137
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Andressa Ferreira de Martini As cotas nas universidades públicas brasileiras Mestrado em Psicologia Social São Paulo 2009

As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Andressa Ferreira de Martini

As cotas nas universidades públicas brasileiras

Mestrado em Psicologia Social

São Paulo

2009

Page 2: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Andressa Ferreira de Martini

As cotas nas universidades públicas brasileiras

Mestrado em Psicologia Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Dr. Salvador A. M. Sandoval.

São Paulo

2009

Page 3: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

Banca Examinadora

______________________________________

______________________________________

______________________________________

Page 4: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho em especial

à memória de minha irmã Sandra

Regina Ferreira de Martini, que ao

partir levou um pedaço do meu

coração, mas deixou seu exemplo

de força, esperança e serenidade

para alcançar todos os sonhos em

que acreditava.

Também o dedico à memória de

meu pai Mauro de Martini e meu

avô Vicente Ferreira.

Page 5: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

AGRADECIMENTOS

Acredito que este trabalho representa meus primeiros passos em direção

ao amadurecimento intelectual e pessoal. No decorrer do caminho, a sua

materialização contou com o apoio e colaboração de várias pessoas.

Portanto, registro aqui meu profundo agradecimento a todos que

contribuíram para que a presente dissertação se realizasse:

• Agradeço primeiramente à minha mãe que tanto amo. A sua

coragem e alegria com que vive a vida são qualidades nas quais me

inspiro para buscar ser uma pessoa melhor a cada dia.

• A Capes, que me forneceu apoio financeiro através de uma bolsa de

estudos para realizar este trabalho.

• Aos nossos entrevistados - na Unb, Unifesp e no Núcleo de

Consciência Negra da Usp - que nos disponibilizaram informações

preciosas para formação deste trabalho.

• Aos colegas do núcleo de Psicologia Política pelas contribuições

geradas durante as discussões nas aulas.

• De maneira especial, agradeço e dedico este trabalho aos meus

familiares pelas palavras de carinho e otimismo transmitidas nos

bons momentos e também nos mais difíceis.

• Agradeço à minha querida amiga Juliana, pelas dicas e idéias que

me ajudavam a refletir. A nossa longa e verdadeira amizade me faz

muito feliz e sei que continuaremos partilhando os momentos por

toda vida.

• Agradeço a Profª Drª. Palmira, a quem guardo um enorme carinho e

gratidão por me apresentar e ser inspiradora do meu interesse pelos

estudos do campo das relações raciais. Tenha certeza que aprendi

muito com os livros, mas, também, com as nossas viagens

Page 6: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

inesquecíveis ao carnaval de Salvador. Obrigada por aceitar ler este

trabalho.

• Agradeço com carinho a Profª Drª. Sueli, que acompanhou meus

primeiros passos na vida acadêmica ainda na Faculdade de Serviço

Social. Tenha certeza que os conhecimentos adquiridos na

graduação também estão presentes nas linhas deste trabalho

desenvolvido por mim. Obrigada por aceitar ler esta pesquisa.

• Agradeço ao Profº Drº. Salvador Sandoval, quem eu considero o

verdadeiro exemplo de mestre, pois além dos conceitos e discussões

da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante as aulas com

as histórias que contava. A sua disposição em orientar este trabalho

me deixou profundamente feliz e agradecida.

Page 7: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo reunir os dados e as

informações referentes à implantação do sistema de cotas nas

universidades para apreender como as instituições têm tratado esse

processo. Entendemos que o ensino superior tem sido uma área

privilegiada do debate no Brasil como local para pensar os embates,

questões e hipóteses elaboradas em torno dessa proposta de ação

afirmativa.

A bibliografia especializada nos fez entender a importância da

referência norte-americana no Brasil sobre esse tema. Portanto,

reconstituímos o contexto histórico das ações afirmativas nos EUA através

do movimento de luta pela igualdade racial que reivindicou a ampliação dos

direitos dos cidadãos negros.

Na conjuntura nacional, a implantação das cotas revela que não

basta definir a reserva de vagas, pois os desafios avolumam-se quando

começam a operar, já que o alcance social inerente a ela em muito

extrapola a universidade e sua vinculação com os outros níveis do nosso

sistema educacional. Há processos políticos e sociais cruciais para a

construção do projeto nacional em jogo e a questão da supressão das

desigualdades raciais emerge como elemento central nesse sentido.

Palavras-chave: ação afirmativa, racismo, universidades brasileiras.

Page 8: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

ABSTRACT

This work aims to gather data concerning the implementation of the

quota system in universities to learn how institutions have handled this

process. We believe that higher education has been a prime area of debate

in Brazil as a place to think the discussions, issues and assumptions made

about this proposal of affirmative action.

The specialized bibliography have done us understand the

importance of the North American reference in Brazil on this subject.

Therefore, constitute the historical context of affirmatives actions in the U.S.

through the movement of the struggle for racial equality that demanded the

expansion of the rights of black citizens.

We could note in the national context, the implementation of quotes

revels that define the reservation of vacancies only is not enough, because

the accumulating challenges when starting to operate, since the social reach

inherent to it in much beyond the university and its links with other levels of

the educational system. There are crucial social and political processes for

the construction of the national project in progress and the question of

abolition of racial inequalities emerge as a central element in that direction.

Key-words: affirmative action, racism, brazilian universities.

Page 9: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO______________________________________________11 A política de ação afirmativa______________________________________11 Estágio exploratório da pesquisa: nossos primeiros passos em campo_____17

2. CAPÍTULO I________________________________________________23 As Ações Afirmativas nos Estados Unidos 2.1 A referência norte-americana___________________________________23 2.2 Os conflitos raciais e a luta pela igualdade racial____________________24 2.3 Políticas de ação afirmativa no ensino superior_____________________34 2.4 A diversidade no ensino superior________________________________39 2.5 Estudos sobre o impacto da diversidade: criando ambientes inclusivos de aprendizado___________________________________________________41 3. CAPÍTULO II_______________________________________________48 A Construção das Ações Afirmativas no Brasil 3.1 O anti-racismo no Brasil______________________________________48 3.2 O Movimento pelas Reparações Já!_____________________________53 3.3 Os cursos pré-vestibulares____________________________________57 3.4 Grupo de Trabalho Interministerial______________________________62 3.5 Programa Nacional de Direitos Humanos_________________________64 3.6 Convenções Nacionais e internacionais: proposições políticas com participação popular_____________________________________________65 3.7 A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial___70 4. CAPÍTULO III_______________________________________________74 Os Aspectos Institucionais da Implantação das Cota s nas Universidades Públicas 4.1 Ação afirmativa: elementos da agenda governamental para o ensino superior______________________________________________________74 4.2 As universidades públicas brasileiras____________________________78 4.3 A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)__________________82

4.3.1 As primeiras leis que definiram as cotas na Uerj_______________82 4.3.2 O vestibular 2003_______________________________________84 4.3.3 Os primeiros programas de permanência____________________86

4.4 A Universidade de Brasília (Unb)_______________________________90 4.4.1 A proposta das cotas para estudantes negros_________________90 4.4.2 O vestibular 2004_______________________________________93 4.4.3 Programas de apoio aos cotistas___________________________97

4.4 A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)___________________99 4.4.1 A proposta das cotas____________________________________99 4.4.2 O vestibular 2005______________________________________101 4.4.3 Programas de auxílio aos cotistas_________________________103

Page 10: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

5. Capítulo IV ______________________________________________105

Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas Univ ersidades Públicas

5.1 O princípio da igualdade e a ação afirmativa___________________105 5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e comunitaristas_______108 5.3 Os manifestos pró e contra as cotas_________________________111 5.4 Os casos de racismo nas universidades______________________115 6. Considerações Finais ____________________________________120 7. Bibliografia _____________________________________________122 8. Anexo I – Lista das universidades com cotas___________________127 9. Anexo II – Manifestos contra e a favor das cotas________________129 10. Anexo III – Roteiros das entrevistas_________________________137

Page 11: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

11

INTRODUÇÃO

1.1 A política de ação afirmativa

“Jamais como em nossa época foram postas em discussão as três

fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça, o sexo e a classe

social”. Norberto Bobbio

A crença de que as sociedades devem aspirar tratar seus membros de

forma igualitária e combater as desigualdades de origem racial e étnica

ocupa uma posição central no que diz respeito ao debate das políticas de

ação afirmativa. Entende-se que os argumentos da sua justificação pública

apontam, em primeiro lugar, para a discussão de como as esferas

institucionais ao longo da história discriminaram por razões étnicas, raciais e

de gênero determinados grupos e indivíduos dificultando seu acesso aos

frutos do desenvolvimento do país, tais como a participação em processos

decisórios, acesso à saúde, à educação, ao emprego, aos bens materiais e

às redes de proteção social.

Num segundo momento, compreende-se que as bases democráticas

de uma sociedade multicultural, ou seja, que aglutina diferenças étnicas,

raciais, de origem nacional e lingüística e quando essas situam

freqüentemente os homens numa posição de desvantagem em relação aos

membros de outro grupo e realçam elementos para o tratamento desigual

levam à exigência do reconhecimento de que esse quadro constitui um

obstáculo ao desenvolvimento humano e social e que, portanto deve ser

alterado.

Desse modo, as ações afirmativas concentram o debate, primeiro

acerca da relação entre a destinação dos recursos públicos e o bem-estar

coletivo (Gomes, 2003), ou seja, “interferem em questões que remontam à

própria origem da democracia moderna, suscitando questionamentos acerca

de temas fundamentais do modelo de organização política preponderante no

Page 12: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

12

hemisfério ocidental” (Gomes, 2003: 32), e ainda, como manter o equilíbrio

entre a acumulação e a equidade no país (Silvério, 2002).

Em segundo lugar, as ações afirmativas introduzem questões como a

busca pela afirmação das identidades étnicas e culturais atrelada aos

interesses econômicos e as reivindicações políticas dos grupos e indivíduos,

que se orientam também pelos fatos históricos, ou seja, reportam-se aos

recursos da memória como justificação para que sejam garantidos os direitos

que lhes foram furtados e que, portanto devem ser compensados. Por

exemplo, em relação aos negros as disparidades econômicas e sociais de

hoje são apontadas como conseqüências derivadas do período da

escravidão1.

Com efeito, Taylor nos aponta que determinados grupos buscam a

legitimidade pelo reconhecimento das suas especificidades culturais onde “la

exigencia aparece em primer plano, de muchas maneras, en la política

actual, formulada en nombre de los grupos minoritários o “subalternos”, en

algunas formas de feminismo y en lo que hoy se denomina la política del

“multiculturalismo” “ (1992). Assim como bem nos diz Taylor o desejo pelo

reconhecimento é fomentado pelo ideal de dignidade humana que aponta

para dois eixos: a proteção dos direitos dos indivíduos enquanto seres

humanos e o reconhecimento das necessidades particulares de cada

indivíduo enquanto membro de grupos culturais específicos.

O objetivo de estabelecer democracias multiculturais passou a integrar

o programa político de vários países e a agenda dos movimentos sociais,

pois “em todo o mundo, grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos

locais, suas identidades étnica, cultural e religiosa” (D’Adesky, 2005: 21) em

função da busca pelo reconhecimento de que não conseguiriam superar

quadros históricos de discriminação e pobreza se os Estados não se

comprometessem a aplicar investimentos públicos preferenciais.

1 O mecanismo da compensação pode ser entendido como “a regulação posterior, por meio de um dispositivo suplementar numa dada sociedade, para contrabalançar fontes conhecidas e reconhecidas socialmente de erros e/ou injustiças sociais. Enquanto política de Estado, na atualidade, a compensação tem ocorrido de duas formas distintas: por meio das chamadas políticas de ação afirmativa (affirmative action) e das reparações” (Silvério, 2002: 91).

Page 13: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

13

Em alguns contextos nacionais como a Malásia, a Índia, a África do

Sul, a Europa Ocidental2 e os Estados Unidos a ação afirmativa foi

transformada em política pública e item obrigatório da bandeira dos

movimentos sociais há mais de 40 anos com o objetivo de criar

oportunidades para ascensão social de determinados grupos e corrigir as

desigualdades que o racismo e o sistema de segregação produziram. Em

outras palavras, os Estados passaram a levar em conta na implementação

das suas deliberações fatores como a raça, o sexo, a origem nacional e a

etnia.

Nos países em que foi aplicada seja no mercado de trabalho pela

contratação ou promoção de minorias ou nas universidades públicas, a ação

afirmativa ganhou forma de programa de ações e políticas governamentais

ou privadas, leis ou orientação de decisões jurídicas3. Os teóricos do direito

no Brasil trazem os elementos que explicam o enquadramento jurídico da

política: “a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos

desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma

forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são

marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na

sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica

efetiva; por ela afirma-se uma forma jurídica para se provocar uma efetiva

igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como

assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A

ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou

a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias” (Gomes, 2003: 28).

No plano jurídico discute-se ainda sobre a implementação do princípio

constitucional da igualdade, ou seja, o cerne do debate concentra-se no fato

de que o Estado deveria garantir certa “neutralidade processual” (Gomes,

2002) ou pelo contrário deveria criar mecanismos contemporâneos de

política orientador de ações que possibilitem a realização da igualdade de

2 Na Europa a política ficou conhecida pelo nome de discriminação positiva (discrimination positive) e ação positiva (action positive). 3 “No pertinente às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado)” (Gomes, 2002: 142).

Page 14: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

14

resultados ou material entre os membros da nação. Gomes nos aponta que

“as nações que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal

são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça (...) já a

chamada igualdade de resultados tem como nota característica exatamente

a preocupação com os fatores “externos” à luta competitiva – tais como a

classe ou origem social, natureza da educação recebida - , que tem inegável

impacto sobre o seu resultado” (2002: 38).

Ainda com base nos aspectos conceituais da política os autores

assinalam que: “a ação afirmativa corresponde a qualquer medida que aloca

bens – tais como o ingresso em universidades, empregos, promoções,

contratos públicos, empréstimos comerciais e o direito de comprar e vender

terra – com base no pertencimento a um grupo específico, com o propósito

de aumentar a proporção de membros desse grupo na força de trabalho, na

classe empresarial, na população estudantil universitária e nos demais

setores nos quais esses grupos estejam atualmente sub-representados em

razão de discriminações passadas ou recentes” (Zoninsein; Junior, 2005:21).

No Brasil, a discussão teórica sobre a ação afirmativa é considerada

quase desconhecida pela maioria das pessoas, no entanto, não é de todo

estranha à história do nosso país. Com efeito, o Brasil já conheceu uma

modalidade de ação afirmativa concretizada na chamada Lei do Boi (Lei

5.465/68),

“Cujo art. 1º era assim redigido: os estabelecimentos de ensino médio

agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidas pela

União, reservarão, anualmente, de preferência, cinqüenta por cento de suas

vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de

terras, que residam com suas famílias na zona rural, e trinta por cento a

agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em

cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio”

(Gomes, 2003: 17).

A década de 1990 foi um período em que a ação afirmativa começou

a deixar de ser um tema desconhecido entre nós, tanto em sua concepção

quanto nas suas formas de implantação. Na conjuntura nacional, a

confluência de fatos históricos trazidos pelo movimento negro, os programas

Page 15: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

15

desenvolvidos por organizações não-governamentais (Ongs), a inserção da

proposta das ações afirmativas nas plataformas eleitorais dos governantes,

as iniciativas e os programas promovidos pelo governo federal, a veiculação

de informações na imprensa e a implantação das cotas nos vestibulares se

configuraram como palco para discutir as implicações imediatas e futuras da

adoção de tais políticas.

Diante disso, as observações que se voltam para todo esse contexto

deixam entrever as expectativas que temas como as relações raciais, a

democratização do acesso ao ensino superior público, a função social da

universidade pública, o comprometimento por parte do poder público em

encampar programas e políticas que considerem as desigualdades entre os

segmentos da nossa sociedade, as avaliações em relação à qualidade e à

eficiência da ação afirmativa, entre outros, suscitam na opinião púbica

brasileira.

Hoje, as universidades públicas concentram as atenções no que diz

respeito às ações afirmativas, entendemos que se trata de um processo em

curso, cujas informações estão sendo gradativamente sistematizadas, e por

isso merecem um olhar mais criterioso por parte dos pesquisadores que

podem produzir dados para aprimorar a discussão. Entendemos que as

experiências das cotas nas universidades é algo que deve ser mais

observado e explorado analiticamente, pois poderão ser utilizadas como

respaldo para lapidar a replicação dessa política no momento atual em que

está sendo difundida em todo país. A implantação das cotas nos mostra que

não basta definir a reserva de vagas, pois os desafios avolumam-se quando

começam a operar, já que o alcance social inerente a ela em muito extrapola

a universidade e sua vinculação com os outros níveis do nosso sistema

educacional. Há processos políticos e sociais cruciais para a construção do

projeto nacional em jogo e a questão da supressão das desigualdades

raciais emerge como elemento central nesse sentido.

O ensino superior tem sido uma área privilegiada do debate no Brasil

como local para pensar os embates, questões e hipóteses elaboradas em

torno dessa proposta de ação afirmativa. Portanto, o presente estudo não

traz nenhuma indagação a ser respondida, ao contrário, optamos em realizar

Page 16: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

16

uma pesquisa documental para reunir dados e informações de como as

universidades têm tratado o desafio das cotas. É verdade que as próprias

instituições ainda têm uma certa dificuldade no trato com os dados do

vestibular, desempenho acadêmico, índices de evasão e número de alunos

com aprovação nas disciplinas, tudo isso para acompanhar e avaliar a

trajetória dos estudantes cotistas, revelar as limitações e possíveis falhas das

universidades para aprimorar o sistema de cotas.

Por esse motivo, consideramos um desafio e ponderamos a

dificuldade em sistematizar os dados que compõem nossa pesquisa, uma

vez que os registros ainda são quase inexistentes. Mais adiante é possível

observar que trouxemos os dados do primeiro vestibular para análise já que

esses estavam mais disponíveis talvez pelo fato da inovação que as cotas

representavam no início.

Sendo assim, apresentamos no primeiro capítulo o desenvolvimento

da ação afirmativa nos Estados Unidos, onde as experiências completam

mais de quarenta anos. Reconstituímos seu contexto histórico através do

processo de luta pela igualdade racial que reivindicou a ampliação dos

direitos dos cidadãos negros; as formas que a ação afirmativa assumem nas

universidades e por fim os estudos sobre diversidade que avançam na

década de 1990.

No segundo capítulo, contextualizamos o debate sobre a política de

ação afirmativa no Brasil interpretada como instrumento de combate ao

racismo e de democratização do acesso ao ensino superior público.

Destacaremos o surgimento do Movimento Pelas Reparações Já!,

considerado o marco das discussões sobre reparações e ação afirmativa no

Brasil; discutiremos sobre a difusão pelo país ao longo dos anos 1990 dos

cursos pré-vestibulares para alunos negros e carentes considerados como

uma estratégia do movimento negro nas décadas de 1970 e 1980 que já

atuavam no sentido de aumentar o número de estudantes negros nas

universidades públicas; destacaremos as ações governamentais em prol da

ação afirmativa e as convenções nacionais e internacionais que situam a

ação afirmativa nos seus parágrafos.

Page 17: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

17

No terceiro capítulo, procuramos entender como os atores

envolvidos nesse processo no Brasil estão entendendo as ações afirmativas,

para tanto, destacamos a agenda governamental do MEC em parceria com

outros órgãos no que se refere ao acesso e permanência dos estudantes nas

universidades; começamos a esboçar o quadro das universidades brasileiras

que implantaram as cotas através de dados que ilustram formas de

implantação, porcentagem de reserva de vagas e a quem se destinam;

destacamos três universidades para uma análise mais detalhada: Uerj, Unb e

Unifesp onde enfatizamos a diversidade de formas de implantação das cotas,

então mencionada, que nos possibilitou observar que esse processo não foi

uniforme e obedeceu a diferentes procedimentos e propostas internas

aperfeiçoadas ao longo do tempo com o auxílio de acadêmicos, militantes e

estudantes até ser aprovada pelos conselhos universitários; destacamos os

dados do primeiro vestibular em cada universidade e por fim os programas

de permanência encampados.

No quarto capítulo, analisamos as questões teóricas trazidas pela

idéia de igualdade subjacente as políticas de ação afirmativa; em seguida

analisamos as polêmicas suscitadas através do manifesto contra e a favor

das cotas que revelou publicamente posicionamentos e argumentos distintos

sobre a ação afirmativa no país; e por fim analisaremos os casos de racismo

nas universidades.

***

1.2 Estágio exploratório da pesquisa: nossos primeiros

passos em campo

Uma vez esboçado o propósito geral deste estudo, duas tarefas

igualmente importantes foram conciliadas: revisão da literatura referente à

questão com a qual nos ocupamos (políticas de ação afirmativa) e acesso

aos materiais de fontes primárias. No primeiro caso, nos dirigimos às

bibliotecas das seguintes universidades: PUCSP, USP e UNB (Universidade

de Brasília) nas quais acessamos livros, teses, dissertações e periódicos. Já

no que diz respeito às fontes primárias acessamos materiais de encontros,

congressos, eventos, seminários, plenárias, jornais e Internet os quais

Page 18: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

18

visavam discutir propostas de combate às desigualdades raciais e a

emergência do debate público sobre políticas de ação afirmativa.

A partir daí foi possível observar que a década de 1990 representou

um marco no que diz respeito ao aumento das pesquisas sobre a temática

das relações raciais no campo da educação elaboradas dentro de diferentes

áreas do conhecimento das ciências humanas e sociais no Brasil. Nesse

sentido, paralelamente, uma parcela cada vez maior dessas pesquisas

começou a suscitar questões referentes à participação da população negra

no ensino superior.

A trajetória que descreve a relevância dos estudos deve ser

observada a partir da confluência entre os setores organizados da sociedade

que se estruturam no campo do anti-racismo, a produção do conhecimento

acadêmico e a atuação dos poderes públicos. Além disso, soma-se o

aumento do ingresso de pessoas engajadas na militância política em cursos

de graduação e pós-graduação que veio a corroborar com a criação dos

Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) nas universidades públicas

confirmando o crescente debate no campo racial.

Destacamos, ainda, que o aumento no volume das produções

acadêmicas das relações raciais também pode ser observado por nós

através da participação no II Encontro Regional de Pesquisadores Negros,

realizado no ano de 2006 em São Paulo, no IV Congresso Nacional de

Pesquisadores Negros(COPENE) também no ano de 2006, realizado em

Salvador e no V COPENE realizado em Goiás no ano de 2008.

Face ao exposto, constatamos que a literatura especializada sobre

políticas de ação afirmativa remonta o final da década de 1990, o que

configura o seu caráter relativamente novo e a escassez de estudos nessa

área. De modo predominante, o maior volume de produções sobre o tema se

dão nos campos das Ciências Humanas e Sociais e da Educação e

associam-se a implementação da política de cotas no vestibular da UERJ

(Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Até este período, a maioria das

pesquisas encontrava-se centrada em torno das propostas teóricas do

multiculturalismo, que lança a problemática dos direitos das minorias em

Page 19: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

19

sociedades que aglutinam diferenças étnicas, raciais, de origem nacional e

lingüística, como indutor de políticas públicas.

A partir de então, a exemplo da UERJ, um grande número de

universidades passaram a discutir e implantar as cotas nos seus

vestibulares, o que se refletiu no aumento do número de pesquisas que

buscavam compreender as representações sociais das políticas de ação

afirmativa, sua possível contribuição na redução das desigualdades raciais e

sociais e na democratização do acesso ao ensino superior, os aspectos da

formação identitária de estudantes negros e as implicações negativas do

racismo e do preconceito e a avaliação do impacto de políticas específicas

para ingresso no ensino superior.

Dados como estes nos indicaram o surgimento de uma nova

tendência sobre a compreensão das relações raciais já que conta com o

aumento da participação da população negra nas esferas do governo4, nos

processos de decisão e nas universidades, onde a implantação das cotas

acompanha esses anseios.

Esses primeiros procedimentos da pesquisa dirigiram nossa atenção

no sentido de compilar uma quantidade razoável de informações sobre as

políticas de ação afirmativa. Desse modo, assumiu-se o entendimento sobre

a definição dessas políticas, quais seus objetivos, em que conjuntura política

e social emerge no Brasil, a sua origem em outros contextos nacionais, as

áreas do conhecimento em que há produção teórica acerca dessa temática

além do número de universidades que aderiram as cotas raciais e sociais no

seu vestibular5 (vide anexo I).

Ainda no que diz respeito às fontes primárias, estávamos

particularmente interessados em apreender o processo de implantação das

cotas nas universidades públicas a partir do relato dos atores que

participaram desse momento. Sendo assim, o critério de seleção das

universidades que iríamos visitar foi delimitado por nós pela viabilidade do

4 A partir da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1995 a questão racial ganhou um novo impulso e passou a ser introduzida na agenda pública com a gestão do governo Fernando Henrique Cardoso. 5 O Programa Políticas da Cor da UERJ contabiliza 43 universidade com o sistema de cotas. Fonte: http://152.92.152.60/web/olped/acoesafirmativas/universidades_com_cotas.asp .

Page 20: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

20

acesso, ou seja, não tínhamos a pretensão formal de percorrer diversas

universidades para tomar conhecimento das questões geradas pela cotas e,

portanto, acompanhamos as informações que eram veiculadas pelos meios

de comunicação. Sendo assim, pelo fato de residirmos em São Paulo,

consideramos a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e fora do

estado optamos pela UNB na qual não obtivemos dificuldades para acessar.

No presente trabalho também consideramos a Universidade Estadual

do Rio de Janeiro (Uerj), apesar de não realizarmos visita, já que se trata de

uma das universidades pioneiras na implantação das cotas. Neste caso,

extraímos informações de publicações, Internet e jornais informativos

internos.

Outro procedimento por nós adotado foram as entrevistas. Fomos à

USP no Núcleo de Consciência Negra para coletar informações sobre o

movimento que inaugurou a discussão sobre reparações e ação afirmativa

no Brasil. Na Unb fomos recebidos por representantes do EnegreSer, um

coletivo de estudantes negros, e também por estudantes do Centro de

Convivência Negra que nos relataram sobre a construção do projeto das

cotas e os conflitos internos na universidade. Já na Unifesp, coletamos

através das entrevistas dados sobre o caminho que se percorreu para

esboçar o projeto de ação afirmativa, o vestibular e os programas de

permanência.

Como mencionamos anteriormente, a maior dificuldade residiu em

coletar os dados devido a falta de sistematização por parte das

universidades.

Procuramos também situar porque e quais são as ações institucionais

promovidas na universidade após a implantação das cotas para entendermos

se essas foram criadas a partir de problemas surgidos no campus ou não e

porque acreditávamos que esse canal poderia nos informar sobre as

questões mais incidentes trazidas pelos alunos cotistas.

O núcleo de promoção da igualdade racial da Unb é um exemplo de

ação institucional criada após as cotas, inaugurado por uma professora da

área da educação que conta com o apoio de alunas e ex-alunas da

universidade. Essa proposta surgiu após a exacerbação de ataques racistas

Page 21: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

21

sofridos pelos africanos que residem nas repúblicas e que se estenderam

também a outros alunos negros através de pichações e agressões verbais,

portanto esse núcleo foi pensado com o objetivo de frear tais atitudes e

comportamentos. Como missão, o núcleo se propõe a implantar ações junto

à coordenação dos cursos orientados pela transversalidade da questão

racial.

No conjunto de informações obtidas destacou-se o fato de que os

entrevistados reclamam da ausência de uma ouvidoria que registre

formalmente as denúncias de racismo na universidade, pois o que existe por

enquanto é apenas um projeto de criar um canal de denúncias em parceria

com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(SEPPIR) e a Secretaria de Direitos Humanos. Segundo nossos

entrevistados, as manifestações de racismo tomaram uma proporção maior

com a implantação das cotas e por isso os respaldos jurídicos e psicológicos

precisam ser aprimorados.

Ainda em relação às informações coletadas na UNB observamos um

aspecto recorrente nas falas dos informantes durante o trabalho de campo

que apontavam para as experiências de discriminação racial enquanto fio

condutor das ações institucionais e das interações sociais.

Em relação ao suporte institucional disponibilizado pela Unifesp,

segunda universidade visitada por nós, pudemos observar que existe uma

preocupação em evitar a evasão dos alunos de baixa renda, garantir a esses

alunos uma formação de qualidade frente às desvantagens sócio-

educacionais que trazem consigo para universidade e evitar qualquer

situação de preconceito e discriminação étnica e racial no campus.

Ao reunirmos as informações fornecidas pelos alunos detectamos que

alguns apesar de expressarem um desconforto com a contradição entre o

benefício das cotas e as noções de mérito individual admitiram que as cotas

raciais são encaradas por eles como o uso estratégico de um mecanismo

que poderia atuar em contextos competitivos, mas também chamam atenção

para a rejeição, por vezes velada, de alguns alunos que não encaram as

cotas como um recurso legítimo.

Page 22: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

22

O fato de haver diferenças nas percepções e nas valorações das

cotas raciais fez com que alguns informantes nos relatassem que nunca

houve ataques ou agressões mais explícitas em relação aos estudantes

negros porque na UNIFESP haveria uma a tendência maior em diluir o

problema racial na questão social, no entanto, nos comunicam que é

evidente uma forma mais velada de manifestação dos preconceitos durante

as conversas.

Ao contrário da UNB, o discurso de alguns informantes sobre as

experiências de discriminação racial durante a vida não aparece como

elemento central para se pensar ações institucionais mais concretas na

universidade, no entanto, alguns entrevistados nos trouxeram a necessidade

de criar na universidade um setor formal que pudesse ser responsável por

denúncias de racismo, pois acreditam que seria uma forma de incentivar os

registros que são recorrentes no campus.

Por fim, nas linhas que se seguem analisaremos com maior detalhe

todas as informações aqui anunciadas.

Page 23: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

23

CAPÍTULO I

As Ações Afirmativas nos Estados Unidos

“ Os esforços recentes para aumentar o acesso à prosperidade

norte-americana têm se baseado em políticas preferenciais”.

Cornel West

2.1 A referência norte-americana

A recente literatura, os estudiosos e pesquisadores em sua grande

maioria identificam nos Estados Unidos a principal referência para discussão

sobre políticas públicas voltadas para questão racial no Brasil, apesar das

experiências de ação afirmativa não estarem restritas aquele país. Esta

aproximação não é algo recente, as situações raciais brasileiras e norte-

americanas vêm sendo analisadas comparativamente há vários anos, e tem

influenciado a maneira como percebemos e respondemos ao racismo

existente no país.

Nesse sentido, é preciso ressaltar que retomar a experiência da

sociedade norte-americana nos trará elementos para compreender o que são

as ações afirmativas, isso porque as conquistas do movimento negro nos

EUA, dentre elas a Lei dos Direitos Civis de 1964 são referências para o

movimento negro brasileiro. É verdade que se trata de contextos nacionais

diferentes, ou seja, onde as relações raciais possuem configurações

distintas, entretanto, a legitimidade que os movimentos sociais de combate

ao racismo adquiriram em relação a esse tema tomou proporções

semelhantes em ambos países.

As primeiras políticas de ação afirmativa implementadas nos EUA

podem ser observadas a partir da década de 1960. Dirigidas inicialmente à

população negra, posteriormente foram estendidas às mulheres e depois a

algumas minorias étnicas e estrangeiros. À época, o país se viu diante de

reivindicações democráticas internas, expressas principalmente no

Page 24: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

24

movimento pelos direitos civis, defendendo a ampliação da cidadania e a

igualdade de oportunidades para todos. Nesse momento, estão sendo

eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país e o movimento negro é

uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional,

apoiados por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa

dos direitos civis. É nesse contexto que as ações afirmativas surgem fazendo

com que o Estado, além de garantir leis anti-segregacionistas, viesse a

assumir uma postura mais ativa em benefício dos negros. Em variadas

áreas, diversas ações semelhantes foram desencadeadas e os EUA

completam hoje mais de 40 anos de experiências.

2.2 Os conflitos raciais e a luta pela igualdade ra cial

“A lei não pode fazer com que a pessoa me ame, mas pode fazer com

que ela não me elimine”.

Martin Luther King

Em 1863, durante a Guerra de Secessão, foi extinto o sistema

escravista nos EUA. Em 1865, iniciou-se o período de Reconstrução, quando

foram aprovadas a Emenda nº 14, que estabeleceu que os negros eram

cidadãos plenos do país e proibiu que os estados lhes negassem proteção

igualitária e processo judicial justo, e a Emenda nº 15, garantindo que

“nenhum estado deve negar a qualquer pessoa (...) a igual proteção das

leis”, e o direito ao voto não seria negado ou manipulado com base na raça.

No entanto, simultaneamente a primeira lei segregacionista foi votada no

Tennesse e os demais estados sulistas gradativamente seguiram assumindo

essa postura associada ao período da escravidão (Russell, 2006).

Ao acompanharmos o transcurso das relações raciais nos Estados

Unidos encontramos um turbilhão de conflitos protagonizado por leis e

políticas de segregação que dominaram grande parte da vida pública. Esse

período que se deu após a guerra civil e se estendeu depois da metade do

Page 25: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

25

século XX foi marcado pela era Jim Crow6 que aplicava distinções legais

entre negros e brancos, consolidando as desigualdades que já existiam num

profundo antagonismo racial. Essa orientação consolidou-se em 1986, no

caso judicial Plessy versus Ferguson quando a Suprema Corte deliberou que

leis estaduais requerendo a separação de grupos raciais eram permitidas

pela Constituição desde que acomodações iguais fossem destinadas a cada

um, instituindo a doutrina do “separados-mas-iguais”. A opinião da Corte

refletia a visão de que a lei não poderia ser usada para forçar as pessoas a

interagirem se elas assim não o desejassem. Essa decisão permitiu a criação

de estabelecimentos públicos distintos para brancos e negros que circulavam

de acordo com os espaços demarcados para cada grupo. Tal prática foi

implantada não apenas nos estados sulistas, onde era legalizada, mas

também no norte do país, ainda que de maneira menos formal (Chambers,

1993).

Em meados do século XX já era anunciado o declínio do sistema

segregacionista, e seu marco histórico veio em 1954, com o caso Brown

versus Board of Education, em favor do fim da segregação racial nas

escolas. Essa decisão gerou um grande impacto nacional e teve um

importante papel como catalisadora do movimento pelos direitos civis, mas

foi apenas o primeiro passo na transformação de costumes e práticas

fortemente arraigados no país.

A transparência do racismo individual e institucional como causas da

desigualdade racial tornou-se mais nítida com a contribuição do foco de

pesquisas sobre atitudes raciais. Em 1954 no processo judicial mencionado,

a Suprema Corte dos Estados Unidos utilizou como base para suas

deliberações as pesquisas científicas que através dos estudos de

identificação e atitude racial traziam como resultados a auto percepção racial

negativa adquirida precocemente pelas crianças negras. Portanto, tais

estudos respaldaram as decisões judiciais naquele período e assim eram

apresentados como prova de que a segregação deveria ter um fim. Com

6 “O termo Jim Crow era usado nos Estados Unidos como um nome genérico para tratar uma pessoa negra. Jim seria uma variante de Jemmy e Crow seria vangloriar-se. O termo Jim Crow era o refrão de uma melodia popular sobre o negro: Wheel about and turn about and jump Jim Crow” (Moehlecke 1999: 22).

Page 26: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

26

isso, ao declarar inconstitucional a separação de alunos com base na raça

essa decisão não foi isenta de críticas e resistências fazendo com que a

integração nas escolas levassem uns dez anos para acontecer (Jones,

1973).

A vitória no caso Brown ocorreu em 1954,

“O primeiro decreto a respeito foi emitido somente em 1955 e o prazo

para o cumprimento foi até 1956. Em 1955, em oito estados do sul, nenhuma

criança negra havia sido admitida em qualquer escola pública para crianças

brancas” (Muse, 1966: 33).

No ano seguinte foi lançado o Manifesto Sulista, atacando a decisão

do caso Brown e desafiando tanto a Suprema Corte como o governo central,

sendo significativa a atuação de representantes do povo nas assembléias

estaduais e no Congresso Nacional, juntamente com a criação do Conselho

de Cidadãos Brancos em Mississipi que se disseminou rapidamente por todo

o sul para protestar contra os meios legais que garantiam o fim das leis

segregacionistas. Esse momento foi acompanhado por opiniões divergentes

e questões como

“Se as leis seriam capazes de mudar as atitudes e os costumes dos

norte-americanos brancos, sendo que se reuniam cada vez mais fatos para

documentar as desvantagens e as conseqüências negativas de ser negro

nos Estados Unidos” (Jones, 1973: 35).

Crescia o interesse dos intelectuais em pesquisar os efeitos da

integração em crianças negras e brancas, nesse sentido,

“O estudo através de atitudes desenvolveu-se a partir da teoria de

que o contato reduz o conflito entre grupos. Na década de 30, os psicólogos

sociais tentaram, sobretudo descrever as atitudes, na década de 50,

focalizou-se a maneira de mudar atitudes” (Jones, 1973: 37).

Diante do turbilhão de relações conturbadas na sociedade norte-

americana os meios para reforçar a oposição à integração racial iam se

disseminando pelos estados. Um caso amplamente divulgado ocorreu em

uma escola de ensino médio em Little Rock, no estado de Arkansas, quando

o governador apoiou a resistência de moradores brancos à integração e

ordenou que a guarda estadual bloqueasse o acesso de nove estudantes

Page 27: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

27

negros. Diante dos violentos conflitos que se seguiram, o então presidente

norte-americano Dwight Eisenhower enviou tropas federais para garantir

proteção aos estudantes negros na escola. Esse momento se configurou

como o primeiro envolvimento do governo federal nesse processo, mas ainda

de forma cautelosa (Muse, 1966).

No cotidiano,

“A pressão pela dessegregação das escolas ficou a cargo da National

Association for the Advancement of Colored People (NAACP), entidade da

sociedade civil que impetrou o processo judicial do caso Brown e que

anteriormente desenvolveu diversas ações semelhantes para questionar o

sistema vigente7” (Muse, 1966: 152).

A educação, especialmente as escolas públicas, desempenhou um

importante papel no desenvolvimento dos EUA como “terra das

oportunidades”. A Corte examinou os efeitos da segregação sobre o ensino

público e deu o parecer de que,

“A educação constituía talvez a mais importante função do governo,

consistindo no principal instrumento para despertar a criança para valores

culturais, prepará-la para treinamento profissional posterior e auxiliá-la a

ajustar-se normalmente a seu ambiente (...) mesmo havendo igualdade entre

as escolas públicas segregadas, estas privavam as crianças de minorias da

igualdade quanto a oportunidades educacionais (...) gerando um sentimento

de inferioridade relativo a seu status na comunidade, o que pode afetar seus

corações e mentes de um modo dificilmente remediável” (Russell, 2006:

208).

No entanto, o processo de dessegregação racial na área educacional

trouxe casos paradoxais que desafiaram as leis e a postura da Corte

americana. Confrontados com a perspectiva da integração racial em suas

escolas, alguns estados sulistas iniciaram um movimento pelo fechamento de

escolas públicas e extinção de fundos educacionais,

7 “A NAACP foi fundada em 1910 por W. E. B. du Bois, Jane Addams, John Dewey e outros com o objetivo de atacar as bases legais da subordinação racial, durante o sistema Jim Crow. Procurava garantir, inicialmente, condições iguais para os negros dentro do apartheid racial” (Muse , 1966: 152).

Page 28: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

28

“Temendo que a integração fosse imediatamente imposta, diversas

centenas de irados cidadãos brancos (do condado de Prince Edward,

Virgínia) surgiram diante da junta para instar que o condado abolisse as

escolas públicas. A junta agiu em conformidade: por unanimidade de votos,

aboliu todos os fundos para atividade escolar. Em uma reunião maciça, a 7

de junho de 1955, com o comparecimento de uns 1.300 cidadãos, foi

formada uma organização e lançada uma campanha para levantar fundos

com a intenção de providenciar escolas particulares para as crianças brancas

do condado” (Muse, 1966: 33).

Entretanto, como as escolas privadas eram quase inexistentes, as

conseqüências dessas medidas, como a permanência de crianças brancas e

negras fora da escola, geraram insatisfações que acabaram por enfraquecer

o movimento. Em 1966, o transporte público de crianças negras para escolas

predominante brancas e vice-versa, conhecido como busing, passou a ser

usado como instrumento para a dessegregação, principalmente em áreas

rurais do sul do país. No norte, essa prática foi utilizada apenas no início dos

anos 1970, através de ordem judicial e como última alternativa para tentar

integrar as escolas que permaneciam, na prática, segregadas (Muse, 1966).

Nesse sentido, um olhar sobre o contexto norte-americano até o

presente momento nos revela que a década de 1950 se configurou como

pano de fundo para as complexidades das relações raciais na década de

1960. As decisões da Suprema Corte intensificaram os conflitos entre

brancos e negros pois suscitaram o surgimento das exigências de direitos

iguais por parte dos negros e a resistência da população branca; a década

de 1950 também definiu a importância de intelectuais especializados no

campo racial que realizavam estudos sobre os efeitos da integração na

sociedade.

As hostilidades e reações violentas que as ações para a integração

racial e extensão do ideal da igualdade à população negra encontraram

explicitam o quão profundo era o “problema da linha de cor”, definido por

W.E.B. Du Bois como a questão central a ser enfrentada pelo país no século

XX (West, 1994). West, em seu curso de Estudos sobre a Cultura Afro-

Americana a respeito da obra The souls of black folk, de W.E.B. Du Bois,

Page 29: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

29

destaca o trecho das discussões sobre a questão racial pautada no

“problema da linha de cor”, mencionada na referida obra,

“Eles se aproximam de mim com um jeito meio hesitante, olham-me

com curiosidade ou compaixão e então, em vez de dizer diretamente “Como

é sentir-se um problema?” eles dizem “Conheço um excelente homem de cor

em minha cidade”. (...) Esses ultrajes sulistas não fazem seu sangue ferver?

Quando eles acontecem, sorrio, demonstro interesse ou controlo um pouco a

fervura, conforme exija a ocasião. A verdadeira pergunta, “Como é sentir-se

um problema?”, eu raramente respondo” (West, 1994: 18).

West nos aponta ainda que para abordar com eficácia a questão racial

nos EUA não se podem restringir as discussões aos “problemas” que os

negros representam para os brancos, mas sim ponderar a respeito do que

esse modo de ver os negros revela sobre a nação norte-americana,

“Precisamos começar não pelos problemas dos negros, mas pelas

imperfeições da sociedade norte-americana - imperfeições que têm suas

raízes em desigualdades históricas e em estereótipos culturais há muito

existentes. A maneira como estabelecemos os termos para debater os

problemas raciais determina nossa percepção e reação a eles. Enquanto os

negros são vistos como “eles”, recai-lhes o ônus de todo o trabalho “cultural”

e “moral” que deve ser feito a fim de obter relações raciais sadias. A

implicação disso é que apenas certos norte-americanos podem definir o que

significa ser norte-americano- e o resto simplesmente “adequar-se” “ (West,

1994: 19).

Gunnar Myrdal (1944) ao analisar a situação racial norte-americana,

observa o que chama de “dilema americano”: o racismo como uma anomalia

da democracia liberal. Sob a influência de um governo democrático nos anos

1960, os movimento sociais exploraram essa contradição.

Nomear um problema é o primeiro passo para busca de uma solução,

dizia James Baldwin (West, 1994). Em 1955, Rosa Park, uma senhora negra

que se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um indivíduo branco na

cidade de Montgomery, estado do Alabama, foi presa. Esse fato deu origem

a um intenso boicote no transporte público por parte da comunidade negra

local. Nos anos de 1960, os protestos e as reivindicações pelos direitos civis

Page 30: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

30

intensificaram-se desafiando o ideal democrático americano a efetivar-se.

Ainda em 1960, quatro estudantes universitários iniciaram um protesto

pacífico contra a segregação racial em um restaurante exclusivo para

brancos no estado da Carolina do Norte. Tal protesto ficou conhecido como

sit-in, onde a mera presença de cidadãos negros naquele que não era o “seu

lugar” gerou um grande impacto (Russell, 2006).

A década de 1960 assistiu a ampliação dos esforços em busca da

liberdade e de atingir condições dignas de sobrevivência para a população

negra, como ter acesso aos serviços públicos, direito ao voto, educação,

emprego enfim exercer direitos de cidadão. Nesse período se iniciou as

manifestações mais declaradas pelos direitos civis e aos poucos as

reivindicações ganhavam força e adesão de grupos religiosos e lideranças

brancas junto com as lideranças políticas negras como Martin Luther King Jr.

que emitia mensagens cujo conteúdo enfatizava o objetivo da mudança

social e assim desencadeava ondas de protestos pacíficos como a “Marcha

sobre Washington por Empregos e Liberdade” que reuniria em 1963 um

grande número de pessoas para pressionar a votação de leis no Congresso

Nacional (Morris, 1993).

A participação do poder público na elaboração de respostas efetivas

aos problemas raciais ainda era muito incipiente no início da década de

1960. Em 1961, a gestão do presidente J. F. Kennedy anunciou uma postura

mais ativa no sentido de promover a igualdade entre negros e brancos nos

Estados Unidos. O então presidente já no seu primeiro mandato criou a

expressão ação afirmativa para denominar a proposta de responder ao

intenso conflito racial denunciado por parte do movimento pelos direitos civis

entre os anos de 1950 e 1960 e, portanto, designou em 1961 através da

Ordem Executiva nº 10.925 a Comissão para a Igualdade de Oportunidades

no Emprego. Em 1962, foi expedida outra Ordem Executiva proibindo a

discriminação racial em projetos federais de habitação e o Ministério da

Saúde, Educação e Bem-Estar decidiu negar assistência financeira aos

distritos escolares que permanecessem segregados (Morris, 1993).

Mas foi em 1964 e 1965 que surgiram as principais peças legais que

viriam garantir o desenvolvimento da política de igualdade racial conhecida

Page 31: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

31

como ação afirmativa. Nesse sentido, a principal ação legal em favor do fim

da segregação racial, e, sobretudo, em apoio às políticas de ação afirmativa

veio em 1964 com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei dos Direitos

Civis assinada pelo presidente Lyndon Johnson.

Em seu artigo VI proibiu a discriminação com base na raça, cor, credo,

sexo ou origem nacional em programas assistidos financeiramente pelo

governo federal inclusive em instituições pós-secundárias que recebiam

fundos federais para auxílio aos estudantes e às pesquisas, e em seu artigo

VII vedou a discriminação com base na raça, cor, credo, sexo ou origem

nacional por agências empregadoras, além de criar uma comissão para

igualdade de oportunidades nos empregos, bipartidária, no intuito de eliminar

práticas ilegais. Em 1965, o então presidente Lyndon Johnson assinou a

Ordem Executiva nº 11246, exigindo que as instituições que possuíam

contrato com o governo federal adotassem um programa de ação afirmativa

para assegurar a igualdade de oportunidades (Sowell, 2004).

Em discurso na Universidade de Howard em 1965, Lyndon Johnson

explicita o seu ponto de vista sobre a situação racial no país,

“Liberdade não é o suficiente. Não apagamos as cicatrizes de séculos

dizendo’agora você é livre para ir aonde quiser, fazer o que bem desejar e

escolher os líderes que lhe agradem’. Não pegamos uma pessoa que por

anos esteve presa por correntes e a libertamos, a trazemos para o início da

linha de partida de uma corrida e dizemos ‘você está livre para competir com

os outros’, e acreditamos que fomos completamente justos... Não é suficiente

abrir as portas da oportunidade. Todos cidadãos devem possuir a habilidade

necessária para atravessar essas portas” (Morris, 1993: 140).

Para melhor compreendermos a trajetória que as ações afirmativas

percorreram nos governos americanos Sowell (2004) identifica a sua

evolução e aponta que,

“Com Kennedy a política foi criada para assegurar que os candidatos

sejam contratados e os empregados sejam tratados no trabalho sem levar

em conta raça, cor, credo ou origem nacional (...). Um decreto posterior do

presidente Lyndon Johnson, em 1968, continha as expressões fatais

“objetivos e cronogramas” e “representação”. O detalhe das cotas ainda não

Page 32: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

32

estava amadurecido, porque as diretrizes de 1968 se referiam a “objetivos e

cronogramas para a imediata conquista de igual oportunidade de emprego”.

Mais tarde, um decreto do presidente Richard Nixon, em 1970, referiu-se a

“procedimentos orientados para resultados”, e finalmente, em dezembro de

1971, outro decreto de Nixon especificou que os “objetivos e cronogramas”

eram para “fazer crescer materialmente a utilização de minorias e de

mulheres”, e que por “subutilização” deveria ser entendida “a menor

existência de minorias e mulheres em determinada categoria de trabalho do

que se poderia razoavelmente esperar em função de sua disponibilidade”. A

ação afirmativa passou a ser então um conceito numérico, fosse ele

chamado de “objetivos” ou de “cotas” (2004: 4, 5).

Eastland elenca algumas datas significativas no que diz respeito à

trajetória das ações afirmativas,

“1961 – Criação do Comitê para Oportunidades Iguais de Emprego

pelo presidente John Kennedy;

1965 – O presidente Lyndon Johnson sanciona uma lei exigindo que

todas as empresas, com contratos governamentais, adotem políticas de ação

afirmativa;

1978 – A Suprema Corte decide que as questões raciais podem ser

utilizadas como critério de admissão à universidade, mão não poderia haver

cotas predeterminadas;

1995 – A Universidade da Califórnia decide acabar com seus

programas de ação afirmativa. A conseqüência dessa medida é uma queda

de 61% na admissão de negros, latinos e indígenas;

1996 – O programa da Universidade do Texas é considerado

inconstitucional pela justiça. Como alternativa o Estado institui programa que

assegura vaga em qualquer universidade local aos alunos que se

classificarem entre os 10% melhores de sua escola;

1997 – Plebiscito em Houston aprova continuação de programas de

ação afirmativa nos contratos da prefeitura. Abertura do processo que

questiona a política de ação afirmativa da Universidade de Michigan;

2003 – Em resposta a uma ação judicial apresentada contra a

Universidade de Michigan por estudantes que se sentiram discriminados pela

Page 33: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

33

aplicação da política de cotas para negros, hispânicos e indígenas na

Faculdade de Direito, a Suprema Corte deu parecer favorável (5 votos contra

4) permitindo que etnia e raça sejam utilizadas como critérios para seleção

de alunos” (Eastland, 1996: 120).

Em 1966, espalharam-se experiências de ação afirmativa pelo país

como o Escritório de Queixas de Contratos Federais – OFCC, ligado ao

Ministério do Trabalho, que elaborou o Plano da Philadélphia, estabelecendo

objetivos numéricos a serem alcançados por políticas de ação afirmativa.

Abandonado no mesmo ano, o Plano foi reelaborado em 1969, exigindo que

instituições parceiras do governo federal adotassem uma política de

acompanhamento dos seus funcionários e que estabelecessem metas e

cronogramas no intuito de diminuir a sub-representação de minorias e

mulheres empregadas. A proposta era de utilizar uma abordagem estatística

na definição e formulação de políticas que eliminassem os impactos

negativos que as ações e procedimentos tivessem sobre determinados

grupos. No mesmo ano, o presidente Richard Nixon criou através de Ordem

Executiva o Escritório de Empresas de Negócios de Minorias, com o objetivo

de incentivar financeiramente empresas geridas por minorias sob a idéia de

desenvolver um “capitalismo negro” (Eastland, 1996).

As iniciativas como as que foram desenvolvidas na sociedade norte-

americana traziam consigo a preocupação de elaborar propostas

governamentais que dessem conta de eliminar a proliferação do conflito

racial, corrigir as conseqüências derivadas da época da escravidão e

também conferir aos negros os mesmos direitos assegurados aos brancos.

Em suma, a evolução das ações afirmativas nos Estados Unidos

foram cercadas de obstáculos jurídicos até tornarem-se válidas e aceitáveis

nos tribunais e na sociedade, bem como na arena política. O estatuto mais

importante que assegurou as ações afirmativas foi a Lei dos Direitos Civis de

1964, e o grupo principal que pleiteou essa ação legal foi o movimento negro

e suas lideranças, todavia, essas políticas se estenderam para além dos

grupos raciais e étnicos e chegaram às mulheres e a outras minorias do país.

Nesse sentido, as ações afirmativas desenvolveram-se na esfera

pública e privada, especialmente em áreas como o mercado de trabalho - na

Page 34: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

34

contratação, promoção e treinamento - e na área da educação – na

redefinição do currículo escolar e no processo de seleção das universidades.

2.3 Políticas de ação afirmativa no ensino superior

“Os propósitos e valores de uma instituição educacional são freqüentemente

revelados de forma mais explícita pelas opções tomadas para a seleção de

seus alunos”.

Bowen & Bok

Como se deixou antever, foi no contexto de reivindicações por justiça

racial pelo movimento negro que a ação afirmativa foi designada como

possibilidade para eliminar a base legal da discriminação por motivo de raça,

cor, sexo, origem nacional ou religião através da aprovação da Lei dos

Direitos Civis (Civil Rights Act) de 1964.

“O papel histórico dos progressistas norte-americanos era de

incentivar a adoção de medidas redistributivas que melhorem o padrão e a

qualidade de vida para os que têm pouco ou nada. A “ação afirmativa” (...) foi

uma dessas medidas redistributivas; ela emergiu na década de 60, no auge

da batalha pelos que lutavam pela igualdade racial” (West, 1994: 81).

Bowen & Bok (1998) afirmam que, antes de 1960, nenhuma

universidade norte-americana empenhou-se no sentido de melhorar

substancialmente o número de afro-americanos por ela admitidos. Alguns

pequenos esforços, a partir de iniciativas pontuais, puderam ser observados

no final dos anos 1950.

Em 1959, o diretor do College de Mount Holyoke, Massachusetts,

começou a visitar escolas de ensino médio em busca de estudantes negros

promissores e, em 1964, chegou a um total de dez. Nessa época, o reitor da

Faculdade de Direito de Harvard decidiu aumentar o número de estudantes

negros nessa instituição. Sensibilizado pelo fato da lei estar desempenhando

Page 35: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

35

na época um papel crucial na vida dos afro-americanos e por não existir

estudantes negros nas escolas de direito, o reitor decide criar cursos de

verão para preparar os candidatos negros ao processo de admissão na

universidade. Seu exemplo foi seguido por universidades como Dartmouth,

Princeton e Yale8 e apesar do prestígio desfrutado por Harvard, esta não

escapou das queixas sobre possível perda da qualidade de ensino,

argumento utilizado pelos opositores das mudanças em curso (Bowen & Bok

1998).

Embora as universidades começassem a encampar iniciativas para

aumentar a representação de alunos negros em seus cursos, esses ainda,

“Representavam por volta de 1% dos estudantes de universidades de

elite antes de 1964. À época, dentro das experiências realizadas, não houve

nenhuma alteração nos processos de admissão nem no custeio de

anuidades” (Bowen & Bok 1998).

Mudanças mais significativas somente viriam ocorrer com o processo

de implantação dos programas de ação afirmativa por parte do poder

executivo, em meados dos anos de 1964. Neste momento, os movimentos e

protestos estudantis faziam parte do cotidiano das universidades norte-

americanas e representaram um papel importante na sensibilização e

pressão por mudanças (Bowen & Bok 1998).

As transformações que se seguiram abrangeram as melhores

universidades do país. Para aumentar a diversidade nos campus houve

alterações no processo de admissão, concessão de bolsas de estudos,

contratação de professores e funcionários administrativos. O governo federal

começou a exercer uma postura mais ativa no sentido de frear a

discriminação nas instituições de ensino através de incentivos financeiros

nas universidades públicas e privadas, sendo que as universidades privadas

teriam a suspensão do direito de isenção de impostos caso praticassem atos

de discriminação.

8 Estas três universidades compõem as oito universidades mais prestigiadas e seletivas da costa leste norte-americana (Bowen & Bok 1998).

Page 36: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

36

Com a utilização de programas de ação afirmativa pelas universidades

e a busca por resultados mais substantivos ocorreram mudanças essenciais

para cumprir o projeto em curso,

“A raça do candidato é levada em consideração, ao lado de notas

escolares e da pontuação nos exames padronizados de admissão, entre

outros fatores, o que resulta num corpo discente heterogêneo. A distribuição

de auxílios baseia-se não apenas no mérito, mas também nas necessidades

financeiras dos estudantes. Programas de auxílio financeiro governamental

são autorizados com o intuito de prover recursos a estudantes de famílias

pobres e de baixa renda, para aumentar o acesso à educação superior e

fomentar nesta uma igualdade significativa. Existem nas faculdades

programas de apoio acadêmico, prévios à admissão ou posteriores a ela,

que fornecem a estudantes promissores o apoio adicional necessário para

superar barreiras de classe, raciais, sociais e culturais. Serviços de

aconselhamento e de consultoria acadêmica são disponibilizados aos alunos,

assim como assistência no preenchimento dos formulários de candidatura às

vagas e de requisição de auxílio financeiro, além de reforço, aulas

particulares e aconselhamento para família de estudantes. Esforços amplos

de informação e atração de estudantes foram estendidos às instituições de

ensino fundamental, focalizando estudantes de minorias raciais e étnicas

que, de outra maneira, talvez não tivessem a possibilidade de receber

educação superior” (Russell, 2006: 203).

Mapeando a dimensão das ações afirmativas nas universidades norte-

americanas em termos numéricos, Bowen & Bok (1998) desmistificam, de

certa forma, a impressão de que essas ações são amplamente utilizadas.

Estimam que apenas de 20% a 30% das universidades e faculdades utilizam

a raça como critério de admissão, o que não significa, ainda, que usem o

sistema de cotas. A maioria das instituições de ensino superior aceitam seus

candidatos sem que nenhum status especial seja atribuído a quaisquer

deles, de acordo com a raça ou outro critério. Dessa forma, além dos

programas de ação afirmativa não serem algo generalizado nesse patamar

Page 37: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

37

de ensino, eles estariam sendo utilizados, fundamentalmente, nas

universidades mais seletivas e melhor colocada no ranking nacional9.

A partir dessas ponderações no campo da ação afirmativa, ou seja, de

como essa proposta se desenvolveu nas universidades ao longo dos anos,

questiona-se quais os resultados da política no ensino superior. É possível

verificar a diminuição no abismo entre brancos e negros no que diz respeito

ao acesso, permanência e conclusão dos estudos? Quais os benefícios da

política? Entendemos que as respostas às essas questões dariam corpo a

um trabalho específico de avaliação dado à sua magnitude. No entanto,

como não se trata de nosso objetivo maior, destacamos algumas

informações que podem ser verificadas, além de indícios de mudanças e

críticas a essas medidas de ação afirmativa.

West nos dá um panorama através de suas análises sobre a

funcionalidade da política em meados da década de 1990,

“A “ação afirmativa” não é o aspecto mais importante para o progresso

dos negros norte-americanos, mas ela integra uma cadeia redistributiva que

precisa ser fortalecida para que se possa confrontar e eliminar a pobreza dos

negros. Se existissem medidas sociais democráticas redistributivas que

eliminassem a pobreza entre os negros, e se a discriminação racial e sexual

pudesse ser sobrepujada por meio de boa vontade e de critérios louváveis

por parte dos que detêm o poder, a “ação afirmativa” seria desnecessária”

(West, 1994: 83). No entanto, não exita em ponderar que,

“É praticamente certo que sem essa política a discriminação racial e

sexual retornaria com grande ímpeto. Mesmo que ela seja muito deficiente

para reduzir a pobreza dos negros ou que contribua para a persistência das

idéias racistas no ambiente de trabalho, sem ela o acesso dos negros à

prosperidade norte-americana seria ainda mais difícil, e o racismo no

trabalho continuaria a existir de qualquer modo” (West, 1994: 82; 83).

Russell nos revela que o relatório de 2001 do National Center on

Education Statistics – NCES (Centro Nacional de Estatísticas da Educação),

9 Os autores não possuem um levantamento preciso do número de universidades que utilizam critérios raciais nos seus processos de admissão, mas se valem de estimativas precisas realizadas por pesquisadores (Bowen & Bok, 1998).

Page 38: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

38

do Departamento Nacional de Educação dos EUA10, observa que com

relação ao acesso ao ensino superior, se em 1962 4,2% da população negra

com 25 a 29 anos completara o curso de quatro anos ou mais na

universidade, esse número passa para 8,1% em 1973 e 15,8% em 1998.

“Apesar do aumento do número daqueles com diploma superior, as

desigualdades entre os grupos raciais, durante todo o período,

permaneceram inalteradas. Estes dados indicam que não houve uma

substituição de um grupo racial por outro na preferência pelo acesso geral às

instituições de ensino superior, mas uma incorporação de ambos à medida

que o ensino superior se expandia” (Russell, 2006: 203).

Ainda no que diz respeito às análises no campo das ações afirmativas

Swanson (1981) nos aponta que a produção de estudos norte-americanos no

campo do ensino superior é freqüentemente dividida entre aqueles que

apresentam argumentos favoráveis e contrários à utilização das políticas de

ação afirmativa. As pesquisas abrangem questões legais ligadas à

implementação de políticas de recorte racial, análise de casos judiciais,

argumentos éticos e normativos sobre igualdade e discriminação, entre

outras. Todavia são praticamente inexistentes, nos anos 1980, trabalhos que

tenham como objetivo avaliar empiricamente os programas de diversidade

implementados seja na esfera nacional, estadual ou de cada instituição.

Apenas nos anos 1990, e especialmente após as ações políticas e judiciais

que tentaram extinguir programas de instituições de ensino superior com

recorte racial que são realizados estudos com o intuito de avaliar os impactos

da diversidade nos campus.

Nesse sentido, os estudos sobre avaliação, a partir da década de

1990, contribuíram para aproximar respostas às indagações na sociedade

norte-americana como: é possível incorporar ideais de justiça social e racial

aos valores de excelência acadêmica no acesso à universidade? Depois de

anos de experiências chegou-se a conclusão de que esses são valores

conciliáveis? A diversidade traz ganhos significativos à sociedade

americana?

10 The Department of Education nos EUA tem status de ministério.

Page 39: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

39

No tópico seguinte destacamos os estudos realizados por

pesquisadores dedicados a esses temas e seus resultados.

2.4 A diversidade no ensino superior

Ao observarmos a concepção dos processos de admissão de

estudantes nas universidades, notamos que a ênfase depositada nos testes

acadêmicos tem sido o meio mais recorrente na defesa da excelência e

mérito das instituições de ensino superior. Somar a essa prática

considerações de ordem racial e sócio-econômica sinalizou a intenção das

mesmas em garantir, como parte constitutiva de sua excelência acadêmica,

também a igualdade de oportunidade no acesso. A busca de um equilíbrio

entre esses dois valores – igualdade e seletividade acadêmica – permeou

diversas das ações implementadas pelas universidades norte-americanas,

sendo que o peso atribuído a cada um foi objeto de disputas internas e

externas à universidade, tensionando-a permanentemente.

À medida que as instituições abriram suas portas a uma diversidade

maior, as vozes dos recém-admitidos tornaram-se mais insistentes,

reclamando que as universidades façam mais do que ensinar do modo como

sempre o fizeram e que estejam, preparadas para criar ambientes mais

inclusivos e acolhedores.

“A pesquisa dos últimos dez ou vinte anos dedicada ao impacto da

demografia em mutação dos campi norte-americanos levantou temas

recorrentes. Não era suficiente facultar o acesso aos estudantes: a

demografia dos corpos docente, funcional e administrativo também precisava

mudar. A academia tinha igualmente de repensar seus propósitos e práticas”

(Morris, 1993: 120).

Uma diversidade maior nas universidades criou a necessidade de dar

mais atenção às realizações acadêmicas e sociais desse novo corpo

estudantil, portanto,

“Constituíram-se escritórios para assuntos de estudantes de minorias

e centros de apoio a mulheres (...) cada vez mais esses tinham a expectativa

Page 40: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

40

de que suas histórias e experiências se refletissem naquilo que lhes estava

sendo ensinado” (Russell, 2006: 218).

À medida que se modificava a demografia dos campi americanos,

programas de estudos femininos e étnicos passaram a ser oferecidos. Novos

campos do saber emergiram, à medida que a população estudantil se

diversificava,

“Ocorreram inovações curriculares e, conforme ficava evidente que

nem todos os alunos aprendiam da mesma maneira, maior atenção foi dada

ao aperfeiçoamento do ensino e ao aprendizado de um corpo discente que

se diversificava em grau crescente” (Musil, 1999: 121).

No entanto, se por um lado as universidades se tornavam mais

diversificadas, por outro o ambiente não era sempre acolhedor, pois

“As instituições começaram a compreender que existia uma relação

entre boa acolhida nos campus e a permanência (não-evasão) do estudante.

Nas iniciativas tomadas pelas agências filantrópicas de financiamento para

estimular a diversidade universitária, parte do foco incidiu sobre o ambiente

no campus; as instituições empreenderam auditorias culturais e avaliações

da atmosfera do campus para aferir a visão que corpo docente, funcionários

e alunos tinham da instituição” (Musil, 1999: 121).

Alguns autores (Morris, 1993; Russell, 2006) acreditam que as

instituições bem-sucedidas no que diz respeito a criar um projeto de

diversidade racial e étnica no seu campus, ou seja, que aderiram a ação

afirmativa como meio de atingir esse propósito, conceberam a idéia de modo

abrangente ao expandirem seus esforços de recrutamento e criarem

parcerias com escolas secundárias para implementar programas

especializados contra a evasão dirigidos aos alunos que já haviam

ingressado na universidade. Criaram também oportunidades para o contato

inter-racial entre os alunos, condição essencial para efetivação dos

benefícios educacionais da diversidade através da elaboração de currículos

inclusivos e programas que preparavam o corpo docente para provê-lo das

habilidades necessárias ao ensino em salas de aula mais diversificadas.

Russell destaca ainda que,

Page 41: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

41

“A diversidade no próprio corpo docente é também uma prioridade,

tanto para as instituições que valorizam um corpo docente mais inclusivo

quanto para os estudantes que insistem que alguns professores se pareçam

com eles” (Russell, 2006: 206).

Com isso, constituiu-se um novo arcabouço de conhecimentos

relativos aos benefícios educacionais da diversidade. Os resultados das

pesquisas a esse respeito foram usados para defender os esforços das

instituições de ensino superior em alcançar a diversidade em seus campus.

2.5 Estudos sobre o impacto da diversidade: criando

ambientes inclusivos de aprendizado

À medida que as universidades abriram suas portas a uma

diversidade maior as pesquisas dedicadas ao impacto da demografia em

transformação nos campus universitários tomaram proporções crescentes.

Desafios às iniciativas de promoção da diversidade nos EUA resultam

de antigas tensões entre brancos e outros grupos raciais e étnicos. Os

proponentes e defensores da ação afirmativa caracterizam suas estratégias

de tal modo que a diversidade não se apresente contrária aos valores

americanos e por isso buscam apresentar aos grupos opositores que é

possível mensurar consideráveis benefícios educacionais, econômicos e

sociais derivados de políticas afirmativas. Já os contrários a essa ação

argumentam que se trata de uma forma de discriminação ilegítima, porque

nega aos que não são minoria o ingresso nas faculdades de sua escolha,

além disso, sustentam que levar em conta a raça no processo de seleção e

outras iniciativas de diversidade estigmatizam os membros do grupo

beneficiado e, portanto, perpetua os estereótipos de que as minorias não são

tão capazes quanto os brancos (Russell, 2006).

Tais argumentos levantados por ambos os lados resultam dos últimos

cinqüenta anos de experiência com uma diversidade crescente no meio

acadêmico norte-americano incluindo a parceria entre instituições de ensino,

os governos estadual e federal, empresas e fundações filantrópicas. Entre as

justificativas favoráveis à ação afirmativa e dos programas de diversidade no

Page 42: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

42

ensino superior incluem-se a necessidade de corrigir os efeitos da

discriminação passada, de prevenir a discriminação futura e a convicção de

que as organizações se beneficiam da inclusão e da diversidade (Russell,

2005).

Os proponentes apontam os sucessos da ação afirmativa e os

resultados de pesquisas que mostram como um corpo discente racial e

etnicamente diverso traz benefícios significativos para todos os estudantes.

Dessa forma, as instituições que se pretendiam mais inclusivas levantaram

temas de pesquisa recorrentes devido aos programas que implementaram,

gerando demandas para pesquisadores.

Patricia Gurin, professora da Universidade de Michigan do Program on

Intergroup Relations produziu diversos estudos que ilustram os benefícios

educacionais das experiências de diversidade no período acadêmico11.

Segundo Gurin (1999), os resultados incluem ganhos em

pensamentos críticos, aprendizado sobre valores cívicos e democráticos,

permite que os estudantes valorizem as relações humanas, além do que os

jovens se tornam mais aptos a participar de uma sociedade pluralista. Gurin

verificou ainda que ambientes mais inclusivos abalam a persistência da

separação racial na sociedade norte-americana e, além disso, a diversidade

racial e étnica do corpo discente traz benefícios para todos os estudantes, e

não somente para as minorias12.

Segundo Gurin e outros é possível observar ainda sobre os benefícios

educacionais da inclusão:

11 Áreas de interesse da pesquisadora: Social psychology, personality and social structure, adult development, gender roles. Political mobilization, collective behavior, reference groups. Personal and social identity, social differentiation, self. Fonte: <www.vpcomm.umich.edu/admissions/legal/expert/gurinapa.html>. 12 Disponível em: www.personal.umich.edu/~pgurin/gurin-article.doc .

Page 43: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

43

The Educational Benefits of Inclusion

- Academic growth;

- Cognitive development;

- Complex thinking skills;

- Critical thinking skills;

- Engagement with educational process;

- Ability and motivation to understand the perspectives of other people;

- Motivation to be involved in the community;

- Perception that difference is important to democracy;

- Positive perceptions of campus intergroup relations;

- Different perspectives, backgrounds and experiences make students

stronger;

(Gurin, 1999; Humphreys, 1998; Hurtado, 2005; Maruyama & Moreno, 2000; Smith, 1997)13. Fonte: www.personal.umich.edu/~pgurin/gurin-article.doc .

Gurin aponta para a importância do fim das leis de segregação racial e

os benefícios para negros e brancos nos EUA. Ao estudar de que forma as

ações afirmativas poderiam ser positivas no sentido de promover, por

exemplo, maiores níveis de tolerância e redução do preconceito, a autora

destaca a relevância que as experiências de integração entre brancos e

negros através da elaboração de disciplinas que os façam interagir e

promover discussões nas universidades representam para que se atinja

algum resultado,

“The social science statement in Brown v. Board of Education stressed

that desegregation would benefit both African American and White children.

Eventually, it was recognized that integration, rather than mere

desegregation, was important for benefits to be realized. A parallel argument

is made in the legal cases concerning affirmative action in higher education:

13 Os Benefícios Educacionais da Inclusão incluem: crescimento acadêmico, desenvolvimento cognitivo, ganhos em pensamento crítico, engajamento com o processo educacional, habilidade e motivação para entender o ponto de vista de outras pessoas, motivação para se envolver com a comunidade, desenvolvimento da percepção de que a diferença é importante para a democracia, percepção positiva das relações intergrupais no campus e cria estudantes mais fortes, decididos (tradução feita por nós).

Page 44: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

44

educational benefits of diversity depend on curricular and co-curricular

experience with diverse peers, not merely on their co-existence in the same

institution” (Gurin, 1999: 33)14.

Pettigrew, também discute sobre a importância das universidades que

aderiram as cotas desenvolverem programas e disciplinas que façam os

alunos brancos e negros interagirem. Isso contribuiria para a formação de

cidadãos aptos a conviverem com a diversidade durante a vida,

“One of the controversies concerns the difference between racial

desegregation and racial integration, or the difference between mere contact

and actual interaction between students of different racial backgrounds. In

current debates about the educational role of diversity, some argue that the

mere presence on campus of students from varied racial backgrounds must

be shown to directly foster educational benefits. This argument mirrors the

early assertion that mere contact of racially diverse students through school

desegregation would be beneficial to all students. Eventually it became clear,

however, that mere contact through desegregation was not sufficient to

produce educational benefits. Just as Allport (1954) had theorized, contact

needed to occur under certain conditions – where there was equality in

status, existence of common goals, and intimacy of interaction if it was to

have positive effects. Educators needed to create a racially integrated

learning environment that went far beyond simply putting diverse students

together in the same classroom” (Pettigrew, 1998: 63)15.

Bowman e Gottlieb, ambos pesquisadores da Universidade de

Michigan, observaram em seu estudo: The Impact of Racial/Ethnic Structural

Diversity and Opinion Diversity on Reconsidering One’s Beliefs about College

Access que experiências em ambientes com maior diversidade racial e étnica 14 O caso Brown v. Board of Education enfatizou que a dessegregação era benéfica tanto para crianças afro-americanas quanto para as brancas. Eventualmente, mais do que a mera dessegregação, era preciso provocar a integração das crianças para que os benefícios pudessem se realizar de fato. Um argumento paralelo pode ser feito na análise dos casos de ação afirmativa nas universidades: os benefícios educacionais da diversidade dependem das experiências curriculares entre os estudantes e não da mera existência na mesma instituição (tradução nossa). 15 Idéia geral da citação: A controvérsia consiste na diferença entre o mero contato e a interação entre estudantes de grupos raciais distintos. Mas, além disso, o contato precisa acontecer sob determinadas condições, ou seja, a intimidade e a interação provocam efeitos positivos. Nas universidades, os educadores precisam criar estratégias para que isso aconteça e não contar apenas com a diversidade na mesma sala de aula como um fator decisivo para que os alunos aprendam sobre a sua importância e posteriormente para que ocorram mudanças de atitudes e comportamentos.

Page 45: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

45

tem um impacto positivo nos estudantes durante a vida acadêmica em

virtude de ocorrerem durante um estágio de desenvolvimento que os jovens

estão formando e questionando suas identidades e valores e esse processo

de convivência e interação significativa pode propiciar a reconsideração das

suas crenças e atitudes. O estudo ainda conclui que a mera presença de

grupos raciais diversos sem uma interação significativa pode não produzir

impactos positivos; nenhum impacto positivo foi encontrado em adultos mais

velhos no que diz respeito à reconsideração das suas crenças, no entanto, é

difícil mensurar implicações gerais entre idade e formação e estabilidade das

crenças; na pesquisa ainda não está claro se ou quando o efeito da mudança

pode ocorrer em outros grupos que não estão inseridos na universidade na

mesma faixa etária (18-24) (tradução nossa)16.

Ainda em referência às pesquisas, Gurin, Biren and Nagda em seu

artigo Getting to the What, How and Why of Diversity on Campus se reportam

ao conjunto de teorias da psicologia social para entender se as iniciativas

curriculares de diversidade propostas pelas universidades produzem

resultados benéficos e impactos positivos para os estudantes. Para tanto,

destacam um modelo de abordagem chamado de diálogo intergrupal que se

propõem a partir da interação inter-racial explorar as diferenças e pontos em

comuns, trabalhando com conflitos intergrupais e construindo identidades

coletivas. Segundo os autores, esse modelo é uma possibilidade de avançar

em relação a trabalhos que derivam da psicologia social clássica sobre o

contato intergrupal (tradução nossa)17.

Os dados produzidos pelos pesquisadores são considerados valiosos

pelas instituições americanas que entendem que as universidades devem

preparar seus estudantes com as habilidades necessárias para competir no

mercado global e, sobretudo que os ensinem sobre as relações humanas,

competências requeridas pelos empregadores,

“Diversity in academic institutions is essential to teaching students the

human relations and analytic skills they need to thrive and lead in the work

environments of the twenty-first century. These skills include the ability to

16 Disponível em: www.thenationalforum.org/docs/pdf/diversity_and_beliefs.pdf . 17 Os autores citados fazem referência ao estudo de Allport ‘The Nature of Prejudice’ (1954).

Page 46: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

46

work well with colleagues and subordinates from diverse backgrounds; to

view issues from multiple perspectives, and to anticipate and respond with

sensitivity to the needs and cultural differences of highly diverse customers,

colleagues, employees, and global business partners” (General Motors, 2000

apud Gurin, 1999: 25)18.

Em média, os últimos cinqüenta anos de investimento em programas

de diversidade no ensino superior dos EUA revelaram que eles trazem

benefícios de longo prazo (West, 1994). Bowen & Bok nos sinaliza que os

dados apresentados em defesa de resultados positivos protagonizados pela

ação afirmativa mostram que embora persistam disparidades entre a

remuneração de mulheres e de homens e a de minoria de brancos, o abismo

diminuiu, e essa diminuição foi influenciada pelo grau de envolvimento de

instituições de elite,

“O retorno econômico em investimentos na educação, incluindo a

educação de minorias, é tanto maiores quanto mais alta a qualidade da

instituição” (Bowen & Bok, 1998: 223).

Entretanto, permanecem os desafios à diversidade na educação

superior. Por parte dos opositores dos programas de ação afirmativa, táticas

com recurso à legislação e a processos jurídicos têm posto desafios à

continuação dos grupos raciais e étnicos nas instituições de ensino superior

norte-americana via ação afirmativa. O argumento concentra-se na

necessidade de se considerar a raça de um indivíduo para determinar as

oportunidades de acesso à educação. Já os defensores de iniciativas de

promoção da diversidade empreendem seus esforços no sentido de que

suas ações não se mostrem contrárias aos valores americanos, mas, fazer

entender aos grupos políticos que elaboram políticas públicas e aos

membros do público que se opõem à ação afirmativa que a diversidade traz

consideráveis benefícios educacionais, econômicos e sociais e que a política

não é contrária às leis vigentes no país.

18A diversidade nas instituições acadêmicas é essencial para ensinar aos estudantes as relações humanas e as competências analíticas de que eles necessitam para prosperar e liderar no ambiente de trabalho no século XXI. Essas habilidades incluem a capacidade de trabalhar bem com os colegas provenientes de diversas origens; visualizar as questões de diferentes perspectivas para reagir com sensibilidade às necessidades e diferenças culturais diversas dos clientes, colegas, colaboradores e parceiros globais nos negócios. (tradução nossa).

Page 47: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

47

A polêmica que há anos se instaurou nos EUA sobre as ações

afirmativas desde a sua concepção até os dias de hoje a respeito da

legalidade, funcionalidade, eficácia e justeza constituem-se em discussões

que também podem ser observadas no Brasil. Dada as devidas

especificidades, as ações afirmativas no nosso país também são discutidas

como instrumento de combate ao racismo e de democratização do acesso ao

ensino superior público, portanto, estamos assistindo apenas ao alvorecer de

um processo, mas que já possui seu marco na história brasileira, como

veremos no capítulo seguinte.

Page 48: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

48

CAPÍTULO II

A Construção das Ações Afirmativas no Brasil

“Afirmamos que racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância

correlata constituem graves violações de todos os direitos humanos e

obstáculos ao pleno gozo destes direitos, e negam a verdade patente de que

todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”

(Declaração de Durban, 2001: 12).

3.1 O anti-racismo no Brasil

A década de 1990 no Brasil foi marcada, na cena do debate público,

pela emergência das discussões sobre as desigualdades raciais associada à

implementação de ações dirigidas para sua reversão, chamadas de ação

afirmativa. Tal emergência representa a publicização de questões que até

pouco tempo atrás ficavam circunscritas aos círculos do movimento negro e

de uma pequena fração de estudiosos do campo das relações raciais.

No caldo de discussões que se instauram, é evidente que o racismo,

ao ser reconhecido como um problema presente no nosso país, tenha seu

debate marcado pela necessidade de intervenções.

No Brasil, o seminário internacional “Estratégias e Políticas de

Combate às Práticas Discriminatórias” ocorrido em novembro de 1995, em

São Paulo, anunciava a abertura de um diálogo das políticas públicas anti-

racistas a partir da troca mútua de experiências envolvendo intelectuais de

outros países e pesquisadores nacionais com vistas a potencializar o alcance

da compreensão e análise das ações afirmativas.

Nessa perspectiva, a década de 1990 simbolizou o início de um

momento de reflexão em busca de algumas pistas para entender do que se

tratavam as ações afirmativas e os seus desdobramentos nos países onde

fora implantada. Nesse período, partidos políticos e imprensa começaram a

Page 49: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

49

se expressar publicamente a respeito da necessidade de enfrentar com

responsabilidade o problema racial brasileiro19 (Munanga, 1996).

Como ilustrativo do crescente debate no Brasil acerca das ações

afirmativas, o seminário internacional promovido pelo Ministério da Justiça,

em julho de 1996, intitulado “Multiculturalismo e racismo: o papel da ação

afirmativa nos estados democráticos contemporâneos” contou com a

participação de pesquisadores brasileiros, norte-americanos assim como um

grande número de lideranças negras para promover o intercâmbio de

experiências entre os países participantes e reivindicar uma postura mais

ativa do poder público frente à questão racial brasileira (Guimarães, 1999).

O teor das discussões denunciava que a retórica e os discursos bem

intencionados já não eram mais suficientes para romper as bases do racismo

no Brasil e, portanto, era preciso reconsiderar as estratégias de combate à

discriminação nos campos onde ela se manifesta concretamente, ou seja, no

âmbito da educação, cultura, lazer, saúde, mercado de trabalho etc.

O breve olhar sobre a conjuntura em que emerge tais discussões no

Brasil, nos leva a reconhecer a legitimidade que os movimentos sociais de

combate ao racismo adquiriram em relação a essa temática. Munanga ao

dissertar sobre as políticas anti-racistas no Brasil nos aponta que,

19 Nos círculos governamentais começou a cogitar-se a introdução de formas de ação afirmativa, como podemos observar através do discurso do então ex-Vice-Presidente da República Marco Maciel. “Disse S. Exa: As formas ostensivas e disfarçadas de racismo que permeiam nossa sociedade há séculos, sob a complacência geral e a indiferença de quase todos, são parte dessa obra inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos responsáveis. A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu, em termos sociais, senão para deleite intelectual de alguns e demonstração de ufanismo de muitos. Terminamos escravos do preconceito, da marginalização, da exclusão social e da discriminação que caracterizam o dualismo social e econômico do Brasil. É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas, sobretudo no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente asseguradas por nossas constituições aos brasileiros e aos estrangeiros que vivem em nosso território. (...) O Brasil terá de convencer-se de que os negros e seus descendentes deixarão de ser minoria no próximo século, pois já representam maioria em três das cinco” regiões brasileiras. (...) Vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação, são apenas parte do desafio. Se vamos consegui-lo com o sistema de quotas compulsória no mercado de trabalho e na universidade, como nos Estados Unidos, ou se vamos estabelecê-las também em relação à política, como acaba de fazer a lei eleitoral, com referência às mulheres, é uma incógnita que de antemão ninguém ousará responder. Não tenho dúvida de que se não tivesse havido discriminação econômica, não teria havido exclusão social. Sem uma e a outra a discriminação racial não teria encontrado o campo em que plantou raízes. O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política, terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de empregos e participação na vida pública(...)” (Maciel, 200,p.A-3 apud Gomes, 2002: 23).

Page 50: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

50

“As lutas contra o racismo passam geralmente por duas formas de

ação: uma discursiva e retórica, compreendendo os discursos produzidos

pelos estudiosos engajados, militantes e políticos preocupados com as

desigualdades raciais; outra prática, traduzida em leis, organizações e

programas de intervenção cujas orientações são definidas pelos governos e

poderes políticos constituídos. Mas nada impede os setores privados e as

organizações-não-governamentais de desenvolver programas e atividades

anti-racistas” (Munanga, 1996: 79).

Segundo Munanga, as contradições e a falta de consenso sobre o

racismo conjugadas com as escolhas ideológicas de especialistas e

estudiosos apresentam as primeiras dificuldades no nível da retórica anti-

racista,

“A respeito, sabemos que os intelectuais de direita e de esquerda de

todos os países não se entendem e atribuem ao racismo um conteúdo

diferente. Os de direita, ou melhor, os liberais, pensam hoje, considerando a

extinção do racismo institucionalizado em todo o mundo, que a razão

essencial da persistência das desigualdades raciais deve-se ao fato de que

os negros sofrem de uma falta de cultura e instrução compatíveis com a

economia pós-industrial. A razão maior, segundo esse tipo de raciocínio, não

estaria mais no racismo da sociedade, mas essencialmente nas forças do

mercado, indiferentes à raça (...) Na esquerda, persiste a visão radical de

que o racismo é uma questão de classe, e os preconceitos raciais

considerados como atitudes sociais propagadas pela classe dominante”

(Munanga, 1996: 79; 80).

Munanga nos mostra que a ação militante negra, composta por

posicionamentos políticos e partidários distintos dificulta as buscas de

estratégias anti-racistas ao ignorar as diferenças fenotípicas e culturais,

como um dos elementos fundamentais, estruturador e classificador dos

problemas tidos apenas como de mercado e de instrução nas sociedades.

Nos países em que o racismo era explícito e institucionalizado, como

nos EUA e na África do Sul, as formas de luta anti-racistas tomaram rumos

diferentes em relação ao Brasil onde as manifestações racistas são

implícitas,

Page 51: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

51

“No caso sui generis do Brasil, como se podia lutar oficialmente,

mobilizando governos e poderes públicos instituídos contra um racismo

silenciado pela ideologia da “democracia racial?” (...) O passado e o presente

da população negra e seus descendentes mestiços no Brasil exigem

algumas linhas descritivas, a partir das quais podemos especular sobre o

futuro. E esse futuro depende em parte da implantação de algumas políticas

públicas” (Munanga, 1996: 80; 81).

As ações no campo anti-racista agregam os indivíduos em torno de

objetivos como participar da dinâmica da mobilidade social crescente, obter a

reversão das desigualdades socioeconômicas, adquirir o reconhecimento do

valor e da dignidade humana e promover uma imagem positiva dos negros

na sociedade. Para Chinoy,

“A posse de traços físicos distintos ou de valores, crenças e costumes

únicos, não raro proporciona um foco de lealdades comuns e a base de uma

ação coletiva, particularmente quando o grupo é destacado por uma atenção

discriminativa” (Chinoy, 1975: 301).

Orientados por esses aspectos, Silva nos indica que,

“O engajamento pessoal no anti-racismo refere-se a uma atividade

que começa na juventude, atravessa a fase adulta, e, em alguns casos, se

estende até a senectude (...), nesse sentido, o exame dos movimentos

sociais, que formam o campo do anti-racismo, tem como referência, os

processos de socialização dos atores sociais implicados nessas lutas” (Silva,

2000: 87).

A preocupação no interior das sociedades democráticas tem sido

pensar políticas direcionadas à redução de obstáculos para ascensão social

de grupos específicos o que pressupõe admitir políticas e programas que

tenham por base o reconhecimento de diferenças étnico-raciais no momento

de inserção no mercado de trabalho e no sistema educacional.

Para tanto, os agentes dos movimentos de combate ao racismo

sugerem que se faça uma releitura acerca das desigualdades e injustiças

cometidas contra a população negra ao longo da história do país. Nesse

sentido, discute-se a necessidade da implantação da ação afirmativa para

criar patamares mais equânimes e condições leais de concorrência,

Page 52: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

52

considerando que existem duas formas de racismo que devem ser

eliminadas: o institucional e o individual.

O primeiro refere-se ao conjunto de arranjos institucionais que

bloqueiam a participação de determinados grupos, estabelecendo uma

conduta mais rígida diante das populações discriminadas, Jones define a

dimensão institucional do racismo como,

“As práticas, as leis e os costumes estabelecidos que

sistematicamente refletem e provocam desigualdades raciais (...) O racismo

institucional pode ser manifesto ou oculto e intencional ou não intencional.

Usualmente, tanto as formas manifestas quanto as formas ocultas de

racismo são intencionais. As formas não-intencionais de racismo ocorrem,

muitas vezes, quando as complexas inter-relações entre as instituições da

sociedade fazem com que os efeitos a longo prazo de uma prática

institucional sejam negativos para os negros. Tais conseqüências podem não

ser previstas nem desejáveis pela instituição responsável” (Jones, 1973:

117).

Já no caso do racismo individual, Jones define que,

“O indivíduo racista é aquele que considera que as pessoas negras,

como um grupo, são inferiores aos brancos, e isso por causa dos traços

físicos (genotípicos ou fenotípicos). Além disso, acredita que tais traços

físicos são determinantes de comportamento social bem como de qualidades

morais ou intelectuais e, em última análise, supõe que essa inferioridade é

uma base legítima para tratamento social inferior de pessoas negras (...).

Uma consideração muito importante é a de que todos os julgamentos de

superioridade se baseiam em traços correspondentes de pessoas brancas,

consideradas como normas de comparação” (Jones, 1973: 105).

Quando pensamos em fatores que podem dificultar e até mesmo

impedir a implementação de um conjunto de políticas públicas em prol do

combate ao racismo as suas duas formas devem ser consideradas. A

realização de ações no campo anti-racista conjuga essas duas formas de

racismo presentes nas relações cotidianas. Nesse sentido, qual as

estratégias produzidas pelo movimento negro para reduzir os danos que o

racismo produz? Hoje as ações afirmativas surgem como uma das

Page 53: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

53

respostas a esse questionamento, pois a sua discussão provoca a

consciência do racismo e da igualdade de oportunidades, no entanto, as

discussões encampadas atualmente são derivadas de momentos

importantes da história que compõem o marco das discussões sobre as

ações afirmativas no Brasil.

3.2 O movimento pelas reparações já!

O dia 19 de novembro de 1993, em São Paulo, não foi uma data

qualquer para a história contemporânea de combate ao racismo. Na

véspera do dia nacional da consciência negra daquele ano, dez pessoas

resolveram promover um protesto para denunciar a exclusão social da

população negra e foram almoçar no Maksoud Plaza,

“Chegando a um dos mais nobres restaurantes da cidade pediram

pratos requintados, conversaram, comeram, beberam fartamente. Ao final,

pediram e receberam a conta. Esta como já esperavam era de um valor

estratosférico, daí ocorreu algo inédito na história do país: as dez pessoas

disseram em alto e bom som ao gerente do estabelecimento que a conta

deveria ser creditada na dívida secular que a sociedade brasileira tem com

todos os negros brasileiros, logo, não seria paga. O transtorno estava

então instalado a polícia e a grande imprensa foram acionados, porém, ao

término de tanta polêmica, a conta não foi paga” (Entrevistado A).

Mas afinal a pergunta que se fazia era a seguinte: quem eram

aqueles pessoas e o que buscavam com aquele gesto? Todos eram

ativistas ou aliados do movimento negro vinculados ao Núcleo de

Consciência Negra da USP (NCN-USP),

“Fundado em 1987, o NCN organizado em torno da temática da

questão racial visa, sobretudo a ampliação do espaço acadêmico, como

também uma maior influência e ocupação da estrutura de poder da

Universidade. Desde sua formação, no que pese os vários obstáculos

enfrentados, o NCN-USP tem realizado inúmeras atividades acadêmicas e

culturais, consolidando-se como um centro de referência para as questões

Page 54: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

54

que envolvem a negritude e assumindo um papel efetivo de grupo de

pressão contra as ações discriminatórias e racistas oriundas da própria USP

e da sociedade em geral” (Entrevistado A).

Na ocasião, os componentes do grupo que realizaram o protesto se

dividiam entre homens e mulheres,

“No momento, não me recordo com precisão de todas as pessoas

que estavam envolvidas no protesto, mas, eram seis mulheres negras

entre as quais Kelly Oliveira e Fernanda Lopes, um homem branco e cinco

negros entre os quais Luis Carlos dos Santos, Fernando Conceição e

Arnaldo Lopes, todos amigos e militantes da nossa causa negra”

(Entrevistado A).

A partir do relato de nosso entrevistado, é possível observar que o

gesto daquela noite de “dar o calote” no restaurante Maksoud Plaza não

foi obra do acaso. Previamente planejada, foi uma ação com dupla

intenção,

“Produzir um fato político e, principalmente, lançar a campanha

nacional “Reparações Já! Eu Também Quero o Meu”. Ambos os intentos

foram alcançados. No dia seguinte, 20 de novembro de 1993, grandes

jornais como a Folha de São Paulo, repercutiram o protesto. Da mesma

forma a campanha passou a ser conhecida e debatida. Seu slogan

Reparações Já! , fazia alusão aos quase 400 anos de cativeiro no Brasil,

quando os africanos e seus descendentes escravizados não foram pagos

pelo trabalho de construção de toda riqueza material do país”

(Entrevistado A).

Os ativistas que promoveram aquele protesto colocaram em xeque

a política racial predominante do movimento negro. Talvez por isso foram

taxados de irresponsáveis, personalistas e inconseqüentes,

“Embora sem o apoio da maior parte do movimento negro, eles não

desistiram e levaram a diante o movimento pelas reparações, que

reivindicava do Estado brasileiro o pagamento de 102 mil dólares para

cada um dos afrodescendentes. Argumentava-se que devido aos crimes e

Page 55: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

55

aos danos caudados pela escravidão, o Estado brasileiro teria uma dívida

não só moral, mas também material com todo descendente de escravo. O

trabalho não remunerado por quase quatro séculos teria significado uma

expropriação do africano e seus descendentes escravizados, os quais

precisavam ser compensados para se começar a fazer justiça no país”

(Entrevistado A).

O NCN-USP contribuiu para que o movimento das reparações se

expandisse e ganhasse notoriedade pública,

“Adquirindo uma dimensão interestadual, e promovendo uma série

de atividades, como panfletagens, atos públicos, plenárias e seminários.

Constituiu-se um comitê executivo, publicou-se um jornal e articulou-se

uma aliança com as forças políticas progressistas. O auge do movimento

ocorreu em 1995, quando se comemorou o tricentenário da morte do líder

Zumbi dos Palmares. Na marcha que reuniu milhares de ativistas negros

em Brasília, era possível ver a bandeira do movimento Reparações Já. Na

ocasião o então deputado federal Paulo Paim (PT) apresentou o projeto

de lei nº 1239, que em um dos seus artigos reivindicava da União a

indenização de 102 mil reais para cada descendente de escravo no Brasil:

“A União pagará, a título de reparação, a cada um dos descendentes de

africano escravizados no Brasil o valor equivalente a R$102.000,00 (cento

e dois mil reais)” (Entrevistado A).

Ainda no ano de 1995, uma data importante para o movimento

negro, a USP, através de sua Pró-Reitoria de Cultura e Extensão

Universitária organizou uma agenda cobrindo todo aquele ano para

rememorar os 300 anos da morte de Zumbi,

“Esse evento busco priorizar não as manifestações de caráter

festivo, mas sim a conscientização e os debates de reflexão e análise em

busca de soluções. Uma comissão especial com essa finalidade foi

nomeada pelo reitor da universidade e dentro dela um grupo de trabalho

incumbido da elaboração das propostas ou pistas de políticas públicas em

benefício da população negra, vítima da discriminação racial. Questões

Page 56: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

56

espinhosas como o ingresso de negros na universidade, a introdução das

disciplinas de História da África e do Negro Brasileiro no currículo do curso

de História foram colocadas com muita força e emoção. Uma cartilha

dirigida aos alunos de 1º e 2º graus foi editada. Foram promovidos cursos

de difusão em algumas faculdades sobre o racismo e a cultura negra, sem

esquecer seminários nacionais e internacionais. (...) A publicação, em

julho de 1995, pela Folha de S. Paulo, de uma pesquisa de opinião sobre

a existência do preconceito racial anti-negro no Brasil e toda polêmica no

mesmo jornal sobre a sexualidade de Zumbi, etc, toda efervescência deve

ter mudado algo na cabeça de alguns cidadãos sensíveis” (Munanga,

1996: 89).

Em relação ao movimento pelas reparações, muitos setores do

movimento negro, entretanto, continuaram a se opor aquela campanha e,

em algumas ocasiões a tratavam com chacota. Diziam que o negro

brasileiro não precisava de “migalhas”. Outros falavam que jamais se

sujeitariam a receber algum tipo de indenização do Estado brasileiro,

“É interessante notar, que até aquele momento, o setor hegemônico

do movimento negro brasileiro insistia em não se inspirar no movimento

pelas reparações, que em escala internacional obtinham conquistas. A

exemplo dos judeus, que depois da Segunda Guerra Mundial foram

indenizados por conta do nazismo” (Entrevistado A).

Com o isolamento cada vez mais crescente, o movimento pelas

reparações foi se esvaziando, perdendo respaldo político e sendo pouco a

pouco esquecido no final da década de 1990, contudo,

“Eu entendo que podemos concluir dizendo que depois de mais de

uma década, é preciso considerar a importância do movimento pelas

reparações dentro do movimento negro, pois se a proposta que triunfou

como eixo da luta desse movimento foi a das cotas, ironicamente, tal

proposta foi gestada no bojo do princípio que rege o das reparações”

(Entrevistado A).

Page 57: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

57

Em outros termos, o almoço de protesto no Maksoud Plaza foi um

marco nas lutas anti-racistas. Independente das divergências que causou

o método de contestação, o episódio pressagiou um novo momento do

movimento negro, na medida em que desencadeou em São Paulo, e mais

tarde, no resto do país, o polêmico debate em torno das políticas de

reparação ou como ficaram conhecidas, as ações afirmativas.

3.3 Os cursos pré-vestibulares

Difundidos pelo país ao longo dos anos 1990, os cursos pré-

vestibulares para alunos negros e carentes são considerados como

desdobramentos de um conjunto de estratégias do movimento negro nas

décadas de 1970 e 1980, dentre as quais podemos destacar,

“A escolarização dos negros como processo de construção de

novas lideranças e fortalecimento de outras lideranças; a capilarização de

militantes da luta anti-racismo em diferentes espaços de luta e intervenção

social; aumento da escolarização da base social dos movimentos negros,

em discussões que tiveram lugar nos anos 80, sobretudo no âmbito dos

Agentes da Pastoral do Negro, onde ganhou corpo a idéia de intervir na

ponte entre o segundo e o terceiro grau, ou seja, de fortalecer a entrada

na universidade de estudantes negros” (Santos, 2005: 232; 233).

Os cursos pré-vestibulares atuaram de forma geral como uma

tentativa pioneira de reverter os pequenos números de ingresso de

estudantes negros no ensino superior. O recorte racial ganhou o status de

bandeira principal desse projeto, mas também foi associada às dimensões

sócio-econômicas e das injustiças no campo da educação, que dialoga

com outras discussões como a militância.

É possível observar algumas experiências que se difundiram por

várias regiões do país, como o Núcleo de Consciência Negra da Usp

(NCN), Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes

(Educafro) e o Instituto Cultural Beneficente Steve Biko (ICBSB), veremos

como foram desenvolvidas as propostas das três entidades.

Page 58: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

58

A organização da Cooperativa Educacional Steve Biko, depois

Instituto Cultural Beneficente Steve Biko, surgiu por iniciativa de

estudantes e professores negros, com o objetivo de,

“Fortalecer a luta contra o racismo, através de uma ação concreta:

colaborar com a entrada de jovens negros na universidade” (ICBSB apud

Santos, 2005: 194).

O ICBSB foi criado em julho de 1992, organizando o primeiro curso

preparatório para o vestibular direcionado para estudantes negros de

baixa renda do país. O curso foi oferecido inicialmente em espaço cedido

pelo Diretório Central dos Estudantes (CDE) da Universidade Federal da

Bahia (UFBA) e seus instrutores trabalhavam voluntariamente. Os

números revelaram que no final do ano de 1992 25 alunos estavam

freqüentando o cursinho, sendo que mais de 50% destes foram aprovados

no vestibular (Santos, 1993). A iniciativa e seus primeiros resultados se

espalharam pelo Brasil e outras entidades começaram a realizar

experiências semelhantes.

Apesar do Instituto surgir como uma proposta autônoma e

independente, não tendo vínculo orgânico ou político com nenhuma

entidade do movimento negro, é possível notá-lo,

“Como um produto da militância de jovens negros de diferentes

entidades e orientações políticas dentro do movimento negro, que

identificam o curso como a possibilidade de uma nova perspectiva de

atuação, através de uma ação prática voltada para a solução de alguns

dos problemas diagnosticados referentes à situação da população negra

no Brasil” (Santos, 2005: 196).

Como principal reflexo da aproximação da proposta do cursinho

com as discussões do movimento negro e como característica que o

diferencia, no conjunto de disciplinas oficiais oferecidas pelo curso inclui-

se ‘Cidadania e Consciência Negra’. É este aspecto que torna a proposta

da entidade peculiar, de acordo com a visão de um de seus fundadores e

diretores,

Page 59: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

59

“Consideramos que a instituição é uma forma de levar um serviço à

comunidade negra. Todo estudante que entra aqui é obrigado a freqüentar

o que a gente considera a matéria fundamental que é a ‘Cidadania e

Consciência Negra’. O que nós queremos é formar agentes, não é colocar

qualquer estudante negro na universidade. Nossa idéia é possibilitar o

ingresso do estudante na universidade com o mínimo de discussão da

questão racial” (ICBSB apud Santos, 2005:201).

Além da formação oficial exigida pelo vestibular os fundadores

parecem preocupados com questões como a formação da identidade

racial dos jovens. A educação aparece como um espaço privilegiado de

ação, assim uma proposta pedagógica envolve atenção com as diferenças

culturais, raciais e sociais,

“Será que basta dar uma boa educação numa escola particular?

Qual o caráter dessa educação: formar novos senhores e escravos? Na

medida que o material didático utilizado nessas escolas reforça a idéia da

superioridade da raça branca: beleza, heróis, auto-estima, domínio, o que

resta ao estudante negro? Quando criança chora e recusa-se a ir à escola.

Quando adolescente tímido ou tenta ser o melhor da classe para atenuar a

carga da discriminação racial. É preciso estar atento a esta

particularidade. Não é escondendo, camuflando as nossas diferenças que

vamos resolver o problema da questão racial no Brasil, mesmo porque

este problema não é tão somente nosso e sim da sociedade brasileira”

(ICBSB apud Santos, 2005: 205).

O NCN-USP, entidade fundada por funcionários, alunos e

professores da USP, em 13 de maio de 1987, tem como objetivo criar um

espaço de discussão sobre o lugar do negro na sociedade e na

universidade. Em 1992, o Núcleo tem sua sede legalizada, no ano

seguinte lança o movimento pelas reparações e no segundo semestre de

1994, cria seu curso preparatório para o vestibular.

O curso foi pensado pelo Núcleo, em sua proposta original,

enquanto uma ação político-pedagógica, com o objetivo de,

Page 60: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

60

“Preparar a sua clientela alvo para o ingresso nas universidades

públicas visando contribuir, através da promoção educacional, para o

desenvolvimento integral de jovens estudantes/trabalhadores,

pertencentes aos setores excluídos da sociedade, agasalhando-os com as

prerrogativas da cidadania em construção” (NCN, 1994: 2).

Em seu projeto pedagógico propõe, além das matérias exigidas nos

vestibulares, que o curso ofereça, aos sábados, o módulo interdisciplinar

Cidadania e Consciência Negra.

As experiências descritas anteriormente são bastante próximas.

Apesar de utilizarem para as aulas um espaço cedido por universidades

públicas, não possuem vínculos institucionais com estas ou outras

entidades, remuneram seus professores através de uma mensalidade

paga pelos alunos, o curso é oferecido no período de nove meses e a

seleção dos alunos envolve critérios raciais e sociais.

No ICBSB a primeira etapa da seleção é composta por um

questionário para ser preenchido com dados raciais, sócio-econômicos,

familiares, dados gerais do candidato, uma redação e uma entrevista. No

momento da seleção é priorizado o estudante que participa de atividades

junto aos movimentos sociais, sendo que a maioria dos candidatos são

indicados por entidades do movimento negro da Bahia. No NCN, é

realizada para seleção dos estudantes, uma prova de conhecimentos

gerais, em seguida é realizado uma avaliação sócio-econômica e racial,

seguida de uma entrevista. Ao final, a seleção deve atender a uma cota do

alunado composta por 70% de negros e mestiços (Santos, 2005).

A experiência dos cursos pré-vestibulares ligados aos Agentes da

Pastoral do Negro da Igreja Católica nasce de forma distinta das

experiências descritas anteriormente. Inspirados no projeto iniciado pelo

ICBSB, alguns membros da Pastoral organizam o primeiro núcleo de

curso pré-vestibular em maio de 1993, em uma igreja de São João do

Meriti, no Estado do Rio de Janeiro, contando com 98 alunos (Santos,

2005).

Page 61: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

61

A Educafro é uma Organização não-governamental (Ong) fundada

em 1997 por Frei Davi Raimundo Santos20, principal liderança na criação e

fortalecimento da rede Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC),

que teve, sobretudo entre os anos de 1997 e 1998, mais de 80 núcleos

espalhados por toda região metropolitana do Rio de Janeiro. Dessa

experiência surgiram várias outras, existindo hoje diversas entidades

ligadas à Pastoral do Negro que mantêm, em algumas regiões como São

Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul cursos pré-vestibulares. A

proporção que esse projeto alcançou foi significativa,

“Existe atualmente 75 núcleos, e mais 50 em processo de

formação, no Rio de Janeiro com 4.500 alunos e mais de 1.500

professores e coordenadores, e em São Paulo são 30 núcleos, 1.100

jovens e adultos e 450 professores e coordenadores” (Santos, 2005: 205).

No que diz respeito à seleção, esta fica a cargo dos núcleos,

devendo seguir apenas a orientação geral de incorporar unicamente

alunos carentes. Estabelecer uma porcentagem de estudantes negros nos

cursos não é uma preocupação, prevalecendo a idéia de, sendo esta um

ação voltada para a população carente, os negros também serão dela

beneficiários. Sobre a proposta pedagógica, ministram 10 aulas

convencionais, baseadas no vestibular da FUVEST e mais uma aula de

cidadania e cultura, tratando de temas como direitos humanos, questões

de gênero, raciais, violência, entre outros (Santos, 2005).

Podemos observar que os cursos pré-vestibulares são, atualmente,

um canal de discussão da questão racial e também se tornaram

interlocutores com a esfera governamental. A exemplo do ano de 2002 na

gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso foi criado o programa

Diversidade na Universidade,

“Esse programa começou a ser discutido ainda em 2001, contando

com forte apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), tanto

em termos de recursos como também de formulação deste. Objetivando

20 Frei Davi é diretor executivo da Educafro em São Paulo e membro de sua executiva nacional.

Page 62: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

62

melhorar as condições no ingresso no ensino superior de grupos

socialmente desfavorecidos, o programa estava centrado no repasse de

recursos para organizações públicas ou privadas que oferecessem a

esses grupos cursos preparatórios para candidatos ao vestibular,

principalmente, em universidades públicas” (Heringer, 2006: 99).

Por essa razão o programa sofreu críticas, ao reduzir a atuação do

governo naquele momento apenas ao financiamento de cursos pré-

vestibulares, sem incluir outras medidas, uma vez que o financiamento

desses cursos representava o reconhecimento das limitações do ensino

oferecido pelas escolas públicas. Entretanto, essa ação encampada pelo

governo federal na ocasião permitiu que se instalasse algumas mudanças

nos padrões de relacionamento entre o movimento negro e o poder

público advindas da explicitação dos conflitos e das desigualdades raciais.

A despeito do protagonismo dos ativistas do movimento negro no

debate e na exigência de ações afirmativas como uma das estratégias de

promover a igualdade racial verificamos que os cursos pré-vestibulares

corresponderam as primeiras tentativas de buscar patamares mais

equânimes e condições mais leais de concorrência nos vestibulares entre

negros e brancos.

3.4 Grupo de Trabalho Interministerial

Em 1995 a mobilização nacional do movimento negro realizou em

Brasília a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e

pela Vida, o principal objetivo deste protesto público era denunciar o racismo

vigente na sociedade brasileira e pressionar as autoridades governamentais

a reconhecer as iniqüidades entre brancos e negros assumindo o

compromisso de formular políticas sociais capazes de atender as demandas

da população negra no acesso à educação, saúde, trabalho e preservação

dos direitos sociais e humanos.

Os impactos da marcha levaram o governo federal, na gestão do

presidente Fernando Henrique Cardoso a criar no mesmo ano o Grupo de

Page 63: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

63

Trabalho Interministerial (GTI) que tinha como proposta formular e executar

ações integradas entre todos os ministérios de combate à discriminação

racial.

No dia 20 de novembro de 1995, a Presidência da República institui o

Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com a finalidade de desenvolver

políticas para valorização da população negra. Compete a esse Grupo de

Trabalho, de acordo com o artigo 2º, dentre outras coisas:

I – “Propor ações integradas de combate à discriminação racial,

visando o desenvolvimento e a participação da população negra”;

II – Elaborar, propor e promover políticas governamentais

antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania da população negra;

IX – Estimular e apoiar iniciativas públicas e privadas que valorizem a

presença do negro nos meios de comunicação;

X – Examinar a legislação e propor as mudanças necessárias,

buscando promover e consolidar a cidadania da população negra “

(Moehlecke, 1998: 69).

Do exposto acima, é possível dizer que a ele (o GTI) compete a

proposição de políticas governamentais discriminatórias, o incentivo a

iniciativas públicas e privadas para o desenvolvimento da população negra, e

o exame e proposição de leis em colaboração com os Poderes Legislativo e

Judiciário.

Enquanto um importante instrumento de políticas públicas, a coleta e

divulgação de informações sobre a população negra também estão entre as

competências do órgão. A respeito da estrutura do Grupo de Trabalho, ele é

integrado por: oito membros da sociedade civil, vinculados ao movimento

negro, oito membros de Ministérios e dois de Secretarias, todos designados

pelo Presidente da República (Brasil, 2004).

O conceito de ações afirmativas desenvolvido pelo GTI entende que

estas envolvem,

“Medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo

Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar

desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de

Page 64: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

64

oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela

discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos,

religiosos, de gênero e outros” (Brasil, 2004).

No que diz respeito às proposições acerca das políticas de ações

afirmativas, o GTI realizou dois seminários que aconteceram em Salvador e

Vitória onde foram elaboradas 46 propostas que abrangiam as áreas da

educação, saúde, comunicação e trabalho. O GTI entende que compete ao

governo federal estimular os governos estaduais e municipais a adotarem as

medidas afirmativas e estabelecer mecanismos como incentivos fiscais junto

à iniciativa privada.

3.5 Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

O PNDH foi instituído no segundo ano da primeira gestão do governo

Fernando Henrique Cardoso em 1996 com o objetivo de dar suporte as

discussões a respeito das ações afirmativas. O programa dispõe de um

capítulo específico dedicado à população negra, com ações como inclusão

do quesito cor em todos os documentos oficiais, apoio às iniciativas privadas

que realizem discriminação positiva e a formulação de políticas

compensatórias que promovam social e economicamente os negros, dentre

outras.

O Programa propõe a proteção do direito ao tratamento igualitário

perante a lei,

“Propor legislação proibindo todo tipo de discriminação, com base em

origem, raça, etnia (...), e revogando normas discriminatórias na legislação

infraconstitucional, de forma a reforçar e consolidar a proibição de práticas

discriminatórias existentes na legislação constitucional” (PNDH ,1998: 5).

Em 1999, foi elaborado o Primeiro Relatório Nacional sobre os Direitos

Humanos no Brasil, pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de

São Paulo em colaboração com governos estaduais e organizações da

sociedade civil. Avaliando a situação desde a implantação do PNDH até

1998, diagnosticou a série de violações aos direitos civis, políticos, sociais e

culturais ainda existentes no país, nos diversos estados da federação, mas

Page 65: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

65

também levanta a existência de órgãos e entidades públicas ou não, que

vem tentando realizar um acompanhamento e denúncia dos desrespeitos

aos direitos humanos.

3.6 Convenções nacionais e internacionais:

proposições políticas com participação popular

No plano internacional, os instrumentos de proteção aos direitos

humanos interagem em benefício dos indivíduos e somam-se ao sistema

nacional de proteção com a finalidade de produzir maior efetividade na

promoção dos direitos aos cidadãos.

Nessa perspectiva, algumas Convenções contemplam a urgência em

se erradicar a discriminação como medida fundamental para que se garanta

o pleno exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais e, portanto

prevê a necessidade de combinar a proibição da discriminação com políticas

compensatórias que acelerem a igualdade.

Nesse sentido, as ações afirmativas situam-se nos parágrafos das

Convenções como instrumento de inclusão social que objetiva alcançar a

igualdade material por parte dos grupos mais vulneráveis, como minorias

étnicas, raciais, as mulheres, dentre outros grupos. Note-se, então que a

Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial realizada em dezembro de 1969, da qual o Brasil é

signatário, contempla a possibilidade jurídica de uso das ações afirmativas

pelos Estados e prevê,

“No artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de “discriminação positiva”,

mediante a adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos

ou indivíduos, com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um

nível de equiparação com os demais” (Piovesan, 2005: 39).

Ainda, dentre as convenções que o Estado brasileiro é signatário

destacam-se: A Convenção 111, que trata da discriminação em matéria de

emprego e profissão realizada em janeiro de 1968; e também a Convenção

Relativa à Luta Contra a Discriminação no Ensino, realizada em setembro de

1968.

Page 66: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

66

Nesse cenário, o uso da lei passou a orientar a ação dos setores

organizados da sociedade civil, que tem exigido em termos práticos a sua

concretização por parte das instituições governamentais.

“Sobre o cumprimento dessas Convenções, em 1995 o governo

brasileiro deu sua anuência à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

para uma avaliação e observação in loco no país. Dentre as conclusões

desse trabalho, que envolveu um contato com representantes do poder

público e de entidades do movimento negro, a discriminação racial é

identificada como um dos principais problemas existentes” (Moehlecke, 1998:

67).

Em termos de dispositivos que demarcam a busca pela igualdade

material, ou seja, que vai além da igualdade formal, a Constituição Federal

de 1988 apresenta princípios que viabilizam a finalidade pública de um

projeto mais democrático de nação. A título de registro,

“Destaque-se o artigo 7º, inciso XX, que trata da proteção do mercado

de trabalho da mulher, mediante incentivos específico, bem como o artigo 37,

inciso VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e

empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência. Acrescente-se

ainda a chamada “Lei das Cotas” de 1995 (Lei nº 9.100/95), que obrigou ao

menos 20% dos cargos para as candidaturas às eleições municipais que

fossem reservadas às mulheres. Adicione-se também o Programa Nacional

de Direitos Humanos, que faz expressa alusão às políticas compensatórias,

prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de

grupos socialmente vulneráveis” (Piovesan, 2005: 40).

Outro marco importante que aponta as ações afirmativas como

medida legal aconteceu na III Conferência Mundial contra o Racismo, a

Discriminação Racial, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, em Durban,

África do Sul, em 2001. A delegação brasileira composta por um grande

número de militantes, diplomatas e funcionários do governo brasileiro

estiveram envolvidos durante todo o processo preparatório que antecedeu a

Conferência. Ao longo do processo destacam-se algumas ações como o fato

do Brasil ter tido papel fundamental na negociação de conceitos que seriam

discutidos no evento, como ações afirmativas, reparações etc; outro fato

Page 67: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

67

importante foi a proposta de realização da conferência ter sido feita pelo

embaixador brasileiro à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas

(Consciência Negra, 2006).

Importa destacar que o documento oficial brasileiro apresentado à

Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo propôs,

”A adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afro-

descendentes às universidades públicas, bem como a utilização, em

licitações públicas, de um critério de desempate que considere a presença

de afro-descendentes, homossexuais e mulheres, no quadro funcional das

empresas concorrentes” (Consciência Negra, 2006: 32).

Como podemos ver nos dois itens que se segue do relatório da

Conferência, da qual o Brasil é signatário, se fomenta a implantação de

políticas para população negra,

“107.Destacamos a necessidade de se desenhar, promover e

implementar em níveis nacional, regional e internacional, estratégias,

programas, políticas e legislação adequadas, os quais possam incluir

medidas positivas e especiais para um maior desenvolvimento social

igualitário e para a realização de direitos civis, políticos, econômicos,

sociais e culturais de todas as vítimas de racismo, discriminação racial,

xenofobia e intolerância correlata, inclusive através do acesso mais efetivo

às instituições políticas, jurídicas e administrativas, bem como a

necessidade de se promover o acesso efetivo à justiça para garantir que

os benefícios do desenvolvimento, da ciência e da tecnologia contribuam

efetivamente para melhoria da qualidade de vida para todos, sem

discriminação;

108. Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas

especiais ou medidas positivas com o intuito de promover sua integração

na sociedade. As medidas para uma ação efetiva inclusive as medidas

sociais, devem visar corrigir as condições que impedem o gozo dos

direitos e a introdução para incentivar a participação igualitária de todos os

grupo raciais, lingüísticos e religiosos em todos os setores da sociedade

colocando a todos em igualdade de condições” (Brasil, 2001: 37).

Page 68: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

68

Dentre estas medidas devem figurar outras para o alcance de

representação adequada nas instituições educacionais, nos partidos

políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços

judiciários, na política, exército e outros serviços civis, os quais em alguns

casos devem exigir reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para

igualdade de participação (Brasil, 2001).

Outra importante referência para a discussão foi a Conferência

Regional das Américas sobre Avanços e Desafios no Plano de Ação contra o

Racismo, Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas foi

realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de julho de 2006. A ocasião

possibilitou a discussão dos resultados alcançados após a Conferência de

Durban, quando o governo brasileiro apresentou seu compromisso com as

políticas de ação afirmativa.

Dos resultados alcançados pelos países participantes considera-se21 ,

“A inclusão dos temas de combate ao racismo, de promoção da

igualdade racial e dos direitos humanos nas estruturas de governo; o

surgimento de instrumentos específicos e abrangentes, como a criação da

Relatoria Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre

os Direitos das Pessoas Afrodescendentes e contra o Racismo em fevereiro

de 2005; no caso específico do Brasil, a criação da Secretaria Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)22 propiciou um

acúmulo inédito na garantia do recorte racial em várias áreas da política

pública; a conferência possibilitou a conexão do debate nacional com a

construção de políticas públicas de combate ao racismo em âmbito

internacional, uma vez que 17 países estruturaram órgãos governamentais

para o tratamento dessa temática” (Consciência Negra, 2006: 33).

Um informe publicado pelas Nações Unidas a respeito da Conferência

destaca, em suas conclusões,

21 “Organizada pelos governos do Brasil e do Chile, com o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas, a Conferência Regional das Américas reuniu representantes governamentais de 21 estados e de entidades da sociedade civil dos 35 países da América Latina, do Caribe, América Central e América do Norte” (Consciência Negra, 2006: 33). 22 Adiante daremos mais informações sobre a Secretaria.

Page 69: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

69

“Celebramos que a Conferência tenha convocado os protagonistas da

luta contra a discriminação racial, o racismo, a xenofobia e intolerâncias

correlatas da região para dar um novo impulso aos consensos já alcançados

e para fortalecer a promoção da diversidade, da igualdade, da paz e da

democracia nas Américas” (Consciência Negra, 2006: 33).

Ainda sobre as ações realizadas no Brasil, podemos destacar a 1ª

Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), realizada

em Brasília, de 30 de junho a 2 de julho de 2005, para deliberar e discutir os

rumos das políticas públicas de promoção da igualdade racial. Instituída por

decreto presidencial, a Conferência fez parte das atividades alusivas ao Ano

Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que se deu pela intensificação

do debate à implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade

Racial.

A Conapir também foi fruto do processo de luta de diversos

segmentos do movimento negro,

“Com o tema “Estado e sociedade construindo juntos a igualdade

racial”, a conferência mobilizou 95.573 participantes: 92.750 nas etapas

estaduais e 2.823 na nacional. (...) Com base no documento que subsidiou

as conferências preparatórias, foram indicados os seguintes objetivos: refletir

sobre a realidade brasileira, do ponto de vista da sociedade e da estrutura do

Estado, considerando os mecanismos de reprodução da discriminação, do

racismo e das desigualdades raciais; avaliar as ações e políticas públicas

desenvolvidas para promoção da igualdade nas três instâncias de governo,

bem como o cumprimento dos compromissos internacionais objetos de

acordos, tratados e convenções; e propor diretrizes para a Política Nacional

de Promoção da Igualdade Racial e Étnica, considerando a perspectiva de

gênero, cultura e religião” (Consciência Negra, 2006: 34).

Com base nos resultados da 1ª Conapir, foi elaborado o Plano

Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Planapir) que apresenta metas e

diretrizes orçamentárias para inclusão racial, concebido com base no Plano

Plurianual que tem a igualdade racial como tema transversal.

Page 70: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

70

3.7 A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial (SEPPIR)

A Conferência de Durban constituiu um marco importante para a

redefinição da agenda das relações raciais no Brasil. As conclusões finais da

Conferência solicitavam dos países signatários a adoção, quando

necessário, de medidas apropriadas para assegurar que os cidadãos

pertencentes às minorias nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas tenham

acesso a bens sociais fundamentais.

Como responsabilidade iminente dos Estados participantes as

medidas da Conferência deveriam ser aderidas como política nacional

através da construção do Plano de Ação Pós-Durban. Essa tarefa, portanto,

seria herdada pela gestão federal em curso, o governo Fernando Henrique

Cardoso e a futura gestão que se avizinhava com o governo de Luís Inácio

Lula da Silva a empreenderem esforços para elaboração do Plano Nacional

de Promoção da Igualdade Racial.

Com a presença efetiva do movimento negro, como proponente,

participante crítico ou componente do processo de monitoramento da

implementação das políticas públicas, as ações afirmativas apresentaram-se

como desafio à nova gestão. Nesse sentido,

“As políticas de ação afirmativa e a relação com as chamadas “áreas

duras”, como planejamento, economia e infra-estrutura, foram as principais

recomendações do Relatório de Transição do Governo. Acrescente-se a

proposição para criação de um órgão com responsabilidade de coordenação

de políticas, orientado pela transversalidade, incorporando as dimensões de

raça, classe social, gênero e a presença de negros e negras na estrutura do

poder do governo federal” (Ribeiro, 2006: 27).

Seguindo os indicativos da proposição de um projeto voltado para

promoção da igualdade racial, o governo do presidente Luís Inácio Lula da

Silva criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade

Racial (SEPPIR), em 21 de março de 2003, destacando a data instituída pela

ONU – Dia Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação Racial.

Page 71: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

71

A SEPPIR é um órgão de assessoramento direto e imediato ao

presidente da República. Seu objetivo centra-se em,

“Promover a igualdade e a proteção dos direitos dos indivíduos e

grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de

intolerâncias – negros, indígenas, ciganos árabes, palestinos, judeus e

outros, com ênfase à população negra; acompanhar e coordenar políticas de

diferentes ministérios e outros órgãos do governo brasileiro para a promoção

da igualdade racial; articular, promover e acompanhar a execução de

diversos programas com organismos públicos e privados, nacionais e

internacionais; acompanhar e promover o cumprimento de acordos e

convenções internacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito à

promoção da igualdade e ao combate à discriminação racial ou étnica;

auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais em

relação à aproximação de nações do continente africano” (Brasil, 2004: 43).

Em sintonia com esses objetivos da Secretaria, foi elaborada a Política

Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), que apresenta

diretrizes para todas as áreas do governo e para sociedade brasileira. Essa

medida foi incluída no Plano Plurianual (PPA) 2004 – 2007, no capítulo

“Inclusão Social e Redução das Desigualdades Sociais”, com o desafio de

promover a redução das desigualdades raciais,

“Desenvolveu-se um conjunto de ações prioritárias que abrangem

diferentes órgãos governamentais: política para remanescentes de

quilombos; desenvolvimento, trabalho e geração de renda; educação e

cidadania; diversidade cultural e combate à intolerância religiosa; saúde e

qualidade de vida; segurança pública e ordenamento jurídico; políticas de

relações internacionais” (Brasil, 2003-2006: 44).

A SEPPIR também se caracteriza pelo trabalho conjugado com a

sociedade civil, por meio da atuação conjunta com o Conselho Nacional de

Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e o Fórum Intergovernamental de

Promoção da Igualdade Racial (FIPIR)23,

23 “O Fipir agrega atualmente 470 localidades – 23 estados e 447 municípios, dos quais 184 criaram órgãos executivos relacionados à temática racial” (Brasil, 2003-2006: 42).

Page 72: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

72

“O Conselho é um órgão de caráter consultivo composto por entidades

e instituições da sociedade civil representativas dos diversos grupos raciais,

com a finalidade de propor, em âmbito nacional, políticas que visem reduzir

as desigualdades raciais. O Fórum, que em 2005 expandiu sua adesão a 23

governos estaduais e 373 governos municipais, é constituído por

administrações que possuam organismos executivos e ações de promoção

da igualdade racial com o objetivo de consolidar estratégias dentro dessa

finalidade. Instituído em 2005, o Ano Nacional de Promoção da Igualdade

Racial teve como intuito intensificar as articulações políticas para ampliar o

debate sobre a necessidade de implementação imediata de políticas de

ações afirmativas no Brasil, potencializando ações conjuntas entre os

governos federal, locais e sociedade civil” (Brasil, 2003-2006: 46).

No âmbito da educação superior, cenário em que iremos nos ater,

consideramos a atuação da SEPPIR no que diz respeito à elaboração de

proposições legislativas que estabelecem reserva de vagas para estudantes

negros e egressos de escolas públicas nas universidades públicas. A

proposta do governo encaminhada em 13 de maio de 2004 para o

Legislativo, hoje incluída no Projeto de Lei 73/1999, indica a implantação do

sistema de reserva de vagas no ensino superior público para alunos oriundos

de escola pública considerando o percentual de negros e indígenas

proporcionalmente à sua participação na população das respectivas

unidades da federação, segundo os dados do IBGE.

“Essa formulação foi síntese do trabalho realizado pelo Grupo de

Trabalho Interministerial (GTI) coordenado pelo MEC e pela SEPPIR em

2003. Baseou-se na análise dos projetos de lei que tramitavam na Câmara

Federal” (Brasil, 2003-2006: 82).

Desde então, a SEPPIR acompanha a tramitação do projeto nas

comissões pertinentes no Congresso. Nesse sentido, foram monitorados

debates relativos à educação e ações afirmativas no Congresso Nacional

que se propuseram aprofundar diálogos para o encaminhamento dos

projetos de lei para votação.

A SEPPIR também tem apoiado a construção de propostas das

instituições públicas com o objetivo de debater as experiências de reserva de

Page 73: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

73

vagas para negros e indígenas e apontar os caminhos para amadurecer as

questões que cercam o tema das cotas nas universidades a partir da análise

dos casos concretos. Para tanto, em agosto de 2006 foi realizado o

Seminário Experiências de Políticas Afirmativas para Inclusão Racial no

Ensino Superior pela Universidade de Brasília (UNB), a SEPPIR e a

Secretaria de Educação Superior (Sesu/MEC).

No seminário foram apresentados dados que mensuraram o

desempenho acadêmico dos alunos cotistas, os seus rendimentos e a

avaliação do nível acadêmico dos alunos pelos professores.

É inegável que as ações afirmativas estabeleceram-se como pauta

das questões nacionais e encontram-se sob a atenção do Estado brasileiro

ao inserir essa discussão no campo da política pública. A SEPPIR é

resultado desse momento a quem se destina o tratamento da promoção da

igualdade racial a partir da ação conjunta entre governo e sociedade civil.

No caso das universidades que optaram por aderir o sistema de cotas

depararam-se com o fato de que os desafios avolumam-se após a sua

implantação, pois os desdobramentos extrapolam o campus universitário e

se vinculam a negociações e posicionamentos distintos que indicam

caminhos para democratização do acesso e para supressão das

desigualdades na sociedade.

No capítulo seguinte, para entender quais são os desafios impostos

pelas cotas nas universidades traremos a realidade de algumas e as

diferentes formas que assumiram em cada campus, ou seja, as várias formas

de implantação.

Page 74: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

74

CAPÍTULO III Os Aspectos Institucionais da Implantação das Cotas

nas Universidades Públicas

4.1 Ação afirmativa: elementos da agenda

governamental para o ensino superior

A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,

Xenofobia e Intolerâncias Correlatas no ano de 2001 em Durban, constituiu

um marco importante para redefinição da agenda das relações raciais no

mundo. Os parágrafos que seguem no documento da Conferência explicitam

a importância da educação como um mecanismo que pode fortalecer as

medidas de combate ao racismo,

“117. Insta os Estados a trabalharem com outros órgãos pertinentes e

a comprometerem recursos financeiros para a educação anti-racista;

123. Insta os Estados a adotarem e implementarem políticas públicas

que proíbam a discriminação baseada em raça, cor, descendência, origem

nacional ou étnica em todos os níveis da educação, tanto formal quanto

informal; “ (Brasil, 2001: 73; 74).

O ano de 2001 marcou o início das ações afirmativas pelo governo em

diferentes âmbitos, como no caso do nível federal, onde algumas medidas

foram anunciadas ainda durante a Conferência de Durban, com a adoção de

cotas no Ministério do Desenvolvimento Agrário, posteriormente acolhidas

em outros setores do governo (Heringer, 2006).

Em maio de 2002, na gestão do então presidente Fernando Henrique

Cardoso, houve o lançamento do segundo Programa Nacional de Direitos

Humanos (PNDH II) e, simultaneamente o Programa Nacional de Ações

Afirmativas que não se concretizou devido à escassez de recursos

destinados ao Programa e ao intenso clima pré-eleitoral que se aproximava

(Heringer, 2006).

Page 75: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

75

Sob orientação da nova gestão do governo Luís Inácio Lula da Silva e

de um novo quadro institucional, as políticas na área da educação superior,

cenário em que iremos nos ater, passaram por um redesenho. Considerando

as dimensões da desigualdade na educação do país, foram instituídas novas

secretarias, como a SEPPIR, que já consideramos no capítulo anterior e a

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad),

“A Secad surge com o desafio de desenvolver e implementar políticas

de inclusão educacional, considerando as especificidades das desigualdades

brasileiras e assegurando o respeito e valorização dos múltiplos contornos

de nossa diversidade étnico-racial, cultural, de gênero, social, ambiental e

regional (...) O Ministério da Educação (MEC), por intermédio da Secad,

estabelece a prioridade de construir arranjos institucionais que permitam

promover a coordenação e articulação de esforços entre Governos Estaduais

e Municipais, Ongs, movimentos sociais e organismos internacionais, para

ampliar o acesso, garantir a permanência e contribuir para o aprimoramento

de práticas e valores democráticos nos sistemas de ensino” (Cavalleiro;

Henriques, 2005: 218).

Nessa perspectiva, no que se refere ao acesso e à permanência dos

estudantes na educação superior daremos destaque às ações promovidas

pelo MEC em parceria com outros órgãos governamentais.

• Programa Diversidade na Universidade - esse programa começou a

ser discutido ainda em 2001; “o MEC por meio de um contrato de

empréstimo entre o governo federal e o Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), realizou, em 2002, uma experiência piloto sob o

título Projeto Diversidade na Universidade – Acesso à Universidade de

Grupos Socialmente Desfavorecidos. Em novembro de 2002, a Lei nº

10.558, oficializou a criação do Programa Diversidade na Universidade,

no âmbito do MEC, coordenado pela Secad, com a finalidade de

implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino

superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,

especialmente a população negra e indígena. Dentro do escopo do

programa, definiu-se como principal ação o apoio financeiro às

instituições que organizavam cursos preparatórios para o vestibular,

Page 76: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

76

delineados como Projetos Inovadores de Curso (PICs), com o objetivo

geral de apoiar a promoção da equidade e da diversidade na educação

superior. No ano de sua implantação os PICs beneficiaram

aproximadamente 900 jovens” (Cavalleiro; Henriques, 2005: 216).

• Reserva de vagas nas universidades públicas – no dia 20 de

novembro de 2008, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei

73/1999 que reserva 50% das vagas em cada curso e turno de

universidades federais e instituições de ensino técnico, de nível médio,

oriundos de escola pública. As vagas serão distribuídas a candidatos

autodeclarados negros, pardos e indígenas em uma proporção no mínimo

igual à da população do Estado, segundo o censo do IBGE. A principal

mudança feita pela Câmara com relação ao projeto foi a inclusão de um

critério de renda para definir os beneficiados (Cotidiano, 2008). Para a Lei

entrar em vigor, o projeto precisa ser aprovado pelo Senado e sancionado

pelo presidente, no entanto, as instituições já têm adotado diferentes

modelos para aumentar o número de alunos da rede pública, como bônus

e cotas, mas com distintos percentuais de reserva de vagas.

• Programa Universidade Para Todos (ProUni) – criado em 2004 “é

destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para

cursos de graduação em instituições privadas de ensino superior, os

beneficiados são estudantes de escolas públicas, sendo 30% das vagas

reservadas a estudantes negros e indígenas. Em 2005 e 2006 foram

concedidas mais de 200 mil bolsas, entre elas 81.287 aos estudantes

negros e uma porcentagem também para indígenas. Ressalta-se que

esses alunos dificilmente ingressariam nas universidades sem a adoção

dessa medida. O ProUni envolve, por adesão, 1.424 instituições de

ensino universitário em todo o país” (Brasil, 2003-2006: 84;85 ).

• Projeto Uniafro – “junto ao MEC, a SEPPIR incentivou a formulação do

projeto Uniafro com o objetivo de apoiar o fortalecimento e a

institucionalização das atividades dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros

(Neabs) ou grupos correlatos das Instituições Públicas de Educação

Superior. Com isso, buscou-se articular a produção e difusão de

conhecimentos sobre a temática étnico-racial e contribuir para o acesso e

Page 77: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

77

permanência da população negra no ensino superior com vistas a:

incentivar ações de mobilização e sensibilização de instituições de ensino

superior para implementação de políticas de ações afirmativas; contribuir

para a formação de estudantes afro-brasileiros nas instituições de

educação superior, em especial as que adotam sistema de reserva de

vagas” (Brasil, 2003-2006: 85).

• Projeto Afroatitude – “ esse programa foi criado em dezembro de 2004

por iniciativa do Ministério da Saúde em parceria com o MEC e a

SEPPIR. A finalidade é de apoiar a permanência de alunos cotistas nas

Universidades Federais, a partir do seu envolvimento em atividades de

pesquisa na área da saúde da população negra. Foram concedidos por

dois anos consecutivos bolsas de iniciação científica a 550 estudantes

negros cotistas de onze universidades públicas: Universidade de Brasília

(UNB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do

Paraná (UFPR), Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade

Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade do Estado da Bahia

(Uneb), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual

do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Estadual de Minas Gerais

(UEMG), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade

Estadual de Montes Claros (Unimontes). Em relação aos resultados,

destacam-se a criação e o fortalecimento de duas redes – uma de

universidades e uma de alunos para o desenvolvimento de ações e

geração de conhecimento sobre ações afirmativas, direitos humanos e

Aids” (Brasil, 2003-2006: 86).

A partir desses programas descritos acima, entendemos que um

projeto de educação de qualidade deve considerar as diferenças entre a

população. A permanência e a disseminação de formas de exclusão como o

racismo contrapõem-se a esse projeto. Essas ações constituem passos para

a formulação de políticas públicas voltadas para a realização do acesso e

permanência nas universidades calcadas em moldes mais justos, já que os

indicadores do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam a

respeito da escolaridade dos negros que a proporção de pessoas que

concluíram a universidade no país é de “10% de brancos, 2,1% de pretos e

Page 78: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

78

2,4% de pardos; a população jovem de 20 a 24 anos também mostra níveis

expressivos de desigualdades raciais, pois para 53,6% dos brancos

cursando educação superior em nível de graduação, tem-se apenas 15,8%

de pretos e pardos” (IBGE, 2003: 218).

Esses indicadores representam o retrato de uma trajetória no campo

das políticas educacionais que traduz o descontínuo de desigualdade entre

brancos e negros. Nesse sentido, como ponderamos anteriormente, o

relatório do governo brasileiro levado à Conferência de Durban previa a

adoção de cotas para estudantes negros no ensino superior, e sem dúvida,

esse fato contribuiu para que o debate se ampliasse e algumas

universidades passassem a discutir internamente propostas de ações

afirmativas. No entanto, é curioso observar que na década de 1990 duas

universidades públicas se adiantaram nesse processo com propostas de

cotas para estudantes negros, a UNB, a UERJ e Uenf (Universidade

Estadual do Norte Fluminense).

Há uma diferença significativa em todo o processo de admissão da

reserva de vagas nas universidades, desde as discussões internas até a

concretização do projeto. Entendemos, portanto, que essas diferenças

traduzem também o modo como as universidades compreendem o projeto

das ações afirmativas.

A seguir, apresentaremos os aspectos institucionais de algumas

universidades que aderiram as cotas no vestibular.

4.2 As universidades públicas brasileiras

Há cinco anos, algumas universidades públicas começaram a adotar

políticas de democratização do acesso às suas vagas. O Mapa das Ações

Afirmativas na Educação Superior24, pesquisa realizada no ano de 2004 pelo

Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, constatou naquele período que 72

instituições (32% do total das universidades públicas) promoviam algum tipo

de ação afirmativa. O estudo demonstrou também que existem variações

significativas nesse processo de inclusão.

24 Publicado em www.politicasdacor.net.

Page 79: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

79

Essas variações são relativas ao modelo da política pública adotada:

sistema de cotas, sistema de bonificação por pontos, acréscimo de vagas e

outros, além disso, diferem quanto ao grupo promovido pela política, ou seja

a quem se destinam as vagas: negros, indígenas, pessoas portadoras de

deficiência, alunos da rede pública, comunidades tradicionais, mulheres

negras etc.

Esse estudo comparativo entre as formas de inclusão nas

universidades demonstrou, no período investigado, que existe uma ampla

adoção de cotas étnico-raciais. Ao todo, 53 instituições haviam

implementado esse tipo de política. Dessas, 34 universidades possuíam

medidas afirmativas para negros, sendo que 31 se desenvolveram pelo

sistema de cotas e 3 por meio do sistema de bonificação por pontos. Uma

universidade havia adotado um número específico de vagas para mulheres

negras, comunidades tradicionais e 9 universidades para pessoas com

deficiência. No nordeste, 17 instituições estabeleceram medidas somente

para estudantes de escolas públicas e tantas outras se basearam no recorte

sócio-econômico como medida de ingresso independentemente do estudante

ser oriundo de escola pública ou privada25.

Como mencionamos anteriormente, essa pesquisa data do ano de

2004 e, portanto, não contempla o quadro geral de universidades que

aderiram as políticas de inclusão até os dias de hoje já que com o decorrer

dos anos esse número cresceu significativamente. No entanto, entendemos

que a pesquisa seja atual em relação ao formato que as universidades

seguiram aderindo para implantar as medidas de inclusão no seu vestibular.

Para melhor ilustrarmos esses modelos destacamos a seguir dois quadros

comparativos entre algumas universidades:

25 Dados apresentados pela pesquisa O Mapa das Ações Afirmativas na Educação Superior.

Page 80: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

80

Quadro Comparativo – Formas de Implantação das Cota s UERJ/UENF UNEB UNB UEA UFAL UFPR Leis Estaduais nº 3542/2000 e 3708/2001 revogadas pela Lei nº 4151/2003 segundo programa de cotas legitimado pelo CONSU

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 196/2002

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 38/2003

Lei Estadual nº 2894/2004, programa de cotas votado pelo CONSU

Programa de cotas instituído pelo CONSU através do edital nº 01/2004

Programa de cotas instituído pelo CONSU através da resolução nº 37/2004

UNIFESP UEL UEMS UEMG UFBA UNIMONTES Programa de cotas (acréscimo de vagas) implantado pelo CONSU através de Resolução nº 27/2005

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 78/2004

Leis Estaduais nº 2589/2002 e nº 2605/2003

Lei Estadual nº 15.259/2004 legitimado pelo CONSU

Programa de cotas implantado pela resolução nº 01/2004

Lei Estadual nº 15.259/2004 implantado programa de cotas legitimado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão através da Resolução nº 104/2004

UFTO UNICAMP UNEMAT UFJF UFRN UFPA Edital coordenado e executado pelo CONSU

Programa de acréscimo de pontos implantado pelo CONSU em 24/05/2004

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 200/2004

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 56/2004

Programa de cotas implantado pelo CONSU em 05/07/2005

Programa de cotas implantado pelo CONSU através de Resolução nº 31/2005

Fonte: www.politicasdacor.net

Page 81: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

81

Quadro Comparativo – Reserva de Vagas UERJ/UENF UNEB UNB UEA UFAL UFPR Reserva de 20% das vagas para negros; 20% para alunos de escolas públicas; 5% para deficientes físicos e outras minorias étnicas.

Reserva de 40% das vagas para estudantes negros, oriundos de escolas públicas.

Reserva de 20% das vagas para estudantes negros.

Reserva de 60% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas; 4% para indígenas.

Reserva de 20% das vagas para estudantes negros oriundos de escolas públicas, sendo que desse total 60% são para mulheres e 40% para homens.

Reserva de 20% das vagas para estudantes negros; 20% para estudantes oriundos de escolas públicas.

UNIFESP UEL UEMS UEMG UFBA UNIMONTES Acréscimo de 10% das vagas para estudantes negros e indígenas oriundos de escolas públicas.

Reserva de 40% das vagas para estudantes de escolas públicas, sendo que desse total 20% são para negros.

Reserva de 20% das vagas para estudantes negros oriundos de escolas públicas e 10% para indígenas.

Reserva de 20% para estudantes negros, 20% para egressos de escolas públicas e 5% para portadores de deficiência e indígenas.

Reserva de 45% das vagas, desse total 43% para estudantes egressos de escolas públicas sendo que 85% desse percentual é reservado para negros e 2% para indígenas; 2 vagas para índios aldeados e 2 vagas para quilombolas.

Reserva de 20% das vagas para estudantes negros, 20% para egressos de escolas públicas e 5% para portadores de deficiência e indígenas.

UFTO UNICAMP UNEMAT UFJF UFRN UFPA Reserva de 5% das vagas de cada curso para estudantes indígenas.

Estabelece um sistema de 30 pontos para candidatos oriundos de escolas públicas ou supletivo (EJA) e mais 10 pontos para candidatos negros e indígenas.

Reserva de 25% das vagas de cada curso para estudantes negros.

Reserva de 50% das vagas de cada curso para alunos egressos de escolas públicas, sendo que desse total 20% são para estudantes negros.

Reserva de 50% das vagas de cada curso para estudantes egressos de escolas públicas.

Reserva de 50% das vagas para alunos egressos de escolas públicas, sendo que 40% desse total são para negros.

Fonte: www.politicasdacor.net

Como não temos a pretensão formal de analisar esse processo em

um grande número de universidades públicas, descreveremos com mais

detalhes a seguir a iniciativa de três no que diz respeito à implantação das

cotas.

Page 82: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

82

4.3 A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj )

4.3.1 As primeiras leis que definiram as cotas na U erj

A Uerj e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) se

tornaram os primeiros casos emblemáticos sobre a discussão do sistema de

cotas nos vestibulares.

Já destacamos a importância que os resultados da Conferência de

Durban representaram para criar esferas institucionais que permitissem aos

setores organizados da sociedade civil propor e questionar as políticas que

são pensadas na área da educação. Pois bem, esse momento fortaleceu os

movimentos sociais, cujas ações pressionaram os governos federal e

estadual, bem como os representantes do Poder Legislativo nessas duas

instâncias,

“O mais significativo resultado desse movimento foi a criação de uma

lei estadual instituindo cotas raciais nas universidades públicas vinculadas ao

governo do Estado do Rio de Janeiro (Uerj e Uenf). Essa medida colocou a

democratização do acesso à universidade como ponto central nas políticas

sociais” (Santos, 2006: 112).

A lei que deu origem às cotas raciais nas universidades foram geradas

a partir de um projeto enviado por um parlamentar,

“Cujo partido tinha um assessor com destacada atuação no campo

das lutas anti-racismo, esse assessor sugeriu a medida, e o parlamentar,

ainda que sem envolvimento com a temática racial submeteu o projeto, que

foi aprovado por unanimidade pela Assembléia Legislativa e sancionado pelo

governo do Estado, na forma da lei nº 3.708, de 9 de novembro de 2001:

“Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as populações negra e

parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da

Uerj e Uenf”. A aprovação da lei deixou questionamentos a respeito do tópico

que determinava a responsabilidade do governo do estado em relação à

alocação de recursos para implantação de medidas visando garantir a

permanência dos alunos ingressantes pelo sistema de cotas; os proponentes

silenciaram-se quando da emergência de polêmica e contestações em

Page 83: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

83

âmbito nacional contra a implantação da política” (Jornal Informativo Uerj,

2002).

Essa lei que instituía a reserva de vagas na universidade por critérios

raciais veio, na verdade, se somar e depois se sobrepor a outra, a Lei nº

3.524, de 28 de dezembro de 2000, que reservava 50% das vagas a

estudantes que tivessem cursado integralmente os ensinos fundamental e

médio em escolas públicas,

“Essa lei orientava uma inovação no vestibular da Uerj, que, em médio

prazo, visava modificar a própria relação entre a universidade e o sistema de

ensino básico, com a gradativa construção de um sistema de avaliação

continuada da trajetória escolar dos candidatos do ensino público, ou seja,

que as possibilidades de ingresso desses alunos não fossem definidas a

partir de um exame, mas sim de vários ao longo do curso de seu ensino

médio. Foi, para isso, implantado um sistema que dividia as vagas da

universidade em dois vestibulares, um voltado para os alunos egressos da

rede pública, chamado Sistema de Acompanhamento de Desempenho

Escolar (SADE), e outro para os estudantes que tivessem cursado pelo

menos parte de seus estudos nos níveis fundamental e médio na rede

privada, denominado Vestibular Estadual” (Jornal Informativo Uerj, 2002).

Naquele momento, para compatibilizar as duas leis, uma que

determinava o preenchimento de 50% das vagas por estudantes de escolas

públicas do Estado do Rio de Janeiro e outra que determinava o

preenchimento de 40% das vagas por negros e pardos, foi instituído o

decreto nº 30.766/2002, que regulamentava a lei de reserva de vagas

segundo critérios raciais definindo que essas vagas fossem preenchidas da

seguinte forma,

“Primeiro verificava-se a quantidade de autodeclarados negros e

pardos classificados para cada carreira no âmbito do SADE; em seguida, as

vagas faltantes para completar os 40% eram preenchidas chamando-se

outros candidatos autodeclarados negros e pardos, tanto no âmbito do Sade

quanto do Vestibular Estadual, aí importando a classificação relativa interna

ao grupo dos autodeclarados, e não sua classificação geral” (Santos,

2006:114).

Page 84: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

84

Em meio à polêmica já então instaurada, e com uma clara campanha

contrária às cotas naquele ano dizia-se que todas as vagas da universidade

seriam preenchidas por cotas, pois, além dessas duas leis, no início de 2003

foi sancionada a Lei nº 4.061, que garantia a reserva de 10% das vagas nas

universidades públicas do estado a alunos portadores de deficiência.A

polêmica se estendeu mesmo após a redefinição da medida no vestibular de

2003.

Nesse sentido, ao final, as duas primeiras leis mencionadas foram

revogadas pela lei estadual nº 4151/2003 que conferia as regras e os

princípios para definir a seleção e o preenchimento das vagas,

“Art. 2º I - autonomia universitária; II – universalidade do sistema de

cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos; III – unidade do processo

seletivo” 26.

A partir de então o programa de cotas foi discutido e legitimado pelo

Conselho Universitário (CONSU). As cotas ficaram assim definidas: 45% do

total de reserva de vagas distribuídas em 20% para negros, 20% para

estudantes da rede pública e 5% para deficientes físicos e outras minorias

étnicas. Em segundo lugar, não se fez mais a divisão equivocada de pardos

e negros. Em terceiro lugar, a novidade foi a introdução do critério de renda

para concorrer as cotas. Esse novo modelo das cotas foi iniciado no

vestibular de 200427.

4.3.2 O vestibular 2003

O primeiro vestibular realizado após a aprovação das leis estaduais foi

no ano de 2003, e deu-se sob as reações internas e externas a universidade.

Na comunidade acadêmica muito se alardeou o fato da política ter sido

definida por lei estadual, mobilizando como argumentos centrais,

“O ferimento à autonomia universitária e que o processo era

antidemocrático, definido de cima para baixo ou de fora para dentro. Isso nos

alerta para dois aspectos: primeiramente, em certa medida, por não

26 Consulta realizada no site: www.vestibular.uerj.br. 27 Consulta realizada no site: www.vestibular.uerj.br.

Page 85: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

85

observarem os processos políticos de construção dessas leis, tais

argumentos representavam uma crítica à representatividade da classe

política eleita pelo voto popular; em segundo, e de outro lado, diante da força

da construção institucional de nossa sociedade, torna-se efetivamente difícil

implantar uma política dessa envergadura sem um diálogo com a

comunidade que aponte a significação positiva dessa iniciativa” (Santos,

2006: 114; 115).

Sob o signo de uma polêmica na qual se sobressaíam as reações

negativas, questionavam-se, sobretudo a ineficácia da política. A forma como

foi definida a política, ou seja, por força da lei aplicada por uma decisão

externa à comunidade acadêmica, acabou por enfraquecer qualquer

posicionamento favorável à medida. Entretanto, quando da divulgação dos

resultados do vestibular, a polêmica ganhou novos contornos, instaurando-se

em outras esferas e assumindo um grau de publicização até então não

observado, já que se tratava da introdução de critérios sociais e raciais na

definição do acesso à universidade,

“A divulgação dos dados sobre os resultados do primeiro vestibular

com cotas na UERJ em 2003 em muito potencializou tais resistências. A

forma como os dados foram divulgados, sem um tratamento e uma

exposição mais complexa das diferentes situações de cada curso pela

universidade, permitiu a extremização de argumentos que contradiziam não

os resultados, mas, em última análise, a própria natureza da política. O

alarde feito em relação às baixas notas de alunos ingressantes por cotas em

alguns cursos, por exemplo, foi uma crítica à natureza das cotas em si, que é

tratar desigualmente os desiguais, e, portanto, aceitar na universidade

candidatos com diferentes bagagens de formação e patamares distintos de

notas” (Santos, 2006: 115; 116).

O fato de haver ingressado estudantes com pontuação inferior em

relação às de outros que disputavam vagas não-reservadas, imprimiu uma

questão de solução posterior na universidade por meio da mobilização de

Page 86: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

86

esforços pela permanência qualificada e pela correção de eventuais

distorções de formação que esses alunos trariam do ensino médio28.

Um dado importante no processo seletivo de 2003 revelou que nem

todo estudante cotista foi beneficiado pelas cotas, ou seja, aqueles que

ingressariam independentemente da reserva de vagas, habilitados pela sua

pontuação,

“Dos 63,5% de ingressantes cotistas, 22,3% (praticamente um terço)

ingressariam sem a reserva, ou seja, são considerados cotistas, computados

para fins de preenchimento das vagas reservadas e atendimento às leis, mas

não foram beneficiados” (Jornal Informativo Uerj, 2003).

4.3.3 Os primeiros programas de permanência

Em meio aos acalorados debates no seio da comunidade acadêmica,

no primeiro semestre do ano letivo de 2003, ingressaram na universidade os

primeiros alunos cotistas. A primeira idéia que emergiu naquela ocasião era

que ingressariam na universidade alunos com um perfil radicalmente distinto

daqueles que a ocupavam,

“A universidade já tinha, em quantidade considerável, alunos de baixa

renda, oriundo do sistema de ensino público, contudo, há duas diferenças:

primeiro, até aquele momento, esses alunos concentravam-se nos chamados

cursos de “baixo prestígio social”, aqueles cujo vestibular é menos

concorrido; segundo, a entrada desses alunos agora é marcada por um traço

diferenciador no seu processo de acesso, o que permite a sua

estigmatização” (Santos, 2006: 122; 123).

A Reitoria da UERJ, preparando-se para implantação do sistema de

cotas, criou em 2002 uma comissão para elaborar um diagnóstico da

situação dos alunos e da universidade e para apontar também necessidades

e propostas a fim de garantir a permanência dos novos alunos no ano

seguinte,

28 “Os cursos aludidos de menor pontuação no vestibular 2003 foram Ciências Biológicas (São Gonçalo), Engenharia Civil, Engenharia Mecânica, Engenharia de Produção (Resende), Engenharia Elétrica, Física, Matemática (São Gonçalo), Odontologia, Pedagogia (Caxias) e Ciências Econômicas” fonte: www.uerj.br.

Page 87: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

87

“Essa comissão contou, além de professores e funcionários da

universidade, com representantes dos movimentos do campo dos Pré-

Vestibulares Populares e da ONG Educafro” (Santos, 2006: 123).

A comissão valendo-se dos censos realizados pela universidade

produziu as seguintes constatações como base para constituição de suas

propostas:

• “A universidade já contava com significativo número de alunos

com renda insuficiente para enfrentar os desafios e as

necessidades colocadas pelos cursos universitários, e esse

número vinha crescendo nos últimos anos. Um exemplo era o

aumento do ingresso anual dos alunos oriundos de famílias

com renda mensal de até cinco salários mínimos, o número

havia passado de 843 em 2001 para 1.140 em 2002, e

estimava-se que se aproximaria de 1.500 em 2003;

• Naquele momento, 31,9% dos alunos da universidade

pertenciam a famílias cuja renda era de até oito salários

mínimos. Além disso, corroborando com a tendência de

aumento do ingresso de estudantes mais pobres na

universidade, entre 1997 (ano de realização do primeiro censo)

e 2002, o percentual de alunos com renda familiar até quatro

salários mínimos subiu de 8% para 10,7%;

• A maioria dos alunos da universidade, já naquele momento,

eram os primeiros de suas famílias (ou membros da primeira

geração delas) a ingressar em cursos de nível superior. Apenas

36,4% dos pais e 29,6% das mães dos alunos da universidade

já tinham cursado nível superior;

• Em 2002, portanto antes da reserva, cerca de 30% dos alunos

da universidade autodeclaravam-se negros ou pardos;” 29.

Tomando esses dados como prioritários, a comissão elaborou um

conjunto de propostas que estruturariam um plano para permanência dos

estudantes, a ser executado pelo Programa de Apoio ao Estudante (PAE).

29 Consulta realizada no site www.politicasdacor.net .

Page 88: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

88

Das propostas apresentadas, algumas foram executadas tal qual a versão

original, outras sofreram adequações e alterações, e outras não foram

executadas, por dificuldades de mobilização interna ou por falta de aportes

externos esperados, foram as seguintes:

• “Criação de 1.500 bolsas exclusivas para alunos do primeiro

ano com renda familiar até cinco salários mínimos com a

contrapartida de participar em atividades acadêmicas

extracurriculares. Em sua maioria os alunos beneficiados

deveriam ser negros;

• Aumento contínuo das bolsas já existentes à taxa de 700/ano,

por três anos consecutivos, a partir de 2004, o que daria ao

aluno carente uma boa chance de se manter, nos anos

seguintes, em condições de concorrer às bolsas por seleção

acadêmica, visto que as 1.500 aludidas acima contemplariam

apenas seu primeiro ano de formação;

• Atualização e informatização das 18 bibliotecas da UERJ, com

aquisição de 7 mil exemplares/ano;

• Reestruturação da orientação acadêmica com o intuito de

oferecer maior apoio, em sistema de tutoria, inicialmente

pensado para atender aos alunos com dificuldades de

aprendizagem. Esse trabalho vem sendo iniciado para todos os

alunos cotistas bolsistas, com professores de cada

departamento acompanhando até mesmo a participação dos

alunos bolsistas em atividades acadêmicas extracurriculares30”.

O Programa de Apoio ao Estudante, definido para executar tais

propostas,

“Foi então orçado em pouco mais de 12 milhões e 600 mil reais para o

ano de 2003, dependendo de recursos que deveriam provir do governo do

estado. Como de tais recursos apenas parte foi liberada através de pressão

da universidade e de movimentos sociais junto ao governo, o Programa foi

executado apenas parcialmente” (Jornal Informativo Uerj, 2003: 2).

30 Consulta realizada no site www.politicasdacor.net .

Page 89: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

89

Além dessas propostas visando à permanência executados pela

reitoria, há iniciativas pontuais como o Projeto Espaços Afirmados, vinculado

ao Programa Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj31.

“O Espaços Afirmados é um projeto de permanência que atendeu a

alunos das áreas de educação e humanidades da primeira turma de cotistas

do ano de 2003 e conta com suporte financeiro da Fundação Ford. O projeto

teve seu término previsto para o final de 2004. Este iniciou seu trabalho com

alunos cotistas ingressantes na universidade no primeiro semestre letivo do

ano de 2003 no mês de junho. As atividades contemplaram um total de 156

alunos, selecionados dentre 396 candidatos” (Portal PPCor, 2005)32.

Em relação à estrutura do projeto Espaços Afirmados, estão definidos,

• Eixos de atuação: fortalecimento acadêmico, fortalecimento

instrumental, fortalecimento político-cultural, incentivo à

produção e ao protagonismo, monitoria e acompanhamento

individual dos alunos; (Portal PPCor, 2006)

• Atividades desenvolvidas no projeto: iniciação à pesquisa e

ciclo de palestras, curso de informática (comunicação digital),

curso de Braille, oficinas de teatro, memória histórica e

movimentos sociais, cursos sobre liderança comunitária e

atualização em história negra e ciclos de cinema, visitas a

museus e instituições; boletim Espaços Afirmados, página dos

alunos na Internet, comissão pró-cotas e apoio à trajetória

acadêmica do aluno. (Portal PPCor, 2006).

O projeto prima não pelo fortalecimento sócio-econômico do aluno, ou

seja, não trabalha pela escassez de recursos, mas, sobretudo, complementa

outras propostas com o objetivo de potencializar a qualidade na garantia da

permanência dos alunos, contribuir para a formação de laços e redes de

solidariedade entre os estudantes que também são consideradas

31 Renato Emerson do Santos, autor citado por nós no presente texto, é coordenador do Programa Políticas da Cor (PPCor), vinculado à UERJ, um programa que atua como um observatório ao reunir informações e dados sobre as universidades que aderiram às cotas na América Latina. 32 www.politicasdacor.net .

Page 90: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

90

fundamentais para sua permanência na universidade. Alguns resultados

puderam ser conferidos,

“Entre os alunos que participaram do projeto, 88% tiveram, no primeiro

semestre de 2003, aprovação em todas as disciplinas que cursaram. No

segundo semestre daquele ano, este índice foi de 82%; e a inserção de 36

alunos em projetos de pesquisa e extensão (com bolsa) na universidade e

fora dela” (Santos, 2006: 130).

O projeto desenvolvido na universidade em prol da geração de

condições que garantam a permanência dos estudantes que ingressam pelo

sistema de cotas, também revelou a dificuldade de cooperação da UERJ no

sentido de divulgar dados e informações mais precisas. Santos pondera que

através do projeto Espaços Afirmados foi possível observar a ausência de

um sistema de acompanhamento e avaliação sólidos da instituição que seja

capaz de extrapolar a mera observação do comportamento dos alunos e

abarque também o comportamento da instituição, ou seja, o seu grau de

comprometimento no que diz respeito aos esforços para criar um ambiente

mais inclusivo para os estudantes. Pois da maneira que tem se tratado os

dados corre-se o risco de reforçar idéias como a de que o fracasso das cotas

é de responsabilidade individual do aluno.

4.4 A Universidade de Brasília (Unb)

4.4.1 A proposta das cotas para estudantes negros

Para entender o caminho percorrido pela universidade, não só em

números, mas do ponto de vista dos atores que acompanharam o processo

de implantação das cotas, realizamos visita na UNB no ano de 2007 e fomos

recebidos por representantes do EnegreSer – Coletivo Negro no Distrito

Federal e Entorno. Dois dos seus representantes nos contaram um pouco da

história de formação do grupo e da trajetória de aprovação das cotas na

universidade,

“O EnegreSer foi criado em 2001como resposta a um ato de violência

policial no Centro Comunitário da Unb, me lembro como se fosse hoje eu e

mais uns amigos começamos a nos perguntar quando será que nós negros

Page 91: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

91

deixaremos de ser alvo da polícia. Aquele ato de violência nos incomodou de

tal forma que resolvemos nos juntar e criamos o EnegreSer, um espaço

apartidário que desenvolve ações que visam pautar a luta negra tanto fora

quanto dentro do campus da universidade intervindo nos processos que

tocam de perto os interesses da população negra. O Coletivo prima pela

valorização da cultura negra e a construção de uma identidade que tem

como pilar a valorização de mulheres e homens negros e entre nossas

principais lutas está as cotas raciais na Unb, acho que em poucas palavras é

isso” (entrevistado B).

A Unb é considerada uma das universidades pioneiras na discussão

das ações afirmativas no ensino superior e esse coletivo de estudantes

negros desempenhou um papel importante nas fases iniciais do debate,

“ Na Unb, os debates vêm acontecendo desde 1985, mas ganharam

força logo depois da Conferência de Durban. A primeira reunião ainda em

2001teve a presença da representante brasileira nesse encontro na África do

Sul, a Edna Roland. A partir daí, movimentos negros, como o EnegreSer e o

pessoal do Neab, que é o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da universidade

se articularam. Daí em diante, com base nas discussões que todos nós

realizamos, no dia 8 de março de 2002, os professores José Jorge Carvalho

e Rita Segato, do Departamento de Antropologia da Unb, apresentaram na

época o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Unb ao

Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Ah! já ia me esquecendo, foi em

1999 que esses mesmos professores haviam apresentado o primeiro projeto

de cotas após um caso concreto de discriminação na universidade. Depois

voltamos nesse fato, bom, a proposta do Plano incluía a reserva de 20% das

vagas no vestibular para negros. A gente já sabia, e quando eu digo a gente

são os negros e as pessoas favoráveis as cotas, que isso ia esquentar o

campus. Bom continuando, mais de um ano depois, no dia 6 de junho de

2003 a adoção da ação afirmativa foi aprovada e me lembro que foram 24

votos favoráveis, um contrário e uma abstenção, o conselho criou uma

comissão formada por cinco professores e uma aluna, além de nós do

EnegreSer, esse grupo ficou então responsável por estudar a melhor forma

Page 92: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

92

de implementar o sistema. Posso te dizer que houve uma certa disputa pra

integrar esse conselho, na época era novidade as ações afirmativas e

interessava muitas pessoas. Retomando, ao final de nove meses de estudo

da proposta a comissão formulou dois documentos que resumem os

mecanismos de aplicação do plano de metas e integração que também

foram aprovados pelo Cepe. Um deles é o convênio entre a Unb e a Funai,

assinado em 12 de março de 2004. O Convênio previa que os indígenas

aprovados em um teste de seleção começariam a estudar na universidade

no semestre de 2004. Eu posso te dizer que esses foram os primeiros

passos na universidade” (Entrevistado C).

O Plano de Metas para a Integração Étnica, Racial e Social citado pelo

nosso entrevistado possui três objetivos fundamentais,

“a) uma cota de 20% das vagas para candidatos negros em todos os

cursos de graduação; b) admissão de estudantes indígenas, por meio de

cooperação com a Fundação Nacional do Índio (Funai); c) intensificação de

atividades de apoio ao sistemas de escolas públicas local” (Mulholland, 2006:

183).

Como relatado por nosso entrevistado o primeiro projeto de cotas na

universidade foi apresentado por dois professores do Departamento de

Antropologia entre outro fatores, os autores teriam sido motivados a elaborar

a proposta depois de uma denúncia de racismo no programa de pós-

graduação em Antropologia Social,

“Como eu disse no começo da entrevista houve um caso de

discriminação que impulsionou dois professores a criar o projeto das cotas.

Foi em 1998, iniciou-se o que ficou conhecido como “caso Ari” na Unb. Um

doutorando negro, homossexual e baiano, da pós-graduação da Antropologia

Social, ao que tudo indica, foi discriminado ao cursar uma disciplina

obrigatória do programa. O drama do Ari começou no primeiro semestre do

ano letivo de 1998, quando, recém-aprovado no programa cursou uma

disciplina ministrada por um professor, na época se não me engano era o

professor Dr Klaas Woortmann, a disciplina não vou arriscar dizer porque não

me lembro qual era. Enfim, no final do semestre o Ari foi sumariamente

reprovado, então ele encaminhou pedidos para a revisão de notas, ele foi a

Page 93: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

93

três instâncias administrativas da Unb, todas elas indeferiram o recurso.

Finalmente, em 19 de maio de 2000, uma quarta instância, o Conselho de

Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe) discutiu o caso pela segunda vez e

reconheceu que o Ari tinha sido reprovado injustamente e lhes concederam o

crédito devido foram 22 votos a favor e 4 contra. Posso dizer por nós

acreditamos que havia fortes indícios de crime de racismo, houve quem

discordasse mas nós apoiamos o Ari até o fim do caso” (Entrevistado B).

Esse acontecimento relatado por nosso entrevistado deixa claro que

os professores citados reagiram ao fato criando em 1999 a primeira versão

do projeto de implementação de um sistema de cotas raciais na

universidade. No ano de 2002, os mesmos professores apresentaram uma

nova versão revisada e ampliada dessa proposta, aprovada no ano de 2003

pelo Conselho Universitário através da Resolução nº 38/2003 que prevê 20%

das vagas reservadas para estudantes autodeclarados negros.

A decisão pelo projeto das cotas raciais não se baseou em

imperativos legais ou legislações, como pudemos observar, antes,

amadureceu no curso do debate em torno das questões relacionadas à

discriminação racial e étnica, à oportunidade e a necessidade de implantar

ação afirmativa no ensino superior e o papel da universidade pública na

promoção da mudança do quadro social no Brasil.

4.4.2 O vestibular 2004

As cotas para estudantes negros foram implantadas no vestibular do

segundo semestre de 2004 por meio de adaptações do procedimento

tradicional, o qual envolveu um conjunto de mudanças administrativas. Com

base nas discussões preliminares, as cotas foram especificadas como

reservas a candidatos negros, a partir da escala de autoclassificação do

IBGE: preto, pardo, branco, amarelo e indígena.

Os candidatos indicavam suas preferências de curso e era-lhes

oferecida a escolha entre o sistema de cotas ou o sistema universal, ou seja,

o tradicional,

Page 94: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

94

“Os que escolhiam o sistema de cotas (4.194 de um total de 27.397)

eram solicitados a indicar sua cor e o quanto se consideravam negros. Uma

fotografia padronizada de cada candidato às cotas foi parte dos

procedimentos de sua inscrição” (Unb Notícias, 1: 2004).

No que diz respeito à distribuição das opções de curso dos candidatos

do sistema de cotas diferenciava-se ligeiramente daquela dos candidatos

fora do sistema, mostrando que,

“Entre as 61 alternativas, houve uma maior concentração nos cursos

de ciências humanas e sociais e uma concentração menor em profissões da

área da saúde, um resultado observado também em outras universidades.

Isso provavelmente reflete as representações que os estudantes negros

brasileiros têm de si mesmos e da sociedade na qual vivem e constitui um

tópico de pesquisa dentro das nossas avaliações. A demanda média

(candidato por vaga) foi de 11 no sistema de cotas e de 15 no sistema

universal” (Unb Notícias, 2: 2004).

Em relação à metodologia de seleção adotada pela universidade, cada

inscrição no sistema de cotas foi submetida a um processo de triagem inicial

designado para limitar a lista final a candidatos que se enquadrassem nos

critérios anteriores, usando a fotografia como controle,

“Em outras universidades o método de seleção no sistema de cotas

mostrou um alto grau de abuso, ou seja, os chamados “fraudadores raciais”

condenados por alguns alunos, principalmente aqueles ligados a movimentos

sociais, que se utilizam das cotas para ingressar na universidade, portanto,

com base nos fatos que já haviam ocorrido, optamos por associar a

autoclassificação com outro método de controle, optamos então pelo uso da

fotografia” (Unb Notícias, 3: 2004).

Utilizando essa lógica, a Unb criou uma comissão avaliadora da

identidade racial dos candidatos com base em fotografias que revelassem

seus traços fenotípicos, ao que se somou posteriormente a uma entrevista.

Para além da problemática avaliação da eficácia dessa medida, cabe lembrar

as questões éticas que ela suscita. Os nomes dos candidatos que não são

considerados negros pela comissão julgadora são divulgados pela

universidade, expondo-os a retaliações públicas, mas os dos membros da

Page 95: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

95

comissão são mantidos em segredo, talvez pelo fato do reconhecimento do

caráter problemático de avaliação e julgamento. Além disso, os critérios de

identificação racial e o conteúdo das entrevistas também são mantidos em

segredo, o que por vezes levanta a questão da sua possível arbitrariedade33.

A comissão que avaliou os candidatos às cotas era composta por,

“Representantes do corpo docente, funcionários, estudantes e

membros externos. Concluiu-se que 212 (4,7%) candidatos ao sistema de

cotas não cumpriam os critérios estabelecidos. Eles podiam, entretanto,

apelar contra a decisão da comissão. Trinta e quatro deles o fizeram,

apresentando seus argumentos. Todos foram submetidos a entrevistas

gravadas. Uma comissão revisou as apelações e readmitiu 21 deles ao

sistema de cotas. Os outros 13 foram transferidos para o sistema universal”

(Unb Notícias, 3: 2004).

Todos os candidatos prestaram os mesmos exames na mesma data,

independentemente do sistema de admissão escolhido. Não houve distinção

entre os candidatos, todos os exames foram corrigidos da mesma forma.

Notas mínimas para cada exame e para a nota final foram observadas,

“Essas notas mínimas eliminaram 40% dos candidatos do sistema

universal e 57% dos candidatos do sistema de cotas. Os candidatos do

sistema de cotas foram então classificados para preencher as vagas do

sistema e os demais foram transferidos para o sistema universal, no qual

competem pelas vagas com os candidatos deste último. Por fim, as vagas do

sistema universal foram preenchidas com candidatos de ambos os sistemas,

classificados conjuntamente segundo sua nota final. Dessa maneira, os

candidatos ao sistema de cotas tinham duas chances de admissão, e as

cotas de 20% vieram a definir uma participação mínima, mais do que

máxima, dos estudantes negros no processo de admissão” (Unb Notícias, 3:

2004).

Em relação ao quadro geral dos números,

“Os candidatos do sistema de cotas preencheram 378 das 392 vagas

a eles destinadas. Sobraram apenas algumas vagas em música e

33 Informações coletadas no site www.unb.br .

Page 96: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

96

engenharia civil, por falta de candidatos com um desempenho suficiente nos

exames. Essas vagas foram preenchidas por candidatos dos sistema

universal. Em 6 dos 61 cursos, estudantes do sistema de cotas teriam sido

aprovados independentemente do sistema. Em 15 cursos, nenhum estudante

do sistema de cotas teria sido aprovado fora dele. No todo, 60% dos

candidatos do sistema de cotas beneficiaram-se; 40% teria sido aprovado

sem ele” (Unb Notícias, 3: 2004).

A Unb também se preocupou em levantar os números em relação as

diferenças socioeconômicas entre os estudantes aprovados por cada um dos

dois sistemas e revelou que,

“A renda familiar mensal dos estudantes do sistema universal era de

R$ 5.000,00 ou mais (24% dos casos). Para os estudantes do sistema de

cotas, a renda modal ficava na casa dos R$ 750,00 a R$ 1.500,00 (21% dos

casos), ou seja, consideravelmente inferior. Enquanto 33% dos estudantes

do sistema universal vinham de escolas públicas, esse era o caso para 56%

dos estudantes do sistema de cotas” (Unb Notícias, 4: 2004).

No momento da publicação desses dados do vestibular de 2004

estava em curso o processo de admissão para o primeiro semestre de 2005,

“Havia 4.913 candidatos no sistema de cotas e 23.384 no sistema

universal, o que mostra um certo grau de estabilidade na demanda. O total

de alunos cotistas matriculados em 2005 foi de 949 de um total de 19.636”

(Unb Notícias, 3: 2004).

Depois da primeira experiência do vestibular com o processo de

admissão das cotas, chegou-se a conclusão de que houve uma grande

procura pela inscrição no novo sistema e que era preciso refinar a

metodologia de candidatura e seleção dado o alto grau de discordâncias que

gerou, mas, no geral, o fato de adotar algum tipo de reserva de vagas para

estudantes negros comprova que tem se mostrada acertada essa iniciativa

por associar-se às demandas contemporâneas a favor da igualdade de

oportunidades.

Page 97: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

97

4.4.3 Programas de apoio aos cotistas

Com a implantação das cotas foram pré-estabelecidos pela

Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas34 alguns resultados que

deveriam ser atingidos:

“a) garantia do acesso da população negra ao ensino superior; b)

aprimoramento da capacidade de aprendizagem da comunidade acadêmica

para conviver em ambientes com maior grau de diversidade; c) associação

dos negros a símbolos de poder, autoridade e prestígio; d) redirecionamento

do futuro da sociedade; e) combater o racismo criando ambientes de

interação35;” .

Resulta evidente, que uma medida como as cotas para negros

desafiam o hábito na sociedade brasileira e necessita de novos mecanismos

institucionais que garantam seu bom funcionamento. A meta, trazer mais

alunos negros para universidade, implica uma intensificação da convivência,

da aplicação de recursos que atuem como apoio as novas necessidades que

surgiram no campus e, provavelmente uma exposição maior de conflitos.

Portanto, para “novos problemas” é preciso pensar “novas soluções”, para

tanto, destacaremos alguns projetos que já estão sendo encampados pela

universidade e outros que ainda não se concretizaram.

Dos que ainda não se realizaram,

“a) Comitê de Apoio Psico-pedagógico: formado por professores

especialmente treinados e esclarecidos sobre o tema da discriminação racial

que terão a cargo o acompanhamento pedagógico e o apoio psicológico dos

estudantes;

b) Comissão de Avaliação Permanente: destinada a observar o

funcionamento da medida, avaliar seus resultados periodicamente, sugerir

ajustes e modificações e identificar aspectos que prejudiquem a sua

eficiência;

c) Ouvidoria: constituída de tal forma que seu titular, apoiado por uma

equipe, combine as atribuições de um ouvidor jurídico, um ombudsman

34 Se trata de um setor criado na UnB após a implantação das cotas. 35 Todas as citações desse tópico foram coletadas em visita ao Centro de Convivência Negra da UnB, onde nos instruíram a buscar esses dados e informações pelo site www.unb.br/cotas .

Page 98: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

98

jornalístico e um corregedor; um órgão para promover a inclusão de pessoas

negras e membros de outras minorias e categorias vulneráveis na

universidade; construir um observatório de denúncias de racismo; ” .

Dos projetos que estão se realizando na universidade destacamos,

“Oportunidades de estágio e pesquisa; eventos relativos à população

negra; impressão e distribuição de cartilhas e produção de cartazes e

outdoors para divulgação do sistema de cotas a estudantes da periferia;

bolsa alimentação, bolsa livro e bolsa permanência; serviço de orientação ao

universitário; Centro de Convivência Negra36; site de apoio aos cotistas:

www.unb.br/cotas; E-grupo Cotistas da UnB; Programa Brasil Afroatitude”.

O Ato da Reitoria nº 2.162/2006 atribuiu à Assessoria de Diversidade

e Apoio aos Cotistas a responsabilidade de administrar o Centro de

Convivência Negra e, portanto, o CCN desempenha um papel importante na

UnB, instituído no primeiro semestre do ano de 2005, seu objetivo é criar

ambientes e serviços de apoio aos estudantes negros, especialmente aos

que ingressarem pelo sistema de cotas, tais como,

“Espaço para estudo e reuniões de trabalho; Biblioteca de referência

para consulta sobre Ações Afirmativas (coleção de livros, legislação, revistas,

artigos científicos, jornais, etc); Mural de divulgação de atividades ligadas a

Ações Afirmativas (cartazes e folders de eventos científicos, governamentais

e não-governamentais); Fonte de informações gerais sobre a Universidade

de Brasília, com disponibilidade de acesso ao site da UnB na Internet; Apoio

aos programas de pesquisa, ensino, extensão e assistência estudantil que se

vinculem diretamente ao Sistema de Cotas; Contratação de três estudantes

bolsistas que secretariem a sala e orientem os visitantes e estudantes

cotistas quanto aos serviços prestados pelo Centro de Convivência. Essa

contratação envolve três bolsas de estágio com carga horária máxima de 20

horas semanais (um estudante para a manhã, outro para à tarde e um outro

para a noite), com preferência para jovens negros com algum envolvimento

36 Jaques Jesus é o Assessor de Diversidade e Apoio aos Cotistas e coordenador do CCN. Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Unb.

Page 99: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

99

em movimento social organizado; Outras atividades acadêmicas voltadas

para a comunidade interna e/ou para a comunidade externa à UnB,

desenvolvidas com o fim de apoiar o processo de implementação do Sistema

de Cotas para Negros na Universidade de Brasília”.

Os resultados esperados a partir da implantação dessas iniciativas

foram desenvolvidos pelos coordenadores do CCN que designam,

“a) diminuição do grau de racismo; b) resultados positivos de inclusão

racial que, mesmo com uma possível brevidade na gestão do CCN, possam

ser mantidos a longo prazo; “

Os seus elaboradores não especificam uma metodologia para

mensurar tais resultados.

4.5 A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

4.5.1 A proposta das cotas

Até o presente momento, observamos que há diferenças entre as

universidades na forma como foram pensadas as cotas, a porcentagem, o

público a quem se destina e os programas de permanência ou auxílio aos

cotistas.Assim, faremos o mesmo com a Unifesp a partir da nossa visita a

campo.

Para começar a esboçar um projeto institucional de ação afirmativa as

discussões na universidade tiveram início no ano de 2003,

“Esse debate é antigo e transcende o governo atual. A Unifesp é uma

universidade da área da saúde e no ano de 2003 começamos a discutir a

questão da integração em movimentos ligados às ações afirmativas. Primeiro

partimos do princípio de que precisávamos conhecer melhor o que eram

essas políticas que até então não havia surgido concretamente como

proposta para as universidades públicas, de fato era uma novidade

carregada de discordâncias, e aqui na Unifesp não foi diferente”

(Entrevistado C).

Como já vinha ocorrendo em outras universidades, a ação afirmativa

começou a ser o tema muito debatido nos círculos acadêmicos e deixava

dúvidas se de fato caberia na realidade brasileira,

Page 100: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

100

“ Para entender o que era essa política foram feitos vários seminários

envolvendo os grupos étnicos, digamos assim, que procuravam discutir o

tema. Foram também trazidos para discussão dados do IPEA em relação a

situação dos estudantes negros no país. A partir daí, entendemos que a ação

afirmativa no ensino superior constituía um dos mecanismos possíveis para

elevar a oportunidade educacional desse grupo e portanto não poderíamos

nos isentar dessa discussão. Foi então que resolvemos montar um projeto,

discutido com representantes dos alunos e com o conselho universitário.

Posso te dizer que não foi nada fácil devido ao grau de discordâncias que

temas como racismo, cotas, reparações, inclusão social desperta nas

pessoas. Feito isso, o projeto foi aprovado pelo conselho universitário e a

Unifesp adotou a política de cotas de uma maneira diferente das

universidades que já vinham nesse caminho. Foram abertas vagas para

alunos cotistas no vestibular de 2005 e o esquema adotado foi o de

aumentar em 10% as vagas em todos os cursos, o que dá um total de 27

vagas reservadas para os candidatos negros ou indígenas que cursaram o

ensino médio exclusivamente em escolas públicas. A Unifesp adotou a

autodeclaração como método de inclusão, conforme classificação adotada

pelo IBGE, no caso dos jovens negros é preciso provar que ele próprio ou

um de seus ascendentes, até os avós, é negro e isso pode ser feito por meio

de documentos como certidão de nascimento ou certificado militar. Já para

os jovens índios não é admitida ascendência, o aluno tem de ser da etnia”

(Entrevistado C).

Após a construção do projeto de ação afirmativa e a sua posterior

aprovação, outras questões permeavam a discussão,

“Depois de aprovado o projeto, passamos a entender que os desafios

iriam aumentar, pois pra qualquer programa a ser realizado na universidade

seria necessário o investimento em recursos que vão desde: recursos

acadêmicos adicionais para lidar com a qualificação dos alunos que por

ventura tivessem alguma defasagem do ensino médio; recursos adicionais

para o processo de seleção dos beneficiários da ação afirmativa; auxílio

financeiro para aqueles que não conseguem arcar com as despesas da

educação universitária como livros, alimentação, perda eventual dos seus

Page 101: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

101

rendimentos resultante do trabalho alocado para ajudar a família em casa e

ainda que estivéssemos bastante otimistas com a ausência de problemas de

discriminação racial ou intelectual no campus, tínhamos que nos preparar

para eventuais serviços de auxílio especializado. No entanto, eu ainda

acredito que os jovens são pessoas solidárias e gostam de enfrentar

desafios, eu acredito muito na generosidade dos jovens, por isso eu não

contaria tanto com problemas de ordem racial no campus” (Entrevistado C).

Considerando o que foi dito pelo nosso entrevistado, o sucesso das

ações afirmativas no ensino superior está correlacionado com a extensão em

que cada universidade mobiliza seus recursos institucionais, acadêmicos e

financeiros para executar programas de ação afirmativa. No Brasil, os

programas dependerão, principalmente, dos compromissos assumidos pelo

governo federal e estadual, mas também, do setor privado e até de

fundações internacionais, como acontece em outros países.

“Aqui na Unifesp, nós acreditamos que o apoio financeiro para as

ações afirmativas deve considerar um bom desenho de programa e um

monitoramento cuidadoso, aqui o sistema de cotas é avaliado anualmente

pela Comissão Permanente de Vestibular e submetido ao conselho

universitário para a sua prorrogação. Até então estamos indo bem, porque

acreditamos que a ação afirmativa não deve ser imposta por medidas

governamentais, mas devem ser adotadas voluntariamente pelas

universidades, baseada em procedimentos democráticos da sua

administração. Continuamos otimistas como no início” (Entrevistado C).

4.5.2 O vestibular 2005

O vestibular realizado no ano de 2005 já com o sistema de acréscimo

de vagas implantado pela Resolução nº 27/2005 teve uma procura

expressiva pelos candidatos,

“Das 27 vagas reservadas para as cotas 100% foram preenchidas.

Como se tratava do início desse novo vestibular apostávamos que a

concorrência não seria tão acirrada, mas do contrário, apesar do sistema de

Page 102: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

102

cotas ainda não estar tão difundido naquela data conquistamos bons

números” (Entrevistado C).

Em relação aos cursos, a procura concentrou-se em,

“Na verdade houve uma boa distribuição dos alunos nos cursos

oferecidos pela Unifesp. Em 2005, os cursos de medicina, fonoaudiologia,

enfermagem, ciências biomédicas e tecnologia oftálmica ganharam, ao todo,

27 cotistas. Na época como pró-reitor de graduação, posso afirmar que o

nível das provas do vestibular colabora com uma seleção criteriosa. Pelo

nosso processo, conseguimos selecionar candidatos bem preparados nos

dois grupos, cotistas e não-cotistas. Tenho que afirmar que no início do

projeto das cotas havia um temor muito grande de que os alunos cotistas

formassem um subsistema mais fraco, mas na prática isso não se confirmou”

(Entrevistado C).

O gráfico a seguir ilustra o que foi dito pelo nosso entrevistado, ou

seja, comparam ambos os desempenhos de cotistas e não-cotistas que são

muito próximos ou superiores nos cursos de medicina e fonoaudiologia,

Fonte: Jornal Unifesp, 2006.

A divulgação desse resultado pela Unifesp, mostra que não houve

perda na qualidade do ensino pelo fato de aderir ao sistema de cotas. Os

cotistas assim como vários outros alunos enfrentam problemas quando as

universidades não dispõem de bibliotecas bem equipadas, laboratórios de

informática ou de uma política que permita atender as demandas de apoio

que toda boa universidade deve oferecer à comunidade estudantil,

Page 103: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

103

“O estímulo e a motivação por parte das instituições são fundamentais

para o bom desempenho acadêmico aliados à grande força de vontade que

faz com que os jovens cotistas, sendo por vezes os primeiros de toda sua

história familiar a ingressar numa universidade. As cotas podem sim trazer

benefícios à sociedade e mais qualidade à nossa universidade” (Entrevistado

C).

4.5.3 Programas de auxílio aos cotistas

No que diz respeito aos programas de apoio e permanência da

Unifesp, esses são pautados em três aspectos,

“a) evitar a evasão dos alunos de baixa renda; b) garantir a esses

alunos uma formação de qualidade frente às desvantagens sócio-

educacionais que trazem consigo para universidade; c) evitar ou combater

qualquer atitude preconceituosa e discriminação racial no campus;” (Jornal

Unifesp,2: 2006).

Nosso entrevistado faz uma relação da importância de se combinar as

cotas com programas que fortaleçam e contribuam para o bom desempenho

acadêmico dos alunos,

“Cotas e estratégias efetivas de permanência fazem parte de uma

mesma proposta. Não se trata de fazer uma ou outra. Não se trata de fazer

uma escolha entre elas, senão de pensá-las juntas. As cotas não solucionam

todos os problemas da universidade, são apenas uma ferramenta que atua

na inclusão de uma parcela da população na universidade. É evidente que as

cotas, sem uma política de permanência, correm sérios riscos de não atingir

sua meta” (Entrevistado C).

Dos programas destinados aos alunos cotistas, a universidade dispõe,

“1) programa bolsa-auxílio para o custeio de materiais e alimentação;

2) serviço de orientação ao universitário; 3) apoio à organização de eventos,

palestras, seminários ou qualquer outra atividade que envolva o tema ação

afirmativa no campus ou fora dele; 4) Comissão de Avaliação: destinada a

observar os problemas mais recorrentes no campus e sugerir ajustes para

bom andamento do programa” (Jornal Unifesp, 3: 2006 ).

Page 104: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

104

“Os desafios nos são apresentados no dia-a-dia e faz com que

repensemos um detalhe ali outro aqui nesses programas. Não atingimos

ainda o melhor, a escassez de recursos para otimizar nossas ações também

nos impõe desafios. Talvez a criação de um fundo específico para

contribuições poderia ser agregado para nos fornecer uma fonte que

assegurasse a sustentação financeira da ação afirmativa. Até o presente

momento não temos registros de evasão de alunos por conta de problemas

financeiros, mas não podemos contar com a sorte, porque o que está em

jogo são sonhos de jovens e futuros profissionais” (Entrevistado C).

Podemos observar que um projeto bem sucedido de ação afirmativa

deve conceber a idéia de modo abrangente, ou seja, expandir seus esforços

para atender a novas demandas. Os programas de permanência têm,

portanto, essa função, ou seja, as universidades começaram a entender que

existe uma relação entre boa acolhida e a permanência (não evasão) do

estudante, pois nem todos aprendem da mesma maneira ou trazem para

universidade os mesmos problemas e dificuldades.

Nesse sentido, procuramos situar quais medidas institucionais, ou

seja, os programas de permanência, foram criados pelas universidades após

a implantação das cotas, pois nos permite entender se foram pensados a

partir de questões trazidas pelos alunos e neste caso esse canal poderia nos

informar sobre as questões mais incidentes nos campus.

No capítulo seguinte, abordaremos algumas questões suscitadas no

processo de implantação das cotas. Partindo de dois manifestos, um

contrário e outro favorável à implementação de ações afirmativas poderemos

analisar a discussão da igualdade pela diferença implicada nesse debate de

modo a explicar algumas das posições existentes entre o que autores

chamam de universalistas e comunitaristas, ou seja, de um lado grupos que

reprovam a definição de políticas e medidas baseadas em recorte racial e

étnico e de outro grupos que compreendem a ação afirmativa como uma

resposta as demandas de uma sociedade multirracial como é o caso do

Brasil. Abordaremos também as manifestações de racismo provenientes da

implantação das cotas nas universidades.

Page 105: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

105

CAPÍTULO IV

Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas Universidades Públicas

5.1 O princípio da igualdade e a ação afirmativa

As políticas de ações afirmativas, ao incorporarem algumas das

reivindicações de reconhecimento e diferença, trazem ao debate um conjunto

de questões que desafiam a maneira como tradicionalmente concebemos a

idéia de igualdade na nossa sociedade.

A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza,

teve sua emergência como princípio jurídico nos documentos constitucionais

após as revoluções do final do século XVIII (Gomes, 2003). As declarações

de direito do mundo moderno nasceram a partir das teorias filosóficas nas

quais estavam imersos os intelectuais europeus do século XVIII.

Caracterizado como Iluminismo, esse período simbolizou o triunfo do

racionalismo através de pensadores como John Locke, Voltaire, Diderot,

Montesquieu, Kant, Rousseau.

Essa importante corrente sustentou a idéia de que o homem enquanto

tal era detentor de direitos naturais,

“Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem não é o estado civil,

mas o natural, ou seja, o estado de natureza no qual os homens são livres e

iguais, sendo o estado civil uma criação artificial, que não tem outra meta

além da de permitir a mais ampla explicitação da igualdade e da liberdade

naturais” (Bobbio, 1992, 29).

Centrado no indivíduo, o direito natural consagrado pelas declarações

modernas foi o direito de liberdade, pensado no sentido de garantir ao

Page 106: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

106

indivíduo, dotado de razão, liberdade em relação ao Estado. A nova ordem

igualou todos os homens no momento do seu nascimento e estabeleceu o

mérito e o esforço individual como medida para repartição de bens, recursos

e mobilidade social.

“A partir das experiências revolucionárias pioneiras dos EUA e da

França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção

jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para

todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la

incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os

conflitos interindividuais” (Gomes, 2003: 17; 18).

Concebida para o fim específico de abolir os privilégios, distinções e

discriminações baseadas na linhagem e na hierarquização das classes

sociais, essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal,

firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no século

XIX e prosseguiu sua trajetória por boa parte do século XX.

Por definição,

“O princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação

de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos

livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso,

representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de

zonas delimitadas, suscetíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa

medida intoleráveis” (Gomes, 2003: 18).

O princípio da igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo,

como a garantia da concretização da liberdade. Para os teóricos da escola

liberal, bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos

fundamentais para se ter esta como efetivamente assegurada no sistema

constitucional.

A experiência e os estudos de direito tem demonstrado que a

igualdade jurídica à luz do pensamento liberal não é suficiente para criar

oportunidades iguais aos cidadãos. Gomes sustenta que,

“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no

princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada,

quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente

Page 107: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

107

para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as

oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados.

Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de

igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições”

(Gomes, 2003: 18; 19).

Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção de igualdade

que levasse em conta em sua operacionalização comportamentos da

convivência humana, como é o caso da discriminação racial. Assim, assinala

Gomes,

“Concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para

se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo

se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou

da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou

comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo

que garantir a igualdade jurídica” (Gomes, 2003: 19).

Da transição da ultrapassada noção de igualdade formal ou estática

ao novo conceito de igualdade substancial surge a idéia de igualdade de

oportunidades, pautada na necessidade de extinguir ou de pelo menos

mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais, a igualdade

substancial recomenda uma noção mais dinâmica de igualdade, de sorte que

as situações desiguais sejam tratadas de forma diferente, evitando-se o

aprofundamento das desigualdades (Gomes, 2003).

“Dessa nova visão resultou o surgimento, em diversos ordenamentos

jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos,

de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos

socialmente fragilizados. Vale dizer, da concepção liberal de igualdade que

capta o ser humano em sua conformação abstrata, genérica, o Direito passa

a percebê-lo e a tratá-lo em sua especificidade, como ser dotado de

características singularizantes. O “indivíduo especificado” , portanto, será o

alvo dessas novas políticas sociais. A essas políticas sociais, que mais nada

são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material,

dá-se a denominação de ação afirmativa” (Gomes, 2003: 20).

Page 108: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

108

No plano internacional, a ação afirmativa foi experimentada como

forma de garantir direitos aos grupos que deles estavam historicamente

excluídos, como os membros de castas inferiores na Índia, os negros norte-

americanos e os imigrantes em países europeus. No Brasil, essa discussão

se dá a partir da implantação das cotas para negros e indígenas nas

universidades públicas.

A reivindicação da ação afirmativa freqüentemente opõe defensores

de uma posição universalista ou liberal àqueles que sustentam uma postura

de relativismo cultural, onde o reconhecimento das necessidades particulares

dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos são

considerados imprescindíveis para pensar políticas.

No caldo de discussões que se instauraram no país, assistimos a

manifestações públicas que ilustraram e demarcaram esses posicionamentos

distintos.

5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e

comunitaristas

O discurso da diferença, que se afirma através do questionamento da

igualdade liberal moderna e de seus limites é discutida por alguns autores

pelo que nos trás de novo e por outros pelo risco de experimentarmos

políticas que consideram as diferenças entre os indivíduos. Flávio Pierucci

(1999) chama atenção aos aspectos conservadores das reivindicações

baseadas na diferença que, mesmo sob bandeiras de esquerda, podem fazer

ressurgir anseios exatamente opostos aos almejados, e levarem mais às

desigualdades e naturalizações de diferenças que ao respeito, tolerância e

reconhecimento. A essencialização das diferenças, mesmo sob uma

positivação, parece ser a preocupação maior por trás desse debate.

John Rawls e Charles Taylor, no âmbito da filosofia política discutem,

sob as perspectivas universalista e comunitarista, respectivamente, a

igualdade pela diferença. Rawls tem como desafio formular uma teoria da

justiça que represente um avanço em termos igualitários ao que existia à

época, ainda que se mantendo dentro da tradição liberal. Escreveu “Uma

Page 109: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

109

Teoria da Justiça” em 1971 num momento em que os Estados Unidos viviam

uma série de manifestações e tensões sociais decorrentes do movimento

pelos direitos civis e, por sua vez, contribuiu com os debates e políticas que

se seguiram, como a ação afirmativa. Charles Taylor, duas décadas depois,

traz como questão central a intensa diversidade existente na sociedade

canadense e as reivindicações por políticas de reconhecimento de diferentes

identidades culturais e étnicas, que podem ser vistas como o desdobramento

dos movimentos sociais dos anos 60 e 70. Ambos debatem, a seu modo, a

igualdade pela diferença de modo a explicar algumas posições e embates

existentes entre essas duas posições.

No presente texto, iremos nos ater a discussão de Charles Taylor que

através da visão da igualdade pela diferença, tratada por ele como política de

reconhecimento, se afirma por oposição e questionamento a algumas das

premissas do universalismo liberal ao qual Rawls se filia, ou seja, para esse

autor a distribuição natural ou de posição social não é de certa forma justa ou

injusta, pois os que as torna justas ou não é a maneira pela qual as

instituições as utilizam (Rawls, 2002). Os questionamentos que se seguem a

essa premissa tratam de criticar na teoria liberal especialmente sua suposta

neutralidade em termos de concepções de bem-estar e de autonomia

individual, além de criar uma sociedade cega às diferenças dos indivíduos.

Taylor utiliza uma linha de reflexão acentuada pelo que se chamou

Culture Studies, que faz a crítica ao etnocentrismo e ao colonialismo

europeus e questiona a possibilidade de falarmos em direitos humanos

universais que não sejam eles mesmos a expressão da tradição cultural

ocidental. Compreende que o reconhecimento das diferenças culturais

valoriza os indivíduos e é condição primordial para se adquirir dignidade

humana (Taylor, 1998).

A exigência pelo reconhecimento, segundo Taylor, se faz em dois

níveis: na esfera íntima “donde comprendemos que la formación de la

identidad y del yo tiene lugar em um diálogo sostenido y en pugna con los

otros significantes” (Taylor, 1998: 59) e na esfera pública “donde la política

del reconocimiento igualitário há llegado a desempeñar un papel cada vez

mayor” (Taylor, 1998: 59). O autor estabelece uma relação direta com a

Page 110: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

110

formação da identidade e a sua valorização no âmbito público, ou seja, quais

características são atribuídas ao indivíduo como ser humano, já que nossa

identidade se forma a partir da relação com os outros,

“La tesis es que nuestra identidad se moldea en parte por el

reconocimiento o por la falta de este; a menudo, también, por el falso

reconocimiento de otros, y así, un individuo o un grupo de personas puede

sufrir un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente o la sociedad

que lo rodean le muestran, como reflejo, um cuadro limitativo, o degradante o

depreciable de si mismo” (Taylor, 1998: 43; 44).

A crítica ao liberalismo universalista, destaca seu caráter impeditivo da

própria constituição de algumas identidades ao propor que os indivíduos

devem se adequar homogeneamente a culturas e valores dominantes. Para

Taylor, uma sociedade desse tipo não seria apenas desumana, por suprimir

a possibilidade de constituição de uma identidade, mas também seria

altamente discriminatória ao vincular imagens depreciativas e inferiores de

determinados grupos como as mulheres, os negros e os indígenas (Taylor,

1998).

No Antigo Regime empregava-se o conceito de honra para classificar

as pessoas. As hierarquias sociais outorgavam o reconhecimento público

aos cidadãos divididos em “ciudadanos de primera clase y de segunda clase”

e, portanto, nem todos eram merecedores dos títulos. Taylor atribui ao que

chama “del concepto moderno de identidad” o surgimento da política de

reconhecimento ou também política da diferença “que se fundamenta en un

potencial universal, a saber el potencial de moldear y definir nuestra propia

identidad, como individuos e como cultura” (Taylor, 1998: 65).

Em sociedades cada vez mais abertas e em contato umas com as

outras, o desafio em termos de reconhecimento não é apenas que as

diferentes culturas possam defender a si próprias e sobreviver, mas que

todos atestem seu igual valor e direito de existir e participar politicamente da

sociedade. Como importante meio de difusão da cultura, a educação é uma

das principais áreas desse debate. Propostas de uma educação multicultural

surgem como alternativa ao eurocentrismo e a ação afirmativa, tratada como

discriminação positiva, é discutida pelo autor,

Page 111: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

111

“Las medidas de discriminación a la inversa, permiten a las personas

de los grupos antes desfavorecidos obtener uma ventaja competitiva por los

empleos o lugares em las universidades. Esta práctica se há justificado

aduciendo que la dicriminación histórica creó uma pauta conforme a la cual

los menos favorecidos luchan em posición de desventaja. La discriminación a

la inversa es defendida como uma medida temporal que gradualmente

nivelará el campo de juego y permitirá que las viejas reglas ciegas retornen

com todo su vigor, em tal forma que no dicriminen a nadie” (Taylor, 1998:

63).

As análises de Taylor estão focadas na experiência aborígene do

Canadá, que em 1972, criou o primeiro Ministério de Estado Multicultural no

intuito de promover a diversidade cultural e combater o racismo, e que em

1982 adotou a Carta de Direitos Canadenses, dentro dos marcos liberais. Em

Quebec, na região do Canadá que se falava francês, reivindicava-se certa

autonomia de governo e capacidade para aprovação de legislação própria.

As políticas de reconhecimento das diferenças culturais implantadas no

Canadá geraram uma série de objeções do lado inglês, que viam numa

sociedade como a do Quebec a violação do modelo liberal na sua

organização (Taylor, 1998).

Nos países em que já foram implantadas, as ações afirmativas

incorporaram algumas das reivindicações de reconhecimento e diferença e

trazem a tona a maneira como tradicionalmente concebemos a idéia de

igualdade. No embrionário debate instaurado em nosso país, se comparado

a outras experiências internacionais, essas controvérsias também se fazem

presentes como veremos através de dois manifestos que chamaram a

atenção pública.

5.3 Os manifestos pró e contra as cotas

No ano de 2006 o Brasil foi marcado por um acirramento do debate

sobre a inclusão social no ensino superior a partir da divulgação de dois

Page 112: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

112

manifestos, o primeiro contrário e o segundo favorável a implantação de

ações afirmativas para estudantes negros e indígenas37.

O primeiro manifesto intitulado “Todos têm direitos iguais na República

Democrática” foi assinado por acadêmicos, artistas e intelectuais

reconhecidos nacionalmente. Foi entregue aos parlamentares do Congresso

Nacional em 29 de junho de 2006 e iniciaram registrando no primeiro

parágrafo,

“O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um

fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa

a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção

por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do

Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a

uma decisão final no Congresso Nacional38”.

Entre os argumentos que reprovam a aprovação dos projetos lei,

destaca-se que a nação passaria a definir os direitos das pessoas com base

na tonalidade da pele, pela raça e isso poderia semear o racismo como

demonstram exemplos históricos e contemporâneos e ainda bloquear o

caminho para resolução real dos problemas de desigualdades. Munanga,

nas suas análises entende a ação afirmativa como uma medida anti-racista

necessária, pois a desigualdade racial tem fortes raízes históricas e esta

realidade não será alterada sem a aplicação de políticas públicas

específicas,

“O Brasil está longe de ser uma democracia racial. No mercado de

trabalho, na política, na educação, em todos os âmbitos, os negros têm

menos oportunidades e possibilidades que a população branca. O racismo

no Brasil está imbricado nas instituições públicas e privadas, e age de forma

silenciosa. As cotas não criam o racismo, ele já existe. As cotas auxiliam o

debate da sua perversa presença, funcionando como uma efetiva medida

37 Os manifestos foram extraídos do site: www.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml 38 O Pl das Cotas torna compulsória a reserva de vagas para indígenas e negros nas instituições federais de ensino superior; O Estatuto da Igualdade Racial estabelece cotas raciais no serviço público e cria “privilégios” nas relações comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizarem cotas raciais na contratação de funcionários, dentre outros.

Page 113: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

113

anti-racista” (Munanga, 1996: 42). Pontos de vista como esse foram

rebatidos nas linhas do manifesto,

“Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis

conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas

gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o

preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais

não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos

raciais estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo podem

até produzir o feito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça,

possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade

amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à

exclusão social são as políticas universais”.

Nesse sentido, esse manifesto parece não considerar que a nação

brasileira é formada por desigualdades provenientes da história e que para

serem corrigidas é necessário ponderar as diferentes necessidades dos

grupos. Em decorrência dessa visão, a aprovação dos dois projetos de lei

introduziria a categoria raça na elaboração das políticas públicas o que

geraria hierarquias raciais estranhas à experiência nacional. Assim, as

assimetrias, quando admitidas, resultam de uma distribuição desigual da

riqueza econômica e a existência residual de preconceitos e discriminações

raciais que devem ser combatidas com políticas universais.

Em resposta ao primeiro manifesto, em 3 de julho de 2006 foi

entregue aos presidentes do Senado e da Câmara o outro manifesto com o

objetivo não só de reagir, mas também de sintetizar argumentos favoráveis à

ação afirmativa, assinado por intelectuais, militantes do movimento negro e

acadêmicos. Intitulado “Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da

igualdade racial” que argumenta o seguinte,

“Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e

indígenas das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas

cotas (...) O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma

resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários

instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu (...) Gostaríamos ainda de

fazer uma breve menção ao documento contrário. Ao mesmo tempo em que

Page 114: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

114

rejeitam frontalmente as duas leis em discussão, os assinantes do

documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de

inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a

lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a

todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios

universalistas, feitas por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e

multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio sistemático,

parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à

Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as

desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo”.

No segundo manifesto, a mensagem que nos passa é de que a

construção e o desenvolvimento da República não só não se deu de forma

democrática, como também se assentou nas assimetrias legadas, em parte,

pelas experiências colonial (hierarquias étnicas e raciais, de gênero, status

social etc) e, em parte, pelo processo de urbanização e industrialização

desigualmente distribuído no país com o fim da escravidão, aprofundando

desequilíbrios regionais, e contribuindo para o surgimento da clivagem de

classe em interseção com outras formas de diferenciação social (Munanga,

1996).

Uma vez que a intervenção estatal teria beneficiado alguns indivíduos

e grupos mais do que outros, as assimetrias seriam constitutivas da própria

República necessitando, portanto, para sua efetiva democratização,

reconhecer que a gama de distorções legadas pelo colonialismo e pela

industrialização gerou uma sociedade profundamente hierarquizada e

racializada. Assim, os direitos nunca foram iguais na República e a

democracia é um processo em construção que necessita incorporar a todos

os indivíduos e grupos em suas similaridades e diferenças.

Portanto, os que se declaram contra as cotas acreditam que no campo

das políticas públicas os avanços se produzem por etapas seqüenciais:

primeiro é preciso melhorar a qualidade da educação básica e depois se

democratiza a universidade, é a defesa por políticas universais que não

recorrem a recortes raciais, étnicos, gênero etc. Os que se declaram a favor

encontram respaldo nos instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu o

Page 115: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

115

Brasil e acreditam que a justeza da política se afirma por conta de que uma

parcela da população foi lesada por processos históricos.

Quando foram publicizados ambos os manifestos, independente da

posição defendida, contribuíram para que a sociedade entendesse melhor o

que era o projeto das cotas e quem o defendia ou não. No ano de 2006,

quando foram divulgados, algumas universidades estaduais e federais já

haviam implantado as cotas para estudantes negros, indígenas e estudantes

de escolas públicas nos seus vestibulares e a maioria adotou essa medida

após debates no interior de seus espaços acadêmicos. Os dados que eram

apresentados, como o rendimento satisfatório dos alunos cotistas,

começaram a desmontar um preconceito muito difundido, dentre tantos

outros, de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade

acadêmica.

Em suma, os manifestos apresentam duas posições antagônicas de

um debate que situa a questão de como podemos pensar a igualdade e a

diferença em uma sociedade que apresenta a diversidade entre seu povo.

5.4 Os casos de racismo nas universidades

As questões relativas ao tema do racismo sempre geram polêmicas,

seja no âmbito do senso comum, no calor da agitação política ou no campo

dos debates acadêmicos.

Os casos de racismo que se manifestaram nas universidades após a

implantação das cotas revelam que o membro do grupo visado encontra

vários obstáculos para conseguir mobilidade social ascendente. É como se

qualquer mudança ameaçasse as posições e prerrogativas estabelecidas,

como nos coloca Chinoy,

“Quando a riqueza, o poder ou o status de qualquer grupo pode ser

contestado por outros, ou quando membros de diferentes grupos étnicos

competem por valores difíceis, como o poder ou a riqueza, é provável que se

desenvolva o conflito e que as diferenças raciais ou étnicas se convertam

facilmente em base de hostilidade. Impedindo aos demais o acesso ao poder

político, relegando-os a ocupações servis, ou estigmatizando-lhes a cor ou a

Page 116: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

116

cultura, um grupo dominante monopoliza os valores políticos, econômicos ou

de status, ou todos eles ao mesmo tempo. Criam-se repetidamente padrões

de discriminação e subordinação no intuito de obter tais valores e, depois de

criado um sistema de relações de superioridade e inferioridade entre grupos

étnicos, qualquer mudança causa habitualmente ameaça aos padrões

constituídos” (Chinoy, 1975, 309).

Isto significa que é do desejo de ser reconhecido como grupo superior

que surge o racismo.

Dentre tantos casos registrados pelo Brasil afora sobre ataques de

racismo nas universidades que implantaram as cotas alguns se destacam

pelo teor das agressões que apresentam.

No quadro a seguir, destacamos algumas frases dirigidas por

agressões verbais e pichações a estudantes negros por alunos contrários às

cotas nas universidades. São situações que revelam mais que um ato de

vandalismo, mas ações coletivas pautadas pelo ódio e intolerância racial.

Unb UFPR UERJ

“2004: cotas para negros! 2014: bandidos, traficantes e estupradores com PhD”.

“Bando de cotistas negros: voltem pra senzala”.

“As cotas vão tornar nossa sociedade racista”.

“Fora estrangeiros negros”.

“Racismo é coisa de negro”.

“As cotas são a confirmação da incompetência dos negros”.

“Crioulos preguiçosos: são cotistas”.

“O sistema de cotas institucionaliza injustiças”.

“Quer entrar na universidade pelas cotas? Vá a praia e volte mais cotista”.

As frases apresentadas foram extraídas de sites39.

Manifestações desse tipo demonstram que a forma extrema de

expressão do racismo seria uma pessoa acreditar na inferioridade natural de

um grupo de acordo com as características físicas. Que tais diferenças

físicas são determinantes que definem graus de inteligência e dignidade, que

39 No caso da Unb, ao realizarmos visita no campus pudemos observar e registrar algumas pichações ainda presentes em paredes de banheiro e corredores. Os sites consultados por nós foram: ciranda.net; irohin.com.br.

Page 117: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

117

tais diferenças criam uma cultura inferior e que as características inferiores

constituem uma base legítima para o tratamento desigual e especial.

Jones nos aponta que a questão do poder é determinante na definição

do racismo e o preconceito racial é uma atitude que contribui para a sua

prática,

“(...) nossa definição de racismo ultrapassa crença ou atitudes, a fim

de incluir ações. O fator significativo da preferência pelo nosso grupo, com

base racial ou étnica, é o PODER que nosso grupo tem com relação a outro

grupo estranho. O poder é sempre definido em termos de ação. Portanto, (...)

o racismo resulta da transformação de preconceito racial e/ou etnocentrismo,

através do exercício do poder contra um grupo racial definido como inferior,

por indivíduos e instituições, com o apoio, intencional ou não, de toda a

cultura” (Jones, 1973: 105).

Em linhas gerais, o fenômeno racismo agrega categorias que tratam

da diferenciação e inferiorização dos indivíduos que são alvo da sua

manifestação,

“... os membros desse grupo devem estar situados no degrau mais

baixo da escala social, confinados a trabalhos penosos, ser os trabalhadores

mais explorados; devem também ser tão pouco visíveis quanto possível, não

aparecendo, por exemplo, na imprensa, senão sob o aspecto da sujidade, da

ignorância e da criminalidade” (Wieviorka, 1993: 59-60).

Por sua vez, as duas variáveis destacadas atuam no sentido de

rejeição, exclusão até o extermínio físico ou moral do grupo visado,

“O grupo objeto do racismo deve ser mantido à parte, excluído,

segregado e, no limite, expulso e até destruído. Não tem lugar na sociedade,

é considerado como uma ameaça para a cultura ou para a economia da

mesma, constitui uma afronta à homogeneidade do corpo social, à sua

pureza” (Wieviorka, 1995: 60).

Michel Wieviorka, em suas análises sobre o racismo aborda as

experiências de tensões interculturais dos povos além dos aspectos que

determinam as formas mais extremas de manifestação da intolerância. Esse

autor aponta para existência de três subconjuntos que fazem parte dos

estudos sobre o racismo,

Page 118: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

118

“... um primeiro conjunto composto de preconceitos, opiniões e

atitudes, um segundo subconjunto que reúne as condutas e práticas (de

discriminação, segregação e violência) e um terceiro subconjunto que abarca

desde elaborações eruditas e doutrinárias até o racismo como ideologia

ampla40” (Wieviorka, 1992: 99).

Um olhar sobre a conjuntura nacional de implantação das cotas nos

aponta que elas têm contribuído para exacerbação do debate sobre a

presença do racismo na nossa sociedade. A experiência das cotas

demonstra através de manifestações racistas que destacamos no quadro

anterior a existência de formas de expressão de intolerância racial nas

nossas universidades que remontam um perfil que tem de ser superado, ou

seja, que desconhece a diversidade racial brasileira. Não há o enfrentamento

real de um problema sem o reconhecimento definitivo das mazelas que o

alimentam e, portanto, as universidades devem se preparar para solucionar e

dar o melhor encaminhamento aos casos de racismo que se reproduzem nos

campus, como o que ocorreu na Unb,

“No dia 28 de março de 2008, nós, população negra da Universidade

de Brasília, fomos agredidos (as) mais uma vez. Numa ação terrorista,

herdeiros e atuais representantes da opressão racial brasileira quiseram

levar à morte dez de nossos irmãos e irmãs africanas e colocaram em risco a

vida de outras dezenas de pessoas. Não se trata de um ato isolado. Há anos

os negros vivenciam isso no campus universitário da Unb, sem que nenhuma

ação efetiva e institucional tenha sido tomada. Após uma série de insultos,

humilhações e ameaças, desta vez, o intuito era o de queimar pessoas

negras vivas! Não podemos mais tolerar tamanha negligência. Corremos

perigo e exigimos justiça”41.

Por meio de situações como essa podemos concluir que instituições

que preservarem uma lógica excludente de funcionamento e não aderirem a

projetos que as tornem mais justas não resistirão à força dos discursos e

40 “... un primer subconjunto compuesto de prejuicios, opiniones e actitudes, un segundo subconjunto que reúne las conductas o prácticas (de discriminación, segregación, y violencia), y un tercer subconjunto que abarca desde elaboraciones eruditas y doctrinarias hasta el racismo como ideología ampla...” (Wieviorka, 1991: 99). 41 Trecho do depoimento dos alunos africanos atacados na Unb que residem nas repúblicas. Extraído do site www.ciranda.net .

Page 119: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

119

serão desafiadas e cobradas a promover maior inclusão racial. Isso não quer

dizer, contudo, que a ação afirmativa não tenha uma base de apoio forte no

sistema universitário público brasileiro. O fato de muitos dos programas hoje

em vigor terem sido aprovados via decisões de conselhos universitários é

evidência de que esse apoio existe. No entanto, para que as universidades

estejam preparadas para os desafios que a implantação das cotas exige é

preciso entendê-las como uma medida que não se dirige apenas à

desvantagem sócio-econômica de grupos de baixa renda, mas também ao

racismo que pode contribuir para baixa autoconfiança profissional dos

estudantes negros. Nesse sentido, as ações afirmativas devem ser utilizadas

para combater as desigualdades herdadas, que são conseqüências do

racismo e não somente da falta de recursos econômicos.

Page 120: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

120

Considerações Finais

Nestas páginas finais pretende-se recuperar algumas das questões

levantadas no decurso deste trabalho.

As políticas de ação afirmativa são concebidas com o objetivo de

corrigir desigualdades ou injustiças históricas, reparando erros do passado.

Também são justificadas a partir da visão de que a persistente exclusão de

determinados segmentos da sociedade dos benefícios coletivos e das

oportunidades inibe o desenvolvimento do país como um todo. Se talentos

são desperdiçados, deixamos de contar com a contribuição desses

indivíduos para a construção do país que desejamos.

Hoje no Brasil nos deparamos com um grande número de

universidades que estão aderindo as cotas e pudemos constatar as formas

distintas de construção do projeto ao longo dos últimos seis anos. No

entanto, há uma dificuldade em comum entre as instituições, ou seja, o

sucesso dos programas de ação afirmativa estão fortemente correlacionados

com a extensão em que cada universidade mobiliza seus recursos

acadêmicos e financeiros para executar o projeto. Em comparação aos

países com maiores experiências nesse tema, onde as melhores

universidades têm volumosos recursos, as fontes para financiamento do

ensino superior são maiores, em alguns casos os beneficiários da política

podem arcar com determinados custos da educação universitária e onde a

iniciativa privada dispõe sua contribuição, no caso brasileiro os programas

dependerão, principalmente, dos compromissos assumidos pelo governo

federal e estadual. O cálculo dos custos dos investimentos das ações

afirmativas deve, então, ser o resultado de um desenho cuidadoso, da

avaliação periódica dos programas e seus componentes, da análise das

características do público-alvo beneficiado e dos objetivos educacionais e

acadêmicos dos programas.

Por conta da heterogeneidade das condições de ensino em diferentes

partes do país e dos recursos existentes nas diferentes universidades, talvez

uma abordagem oportuna para apoiar financeiramente as ações afirmativas

Page 121: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

121

no Brasil seria criar um programa institucional no Ministério da Educação ao

qual cada universidade que queira adotar ação afirmativa submeteria suas

propostas com objetivos identificáveis em termos de oportunidades

educacionais e realizações acadêmicas, assim como os mecanismos para

avaliação dos resultados.

No que diz respeito aos programas desenvolvidos pelos órgãos

públicos, o ProUni é considerado uma das principais realizações do MEC,

que estabeleceu ação afirmativa na forma de bolsas de estudos para alunos

oriundos das escolas públicas, entre eles negros e indígenas. Apesar dos

seus números serem considerados satisfatórios, quando em 2006 foram

concedidas mais de 200 mil bolsas para estudantes negros (Brasil, 2003-

2006), questiona-se o fato do programa ser desenvolvido apenas em

instituições privadas onde a qualidade do ensino é classificada como inferior

em relação às universidades públicas.

Ao contrário do ProUni, as cotas não se tratam de nenhum programa

ou política governamental, ou seja, foram adotadas voluntariamente por cada

universidade, baseadas em procedimentos democráticos da sua

administração e ainda passam por reformulações e ajustes, o que dificulta

talvez a mobilização de recursos financeiros públicos, pois é certo que o

apoio financeiro para projetos de ação afirmativa devem considerar um bom

desenho do programa e um monitoramento cauteloso dada a magnitude que

o processo de implantação das cotas alcançou no país.

Nesse sentido, estamos de fato assistindo ao alvorecer do debate

nacional sobre a ação afirmativa e o tema ainda é dominado pela questão da

validade ou não de tal iniciativa. Entretanto, no futuro esse olhar dividirá o

espaço com um número crescente de trabalhos que procuraram avaliar o

funcionamento da política apontando ganhos, perdas e possibilidades de

aperfeiçoamento para criar alternativas de inclusão social e racial.

Page 122: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

122

Bibliografia

BILLIG, M. Racisme, Préjugés et Discrimination. In: Psychologie Sociale. Serge Moscovici (Organizador). Paris, PUF, 1984, pp.449-472.

BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOWEN, W. G. & BOK, D. The Shape Of the River: long-term consequence of considering race in College and University admissions. New Jersey: Princeton University Press.

BRASIL. Ministério da Educação. Exposição de motivos: anteprojeto de lei da

educação superior. Disponível em:

www.mec.gov.br/reforma/menudocumentostipo.asp?tipo=Documemtos.

Acesso em: 27 mar. 2006.

BRASIL. Ministério da Cultura: Fundação Cultural Palmares. Declaração de

Durban e Plano de Ação: III Conferência Mundial de Combate ao

Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Brasilia, 2001.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Inclusão da população negra no sistema educacional. In: Relatório de

Atividades 2004: promoção da igualdade racial. Brasília, 2004.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Inclusão da população negra no sistema educacional. In: Relatório de

Gestão: promoção da igualdade racial. Brasília, 2003-2006.

CAVALLEIRO, E. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre

relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista:

caminhos abertos pela lei federal nº10.639/03. Brasília: Coleção

Educação Para Todos, 2005.

____________; HENRIQUES R. Educação e Políticas Públicas Afirmativas:

Elementos da Agenda do Ministério da Educação. In: Ações Afirmativas e

Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação,

Coleção Educação Para Todos, 2005.

Page 123: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

123

CHAMBERS, J. L. Brown v. Board of Education. In: HILL, H.; JONES Jr.

(orgs) Race in America: the struggle for equality. Wisconsin: The

University of Wisconsin, 1993.

CHINOY, E. Sociedade: uma introdução à sociologia. São Paulo: Editora

Cultrix, 1975.

D’ ADESKY, J. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo: Racismos e Anti-

Racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

DE BENI, M. et al. Psiclogia e Sociologia: curso introdutório. São Paulo:

Paulus, 2004.

EASTLAND, T. Ending Affirmative Action: the case for colorblind justice. New

York: BasicBooks, 1996.

FILHO, P. O. Estratégias do Discurso Racista: A Justificação da Desigualdade e a Defesa de Privilégios Raciais em Discursos de Brancos. São Paulo, 2003. 250 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. FISCHER, G. N. Os Conceitos Fundamentais da Psicologia Social. Instituto

Piaget: Lisboa, 1999.

GOMES, J. B. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001.

_____________. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:

SANTOS, R. E.; LOBATO, F. (orgs) Ações Afirmativas: políticas públicas

contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

GUIMARÃES, A.S. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Fundação

de Apoio à Universidade de São Paulo/Editora 34, 1999.

GURIN, P. Expert Report of Patricia Gurin. The Compelling Need for Diversity

in Higher Education. In: Gratz et al. Washington D. C.: American Council

on Education, 1999.

HERINGER, R. Políticas de promoção da Igualdade Racial no Brasil: um

balance do período 2001-2004. In: ZONINSEIN, J. ; JÚNIOR, J. F (orgs).

Ação Afirmativa e Universidade: experiências nacionais comparadas.

Brasília, Editora UNB, 2006.

Page 124: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

124

INSPIR (Instituto Sindical Interamericano Pela Igualdade Racial). Mapa da

população negra no mercado de trabalho. São Paulo: Centro de

Solidariedade AFL-CIO, 1999.

JORNAL INFORMATIVO UERJ. Nº 4 - fevereiro/2007. Disponível em

www.uerj.com.br/noticias .

JUNIOR, R. J. A. V. Rumo ao Multiculturalismo: a adoção compulsória de

ações afirmativas pelo Estado Brasileiro como reparação dos danos

atuais sofridos pela população negra. In: SANTOS, S. A. (org) Ações

Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da

Educação, Coleção Educação Para Todos, 2005.

MARTINI, A. F. ; SILVA, J. F. Discriminação no mercado de trabalho:

desafios de combate ao racismo no bojo da população economicamente

ativa no Brasil. In: SANTOS, G. ; SILVA, M. P. Racismo no Brasil:

percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI. São

Paulo: Editora Perseu Abramo, 2005.

MOEHLECKE, S. Fronteiras da Igualdade no Ensino Superior: Excelência &

Justiça Racial. São Paulo, 1999. 176 f. Dissertação (Mestrado em

Educação) – Universidade de São Paulo USP.

MORRIS, A. Centuries of black protest: its significance for America and the

world. In: HILL, H.; JONES Jr. (orgs) Race in America: the struggle for

equality. Wisconsin: The University of Wisconsin, 1993.

MULHOLLAND, T. O sistema de cotas para negros na Universidade de

Brasília. In: ZONINSEIN, J. ; JÚNIOR, J. F (orgs). Ação Afirmativa e

Universidade: experiências nacionais comparadas. Brasília, Editora UNB,

2006.

MUNANGA, K. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre

os discursos anti-racistas no Brasil. In: SPINK, M. J. P. A Cidadania em

Construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez Editora,

1994.

MUNANGA, K. O anti-racismo no Brasil. In: MUNANGA, K. (org) Estratégias

e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: EDUSP, 1996.

Page 125: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

125

MUSE, B. A luta do negro americano: dez anos de integração racial – desde

a decisão de 1954 da corte suprema dos Estados Unidos da América do

Norte. Rio de Janeiro: Editora GRD.

MYRDAL, G. An America Dilemma: the colored problem and moderns

democracy. NY/London: Harper & Brothers Publishers, 1944.

NCN-USP. A criação do curso pré-vestibular. São Paulo: EDUSP, 1994.

PETTIGREW, T. The affective component of prejudice: empirical support for

the new view. In: TUCH, S. A.; MARTIN, J.K. (orgs) Racial attitudes in

1990’s: continuity and change. Westport: Praeger, 1998.

PIERUCCI, F. Ciladas da Diferença. São Paulo: EDUSP, 1999.

PIOVESAN, F. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São

Paulo: Max Limonad, 1996.

RAWLS, A theory of justice. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971.

______. Uma Teoria da Justiça. Brasília: Universidade de Brasília, 1983.

RIBEIRO, M. Proposições políticas com participação popular. In: Consciência

Negra. Brasília, 2006.

RUSSELL, P. G. Ação Afirmativa e Iniciativas de Promoção da Diversidade

na Educação Superior Americana: o envolvimento das instituições na

criação de ambientes inclusivos de aprendizado. In: ZONINSEIN, J. ;

JÚNIOR, J. F (orgs). Ação Afirmativa e Universidade: experiências

nacionais comparadas. Brasília, Editora UNB, 2006.

SANTOS, R. E. Política de Cotas Raciais nas Universidades Brasileiras – o

Caso da Uerj. In: ZONINSEIN, J. ; JÚNIOR, J. F (orgs). Ação Afirmativa e

Universidade: experiências nacionais comparadas. Brasília, Editora UNB,

2006.

SILVA, M. P. Bloco Afro Ilê Aiyê Seus Protestos e sua Beleza: um estudo psicossocial das minorias ativas na constituição da identidade negra na Bahia. São Paulo, 1995. 209 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. _________________. O Anti-Racismo no Brasil Como Novos Movimentos Sociais: a originalidade psicossocial formando convicções coletivas. São

Page 126: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

126

Paulo, 2000. 278 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. SILVÉRIO, V. R. Sons Negros com ruídos brancos. In: ABONG. Racismo no

Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2002.

SOWELL, T. Ação Afirmativa ao Redor do Mundo: um estudo empírico. Rio

de Janeiro: UniverCidade Editora, 2004.

SWANSON, K. Affirmative action and preferential admissions in higher

education: an annotated bibliography. New Jersey: The Scarecrow Press,

1981.

TAJFEL, H. Grupos Humanos e Categorias Sociais - I. Lisboa, Livros

Horizontes, 1982.

TAYLOR, C. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1ª ed, 1998.

TEIXEIRA, M. P. Negros na universidade: identidade e trajetória de ascensão

social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

UNB NOTÍCIAS. Nº 3 – Ano 2 – março/2007.

ZONINSEIN, J. ; JÚNIOR, J. F (orgs). Ação Afirmativa e Universidade:

experiências nacionais comparadas. Brasília, Editora UNB, 2006.

WEST, C. Questão de Raça. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

WEISSKOPF, T.E. Affirmative Action in the United State and Índia: A

Comparative Perspective. London and New York: Routledge, 2004.

WIEVIORKA, M. A Democracia à Prova. Lisboa, Instituto Piaget, 1995.

______________. El Espacio Del Racismo. Barcelona-Buenos Aires-Mexico. Ediciones Paidós, 1992.

Page 127: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

127

ANEXO I

Lista das universidades com cotas 42

AESI – Faculdade de Ciências Contábeis de Itabirito CESUMAR – Centro Universitário de Maringá CESV – Centro de Ensino Superior de Vitória ESCS/DF Escola Superior de Ciências da Saúde FACIG – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Igrarassu FACULDADES MARINGÁ – Faculdade de Maringá FAETEC – Fundação Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro FAFOPST – Faculdade de Formação de Professores de Serra Talhada FATEMA – Faculdade Integrada Teresa Martin FIAMA – Faculdade de Amabaí IDEPE – Faculdade Idepe IMESB – Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro Victorio Cardassi SÃO BENTO – Faculdade São Bento UCDB – Universidade Católica Dom Bosco UCL – Faculdade do Centro Leste UEA – Universidade do Estado do Amazonas UEG – Universidade Estadual de Goiás UEL – Universidade Estadual de Londrina UEM – Universidade Estadual de Maringá UEMA – Universidade Estadual do Maranhão UEMS – Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro UEPG – Universidade Estadual de Ponta Grossa UERGS – Universidade Estadual do Rio Grande do Sul UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UEZO – Centro Universitário da Zona Oeste UEMG – Universidade Estadual de Minas Gerais UFAL – Universidade Federal de Alagoas UFBA – Universidade Federal da Bahia UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFPA – Universidade Federal do Pará UFPR – Universidade Federal do Paraná UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFTO – Universidade Federal do Tocantins

42 Fonte: www.politicasdacor.net

Page 128: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

128

UNB – Universidade de Brasília UNEMAT – Universidade do Estado do Mato Grosso UNICAMP – Universidade de Campinas UniCEUB – Centro Universitário de Brasília UNICENTRO – Centro Universitário de Belas Artes de São Paulo UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIT – Universidade Tiradentes UNIVACO – Instituto Metropolitano de Ensino Superior UPE – Universidade de Pernambuco

Page 129: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

129

ANEXO II

Manifestos contra e a favor as cotas

“ Todos têm direitos iguais na República Democrática”

O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um

fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa

a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção

por diversos dispositivos dos projetos lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto

da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma

decisão final no Congresso Nacional.

O PL das Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e

indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto

da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos

brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas

relações com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas

raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação

brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade

da sua pele, pela “raça”. A história já condenou dolorosamente estas

tentativas.

Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais

constituem política compensatória voltada para amenizar as desigualdades

sociais. O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que

levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida

precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que esta

situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de

políticas sociais que compensassem os que foram prejudicados no passado,

ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que

reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam a corrigir um

mal maior.

Page 130: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

130

Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis

conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas

gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o

preceito da igualdade perante a lei. A adoção de identidades raciais não

deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos

“raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo podem

até produzir um efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça,

possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade

amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à

exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade

nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de

empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de

cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o

alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.

A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo

de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E

ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de

desigualdades.

Que Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja

discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida

íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços púbicos;

que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do

caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não

seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que

conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para

viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor da sua

pele, mas pela força de seu caráter.

Nos dirigimos ao Congresso Nacional, seus deputados e senadores,

pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (o PL das Cotas) e o PL 3.198/2000

(PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.

Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.

Page 131: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

131

“Manifesto em favor da Lei de Cotas e do Estatuto d a Igualdade Racial”

Aos/as deputados/as e senadores/as do Congresso brasileiro

A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta

realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas

públicas específicas. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do

racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os

cidadãos. A população negra acabava de ser colocada em uma situação de

completa exclusão em termos de acesso à terra, à instrução e ao mercado

de trabalho para competir com os brancos diante de uma nova realidade

econômica que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram

iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que

hoje podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular

a imigração de europeus para o Brasil.

Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e intensificado na

sociedade brasileira ao longo de todo século vinte. Uma série de dados

oficiais sistematizados pelo IPEA no ano de 2001 resume o padrão brasileiro

de desigualdade racial: por quatro gerações ininterruptas, pretos e pardos

têm contado com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à

saúde, menor índice de emprego, piores condições de moradia, quando

contrastados com os brancos e asiáticos. Estudos desenvolvidos nos últimos

anos por outros organismos estatais demonstram claramente que a

ascensão social e econômica no país passa necessariamente pelo acesso

ao ensino superior.

Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas

das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas cotas, cujo

marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 20 de novembro de

1995, encampada por uma ampla frente de solidariedade entre acadêmicos

negros e brancos, coletivos de estudantes negros, cursinhos pré-vestibulares

Page 132: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

132

para afrodescendentes e pobres e movimentos negros da sociedade civil,

estudantes e líderes indígenas, além de outros setores solidários, como

jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas --boa parte dos quais

subscreve o presente documento. A justiça e o imperativo moral dessa causa

encontraram ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas

públicas concretas, dentre elas: a criação do Grupo de Trabalho

Interministerial para a Valorização da População Negra, de 1995; as

primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação da

Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial

(SEPPIR), em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que

estabelecem cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em

todas as universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial.

O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma

resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários

instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da

ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

(CERD), de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de Durban,

resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação

Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do

Sul, em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada

pela CERD, de adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante

na construção da igualdade racial, uma vez aqui que as ações afirmativas

para minorias étnicas e raciais já se efetivam em inúmeros países multi-

étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil. Foram incluídas na

Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado da Malásia desde

1968; nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde

então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México.

Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro

finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive

porque o país conta com a segunda maior população negra do planeta e

deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção do Estado da

Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais aos

Page 133: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

133

europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos benefícios à

população afro-brasileira.

Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva

internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino

superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da

desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid,

os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que

a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros

nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior

que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades

públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas

universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os

negros conformam 45,6 % do total da população. Se os Deputados e

Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira

em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto,

os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do

estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século

XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e

racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma

geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois,

segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população

negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma

política específica de promoção da igualdade racial na educação seja

adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente

sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial,

deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas

do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no

mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de

pesquisador.

No caminho da construção dessa igualdade étnica e racial, somente

nos últimos 4 anos, mais de 30 universidades e Instituições de Ensino

Superior públicas, entre federais e estaduais, já implementaram cotas para

estudantes negros, indígenas e alunos da rede pública nos seus vestibulares

Page 134: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

134

e a maioria adotou essa medida após debates no interior dos seus espaços

acadêmicos. Outras 15 instituições públicas estão prestes a adotar políticas

semelhantes. Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar

com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual

ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal.

Esse dado é importante porque desmonta um preconceito muito difundido de

que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica das

universidades. Isso simplesmente não se confirmou! Uma vez tida a

oportunidade de acesso diferenciado (e insistimos que se trata de cotas de

entrada e não de saída), o rendimento dos estudantes negros não se

distingue do rendimento dos estudantes brancos.

Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as

políticas de inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que

haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito

distante desse panorama alarmista, os casos de racismo que têm surgido

após a implementação das cotas têm sido enfrentados e resolvidos no

interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e eficácia

maiores do que havia antes das cotas. Nesse sentido, a prática das cotas

tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da

discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas

experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a

formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada

que facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas.

Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis

a serem votadas o PL 73/99, que reserva vagas na graduação, é uma

medida ainda tímida: garantirá uma média nacional mínima de 22,5% de

vagas nas universidades públicas para um grupo humano que representa

45,6% da população nacional. É preciso, porém, ter clareza do que

significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação

no Brasil. Tomando como base os dados oficiais do INEP, o número de

ingressos nas universidades federais em 2004 foi de 123.000 estudantes,

enquanto o total de ingressos em todas as universidades (federais,

estaduais, municipais e privadas) foi de 1.304.000 estudantes. Se já

Page 135: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

135

tivessem existido cotas em todas as universidades federais para esse ano,

os estudantes negros contariam com uma reserva de 27.675 vagas (22,5%

de 123.000 vagas). Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total

de ingressos no ensino superior brasileiro. Devemos concluir que a

desigualdade racial continuará sendo a marca do nosso universo acadêmico

durante décadas, mesmo com a implementação do PL 73/99. Sem as cotas,

porém, já teremos que começar a calcular em séculos a perspectiva de

combate ao nosso racismo universitário. Temos esperança de que nossos

congressistas aumentem esses índices tão baixos de inclusão!

Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas

universidades públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade

Racial complementa esse movimento por justiça. Garante o acesso mínimo

dos negros aos cargos públicos e assegura um mínimo de igualdade racial

no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e

moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de

igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de 1891, no momento

inicial da construção da República no Brasil. Foi sua ausência que

aprofundou o fosso da desigualdade racial e da impunidade do racismo

contra a população negra ao longo de todo o século XX. Por outro lado, o

Estatuto transforma em ação concreta os valores de igualdade plasmados na

Constituição de 1988, claramente pró-ativa na sua afirmação de que é

necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada.

Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o

ciclo de desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história

republicana até os dias de hoje.

Gostaríamos ainda de fazer uma breve menção ao documento

contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, enviado

recentemente aos nobres parlamentares por um grupo de acadêmicos

pertencentes a várias instituições de elite do país. Ao mesmo tempo em que

rejeitam frontalmente as duas Leis em discussão, os assinantes do

documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de

inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a

lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a

Page 136: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

136

todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios

universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e

multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio sistemático,

parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à

Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as

desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um

futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à

educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado

brasileiro. Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados

oficiais recentes do IBGE e do IPEA que expressam, sem nenhuma dúvida, a

nossa dívida histórica com os negros e os índios, ou adotamos cotas e

implementamos o Estatuto, ou seremos coniventes com a perpetuação da

nossa desigualdade étnica e racial.

Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é um

princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas,

baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos

históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar

essa meta.

Conclamamos, portanto, os nossos ilustres congressistas a que

aprovem, com a máxima urgência, a Lei de Cotas (PL 73/1999) e o Estatuto

da Igualdade Racial (PL 3.198/2000).

Brasília, 3 de julho de 2006.

Page 137: As cotas nas universidades públicas brasileiras · Dissertação apresentada à ... estudos do campo das relações raciais. ... da psicologia social nos ensinou sobre a vida durante

137

ANEXO III

Roteiro de Entrevista A

1) O que foi o Movimento Pelas Reparações Já?

2) Quem foram os precursores do Movimento?

3) Com que objetivo foi criado?

4) Na ocasião, havia um consenso no movimento negro sobre

a estratégia utilizada para realizar o protesto?

5) O que é o Núcleo de Consciência Negra da USP (NCN-

USP)?

Roteiro de Entrevista B

1) O que é o EnegreSer?

2) Qual foi o motivo que impulsionou a formação do grupo?

Quais são as ações desenvolvidas?

3) Qual o papel que o EnegreSer desempenhou no debate das

cotas na UnB?

4) Quais foram as questões levantadas no curso do debate

para esboçar o projeto institucional de ação afirmativa?

Roteiro de Entrevista C

1) Quando foram iniciadas as discussões sobre as ações

afirmativas na Unifesp?

2) Quais foram as questões levantadas no curso do debate

para esboçar o projeto institucional de ação afirmativa?

3) Quais foram os programas criados para garantir a

permanência dos alunos cotistas depois do vestibular?