse
sentido, paralelamente, uma parcela cada vez maior dessas pesquisas
começou a suscitar questões referentes à participação da população negra
no ensino superior.
A trajetória que descreve a relevância dos estudos deve ser
observada a partir da confluência entre os setores organizados da sociedade
que se estruturam no campo do anti-racismo, a produção do conhecimento
acadêmico e a atuação dos poderes públicos. Além disso, soma-se o
aumento do ingresso de pessoas engajadas na militância política em cursos
de graduação e pós-graduação que veio a corroborar com a criação dos
Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) nas universidades públicas
confirmando o crescente debate no campo racial.
Destacamos, ainda, que o aumento no volume das produções
acadêmicas das relações raciais também pode ser observado por nós
através da participação no II Encontro Regional de Pesquisadores Negros,
realizado no ano de 2006 em São Paulo, no IV Congresso Nacional de
Pesquisadores Negros(COPENE) também no ano de 2006, realizado em
Salvador e no V COPENE realizado em Goiás no ano de 2008.
Face ao exposto, constatamos que a literatura especializada sobre
políticas de ação afirmativa remonta o final da década de 1990, o que
configura o seu caráter relativamente novo e a escassez de estudos nessa
área. De modo predominante, o maior volume de produções sobre o tema se
dão nos campos das Ciências Humanas e Sociais e da Educação e
associam-se a implementação da política de cotas no vestibular da UERJ
(Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Até este período, a maioria das
pesquisas encontrava-se centrada em torno das propostas teóricas do
multiculturalismo, que lança a problemática dos direitos das minorias em
19
sociedades que aglutinam diferenças étnicas, raciais, de origem nacional e
lingüística, como indutor de políticas públicas.
A partir de então, a exemplo da UERJ, um grande número de
universidades passaram a discutir e implantar as cotas nos seus
vestibulares, o que se refletiu no aumento do número de pesquisas que
buscavam compreender as representações sociais das políticas de ação
afirmativa, sua possível contribuição na redução das desigualdades raciais e
sociais e na democratização do acesso ao ensino superior, os aspectos da
formação identitária de estudantes negros e as implicações negativas do
racismo e do preconceito e a avaliação do impacto de políticas específicas
para ingresso no ensino superior.
Dados como estes nos indicaram o surgimento de uma nova
tendência sobre a compreensão das relações raciais já que conta com o
aumento da participação da população negra nas esferas do governo4, nos
processos de decisão e nas universidades, onde a implantação das cotas
acompanha esses anseios.
Esses primeiros procedimentos da pesquisa dirigiram nossa atenção
no sentido de compilar uma quantidade razoável de informações sobre as
políticas de ação afirmativa. Desse modo, assumiu-se o entendimento sobre
a definição dessas políticas, quais seus objetivos, em que conjuntura política
e social emerge no Brasil, a sua origem em outros contextos nacionais, as
áreas do conhecimento em que há produção teórica acerca dessa temática
além do número de universidades que aderiram as cotas raciais e sociais no
seu vestibular5 (vide anexo I).
Ainda no que diz respeito às fontes primárias, estávamos
particularmente interessados em apreender o processo de implantação das
cotas nas universidades públicas a partir do relato dos atores que
participaram desse momento. Sendo assim, o critério de seleção das
universidades que iríamos visitar foi delimitado por nós pela viabilidade do
4 A partir da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1995 a questão racial ganhou um novo impulso e passou a ser introduzida na agenda pública com a gestão do governo Fernando Henrique Cardoso. 5 O Programa Políticas da Cor da UERJ contabiliza 43 universidade com o sistema de cotas. Fonte: http://152.92.152.60/web/olped/acoesafirmativas/universidades_com_cotas.asp .
20
acesso, ou seja, não tínhamos a pretensão formal de percorrer diversas
universidades para tomar conhecimento das questões geradas pela cotas e,
portanto, acompanhamos as informações que eram veiculadas pelos meios
de comunicação. Sendo assim, pelo fato de residirmos em São Paulo,
consideramos a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e fora do
estado optamos pela UNB na qual não obtivemos dificuldades para acessar.
No presente trabalho também consideramos a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (Uerj), apesar de não realizarmos visita, já que se trata de
uma das universidades pioneiras na implantação das cotas. Neste caso,
extraímos informações de publicações, Internet e jornais informativos
internos.
Outro procedimento por nós adotado foram as entrevistas. Fomos à
USP no Núcleo de Consciência Negra para coletar informações sobre o
movimento que inaugurou a discussão sobre reparações e ação afirmativa
no Brasil. Na Unb fomos recebidos por representantes do EnegreSer, um
coletivo de estudantes negros, e também por estudantes do Centro de
Convivência Negra que nos relataram sobre a construção do projeto das
cotas e os conflitos internos na universidade. Já na Unifesp, coletamos
através das entrevistas dados sobre o caminho que se percorreu para
esboçar o projeto de ação afirmativa, o vestibular e os programas de
permanência.
Como mencionamos anteriormente, a maior dificuldade residiu em
coletar os dados devido a falta de sistematização por parte das
universidades.
Procuramos também situar porque e quais são as ações institucionais
promovidas na universidade após a implantação das cotas para entendermos
se essas foram criadas a partir de problemas surgidos no campus ou não e
porque acreditávamos que esse canal poderia nos informar sobre as
questões mais incidentes trazidas pelos alunos cotistas.
O núcleo de promoção da igualdade racial da Unb é um exemplo de
ação institucional criada após as cotas, inaugurado por uma professora da
área da educação que conta com o apoio de alunas e ex-alunas da
universidade. Essa proposta surgiu após a exacerbação de ataques racistas
21
sofridos pelos africanos que residem nas repúblicas e que se estenderam
também a outros alunos negros através de pichações e agressões verbais,
portanto esse núcleo foi pensado com o objetivo de frear tais atitudes e
comportamentos. Como missão, o núcleo se propõe a implantar ações junto
à coordenação dos cursos orientados pela transversalidade da questão
racial.
No conjunto de informações obtidas destacou-se o fato de que os
entrevistados reclamam da ausência de uma ouvidoria que registre
formalmente as denúncias de racismo na universidade, pois o que existe por
enquanto é apenas um projeto de criar um canal de denúncias em parceria
com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) e a Secretaria de Direitos Humanos. Segundo nossos
entrevistados, as manifestações de racismo tomaram uma proporção maior
com a implantação das cotas e por isso os respaldos jurídicos e psicológicos
precisam ser aprimorados.
Ainda em relação às informações coletadas na UNB observamos um
aspecto recorrente nas falas dos informantes durante o trabalho de campo
que apontavam para as experiências de discriminação racial enquanto fio
condutor das ações institucionais e das interações sociais.
Em relação ao suporte institucional disponibilizado pela Unifesp,
segunda universidade visitada por nós, pudemos observar que existe uma
preocupação em evitar a evasão dos alunos de baixa renda, garantir a esses
alunos uma formação de qualidade frente às desvantagens sócio-
educacionais que trazem consigo para universidade e evitar qualquer
situação de preconceito e discriminação étnica e racial no campus.
Ao reunirmos as informações fornecidas pelos alunos detectamos que
alguns apesar de expressarem um desconforto com a contradição entre o
benefício das cotas e as noções de mérito individual admitiram que as cotas
raciais são encaradas por eles como o uso estratégico de um mecanismo
que poderia atuar em contextos competitivos, mas também chamam atenção
para a rejeição, por vezes velada, de alguns alunos que não encaram as
cotas como um recurso legítimo.
22
O fato de haver diferenças nas percepções e nas valorações das
cotas raciais fez com que alguns informantes nos relatassem que nunca
houve ataques ou agressões mais explícitas em relação aos estudantes
negros porque na UNIFESP haveria uma a tendência maior em diluir o
problema racial na questão social, no entanto, nos comunicam que é
evidente uma forma mais velada de manifestação dos preconceitos durante
as conversas.
Ao contrário da UNB, o discurso de alguns informantes sobre as
experiências de discriminação racial durante a vida não aparece como
elemento central para se pensar ações institucionais mais concretas na
universidade, no entanto, alguns entrevistados nos trouxeram a necessidade
de criar na universidade um setor formal que pudesse ser responsável por
denúncias de racismo, pois acreditam que seria uma forma de incentivar os
registros que são recorrentes no campus.
Por fim, nas linhas que se seguem analisaremos com maior detalhe
todas as informações aqui anunciadas.
23
CAPÍTULO I
As Ações Afirmativas nos Estados Unidos
“ Os esforços recentes para aumentar o acesso à prosperidade
norte-americana têm se baseado em políticas preferenciais”.
Cornel West
2.1 A referência norte-americana
A recente literatura, os estudiosos e pesquisadores em sua grande
maioria identificam nos Estados Unidos a principal referência para discussão
sobre políticas públicas voltadas para questão racial no Brasil, apesar das
experiências de ação afirmativa não estarem restritas aquele país. Esta
aproximação não é algo recente, as situações raciais brasileiras e norte-
americanas vêm sendo analisadas comparativamente há vários anos, e tem
influenciado a maneira como percebemos e respondemos ao racismo
existente no país.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que retomar a experiência da
sociedade norte-americana nos trará elementos para compreender o que são
as ações afirmativas, isso porque as conquistas do movimento negro nos
EUA, dentre elas a Lei dos Direitos Civis de 1964 são referências para o
movimento negro brasileiro. É verdade que se trata de contextos nacionais
diferentes, ou seja, onde as relações raciais possuem configurações
distintas, entretanto, a legitimidade que os movimentos sociais de combate
ao racismo adquiriram em relação a esse tema tomou proporções
semelhantes em ambos países.
As primeiras políticas de ação afirmativa implementadas nos EUA
podem ser observadas a partir da década de 1960. Dirigidas inicialmente à
população negra, posteriormente foram estendidas às mulheres e depois a
algumas minorias étnicas e estrangeiros. À época, o país se viu diante de
reivindicações democráticas internas, expressas principalmente no
24
movimento pelos direitos civis, defendendo a ampliação da cidadania e a
igualdade de oportunidades para todos. Nesse momento, estão sendo
eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país e o movimento negro é
uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional,
apoiados por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa
dos direitos civis. É nesse contexto que as ações afirmativas surgem fazendo
com que o Estado, além de garantir leis anti-segregacionistas, viesse a
assumir uma postura mais ativa em benefício dos negros. Em variadas
áreas, diversas ações semelhantes foram desencadeadas e os EUA
completam hoje mais de 40 anos de experiências.
2.2 Os conflitos raciais e a luta pela igualdade ra cial
“A lei não pode fazer com que a pessoa me ame, mas pode fazer com
que ela não me elimine”.
Martin Luther King
Em 1863, durante a Guerra de Secessão, foi extinto o sistema
escravista nos EUA. Em 1865, iniciou-se o período de Reconstrução, quando
foram aprovadas a Emenda nº 14, que estabeleceu que os negros eram
cidadãos plenos do país e proibiu que os estados lhes negassem proteção
igualitária e processo judicial justo, e a Emenda nº 15, garantindo que
“nenhum estado deve negar a qualquer pessoa (...) a igual proteção das
leis”, e o direito ao voto não seria negado ou manipulado com base na raça.
No entanto, simultaneamente a primeira lei segregacionista foi votada no
Tennesse e os demais estados sulistas gradativamente seguiram assumindo
essa postura associada ao período da escravidão (Russell, 2006).
Ao acompanharmos o transcurso das relações raciais nos Estados
Unidos encontramos um turbilhão de conflitos protagonizado por leis e
políticas de segregação que dominaram grande parte da vida pública. Esse
período que se deu após a guerra civil e se estendeu depois da metade do
25
século XX foi marcado pela era Jim Crow6 que aplicava distinções legais
entre negros e brancos, consolidando as desigualdades que já existiam num
profundo antagonismo racial. Essa orientação consolidou-se em 1986, no
caso judicial Plessy versus Ferguson quando a Suprema Corte deliberou que
leis estaduais requerendo a separação de grupos raciais eram permitidas
pela Constituição desde que acomodações iguais fossem destinadas a cada
um, instituindo a doutrina do “separados-mas-iguais”. A opinião da Corte
refletia a visão de que a lei não poderia ser usada para forçar as pessoas a
interagirem se elas assim não o desejassem. Essa decisão permitiu a criação
de estabelecimentos públicos distintos para brancos e negros que circulavam
de acordo com os espaços demarcados para cada grupo. Tal prática foi
implantada não apenas nos estados sulistas, onde era legalizada, mas
também no norte do país, ainda que de maneira menos formal (Chambers,
1993).
Em meados do século XX já era anunciado o declínio do sistema
segregacionista, e seu marco histórico veio em 1954, com o caso Brown
versus Board of Education, em favor do fim da segregação racial nas
escolas. Essa decisão gerou um grande impacto nacional e teve um
importante papel como catalisadora do movimento pelos direitos civis, mas
foi apenas o primeiro passo na transformação de costumes e práticas
fortemente arraigados no país.
A transparência do racismo individual e institucional como causas da
desigualdade racial tornou-se mais nítida com a contribuição do foco de
pesquisas sobre atitudes raciais. Em 1954 no processo judicial mencionado,
a Suprema Corte dos Estados Unidos utilizou como base para suas
deliberações as pesquisas científicas que através dos estudos de
identificação e atitude racial traziam como resultados a auto percepção racial
negativa adquirida precocemente pelas crianças negras. Portanto, tais
estudos respaldaram as decisões judiciais naquele período e assim eram
apresentados como prova de que a segregação deveria ter um fim. Com
6 “O termo Jim Crow era usado nos Estados Unidos como um nome genérico para tratar uma pessoa negra. Jim seria uma variante de Jemmy e Crow seria vangloriar-se. O termo Jim Crow era o refrão de uma melodia popular sobre o negro: Wheel about and turn about and jump Jim Crow” (Moehlecke 1999: 22).
26
isso, ao declarar inconstitucional a separação de alunos com base na raça
essa decisão não foi isenta de críticas e resistências fazendo com que a
integração nas escolas levassem uns dez anos para acontecer (Jones,
1973).
A vitória no caso Brown ocorreu em 1954,
“O primeiro decreto a respeito foi emitido somente em 1955 e o prazo
para o cumprimento foi até 1956. Em 1955, em oito estados do sul, nenhuma
criança negra havia sido admitida em qualquer escola pública para crianças
brancas” (Muse, 1966: 33).
No ano seguinte foi lançado o Manifesto Sulista, atacando a decisão
do caso Brown e desafiando tanto a Suprema Corte como o governo central,
sendo significativa a atuação de representantes do povo nas assembléias
estaduais e no Congresso Nacional, juntamente com a criação do Conselho
de Cidadãos Brancos em Mississipi que se disseminou rapidamente por todo
o sul para protestar contra os meios legais que garantiam o fim das leis
segregacionistas. Esse momento foi acompanhado por opiniões divergentes
e questões como
“Se as leis seriam capazes de mudar as atitudes e os costumes dos
norte-americanos brancos, sendo que se reuniam cada vez mais fatos para
documentar as desvantagens e as conseqüências negativas de ser negro
nos Estados Unidos” (Jones, 1973: 35).
Crescia o interesse dos intelectuais em pesquisar os efeitos da
integração em crianças negras e brancas, nesse sentido,
“O estudo através de atitudes desenvolveu-se a partir da teoria de
que o contato reduz o conflito entre grupos. Na década de 30, os psicólogos
sociais tentaram, sobretudo descrever as atitudes, na década de 50,
focalizou-se a maneira de mudar atitudes” (Jones, 1973: 37).
Diante do turbilhão de relações conturbadas na sociedade norte-
americana os meios para reforçar a oposição à integração racial iam se
disseminando pelos estados. Um caso amplamente divulgado ocorreu em
uma escola de ensino médio em Little Rock, no estado de Arkansas, quando
o governador apoiou a resistência de moradores brancos à integração e
ordenou que a guarda estadual bloqueasse o acesso de nove estudantes
27
negros. Diante dos violentos conflitos que se seguiram, o então presidente
norte-americano Dwight Eisenhower enviou tropas federais para garantir
proteção aos estudantes negros na escola. Esse momento se configurou
como o primeiro envolvimento do governo federal nesse processo, mas ainda
de forma cautelosa (Muse, 1966).
No cotidiano,
“A pressão pela dessegregação das escolas ficou a cargo da National
Association for the Advancement of Colored People (NAACP), entidade da
sociedade civil que impetrou o processo judicial do caso Brown e que
anteriormente desenvolveu diversas ações semelhantes para questionar o
sistema vigente7” (Muse, 1966: 152).
A educação, especialmente as escolas públicas, desempenhou um
importante papel no desenvolvimento dos EUA como “terra das
oportunidades”. A Corte examinou os efeitos da segregação sobre o ensino
público e deu o parecer de que,
“A educação constituía talvez a mais importante função do governo,
consistindo no principal instrumento para despertar a criança para valores
culturais, prepará-la para treinamento profissional posterior e auxiliá-la a
ajustar-se normalmente a seu ambiente (...) mesmo havendo igualdade entre
as escolas públicas segregadas, estas privavam as crianças de minorias da
igualdade quanto a oportunidades educacionais (...) gerando um sentimento
de inferioridade relativo a seu status na comunidade, o que pode afetar seus
corações e mentes de um modo dificilmente remediável” (Russell, 2006:
208).
No entanto, o processo de dessegregação racial na área educacional
trouxe casos paradoxais que desafiaram as leis e a postura da Corte
americana. Confrontados com a perspectiva da integração racial em suas
escolas, alguns estados sulistas iniciaram um movimento pelo fechamento de
escolas públicas e extinção de fundos educacionais,
7 “A NAACP foi fundada em 1910 por W. E. B. du Bois, Jane Addams, John Dewey e outros com o objetivo de atacar as bases legais da subordinação racial, durante o sistema Jim Crow. Procurava garantir, inicialmente, condições iguais para os negros dentro do apartheid racial” (Muse , 1966: 152).
28
“Temendo que a integração fosse imediatamente imposta, diversas
centenas de irados cidadãos brancos (do condado de Prince Edward,
Virgínia) surgiram diante da junta para instar que o condado abolisse as
escolas públicas. A junta agiu em conformidade: por unanimidade de votos,
aboliu todos os fundos para atividade escolar. Em uma reunião maciça, a 7
de junho de 1955, com o comparecimento de uns 1.300 cidadãos, foi
formada uma organização e lançada uma campanha para levantar fundos
com a intenção de providenciar escolas particulares para as crianças brancas
do condado” (Muse, 1966: 33).
Entretanto, como as escolas privadas eram quase inexistentes, as
conseqüências dessas medidas, como a permanência de crianças brancas e
negras fora da escola, geraram insatisfações que acabaram por enfraquecer
o movimento. Em 1966, o transporte público de crianças negras para escolas
predominante brancas e vice-versa, conhecido como busing, passou a ser
usado como instrumento para a dessegregação, principalmente em áreas
rurais do sul do país. No norte, essa prática foi utilizada apenas no início dos
anos 1970, através de ordem judicial e como última alternativa para tentar
integrar as escolas que permaneciam, na prática, segregadas (Muse, 1966).
Nesse sentido, um olhar sobre o contexto norte-americano até o
presente momento nos revela que a década de 1950 se configurou como
pano de fundo para as complexidades das relações raciais na década de
1960. As decisões da Suprema Corte intensificaram os conflitos entre
brancos e negros pois suscitaram o surgimento das exigências de direitos
iguais por parte dos negros e a resistência da população branca; a década
de 1950 também definiu a importância de intelectuais especializados no
campo racial que realizavam estudos sobre os efeitos da integração na
sociedade.
As hostilidades e reações violentas que as ações para a integração
racial e extensão do ideal da igualdade à população negra encontraram
explicitam o quão profundo era o “problema da linha de cor”, definido por
W.E.B. Du Bois como a questão central a ser enfrentada pelo país no século
XX (West, 1994). West, em seu curso de Estudos sobre a Cultura Afro-
Americana a respeito da obra The souls of black folk, de W.E.B. Du Bois,
29
destaca o trecho das discussões sobre a questão racial pautada no
“problema da linha de cor”, mencionada na referida obra,
“Eles se aproximam de mim com um jeito meio hesitante, olham-me
com curiosidade ou compaixão e então, em vez de dizer diretamente “Como
é sentir-se um problema?” eles dizem “Conheço um excelente homem de cor
em minha cidade”. (...) Esses ultrajes sulistas não fazem seu sangue ferver?
Quando eles acontecem, sorrio, demonstro interesse ou controlo um pouco a
fervura, conforme exija a ocasião. A verdadeira pergunta, “Como é sentir-se
um problema?”, eu raramente respondo” (West, 1994: 18).
West nos aponta ainda que para abordar com eficácia a questão racial
nos EUA não se podem restringir as discussões aos “problemas” que os
negros representam para os brancos, mas sim ponderar a respeito do que
esse modo de ver os negros revela sobre a nação norte-americana,
“Precisamos começar não pelos problemas dos negros, mas pelas
imperfeições da sociedade norte-americana - imperfeições que têm suas
raízes em desigualdades históricas e em estereótipos culturais há muito
existentes. A maneira como estabelecemos os termos para debater os
problemas raciais determina nossa percepção e reação a eles. Enquanto os
negros são vistos como “eles”, recai-lhes o ônus de todo o trabalho “cultural”
e “moral” que deve ser feito a fim de obter relações raciais sadias. A
implicação disso é que apenas certos norte-americanos podem definir o que
significa ser norte-americano- e o resto simplesmente “adequar-se” “ (West,
1994: 19).
Gunnar Myrdal (1944) ao analisar a situação racial norte-americana,
observa o que chama de “dilema americano”: o racismo como uma anomalia
da democracia liberal. Sob a influência de um governo democrático nos anos
1960, os movimento sociais exploraram essa contradição.
Nomear um problema é o primeiro passo para busca de uma solução,
dizia James Baldwin (West, 1994). Em 1955, Rosa Park, uma senhora negra
que se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um indivíduo branco na
cidade de Montgomery, estado do Alabama, foi presa. Esse fato deu origem
a um intenso boicote no transporte público por parte da comunidade negra
local. Nos anos de 1960, os protestos e as reivindicações pelos direitos civis
30
intensificaram-se desafiando o ideal democrático americano a efetivar-se.
Ainda em 1960, quatro estudantes universitários iniciaram um protesto
pacífico contra a segregação racial em um restaurante exclusivo para
brancos no estado da Carolina do Norte. Tal protesto ficou conhecido como
sit-in, onde a mera presença de cidadãos negros naquele que não era o “seu
lugar” gerou um grande impacto (Russell, 2006).
A década de 1960 assistiu a ampliação dos esforços em busca da
liberdade e de atingir condições dignas de sobrevivência para a população
negra, como ter acesso aos serviços públicos, direito ao voto, educação,
emprego enfim exercer direitos de cidadão. Nesse período se iniciou as
manifestações mais declaradas pelos direitos civis e aos poucos as
reivindicações ganhavam força e adesão de grupos religiosos e lideranças
brancas junto com as lideranças políticas negras como Martin Luther King Jr.
que emitia mensagens cujo conteúdo enfatizava o objetivo da mudança
social e assim desencadeava ondas de protestos pacíficos como a “Marcha
sobre Washington por Empregos e Liberdade” que reuniria em 1963 um
grande número de pessoas para pressionar a votação de leis no Congresso
Nacional (Morris, 1993).
A participação do poder público na elaboração de respostas efetivas
aos problemas raciais ainda era muito incipiente no início da década de
1960. Em 1961, a gestão do presidente J. F. Kennedy anunciou uma postura
mais ativa no sentido de promover a igualdade entre negros e brancos nos
Estados Unidos. O então presidente já no seu primeiro mandato criou a
expressão ação afirmativa para denominar a proposta de responder ao
intenso conflito racial denunciado por parte do movimento pelos direitos civis
entre os anos de 1950 e 1960 e, portanto, designou em 1961 através da
Ordem Executiva nº 10.925 a Comissão para a Igualdade de Oportunidades
no Emprego. Em 1962, foi expedida outra Ordem Executiva proibindo a
discriminação racial em projetos federais de habitação e o Ministério da
Saúde, Educação e Bem-Estar decidiu negar assistência financeira aos
distritos escolares que permanecessem segregados (Morris, 1993).
Mas foi em 1964 e 1965 que surgiram as principais peças legais que
viriam garantir o desenvolvimento da política de igualdade racial conhecida
31
como ação afirmativa. Nesse sentido, a principal ação legal em favor do fim
da segregação racial, e, sobretudo, em apoio às políticas de ação afirmativa
veio em 1964 com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei dos Direitos
Civis assinada pelo presidente Lyndon Johnson.
Em seu artigo VI proibiu a discriminação com base na raça, cor, credo,
sexo ou origem nacional em programas assistidos financeiramente pelo
governo federal inclusive em instituições pós-secundárias que recebiam
fundos federais para auxílio aos estudantes e às pesquisas, e em seu artigo
VII vedou a discriminação com base na raça, cor, credo, sexo ou origem
nacional por agências empregadoras, além de criar uma comissão para
igualdade de oportunidades nos empregos, bipartidária, no intuito de eliminar
práticas ilegais. Em 1965, o então presidente Lyndon Johnson assinou a
Ordem Executiva nº 11246, exigindo que as instituições que possuíam
contrato com o governo federal adotassem um programa de ação afirmativa
para assegurar a igualdade de oportunidades (Sowell, 2004).
Em discurso na Universidade de Howard em 1965, Lyndon Johnson
explicita o seu ponto de vista sobre a situação racial no país,
“Liberdade não é o suficiente. Não apagamos as cicatrizes de séculos
dizendo’agora você é livre para ir aonde quiser, fazer o que bem desejar e
escolher os líderes que lhe agradem’. Não pegamos uma pessoa que por
anos esteve presa por correntes e a libertamos, a trazemos para o início da
linha de partida de uma corrida e dizemos ‘você está livre para competir com
os outros’, e acreditamos que fomos completamente justos... Não é suficiente
abrir as portas da oportunidade. Todos cidadãos devem possuir a habilidade
necessária para atravessar essas portas” (Morris, 1993: 140).
Para melhor compreendermos a trajetória que as ações afirmativas
percorreram nos governos americanos Sowell (2004) identifica a sua
evolução e aponta que,
“Com Kennedy a política foi criada para assegurar que os candidatos
sejam contratados e os empregados sejam tratados no trabalho sem levar
em conta raça, cor, credo ou origem nacional (...). Um decreto posterior do
presidente Lyndon Johnson, em 1968, continha as expressões fatais
“objetivos e cronogramas” e “representação”. O detalhe das cotas ainda não
32
estava amadurecido, porque as diretrizes de 1968 se referiam a “objetivos e
cronogramas para a imediata conquista de igual oportunidade de emprego”.
Mais tarde, um decreto do presidente Richard Nixon, em 1970, referiu-se a
“procedimentos orientados para resultados”, e finalmente, em dezembro de
1971, outro decreto de Nixon especificou que os “objetivos e cronogramas”
eram para “fazer crescer materialmente a utilização de minorias e de
mulheres”, e que por “subutilização” deveria ser entendida “a menor
existência de minorias e mulheres em determinada categoria de trabalho do
que se poderia razoavelmente esperar em função de sua disponibilidade”. A
ação afirmativa passou a ser então um conceito numérico, fosse ele
chamado de “objetivos” ou de “cotas” (2004: 4, 5).
Eastland elenca algumas datas significativas no que diz respeito à
trajetória das ações afirmativas,
“1961 – Criação do Comitê para Oportunidades Iguais de Emprego
pelo presidente John Kennedy;
1965 – O presidente Lyndon Johnson sanciona uma lei exigindo que
todas as empresas, com contratos governamentais, adotem políticas de ação
afirmativa;
1978 – A Suprema Corte decide que as questões raciais podem ser
utilizadas como critério de admissão à universidade, mão não poderia haver
cotas predeterminadas;
1995 – A Universidade da Califórnia decide acabar com seus
programas de ação afirmativa. A conseqüência dessa medida é uma queda
de 61% na admissão de negros, latinos e indígenas;
1996 – O programa da Universidade do Texas é considerado
inconstitucional pela justiça. Como alternativa o Estado institui programa que
assegura vaga em qualquer universidade local aos alunos que se
classificarem entre os 10% melhores de sua escola;
1997 – Plebiscito em Houston aprova continuação de programas de
ação afirmativa nos contratos da prefeitura. Abertura do processo que
questiona a política de ação afirmativa da Universidade de Michigan;
2003 – Em resposta a uma ação judicial apresentada contra a
Universidade de Michigan por estudantes que se sentiram discriminados pela
33
aplicação da política de cotas para negros, hispânicos e indígenas na
Faculdade de Direito, a Suprema Corte deu parecer favorável (5 votos contra
4) permitindo que etnia e raça sejam utilizadas como critérios para seleção
de alunos” (Eastland, 1996: 120).
Em 1966, espalharam-se experiências de ação afirmativa pelo país
como o Escritório de Queixas de Contratos Federais – OFCC, ligado ao
Ministério do Trabalho, que elaborou o Plano da Philadélphia, estabelecendo
objetivos numéricos a serem alcançados por políticas de ação afirmativa.
Abandonado no mesmo ano, o Plano foi reelaborado em 1969, exigindo que
instituições parceiras do governo federal adotassem uma política de
acompanhamento dos seus funcionários e que estabelecessem metas e
cronogramas no intuito de diminuir a sub-representação de minorias e
mulheres empregadas. A proposta era de utilizar uma abordagem estatística
na definição e formulação de políticas que eliminassem os impactos
negativos que as ações e procedimentos tivessem sobre determinados
grupos. No mesmo ano, o presidente Richard Nixon criou através de Ordem
Executiva o Escritório de Empresas de Negócios de Minorias, com o objetivo
de incentivar financeiramente empresas geridas por minorias sob a idéia de
desenvolver um “capitalismo negro” (Eastland, 1996).
As iniciativas como as que foram desenvolvidas na sociedade norte-
americana traziam consigo a preocupação de elaborar propostas
governamentais que dessem conta de eliminar a proliferação do conflito
racial, corrigir as conseqüências derivadas da época da escravidão e
também conferir aos negros os mesmos direitos assegurados aos brancos.
Em suma, a evolução das ações afirmativas nos Estados Unidos
foram cercadas de obstáculos jurídicos até tornarem-se válidas e aceitáveis
nos tribunais e na sociedade, bem como na arena política. O estatuto mais
importante que assegurou as ações afirmativas foi a Lei dos Direitos Civis de
1964, e o grupo principal que pleiteou essa ação legal foi o movimento negro
e suas lideranças, todavia, essas políticas se estenderam para além dos
grupos raciais e étnicos e chegaram às mulheres e a outras minorias do país.
Nesse sentido, as ações afirmativas desenvolveram-se na esfera
pública e privada, especialmente em áreas como o mercado de trabalho - na
34
contratação, promoção e treinamento - e na área da educação – na
redefinição do currículo escolar e no processo de seleção das universidades.
2.3 Políticas de ação afirmativa no ensino superior
“Os propósitos e valores de uma instituição educacional são freqüentemente
revelados de forma mais explícita pelas opções tomadas para a seleção de
seus alunos”.
Bowen & Bok
Como se deixou antever, foi no contexto de reivindicações por justiça
racial pelo movimento negro que a ação afirmativa foi designada como
possibilidade para eliminar a base legal da discriminação por motivo de raça,
cor, sexo, origem nacional ou religião através da aprovação da Lei dos
Direitos Civis (Civil Rights Act) de 1964.
“O papel histórico dos progressistas norte-americanos era de
incentivar a adoção de medidas redistributivas que melhorem o padrão e a
qualidade de vida para os que têm pouco ou nada. A “ação afirmativa” (...) foi
uma dessas medidas redistributivas; ela emergiu na década de 60, no auge
da batalha pelos que lutavam pela igualdade racial” (West, 1994: 81).
Bowen & Bok (1998) afirmam que, antes de 1960, nenhuma
universidade norte-americana empenhou-se no sentido de melhorar
substancialmente o número de afro-americanos por ela admitidos. Alguns
pequenos esforços, a partir de iniciativas pontuais, puderam ser observados
no final dos anos 1950.
Em 1959, o diretor do College de Mount Holyoke, Massachusetts,
começou a visitar escolas de ensino médio em busca de estudantes negros
promissores e, em 1964, chegou a um total de dez. Nessa época, o reitor da
Faculdade de Direito de Harvard decidiu aumentar o número de estudantes
negros nessa instituição. Sensibilizado pelo fato da lei estar desempenhando
35
na época um papel crucial na vida dos afro-americanos e por não existir
estudantes negros nas escolas de direito, o reitor decide criar cursos de
verão para preparar os candidatos negros ao processo de admissão na
universidade. Seu exemplo foi seguido por universidades como Dartmouth,
Princeton e Yale8 e apesar do prestígio desfrutado por Harvard, esta não
escapou das queixas sobre possível perda da qualidade de ensino,
argumento utilizado pelos opositores das mudanças em curso (Bowen & Bok
1998).
Embora as universidades começassem a encampar iniciativas para
aumentar a representação de alunos negros em seus cursos, esses ainda,
“Representavam por volta de 1% dos estudantes de universidades de
elite antes de 1964. À época, dentro das experiências realizadas, não houve
nenhuma alteração nos processos de admissão nem no custeio de
anuidades” (Bowen & Bok 1998).
Mudanças mais significativas somente viriam ocorrer com o processo
de implantação dos programas de ação afirmativa por parte do poder
executivo, em meados dos anos de 1964. Neste momento, os movimentos e
protestos estudantis faziam parte do cotidiano das universidades norte-
americanas e representaram um papel importante na sensibilização e
pressão por mudanças (Bowen & Bok 1998).
As transformações que se seguiram abrangeram as melhores
universidades do país. Para aumentar a diversidade nos campus houve
alterações no processo de admissão, concessão de bolsas de estudos,
contratação de professores e funcionários administrativos. O governo federal
começou a exercer uma postura mais ativa no sentido de frear a
discriminação nas instituições de ensino através de incentivos financeiros
nas universidades públicas e privadas, sendo que as universidades privadas
teriam a suspensão do direito de isenção de impostos caso praticassem atos
de discriminação.
8 Estas três universidades compõem as oito universidades mais prestigiadas e seletivas da costa leste norte-americana (Bowen & Bok 1998).
36
Com a utilização de programas de ação afirmativa pelas universidades
e a busca por resultados mais substantivos ocorreram mudanças essenciais
para cumprir o projeto em curso,
“A raça do candidato é levada em consideração, ao lado de notas
escolares e da pontuação nos exames padronizados de admissão, entre
outros fatores, o que resulta num corpo discente heterogêneo. A distribuição
de auxílios baseia-se não apenas no mérito, mas também nas necessidades
financeiras dos estudantes. Programas de auxílio financeiro governamental
são autorizados com o intuito de prover recursos a estudantes de famílias
pobres e de baixa renda, para aumentar o acesso à educação superior e
fomentar nesta uma igualdade significativa. Existem nas faculdades
programas de apoio acadêmico, prévios à admissão ou posteriores a ela,
que fornecem a estudantes promissores o apoio adicional necessário para
superar barreiras de classe, raciais, sociais e culturais. Serviços de
aconselhamento e de consultoria acadêmica são disponibilizados aos alunos,
assim como assistência no preenchimento dos formulários de candidatura às
vagas e de requisição de auxílio financeiro, além de reforço, aulas
particulares e aconselhamento para família de estudantes. Esforços amplos
de informação e atração de estudantes foram estendidos às instituições de
ensino fundamental, focalizando estudantes de minorias raciais e étnicas
que, de outra maneira, talvez não tivessem a possibilidade de receber
educação superior” (Russell, 2006: 203).
Mapeando a dimensão das ações afirmativas nas universidades norte-
americanas em termos numéricos, Bowen & Bok (1998) desmistificam, de
certa forma, a impressão de que essas ações são amplamente utilizadas.
Estimam que apenas de 20% a 30% das universidades e faculdades utilizam
a raça como critério de admissão, o que não significa, ainda, que usem o
sistema de cotas. A maioria das instituições de ensino superior aceitam seus
candidatos sem que nenhum status especial seja atribuído a quaisquer
deles, de acordo com a raça ou outro critério. Dessa forma, além dos
programas de ação afirmativa não serem algo generalizado nesse patamar
37
de ensino, eles estariam sendo utilizados, fundamentalmente, nas
universidades mais seletivas e melhor colocada no ranking nacional9.
A partir dessas ponderações no campo da ação afirmativa, ou seja, de
como essa proposta se desenvolveu nas universidades ao longo dos anos,
questiona-se quais os resultados da política no ensino superior. É possível
verificar a diminuição no abismo entre brancos e negros no que diz respeito
ao acesso, permanência e conclusão dos estudos? Quais os benefícios da
política? Entendemos que as respostas às essas questões dariam corpo a
um trabalho específico de avaliação dado à sua magnitude. No entanto,
como não se trata de nosso objetivo maior, destacamos algumas
informações que podem ser verificadas, além de indícios de mudanças e
críticas a essas medidas de ação afirmativa.
West nos dá um panorama através de suas análises sobre a
funcionalidade da política em meados da década de 1990,
“A “ação afirmativa” não é o aspecto mais importante para o progresso
dos negros norte-americanos, mas ela integra uma cadeia redistributiva que
precisa ser fortalecida para que se possa confrontar e eliminar a pobreza dos
negros. Se existissem medidas sociais democráticas redistributivas que
eliminassem a pobreza entre os negros, e se a discriminação racial e sexual
pudesse ser sobrepujada por meio de boa vontade e de critérios louváveis
por parte dos que detêm o poder, a “ação afirmativa” seria desnecessária”
(West, 1994: 83). No entanto, não exita em ponderar que,
“É praticamente certo que sem essa política a discriminação racial e
sexual retornaria com grande ímpeto. Mesmo que ela seja muito deficiente
para reduzir a pobreza dos negros ou que contribua para a persistência das
idéias racistas no ambiente de trabalho, sem ela o acesso dos negros à
prosperidade norte-americana seria ainda mais difícil, e o racismo no
trabalho continuaria a existir de qualquer modo” (West, 1994: 82; 83).
Russell nos revela que o relatório de 2001 do National Center on
Education Statistics – NCES (Centro Nacional de Estatísticas da Educação),
9 Os autores não possuem um levantamento preciso do número de universidades que utilizam critérios raciais nos seus processos de admissão, mas se valem de estimativas precisas realizadas por pesquisadores (Bowen & Bok, 1998).
38
do Departamento Nacional de Educação dos EUA10, observa que com
relação ao acesso ao ensino superior, se em 1962 4,2% da população negra
com 25 a 29 anos completara o curso de quatro anos ou mais na
universidade, esse número passa para 8,1% em 1973 e 15,8% em 1998.
“Apesar do aumento do número daqueles com diploma superior, as
desigualdades entre os grupos raciais, durante todo o período,
permaneceram inalteradas. Estes dados indicam que não houve uma
substituição de um grupo racial por outro na preferência pelo acesso geral às
instituições de ensino superior, mas uma incorporação de ambos à medida
que o ensino superior se expandia” (Russell, 2006: 203).
Ainda no que diz respeito às análises no campo das ações afirmativas
Swanson (1981) nos aponta que a produção de estudos norte-americanos no
campo do ensino superior é freqüentemente dividida entre aqueles que
apresentam argumentos favoráveis e contrários à utilização das políticas de
ação afirmativa. As pesquisas abrangem questões legais ligadas à
implementação de políticas de recorte racial, análise de casos judiciais,
argumentos éticos e normativos sobre igualdade e discriminação, entre
outras. Todavia são praticamente inexistentes, nos anos 1980, trabalhos que
tenham como objetivo avaliar empiricamente os programas de diversidade
implementados seja na esfera nacional, estadual ou de cada instituição.
Apenas nos anos 1990, e especialmente após as ações políticas e judiciais
que tentaram extinguir programas de instituições de ensino superior com
recorte racial que são realizados estudos com o intuito de avaliar os impactos
da diversidade nos campus.
Nesse sentido, os estudos sobre avaliação, a partir da década de
1990, contribuíram para aproximar respostas às indagações na sociedade
norte-americana como: é possível incorporar ideais de justiça social e racial
aos valores de excelência acadêmica no acesso à universidade? Depois de
anos de experiências chegou-se a conclusão de que esses são valores
conciliáveis? A diversidade traz ganhos significativos à sociedade
americana?
10 The Department of Education nos EUA tem status de ministério.
39
No tópico seguinte destacamos os estudos realizados por
pesquisadores dedicados a esses temas e seus resultados.
2.4 A diversidade no ensino superior
Ao observarmos a concepção dos processos de admissão de
estudantes nas universidades, notamos que a ênfase depositada nos testes
acadêmicos tem sido o meio mais recorrente na defesa da excelência e
mérito das instituições de ensino superior. Somar a essa prática
considerações de ordem racial e sócio-econômica sinalizou a intenção das
mesmas em garantir, como parte constitutiva de sua excelência acadêmica,
também a igualdade de oportunidade no acesso. A busca de um equilíbrio
entre esses dois valores – igualdade e seletividade acadêmica – permeou
diversas das ações implementadas pelas universidades norte-americanas,
sendo que o peso atribuído a cada um foi objeto de disputas internas e
externas à universidade, tensionando-a permanentemente.
À medida que as instituições abriram suas portas a uma diversidade
maior, as vozes dos recém-admitidos tornaram-se mais insistentes,
reclamando que as universidades façam mais do que ensinar do modo como
sempre o fizeram e que estejam, preparadas para criar ambientes mais
inclusivos e acolhedores.
“A pesquisa dos últimos dez ou vinte anos dedicada ao impacto da
demografia em mutação dos campi norte-americanos levantou temas
recorrentes. Não era suficiente facultar o acesso aos estudantes: a
demografia dos corpos docente, funcional e administrativo também precisava
mudar. A academia tinha igualmente de repensar seus propósitos e práticas”
(Morris, 1993: 120).
Uma diversidade maior nas universidades criou a necessidade de dar
mais atenção às realizações acadêmicas e sociais desse novo corpo
estudantil, portanto,
“Constituíram-se escritórios para assuntos de estudantes de minorias
e centros de apoio a mulheres (...) cada vez mais esses tinham a expectativa
40
de que suas histórias e experiências se refletissem naquilo que lhes estava
sendo ensinado” (Russell, 2006: 218).
À medida que se modificava a demografia dos campi americanos,
programas de estudos femininos e étnicos passaram a ser oferecidos. Novos
campos do saber emergiram, à medida que a população estudantil se
diversificava,
“Ocorreram inovações curriculares e, conforme ficava evidente que
nem todos os alunos aprendiam da mesma maneira, maior atenção foi dada
ao aperfeiçoamento do ensino e ao aprendizado de um corpo discente que
se diversificava em grau crescente” (Musil, 1999: 121).
No entanto, se por um lado as universidades se tornavam mais
diversificadas, por outro o ambiente não era sempre acolhedor, pois
“As instituições começaram a compreender que existia uma relação
entre boa acolhida nos campus e a permanência (não-evasão) do estudante.
Nas iniciativas tomadas pelas agências filantrópicas de financiamento para
estimular a diversidade universitária, parte do foco incidiu sobre o ambiente
no campus; as instituições empreenderam auditorias culturais e avaliações
da atmosfera do campus para aferir a visão que corpo docente, funcionários
e alunos tinham da instituição” (Musil, 1999: 121).
Alguns autores (Morris, 1993; Russell, 2006) acreditam que as
instituições bem-sucedidas no que diz respeito a criar um projeto de
diversidade racial e étnica no seu campus, ou seja, que aderiram a ação
afirmativa como meio de atingir esse propósito, conceberam a idéia de modo
abrangente ao expandirem seus esforços de recrutamento e criarem
parcerias com escolas secundárias para implementar programas
especializados contra a evasão dirigidos aos alunos que já haviam
ingressado na universidade. Criaram também oportunidades para o contato
inter-racial entre os alunos, condição essencial para efetivação dos
benefícios educacionais da diversidade através da elaboração de currículos
inclusivos e programas que preparavam o corpo docente para provê-lo das
habilidades necessárias ao ensino em salas de aula mais diversificadas.
Russell destaca ainda que,
41
“A diversidade no próprio corpo docente é também uma prioridade,
tanto para as instituições que valorizam um corpo docente mais inclusivo
quanto para os estudantes que insistem que alguns professores se pareçam
com eles” (Russell, 2006: 206).
Com isso, constituiu-se um novo arcabouço de conhecimentos
relativos aos benefícios educacionais da diversidade. Os resultados das
pesquisas a esse respeito foram usados para defender os esforços das
instituições de ensino superior em alcançar a diversidade em seus campus.
2.5 Estudos sobre o impacto da diversidade: criando
ambientes inclusivos de aprendizado
À medida que as universidades abriram suas portas a uma
diversidade maior as pesquisas dedicadas ao impacto da demografia em
transformação nos campus universitários tomaram proporções crescentes.
Desafios às iniciativas de promoção da diversidade nos EUA resultam
de antigas tensões entre brancos e outros grupos raciais e étnicos. Os
proponentes e defensores da ação afirmativa caracterizam suas estratégias
de tal modo que a diversidade não se apresente contrária aos valores
americanos e por isso buscam apresentar aos grupos opositores que é
possível mensurar consideráveis benefícios educacionais, econômicos e
sociais derivados de políticas afirmativas. Já os contrários a essa ação
argumentam que se trata de uma forma de discriminação ilegítima, porque
nega aos que não são minoria o ingresso nas faculdades de sua escolha,
além disso, sustentam que levar em conta a raça no processo de seleção e
outras iniciativas de diversidade estigmatizam os membros do grupo
beneficiado e, portanto, perpetua os estereótipos de que as minorias não são
tão capazes quanto os brancos (Russell, 2006).
Tais argumentos levantados por ambos os lados resultam dos últimos
cinqüenta anos de experiência com uma diversidade crescente no meio
acadêmico norte-americano incluindo a parceria entre instituições de ensino,
os governos estadual e federal, empresas e fundações filantrópicas. Entre as
justificativas favoráveis à ação afirmativa e dos programas de diversidade no
42
ensino superior incluem-se a necessidade de corrigir os efeitos da
discriminação passada, de prevenir a discriminação futura e a convicção de
que as organizações se beneficiam da inclusão e da diversidade (Russell,
2005).
Os proponentes apontam os sucessos da ação afirmativa e os
resultados de pesquisas que mostram como um corpo discente racial e
etnicamente diverso traz benefícios significativos para todos os estudantes.
Dessa forma, as instituições que se pretendiam mais inclusivas levantaram
temas de pesquisa recorrentes devido aos programas que implementaram,
gerando demandas para pesquisadores.
Patricia Gurin, professora da Universidade de Michigan do Program on
Intergroup Relations produziu diversos estudos que ilustram os benefícios
educacionais das experiências de diversidade no período acadêmico11.
Segundo Gurin (1999), os resultados incluem ganhos em
pensamentos críticos, aprendizado sobre valores cívicos e democráticos,
permite que os estudantes valorizem as relações humanas, além do que os
jovens se tornam mais aptos a participar de uma sociedade pluralista. Gurin
verificou ainda que ambientes mais inclusivos abalam a persistência da
separação racial na sociedade norte-americana e, além disso, a diversidade
racial e étnica do corpo discente traz benefícios para todos os estudantes, e
não somente para as minorias12.
Segundo Gurin e outros é possível observar ainda sobre os benefícios
educacionais da inclusão:
11 Áreas de interesse da pesquisadora: Social psychology, personality and social structure, adult development, gender roles. Political mobilization, collective behavior, reference groups. Personal and social identity, social differentiation, self. Fonte: <www.vpcomm.umich.edu/admissions/legal/expert/gurinapa.html>. 12 Disponível em: www.personal.umich.edu/~pgurin/gurin-article.doc .
43
The Educational Benefits of Inclusion
- Academic growth;
- Cognitive development;
- Complex thinking skills;
- Critical thinking skills;
- Engagement with educational process;
- Ability and motivation to understand the perspectives of other people;
- Motivation to be involved in the community;
- Perception that difference is important to democracy;
- Positive perceptions of campus intergroup relations;
- Different perspectives, backgrounds and experiences make students
stronger;
(Gurin, 1999; Humphreys, 1998; Hurtado, 2005; Maruyama & Moreno, 2000; Smith, 1997)13. Fonte: www.personal.umich.edu/~pgurin/gurin-article.doc .
Gurin aponta para a importância do fim das leis de segregação racial e
os benefícios para negros e brancos nos EUA. Ao estudar de que forma as
ações afirmativas poderiam ser positivas no sentido de promover, por
exemplo, maiores níveis de tolerância e redução do preconceito, a autora
destaca a relevância que as experiências de integração entre brancos e
negros através da elaboração de disciplinas que os façam interagir e
promover discussões nas universidades representam para que se atinja
algum resultado,
“The social science statement in Brown v. Board of Education stressed
that desegregation would benefit both African American and White children.
Eventually, it was recognized that integration, rather than mere
desegregation, was important for benefits to be realized. A parallel argument
is made in the legal cases concerning affirmative action in higher education:
13 Os Benefícios Educacionais da Inclusão incluem: crescimento acadêmico, desenvolvimento cognitivo, ganhos em pensamento crítico, engajamento com o processo educacional, habilidade e motivação para entender o ponto de vista de outras pessoas, motivação para se envolver com a comunidade, desenvolvimento da percepção de que a diferença é importante para a democracia, percepção positiva das relações intergrupais no campus e cria estudantes mais fortes, decididos (tradução feita por nós).
44
educational benefits of diversity depend on curricular and co-curricular
experience with diverse peers, not merely on their co-existence in the same
institution” (Gurin, 1999: 33)14.
Pettigrew, também discute sobre a importância das universidades que
aderiram as cotas desenvolverem programas e disciplinas que façam os
alunos brancos e negros interagirem. Isso contribuiria para a formação de
cidadãos aptos a conviverem com a diversidade durante a vida,
“One of the controversies concerns the difference between racial
desegregation and racial integration, or the difference between mere contact
and actual interaction between students of different racial backgrounds. In
current debates about the educational role of diversity, some argue that the
mere presence on campus of students from varied racial backgrounds must
be shown to directly foster educational benefits. This argument mirrors the
early assertion that mere contact of racially diverse students through school
desegregation would be beneficial to all students. Eventually it became clear,
however, that mere contact through desegregation was not sufficient to
produce educational benefits. Just as Allport (1954) had theorized, contact
needed to occur under certain conditions – where there was equality in
status, existence of common goals, and intimacy of interaction if it was to
have positive effects. Educators needed to create a racially integrated
learning environment that went far beyond simply putting diverse students
together in the same classroom” (Pettigrew, 1998: 63)15.
Bowman e Gottlieb, ambos pesquisadores da Universidade de
Michigan, observaram em seu estudo: The Impact of Racial/Ethnic Structural
Diversity and Opinion Diversity on Reconsidering One’s Beliefs about College
Access que experiências em ambientes com maior diversidade racial e étnica 14 O caso Brown v. Board of Education enfatizou que a dessegregação era benéfica tanto para crianças afro-americanas quanto para as brancas. Eventualmente, mais do que a mera dessegregação, era preciso provocar a integração das crianças para que os benefícios pudessem se realizar de fato. Um argumento paralelo pode ser feito na análise dos casos de ação afirmativa nas universidades: os benefícios educacionais da diversidade dependem das experiências curriculares entre os estudantes e não da mera existência na mesma instituição (tradução nossa). 15 Idéia geral da citação: A controvérsia consiste na diferença entre o mero contato e a interação entre estudantes de grupos raciais distintos. Mas, além disso, o contato precisa acontecer sob determinadas condições, ou seja, a intimidade e a interação provocam efeitos positivos. Nas universidades, os educadores precisam criar estratégias para que isso aconteça e não contar apenas com a diversidade na mesma sala de aula como um fator decisivo para que os alunos aprendam sobre a sua importância e posteriormente para que ocorram mudanças de atitudes e comportamentos.
45
tem um impacto positivo nos estudantes durante a vida acadêmica em
virtude de ocorrerem durante um estágio de desenvolvimento que os jovens
estão formando e questionando suas identidades e valores e esse processo
de convivência e interação significativa pode propiciar a reconsideração das
suas crenças e atitudes. O estudo ainda conclui que a mera presença de
grupos raciais diversos sem uma interação significativa pode não produzir
impactos positivos; nenhum impacto positivo foi encontrado em adultos mais
velhos no que diz respeito à reconsideração das suas crenças, no entanto, é
difícil mensurar implicações gerais entre idade e formação e estabilidade das
crenças; na pesquisa ainda não está claro se ou quando o efeito da mudança
pode ocorrer em outros grupos que não estão inseridos na universidade na
mesma faixa etária (18-24) (tradução nossa)16.
Ainda em referência às pesquisas, Gurin, Biren and Nagda em seu
artigo Getting to the What, How and Why of Diversity on Campus se reportam
ao conjunto de teorias da psicologia social para entender se as iniciativas
curriculares de diversidade propostas pelas universidades produzem
resultados benéficos e impactos positivos para os estudantes. Para tanto,
destacam um modelo de abordagem chamado de diálogo intergrupal que se
propõem a partir da interação inter-racial explorar as diferenças e pontos em
comuns, trabalhando com conflitos intergrupais e construindo identidades
coletivas. Segundo os autores, esse modelo é uma possibilidade de avançar
em relação a trabalhos que derivam da psicologia social clássica sobre o
contato intergrupal (tradução nossa)17.
Os dados produzidos pelos pesquisadores são considerados valiosos
pelas instituições americanas que entendem que as universidades devem
preparar seus estudantes com as habilidades necessárias para competir no
mercado global e, sobretudo que os ensinem sobre as relações humanas,
competências requeridas pelos empregadores,
“Diversity in academic institutions is essential to teaching students the
human relations and analytic skills they need to thrive and lead in the work
environments of the twenty-first century. These skills include the ability to
16 Disponível em: www.thenationalforum.org/docs/pdf/diversity_and_beliefs.pdf . 17 Os autores citados fazem referência ao estudo de Allport ‘The Nature of Prejudice’ (1954).
46
work well with colleagues and subordinates from diverse backgrounds; to
view issues from multiple perspectives, and to anticipate and respond with
sensitivity to the needs and cultural differences of highly diverse customers,
colleagues, employees, and global business partners” (General Motors, 2000
apud Gurin, 1999: 25)18.
Em média, os últimos cinqüenta anos de investimento em programas
de diversidade no ensino superior dos EUA revelaram que eles trazem
benefícios de longo prazo (West, 1994). Bowen & Bok nos sinaliza que os
dados apresentados em defesa de resultados positivos protagonizados pela
ação afirmativa mostram que embora persistam disparidades entre a
remuneração de mulheres e de homens e a de minoria de brancos, o abismo
diminuiu, e essa diminuição foi influenciada pelo grau de envolvimento de
instituições de elite,
“O retorno econômico em investimentos na educação, incluindo a
educação de minorias, é tanto maiores quanto mais alta a qualidade da
instituição” (Bowen & Bok, 1998: 223).
Entretanto, permanecem os desafios à diversidade na educação
superior. Por parte dos opositores dos programas de ação afirmativa, táticas
com recurso à legislação e a processos jurídicos têm posto desafios à
continuação dos grupos raciais e étnicos nas instituições de ensino superior
norte-americana via ação afirmativa. O argumento concentra-se na
necessidade de se considerar a raça de um indivíduo para determinar as
oportunidades de acesso à educação. Já os defensores de iniciativas de
promoção da diversidade empreendem seus esforços no sentido de que
suas ações não se mostrem contrárias aos valores americanos, mas, fazer
entender aos grupos políticos que elaboram políticas públicas e aos
membros do público que se opõem à ação afirmativa que a diversidade traz
consideráveis benefícios educacionais, econômicos e sociais e que a política
não é contrária às leis vigentes no país.
18A diversidade nas instituições acadêmicas é essencial para ensinar aos estudantes as relações humanas e as competências analíticas de que eles necessitam para prosperar e liderar no ambiente de trabalho no século XXI. Essas habilidades incluem a capacidade de trabalhar bem com os colegas provenientes de diversas origens; visualizar as questões de diferentes perspectivas para reagir com sensibilidade às necessidades e diferenças culturais diversas dos clientes, colegas, colaboradores e parceiros globais nos negócios. (tradução nossa).
47
A polêmica que há anos se instaurou nos EUA sobre as ações
afirmativas desde a sua concepção até os dias de hoje a respeito da
legalidade, funcionalidade, eficácia e justeza constituem-se em discussões
que também podem ser observadas no Brasil. Dada as devidas
especificidades, as ações afirmativas no nosso país também são discutidas
como instrumento de combate ao racismo e de democratização do acesso ao
ensino superior público, portanto, estamos assistindo apenas ao alvorecer de
um processo, mas que já possui seu marco na história brasileira, como
veremos no capítulo seguinte.
48
CAPÍTULO II
A Construção das Ações Afirmativas no Brasil
“Afirmamos que racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata constituem graves violações de todos os direitos humanos e
obstáculos ao pleno gozo destes direitos, e negam a verdade patente de que
todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
(Declaração de Durban, 2001: 12).
3.1 O anti-racismo no Brasil
A década de 1990 no Brasil foi marcada, na cena do debate público,
pela emergência das discussões sobre as desigualdades raciais associada à
implementação de ações dirigidas para sua reversão, chamadas de ação
afirmativa. Tal emergência representa a publicização de questões que até
pouco tempo atrás ficavam circunscritas aos círculos do movimento negro e
de uma pequena fração de estudiosos do campo das relações raciais.
No caldo de discussões que se instauram, é evidente que o racismo,
ao ser reconhecido como um problema presente no nosso país, tenha seu
debate marcado pela necessidade de intervenções.
No Brasil, o seminário internacional “Estratégias e Políticas de
Combate às Práticas Discriminatórias” ocorrido em novembro de 1995, em
São Paulo, anunciava a abertura de um diálogo das políticas públicas anti-
racistas a partir da troca mútua de experiências envolvendo intelectuais de
outros países e pesquisadores nacionais com vistas a potencializar o alcance
da compreensão e análise das ações afirmativas.
Nessa perspectiva, a década de 1990 simbolizou o início de um
momento de reflexão em busca de algumas pistas para entender do que se
tratavam as ações afirmativas e os seus desdobramentos nos países onde
fora implantada. Nesse período, partidos políticos e imprensa começaram a
49
se expressar publicamente a respeito da necessidade de enfrentar com
responsabilidade o problema racial brasileiro19 (Munanga, 1996).
Como ilustrativo do crescente debate no Brasil acerca das ações
afirmativas, o seminário internacional promovido pelo Ministério da Justiça,
em julho de 1996, intitulado “Multiculturalismo e racismo: o papel da ação
afirmativa nos estados democráticos contemporâneos” contou com a
participação de pesquisadores brasileiros, norte-americanos assim como um
grande número de lideranças negras para promover o intercâmbio de
experiências entre os países participantes e reivindicar uma postura mais
ativa do poder público frente à questão racial brasileira (Guimarães, 1999).
O teor das discussões denunciava que a retórica e os discursos bem
intencionados já não eram mais suficientes para romper as bases do racismo
no Brasil e, portanto, era preciso reconsiderar as estratégias de combate à
discriminação nos campos onde ela se manifesta concretamente, ou seja, no
âmbito da educação, cultura, lazer, saúde, mercado de trabalho etc.
O breve olhar sobre a conjuntura em que emerge tais discussões no
Brasil, nos leva a reconhecer a legitimidade que os movimentos sociais de
combate ao racismo adquiriram em relação a essa temática. Munanga ao
dissertar sobre as políticas anti-racistas no Brasil nos aponta que,
19 Nos círculos governamentais começou a cogitar-se a introdução de formas de ação afirmativa, como podemos observar através do discurso do então ex-Vice-Presidente da República Marco Maciel. “Disse S. Exa: As formas ostensivas e disfarçadas de racismo que permeiam nossa sociedade há séculos, sob a complacência geral e a indiferença de quase todos, são parte dessa obra inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos responsáveis. A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu, em termos sociais, senão para deleite intelectual de alguns e demonstração de ufanismo de muitos. Terminamos escravos do preconceito, da marginalização, da exclusão social e da discriminação que caracterizam o dualismo social e econômico do Brasil. É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas, sobretudo no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente asseguradas por nossas constituições aos brasileiros e aos estrangeiros que vivem em nosso território. (...) O Brasil terá de convencer-se de que os negros e seus descendentes deixarão de ser minoria no próximo século, pois já representam maioria em três das cinco” regiões brasileiras. (...) Vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação, são apenas parte do desafio. Se vamos consegui-lo com o sistema de quotas compulsória no mercado de trabalho e na universidade, como nos Estados Unidos, ou se vamos estabelecê-las também em relação à política, como acaba de fazer a lei eleitoral, com referência às mulheres, é uma incógnita que de antemão ninguém ousará responder. Não tenho dúvida de que se não tivesse havido discriminação econômica, não teria havido exclusão social. Sem uma e a outra a discriminação racial não teria encontrado o campo em que plantou raízes. O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política, terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de empregos e participação na vida pública(...)” (Maciel, 200,p.A-3 apud Gomes, 2002: 23).
50
“As lutas contra o racismo passam geralmente por duas formas de
ação: uma discursiva e retórica, compreendendo os discursos produzidos
pelos estudiosos engajados, militantes e políticos preocupados com as
desigualdades raciais; outra prática, traduzida em leis, organizações e
programas de intervenção cujas orientações são definidas pelos governos e
poderes políticos constituídos. Mas nada impede os setores privados e as
organizações-não-governamentais de desenvolver programas e atividades
anti-racistas” (Munanga, 1996: 79).
Segundo Munanga, as contradições e a falta de consenso sobre o
racismo conjugadas com as escolhas ideológicas de especialistas e
estudiosos apresentam as primeiras dificuldades no nível da retórica anti-
racista,
“A respeito, sabemos que os intelectuais de direita e de esquerda de
todos os países não se entendem e atribuem ao racismo um conteúdo
diferente. Os de direita, ou melhor, os liberais, pensam hoje, considerando a
extinção do racismo institucionalizado em todo o mundo, que a razão
essencial da persistência das desigualdades raciais deve-se ao fato de que
os negros sofrem de uma falta de cultura e instrução compatíveis com a
economia pós-industrial. A razão maior, segundo esse tipo de raciocínio, não
estaria mais no racismo da sociedade, mas essencialmente nas forças do
mercado, indiferentes à raça (...) Na esquerda, persiste a visão radical de
que o racismo é uma questão de classe, e os preconceitos raciais
considerados como atitudes sociais propagadas pela classe dominante”
(Munanga, 1996: 79; 80).
Munanga nos mostra que a ação militante negra, composta por
posicionamentos políticos e partidários distintos dificulta as buscas de
estratégias anti-racistas ao ignorar as diferenças fenotípicas e culturais,
como um dos elementos fundamentais, estruturador e classificador dos
problemas tidos apenas como de mercado e de instrução nas sociedades.
Nos países em que o racismo era explícito e institucionalizado, como
nos EUA e na África do Sul, as formas de luta anti-racistas tomaram rumos
diferentes em relação ao Brasil onde as manifestações racistas são
implícitas,
51
“No caso sui generis do Brasil, como se podia lutar oficialmente,
mobilizando governos e poderes públicos instituídos contra um racismo
silenciado pela ideologia da “democracia racial?” (...) O passado e o presente
da população negra e seus descendentes mestiços no Brasil exigem
algumas linhas descritivas, a partir das quais podemos especular sobre o
futuro. E esse futuro depende em parte da implantação de algumas políticas
públicas” (Munanga, 1996: 80; 81).
As ações no campo anti-racista agregam os indivíduos em torno de
objetivos como participar da dinâmica da mobilidade social crescente, obter a
reversão das desigualdades socioeconômicas, adquirir o reconhecimento do
valor e da dignidade humana e promover uma imagem positiva dos negros
na sociedade. Para Chinoy,
“A posse de traços físicos distintos ou de valores, crenças e costumes
únicos, não raro proporciona um foco de lealdades comuns e a base de uma
ação coletiva, particularmente quando o grupo é destacado por uma atenção
discriminativa” (Chinoy, 1975: 301).
Orientados por esses aspectos, Silva nos indica que,
“O engajamento pessoal no anti-racismo refere-se a uma atividade
que começa na juventude, atravessa a fase adulta, e, em alguns casos, se
estende até a senectude (...), nesse sentido, o exame dos movimentos
sociais, que formam o campo do anti-racismo, tem como referência, os
processos de socialização dos atores sociais implicados nessas lutas” (Silva,
2000: 87).
A preocupação no interior das sociedades democráticas tem sido
pensar políticas direcionadas à redução de obstáculos para ascensão social
de grupos específicos o que pressupõe admitir políticas e programas que
tenham por base o reconhecimento de diferenças étnico-raciais no momento
de inserção no mercado de trabalho e no sistema educacional.
Para tanto, os agentes dos movimentos de combate ao racismo
sugerem que se faça uma releitura acerca das desigualdades e injustiças
cometidas contra a população negra ao longo da história do país. Nesse
sentido, discute-se a necessidade da implantação da ação afirmativa para
criar patamares mais equânimes e condições leais de concorrência,
52
considerando que existem duas formas de racismo que devem ser
eliminadas: o institucional e o individual.
O primeiro refere-se ao conjunto de arranjos institucionais que
bloqueiam a participação de determinados grupos, estabelecendo uma
conduta mais rígida diante das populações discriminadas, Jones define a
dimensão institucional do racismo como,
“As práticas, as leis e os costumes estabelecidos que
sistematicamente refletem e provocam desigualdades raciais (...) O racismo
institucional pode ser manifesto ou oculto e intencional ou não intencional.
Usualmente, tanto as formas manifestas quanto as formas ocultas de
racismo são intencionais. As formas não-intencionais de racismo ocorrem,
muitas vezes, quando as complexas inter-relações entre as instituições da
sociedade fazem com que os efeitos a longo prazo de uma prática
institucional sejam negativos para os negros. Tais conseqüências podem não
ser previstas nem desejáveis pela instituição responsável” (Jones, 1973:
117).
Já no caso do racismo individual, Jones define que,
“O indivíduo racista é aquele que considera que as pessoas negras,
como um grupo, são inferiores aos brancos, e isso por causa dos traços
físicos (genotípicos ou fenotípicos). Além disso, acredita que tais traços
físicos são determinantes de comportamento social bem como de qualidades
morais ou intelectuais e, em última análise, supõe que essa inferioridade é
uma base legítima para tratamento social inferior de pessoas negras (...).
Uma consideração muito importante é a de que todos os julgamentos de
superioridade se baseiam em traços correspondentes de pessoas brancas,
consideradas como normas de comparação” (Jones, 1973: 105).
Quando pensamos em fatores que podem dificultar e até mesmo
impedir a implementação de um conjunto de políticas públicas em prol do
combate ao racismo as suas duas formas devem ser consideradas. A
realização de ações no campo anti-racista conjuga essas duas formas de
racismo presentes nas relações cotidianas. Nesse sentido, qual as
estratégias produzidas pelo movimento negro para reduzir os danos que o
racismo produz? Hoje as ações afirmativas surgem como uma das
53
respostas a esse questionamento, pois a sua discussão provoca a
consciência do racismo e da igualdade de oportunidades, no entanto, as
discussões encampadas atualmente são derivadas de momentos
importantes da história que compõem o marco das discussões sobre as
ações afirmativas no Brasil.
3.2 O movimento pelas reparações já!
O dia 19 de novembro de 1993, em São Paulo, não foi uma data
qualquer para a história contemporânea de combate ao racismo. Na
véspera do dia nacional da consciência negra daquele ano, dez pessoas
resolveram promover um protesto para denunciar a exclusão social da
população negra e foram almoçar no Maksoud Plaza,
“Chegando a um dos mais nobres restaurantes da cidade pediram
pratos requintados, conversaram, comeram, beberam fartamente. Ao final,
pediram e receberam a conta. Esta como já esperavam era de um valor
estratosférico, daí ocorreu algo inédito na história do país: as dez pessoas
disseram em alto e bom som ao gerente do estabelecimento que a conta
deveria ser creditada na dívida secular que a sociedade brasileira tem com
todos os negros brasileiros, logo, não seria paga. O transtorno estava
então instalado a polícia e a grande imprensa foram acionados, porém, ao
término de tanta polêmica, a conta não foi paga” (Entrevistado A).
Mas afinal a pergunta que se fazia era a seguinte: quem eram
aqueles pessoas e o que buscavam com aquele gesto? Todos eram
ativistas ou aliados do movimento negro vinculados ao Núcleo de
Consciência Negra da USP (NCN-USP),
“Fundado em 1987, o NCN organizado em torno da temática da
questão racial visa, sobretudo a ampliação do espaço acadêmico, como
também uma maior influência e ocupação da estrutura de poder da
Universidade. Desde sua formação, no que pese os vários obstáculos
enfrentados, o NCN-USP tem realizado inúmeras atividades acadêmicas e
culturais, consolidando-se como um centro de referência para as questões
54
que envolvem a negritude e assumindo um papel efetivo de grupo de
pressão contra as ações discriminatórias e racistas oriundas da própria USP
e da sociedade em geral” (Entrevistado A).
Na ocasião, os componentes do grupo que realizaram o protesto se
dividiam entre homens e mulheres,
“No momento, não me recordo com precisão de todas as pessoas
que estavam envolvidas no protesto, mas, eram seis mulheres negras
entre as quais Kelly Oliveira e Fernanda Lopes, um homem branco e cinco
negros entre os quais Luis Carlos dos Santos, Fernando Conceição e
Arnaldo Lopes, todos amigos e militantes da nossa causa negra”
(Entrevistado A).
A partir do relato de nosso entrevistado, é possível observar que o
gesto daquela noite de “dar o calote” no restaurante Maksoud Plaza não
foi obra do acaso. Previamente planejada, foi uma ação com dupla
intenção,
“Produzir um fato político e, principalmente, lançar a campanha
nacional “Reparações Já! Eu Também Quero o Meu”. Ambos os intentos
foram alcançados. No dia seguinte, 20 de novembro de 1993, grandes
jornais como a Folha de São Paulo, repercutiram o protesto. Da mesma
forma a campanha passou a ser conhecida e debatida. Seu slogan
Reparações Já! , fazia alusão aos quase 400 anos de cativeiro no Brasil,
quando os africanos e seus descendentes escravizados não foram pagos
pelo trabalho de construção de toda riqueza material do país”
(Entrevistado A).
Os ativistas que promoveram aquele protesto colocaram em xeque
a política racial predominante do movimento negro. Talvez por isso foram
taxados de irresponsáveis, personalistas e inconseqüentes,
“Embora sem o apoio da maior parte do movimento negro, eles não
desistiram e levaram a diante o movimento pelas reparações, que
reivindicava do Estado brasileiro o pagamento de 102 mil dólares para
cada um dos afrodescendentes. Argumentava-se que devido aos crimes e
55
aos danos caudados pela escravidão, o Estado brasileiro teria uma dívida
não só moral, mas também material com todo descendente de escravo. O
trabalho não remunerado por quase quatro séculos teria significado uma
expropriação do africano e seus descendentes escravizados, os quais
precisavam ser compensados para se começar a fazer justiça no país”
(Entrevistado A).
O NCN-USP contribuiu para que o movimento das reparações se
expandisse e ganhasse notoriedade pública,
“Adquirindo uma dimensão interestadual, e promovendo uma série
de atividades, como panfletagens, atos públicos, plenárias e seminários.
Constituiu-se um comitê executivo, publicou-se um jornal e articulou-se
uma aliança com as forças políticas progressistas. O auge do movimento
ocorreu em 1995, quando se comemorou o tricentenário da morte do líder
Zumbi dos Palmares. Na marcha que reuniu milhares de ativistas negros
em Brasília, era possível ver a bandeira do movimento Reparações Já. Na
ocasião o então deputado federal Paulo Paim (PT) apresentou o projeto
de lei nº 1239, que em um dos seus artigos reivindicava da União a
indenização de 102 mil reais para cada descendente de escravo no Brasil:
“A União pagará, a título de reparação, a cada um dos descendentes de
africano escravizados no Brasil o valor equivalente a R$102.000,00 (cento
e dois mil reais)” (Entrevistado A).
Ainda no ano de 1995, uma data importante para o movimento
negro, a USP, através de sua Pró-Reitoria de Cultura e Extensão
Universitária organizou uma agenda cobrindo todo aquele ano para
rememorar os 300 anos da morte de Zumbi,
“Esse evento busco priorizar não as manifestações de caráter
festivo, mas sim a conscientização e os debates de reflexão e análise em
busca de soluções. Uma comissão especial com essa finalidade foi
nomeada pelo reitor da universidade e dentro dela um grupo de trabalho
incumbido da elaboração das propostas ou pistas de políticas públicas em
benefício da população negra, vítima da discriminação racial. Questões
56
espinhosas como o ingresso de negros na universidade, a introdução das
disciplinas de História da África e do Negro Brasileiro no currículo do curso
de História foram colocadas com muita força e emoção. Uma cartilha
dirigida aos alunos de 1º e 2º graus foi editada. Foram promovidos cursos
de difusão em algumas faculdades sobre o racismo e a cultura negra, sem
esquecer seminários nacionais e internacionais. (...) A publicação, em
julho de 1995, pela Folha de S. Paulo, de uma pesquisa de opinião sobre
a existência do preconceito racial anti-negro no Brasil e toda polêmica no
mesmo jornal sobre a sexualidade de Zumbi, etc, toda efervescência deve
ter mudado algo na cabeça de alguns cidadãos sensíveis” (Munanga,
1996: 89).
Em relação ao movimento pelas reparações, muitos setores do
movimento negro, entretanto, continuaram a se opor aquela campanha e,
em algumas ocasiões a tratavam com chacota. Diziam que o negro
brasileiro não precisava de “migalhas”. Outros falavam que jamais se
sujeitariam a receber algum tipo de indenização do Estado brasileiro,
“É interessante notar, que até aquele momento, o setor hegemônico
do movimento negro brasileiro insistia em não se inspirar no movimento
pelas reparações, que em escala internacional obtinham conquistas. A
exemplo dos judeus, que depois da Segunda Guerra Mundial foram
indenizados por conta do nazismo” (Entrevistado A).
Com o isolamento cada vez mais crescente, o movimento pelas
reparações foi se esvaziando, perdendo respaldo político e sendo pouco a
pouco esquecido no final da década de 1990, contudo,
“Eu entendo que podemos concluir dizendo que depois de mais de
uma década, é preciso considerar a importância do movimento pelas
reparações dentro do movimento negro, pois se a proposta que triunfou
como eixo da luta desse movimento foi a das cotas, ironicamente, tal
proposta foi gestada no bojo do princípio que rege o das reparações”
(Entrevistado A).
57
Em outros termos, o almoço de protesto no Maksoud Plaza foi um
marco nas lutas anti-racistas. Independente das divergências que causou
o método de contestação, o episódio pressagiou um novo momento do
movimento negro, na medida em que desencadeou em São Paulo, e mais
tarde, no resto do país, o polêmico debate em torno das políticas de
reparação ou como ficaram conhecidas, as ações afirmativas.
3.3 Os cursos pré-vestibulares
Difundidos pelo país ao longo dos anos 1990, os cursos pré-
vestibulares para alunos negros e carentes são considerados como
desdobramentos de um conjunto de estratégias do movimento negro nas
décadas de 1970 e 1980, dentre as quais podemos destacar,
“A escolarização dos negros como processo de construção de
novas lideranças e fortalecimento de outras lideranças; a capilarização de
militantes da luta anti-racismo em diferentes espaços de luta e intervenção
social; aumento da escolarização da base social dos movimentos negros,
em discussões que tiveram lugar nos anos 80, sobretudo no âmbito dos
Agentes da Pastoral do Negro, onde ganhou corpo a idéia de intervir na
ponte entre o segundo e o terceiro grau, ou seja, de fortalecer a entrada
na universidade de estudantes negros” (Santos, 2005: 232; 233).
Os cursos pré-vestibulares atuaram de forma geral como uma
tentativa pioneira de reverter os pequenos números de ingresso de
estudantes negros no ensino superior. O recorte racial ganhou o status de
bandeira principal desse projeto, mas também foi associada às dimensões
sócio-econômicas e das injustiças no campo da educação, que dialoga
com outras discussões como a militância.
É possível observar algumas experiências que se difundiram por
várias regiões do país, como o Núcleo de Consciência Negra da Usp
(NCN), Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes
(Educafro) e o Instituto Cultural Beneficente Steve Biko (ICBSB), veremos
como foram desenvolvidas as propostas das três entidades.
58
A organização da Cooperativa Educacional Steve Biko, depois
Instituto Cultural Beneficente Steve Biko, surgiu por iniciativa de
estudantes e professores negros, com o objetivo de,
“Fortalecer a luta contra o racismo, através de uma ação concreta:
colaborar com a entrada de jovens negros na universidade” (ICBSB apud
Santos, 2005: 194).
O ICBSB foi criado em julho de 1992, organizando o primeiro curso
preparatório para o vestibular direcionado para estudantes negros de
baixa renda do país. O curso foi oferecido inicialmente em espaço cedido
pelo Diretório Central dos Estudantes (CDE) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e seus instrutores trabalhavam voluntariamente. Os
números revelaram que no final do ano de 1992 25 alunos estavam
freqüentando o cursinho, sendo que mais de 50% destes foram aprovados
no vestibular (Santos, 1993). A iniciativa e seus primeiros resultados se
espalharam pelo Brasil e outras entidades começaram a realizar
experiências semelhantes.
Apesar do Instituto surgir como uma proposta autônoma e
independente, não tendo vínculo orgânico ou político com nenhuma
entidade do movimento negro, é possível notá-lo,
“Como um produto da militância de jovens negros de diferentes
entidades e orientações políticas dentro do movimento negro, que
identificam o curso como a possibilidade de uma nova perspectiva de
atuação, através de uma ação prática voltada para a solução de alguns
dos problemas diagnosticados referentes à situação da população negra
no Brasil” (Santos, 2005: 196).
Como principal reflexo da aproximação da proposta do cursinho
com as discussões do movimento negro e como característica que o
diferencia, no conjunto de disciplinas oficiais oferecidas pelo curso inclui-
se ‘Cidadania e Consciência Negra’. É este aspecto que torna a proposta
da entidade peculiar, de acordo com a visão de um de seus fundadores e
diretores,
59
“Consideramos que a instituição é uma forma de levar um serviço à
comunidade negra. Todo estudante que entra aqui é obrigado a freqüentar
o que a gente considera a matéria fundamental que é a ‘Cidadania e
Consciência Negra’. O que nós queremos é formar agentes, não é colocar
qualquer estudante negro na universidade. Nossa idéia é possibilitar o
ingresso do estudante na universidade com o mínimo de discussão da
questão racial” (ICBSB apud Santos, 2005:201).
Além da formação oficial exigida pelo vestibular os fundadores
parecem preocupados com questões como a formação da identidade
racial dos jovens. A educação aparece como um espaço privilegiado de
ação, assim uma proposta pedagógica envolve atenção com as diferenças
culturais, raciais e sociais,
“Será que basta dar uma boa educação numa escola particular?
Qual o caráter dessa educação: formar novos senhores e escravos? Na
medida que o material didático utilizado nessas escolas reforça a idéia da
superioridade da raça branca: beleza, heróis, auto-estima, domínio, o que
resta ao estudante negro? Quando criança chora e recusa-se a ir à escola.
Quando adolescente tímido ou tenta ser o melhor da classe para atenuar a
carga da discriminação racial. É preciso estar atento a esta
particularidade. Não é escondendo, camuflando as nossas diferenças que
vamos resolver o problema da questão racial no Brasil, mesmo porque
este problema não é tão somente nosso e sim da sociedade brasileira”
(ICBSB apud Santos, 2005: 205).
O NCN-USP, entidade fundada por funcionários, alunos e
professores da USP, em 13 de maio de 1987, tem como objetivo criar um
espaço de discussão sobre o lugar do negro na sociedade e na
universidade. Em 1992, o Núcleo tem sua sede legalizada, no ano
seguinte lança o movimento pelas reparações e no segundo semestre de
1994, cria seu curso preparatório para o vestibular.
O curso foi pensado pelo Núcleo, em sua proposta original,
enquanto uma ação político-pedagógica, com o objetivo de,
60
“Preparar a sua clientela alvo para o ingresso nas universidades
públicas visando contribuir, através da promoção educacional, para o
desenvolvimento integral de jovens estudantes/trabalhadores,
pertencentes aos setores excluídos da sociedade, agasalhando-os com as
prerrogativas da cidadania em construção” (NCN, 1994: 2).
Em seu projeto pedagógico propõe, além das matérias exigidas nos
vestibulares, que o curso ofereça, aos sábados, o módulo interdisciplinar
Cidadania e Consciência Negra.
As experiências descritas anteriormente são bastante próximas.
Apesar de utilizarem para as aulas um espaço cedido por universidades
públicas, não possuem vínculos institucionais com estas ou outras
entidades, remuneram seus professores através de uma mensalidade
paga pelos alunos, o curso é oferecido no período de nove meses e a
seleção dos alunos envolve critérios raciais e sociais.
No ICBSB a primeira etapa da seleção é composta por um
questionário para ser preenchido com dados raciais, sócio-econômicos,
familiares, dados gerais do candidato, uma redação e uma entrevista. No
momento da seleção é priorizado o estudante que participa de atividades
junto aos movimentos sociais, sendo que a maioria dos candidatos são
indicados por entidades do movimento negro da Bahia. No NCN, é
realizada para seleção dos estudantes, uma prova de conhecimentos
gerais, em seguida é realizado uma avaliação sócio-econômica e racial,
seguida de uma entrevista. Ao final, a seleção deve atender a uma cota do
alunado composta por 70% de negros e mestiços (Santos, 2005).
A experiência dos cursos pré-vestibulares ligados aos Agentes da
Pastoral do Negro da Igreja Católica nasce de forma distinta das
experiências descritas anteriormente. Inspirados no projeto iniciado pelo
ICBSB, alguns membros da Pastoral organizam o primeiro núcleo de
curso pré-vestibular em maio de 1993, em uma igreja de São João do
Meriti, no Estado do Rio de Janeiro, contando com 98 alunos (Santos,
2005).
61
A Educafro é uma Organização não-governamental (Ong) fundada
em 1997 por Frei Davi Raimundo Santos20, principal liderança na criação e
fortalecimento da rede Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC),
que teve, sobretudo entre os anos de 1997 e 1998, mais de 80 núcleos
espalhados por toda região metropolitana do Rio de Janeiro. Dessa
experiência surgiram várias outras, existindo hoje diversas entidades
ligadas à Pastoral do Negro que mantêm, em algumas regiões como São
Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul cursos pré-vestibulares. A
proporção que esse projeto alcançou foi significativa,
“Existe atualmente 75 núcleos, e mais 50 em processo de
formação, no Rio de Janeiro com 4.500 alunos e mais de 1.500
professores e coordenadores, e em São Paulo são 30 núcleos, 1.100
jovens e adultos e 450 professores e coordenadores” (Santos, 2005: 205).
No que diz respeito à seleção, esta fica a cargo dos núcleos,
devendo seguir apenas a orientação geral de incorporar unicamente
alunos carentes. Estabelecer uma porcentagem de estudantes negros nos
cursos não é uma preocupação, prevalecendo a idéia de, sendo esta um
ação voltada para a população carente, os negros também serão dela
beneficiários. Sobre a proposta pedagógica, ministram 10 aulas
convencionais, baseadas no vestibular da FUVEST e mais uma aula de
cidadania e cultura, tratando de temas como direitos humanos, questões
de gênero, raciais, violência, entre outros (Santos, 2005).
Podemos observar que os cursos pré-vestibulares são, atualmente,
um canal de discussão da questão racial e também se tornaram
interlocutores com a esfera governamental. A exemplo do ano de 2002 na
gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso foi criado o programa
Diversidade na Universidade,
“Esse programa começou a ser discutido ainda em 2001, contando
com forte apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), tanto
em termos de recursos como também de formulação deste. Objetivando
20 Frei Davi é diretor executivo da Educafro em São Paulo e membro de sua executiva nacional.
62
melhorar as condições no ingresso no ensino superior de grupos
socialmente desfavorecidos, o programa estava centrado no repasse de
recursos para organizações públicas ou privadas que oferecessem a
esses grupos cursos preparatórios para candidatos ao vestibular,
principalmente, em universidades públicas” (Heringer, 2006: 99).
Por essa razão o programa sofreu críticas, ao reduzir a atuação do
governo naquele momento apenas ao financiamento de cursos pré-
vestibulares, sem incluir outras medidas, uma vez que o financiamento
desses cursos representava o reconhecimento das limitações do ensino
oferecido pelas escolas públicas. Entretanto, essa ação encampada pelo
governo federal na ocasião permitiu que se instalasse algumas mudanças
nos padrões de relacionamento entre o movimento negro e o poder
público advindas da explicitação dos conflitos e das desigualdades raciais.
A despeito do protagonismo dos ativistas do movimento negro no
debate e na exigência de ações afirmativas como uma das estratégias de
promover a igualdade racial verificamos que os cursos pré-vestibulares
corresponderam as primeiras tentativas de buscar patamares mais
equânimes e condições mais leais de concorrência nos vestibulares entre
negros e brancos.
3.4 Grupo de Trabalho Interministerial
Em 1995 a mobilização nacional do movimento negro realizou em
Brasília a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e
pela Vida, o principal objetivo deste protesto público era denunciar o racismo
vigente na sociedade brasileira e pressionar as autoridades governamentais
a reconhecer as iniqüidades entre brancos e negros assumindo o
compromisso de formular políticas sociais capazes de atender as demandas
da população negra no acesso à educação, saúde, trabalho e preservação
dos direitos sociais e humanos.
Os impactos da marcha levaram o governo federal, na gestão do
presidente Fernando Henrique Cardoso a criar no mesmo ano o Grupo de
63
Trabalho Interministerial (GTI) que tinha como proposta formular e executar
ações integradas entre todos os ministérios de combate à discriminação
racial.
No dia 20 de novembro de 1995, a Presidência da República institui o
Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com a finalidade de desenvolver
políticas para valorização da população negra. Compete a esse Grupo de
Trabalho, de acordo com o artigo 2º, dentre outras coisas:
I – “Propor ações integradas de combate à discriminação racial,
visando o desenvolvimento e a participação da população negra”;
II – Elaborar, propor e promover políticas governamentais
antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania da população negra;
IX – Estimular e apoiar iniciativas públicas e privadas que valorizem a
presença do negro nos meios de comunicação;
X – Examinar a legislação e propor as mudanças necessárias,
buscando promover e consolidar a cidadania da população negra “
(Moehlecke, 1998: 69).
Do exposto acima, é possível dizer que a ele (o GTI) compete a
proposição de políticas governamentais discriminatórias, o incentivo a
iniciativas públicas e privadas para o desenvolvimento da população negra, e
o exame e proposição de leis em colaboração com os Poderes Legislativo e
Judiciário.
Enquanto um importante instrumento de políticas públicas, a coleta e
divulgação de informações sobre a população negra também estão entre as
competências do órgão. A respeito da estrutura do Grupo de Trabalho, ele é
integrado por: oito membros da sociedade civil, vinculados ao movimento
negro, oito membros de Ministérios e dois de Secretarias, todos designados
pelo Presidente da República (Brasil, 2004).
O conceito de ações afirmativas desenvolvido pelo GTI entende que
estas envolvem,
“Medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo
Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar
desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de
64
oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela
discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos,
religiosos, de gênero e outros” (Brasil, 2004).
No que diz respeito às proposições acerca das políticas de ações
afirmativas, o GTI realizou dois seminários que aconteceram em Salvador e
Vitória onde foram elaboradas 46 propostas que abrangiam as áreas da
educação, saúde, comunicação e trabalho. O GTI entende que compete ao
governo federal estimular os governos estaduais e municipais a adotarem as
medidas afirmativas e estabelecer mecanismos como incentivos fiscais junto
à iniciativa privada.
3.5 Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)
O PNDH foi instituído no segundo ano da primeira gestão do governo
Fernando Henrique Cardoso em 1996 com o objetivo de dar suporte as
discussões a respeito das ações afirmativas. O programa dispõe de um
capítulo específico dedicado à população negra, com ações como inclusão
do quesito cor em todos os documentos oficiais, apoio às iniciativas privadas
que realizem discriminação positiva e a formulação de políticas
compensatórias que promovam social e economicamente os negros, dentre
outras.
O Programa propõe a proteção do direito ao tratamento igualitário
perante a lei,
“Propor legislação proibindo todo tipo de discriminação, com base em
origem, raça, etnia (...), e revogando normas discriminatórias na legislação
infraconstitucional, de forma a reforçar e consolidar a proibição de práticas
discriminatórias existentes na legislação constitucional” (PNDH ,1998: 5).
Em 1999, foi elaborado o Primeiro Relatório Nacional sobre os Direitos
Humanos no Brasil, pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de
São Paulo em colaboração com governos estaduais e organizações da
sociedade civil. Avaliando a situação desde a implantação do PNDH até
1998, diagnosticou a série de violações aos direitos civis, políticos, sociais e
culturais ainda existentes no país, nos diversos estados da federação, mas
65
também levanta a existência de órgãos e entidades públicas ou não, que
vem tentando realizar um acompanhamento e denúncia dos desrespeitos
aos direitos humanos.
3.6 Convenções nacionais e internacionais:
proposições políticas com participação popular
No plano internacional, os instrumentos de proteção aos direitos
humanos interagem em benefício dos indivíduos e somam-se ao sistema
nacional de proteção com a finalidade de produzir maior efetividade na
promoção dos direitos aos cidadãos.
Nessa perspectiva, algumas Convenções contemplam a urgência em
se erradicar a discriminação como medida fundamental para que se garanta
o pleno exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais e, portanto
prevê a necessidade de combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade.
Nesse sentido, as ações afirmativas situam-se nos parágrafos das
Convenções como instrumento de inclusão social que objetiva alcançar a
igualdade material por parte dos grupos mais vulneráveis, como minorias
étnicas, raciais, as mulheres, dentre outros grupos. Note-se, então que a
Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial realizada em dezembro de 1969, da qual o Brasil é
signatário, contempla a possibilidade jurídica de uso das ações afirmativas
pelos Estados e prevê,
“No artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de “discriminação positiva”,
mediante a adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos
ou indivíduos, com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um
nível de equiparação com os demais” (Piovesan, 2005: 39).
Ainda, dentre as convenções que o Estado brasileiro é signatário
destacam-se: A Convenção 111, que trata da discriminação em matéria de
emprego e profissão realizada em janeiro de 1968; e também a Convenção
Relativa à Luta Contra a Discriminação no Ensino, realizada em setembro de
1968.
66
Nesse cenário, o uso da lei passou a orientar a ação dos setores
organizados da sociedade civil, que tem exigido em termos práticos a sua
concretização por parte das instituições governamentais.
“Sobre o cumprimento dessas Convenções, em 1995 o governo
brasileiro deu sua anuência à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
para uma avaliação e observação in loco no país. Dentre as conclusões
desse trabalho, que envolveu um contato com representantes do poder
público e de entidades do movimento negro, a discriminação racial é
identificada como um dos principais problemas existentes” (Moehlecke, 1998:
67).
Em termos de dispositivos que demarcam a busca pela igualdade
material, ou seja, que vai além da igualdade formal, a Constituição Federal
de 1988 apresenta princípios que viabilizam a finalidade pública de um
projeto mais democrático de nação. A título de registro,
“Destaque-se o artigo 7º, inciso XX, que trata da proteção do mercado
de trabalho da mulher, mediante incentivos específico, bem como o artigo 37,
inciso VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e
empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência. Acrescente-se
ainda a chamada “Lei das Cotas” de 1995 (Lei nº 9.100/95), que obrigou ao
menos 20% dos cargos para as candidaturas às eleições municipais que
fossem reservadas às mulheres. Adicione-se também o Programa Nacional
de Direitos Humanos, que faz expressa alusão às políticas compensatórias,
prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de
grupos socialmente vulneráveis” (Piovesan, 2005: 40).
Outro marco importante que aponta as ações afirmativas como
medida legal aconteceu na III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, em Durban,
África do Sul, em 2001. A delegação brasileira composta por um grande
número de militantes, diplomatas e funcionários do governo brasileiro
estiveram envolvidos durante todo o processo preparatório que antecedeu a
Conferência. Ao longo do processo destacam-se algumas ações como o fato
do Brasil ter tido papel fundamental na negociação de conceitos que seriam
discutidos no evento, como ações afirmativas, reparações etc; outro fato
67
importante foi a proposta de realização da conferência ter sido feita pelo
embaixador brasileiro à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas
(Consciência Negra, 2006).
Importa destacar que o documento oficial brasileiro apresentado à
Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo propôs,
”A adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afro-
descendentes às universidades públicas, bem como a utilização, em
licitações públicas, de um critério de desempate que considere a presença
de afro-descendentes, homossexuais e mulheres, no quadro funcional das
empresas concorrentes” (Consciência Negra, 2006: 32).
Como podemos ver nos dois itens que se segue do relatório da
Conferência, da qual o Brasil é signatário, se fomenta a implantação de
políticas para população negra,
“107.Destacamos a necessidade de se desenhar, promover e
implementar em níveis nacional, regional e internacional, estratégias,
programas, políticas e legislação adequadas, os quais possam incluir
medidas positivas e especiais para um maior desenvolvimento social
igualitário e para a realização de direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais de todas as vítimas de racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata, inclusive através do acesso mais efetivo
às instituições políticas, jurídicas e administrativas, bem como a
necessidade de se promover o acesso efetivo à justiça para garantir que
os benefícios do desenvolvimento, da ciência e da tecnologia contribuam
efetivamente para melhoria da qualidade de vida para todos, sem
discriminação;
108. Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas
especiais ou medidas positivas com o intuito de promover sua integração
na sociedade. As medidas para uma ação efetiva inclusive as medidas
sociais, devem visar corrigir as condições que impedem o gozo dos
direitos e a introdução para incentivar a participação igualitária de todos os
grupo raciais, lingüísticos e religiosos em todos os setores da sociedade
colocando a todos em igualdade de condições” (Brasil, 2001: 37).
68
Dentre estas medidas devem figurar outras para o alcance de
representação adequada nas instituições educacionais, nos partidos
políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços
judiciários, na política, exército e outros serviços civis, os quais em alguns
casos devem exigir reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para
igualdade de participação (Brasil, 2001).
Outra importante referência para a discussão foi a Conferência
Regional das Américas sobre Avanços e Desafios no Plano de Ação contra o
Racismo, Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas foi
realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de julho de 2006. A ocasião
possibilitou a discussão dos resultados alcançados após a Conferência de
Durban, quando o governo brasileiro apresentou seu compromisso com as
políticas de ação afirmativa.
Dos resultados alcançados pelos países participantes considera-se21 ,
“A inclusão dos temas de combate ao racismo, de promoção da
igualdade racial e dos direitos humanos nas estruturas de governo; o
surgimento de instrumentos específicos e abrangentes, como a criação da
Relatoria Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre
os Direitos das Pessoas Afrodescendentes e contra o Racismo em fevereiro
de 2005; no caso específico do Brasil, a criação da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)22 propiciou um
acúmulo inédito na garantia do recorte racial em várias áreas da política
pública; a conferência possibilitou a conexão do debate nacional com a
construção de políticas públicas de combate ao racismo em âmbito
internacional, uma vez que 17 países estruturaram órgãos governamentais
para o tratamento dessa temática” (Consciência Negra, 2006: 33).
Um informe publicado pelas Nações Unidas a respeito da Conferência
destaca, em suas conclusões,
21 “Organizada pelos governos do Brasil e do Chile, com o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas, a Conferência Regional das Américas reuniu representantes governamentais de 21 estados e de entidades da sociedade civil dos 35 países da América Latina, do Caribe, América Central e América do Norte” (Consciência Negra, 2006: 33). 22 Adiante daremos mais informações sobre a Secretaria.
69
“Celebramos que a Conferência tenha convocado os protagonistas da
luta contra a discriminação racial, o racismo, a xenofobia e intolerâncias
correlatas da região para dar um novo impulso aos consensos já alcançados
e para fortalecer a promoção da diversidade, da igualdade, da paz e da
democracia nas Américas” (Consciência Negra, 2006: 33).
Ainda sobre as ações realizadas no Brasil, podemos destacar a 1ª
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), realizada
em Brasília, de 30 de junho a 2 de julho de 2005, para deliberar e discutir os
rumos das políticas públicas de promoção da igualdade racial. Instituída por
decreto presidencial, a Conferência fez parte das atividades alusivas ao Ano
Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que se deu pela intensificação
do debate à implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade
Racial.
A Conapir também foi fruto do processo de luta de diversos
segmentos do movimento negro,
“Com o tema “Estado e sociedade construindo juntos a igualdade
racial”, a conferência mobilizou 95.573 participantes: 92.750 nas etapas
estaduais e 2.823 na nacional. (...) Com base no documento que subsidiou
as conferências preparatórias, foram indicados os seguintes objetivos: refletir
sobre a realidade brasileira, do ponto de vista da sociedade e da estrutura do
Estado, considerando os mecanismos de reprodução da discriminação, do
racismo e das desigualdades raciais; avaliar as ações e políticas públicas
desenvolvidas para promoção da igualdade nas três instâncias de governo,
bem como o cumprimento dos compromissos internacionais objetos de
acordos, tratados e convenções; e propor diretrizes para a Política Nacional
de Promoção da Igualdade Racial e Étnica, considerando a perspectiva de
gênero, cultura e religião” (Consciência Negra, 2006: 34).
Com base nos resultados da 1ª Conapir, foi elaborado o Plano
Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Planapir) que apresenta metas e
diretrizes orçamentárias para inclusão racial, concebido com base no Plano
Plurianual que tem a igualdade racial como tema transversal.
70
3.7 A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR)
A Conferência de Durban constituiu um marco importante para a
redefinição da agenda das relações raciais no Brasil. As conclusões finais da
Conferência solicitavam dos países signatários a adoção, quando
necessário, de medidas apropriadas para assegurar que os cidadãos
pertencentes às minorias nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas tenham
acesso a bens sociais fundamentais.
Como responsabilidade iminente dos Estados participantes as
medidas da Conferência deveriam ser aderidas como política nacional
através da construção do Plano de Ação Pós-Durban. Essa tarefa, portanto,
seria herdada pela gestão federal em curso, o governo Fernando Henrique
Cardoso e a futura gestão que se avizinhava com o governo de Luís Inácio
Lula da Silva a empreenderem esforços para elaboração do Plano Nacional
de Promoção da Igualdade Racial.
Com a presença efetiva do movimento negro, como proponente,
participante crítico ou componente do processo de monitoramento da
implementação das políticas públicas, as ações afirmativas apresentaram-se
como desafio à nova gestão. Nesse sentido,
“As políticas de ação afirmativa e a relação com as chamadas “áreas
duras”, como planejamento, economia e infra-estrutura, foram as principais
recomendações do Relatório de Transição do Governo. Acrescente-se a
proposição para criação de um órgão com responsabilidade de coordenação
de políticas, orientado pela transversalidade, incorporando as dimensões de
raça, classe social, gênero e a presença de negros e negras na estrutura do
poder do governo federal” (Ribeiro, 2006: 27).
Seguindo os indicativos da proposição de um projeto voltado para
promoção da igualdade racial, o governo do presidente Luís Inácio Lula da
Silva criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), em 21 de março de 2003, destacando a data instituída pela
ONU – Dia Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação Racial.
71
A SEPPIR é um órgão de assessoramento direto e imediato ao
presidente da República. Seu objetivo centra-se em,
“Promover a igualdade e a proteção dos direitos dos indivíduos e
grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de
intolerâncias – negros, indígenas, ciganos árabes, palestinos, judeus e
outros, com ênfase à população negra; acompanhar e coordenar políticas de
diferentes ministérios e outros órgãos do governo brasileiro para a promoção
da igualdade racial; articular, promover e acompanhar a execução de
diversos programas com organismos públicos e privados, nacionais e
internacionais; acompanhar e promover o cumprimento de acordos e
convenções internacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito à
promoção da igualdade e ao combate à discriminação racial ou étnica;
auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais em
relação à aproximação de nações do continente africano” (Brasil, 2004: 43).
Em sintonia com esses objetivos da Secretaria, foi elaborada a Política
Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), que apresenta
diretrizes para todas as áreas do governo e para sociedade brasileira. Essa
medida foi incluída no Plano Plurianual (PPA) 2004 – 2007, no capítulo
“Inclusão Social e Redução das Desigualdades Sociais”, com o desafio de
promover a redução das desigualdades raciais,
“Desenvolveu-se um conjunto de ações prioritárias que abrangem
diferentes órgãos governamentais: política para remanescentes de
quilombos; desenvolvimento, trabalho e geração de renda; educação e
cidadania; diversidade cultural e combate à intolerância religiosa; saúde e
qualidade de vida; segurança pública e ordenamento jurídico; políticas de
relações internacionais” (Brasil, 2003-2006: 44).
A SEPPIR também se caracteriza pelo trabalho conjugado com a
sociedade civil, por meio da atuação conjunta com o Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e o Fórum Intergovernamental de
Promoção da Igualdade Racial (FIPIR)23,
23 “O Fipir agrega atualmente 470 localidades – 23 estados e 447 municípios, dos quais 184 criaram órgãos executivos relacionados à temática racial” (Brasil, 2003-2006: 42).
72
“O Conselho é um órgão de caráter consultivo composto por entidades
e instituições da sociedade civil representativas dos diversos grupos raciais,
com a finalidade de propor, em âmbito nacional, políticas que visem reduzir
as desigualdades raciais. O Fórum, que em 2005 expandiu sua adesão a 23
governos estaduais e 373 governos municipais, é constituído por
administrações que possuam organismos executivos e ações de promoção
da igualdade racial com o objetivo de consolidar estratégias dentro dessa
finalidade. Instituído em 2005, o Ano Nacional de Promoção da Igualdade
Racial teve como intuito intensificar as articulações políticas para ampliar o
debate sobre a necessidade de implementação imediata de políticas de
ações afirmativas no Brasil, potencializando ações conjuntas entre os
governos federal, locais e sociedade civil” (Brasil, 2003-2006: 46).
No âmbito da educação superior, cenário em que iremos nos ater,
consideramos a atuação da SEPPIR no que diz respeito à elaboração de
proposições legislativas que estabelecem reserva de vagas para estudantes
negros e egressos de escolas públicas nas universidades públicas. A
proposta do governo encaminhada em 13 de maio de 2004 para o
Legislativo, hoje incluída no Projeto de Lei 73/1999, indica a implantação do
sistema de reserva de vagas no ensino superior público para alunos oriundos
de escola pública considerando o percentual de negros e indígenas
proporcionalmente à sua participação na população das respectivas
unidades da federação, segundo os dados do IBGE.
“Essa formulação foi síntese do trabalho realizado pelo Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI) coordenado pelo MEC e pela SEPPIR em
2003. Baseou-se na análise dos projetos de lei que tramitavam na Câmara
Federal” (Brasil, 2003-2006: 82).
Desde então, a SEPPIR acompanha a tramitação do projeto nas
comissões pertinentes no Congresso. Nesse sentido, foram monitorados
debates relativos à educação e ações afirmativas no Congresso Nacional
que se propuseram aprofundar diálogos para o encaminhamento dos
projetos de lei para votação.
A SEPPIR também tem apoiado a construção de propostas das
instituições públicas com o objetivo de debater as experiências de reserva de
73
vagas para negros e indígenas e apontar os caminhos para amadurecer as
questões que cercam o tema das cotas nas universidades a partir da análise
dos casos concretos. Para tanto, em agosto de 2006 foi realizado o
Seminário Experiências de Políticas Afirmativas para Inclusão Racial no
Ensino Superior pela Universidade de Brasília (UNB), a SEPPIR e a
Secretaria de Educação Superior (Sesu/MEC).
No seminário foram apresentados dados que mensuraram o
desempenho acadêmico dos alunos cotistas, os seus rendimentos e a
avaliação do nível acadêmico dos alunos pelos professores.
É inegável que as ações afirmativas estabeleceram-se como pauta
das questões nacionais e encontram-se sob a atenção do Estado brasileiro
ao inserir essa discussão no campo da política pública. A SEPPIR é
resultado desse momento a quem se destina o tratamento da promoção da
igualdade racial a partir da ação conjunta entre governo e sociedade civil.
No caso das universidades que optaram por aderir o sistema de cotas
depararam-se com o fato de que os desafios avolumam-se após a sua
implantação, pois os desdobramentos extrapolam o campus universitário e
se vinculam a negociações e posicionamentos distintos que indicam
caminhos para democratização do acesso e para supressão das
desigualdades na sociedade.
No capítulo seguinte, para entender quais são os desafios impostos
pelas cotas nas universidades traremos a realidade de algumas e as
diferentes formas que assumiram em cada campus, ou seja, as várias formas
de implantação.
74
CAPÍTULO III Os Aspectos Institucionais da Implantação das Cotas
nas Universidades Públicas
4.1 Ação afirmativa: elementos da agenda
governamental para o ensino superior
A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas no ano de 2001 em Durban, constituiu
um marco importante para redefinição da agenda das relações raciais no
mundo. Os parágrafos que seguem no documento da Conferência explicitam
a importância da educação como um mecanismo que pode fortalecer as
medidas de combate ao racismo,
“117. Insta os Estados a trabalharem com outros órgãos pertinentes e
a comprometerem recursos financeiros para a educação anti-racista;
123. Insta os Estados a adotarem e implementarem políticas públicas
que proíbam a discriminação baseada em raça, cor, descendência, origem
nacional ou étnica em todos os níveis da educação, tanto formal quanto
informal; “ (Brasil, 2001: 73; 74).
O ano de 2001 marcou o início das ações afirmativas pelo governo em
diferentes âmbitos, como no caso do nível federal, onde algumas medidas
foram anunciadas ainda durante a Conferência de Durban, com a adoção de
cotas no Ministério do Desenvolvimento Agrário, posteriormente acolhidas
em outros setores do governo (Heringer, 2006).
Em maio de 2002, na gestão do então presidente Fernando Henrique
Cardoso, houve o lançamento do segundo Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH II) e, simultaneamente o Programa Nacional de Ações
Afirmativas que não se concretizou devido à escassez de recursos
destinados ao Programa e ao intenso clima pré-eleitoral que se aproximava
(Heringer, 2006).
75
Sob orientação da nova gestão do governo Luís Inácio Lula da Silva e
de um novo quadro institucional, as políticas na área da educação superior,
cenário em que iremos nos ater, passaram por um redesenho. Considerando
as dimensões da desigualdade na educação do país, foram instituídas novas
secretarias, como a SEPPIR, que já consideramos no capítulo anterior e a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad),
“A Secad surge com o desafio de desenvolver e implementar políticas
de inclusão educacional, considerando as especificidades das desigualdades
brasileiras e assegurando o respeito e valorização dos múltiplos contornos
de nossa diversidade étnico-racial, cultural, de gênero, social, ambiental e
regional (...) O Ministério da Educação (MEC), por intermédio da Secad,
estabelece a prioridade de construir arranjos institucionais que permitam
promover a coordenação e articulação de esforços entre Governos Estaduais
e Municipais, Ongs, movimentos sociais e organismos internacionais, para
ampliar o acesso, garantir a permanência e contribuir para o aprimoramento
de práticas e valores democráticos nos sistemas de ensino” (Cavalleiro;
Henriques, 2005: 218).
Nessa perspectiva, no que se refere ao acesso e à permanência dos
estudantes na educação superior daremos destaque às ações promovidas
pelo MEC em parceria com outros órgãos governamentais.
• Programa Diversidade na Universidade - esse programa começou a
ser discutido ainda em 2001; “o MEC por meio de um contrato de
empréstimo entre o governo federal e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), realizou, em 2002, uma experiência piloto sob o
título Projeto Diversidade na Universidade – Acesso à Universidade de
Grupos Socialmente Desfavorecidos. Em novembro de 2002, a Lei nº
10.558, oficializou a criação do Programa Diversidade na Universidade,
no âmbito do MEC, coordenado pela Secad, com a finalidade de
implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino
superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,
especialmente a população negra e indígena. Dentro do escopo do
programa, definiu-se como principal ação o apoio financeiro às
instituições que organizavam cursos preparatórios para o vestibular,
76
delineados como Projetos Inovadores de Curso (PICs), com o objetivo
geral de apoiar a promoção da equidade e da diversidade na educação
superior. No ano de sua implantação os PICs beneficiaram
aproximadamente 900 jovens” (Cavalleiro; Henriques, 2005: 216).
• Reserva de vagas nas universidades públicas – no dia 20 de
novembro de 2008, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei
73/1999 que reserva 50% das vagas em cada curso e turno de
universidades federais e instituições de ensino técnico, de nível médio,
oriundos de escola pública. As vagas serão distribuídas a candidatos
autodeclarados negros, pardos e indígenas em uma proporção no mínimo
igual à da população do Estado, segundo o censo do IBGE. A principal
mudança feita pela Câmara com relação ao projeto foi a inclusão de um
critério de renda para definir os beneficiados (Cotidiano, 2008). Para a Lei
entrar em vigor, o projeto precisa ser aprovado pelo Senado e sancionado
pelo presidente, no entanto, as instituições já têm adotado diferentes
modelos para aumentar o número de alunos da rede pública, como bônus
e cotas, mas com distintos percentuais de reserva de vagas.
• Programa Universidade Para Todos (ProUni) – criado em 2004 “é
destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para
cursos de graduação em instituições privadas de ensino superior, os
beneficiados são estudantes de escolas públicas, sendo 30% das vagas
reservadas a estudantes negros e indígenas. Em 2005 e 2006 foram
concedidas mais de 200 mil bolsas, entre elas 81.287 aos estudantes
negros e uma porcentagem também para indígenas. Ressalta-se que
esses alunos dificilmente ingressariam nas universidades sem a adoção
dessa medida. O ProUni envolve, por adesão, 1.424 instituições de
ensino universitário em todo o país” (Brasil, 2003-2006: 84;85 ).
• Projeto Uniafro – “junto ao MEC, a SEPPIR incentivou a formulação do
projeto Uniafro com o objetivo de apoiar o fortalecimento e a
institucionalização das atividades dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros
(Neabs) ou grupos correlatos das Instituições Públicas de Educação
Superior. Com isso, buscou-se articular a produção e difusão de
conhecimentos sobre a temática étnico-racial e contribuir para o acesso e
77
permanência da população negra no ensino superior com vistas a:
incentivar ações de mobilização e sensibilização de instituições de ensino
superior para implementação de políticas de ações afirmativas; contribuir
para a formação de estudantes afro-brasileiros nas instituições de
educação superior, em especial as que adotam sistema de reserva de
vagas” (Brasil, 2003-2006: 85).
• Projeto Afroatitude – “ esse programa foi criado em dezembro de 2004
por iniciativa do Ministério da Saúde em parceria com o MEC e a
SEPPIR. A finalidade é de apoiar a permanência de alunos cotistas nas
Universidades Federais, a partir do seu envolvimento em atividades de
pesquisa na área da saúde da população negra. Foram concedidos por
dois anos consecutivos bolsas de iniciação científica a 550 estudantes
negros cotistas de onze universidades públicas: Universidade de Brasília
(UNB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do
Paraná (UFPR), Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade do Estado da Bahia
(Uneb), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual
do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Estadual de Minas Gerais
(UEMG), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade
Estadual de Montes Claros (Unimontes). Em relação aos resultados,
destacam-se a criação e o fortalecimento de duas redes – uma de
universidades e uma de alunos para o desenvolvimento de ações e
geração de conhecimento sobre ações afirmativas, direitos humanos e
Aids” (Brasil, 2003-2006: 86).
A partir desses programas descritos acima, entendemos que um
projeto de educação de qualidade deve considerar as diferenças entre a
população. A permanência e a disseminação de formas de exclusão como o
racismo contrapõem-se a esse projeto. Essas ações constituem passos para
a formulação de políticas públicas voltadas para a realização do acesso e
permanência nas universidades calcadas em moldes mais justos, já que os
indicadores do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam a
respeito da escolaridade dos negros que a proporção de pessoas que
concluíram a universidade no país é de “10% de brancos, 2,1% de pretos e
78
2,4% de pardos; a população jovem de 20 a 24 anos também mostra níveis
expressivos de desigualdades raciais, pois para 53,6% dos brancos
cursando educação superior em nível de graduação, tem-se apenas 15,8%
de pretos e pardos” (IBGE, 2003: 218).
Esses indicadores representam o retrato de uma trajetória no campo
das políticas educacionais que traduz o descontínuo de desigualdade entre
brancos e negros. Nesse sentido, como ponderamos anteriormente, o
relatório do governo brasileiro levado à Conferência de Durban previa a
adoção de cotas para estudantes negros no ensino superior, e sem dúvida,
esse fato contribuiu para que o debate se ampliasse e algumas
universidades passassem a discutir internamente propostas de ações
afirmativas. No entanto, é curioso observar que na década de 1990 duas
universidades públicas se adiantaram nesse processo com propostas de
cotas para estudantes negros, a UNB, a UERJ e Uenf (Universidade
Estadual do Norte Fluminense).
Há uma diferença significativa em todo o processo de admissão da
reserva de vagas nas universidades, desde as discussões internas até a
concretização do projeto. Entendemos, portanto, que essas diferenças
traduzem também o modo como as universidades compreendem o projeto
das ações afirmativas.
A seguir, apresentaremos os aspectos institucionais de algumas
universidades que aderiram as cotas no vestibular.
4.2 As universidades públicas brasileiras
Há cinco anos, algumas universidades públicas começaram a adotar
políticas de democratização do acesso às suas vagas. O Mapa das Ações
Afirmativas na Educação Superior24, pesquisa realizada no ano de 2004 pelo
Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, constatou naquele período que 72
instituições (32% do total das universidades públicas) promoviam algum tipo
de ação afirmativa. O estudo demonstrou também que existem variações
significativas nesse processo de inclusão.
24 Publicado em www.politicasdacor.net.
79
Essas variações são relativas ao modelo da política pública adotada:
sistema de cotas, sistema de bonificação por pontos, acréscimo de vagas e
outros, além disso, diferem quanto ao grupo promovido pela política, ou seja
a quem se destinam as vagas: negros, indígenas, pessoas portadoras de
deficiência, alunos da rede pública, comunidades tradicionais, mulheres
negras etc.
Esse estudo comparativo entre as formas de inclusão nas
universidades demonstrou, no período investigado, que existe uma ampla
adoção de cotas étnico-raciais. Ao todo, 53 instituições haviam
implementado esse tipo de política. Dessas, 34 universidades possuíam
medidas afirmativas para negros, sendo que 31 se desenvolveram pelo
sistema de cotas e 3 por meio do sistema de bonificação por pontos. Uma
universidade havia adotado um número específico de vagas para mulheres
negras, comunidades tradicionais e 9 universidades para pessoas com
deficiência. No nordeste, 17 instituições estabeleceram medidas somente
para estudantes de escolas públicas e tantas outras se basearam no recorte
sócio-econômico como medida de ingresso independentemente do estudante
ser oriundo de escola pública ou privada25.
Como mencionamos anteriormente, essa pesquisa data do ano de
2004 e, portanto, não contempla o quadro geral de universidades que
aderiram as políticas de inclusão até os dias de hoje já que com o decorrer
dos anos esse número cresceu significativamente. No entanto, entendemos
que a pesquisa seja atual em relação ao formato que as universidades
seguiram aderindo para implantar as medidas de inclusão no seu vestibular.
Para melhor ilustrarmos esses modelos destacamos a seguir dois quadros
comparativos entre algumas universidades:
25 Dados apresentados pela pesquisa O Mapa das Ações Afirmativas na Educação Superior.
80
Quadro Comparativo – Formas de Implantação das Cota s UERJ/UENF UNEB UNB UEA UFAL UFPR Leis Estaduais nº 3542/2000 e 3708/2001 revogadas pela Lei nº 4151/2003 segundo programa de cotas legitimado pelo CONSU
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 196/2002
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 38/2003
Lei Estadual nº 2894/2004, programa de cotas votado pelo CONSU
Programa de cotas instituído pelo CONSU através do edital nº 01/2004
Programa de cotas instituído pelo CONSU através da resolução nº 37/2004
UNIFESP UEL UEMS UEMG UFBA UNIMONTES Programa de cotas (acréscimo de vagas) implantado pelo CONSU através de Resolução nº 27/2005
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 78/2004
Leis Estaduais nº 2589/2002 e nº 2605/2003
Lei Estadual nº 15.259/2004 legitimado pelo CONSU
Programa de cotas implantado pela resolução nº 01/2004
Lei Estadual nº 15.259/2004 implantado programa de cotas legitimado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão através da Resolução nº 104/2004
UFTO UNICAMP UNEMAT UFJF UFRN UFPA Edital coordenado e executado pelo CONSU
Programa de acréscimo de pontos implantado pelo CONSU em 24/05/2004
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 200/2004
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 56/2004
Programa de cotas implantado pelo CONSU em 05/07/2005
Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 31/2005
Fonte: www.politicasdacor.net
81
Quadro Comparativo – Reserva de Vagas UERJ/UENF UNEB UNB UEA UFAL UFPR Reserva de 20% das vagas para negros; 20% para alunos de escolas públicas; 5% para deficientes físicos e outras minorias étnicas.
Reserva de 40% das vagas para estudantes negros, oriundos de escolas públicas.
Reserva de 20% das vagas para estudantes negros.
Reserva de 60% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas; 4% para indígenas.
Reserva de 20% das vagas para estudantes negros oriundos de escolas públicas, sendo que desse total 60% são para mulheres e 40% para homens.
Reserva de 20% das vagas para estudantes negros; 20% para estudantes oriundos de escolas públicas.
UNIFESP UEL UEMS UEMG UFBA UNIMONTES Acréscimo de 10% das vagas para estudantes negros e indígenas oriundos de escolas públicas.
Reserva de 40% das vagas para estudantes de escolas públicas, sendo que desse total 20% são para negros.
Reserva de 20% das vagas para estudantes negros oriundos de escolas públicas e 10% para indígenas.
Reserva de 20% para estudantes negros, 20% para egressos de escolas públicas e 5% para portadores de deficiência e indígenas.
Reserva de 45% das vagas, desse total 43% para estudantes egressos de escolas públicas sendo que 85% desse percentual é reservado para negros e 2% para indígenas; 2 vagas para índios aldeados e 2 vagas para quilombolas.
Reserva de 20% das vagas para estudantes negros, 20% para egressos de escolas públicas e 5% para portadores de deficiência e indígenas.
UFTO UNICAMP UNEMAT UFJF UFRN UFPA Reserva de 5% das vagas de cada curso para estudantes indígenas.
Estabelece um sistema de 30 pontos para candidatos oriundos de escolas públicas ou supletivo (EJA) e mais 10 pontos para candidatos negros e indígenas.
Reserva de 25% das vagas de cada curso para estudantes negros.
Reserva de 50% das vagas de cada curso para alunos egressos de escolas públicas, sendo que desse total 20% são para estudantes negros.
Reserva de 50% das vagas de cada curso para estudantes egressos de escolas públicas.
Reserva de 50% das vagas para alunos egressos de escolas públicas, sendo que 40% desse total são para negros.
Fonte: www.politicasdacor.net
Como não temos a pretensão formal de analisar esse processo em
um grande número de universidades públicas, descreveremos com mais
detalhes a seguir a iniciativa de três no que diz respeito à implantação das
cotas.
82
4.3 A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj )
4.3.1 As primeiras leis que definiram as cotas na U erj
A Uerj e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) se
tornaram os primeiros casos emblemáticos sobre a discussão do sistema de
cotas nos vestibulares.
Já destacamos a importância que os resultados da Conferência de
Durban representaram para criar esferas institucionais que permitissem aos
setores organizados da sociedade civil propor e questionar as políticas que
são pensadas na área da educação. Pois bem, esse momento fortaleceu os
movimentos sociais, cujas ações pressionaram os governos federal e
estadual, bem como os representantes do Poder Legislativo nessas duas
instâncias,
“O mais significativo resultado desse movimento foi a criação de uma
lei estadual instituindo cotas raciais nas universidades públicas vinculadas ao
governo do Estado do Rio de Janeiro (Uerj e Uenf). Essa medida colocou a
democratização do acesso à universidade como ponto central nas políticas
sociais” (Santos, 2006: 112).
A lei que deu origem às cotas raciais nas universidades foram geradas
a partir de um projeto enviado por um parlamentar,
“Cujo partido tinha um assessor com destacada atuação no campo
das lutas anti-racismo, esse assessor sugeriu a medida, e o parlamentar,
ainda que sem envolvimento com a temática racial submeteu o projeto, que
foi aprovado por unanimidade pela Assembléia Legislativa e sancionado pelo
governo do Estado, na forma da lei nº 3.708, de 9 de novembro de 2001:
“Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as populações negra e
parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da
Uerj e Uenf”. A aprovação da lei deixou questionamentos a respeito do tópico
que determinava a responsabilidade do governo do estado em relação à
alocação de recursos para implantação de medidas visando garantir a
permanência dos alunos ingressantes pelo sistema de cotas; os proponentes
silenciaram-se quando da emergência de polêmica e contestações em
83
âmbito nacional contra a implantação da política” (Jornal Informativo Uerj,
2002).
Essa lei que instituía a reserva de vagas na universidade por critérios
raciais veio, na verdade, se somar e depois se sobrepor a outra, a Lei nº
3.524, de 28 de dezembro de 2000, que reservava 50% das vagas a
estudantes que tivessem cursado integralmente os ensinos fundamental e
médio em escolas públicas,
“Essa lei orientava uma inovação no vestibular da Uerj, que, em médio
prazo, visava modificar a própria relação entre a universidade e o sistema de
ensino básico, com a gradativa construção de um sistema de avaliação
continuada da trajetória escolar dos candidatos do ensino público, ou seja,
que as possibilidades de ingresso desses alunos não fossem definidas a
partir de um exame, mas sim de vários ao longo do curso de seu ensino
médio. Foi, para isso, implantado um sistema que dividia as vagas da
universidade em dois vestibulares, um voltado para os alunos egressos da
rede pública, chamado Sistema de Acompanhamento de Desempenho
Escolar (SADE), e outro para os estudantes que tivessem cursado pelo
menos parte de seus estudos nos níveis fundamental e médio na rede
privada, denominado Vestibular Estadual” (Jornal Informativo Uerj, 2002).
Naquele momento, para compatibilizar as duas leis, uma que
determinava o preenchimento de 50% das vagas por estudantes de escolas
públicas do Estado do Rio de Janeiro e outra que determinava o
preenchimento de 40% das vagas por negros e pardos, foi instituído o
decreto nº 30.766/2002, que regulamentava a lei de reserva de vagas
segundo critérios raciais definindo que essas vagas fossem preenchidas da
seguinte forma,
“Primeiro verificava-se a quantidade de autodeclarados negros e
pardos classificados para cada carreira no âmbito do SADE; em seguida, as
vagas faltantes para completar os 40% eram preenchidas chamando-se
outros candidatos autodeclarados negros e pardos, tanto no âmbito do Sade
quanto do Vestibular Estadual, aí importando a classificação relativa interna
ao grupo dos autodeclarados, e não sua classificação geral” (Santos,
2006:114).
84
Em meio à polêmica já então instaurada, e com uma clara campanha
contrária às cotas naquele ano dizia-se que todas as vagas da universidade
seriam preenchidas por cotas, pois, além dessas duas leis, no início de 2003
foi sancionada a Lei nº 4.061, que garantia a reserva de 10% das vagas nas
universidades públicas do estado a alunos portadores de deficiência.A
polêmica se estendeu mesmo após a redefinição da medida no vestibular de
2003.
Nesse sentido, ao final, as duas primeiras leis mencionadas foram
revogadas pela lei estadual nº 4151/2003 que conferia as regras e os
princípios para definir a seleção e o preenchimento das vagas,
“Art. 2º I - autonomia universitária; II – universalidade do sistema de
cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos; III – unidade do processo
seletivo” 26.
A partir de então o programa de cotas foi discutido e legitimado pelo
Conselho Universitário (CONSU). As cotas ficaram assim definidas: 45% do
total de reserva de vagas distribuídas em 20% para negros, 20% para
estudantes da rede pública e 5% para deficientes físicos e outras minorias
étnicas. Em segundo lugar, não se fez mais a divisão equivocada de pardos
e negros. Em terceiro lugar, a novidade foi a introdução do critério de renda
para concorrer as cotas. Esse novo modelo das cotas foi iniciado no
vestibular de 200427.
4.3.2 O vestibular 2003
O primeiro vestibular realizado após a aprovação das leis estaduais foi
no ano de 2003, e deu-se sob as reações internas e externas a universidade.
Na comunidade acadêmica muito se alardeou o fato da política ter sido
definida por lei estadual, mobilizando como argumentos centrais,
“O ferimento à autonomia universitária e que o processo era
antidemocrático, definido de cima para baixo ou de fora para dentro. Isso nos
alerta para dois aspectos: primeiramente, em certa medida, por não
26 Consulta realizada no site: www.vestibular.uerj.br. 27 Consulta realizada no site: www.vestibular.uerj.br.
85
observarem os processos políticos de construção dessas leis, tais
argumentos representavam uma crítica à representatividade da classe
política eleita pelo voto popular; em segundo, e de outro lado, diante da força
da construção institucional de nossa sociedade, torna-se efetivamente difícil
implantar uma política dessa envergadura sem um diálogo com a
comunidade que aponte a significação positiva dessa iniciativa” (Santos,
2006: 114; 115).
Sob o signo de uma polêmica na qual se sobressaíam as reações
negativas, questionavam-se, sobretudo a ineficácia da política. A forma como
foi definida a política, ou seja, por força da lei aplicada por uma decisão
externa à comunidade acadêmica, acabou por enfraquecer qualquer
posicionamento favorável à medida. Entretanto, quando da divulgação dos
resultados do vestibular, a polêmica ganhou novos contornos, instaurando-se
em outras esferas e assumindo um grau de publicização até então não
observado, já que se tratava da introdução de critérios sociais e raciais na
definição do acesso à universidade,
“A divulgação dos dados sobre os resultados do primeiro vestibular
com cotas na UERJ em 2003 em muito potencializou tais resistências. A
forma como os dados foram divulgados, sem um tratamento e uma
exposição mais complexa das diferentes situações de cada curso pela
universidade, permitiu a extremização de argumentos que contradiziam não
os resultados, mas, em última análise, a própria natureza da política. O
alarde feito em relação às baixas notas de alunos ingressantes por cotas em
alguns cursos, por exemplo, foi uma crítica à natureza das cotas em si, que é
tratar desigualmente os desiguais, e, portanto, aceitar na universidade
candidatos com diferentes bagagens de formação e patamares distintos de
notas” (Santos, 2006: 115; 116).
O fato de haver ingressado estudantes com pontuação inferior em
relação às de outros que disputavam vagas não-reservadas, imprimiu uma
questão de solução posterior na universidade por meio da mobilização de
86
esforços pela permanência qualificada e pela correção de eventuais
distorções de formação que esses alunos trariam do ensino médio28.
Um dado importante no processo seletivo de 2003 revelou que nem
todo estudante cotista foi beneficiado pelas cotas, ou seja, aqueles que
ingressariam independentemente da reserva de vagas, habilitados pela sua
pontuação,
“Dos 63,5% de ingressantes cotistas, 22,3% (praticamente um terço)
ingressariam sem a reserva, ou seja, são considerados cotistas, computados
para fins de preenchimento das vagas reservadas e atendimento às leis, mas
não foram beneficiados” (Jornal Informativo Uerj, 2003).
4.3.3 Os primeiros programas de permanência
Em meio aos acalorados debates no seio da comunidade acadêmica,
no primeiro semestre do ano letivo de 2003, ingressaram na universidade os
primeiros alunos cotistas. A primeira idéia que emergiu naquela ocasião era
que ingressariam na universidade alunos com um perfil radicalmente distinto
daqueles que a ocupavam,
“A universidade já tinha, em quantidade considerável, alunos de baixa
renda, oriundo do sistema de ensino público, contudo, há duas diferenças:
primeiro, até aquele momento, esses alunos concentravam-se nos chamados
cursos de “baixo prestígio social”, aqueles cujo vestibular é menos
concorrido; segundo, a entrada desses alunos agora é marcada por um traço
diferenciador no seu processo de acesso, o que permite a sua
estigmatização” (Santos, 2006: 122; 123).
A Reitoria da UERJ, preparando-se para implantação do sistema de
cotas, criou em 2002 uma comissão para elaborar um diagnóstico da
situação dos alunos e da universidade e para apontar também necessidades
e propostas a fim de garantir a permanência dos novos alunos no ano
seguinte,
28 “Os cursos aludidos de menor pontuação no vestibular 2003 foram Ciências Biológicas (São Gonçalo), Engenharia Civil, Engenharia Mecânica, Engenharia de Produção (Resende), Engenharia Elétrica, Física, Matemática (São Gonçalo), Odontologia, Pedagogia (Caxias) e Ciências Econômicas” fonte: www.uerj.br.
87
“Essa comissão contou, além de professores e funcionários da
universidade, com representantes dos movimentos do campo dos Pré-
Vestibulares Populares e da ONG Educafro” (Santos, 2006: 123).
A comissão valendo-se dos censos realizados pela universidade
produziu as seguintes constatações como base para constituição de suas
propostas:
• “A universidade já contava com significativo número de alunos
com renda insuficiente para enfrentar os desafios e as
necessidades colocadas pelos cursos universitários, e esse
número vinha crescendo nos últimos anos. Um exemplo era o
aumento do ingresso anual dos alunos oriundos de famílias
com renda mensal de até cinco salários mínimos, o número
havia passado de 843 em 2001 para 1.140 em 2002, e
estimava-se que se aproximaria de 1.500 em 2003;
• Naquele momento, 31,9% dos alunos da universidade
pertenciam a famílias cuja renda era de até oito salários
mínimos. Além disso, corroborando com a tendência de
aumento do ingresso de estudantes mais pobres na
universidade, entre 1997 (ano de realização do primeiro censo)
e 2002, o percentual de alunos com renda familiar até quatro
salários mínimos subiu de 8% para 10,7%;
• A maioria dos alunos da universidade, já naquele momento,
eram os primeiros de suas famílias (ou membros da primeira
geração delas) a ingressar em cursos de nível superior. Apenas
36,4% dos pais e 29,6% das mães dos alunos da universidade
já tinham cursado nível superior;
• Em 2002, portanto antes da reserva, cerca de 30% dos alunos
da universidade autodeclaravam-se negros ou pardos;” 29.
Tomando esses dados como prioritários, a comissão elaborou um
conjunto de propostas que estruturariam um plano para permanência dos
estudantes, a ser executado pelo Programa de Apoio ao Estudante (PAE).
29 Consulta realizada no site www.politicasdacor.net .
88
Das propostas apresentadas, algumas foram executadas tal qual a versão
original, outras sofreram adequações e alterações, e outras não foram
executadas, por dificuldades de mobilização interna ou por falta de aportes
externos esperados, foram as seguintes:
• “Criação de 1.500 bolsas exclusivas para alunos do primeiro
ano com renda familiar até cinco salários mínimos com a
contrapartida de participar em atividades acadêmicas
extracurriculares. Em sua maioria os alunos beneficiados
deveriam ser negros;
• Aumento contínuo das bolsas já existentes à taxa de 700/ano,
por três anos consecutivos, a partir de 2004, o que daria ao
aluno carente uma boa chance de se manter, nos anos
seguintes, em condições de concorrer às bolsas por seleção
acadêmica, visto que as 1.500 aludidas acima contemplariam
apenas seu primeiro ano de formação;
• Atualização e informatização das 18 bibliotecas da UERJ, com
aquisição de 7 mil exemplares/ano;
• Reestruturação da orientação acadêmica com o intuito de
oferecer maior apoio, em sistema de tutoria, inicialmente
pensado para atender aos alunos com dificuldades de
aprendizagem. Esse trabalho vem sendo iniciado para todos os
alunos cotistas bolsistas, com professores de cada
departamento acompanhando até mesmo a participação dos
alunos bolsistas em atividades acadêmicas extracurriculares30”.
O Programa de Apoio ao Estudante, definido para executar tais
propostas,
“Foi então orçado em pouco mais de 12 milhões e 600 mil reais para o
ano de 2003, dependendo de recursos que deveriam provir do governo do
estado. Como de tais recursos apenas parte foi liberada através de pressão
da universidade e de movimentos sociais junto ao governo, o Programa foi
executado apenas parcialmente” (Jornal Informativo Uerj, 2003: 2).
30 Consulta realizada no site www.politicasdacor.net .
89
Além dessas propostas visando à permanência executados pela
reitoria, há iniciativas pontuais como o Projeto Espaços Afirmados, vinculado
ao Programa Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj31.
“O Espaços Afirmados é um projeto de permanência que atendeu a
alunos das áreas de educação e humanidades da primeira turma de cotistas
do ano de 2003 e conta com suporte financeiro da Fundação Ford. O projeto
teve seu término previsto para o final de 2004. Este iniciou seu trabalho com
alunos cotistas ingressantes na universidade no primeiro semestre letivo do
ano de 2003 no mês de junho. As atividades contemplaram um total de 156
alunos, selecionados dentre 396 candidatos” (Portal PPCor, 2005)32.
Em relação à estrutura do projeto Espaços Afirmados, estão definidos,
• Eixos de atuação: fortalecimento acadêmico, fortalecimento
instrumental, fortalecimento político-cultural, incentivo à
produção e ao protagonismo, monitoria e acompanhamento
individual dos alunos; (Portal PPCor, 2006)
• Atividades desenvolvidas no projeto: iniciação à pesquisa e
ciclo de palestras, curso de informática (comunicação digital),
curso de Braille, oficinas de teatro, memória histórica e
movimentos sociais, cursos sobre liderança comunitária e
atualização em história negra e ciclos de cinema, visitas a
museus e instituições; boletim Espaços Afirmados, página dos
alunos na Internet, comissão pró-cotas e apoio à trajetória
acadêmica do aluno. (Portal PPCor, 2006).
O projeto prima não pelo fortalecimento sócio-econômico do aluno, ou
seja, não trabalha pela escassez de recursos, mas, sobretudo, complementa
outras propostas com o objetivo de potencializar a qualidade na garantia da
permanência dos alunos, contribuir para a formação de laços e redes de
solidariedade entre os estudantes que também são consideradas
31 Renato Emerson do Santos, autor citado por nós no presente texto, é coordenador do Programa Políticas da Cor (PPCor), vinculado à UERJ, um programa que atua como um observatório ao reunir informações e dados sobre as universidades que aderiram às cotas na América Latina. 32 www.politicasdacor.net .
90
fundamentais para sua permanência na universidade. Alguns resultados
puderam ser conferidos,
“Entre os alunos que participaram do projeto, 88% tiveram, no primeiro
semestre de 2003, aprovação em todas as disciplinas que cursaram. No
segundo semestre daquele ano, este índice foi de 82%; e a inserção de 36
alunos em projetos de pesquisa e extensão (com bolsa) na universidade e
fora dela” (Santos, 2006: 130).
O projeto desenvolvido na universidade em prol da geração de
condições que garantam a permanência dos estudantes que ingressam pelo
sistema de cotas, também revelou a dificuldade de cooperação da UERJ no
sentido de divulgar dados e informações mais precisas. Santos pondera que
através do projeto Espaços Afirmados foi possível observar a ausência de
um sistema de acompanhamento e avaliação sólidos da instituição que seja
capaz de extrapolar a mera observação do comportamento dos alunos e
abarque também o comportamento da instituição, ou seja, o seu grau de
comprometimento no que diz respeito aos esforços para criar um ambiente
mais inclusivo para os estudantes. Pois da maneira que tem se tratado os
dados corre-se o risco de reforçar idéias como a de que o fracasso das cotas
é de responsabilidade individual do aluno.
4.4 A Universidade de Brasília (Unb)
4.4.1 A proposta das cotas para estudantes negros
Para entender o caminho percorrido pela universidade, não só em
números, mas do ponto de vista dos atores que acompanharam o processo
de implantação das cotas, realizamos visita na UNB no ano de 2007 e fomos
recebidos por representantes do EnegreSer – Coletivo Negro no Distrito
Federal e Entorno. Dois dos seus representantes nos contaram um pouco da
história de formação do grupo e da trajetória de aprovação das cotas na
universidade,
“O EnegreSer foi criado em 2001como resposta a um ato de violência
policial no Centro Comunitário da Unb, me lembro como se fosse hoje eu e
mais uns amigos começamos a nos perguntar quando será que nós negros
91
deixaremos de ser alvo da polícia. Aquele ato de violência nos incomodou de
tal forma que resolvemos nos juntar e criamos o EnegreSer, um espaço
apartidário que desenvolve ações que visam pautar a luta negra tanto fora
quanto dentro do campus da universidade intervindo nos processos que
tocam de perto os interesses da população negra. O Coletivo prima pela
valorização da cultura negra e a construção de uma identidade que tem
como pilar a valorização de mulheres e homens negros e entre nossas
principais lutas está as cotas raciais na Unb, acho que em poucas palavras é
isso” (entrevistado B).
A Unb é considerada uma das universidades pioneiras na discussão
das ações afirmativas no ensino superior e esse coletivo de estudantes
negros desempenhou um papel importante nas fases iniciais do debate,
“ Na Unb, os debates vêm acontecendo desde 1985, mas ganharam
força logo depois da Conferência de Durban. A primeira reunião ainda em
2001teve a presença da representante brasileira nesse encontro na África do
Sul, a Edna Roland. A partir daí, movimentos negros, como o EnegreSer e o
pessoal do Neab, que é o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da universidade
se articularam. Daí em diante, com base nas discussões que todos nós
realizamos, no dia 8 de março de 2002, os professores José Jorge Carvalho
e Rita Segato, do Departamento de Antropologia da Unb, apresentaram na
época o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Unb ao
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Ah! já ia me esquecendo, foi em
1999 que esses mesmos professores haviam apresentado o primeiro projeto
de cotas após um caso concreto de discriminação na universidade. Depois
voltamos nesse fato, bom, a proposta do Plano incluía a reserva de 20% das
vagas no vestibular para negros. A gente já sabia, e quando eu digo a gente
são os negros e as pessoas favoráveis as cotas, que isso ia esquentar o
campus. Bom continuando, mais de um ano depois, no dia 6 de junho de
2003 a adoção da ação afirmativa foi aprovada e me lembro que foram 24
votos favoráveis, um contrário e uma abstenção, o conselho criou uma
comissão formada por cinco professores e uma aluna, além de nós do
EnegreSer, esse grupo ficou então responsável por estudar a melhor forma
92
de implementar o sistema. Posso te dizer que houve uma certa disputa pra
integrar esse conselho, na época era novidade as ações afirmativas e
interessava muitas pessoas. Retomando, ao final de nove meses de estudo
da proposta a comissão formulou dois documentos que resumem os
mecanismos de aplicação do plano de metas e integração que também
foram aprovados pelo Cepe. Um deles é o convênio entre a Unb e a Funai,
assinado em 12 de março de 2004. O Convênio previa que os indígenas
aprovados em um teste de seleção começariam a estudar na universidade
no semestre de 2004. Eu posso te dizer que esses foram os primeiros
passos na universidade” (Entrevistado C).
O Plano de Metas para a Integração Étnica, Racial e Social citado pelo
nosso entrevistado possui três objetivos fundamentais,
“a) uma cota de 20% das vagas para candidatos negros em todos os
cursos de graduação; b) admissão de estudantes indígenas, por meio de
cooperação com a Fundação Nacional do Índio (Funai); c) intensificação de
atividades de apoio ao sistemas de escolas públicas local” (Mulholland, 2006:
183).
Como relatado por nosso entrevistado o primeiro projeto de cotas na
universidade foi apresentado por dois professores do Departamento de
Antropologia entre outro fatores, os autores teriam sido motivados a elaborar
a proposta depois de uma denúncia de racismo no programa de pós-
graduação em Antropologia Social,
“Como eu disse no começo da entrevista houve um caso de
discriminação que impulsionou dois professores a criar o projeto das cotas.
Foi em 1998, iniciou-se o que ficou conhecido como “caso Ari” na Unb. Um
doutorando negro, homossexual e baiano, da pós-graduação da Antropologia
Social, ao que tudo indica, foi discriminado ao cursar uma disciplina
obrigatória do programa. O drama do Ari começou no primeiro semestre do
ano letivo de 1998, quando, recém-aprovado no programa cursou uma
disciplina ministrada por um professor, na época se não me engano era o
professor Dr Klaas Woortmann, a disciplina não vou arriscar dizer porque não
me lembro qual era. Enfim, no final do semestre o Ari foi sumariamente
reprovado, então ele encaminhou pedidos para a revisão de notas, ele foi a
93
três instâncias administrativas da Unb, todas elas indeferiram o recurso.
Finalmente, em 19 de maio de 2000, uma quarta instância, o Conselho de
Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe) discutiu o caso pela segunda vez e
reconheceu que o Ari tinha sido reprovado injustamente e lhes concederam o
crédito devido foram 22 votos a favor e 4 contra. Posso dizer por nós
acreditamos que havia fortes indícios de crime de racismo, houve quem
discordasse mas nós apoiamos o Ari até o fim do caso” (Entrevistado B).
Esse acontecimento relatado por nosso entrevistado deixa claro que
os professores citados reagiram ao fato criando em 1999 a primeira versão
do projeto de implementação de um sistema de cotas raciais na
universidade. No ano de 2002, os mesmos professores apresentaram uma
nova versão revisada e ampliada dessa proposta, aprovada no ano de 2003
pelo Conselho Universitário através da Resolução nº 38/2003 que prevê 20%
das vagas reservadas para estudantes autodeclarados negros.
A decisão pelo projeto das cotas raciais não se baseou em
imperativos legais ou legislações, como pudemos observar, antes,
amadureceu no curso do debate em torno das questões relacionadas à
discriminação racial e étnica, à oportunidade e a necessidade de implantar
ação afirmativa no ensino superior e o papel da universidade pública na
promoção da mudança do quadro social no Brasil.
4.4.2 O vestibular 2004
As cotas para estudantes negros foram implantadas no vestibular do
segundo semestre de 2004 por meio de adaptações do procedimento
tradicional, o qual envolveu um conjunto de mudanças administrativas. Com
base nas discussões preliminares, as cotas foram especificadas como
reservas a candidatos negros, a partir da escala de autoclassificação do
IBGE: preto, pardo, branco, amarelo e indígena.
Os candidatos indicavam suas preferências de curso e era-lhes
oferecida a escolha entre o sistema de cotas ou o sistema universal, ou seja,
o tradicional,
94
“Os que escolhiam o sistema de cotas (4.194 de um total de 27.397)
eram solicitados a indicar sua cor e o quanto se consideravam negros. Uma
fotografia padronizada de cada candidato às cotas foi parte dos
procedimentos de sua inscrição” (Unb Notícias, 1: 2004).
No que diz respeito à distribuição das opções de curso dos candidatos
do sistema de cotas diferenciava-se ligeiramente daquela dos candidatos
fora do sistema, mostrando que,
“Entre as 61 alternativas, houve uma maior concentração nos cursos
de ciências humanas e sociais e uma concentração menor em profissões da
área da saúde, um resultado observado também em outras universidades.
Isso provavelmente reflete as representações que os estudantes negros
brasileiros têm de si mesmos e da sociedade na qual vivem e constitui um
tópico de pesquisa dentro das nossas avaliações. A demanda média
(candidato por vaga) foi de 11 no sistema de cotas e de 15 no sistema
universal” (Unb Notícias, 2: 2004).
Em relação à metodologia de seleção adotada pela universidade, cada
inscrição no sistema de cotas foi submetida a um processo de triagem inicial
designado para limitar a lista final a candidatos que se enquadrassem nos
critérios anteriores, usando a fotografia como controle,
“Em outras universidades o método de seleção no sistema de cotas
mostrou um alto grau de abuso, ou seja, os chamados “fraudadores raciais”
condenados por alguns alunos, principalmente aqueles ligados a movimentos
sociais, que se utilizam das cotas para ingressar na universidade, portanto,
com base nos fatos que já haviam ocorrido, optamos por associar a
autoclassificação com outro método de controle, optamos então pelo uso da
fotografia” (Unb Notícias, 3: 2004).
Utilizando essa lógica, a Unb criou uma comissão avaliadora da
identidade racial dos candidatos com base em fotografias que revelassem
seus traços fenotípicos, ao que se somou posteriormente a uma entrevista.
Para além da problemática avaliação da eficácia dessa medida, cabe lembrar
as questões éticas que ela suscita. Os nomes dos candidatos que não são
considerados negros pela comissão julgadora são divulgados pela
universidade, expondo-os a retaliações públicas, mas os dos membros da
95
comissão são mantidos em segredo, talvez pelo fato do reconhecimento do
caráter problemático de avaliação e julgamento. Além disso, os critérios de
identificação racial e o conteúdo das entrevistas também são mantidos em
segredo, o que por vezes levanta a questão da sua possível arbitrariedade33.
A comissão que avaliou os candidatos às cotas era composta por,
“Representantes do corpo docente, funcionários, estudantes e
membros externos. Concluiu-se que 212 (4,7%) candidatos ao sistema de
cotas não cumpriam os critérios estabelecidos. Eles podiam, entretanto,
apelar contra a decisão da comissão. Trinta e quatro deles o fizeram,
apresentando seus argumentos. Todos foram submetidos a entrevistas
gravadas. Uma comissão revisou as apelações e readmitiu 21 deles ao
sistema de cotas. Os outros 13 foram transferidos para o sistema universal”
(Unb Notícias, 3: 2004).
Todos os candidatos prestaram os mesmos exames na mesma data,
independentemente do sistema de admissão escolhido. Não houve distinção
entre os candidatos, todos os exames foram corrigidos da mesma forma.
Notas mínimas para cada exame e para a nota final foram observadas,
“Essas notas mínimas eliminaram 40% dos candidatos do sistema
universal e 57% dos candidatos do sistema de cotas. Os candidatos do
sistema de cotas foram então classificados para preencher as vagas do
sistema e os demais foram transferidos para o sistema universal, no qual
competem pelas vagas com os candidatos deste último. Por fim, as vagas do
sistema universal foram preenchidas com candidatos de ambos os sistemas,
classificados conjuntamente segundo sua nota final. Dessa maneira, os
candidatos ao sistema de cotas tinham duas chances de admissão, e as
cotas de 20% vieram a definir uma participação mínima, mais do que
máxima, dos estudantes negros no processo de admissão” (Unb Notícias, 3:
2004).
Em relação ao quadro geral dos números,
“Os candidatos do sistema de cotas preencheram 378 das 392 vagas
a eles destinadas. Sobraram apenas algumas vagas em música e
33 Informações coletadas no site www.unb.br .
96
engenharia civil, por falta de candidatos com um desempenho suficiente nos
exames. Essas vagas foram preenchidas por candidatos dos sistema
universal. Em 6 dos 61 cursos, estudantes do sistema de cotas teriam sido
aprovados independentemente do sistema. Em 15 cursos, nenhum estudante
do sistema de cotas teria sido aprovado fora dele. No todo, 60% dos
candidatos do sistema de cotas beneficiaram-se; 40% teria sido aprovado
sem ele” (Unb Notícias, 3: 2004).
A Unb também se preocupou em levantar os números em relação as
diferenças socioeconômicas entre os estudantes aprovados por cada um dos
dois sistemas e revelou que,
“A renda familiar mensal dos estudantes do sistema universal era de
R$ 5.000,00 ou mais (24% dos casos). Para os estudantes do sistema de
cotas, a renda modal ficava na casa dos R$ 750,00 a R$ 1.500,00 (21% dos
casos), ou seja, consideravelmente inferior. Enquanto 33% dos estudantes
do sistema universal vinham de escolas públicas, esse era o caso para 56%
dos estudantes do sistema de cotas” (Unb Notícias, 4: 2004).
No momento da publicação desses dados do vestibular de 2004
estava em curso o processo de admissão para o primeiro semestre de 2005,
“Havia 4.913 candidatos no sistema de cotas e 23.384 no sistema
universal, o que mostra um certo grau de estabilidade na demanda. O total
de alunos cotistas matriculados em 2005 foi de 949 de um total de 19.636”
(Unb Notícias, 3: 2004).
Depois da primeira experiência do vestibular com o processo de
admissão das cotas, chegou-se a conclusão de que houve uma grande
procura pela inscrição no novo sistema e que era preciso refinar a
metodologia de candidatura e seleção dado o alto grau de discordâncias que
gerou, mas, no geral, o fato de adotar algum tipo de reserva de vagas para
estudantes negros comprova que tem se mostrada acertada essa iniciativa
por associar-se às demandas contemporâneas a favor da igualdade de
oportunidades.
97
4.4.3 Programas de apoio aos cotistas
Com a implantação das cotas foram pré-estabelecidos pela
Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas34 alguns resultados que
deveriam ser atingidos:
“a) garantia do acesso da população negra ao ensino superior; b)
aprimoramento da capacidade de aprendizagem da comunidade acadêmica
para conviver em ambientes com maior grau de diversidade; c) associação
dos negros a símbolos de poder, autoridade e prestígio; d) redirecionamento
do futuro da sociedade; e) combater o racismo criando ambientes de
interação35;” .
Resulta evidente, que uma medida como as cotas para negros
desafiam o hábito na sociedade brasileira e necessita de novos mecanismos
institucionais que garantam seu bom funcionamento. A meta, trazer mais
alunos negros para universidade, implica uma intensificação da convivência,
da aplicação de recursos que atuem como apoio as novas necessidades que
surgiram no campus e, provavelmente uma exposição maior de conflitos.
Portanto, para “novos problemas” é preciso pensar “novas soluções”, para
tanto, destacaremos alguns projetos que já estão sendo encampados pela
universidade e outros que ainda não se concretizaram.
Dos que ainda não se realizaram,
“a) Comitê de Apoio Psico-pedagógico: formado por professores
especialmente treinados e esclarecidos sobre o tema da discriminação racial
que terão a cargo o acompanhamento pedagógico e o apoio psicológico dos
estudantes;
b) Comissão de Avaliação Permanente: destinada a observar o
funcionamento da medida, avaliar seus resultados periodicamente, sugerir
ajustes e modificações e identificar aspectos que prejudiquem a sua
eficiência;
c) Ouvidoria: constituída de tal forma que seu titular, apoiado por uma
equipe, combine as atribuições de um ouvidor jurídico, um ombudsman
34 Se trata de um setor criado na UnB após a implantação das cotas. 35 Todas as citações desse tópico foram coletadas em visita ao Centro de Convivência Negra da UnB, onde nos instruíram a buscar esses dados e informações pelo site www.unb.br/cotas .
98
jornalístico e um corregedor; um órgão para promover a inclusão de pessoas
negras e membros de outras minorias e categorias vulneráveis na
universidade; construir um observatório de denúncias de racismo; ” .
Dos projetos que estão se realizando na universidade destacamos,
“Oportunidades de estágio e pesquisa; eventos relativos à população
negra; impressão e distribuição de cartilhas e produção de cartazes e
outdoors para divulgação do sistema de cotas a estudantes da periferia;
bolsa alimentação, bolsa livro e bolsa permanência; serviço de orientação ao
universitário; Centro de Convivência Negra36; site de apoio aos cotistas:
www.unb.br/cotas; E-grupo Cotistas da UnB; Programa Brasil Afroatitude”.
O Ato da Reitoria nº 2.162/2006 atribuiu à Assessoria de Diversidade
e Apoio aos Cotistas a responsabilidade de administrar o Centro de
Convivência Negra e, portanto, o CCN desempenha um papel importante na
UnB, instituído no primeiro semestre do ano de 2005, seu objetivo é criar
ambientes e serviços de apoio aos estudantes negros, especialmente aos
que ingressarem pelo sistema de cotas, tais como,
“Espaço para estudo e reuniões de trabalho; Biblioteca de referência
para consulta sobre Ações Afirmativas (coleção de livros, legislação, revistas,
artigos científicos, jornais, etc); Mural de divulgação de atividades ligadas a
Ações Afirmativas (cartazes e folders de eventos científicos, governamentais
e não-governamentais); Fonte de informações gerais sobre a Universidade
de Brasília, com disponibilidade de acesso ao site da UnB na Internet; Apoio
aos programas de pesquisa, ensino, extensão e assistência estudantil que se
vinculem diretamente ao Sistema de Cotas; Contratação de três estudantes
bolsistas que secretariem a sala e orientem os visitantes e estudantes
cotistas quanto aos serviços prestados pelo Centro de Convivência. Essa
contratação envolve três bolsas de estágio com carga horária máxima de 20
horas semanais (um estudante para a manhã, outro para à tarde e um outro
para a noite), com preferência para jovens negros com algum envolvimento
36 Jaques Jesus é o Assessor de Diversidade e Apoio aos Cotistas e coordenador do CCN. Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Unb.
99
em movimento social organizado; Outras atividades acadêmicas voltadas
para a comunidade interna e/ou para a comunidade externa à UnB,
desenvolvidas com o fim de apoiar o processo de implementação do Sistema
de Cotas para Negros na Universidade de Brasília”.
Os resultados esperados a partir da implantação dessas iniciativas
foram desenvolvidos pelos coordenadores do CCN que designam,
“a) diminuição do grau de racismo; b) resultados positivos de inclusão
racial que, mesmo com uma possível brevidade na gestão do CCN, possam
ser mantidos a longo prazo; “
Os seus elaboradores não especificam uma metodologia para
mensurar tais resultados.
4.5 A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
4.5.1 A proposta das cotas
Até o presente momento, observamos que há diferenças entre as
universidades na forma como foram pensadas as cotas, a porcentagem, o
público a quem se destina e os programas de permanência ou auxílio aos
cotistas.Assim, faremos o mesmo com a Unifesp a partir da nossa visita a
campo.
Para começar a esboçar um projeto institucional de ação afirmativa as
discussões na universidade tiveram início no ano de 2003,
“Esse debate é antigo e transcende o governo atual. A Unifesp é uma
universidade da área da saúde e no ano de 2003 começamos a discutir a
questão da integração em movimentos ligados às ações afirmativas. Primeiro
partimos do princípio de que precisávamos conhecer melhor o que eram
essas políticas que até então não havia surgido concretamente como
proposta para as universidades públicas, de fato era uma novidade
carregada de discordâncias, e aqui na Unifesp não foi diferente”
(Entrevistado C).
Como já vinha ocorrendo em outras universidades, a ação afirmativa
começou a ser o tema muito debatido nos círculos acadêmicos e deixava
dúvidas se de fato caberia na realidade brasileira,
100
“ Para entender o que era essa política foram feitos vários seminários
envolvendo os grupos étnicos, digamos assim, que procuravam discutir o
tema. Foram também trazidos para discussão dados do IPEA em relação a
situação dos estudantes negros no país. A partir daí, entendemos que a ação
afirmativa no ensino superior constituía um dos mecanismos possíveis para
elevar a oportunidade educacional desse grupo e portanto não poderíamos
nos isentar dessa discussão. Foi então que resolvemos montar um projeto,
discutido com representantes dos alunos e com o conselho universitário.
Posso te dizer que não foi nada fácil devido ao grau de discordâncias que
temas como racismo, cotas, reparações, inclusão social desperta nas
pessoas. Feito isso, o projeto foi aprovado pelo conselho universitário e a
Unifesp adotou a política de cotas de uma maneira diferente das
universidades que já vinham nesse caminho. Foram abertas vagas para
alunos cotistas no vestibular de 2005 e o esquema adotado foi o de
aumentar em 10% as vagas em todos os cursos, o que dá um total de 27
vagas reservadas para os candidatos negros ou indígenas que cursaram o
ensino médio exclusivamente em escolas públicas. A Unifesp adotou a
autodeclaração como método de inclusão, conforme classificação adotada
pelo IBGE, no caso dos jovens negros é preciso provar que ele próprio ou
um de seus ascendentes, até os avós, é negro e isso pode ser feito por meio
de documentos como certidão de nascimento ou certificado militar. Já para
os jovens índios não é admitida ascendência, o aluno tem de ser da etnia”
(Entrevistado C).
Após a construção do projeto de ação afirmativa e a sua posterior
aprovação, outras questões permeavam a discussão,
“Depois de aprovado o projeto, passamos a entender que os desafios
iriam aumentar, pois pra qualquer programa a ser realizado na universidade
seria necessário o investimento em recursos que vão desde: recursos
acadêmicos adicionais para lidar com a qualificação dos alunos que por
ventura tivessem alguma defasagem do ensino médio; recursos adicionais
para o processo de seleção dos beneficiários da ação afirmativa; auxílio
financeiro para aqueles que não conseguem arcar com as despesas da
educação universitária como livros, alimentação, perda eventual dos seus
101
rendimentos resultante do trabalho alocado para ajudar a família em casa e
ainda que estivéssemos bastante otimistas com a ausência de problemas de
discriminação racial ou intelectual no campus, tínhamos que nos preparar
para eventuais serviços de auxílio especializado. No entanto, eu ainda
acredito que os jovens são pessoas solidárias e gostam de enfrentar
desafios, eu acredito muito na generosidade dos jovens, por isso eu não
contaria tanto com problemas de ordem racial no campus” (Entrevistado C).
Considerando o que foi dito pelo nosso entrevistado, o sucesso das
ações afirmativas no ensino superior está correlacionado com a extensão em
que cada universidade mobiliza seus recursos institucionais, acadêmicos e
financeiros para executar programas de ação afirmativa. No Brasil, os
programas dependerão, principalmente, dos compromissos assumidos pelo
governo federal e estadual, mas também, do setor privado e até de
fundações internacionais, como acontece em outros países.
“Aqui na Unifesp, nós acreditamos que o apoio financeiro para as
ações afirmativas deve considerar um bom desenho de programa e um
monitoramento cuidadoso, aqui o sistema de cotas é avaliado anualmente
pela Comissão Permanente de Vestibular e submetido ao conselho
universitário para a sua prorrogação. Até então estamos indo bem, porque
acreditamos que a ação afirmativa não deve ser imposta por medidas
governamentais, mas devem ser adotadas voluntariamente pelas
universidades, baseada em procedimentos democráticos da sua
administração. Continuamos otimistas como no início” (Entrevistado C).
4.5.2 O vestibular 2005
O vestibular realizado no ano de 2005 já com o sistema de acréscimo
de vagas implantado pela Resolução nº 27/2005 teve uma procura
expressiva pelos candidatos,
“Das 27 vagas reservadas para as cotas 100% foram preenchidas.
Como se tratava do início desse novo vestibular apostávamos que a
concorrência não seria tão acirrada, mas do contrário, apesar do sistema de
102
cotas ainda não estar tão difundido naquela data conquistamos bons
números” (Entrevistado C).
Em relação aos cursos, a procura concentrou-se em,
“Na verdade houve uma boa distribuição dos alunos nos cursos
oferecidos pela Unifesp. Em 2005, os cursos de medicina, fonoaudiologia,
enfermagem, ciências biomédicas e tecnologia oftálmica ganharam, ao todo,
27 cotistas. Na época como pró-reitor de graduação, posso afirmar que o
nível das provas do vestibular colabora com uma seleção criteriosa. Pelo
nosso processo, conseguimos selecionar candidatos bem preparados nos
dois grupos, cotistas e não-cotistas. Tenho que afirmar que no início do
projeto das cotas havia um temor muito grande de que os alunos cotistas
formassem um subsistema mais fraco, mas na prática isso não se confirmou”
(Entrevistado C).
O gráfico a seguir ilustra o que foi dito pelo nosso entrevistado, ou
seja, comparam ambos os desempenhos de cotistas e não-cotistas que são
muito próximos ou superiores nos cursos de medicina e fonoaudiologia,
Fonte: Jornal Unifesp, 2006.
A divulgação desse resultado pela Unifesp, mostra que não houve
perda na qualidade do ensino pelo fato de aderir ao sistema de cotas. Os
cotistas assim como vários outros alunos enfrentam problemas quando as
universidades não dispõem de bibliotecas bem equipadas, laboratórios de
informática ou de uma política que permita atender as demandas de apoio
que toda boa universidade deve oferecer à comunidade estudantil,
103
“O estímulo e a motivação por parte das instituições são fundamentais
para o bom desempenho acadêmico aliados à grande força de vontade que
faz com que os jovens cotistas, sendo por vezes os primeiros de toda sua
história familiar a ingressar numa universidade. As cotas podem sim trazer
benefícios à sociedade e mais qualidade à nossa universidade” (Entrevistado
C).
4.5.3 Programas de auxílio aos cotistas
No que diz respeito aos programas de apoio e permanência da
Unifesp, esses são pautados em três aspectos,
“a) evitar a evasão dos alunos de baixa renda; b) garantir a esses
alunos uma formação de qualidade frente às desvantagens sócio-
educacionais que trazem consigo para universidade; c) evitar ou combater
qualquer atitude preconceituosa e discriminação racial no campus;” (Jornal
Unifesp,2: 2006).
Nosso entrevistado faz uma relação da importância de se combinar as
cotas com programas que fortaleçam e contribuam para o bom desempenho
acadêmico dos alunos,
“Cotas e estratégias efetivas de permanência fazem parte de uma
mesma proposta. Não se trata de fazer uma ou outra. Não se trata de fazer
uma escolha entre elas, senão de pensá-las juntas. As cotas não solucionam
todos os problemas da universidade, são apenas uma ferramenta que atua
na inclusão de uma parcela da população na universidade. É evidente que as
cotas, sem uma política de permanência, correm sérios riscos de não atingir
sua meta” (Entrevistado C).
Dos programas destinados aos alunos cotistas, a universidade dispõe,
“1) programa bolsa-auxílio para o custeio de materiais e alimentação;
2) serviço de orientação ao universitário; 3) apoio à organização de eventos,
palestras, seminários ou qualquer outra atividade que envolva o tema ação
afirmativa no campus ou fora dele; 4) Comissão de Avaliação: destinada a
observar os problemas mais recorrentes no campus e sugerir ajustes para
bom andamento do programa” (Jornal Unifesp, 3: 2006 ).
104
“Os desafios nos são apresentados no dia-a-dia e faz com que
repensemos um detalhe ali outro aqui nesses programas. Não atingimos
ainda o melhor, a escassez de recursos para otimizar nossas ações também
nos impõe desafios. Talvez a criação de um fundo específico para
contribuições poderia ser agregado para nos fornecer uma fonte que
assegurasse a sustentação financeira da ação afirmativa. Até o presente
momento não temos registros de evasão de alunos por conta de problemas
financeiros, mas não podemos contar com a sorte, porque o que está em
jogo são sonhos de jovens e futuros profissionais” (Entrevistado C).
Podemos observar que um projeto bem sucedido de ação afirmativa
deve conceber a idéia de modo abrangente, ou seja, expandir seus esforços
para atender a novas demandas. Os programas de permanência têm,
portanto, essa função, ou seja, as universidades começaram a entender que
existe uma relação entre boa acolhida e a permanência (não evasão) do
estudante, pois nem todos aprendem da mesma maneira ou trazem para
universidade os mesmos problemas e dificuldades.
Nesse sentido, procuramos situar quais medidas institucionais, ou
seja, os programas de permanência, foram criados pelas universidades após
a implantação das cotas, pois nos permite entender se foram pensados a
partir de questões trazidas pelos alunos e neste caso esse canal poderia nos
informar sobre as questões mais incidentes nos campus.
No capítulo seguinte, abordaremos algumas questões suscitadas no
processo de implantação das cotas. Partindo de dois manifestos, um
contrário e outro favorável à implementação de ações afirmativas poderemos
analisar a discussão da igualdade pela diferença implicada nesse debate de
modo a explicar algumas das posições existentes entre o que autores
chamam de universalistas e comunitaristas, ou seja, de um lado grupos que
reprovam a definição de políticas e medidas baseadas em recorte racial e
étnico e de outro grupos que compreendem a ação afirmativa como uma
resposta as demandas de uma sociedade multirracial como é o caso do
Brasil. Abordaremos também as manifestações de racismo provenientes da
implantação das cotas nas universidades.
105
CAPÍTULO IV
Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas Universidades Públicas
5.1 O princípio da igualdade e a ação afirmativa
As políticas de ações afirmativas, ao incorporarem algumas das
reivindicações de reconhecimento e diferença, trazem ao debate um conjunto
de questões que desafiam a maneira como tradicionalmente concebemos a
idéia de igualdade na nossa sociedade.
A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza,
teve sua emergência como princípio jurídico nos documentos constitucionais
após as revoluções do final do século XVIII (Gomes, 2003). As declarações
de direito do mundo moderno nasceram a partir das teorias filosóficas nas
quais estavam imersos os intelectuais europeus do século XVIII.
Caracterizado como Iluminismo, esse período simbolizou o triunfo do
racionalismo através de pensadores como John Locke, Voltaire, Diderot,
Montesquieu, Kant, Rousseau.
Essa importante corrente sustentou a idéia de que o homem enquanto
tal era detentor de direitos naturais,
“Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem não é o estado civil,
mas o natural, ou seja, o estado de natureza no qual os homens são livres e
iguais, sendo o estado civil uma criação artificial, que não tem outra meta
além da de permitir a mais ampla explicitação da igualdade e da liberdade
naturais” (Bobbio, 1992, 29).
Centrado no indivíduo, o direito natural consagrado pelas declarações
modernas foi o direito de liberdade, pensado no sentido de garantir ao
106
indivíduo, dotado de razão, liberdade em relação ao Estado. A nova ordem
igualou todos os homens no momento do seu nascimento e estabeleceu o
mérito e o esforço individual como medida para repartição de bens, recursos
e mobilidade social.
“A partir das experiências revolucionárias pioneiras dos EUA e da
França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção
jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para
todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la
incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os
conflitos interindividuais” (Gomes, 2003: 17; 18).
Concebida para o fim específico de abolir os privilégios, distinções e
discriminações baseadas na linhagem e na hierarquização das classes
sociais, essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal,
firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no século
XIX e prosseguiu sua trajetória por boa parte do século XX.
Por definição,
“O princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação
de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos
livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso,
representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de
zonas delimitadas, suscetíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa
medida intoleráveis” (Gomes, 2003: 18).
O princípio da igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo,
como a garantia da concretização da liberdade. Para os teóricos da escola
liberal, bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos
fundamentais para se ter esta como efetivamente assegurada no sistema
constitucional.
A experiência e os estudos de direito tem demonstrado que a
igualdade jurídica à luz do pensamento liberal não é suficiente para criar
oportunidades iguais aos cidadãos. Gomes sustenta que,
“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no
princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada,
quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente
107
para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as
oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados.
Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de
igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições”
(Gomes, 2003: 18; 19).
Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção de igualdade
que levasse em conta em sua operacionalização comportamentos da
convivência humana, como é o caso da discriminação racial. Assim, assinala
Gomes,
“Concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para
se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo
se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou
da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou
comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo
que garantir a igualdade jurídica” (Gomes, 2003: 19).
Da transição da ultrapassada noção de igualdade formal ou estática
ao novo conceito de igualdade substancial surge a idéia de igualdade de
oportunidades, pautada na necessidade de extinguir ou de pelo menos
mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais, a igualdade
substancial recomenda uma noção mais dinâmica de igualdade, de sorte que
as situações desiguais sejam tratadas de forma diferente, evitando-se o
aprofundamento das desigualdades (Gomes, 2003).
“Dessa nova visão resultou o surgimento, em diversos ordenamentos
jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos
socialmente fragilizados. Vale dizer, da concepção liberal de igualdade que
capta o ser humano em sua conformação abstrata, genérica, o Direito passa
a percebê-lo e a tratá-lo em sua especificidade, como ser dotado de
características singularizantes. O “indivíduo especificado” , portanto, será o
alvo dessas novas políticas sociais. A essas políticas sociais, que mais nada
são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material,
dá-se a denominação de ação afirmativa” (Gomes, 2003: 20).
108
No plano internacional, a ação afirmativa foi experimentada como
forma de garantir direitos aos grupos que deles estavam historicamente
excluídos, como os membros de castas inferiores na Índia, os negros norte-
americanos e os imigrantes em países europeus. No Brasil, essa discussão
se dá a partir da implantação das cotas para negros e indígenas nas
universidades públicas.
A reivindicação da ação afirmativa freqüentemente opõe defensores
de uma posição universalista ou liberal àqueles que sustentam uma postura
de relativismo cultural, onde o reconhecimento das necessidades particulares
dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos são
considerados imprescindíveis para pensar políticas.
No caldo de discussões que se instauraram no país, assistimos a
manifestações públicas que ilustraram e demarcaram esses posicionamentos
distintos.
5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e
comunitaristas
O discurso da diferença, que se afirma através do questionamento da
igualdade liberal moderna e de seus limites é discutida por alguns autores
pelo que nos trás de novo e por outros pelo risco de experimentarmos
políticas que consideram as diferenças entre os indivíduos. Flávio Pierucci
(1999) chama atenção aos aspectos conservadores das reivindicações
baseadas na diferença que, mesmo sob bandeiras de esquerda, podem fazer
ressurgir anseios exatamente opostos aos almejados, e levarem mais às
desigualdades e naturalizações de diferenças que ao respeito, tolerância e
reconhecimento. A essencialização das diferenças, mesmo sob uma
positivação, parece ser a preocupação maior por trás desse debate.
John Rawls e Charles Taylor, no âmbito da filosofia política discutem,
sob as perspectivas universalista e comunitarista, respectivamente, a
igualdade pela diferença. Rawls tem como desafio formular uma teoria da
justiça que represente um avanço em termos igualitários ao que existia à
época, ainda que se mantendo dentro da tradição liberal. Escreveu “Uma
109
Teoria da Justiça” em 1971 num momento em que os Estados Unidos viviam
uma série de manifestações e tensões sociais decorrentes do movimento
pelos direitos civis e, por sua vez, contribuiu com os debates e políticas que
se seguiram, como a ação afirmativa. Charles Taylor, duas décadas depois,
traz como questão central a intensa diversidade existente na sociedade
canadense e as reivindicações por políticas de reconhecimento de diferentes
identidades culturais e étnicas, que podem ser vistas como o desdobramento
dos movimentos sociais dos anos 60 e 70. Ambos debatem, a seu modo, a
igualdade pela diferença de modo a explicar algumas posições e embates
existentes entre essas duas posições.
No presente texto, iremos nos ater a discussão de Charles Taylor que
através da visão da igualdade pela diferença, tratada por ele como política de
reconhecimento, se afirma por oposição e questionamento a algumas das
premissas do universalismo liberal ao qual Rawls se filia, ou seja, para esse
autor a distribuição natural ou de posição social não é de certa forma justa ou
injusta, pois os que as torna justas ou não é a maneira pela qual as
instituições as utilizam (Rawls, 2002). Os questionamentos que se seguem a
essa premissa tratam de criticar na teoria liberal especialmente sua suposta
neutralidade em termos de concepções de bem-estar e de autonomia
individual, além de criar uma sociedade cega às diferenças dos indivíduos.
Taylor utiliza uma linha de reflexão acentuada pelo que se chamou
Culture Studies, que faz a crítica ao etnocentrismo e ao colonialismo
europeus e questiona a possibilidade de falarmos em direitos humanos
universais que não sejam eles mesmos a expressão da tradição cultural
ocidental. Compreende que o reconhecimento das diferenças culturais
valoriza os indivíduos e é condição primordial para se adquirir dignidade
humana (Taylor, 1998).
A exigência pelo reconhecimento, segundo Taylor, se faz em dois
níveis: na esfera íntima “donde comprendemos que la formación de la
identidad y del yo tiene lugar em um diálogo sostenido y en pugna con los
otros significantes” (Taylor, 1998: 59) e na esfera pública “donde la política
del reconocimiento igualitário há llegado a desempeñar un papel cada vez
mayor” (Taylor, 1998: 59). O autor estabelece uma relação direta com a
110
formação da identidade e a sua valorização no âmbito público, ou seja, quais
características são atribuídas ao indivíduo como ser humano, já que nossa
identidade se forma a partir da relação com os outros,
“La tesis es que nuestra identidad se moldea en parte por el
reconocimiento o por la falta de este; a menudo, también, por el falso
reconocimiento de otros, y así, un individuo o un grupo de personas puede
sufrir un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente o la sociedad
que lo rodean le muestran, como reflejo, um cuadro limitativo, o degradante o
depreciable de si mismo” (Taylor, 1998: 43; 44).
A crítica ao liberalismo universalista, destaca seu caráter impeditivo da
própria constituição de algumas identidades ao propor que os indivíduos
devem se adequar homogeneamente a culturas e valores dominantes. Para
Taylor, uma sociedade desse tipo não seria apenas desumana, por suprimir
a possibilidade de constituição de uma identidade, mas também seria
altamente discriminatória ao vincular imagens depreciativas e inferiores de
determinados grupos como as mulheres, os negros e os indígenas (Taylor,
1998).
No Antigo Regime empregava-se o conceito de honra para classificar
as pessoas. As hierarquias sociais outorgavam o reconhecimento público
aos cidadãos divididos em “ciudadanos de primera clase y de segunda clase”
e, portanto, nem todos eram merecedores dos títulos. Taylor atribui ao que
chama “del concepto moderno de identidad” o surgimento da política de
reconhecimento ou também política da diferença “que se fundamenta en un
potencial universal, a saber el potencial de moldear y definir nuestra propia
identidad, como individuos e como cultura” (Taylor, 1998: 65).
Em sociedades cada vez mais abertas e em contato umas com as
outras, o desafio em termos de reconhecimento não é apenas que as
diferentes culturas possam defender a si próprias e sobreviver, mas que
todos atestem seu igual valor e direito de existir e participar politicamente da
sociedade. Como importante meio de difusão da cultura, a educação é uma
das principais áreas desse debate. Propostas de uma educação multicultural
surgem como alternativa ao eurocentrismo e a ação afirmativa, tratada como
discriminação positiva, é discutida pelo autor,
111
“Las medidas de discriminación a la inversa, permiten a las personas
de los grupos antes desfavorecidos obtener uma ventaja competitiva por los
empleos o lugares em las universidades. Esta práctica se há justificado
aduciendo que la dicriminación histórica creó uma pauta conforme a la cual
los menos favorecidos luchan em posición de desventaja. La discriminación a
la inversa es defendida como uma medida temporal que gradualmente
nivelará el campo de juego y permitirá que las viejas reglas ciegas retornen
com todo su vigor, em tal forma que no dicriminen a nadie” (Taylor, 1998:
63).
As análises de Taylor estão focadas na experiência aborígene do
Canadá, que em 1972, criou o primeiro Ministério de Estado Multicultural no
intuito de promover a diversidade cultural e combater o racismo, e que em
1982 adotou a Carta de Direitos Canadenses, dentro dos marcos liberais. Em
Quebec, na região do Canadá que se falava francês, reivindicava-se certa
autonomia de governo e capacidade para aprovação de legislação própria.
As políticas de reconhecimento das diferenças culturais implantadas no
Canadá geraram uma série de objeções do lado inglês, que viam numa
sociedade como a do Quebec a violação do modelo liberal na sua
organização (Taylor, 1998).
Nos países em que já foram implantadas, as ações afirmativas
incorporaram algumas das reivindicações de reconhecimento e diferença e
trazem a tona a maneira como tradicionalmente concebemos a idéia de
igualdade. No embrionário debate instaurado em nosso país, se comparado
a outras experiências internacionais, essas controvérsias também se fazem
presentes como veremos através de dois manifestos que chamaram a
atenção pública.
5.3 Os manifestos pró e contra as cotas
No ano de 2006 o Brasil foi marcado por um acirramento do debate
sobre a inclusão social no ensino superior a partir da divulgação de dois
112
manifestos, o primeiro contrário e o segundo favorável a implantação de
ações afirmativas para estudantes negros e indígenas37.
O primeiro manifesto intitulado “Todos têm direitos iguais na República
Democrática” foi assinado por acadêmicos, artistas e intelectuais
reconhecidos nacionalmente. Foi entregue aos parlamentares do Congresso
Nacional em 29 de junho de 2006 e iniciaram registrando no primeiro
parágrafo,
“O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um
fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa
a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção
por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do
Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a
uma decisão final no Congresso Nacional38”.
Entre os argumentos que reprovam a aprovação dos projetos lei,
destaca-se que a nação passaria a definir os direitos das pessoas com base
na tonalidade da pele, pela raça e isso poderia semear o racismo como
demonstram exemplos históricos e contemporâneos e ainda bloquear o
caminho para resolução real dos problemas de desigualdades. Munanga,
nas suas análises entende a ação afirmativa como uma medida anti-racista
necessária, pois a desigualdade racial tem fortes raízes históricas e esta
realidade não será alterada sem a aplicação de políticas públicas
específicas,
“O Brasil está longe de ser uma democracia racial. No mercado de
trabalho, na política, na educação, em todos os âmbitos, os negros têm
menos oportunidades e possibilidades que a população branca. O racismo
no Brasil está imbricado nas instituições públicas e privadas, e age de forma
silenciosa. As cotas não criam o racismo, ele já existe. As cotas auxiliam o
debate da sua perversa presença, funcionando como uma efetiva medida
37 Os manifestos foram extraídos do site: www.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml 38 O Pl das Cotas torna compulsória a reserva de vagas para indígenas e negros nas instituições federais de ensino superior; O Estatuto da Igualdade Racial estabelece cotas raciais no serviço público e cria “privilégios” nas relações comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizarem cotas raciais na contratação de funcionários, dentre outros.
113
anti-racista” (Munanga, 1996: 42). Pontos de vista como esse foram
rebatidos nas linhas do manifesto,
“Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis
conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas
gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o
preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais
não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos
raciais estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo podem
até produzir o feito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça,
possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade
amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à
exclusão social são as políticas universais”.
Nesse sentido, esse manifesto parece não considerar que a nação
brasileira é formada por desigualdades provenientes da história e que para
serem corrigidas é necessário ponderar as diferentes necessidades dos
grupos. Em decorrência dessa visão, a aprovação dos dois projetos de lei
introduziria a categoria raça na elaboração das políticas públicas o que
geraria hierarquias raciais estranhas à experiência nacional. Assim, as
assimetrias, quando admitidas, resultam de uma distribuição desigual da
riqueza econômica e a existência residual de preconceitos e discriminações
raciais que devem ser combatidas com políticas universais.
Em resposta ao primeiro manifesto, em 3 de julho de 2006 foi
entregue aos presidentes do Senado e da Câmara o outro manifesto com o
objetivo não só de reagir, mas também de sintetizar argumentos favoráveis à
ação afirmativa, assinado por intelectuais, militantes do movimento negro e
acadêmicos. Intitulado “Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da
igualdade racial” que argumenta o seguinte,
“Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e
indígenas das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas
cotas (...) O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma
resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários
instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu (...) Gostaríamos ainda de
fazer uma breve menção ao documento contrário. Ao mesmo tempo em que
114
rejeitam frontalmente as duas leis em discussão, os assinantes do
documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de
inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a
lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a
todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios
universalistas, feitas por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e
multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio sistemático,
parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à
Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as
desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo”.
No segundo manifesto, a mensagem que nos passa é de que a
construção e o desenvolvimento da República não só não se deu de forma
democrática, como também se assentou nas assimetrias legadas, em parte,
pelas experiências colonial (hierarquias étnicas e raciais, de gênero, status
social etc) e, em parte, pelo processo de urbanização e industrialização
desigualmente distribuído no país com o fim da escravidão, aprofundando
desequilíbrios regionais, e contribuindo para o surgimento da clivagem de
classe em interseção com outras formas de diferenciação social (Munanga,
1996).
Uma vez que a intervenção estatal teria beneficiado alguns indivíduos
e grupos mais do que outros, as assimetrias seriam constitutivas da própria
República necessitando, portanto, para sua efetiva democratização,
reconhecer que a gama de distorções legadas pelo colonialismo e pela
industrialização gerou uma sociedade profundamente hierarquizada e
racializada. Assim, os direitos nunca foram iguais na República e a
democracia é um processo em construção que necessita incorporar a todos
os indivíduos e grupos em suas similaridades e diferenças.
Portanto, os que se declaram contra as cotas acreditam que no campo
das políticas públicas os avanços se produzem por etapas seqüenciais:
primeiro é preciso melhorar a qualidade da educação básica e depois se
democratiza a universidade, é a defesa por políticas universais que não
recorrem a recortes raciais, étnicos, gênero etc. Os que se declaram a favor
encontram respaldo nos instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu o
115
Brasil e acreditam que a justeza da política se afirma por conta de que uma
parcela da população foi lesada por processos históricos.
Quando foram publicizados ambos os manifestos, independente da
posição defendida, contribuíram para que a sociedade entendesse melhor o
que era o projeto das cotas e quem o defendia ou não. No ano de 2006,
quando foram divulgados, algumas universidades estaduais e federais já
haviam implantado as cotas para estudantes negros, indígenas e estudantes
de escolas públicas nos seus vestibulares e a maioria adotou essa medida
após debates no interior de seus espaços acadêmicos. Os dados que eram
apresentados, como o rendimento satisfatório dos alunos cotistas,
começaram a desmontar um preconceito muito difundido, dentre tantos
outros, de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade
acadêmica.
Em suma, os manifestos apresentam duas posições antagônicas de
um debate que situa a questão de como podemos pensar a igualdade e a
diferença em uma sociedade que apresenta a diversidade entre seu povo.
5.4 Os casos de racismo nas universidades
As questões relativas ao tema do racismo sempre geram polêmicas,
seja no âmbito do senso comum, no calor da agitação política ou no campo
dos debates acadêmicos.
Os casos de racismo que se manifestaram nas universidades após a
implantação das cotas revelam que o membro do grupo visado encontra
vários obstáculos para conseguir mobilidade social ascendente. É como se
qualquer mudança ameaçasse as posições e prerrogativas estabelecidas,
como nos coloca Chinoy,
“Quando a riqueza, o poder ou o status de qualquer grupo pode ser
contestado por outros, ou quando membros de diferentes grupos étnicos
competem por valores difíceis, como o poder ou a riqueza, é provável que se
desenvolva o conflito e que as diferenças raciais ou étnicas se convertam
facilmente em base de hostilidade. Impedindo aos demais o acesso ao poder
político, relegando-os a ocupações servis, ou estigmatizando-lhes a cor ou a
116
cultura, um grupo dominante monopoliza os valores políticos, econômicos ou
de status, ou todos eles ao mesmo tempo. Criam-se repetidamente padrões
de discriminação e subordinação no intuito de obter tais valores e, depois de
criado um sistema de relações de superioridade e inferioridade entre grupos
étnicos, qualquer mudança causa habitualmente ameaça aos padrões
constituídos” (Chinoy, 1975, 309).
Isto significa que é do desejo de ser reconhecido como grupo superior
que surge o racismo.
Dentre tantos casos registrados pelo Brasil afora sobre ataques de
racismo nas universidades que implantaram as cotas alguns se destacam
pelo teor das agressões que apresentam.
No quadro a seguir, destacamos algumas frases dirigidas por
agressões verbais e pichações a estudantes negros por alunos contrários às
cotas nas universidades. São situações que revelam mais que um ato de
vandalismo, mas ações coletivas pautadas pelo ódio e intolerância racial.
Unb UFPR UERJ
“2004: cotas para negros! 2014: bandidos, traficantes e estupradores com PhD”.
“Bando de cotistas negros: voltem pra senzala”.
“As cotas vão tornar nossa sociedade racista”.
“Fora estrangeiros negros”.
“Racismo é coisa de negro”.
“As cotas são a confirmação da incompetência dos negros”.
“Crioulos preguiçosos: são cotistas”.
“O sistema de cotas institucionaliza injustiças”.
“Quer entrar na universidade pelas cotas? Vá a praia e volte mais cotista”.
As frases apresentadas foram extraídas de sites39.
Manifestações desse tipo demonstram que a forma extrema de
expressão do racismo seria uma pessoa acreditar na inferioridade natural de
um grupo de acordo com as características físicas. Que tais diferenças
físicas são determinantes que definem graus de inteligência e dignidade, que
39 No caso da Unb, ao realizarmos visita no campus pudemos observar e registrar algumas pichações ainda presentes em paredes de banheiro e corredores. Os sites consultados por nós foram: ciranda.net; irohin.com.br.
117
tais diferenças criam uma cultura inferior e que as características inferiores
constituem uma base legítima para o tratamento desigual e especial.
Jones nos aponta que a questão do poder é determinante na definição
do racismo e o preconceito racial é uma atitude que contribui para a sua
prática,
“(...) nossa definição de racismo ultrapassa crença ou atitudes, a fim
de incluir ações. O fator significativo da preferência pelo nosso grupo, com
base racial ou étnica, é o PODER que nosso grupo tem com relação a outro
grupo estranho. O poder é sempre definido em termos de ação. Portanto, (...)
o racismo resulta da transformação de preconceito racial e/ou etnocentrismo,
através do exercício do poder contra um grupo racial definido como inferior,
por indivíduos e instituições, com o apoio, intencional ou não, de toda a
cultura” (Jones, 1973: 105).
Em linhas gerais, o fenômeno racismo agrega categorias que tratam
da diferenciação e inferiorização dos indivíduos que são alvo da sua
manifestação,
“... os membros desse grupo devem estar situados no degrau mais
baixo da escala social, confinados a trabalhos penosos, ser os trabalhadores
mais explorados; devem também ser tão pouco visíveis quanto possível, não
aparecendo, por exemplo, na imprensa, senão sob o aspecto da sujidade, da
ignorância e da criminalidade” (Wieviorka, 1993: 59-60).
Por sua vez, as duas variáveis destacadas atuam no sentido de
rejeição, exclusão até o extermínio físico ou moral do grupo visado,
“O grupo objeto do racismo deve ser mantido à parte, excluído,
segregado e, no limite, expulso e até destruído. Não tem lugar na sociedade,
é considerado como uma ameaça para a cultura ou para a economia da
mesma, constitui uma afronta à homogeneidade do corpo social, à sua
pureza” (Wieviorka, 1995: 60).
Michel Wieviorka, em suas análises sobre o racismo aborda as
experiências de tensões interculturais dos povos além dos aspectos que
determinam as formas mais extremas de manifestação da intolerância. Esse
autor aponta para existência de três subconjuntos que fazem parte dos
estudos sobre o racismo,
118
“... um primeiro conjunto composto de preconceitos, opiniões e
atitudes, um segundo subconjunto que reúne as condutas e práticas (de
discriminação, segregação e violência) e um terceiro subconjunto que abarca
desde elaborações eruditas e doutrinárias até o racismo como ideologia
ampla40” (Wieviorka, 1992: 99).
Um olhar sobre a conjuntura nacional de implantação das cotas nos
aponta que elas têm contribuído para exacerbação do debate sobre a
presença do racismo na nossa sociedade. A experiência das cotas
demonstra através de manifestações racistas que destacamos no quadro
anterior a existência de formas de expressão de intolerância racial nas
nossas universidades que remontam um perfil que tem de ser superado, ou
seja, que desconhece a diversidade racial brasileira. Não há o enfrentamento
real de um problema sem o reconhecimento definitivo das mazelas que o
alimentam e, portanto, as universidades devem se preparar para solucionar e
dar o melhor encaminhamento aos casos de racismo que se reproduzem nos
campus, como o que ocorreu na Unb,
“No dia 28 de março de 2008, nós, população negra da Universidade
de Brasília, fomos agredidos (as) mais uma vez. Numa ação terrorista,
herdeiros e atuais representantes da opressão racial brasileira quiseram
levar à morte dez de nossos irmãos e irmãs africanas e colocaram em risco a
vida de outras dezenas de pessoas. Não se trata de um ato isolado. Há anos
os negros vivenciam isso no campus universitário da Unb, sem que nenhuma
ação efetiva e institucional tenha sido tomada. Após uma série de insultos,
humilhações e ameaças, desta vez, o intuito era o de queimar pessoas
negras vivas! Não podemos mais tolerar tamanha negligência. Corremos
perigo e exigimos justiça”41.
Por meio de situações como essa podemos concluir que instituições
que preservarem uma lógica excludente de funcionamento e não aderirem a
projetos que as tornem mais justas não resistirão à força dos discursos e
40 “... un primer subconjunto compuesto de prejuicios, opiniones e actitudes, un segundo subconjunto que reúne las conductas o prácticas (de discriminación, segregación, y violencia), y un tercer subconjunto que abarca desde elaboraciones eruditas y doctrinarias hasta el racismo como ideología ampla...” (Wieviorka, 1991: 99). 41 Trecho do depoimento dos alunos africanos atacados na Unb que residem nas repúblicas. Extraído do site www.ciranda.net .
119
serão desafiadas e cobradas a promover maior inclusão racial. Isso não quer
dizer, contudo, que a ação afirmativa não tenha uma base de apoio forte no
sistema universitário público brasileiro. O fato de muitos dos programas hoje
em vigor terem sido aprovados via decisões de conselhos universitários é
evidência de que esse apoio existe. No entanto, para que as universidades
estejam preparadas para os desafios que a implantação das cotas exige é
preciso entendê-las como uma medida que não se dirige apenas à
desvantagem sócio-econômica de grupos de baixa renda, mas também ao
racismo que pode contribuir para baixa autoconfiança profissional dos
estudantes negros. Nesse sentido, as ações afirmativas devem ser utilizadas
para combater as desigualdades herdadas, que são conseqüências do
racismo e não somente da falta de recursos econômicos.
120
Considerações Finais
Nestas páginas finais pretende-se recuperar algumas das questões
levantadas no decurso deste trabalho.
As políticas de ação afirmativa são concebidas com o objetivo de
corrigir desigualdades ou injustiças históricas, reparando erros do passado.
Também são justificadas a partir da visão de que a persistente exclusão de
determinados segmentos da sociedade dos benefícios coletivos e das
oportunidades inibe o desenvolvimento do país como um todo. Se talentos
são desperdiçados, deixamos de contar com a contribuição desses
indivíduos para a construção do país que desejamos.
Hoje no Brasil nos deparamos com um grande número de
universidades que estão aderindo as cotas e pudemos constatar as formas
distintas de construção do projeto ao longo dos últimos seis anos. No
entanto, há uma dificuldade em comum entre as instituições, ou seja, o
sucesso dos programas de ação afirmativa estão fortemente correlacionados
com a extensão em que cada universidade mobiliza seus recursos
acadêmicos e financeiros para executar o projeto. Em comparação aos
países com maiores experiências nesse tema, onde as melhores
universidades têm volumosos recursos, as fontes para financiamento do
ensino superior são maiores, em alguns casos os beneficiários da política
podem arcar com determinados custos da educação universitária e onde a
iniciativa privada dispõe sua contribuição, no caso brasileiro os programas
dependerão, principalmente, dos compromissos assumidos pelo governo
federal e estadual. O cálculo dos custos dos investimentos das ações
afirmativas deve, então, ser o resultado de um desenho cuidadoso, da
avaliação periódica dos programas e seus componentes, da análise das
características do público-alvo beneficiado e dos objetivos educacionais e
acadêmicos dos programas.
Por conta da heterogeneidade das condições de ensino em diferentes
partes do país e dos recursos existentes nas diferentes universidades, talvez
uma abordagem oportuna para apoiar financeiramente as ações afirmativas
121
no Brasil seria criar um programa institucional no Ministério da Educação ao
qual cada universidade que queira adotar ação afirmativa submeteria suas
propostas com objetivos identificáveis em termos de oportunidades
educacionais e realizações acadêmicas, assim como os mecanismos para
avaliação dos resultados.
No que diz respeito aos programas desenvolvidos pelos órgãos
públicos, o ProUni é considerado uma das principais realizações do MEC,
que estabeleceu ação afirmativa na forma de bolsas de estudos para alunos
oriundos das escolas públicas, entre eles negros e indígenas. Apesar dos
seus números serem considerados satisfatórios, quando em 2006 foram
concedidas mais de 200 mil bolsas para estudantes negros (Brasil, 2003-
2006), questiona-se o fato do programa ser desenvolvido apenas em
instituições privadas onde a qualidade do ensino é classificada como inferior
em relação às universidades públicas.
Ao contrário do ProUni, as cotas não se tratam de nenhum programa
ou política governamental, ou seja, foram adotadas voluntariamente por cada
universidade, baseadas em procedimentos democráticos da sua
administração e ainda passam por reformulações e ajustes, o que dificulta
talvez a mobilização de recursos financeiros públicos, pois é certo que o
apoio financeiro para projetos de ação afirmativa devem considerar um bom
desenho do programa e um monitoramento cauteloso dada a magnitude que
o processo de implantação das cotas alcançou no país.
Nesse sentido, estamos de fato assistindo ao alvorecer do debate
nacional sobre a ação afirmativa e o tema ainda é dominado pela questão da
validade ou não de tal iniciativa. Entretanto, no futuro esse olhar dividirá o
espaço com um número crescente de trabalhos que procuraram avaliar o
funcionamento da política apontando ganhos, perdas e possibilidades de
aperfeiçoamento para criar alternativas de inclusão social e racial.
122
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127
ANEXO I
Lista das universidades com cotas 42
AESI – Faculdade de Ciências Contábeis de Itabirito CESUMAR – Centro Universitário de Maringá CESV – Centro de Ensino Superior de Vitória ESCS/DF Escola Superior de Ciências da Saúde FACIG – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Igrarassu FACULDADES MARINGÁ – Faculdade de Maringá FAETEC – Fundação Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro FAFOPST – Faculdade de Formação de Professores de Serra Talhada FATEMA – Faculdade Integrada Teresa Martin FIAMA – Faculdade de Amabaí IDEPE – Faculdade Idepe IMESB – Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro Victorio Cardassi SÃO BENTO – Faculdade São Bento UCDB – Universidade Católica Dom Bosco UCL – Faculdade do Centro Leste UEA – Universidade do Estado do Amazonas UEG – Universidade Estadual de Goiás UEL – Universidade Estadual de Londrina UEM – Universidade Estadual de Maringá UEMA – Universidade Estadual do Maranhão UEMS – Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro UEPG – Universidade Estadual de Ponta Grossa UERGS – Universidade Estadual do Rio Grande do Sul UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UEZO – Centro Universitário da Zona Oeste UEMG – Universidade Estadual de Minas Gerais UFAL – Universidade Federal de Alagoas UFBA – Universidade Federal da Bahia UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFPA – Universidade Federal do Pará UFPR – Universidade Federal do Paraná UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFTO – Universidade Federal do Tocantins
42 Fonte: www.politicasdacor.net
128
UNB – Universidade de Brasília UNEMAT – Universidade do Estado do Mato Grosso UNICAMP – Universidade de Campinas UniCEUB – Centro Universitário de Brasília UNICENTRO – Centro Universitário de Belas Artes de São Paulo UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIT – Universidade Tiradentes UNIVACO – Instituto Metropolitano de Ensino Superior UPE – Universidade de Pernambuco
129
ANEXO II
Manifestos contra e a favor as cotas
“ Todos têm direitos iguais na República Democrática”
O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um
fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa
a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção
por diversos dispositivos dos projetos lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto
da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma
decisão final no Congresso Nacional.
O PL das Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e
indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto
da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos
brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas
relações com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas
raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação
brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade
da sua pele, pela “raça”. A história já condenou dolorosamente estas
tentativas.
Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais
constituem política compensatória voltada para amenizar as desigualdades
sociais. O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que
levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida
precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que esta
situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de
políticas sociais que compensassem os que foram prejudicados no passado,
ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que
reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam a corrigir um
mal maior.
130
Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis
conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas
gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o
preceito da igualdade perante a lei. A adoção de identidades raciais não
deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos
“raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo podem
até produzir um efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça,
possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade
amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à
exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade
nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de
empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de
cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o
alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.
A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo
de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E
ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de
desigualdades.
Que Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja
discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida
íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços púbicos;
que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do
caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não
seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que
conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para
viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor da sua
pele, mas pela força de seu caráter.
Nos dirigimos ao Congresso Nacional, seus deputados e senadores,
pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (o PL das Cotas) e o PL 3.198/2000
(PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.
131
“Manifesto em favor da Lei de Cotas e do Estatuto d a Igualdade Racial”
Aos/as deputados/as e senadores/as do Congresso brasileiro
A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta
realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas
públicas específicas. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do
racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os
cidadãos. A população negra acabava de ser colocada em uma situação de
completa exclusão em termos de acesso à terra, à instrução e ao mercado
de trabalho para competir com os brancos diante de uma nova realidade
econômica que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram
iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que
hoje podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular
a imigração de europeus para o Brasil.
Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e intensificado na
sociedade brasileira ao longo de todo século vinte. Uma série de dados
oficiais sistematizados pelo IPEA no ano de 2001 resume o padrão brasileiro
de desigualdade racial: por quatro gerações ininterruptas, pretos e pardos
têm contado com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à
saúde, menor índice de emprego, piores condições de moradia, quando
contrastados com os brancos e asiáticos. Estudos desenvolvidos nos últimos
anos por outros organismos estatais demonstram claramente que a
ascensão social e econômica no país passa necessariamente pelo acesso
ao ensino superior.
Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas
das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas cotas, cujo
marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 20 de novembro de
1995, encampada por uma ampla frente de solidariedade entre acadêmicos
negros e brancos, coletivos de estudantes negros, cursinhos pré-vestibulares
132
para afrodescendentes e pobres e movimentos negros da sociedade civil,
estudantes e líderes indígenas, além de outros setores solidários, como
jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas --boa parte dos quais
subscreve o presente documento. A justiça e o imperativo moral dessa causa
encontraram ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas
públicas concretas, dentre elas: a criação do Grupo de Trabalho
Interministerial para a Valorização da População Negra, de 1995; as
primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação da
Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial
(SEPPIR), em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que
estabelecem cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em
todas as universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial.
O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma
resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários
instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da
ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
(CERD), de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de Durban,
resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do
Sul, em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada
pela CERD, de adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante
na construção da igualdade racial, uma vez aqui que as ações afirmativas
para minorias étnicas e raciais já se efetivam em inúmeros países multi-
étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil. Foram incluídas na
Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado da Malásia desde
1968; nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde
então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México.
Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro
finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive
porque o país conta com a segunda maior população negra do planeta e
deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção do Estado da
Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais aos
133
europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos benefícios à
população afro-brasileira.
Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva
internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino
superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da
desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid,
os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que
a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros
nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior
que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades
públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas
universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os
negros conformam 45,6 % do total da população. Se os Deputados e
Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira
em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto,
os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do
estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século
XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e
racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma
geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois,
segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população
negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma
política específica de promoção da igualdade racial na educação seja
adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente
sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial,
deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas
do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no
mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de
pesquisador.
No caminho da construção dessa igualdade étnica e racial, somente
nos últimos 4 anos, mais de 30 universidades e Instituições de Ensino
Superior públicas, entre federais e estaduais, já implementaram cotas para
estudantes negros, indígenas e alunos da rede pública nos seus vestibulares
134
e a maioria adotou essa medida após debates no interior dos seus espaços
acadêmicos. Outras 15 instituições públicas estão prestes a adotar políticas
semelhantes. Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar
com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual
ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal.
Esse dado é importante porque desmonta um preconceito muito difundido de
que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica das
universidades. Isso simplesmente não se confirmou! Uma vez tida a
oportunidade de acesso diferenciado (e insistimos que se trata de cotas de
entrada e não de saída), o rendimento dos estudantes negros não se
distingue do rendimento dos estudantes brancos.
Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as
políticas de inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que
haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito
distante desse panorama alarmista, os casos de racismo que têm surgido
após a implementação das cotas têm sido enfrentados e resolvidos no
interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e eficácia
maiores do que havia antes das cotas. Nesse sentido, a prática das cotas
tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da
discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas
experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a
formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada
que facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas.
Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis
a serem votadas o PL 73/99, que reserva vagas na graduação, é uma
medida ainda tímida: garantirá uma média nacional mínima de 22,5% de
vagas nas universidades públicas para um grupo humano que representa
45,6% da população nacional. É preciso, porém, ter clareza do que
significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação
no Brasil. Tomando como base os dados oficiais do INEP, o número de
ingressos nas universidades federais em 2004 foi de 123.000 estudantes,
enquanto o total de ingressos em todas as universidades (federais,
estaduais, municipais e privadas) foi de 1.304.000 estudantes. Se já
135
tivessem existido cotas em todas as universidades federais para esse ano,
os estudantes negros contariam com uma reserva de 27.675 vagas (22,5%
de 123.000 vagas). Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total
de ingressos no ensino superior brasileiro. Devemos concluir que a
desigualdade racial continuará sendo a marca do nosso universo acadêmico
durante décadas, mesmo com a implementação do PL 73/99. Sem as cotas,
porém, já teremos que começar a calcular em séculos a perspectiva de
combate ao nosso racismo universitário. Temos esperança de que nossos
congressistas aumentem esses índices tão baixos de inclusão!
Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas
universidades públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade
Racial complementa esse movimento por justiça. Garante o acesso mínimo
dos negros aos cargos públicos e assegura um mínimo de igualdade racial
no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e
moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de
igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de 1891, no momento
inicial da construção da República no Brasil. Foi sua ausência que
aprofundou o fosso da desigualdade racial e da impunidade do racismo
contra a população negra ao longo de todo o século XX. Por outro lado, o
Estatuto transforma em ação concreta os valores de igualdade plasmados na
Constituição de 1988, claramente pró-ativa na sua afirmação de que é
necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada.
Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o
ciclo de desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história
republicana até os dias de hoje.
Gostaríamos ainda de fazer uma breve menção ao documento
contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, enviado
recentemente aos nobres parlamentares por um grupo de acadêmicos
pertencentes a várias instituições de elite do país. Ao mesmo tempo em que
rejeitam frontalmente as duas Leis em discussão, os assinantes do
documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de
inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a
lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a
136
todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios
universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e
multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio sistemático,
parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à
Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as
desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um
futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à
educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado
brasileiro. Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados
oficiais recentes do IBGE e do IPEA que expressam, sem nenhuma dúvida, a
nossa dívida histórica com os negros e os índios, ou adotamos cotas e
implementamos o Estatuto, ou seremos coniventes com a perpetuação da
nossa desigualdade étnica e racial.
Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é um
princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas,
baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos
históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar
essa meta.
Conclamamos, portanto, os nossos ilustres congressistas a que
aprovem, com a máxima urgência, a Lei de Cotas (PL 73/1999) e o Estatuto
da Igualdade Racial (PL 3.198/2000).
Brasília, 3 de julho de 2006.
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ANEXO III
Roteiro de Entrevista A
1) O que foi o Movimento Pelas Reparações Já?
2) Quem foram os precursores do Movimento?
3) Com que objetivo foi criado?
4) Na ocasião, havia um consenso no movimento negro sobre
a estratégia utilizada para realizar o protesto?
5) O que é o Núcleo de Consciência Negra da USP (NCN-
USP)?
Roteiro de Entrevista B
1) O que é o EnegreSer?
2) Qual foi o motivo que impulsionou a formação do grupo?
Quais são as ações desenvolvidas?
3) Qual o papel que o EnegreSer desempenhou no debate das
cotas na UnB?
4) Quais foram as questões levantadas no curso do debate
para esboçar o projeto institucional de ação afirmativa?
Roteiro de Entrevista C
1) Quando foram iniciadas as discussões sobre as ações
afirmativas na Unifesp?
2) Quais foram as questões levantadas no curso do debate
para esboçar o projeto institucional de ação afirmativa?
3) Quais foram os programas criados para garantir a
permanência dos alunos cotistas depois do vestibular?