Ondjaki
Bom dia
camaradas
ao camarada antnio
a todos os camaradas cubanos
tambm para esses meus incrveis companheiros
escolares: bruno b., romina, petra, romena, catarina,
aina, luaia, kal, filomeno, cludio, afrik, kiesse, helder, bruno viola,
murtala, iko, tandu, fernando, mrcia,
carla scooby, enoch, mobutu, felizberto, eliezer, guigu, filipe, man,
vanuza, hlio, del, srgio cabeleira,
e todos os outros que esto includos nestas vivncias
mas cujos nomes o tempo me roubou [e os nomes
verdadeiros que deixei nesta estria so
para vos homenagear, s isso]
ainda: ao jacques, pela oportunidade
de me fazer rebuscar todo este sonho
maria che, que ps o espanhol
na boca dos camaradas professores cubanos
ao rykard, que ayudou
dada, seu mimo, sua peculiar reviso
E tu, Angola:
Sob o mido vu de raivas, queixas
e humilhaes, adivinho-te que sobes,
vapor rseo, expulsando a treva noturna.
Carlos Drummond de Andrade
BOM DIA, CAMARADA LEITOR BRASILEIRO!
A publicao no Brasil do romance Bom dia camaradas, do jovem escritor angolano
Ondjaki, torna-se uma tima oportunidade para retomarmos um contato extremamente
proveitoso que houve um dia: a ligao com a literatura africana de lngua portuguesa,
continente que abriga a origem de boa parte da nossa rica bagagem cultural. No
novidade que os escritores ditos regionalistas brasileiros influenciaram
profundamente as geraes que iriam fundar as modernas literaturas nacionais africanas,
particularmente as de Angola e Cabo Verde, mas poucos sabem que, fugindo censura
da ditadura salazarista, alguns acabaram publicando obras suas no Brasil, como os
angolanos Manuel dos Santos Lima e Castro Soromenho, ou por aqui se refugiaram,
como Luis Romano, um dos fundadores da literatura caboverdiana em crioulo. Hoje,
infelizmente, parco nosso conhecimento daquela literatura - o moambicano Mia
Couto, o caboverdiano Germano de Almeida e o angolano Jos Eduardo Agualusa
brilham solitrios.
Ondjaki, que significa, na lngua nacional umbundu, guerreiro, embora nascido em
1977, j tem construda uma slida carreira literria. Poeta (Actu sanguneu, de 2000, e
H prendisajens com o xo, de 2002), contista (Momentos de aqui, de 2001, e E se
amanh o medo, de 2004), romancista (O assobiador, de 2002, e Quantas madrugadas
tem a noite, de 2004), esse Bom dia camaradas sua primeira investida na prosa de
fico. Inicialmente publicado em Luanda, pelas Edies Ch da Caxinde, em 2000,
apareceu em Portugal trs anos depois, ganhando em seguida traduo para o francs
(pela editora sua La Joie de Lire, em 2004), espanhol (pela uruguaia Ediciones de la
Banda Oriental, em 2005) e o alemo.
A marca que assinala e diferencia a literatura de Ondjaki, e que se encontra
caracteristicamente nesse belssimo Bom dia camaradas, o lirismo. Um lirismo que
envolve tudo - mesmo os momentos de maior apreenso e incerteza - no vu da poesia,
que a uns pode parecer ingenuidade, mas que com certeza utopia - essa ideia vaga e
abstrata que modifica o mundo... Poesia que transparece nas epgrafes, nas vozes do
brasileiro Carlos Drummond de Andrade e do angolano scar Ribas, e em frases, como
no jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque sempre acordavam
cedo ou o abacateiro est a espreguiar-se, que se deixam colher fceis nas pginas
deste romance.
No raro, percebe-se nesse lirismo ressoar um curioso dilogo com a literatura
brasileira - Guimares Rosa mostra-se na manufatura inusitada de novas palavras ou na
vitalizao de outras, insufladas pelo sopro da fora potica; mas percebe-se tambm o
leitor inteligente de Raduan Nassar e de Clarice Lispector, de Adlia Prado e de Manoel
de Barros, e o ouvinte atento da msica popular brasileira, o fazedor Caetano Veloso
em particular: tudo isso Ondjaki absorve e transforma em prosa originalssima.
Falamos de lirismo e falamos de influncias. Falemos de temas. Bom dia camaradas,
se no inaugura a fico da Angola ps-colonial, sem dvida instaura a prosa da Luanda
de classe mdia ps-colonial. Estivemos acostumados a pensar em Angola - na frica,
de maneira geral - como lugar do rural ou das disputas ideolgicas transmudadas em
guerras. Se este tempo ainda no acabou - e no acabou - sem dvida se transformou.
H hoje, apesar de toda precariedade, uma sociedade que tenta se modernizar e uma
cidade que se quer moderna: Luanda. E nela que transcorre a histria narrada por um
menino no nomeado - que bem poderia ser a do prprio autor - vivendo numa Angola
dos finais dos anos 80, ainda sob os eflvios da guerra fria - os cubanos, que l
chegaram em 1975, permanecendo at 1991, so importantes personagens do livro.
Ondjaki nos traz um convincente relato desses fundamentais anos de mudanas e
esperanas. No mais a viso desamparada e repleta de culpas de alguns escritores
portugueses - os tugas - que participaram da guerra colonial, nem tambm a viso
militante dos escritores angolanos dos tempos heroicos de Agostinho Neto - mas a viso
realista e pragmtica de uma classe mdia que tenta se erguer em meio ao caos. O
menino, filho de um alto funcionrio do governo, tem um pajem - o camarada
Antnio, cozinheiro e voz de uma certa camada popular -, estuda numa boa escola que
tem professores cubanos, e desfruta de algumas benesses, como pegar boleia (carona)
no carro do Ministrio e contar com telefone e geleira (geladeira) em casa.
A histria, em si, aparentemente banal. O menino relata seu dia a dia de coisas
desimportantes - como por exemplo, sua surpresa ao descobrir que os professores
cubanos se espantavam com o fato de os alunos possurem calculadoras eletrnicas e
relgios e a nsia com que se regalavam com a fartura de comida; ou o temor provocado
pelo Caixo Vazio, uma lenda urbana da infncia; ou ainda os preparativos para um 1
de Maio nacionalista e autorreferente.... No entanto, como toda boa literatura, no o
que se conta o que importa, mas o como se conta: e aqui estamos em mos seguras.
Ondjaki consegue manter viva a narrativa, pela capacidade incomum de conseguir
manifestar-se pelo narrador-menino, sem que isso, em nenhum momento, soe artificial
ou forado.
E essa talvez seja outra grande contribuio de Ondjaki: lemos um texto em lngua
portuguesa, mas num magnfico desvio do portugus-padro, um portugus no
recheado de palavras e expresses angolanas mas pensado e escrito em portugus de
Angola, algo que ns, brasileiros, bem conhecemos, pois embora falemos uma lngua
que j no mais o portugus, continua, entretanto e por isso mesmo, sendo-o mais
ainda... (Aqui vale o parnteses: muitas das palavras e expresses angolanas presentes
em Bom dia camaradas sendo estranhas para ns, brasileiros, no o so para os
portugueses, devido influncia das linguagens nascidas na grande comunidade
expatriada angolana junto juventude lisboeta...)
Enfim, Bom dia camaradas um desses livros que, no tendo sido escrito para um
pblico especfico, acabar, com toda certeza, ampliando o leque, interessando tambm
a esta vasta massa de leitores que o mercado hoje nomeia como jovens adultos - algo
como aquele clssico indispensvel, Os meninos da rua Paulo, de Frenc Molnar:
quantos de ns um dia passeamos pelas ruas de Budapeste, sofrendo com aquele bando
de garotos numa Hungria do final do Sculo XIX? Pois assim se d tambm com esse
Bom dia camaradas. Ao final, nos familiarizamos tanto com os personagens, seus
anseios, seus sonhos que, como o narrador, sofremos com antecedncia a separao. A
diferena, talvez, seja que a histria relatada aqui estabelece um arco de continuidade: o
que ocorreu a cada um dos meninos podemos apenas imaginar, mas certamente sabemos
que cumpriro o ciclo da vida, crescero, envelhecero, morrero - mas o romance,
bem, esse renasce a cada leitor que, abrindo suas pginas, l a primeira frase - Mas,
camarada Antnio, tu no preferes que o pas seja assim livre?, eu gostava de fazer essa
pergunta quando - ... e no para mais...
Luiz Ruffato - escritor, autor de Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo.
I
Tu, saudade, revives o passado,
reacendes extinta felicidade.
scar Ribas,
Cultuando as musas
Mas, camarada Antnio, tu no preferes que o pas seja assim livre?, eu gostava de
fazer esta pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de gua.
Antes de chegar aos copos, j o camarada Antnio me passava um. As mos dele
deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu no tinha coragem de recusar
aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava espera da resposta dele.
O camarada Antnio respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as mos,
mexia no fogo do fogo. Ento, dizia:
- Menino, no tempo do branco isto no era assim...
Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histrias
incrveis de maus-tratos, de ms condies de vida, pagamentos injustos, e tudo mais.
Mas o camarada Antnio gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria
assim tipo mistrio.
- Antnio, tu trabalhavas para um portugus?
- Sim, - sorria. - Era um senhor diretor, bom chefe, me tratava bem mesmo...
- Mas isso l no Bi?
- No. J aqui em Luanda mesmo; eu j tou aqui h muito tempo, menino... inda o
menino no era nascido...
Eu esperava sentado por mais palavras. O camarada Antnio fazia l as atividades da
cozinha, sorria, mas ficava calado. Todos dias ele tinha o mesmo cheiro, mesmo quando
tomava banho, parecia sempre ter aqueles cheiros da cozinha. Ele pegava na garrafa de
gua, enchia com gua fervida, voltava a pr na geleira.
- Mas, Antnio, ainda quero mais gua...
- No, menino, j chega - ele dizia. - Seno depois no almoo no tem gua gelada e
a me fica chateada...
Quando arrumava a garrafa de gua, e limpava a bancada, o camarada Antnio
queria continuar com as tarefas dele sem mim ali. Eu atrapalhava a livre circulao pela
cozinha, alm de que aquele espao pertencia s a ele. Gostava pouco de ter gente ali.
- Mas, Antnio... Tu no achas que cada um deve mandar no pas? Os portugueses
tavam aqui a fazer o qu?
- ! Menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa...Tinha tudo, no
faltava nada...
- Antnio, no vs que no tinha tudo? As pessoas no tinham um salrio justo,
quem fosse negro no podia ser diretor, por exemplo...
- Mas tinha sempre po na loja, menino, os machimbombos funcionavam... - ele s
sorrindo.
- Mas ningum era livre, Antnio... No vs isso?
- Ningum era livre, como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo...
- No isso, Antnio - eu levantava-me do banco. - No eram angolanos que
mandavam no pas, eram portugueses... E isso no pode ser ...
O camarada Antnio a ria s.
Sorria com as palavras, e vendo-me assim entusiasmado dizia esse menino!, ento
abria a porta que dava para o quintal, procurava com os olhos o camarada Joo, o
motorista, e lhe dizia: esse menino terrvel!, e o camarada Joo sorria sentado na
sombra da mangueira.
O camarada Joo era motorista do ministrio. Como o meu pai trabalhava no
ministrio ele ajudava nas voltas da casa. s vezes eu aproveitava a boleia e ia com ele
para a escola. Era magro e bebia muito, ento de vez em quando aparecia de manh
muito cedo l em casa j bbado, e ningum queria andar no carro com ele. O camarada
Antnio dizia que ele j estava habituado, mas eu tinha receio. Um dia ele deu-me
boleia para a escola, e fomos a conversar.
- Joo, tu gostavas quando os portugueses estavam c?
- o qu, menino?
- Sim, antes da independncia, eles que mandavam c. Tu gostavas desse tempo?
- As pessoas dizem que o pas estava diferente... no sei...
- Claro que estava diferente, Joo, mas hoje tambm est diferente. O camarada
presidente angolano, os angolanos que tomam conta do pas, no so os
portugueses...
- isso, menino... - o Joo gostava de rir tambm, depois assobiava.
- Tu trabalhavas com portugueses, Joo?
- Sim, mas eu era muito novo... E estive no maqu tambm...
- O camarada Antnio que gosta de falar muito bem dos portugueses... - provoquei.
- Camarada Antnio mais velho - disse o Joo, e eu no percebi muito bem aquilo.
Ao passarmos por uns prdios muito feios, eu fiz adeus a uma camarada professora.
O Joo perguntou logo quem era, e eu respondi: a professora Mara, ali o bairro dos
professores cubanos.
Ele me deixou na escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha
chegado de boleia. Ns costumamos gozar sempre quem chega de boleia, por isso eu
sabia j que eles iam me estigar. Mas at no estavam a rir s disso.
- o qu? perguntei. O Murtala estava a contar uma cena que tinha-se passado na
tarde anterior, com a professora Mara. - A professora Mara, mulher do camarada
professor ngel?
- Sim, essa mesmo... - o Helder disse a rir. - Ento ela hoje de manh, l na sala,
tavam a fazer muito barulho ento ela quis dar falta vermelha no Clio e no Cludio...
y... eles levantaram-se j pra ir refilar e a professora disse... - o Helder j no podia
mais de tanto rir, ele tava todo vermelho - a professora disse: Ustedes queden-se ai,
ou a ou qu!
- Sim, e depois? - eu tambm j a rir s de contgio.
- E eles se atiraram no cho mesmo...
Rebentamos todos a rir. Eu e o Bruno tambm gostvamos de brincar com os
professores cubanos, como eles s vezes no percebiam bem o portugus, ns
aproveitvamos para falar rpido e dizamos disparates.
- Mas ainda no sabes da melhor... - o Murtala chegou perto de mim.
- O qu ento?
- Ela tava a chorar e bazou pra casa!!! - o Murtala tambm estava a rir toa. - Deu
borla s por causa disso!
Ns tnhamos aula de Matemtica, era com o professor ngel. Quando ele entrou,
estava chateado ou triste. Eu dei o toque no Murtala, mas no podamos rir. Antes de
comear a aula, o camarada professor disse que a mulher dele estava muito triste porque
os alunos tinham sido indisciplinados, e que num pas em reconstruo era preciso
muita disciplina. Ele tambm falou do camarada Che Guevara, falou da disciplina e que
ns tnhamos que nos portar bem para que as coisas funcionassem bem no nosso pas. A
sorte foi que ningum queixou o Clio e o Cludio, seno com isso da revoluo eles
tinham mesmo apanhado falta vermelha.
No intervalo a Petra foi dizer ao Cludio que eles tinham de pedir desculpa na
camarada professora, porque ela era muito boa, era cubana e estava em Angola para nos
ajudar. Mas o Cludio no gostou nada de ouvir a Petra, e disse-lhe que s tinha
cumprido a ordem dela, que ela tinha dito para eles se quedarem e ento eles atiraram-
se para o cho.
Todos gostvamos do professor ngel. Ele era muito simples, muito engraado. No
primeiro dia de aulas ele viu o Cludio com um relgio no pulso e perguntou se o
relgio era dele. O Cludio riu e disse que sim. O camarada professor disse: mira, yo
trabajo desde hace muchos aos y todava no tengo uno, e ns ficamos muito
admirados porque quase todos na turma tinham relgio. A professora de Fsica tambm
ficou muito admirada quando viu tantas mquinas de calcular na sala de aula.
Mas no era s do professor ngel e da professora Mara. Ns gostvamos de todos
os professores cubanos, tambm porque com eles as aulas comearam a ser diferentes.
Os professores escolhiam dois monitores por disciplina, o que primeiro gostamos
porque era assim uma espcie de segundo cargo (por causa do delegado de turma), mas
depois no gostamos muito porque para ser monitor haba que ayudar a los
compaeros menos capacitados - como diziam os camaradas professores, e tinha que
se saber tudo sobre essa disciplina e no se podia tirar menos que 18. Mas o mais chato
de tudo era que tinha mesmo que se fazer os trabalhos de casa porque era o monitor que
controlava isso no incio da aula. Claro que ir dizer ao professor quem tinha feito a
tarefa e quem no tinha feito, s vezes dava luta no intervalo, o Paulo que o diga quando
lhe levaram no hospital com o nariz a sangrar.
No fim da tarde a camarada diretora veio falar conosco. Ns gostvamos quando
entrava algum na sala de aulas pois tnhamos que nos pr de sentido e fazer aquela
cantoriazinha, que uns e outros aproveitavam j para berrar: bua taaardeeeee...
camardaaaaa... diretoraaaaaaa.
Ento ela veio avisar que amos ter uma visita-surpresa do camarada inspetor do
Ministrio da Educao. Que ela sabia que ia ser por um destes dias mas que tnhamos
que nos portar bem, limpar a escola, a sala, as carteiras, vir apresentveis (acho que
foi isso que ela disse), e que o resto os professores depois explicavam.
Ningum disse nada, nem ningum perguntou nada. Claro que s nos levantamos
quando a camarada diretora disse ento at amanh, e este at amanh no era to
ao calhas como isso, porque seria diferente ela dizer at para a semana, ento l nos
levantamos e dissemos bem alto: ate... manh... camardaaaaaaaa...
diretoraaaaaaaaa!
ento tambm percebi que, num pas, uma
coisa o governo, outra coisa o povo.
Se, quando me acordavam, eu me lembrasse do prazer do mata-bicho assim de
manhzinha, eu acordava bem-disposto. Matabichar cedo em Luanda, cuia! H assim
um fresquinho quase frio que d vontade de beber leite com caf e ficar espera do
cheiro da manh. s vezes mesmo com os meus pais na mesa, ns fazamos um
silncio. Se calhar estvamos mesmo a cheirar a manh, no sei, no sei.
O camarada Antnio tinha chaves de casa, mas s vezes eu estava na varanda e via-
lhe ali sentado na zona verde. A minha me j tinha lhe dito para ele no vir to cedo,
mas parece que os mais velhos tm pouco sono s vezes. Ento ele ficava ali nos
bancos, s assim sentado. Quando ouvisse movimentos aqui em casa, ele aparecia
devagar.
- Bom dia, menino.
- Bom dia, camarada Antnio... - eu esperava que ele fechasse o porto. - Hoje
tambm estavas a muito cedo, Antnio...
- ... eu fico mesmo a sentado, menino... - sorrindo, ele. - A senhora j acordou?
O camarada Antnio fazia aquela pergunta, mas eu no sei porqu. Ele sabia que a
minha me era sempre a primeira a acordar. Se calhar no era para eu responder, mas eu
s ia perceber isso muito mais tarde.
- Hoje vieste de candongueiro, Antnio?
- No, menino, vim a p mesmo; esta hora est fresco...
- Desde o Golf at aqui, Antnio? - eu, em espanto.
- Vinte minuto, menino... Vinte minuto...
Mas no era verdade. O camarada Antnio gostava de dizer vinte minuto pra tudo.
A gua j estava a ferver h vinte minuto, a me tinha sado h vinte minuto e faltava
sempre vinte minuto para o almoo estar pronto.
Fiquei na varanda. No jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque
sempre acordavam cedo. Eram muitas. Depois do mata-bicho, ficar assim na varanda
com aquele fresquinho, ver as lesmas irem no sei aonde, aquilo dava-me sono outra
vez. Adormeci mesmo.
Sempre era o sol que me acordava. Era muito impossvel na minha varanda descobrir
o stio para onde ele ia a seguir. A perna estava quente e dormente, eu tinha uma
comicho muito chata. Cocei. Depois ouvi a voz do Antnio, vinda l da cozinha.
- Tava a chamar, camarada Antnio? - cheguei cozinha.
- Telefonou a tia do menino, menino...
- Qual tia, Antnio?
- A tia de Portugal.
- , Antnio, poas... e nem me acordaste... Eu queria falar com ela.
- Ela queria falar com o pai, menino... - sorrindo.
- Ento..., queria falar com o pai mas falava comigo... E ela disse o qu?
- No disse, menino... Falou s era pra dizer no pai que ela tinha ligado, parece vai
ligar, hora do almoo...
- Mas telefonou a que horas, Antnio, eu no ouvi o telefone...
- Nem faz vinte minuto, menino...
O cheiro da cozinha, o apito da panela, a movimentao do camarada Antnio, tudo
me dizia que deviam ser onze horas. Ainda no tinha feito as tarefas de Matemtica e
Qumica, e devamos almoar ao meio-dia e meia. Decidi que j no ia tomar banho, at
porque havia Educao Fsica tarde, assim o banho ficava j para a noitinha.
Subi, fui fazer os deveres, como dizamos antigamente. A minha me tinha-me
ensinado que primeiro estuda-se a matria e depois que se faz a tarefa, mas quando eu
no tinha tempo ia ver a matria e resolvia isso logo. O Cludio, o Bruno e
principalmente o Murtala sempre faziam assim os deveres, e diziam que funcionava. J
a Petra todos os dias estudava, metia raiva aquela mida, no dia seguinte j sabia a
matria toda, ns quando tnhamos uma dvida durante uma prova sempre lhe
perguntvamos.
A minha me chegou. Primeiro vai cozinha ver se o almoo est bem encaminhado,
depois que vai pendurar as chaves no chaveiro, vai subir, perguntar-me se tenho os
deveres feitos e vai tomar banho. S se eu estiver enganado, mas costuma ser assim.
- Tu que falaste com a tia Dada? - deu-me um beijinho, foi para a casa de banho,
abriu a torneira. (Eu sabia!)
- No, eu tava a fazer os deveres... Foi o camarada Antnio.
- Mas o Antnio disse que tu estavas na varanda.
- Sim, estava na varanda a fazer os deveres.
- Mas j vos disse que quando o telefone toca, vocs atendem, no fazem o camarada
Antnio vir da cozinha para atender o telefone... - era outro tom de voz.
- Mas ele veio to rpido, me, que eu nem tive tempo... - ela entrou no banho. O
barulho da gua interrompeu a conversa. Ainda bem.
O telefone tocou. Fui a correr, estava convencido que era a tia Dada. Eu no lhe
conhecia, mas j tinha falado com ela muitas vezes ao telefone, ento era muito
engraado, porque eu s conhecia a voz dela. Uma vez ela ps-me a falar com o filho
dela, e passamos a tarde toda a rir, eu e as minhas irms, por causa da maneira como ele
falava. Eu quase nem conseguia responder, estive quase pra me atirar no cho de tanto
rir, at a minha me teve que dizer que eu estava com clicas na casa de banho. A
minha tia dava menos vontade de rir, porque ela falava muito devagar, tinha assim,
como dizem os mais velhos - e o Cludio no me pode ouvir a dizer isto -, ela tinha uma
voz doce.
Mas no era ela ao telefone. Era a Paula da Rdio Nacional, queria falar com a minha
me. Eu disse que ela estava no banho, mas ela quis esperar. A Paula tambm era outra
pessoa que tinha uma voz doce, eu gostava muito de ouvir a voz dela na Rdio, mas
assustei-me na primeira vez que lhe vi, porque pensei que uma pessoa com a voz dela
tinha que ser baixinha, e ela era alta. Quando ouvi a minha me dizer sim, vou
perguntar se ele quer..., desconfiei que era qualquer coisa relacionada comigo.
- Olha, a Paula vai fazer amanh um programa sobre o 1 de Maio e queria recolher
depoimentos de pioneiros... Tu queres ir?
- Depoimentos ir l falar, n? - eu, embora j soubesse.
- Sim, preparas qualquer coisa e amanh ela vem te buscar para irem fazer uma
gravao.
- Mas para um programa?
- Mais ou menos, acho que para passar no noticirio, uma mensagem das crianas
para os trabalhadores.
- Ento vou ter que fazer uma redao, me? Ai, isso j d muito trabalho...
- No, no tens que fazer uma redao porque no te vo deixar ler a redao, so s
algumas palavras...
- Tu podes me ajudar?
- Com o texto no, filho... Tu escreves o que quiseres, eu posso corrigir-te os erros,
mas o texto tem que ser teu.
- T bem. Quero ir conhecer a Rdio. Se calhar ela deixa-me ver os instrumentos
todos...
- Sim, talvez, tens que lhe pedir.
Assim j era hora do almoo. As minhas irms chegavam da escola, o meu pai
tambm chegava. A casa ficava mais barulhenta, mais o barulho do rdio na sala para
ouvir as notcias, mais o rdio do camarada Antnio ligado na cozinha, mais a minha
irm caula que queria contar tudo o que se tinha passado na escola nessa manh. Ela
sabia que tinha que se despachar porque quando fosse uma hora em ponto ia ter que
parar o relato para deixar os pais ouvirem as notcias.
Ns ficvamos um bocado aborrecidos com as notcias, porque era sempre a mesma
coisa: primeiro eram as notcias da guerra, que no eram diferentes quase nunca, s se
tivesse havido alguma batalha mais importante, ou a Unita tivesse partido uns postes. A
j dava risa, porque todo mundo ia dizer na mesa que o Savimbi era o Robin dos
Postes. Depois tinha sempre algum ministro ou pessoa do bir poltico a dizer mais
umas coisas. Depois vinha o intervalo com a propaganda das Fapla Ah, verdade, s
vezes tambm falavam da situao na frica do Sul, l do ANC, enfim, isso eram
nomes que uma pessoa ia apanhando ao longo dos anos. Tambm se aprendia muita
coisa, porque a propsito disso, por exemplo, do ANC, que o meu pai nos explicou
quem era o camarada Nelson Mandela, e eu fiquei a saber que havia um pas chamado
frica do Sul onde as pessoas negras tinham que ir para casa quando tocava a
campainha s seis da tarde, que elas no podiam andar no machimbombo com outras
pessoas que no fosse negras tambm, e at fiquei bem espantado quando o meu pai me
disse que esse camarada Mandela j estava preso h no sei quantos anos. Foi tambm
assim que percebi porqu que os sul-africanos eram nossos inimigos, e que o fato de ns
lutarmos contra os sul-africanos significava que ns estvamos a lutar contra alguns
sul-africanos, porque de certeza que essas pessoas negras que tinham um machimbombo
especial para elas no eram nossas inimigas. Ento percebi que, num pas, uma coisa o
governo, outra coisa o povo.
Depois destas notcias, e destas conversas, vinha o desporto. Mas tambm era sempre
o Petro ou o DAgosto que ganhava, bem, a Taag depois ainda melhorou uns coche, at
deu 11 a 1 noutra equipa, coitados!, o Cludio estigou mal o Murtala no dia seguinte,
acho que o Murtala at chorou. uma e vinte, quando os meus pais tomavam caf,
desligaram o rdio. O telefone tocou e agora eu tinha a certeza que era a tia Dada.
O meu pai que falou com ela primeiro, estava a apontar o voo e as horas, assim eu
soube que ela devia estar para chegar. Depois ela comeou a falar com cada um,
primeiro a minha me, depois a minha irm, e eu percebi que ela estava a perguntar se
queramos qualquer coisa. O meu pai fez-me sinal para eu no pedir muita coisa, porque
eu sempre pedia demasiados lpis de cor, ou blocos de carta, e ainda por cima bu de
chocolate. Assim tive mais tempo para pensar, e vi que cada um s estava a pedir uma
coisa.
- Ests bom, meu querido... - a voz dela, doce, doce.
- Tou sim, tia... Olha, quando que tu chegas?
- Eu chego amanh, sabias?
- No, no sabia, que bom... Ento queres me perguntar o qu que eu quero, no ?
- Sim, filho, diz l... - ela sorrindo muito.
- Bem, como s posso pedir uma coisa... - virei-me para o outro lado, e ningum
ouviu o que eu tinha pedido.
Depois do almoo, os felizardos - como dizia a minha me - iam dormir a sesta. Eu
e ela tnhamos aulas tarde, ela porque era professora e eu porque era aluno. s vezes
ela dava-me boleia. Eu ia frente, punha o carro em ponto morto e ligava a ignio.
Como no podia fazer mais nada, ficava s ali a imaginar j quando eu ia conduzir,
ch!, eu ia zunir bu, sempre isso eu pensava, ento acelerava um bocadinho, para ouvir
o barulho e ajudar na imaginao. Se a minha me ouvisse eu dizia: que o carro est
frio..., desculpa mesmo toa, porque s duas da tarde em Luanda o carro s est frio se
tiver gelo em cima. Chega-te para l..., disse a minha me enquanto ocupava o lugar
do condutor. Depois, a meio do caminho:
- Me...
- Diz.
- A tia Dada vai trazer prendas para todos? - espanto.
- Se ela puder traz...
- Mas eles so quantos l em casa dela?
- Ela e os trs filhos. Porqu?
- E como que ela vai trazer prendas para ns que somos cinco, e ainda perguntou
tambm coisas para o camarada Antnio... O carto dela tem direito a isso tudo?
Mas j estvamos a chegar esquina onde eu descia, e ela no teve tempo de
responder. Deu-me s um beijinho e disse-me para eu pensar naquilo do 1 de Maio
para a Rdio, porque era para o dia seguinte.
Estava muito calor. Alguns colegas cheiravam muito a catinga, o que normal para
quem tenha vindo a p para a escola. Ficvamos ali a conversar fora da sala, sempre
com a esperana de que o professor no viesse. Era incrvel, como que ns queramos
sempre acreditar que era possvel haver uma borla todos dias, porque se dependesse de
ns, era isso que desejvamos. Como dizia a professora Sara, parece que vocs no
sabem que a vossa misso estudar, talvez da aquela dica da caneta ser a arma do
pioneiro. Ou ento ela dizia: no se esqueam que a escola a vossa segunda casa,
mas isso era perigoso dizer ao Murtala, porque depois ele estava to vontade que
adormecia na sala de aulas com a desculpa de estar no quarto dele.
A conversa estava boa. O Bruno veio dizer, com aquela cara que s ele sabe fazer e
toda a gente acredita mesmo, que havia um grupo de gregos que estava a assaltar
escolas. Eu j tinha ouvido dizer qualquer coisa, mas pensava que era naquelas escolas
mais distantes, l para o Golf. Mas o Bruno tipo que estava bem informado mesmo:
- Ep, o filho da minha empregada que me contou. Ontem ele nem foi s aulas,
veio com a me dele para a minha casa, e tinha bu de feridas...
- , afinale? - um algum.
- Y, aquilo foi mesmo a srio, tipo que eles so quarenta ou qu...
- Quarenta?! - o Cludio estava a achar exagero. Mesmo os Za quando assaltavam
no eram tantos.
- Za? Za?! - continuava o Bruno, aquela cara sria s de de-vez-em-quando. - Za
brincadeira ao p do Caixo Vazio... Olha, eles vm num camio, todos vestidos de
preto; cercam a escola e ficam mesmo espera que os alunos saiam... Depois vo
apanhando assim mesmo as pessoas a correr... quem for apanhado...
- Hum... Acontece o qu? - Murtala, assustado, aqueles olhos de rato j bem acesos.
- Acontece o qu... Ali sai tudo: gamam mochilas, te chinam, violam midas e
tudo, so bu eles, e nem a polcia vai l, ch, tambm tem medo...
Quando a aula comeou, os rapazes estavam todos a pensar no Caixo Vazio. Cada
um imaginava j estratgias de fuga, o Cludio de certeza ia comear a trazer o canivete
dele pontimola, o Murtala que corria muito que estava safo, eu ia ficar atrapalhado se
no meio da correria os culos cassem, o Bruno tambm; bem, as meninas, coitadas!,
coitada da Romina que s de ouvir falar na estria j ia comear a chorar e ia pedir
me dela para no vir na escola durante uma semana; a Petra tambm ia ter medo, mas
estaria sempre mais preocupada com as aulas. Olhei para o Bruno: na carteira dele,
muito agitado, ele suava na preparao de qualquer coisa. Primeiro pensei que ele
estivesse a desenhar, mas depois senti o cheiro da cola. Antes do fim da aula, pediu
Petra as canetas de feltro. Metia medo: tinha feito um caixo pintado de preto, com uma
caveira bem horrorosa, e escrito a vermelho assim tipo sangue: Caixo Vazio Passou
Aqui!
No segundo tempo a professora Sara explicou que o camarada inspetor ia fazer a
visita-surpresa nos prximos dias, que eles no sabiam quando mas que estava quase a
acontecer. Explicou-nos tudo outra vez, como devamos cumprimentar, que no
devamos fazer barulho, pediu at para virmos penteados, claro que isso era mais para o
Gerson e o Bruno que nunca se penteavam (o Bruno disse-me que tinha-se penteado
pela ltima vez quando tinha sete anos, mas acho que era balda), e raramente tomavam
banho, isso devia ser verdade porque se notava pelo cheiro, tanto que ningum gostava
de sentar com eles.
A professora Sara depois ralhou a Petra por estar a fazer perguntas indiscretas.
que a Petra queria perguntar, e perguntou mesmo, como que a visita do camarada
inspetor ia ser surpresa se ns j sabamos que ele vinha, apesar de no sabermos o dia,
e tambm j sabamos os temas que iam nos perguntar e que estava tudo preparado para
essa surpresa.
Enfim, a Petra de vez em quando tinha destas coisas, e depois ainda ficava triste
porque ningum lhe apoiava e a professora tinha lhe ralhado. Bem feita, que pra no
se armar em chica esperta e ver se fica um bocadinho menos agitadora.
- Mas eu fao as compras que quiser desde
que tenha dinheiro, ningum me diz que
levei peixe a mais ou a menos...
- Ningum? [...] Nem tem um camarada
na peixaria que carimba os cartes quan-
do levantas peixe quarta-feira?
Acordei cedo e muito bem-disposto. Tinha duas coisas maravilhosas para fazer nesse
dia: uma que ia ao aeroporto buscar a tia Dada, a outra que ia Rdio Nacional ler a
minha mensagem para os trabalhadores. Pensei que seria bom aproveitar umas coisas da
redao que eu tinha feito sobre a aliana operrio-camponesa, que tinha tido cinco
valores na prova de Lngua Portuguesa.
Fui abrir a porta ao camarada Antnio, e claro que ele disse que tinha chaves e que
no era preciso. Mas quando eu fazia isso, no sei como que ele no percebia,
porque eu tinha alguma coisa para lhe dizer.
- Bom dia, camarada Antnio - abri o porto pequeno.
- Bom dia, menino - metendo a mo no bolso, a ver se era mais rpido e se ainda ia
conseguir abrir a porta com a chave dele. - No preciso, menino, eu tenho chave...
- Sabes onde que eu vou hoje, Antnio? - pensava que ele no sabia.
- Ento, o menino vai no aeroporto buscar a tia.
- E depois vou mais aonde?
- Vem pra casa, menino...
- No, no! Vou Rdio Nacional!
- !, o menino vai falar na Rdio? - ele sorrindo, e fechando o porto com a sua
chave.
- Ainda no sei... Vou eu e mais dois midos de outras escolas, no sei se depois
passam todas as mensagens.
Fomos para a cozinha. J matabichou, menino?, mas eu queria era ainda falar
daqueles assuntos da Rdio, j estava a imaginar o camarada locutor anunciar o meu
nome, e os meus colegas tambm se calhar iam ouvir, e se os meus professores cubanos
ouvissem?, ser que isso tambm d para misturar com a revoluo? Eu dava voltas
cabea, estava feliz, tambm porque era dia de receber prendas, e finalmente ia
conhecer a minha tia de voz doce, s esperava que ela no fosse muito alta. Come
devagar, menino, isso faz mal, mas comer devagar como, se a Paula podia chegar a
qualquer momento e eu tinha que estar pronto para ir Rdio Nacional de Angola!
Fiquei de boca. Para j, na entrada, um camarada pediu o meu nome e apontou l
numa folha e deu um carto que eu tinha que pendurar na camisa, tipo eu era j o
camarada diretor da Rdio, gostei muito daquele estilo do carto, ch, s o poster!, tava
a matar. Na entrada havia uma fonte de gua, e at tinha duas tartarugas vivas ali a
passearem, eu at perguntei Paula como que elas ficavam ali assim, abandonadas,
sem ningum a tomar conta.
- Sem ningum a tomar conta? Como assim? - ela no tinha percebido.
- Sim, ningum gama essas tartarugas?
A Paula riu, mas riu porque no conhecia o Murtala, que tinha uma tcnica silenciosa
de gamar mambos, mesmo que fossem animais. Uma vez quando fomos ao jardim
zoolgico o Cludio apostou que ele no ia conseguir gamar nada do jardim, e quando o
Murtala viu aqueles macaquinhos bem pquis, quis j agarrar um. O macaco lhe esticou
uma lambisgoia do lbio que at saiu sangue. O Cludio comeou a rir bu, mas quando
voltamos para a escola descobrimos que aquilo era s uma manobra do Murtala, o
muadi queria mesmo era gamar o pitu do macaco, e comeou a nos rir no
machimbombo quando ns tvamos bem fobados e ele tava a pitar aquelas amndoas
bem duras. Coitado do Murtala, no dia seguinte ns que lhe rimos, ele tava com uma
diarrumba daquelas que o Bruno chama de diarrumba de cinco em cinco, depois
percebemos que era minutos.
Mas a Paula disse que tnhamos de ir andando, passamos por um corredor bem
limpo, at fiquei burro, poa, afinal Luanda tem stios assim to bonitos? isso mesmo,
a Rdio Nacional bonita, eu estava encantado, tinha pequenos jardins l dentro, eu at
queria pedir Paula para ir ali brincar depois das gravaes, enquanto esperava pelos
meus pais. O estdio era pequeno e tinha um mambo na parede parecia rolha da garrafa
de vinho, bu giro. Tivemos muita sorte, eu e outros dois pioneiros, porque eles nos
explicaram tudo, como que funcionavam as coisas, at nos deixaram fazer gravaes
de brincadeira primeiro, depois a luz faltou e estivemos muito tempo espera que o
gerador arrancasse. Para nos distrair a Paula fez uma brincadeira, que eu acho um
bocado perigosa: disse que se quisssemos podamos dizer disparates durante cinco
minutos. Primeiro todo mundo ficou calado, depois ela disse que era verdade mesmo,
que podamos dizer, depois eu perguntei se ela ia dizer aos nossos pais, e ela jurou que
no. Mas claro que os mais velhos nunca sabem bem aquilo que ns sabemos e quando
ns comeamos a metralhar a brincadeira s durou um minuto, porque foram trinta
segundos de rajada tripla e outros trinta para ela nos conseguir calar. Eu pensei que
estava bem treinado, consegui em vinte e dois segundos dizer todos os disparates que
conhecia, mesmo os piores de todos, e aproveitei os outros oito segundos para fazer
misturas e combinaes daqueles que eu sabia com os que tinha acabado de ouvir, mas
aqueles midos tambm eram poderosos, pra dizer a verdade.
A luz voltou mais rpido que o tempo de arrancar o gerador. Ento fomos pressa
gravar as mensagens antes que a luz fosse de novo. Quando eu ia tirar o meu papel com
as coisas que tinha escrito, a Paula explicou-me que no era necessrio porque j
tnhamos ali uma folha da redao com os textos de cada um. At foi mais fcil,
porque aquilo j vinha batido mquina e tudo.
Quando a gravao acabou, fomos l para o ptio. Estivemos durante algum tempo a
fazer troca de disparates e de estigas. Aqueles midos no me aguentavam nas anedotas,
mas tinham estigas que podiam fazer uma pessoa chorar. Ao contrrio das estigas da
minha escola, aquelas eram muito curtas, muito simples, mas muito fortes. Foi com eles
que aprendi aquelas: engoliste ccega, arrotaste gargalhada, quem acorda primeiro na
tua casa que pe cueca, bebeste gua de bateria, comeaste a dar arranque ou a to
famosa deste duas voltas no bacio, berraste Angola grande! Eles sabiam tambm
bu de estrias de gregos e qu, e eu at ia perguntar sobre o Caixo Vazio, mas a Paula
veio dizer que os meus pais j estavam espera.
- Portaste-te bem? - a minha me.
- Sim, portamo-nos todos bem. Os outros midos eram bem fixes... - abro a janela,
ponho a cabea de fora, est calor.
- Como que foi? Leste a tua mensagem?
- Afinal no foi preciso, me.
- No?
- No, eles tinham um papel l na Rdio, com carimbo e tudo, j tinha l as
mensagens de cada um. Eu li uma e eles leram as outras duas.
Estava muita gente no aeroporto c fora. sempre assim quando chega um voo
internacional. Ao p da porta de sada das pessoas havia uma pequena confuso, vio os
Faplas virem a correr, pensei j que ia sair tiro. Subi no cap do carro, espreitei por
cima dos ombros daquelas pessoas todas.
Estava muito calor, e lembro-me de ter sentido uma vez mais aquele cheiro assim
generalizado de catinga. O tipo de cheiro muitas vezes tambm me dizia que horas
eram... Mas aquele quente-abafado misturado com cheiro a peixe seco queria dizer, isso
sim, que tinha chegado um voo nacional. No ia ao aeroporto muitas vezes, mas estas
coisas todo mundo sabia, ou melhor, cheirava. Fingi que estava a limpar o suor da testa
com a manga da t-shirt e aproveitei para cheirar o meu sovaco. Podia estar pior...,
pensei.
Subi no cap do carro, espreitei por cima dos ombros daquelas pessoas todas. At
sorri: um macaco to bonitinho estava a saltitar no ombro de uma senhora estrangeira,
enquanto um senhor, acho que era o marido, lhe tirava fotografias. O macaco delirava,
dava saltos mortais na cabea da kota, fingia que lhe estava a catar piolhos, o marido
dela, acho que era o marido, era um senhor muito branco mas estava muito vermelho de
rir. De repente, um Fapla aproximou-se por trs, esticou uma bofa no macaco, coitado,
ele saltou, deu duas cambalhotas no ar, ainda gritou, caiu no cho e desatou a correr.
No consegui mais ver o macaco, comeou uma pequena confuso, o outro Fapla
chegou perto do marido da senhora e tirou-lhe a mquina das mos. Dava para ouvir
mais ou menos a conversa, o senhor estava a tentar falar portugus, o Fapla estava
chateado, abriu a mquina assim de repente, tirou o rolo, deitou fora. A acho que a
senhora comeou a chorar, mas perceberam que aquilo era a srio. Coitados, eles no
deviam saber que em Luanda no se podia tirar fotografias assim toa. O Fapla disse:
a mquina est detida por razes de segurana de Estado! Depois explicaram-lhes que
no podiam estar a tirar fotografias no aeroporto, ele disse que s estava a fotografar o
macaco e a mulher, mas o Fapla filipou e disse que a mulher e o macaco estavam no
aeroporto e que nunca se sabia onde que aquelas fotografias iam parar. Desci do cap,
s pensei ainda bem que no houve tiros, porque s vezes as balas perdidas matam
pessoas, como me contava tantas vezes o camarada Antnio, que l no Golf,
principalmente fim-de-semana, menino, havia pessoas que bebiam, davam tiros pro
ar, e at uma vizinha dele j tinha morrido s de estar a dormir na esteira e uma bala ter
lhe cado na cabea. Ela nunca mais acordou, disse-me o camarada Antnio.
A tia Dada demorou bu para sair. A o meu sovaco j tava mesmo a cheirar mal, e
eu que queria que ela me conhecesse assim bem cheiroso! Aquilo ali no tapete de
receber as malas sempre demorava tanto, s vezes at desaparecia bagagem e no valia
a pena ir refilar com ningum, era mesmo uma questo de sorte ou de azar, como dizem
os mais velhos. Mas depois ela saiu, e quando se aproximou senti que ela tambm j
tava bem transpirada, de modo que ficou empatado.
Ela foi uma das poucas pessoas mais velhas que eu encontrei que no falou comigo
como se eu fosse uma criana pateta, cumprimentou-me com dois beijinhos quando eu
at estava habituado a dar um beijinho na cara dos mais velhos, e disse-me s assim:
est muito calor, no achas?
Agora vou dizer: gostei muito do fato de ela no ser alta, mas o que eu gostei mesmo
foi de ouvir a voz dela assim ao vivo, aquilo sim, podia-se dizer que era uma voz doce.
Ajudas-me?, ela passou-me um saco que eu acendi logo as vistas: tinha bu de
chocolate l dentro.
medida que amos andando para o carro, vi que ela estava procura de qualquer
coisa na bolsa dela, depois pousou os sacos, e perguntou-me: podes ir chamar aquele
mido para eu tirar uma foto dele com o macaquinho? Olhei, fiquei contente. O
macaquinho j estava outra vez contente, dava saltos mortais no ombro do menino,
fingia que tava a catar piolhos na cabea dele, ou ento tava mesmo.
- No podes, tia. No podes tirar fotografias quele macaco! - disse-lhe, enquanto
arrumava o saco com os chocolates no lugar onde eu ia sentar.
- No posso tirar uma fotografia quele macaquinho to inofensivo?
- No, tia, no podes...
- E porqu?
- No sei se vais perceber...
- Ento diz l - ela, sria.
- No podes tirar fotografias quele macaco..., por razes de segurana de Estado, tia
- eu, srio.
Mas ela percebeu logo, porque olhou para os Faplas l ao longe, e guardou a
mquina num instantinho. Sentou-se ao meu lado, e no disse nada no caminho at
nossa casa, ficou s a olhar, depois abriu a janela e parecia que estava a fazer como eu
fao de manh, a cheirar o ar.
Encontramos o camarada Antnio no porto pequeno. Ele vinha muito todo a rir, tipo
j conhecia a minha tia de algum lado. Claro que ele vinha com os cheiros do almoo j
pronto, de certeza, eu tenho certeza mesmo, porque j no trazia o avental vestido, o que
queria dizer que j estava a pr ou j tinha posto a mesa. Ora, quando ele punha a mesa,
faltava vinte minuto para a comida estar pronta.
Estava tanto calor que a primeira coisa que fizemos todos foi descalar as sandlias.
A tia Dada subiu para o quarto onde ela ia ficar, depois foi tomar banho, devia estar
cheia de calor porque tambm j estava muito avermelhada. Quando ela desceu para
almoar, as minhas irms j tinham chegado a casa e tambm estavam a cheirar a
catinga, enfim, no se pode fazer nada com este calor. Foram-se lavar rapidamente
debaixo dos braos antes de nos sentarmos mesa.
Por acaso, ou melhor, no foi por acaso, foi porque a tia Dada tinha chegado e tinha
tanta coisa para contar, quase no ouvimos o noticirio. Eu queria que ela me contasse
como tinha sido a viagem de avio, especialmente aquela parte quando o avio acelera
bu parece que vai se partir todo. A minha irm mais nova depois piscou-me o olho,
assim ela queria j era ver as prendas.
Logo depois do almoo, porque ns pedimos muito, fomos para o quarto da tia Dada
abrir a mala dela. Estava bem pesada e eu pensei que ela tinha trazido muita coisa para
ns, mas o peso era por causa de tanta comida que ela tinha trazido, entre essa comida, a
minha prenda.
- Dada, o que isso? - a minha me, espantada.
- So batatas... O teu filho disse que tinha saudades de batatas! - ela, pegando nas
batatas espalhadas no meio da roupa.
A sorte que a tia Dada era muito simptica e trouxe, para alm das batatas, um
monto de chocolates.
s vezes, quer dizer, muito de vez em quando, aparecia chocolate l em casa, mas
assim trs tabletes para cada um, acho que era a primeira vez que me acontecia. Eu
fiquei logo a pensar naquela quantidade de coisas que ela tinha trazido, e eu estava
mesmo a pensar que ela devia ter pedido a diferentes pessoas, com diferentes cartes de
abastecimento, para comprar aquelas prendas, mas ela disse que no tinha carto
nenhum, e que no era preciso isso. Como eu estava atrasado para a escola, pensei em
deixar a conversa para mais tarde.
Na escola, quela hora, fazia sempre muito calor, dava sono. Isso s me chateava
porque em vez de ficarem a contar estrias, alguns colegas ficavam aquele tempo a
dormir, enquanto os professores no chegavam. Mas l ao longe vi o Murtala chegar
acompanhado do camarada professor ngel e da mulher dele. Perdi as esperanas que
fosse haver borla.
No fundo, at que tivemos uma tarde bem agradvel, estvamos a preparar as aulas
como iam ser se o camarada inspetor aparecesse de surpresa, embora, como a Petra nos
explicou no intervalo, j no podemos chamar aquilo de surpresa! O Cludio sempre
tinha qualquer coisa para responder, e disse Petra que era uma surpresa que ns
sabamos j, mas no quer dizer que deixasse de ser surpresa. Tambm ningum se
interessou pela discusso, porque estvamos todos mais preocupados com a questo do
Caixo Vazio, se eles iam ou no aparecer na nossa escola. O Murtala apostava que sim,
porque eles tinham estado a semana passada numa escola ao p do mercado Ajuda-
Marido, que j era bem perto da nossa. O Murtala desenhou na areia um mapa bem fixe,
com o Largo das Heronas, o mercado, o Kiluanji, o Kanini e a nossa escola. Foi bom
ele ter feito esse mapa e explicar-nos o que ele pensava que ia acontecer, porque mesmo
ao lado o Cludio desenhou um mapa da nossa escolca e cada um disse logo ali quais
eram as melhores hipteses de fuga, contando com o peso da mochila ou no, com o
fato de eles nos perseguirem ou no, e at a possibilidade de os camaradas professores
cubanos - com essas estrias de revoluo - quererem fazer trincheira e desafiar o
Caixo Vazio.
Depois de nos explicarem as matrias que poderiam ser perguntadas, os professores
foram conosco orientar-nos nas limpezas, cada turma limpava a sua sala de aulas mais o
corredor em frente, depois o ptio era dividido por cinco turmas, o ptio de dentro por
outras trs, e as paredes ficavam assim mesmo como estavam. A Petra s dizia com ar
de gozo que essa visita do camarada inspetor j tava a dar muito trabalho.
Como acabamos as limpezas rapidamente e tinha ficado tudo mais ou menos bem
limpo, a camarada diretora deixou-nos sair mais cedo, mas antes ainda fizemos
formao e cantamos o hino. A Romina convidou alguns colegas e os camaradas
professores para irem lanchar casa dela, porque o irmo dela fazia anos e no tinha
convidados, ento a me dela disse que ela podia levar pessoas da escola. Quando vi a
Romina falar com o Murtala achei logo m ideia, porque o Murtala era muito fobado e
no tinha respeito a comer na casa dos outros.
A me da Romina mandou todo mundo ir lavar as mos, especialmente o Bruno e o
Cludio que tambm tiveram que lavar os sovacos porque aquilo j era de mais.
A mesa estava bem bonita: tinha croquetes, sandes, gasosas, fruta, bolo e torta,
ficamos logo com gua na boca, todos com os olhos j to acesos que ningum deu os
parabns ao mido. E quem tinha os olhos mesmo bem acesos era o camarada professor
ngel, tipo nunca tinha visto tanta comida junta, dava gosto ver-lhe atacar o po com
compota.
Como tvamos a fazer muita confuso, e tambm j no aguentvamos comer mais
porque a me da Romina no parava de trazer mais comida, a Romina ps um filme
para vermos. Eu queria olhar para o ecr, mas no conseguia deixar de olhar para os
camaradas professores cubanos, porque a cara deles, no sei se sei explicar, mais
parecia a minha cara da primeira vez que vi televiso a cores na casa do tio Chico -
gostei tanto que at fiquei meia hora a ouvir notcias em lnguas nacionais. A camarada
professora Mara s faltava j babar, o que ela no fazia porque estava sempre de boca
cheia a comer a compota de morango.
Era um filme do Trinit, tava todo mundo bem entusiasmado, a vibrar mesmo, saa j
palmas e tudo quando o artista esquivava bala. O Cludio disse: ch, eu tenho um tio
Fapla que tambm esquiva bala!, mas acho que ningue acreditou, toda gente sabia que
s o Trinit que sabia fazer isso. Quer dizer, talvez o Bruce Lin tambm soubesse.
Assim, todos distrados, ningum reparou que o Murtala no estava a ver o filme
conosco. Comeamos a ouvir uns barulhos estranhos, primeiro pensamos que era no
filme. A Romina levantou mais o som, mas parecia que era doutro lugar. A Romina
parou o vdeo. Toda a gente ficou s assim a tentar ouvir o silncio.
Afinal o som vinha da cozinha.
Tipo que estvamos com medo: levantamos todos devagarinho, passamos pela mesa
que j no tinha comida mais nenhuma. O Cludio: eu num tavisei, Romina...
Quando chegamos cozinha vimos que os pratos suplentes tambm j no tinham
comida, as duas travessas com pudim s tinham um coche de molho, e a torta estava
mesmo bem torta, s tinha duas fatias. Mas o barulho continuava e no se percebia de
onde vinha. Algum chamou: Murtala... Murtala, ts aonde? O som ficou um
bocadinho mais alto, assim a quebrar aquele silncio. A me da Romina ps as mos na
boca e disse ai meu Deus!, e ns fomos todos de repente ver: atravessamos a cozinha,
e chegamos ao outro lado da geleira. Da camisola amarela-rototota, a barriga enorme do
Murtala podia se ver, bem inchada. O muadi tinha ficado preso e no conseguia
abandonar o esconderijo. O Cludio comeou a rir toa.
Depois de arrastar a geleira, o Murtala soltou-se e foi para a casa de banho vomitar
tanto que foi preciso tirar cinco baldes de gua da banheira para acabar com aquele
espetculo.
Como tava a ficar escuro, os camaradas professores foram acompanhar o Murtala a
casa. O Cludio s dizia: eu num tavisei, Romina? diz s seu num tavisei...
Quando eu estava a chegar a casa, vi no porto do Bruno Viola um grupo de midos,
fiquei logo curioso. Antes de entrar em casa, fui l ver o que era. Encontrei tambm um
silncio que parecia que a nica pessoa que podia falar era a Eunice.
- Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer... Mais de cinquenta... - a Eunice, com voz
de choro.
- Eunice, desculpa l, mas tambm num preciso aumentar j assim - dizia o
irmo do Caducho, mas tava com riso nervoso.
- Ep, quem quer acreditar, acredita... A escola tava toda cercada, eu escapei por um
triz.
- Mas isso foi a que horas? - algum ps.
- Foi h bocadinho mesmo, tvamos no ltimo tempo e comeamos a ouvir o barulho
do camio a derrapar...
- Era o Caixo Vazio?! - eu.
- Era o Caixo Vazio, mas o camio estava cheio de homens... - a Eunice, a limpar as
lgrimas. E eu na minha cabea imaginava o mapa do Murtala: o Ngola Kanini era
mesmo ao lado da nossa escola, o prximo ataque s podia ser no Kiluanji ou no
Juventude em Luta.
- Tu viste o camio? Era um ural, n? - o Pequeno j a adiantar pormenores.
- Eu no vi o camio, mas tenho colegas que viram. No camio que est o caixo...,
um caixo de verdade, assim preto. Eles chegaram, uns comearam a saltar do camio
e a cercar a escola, ns comeamos a lhes ver da janela, depois comearam a gritar.
Quatro que ainda tavam em cima do camio abriram o caixo...
- E tinha o qu l dentro? - Bruno Viola.
- No deu para ver... Eu s corri... quando sa l fora vi bu de homens, mdia duns
setenta...
- Eram cinquenta, Eunice, cinquenta! - o Pequeno fez rir a malta.
- Eram bu, pronto! Olha, comecei a correr, um ainda me agarrou aqui - mostrou o
arranho -, mas eu s continuei a correr e ele por sorte me deslargou...
- E a polcia no veio?
- A polcia?! Achas...? A polcia tem medo deles... Estavam todos vestidos de preto,
depois roubaram mochilas, e uma moa disse que ouviu gritos duma professora l
dentro, parece que tava a ser violada...
- Violada mesmo? - Bruno Viola, sempre assanhado, queria pormenores.
- Sim, dizem que eles sempre violam as professoras, depois cortam a chucha e
penduram no quadro... Amanh se tiver l uma chucha no quadro quer dizer que
violaram... - a Eunice bazou, devia estar cansada do medo.
Quando eu entrei em casa a minha tia disse que eu estava branco. que tambm me
tinham dito j que eles violavam as professoras e matavam os professores, s ningum
sabia o que eles faziam com os alunos que nunca mais apareciam, pelo menos esta era a
estria que a filha da empregada do Bruno sempre contava, que tinham lhe contado num
primo dela. Agora, claro, era mesmo tudo verdade, se a prpria Eunice tinha visto o
camio com o caixo vazio, e se ela tinha arranho e tudo... Quer dizer que dentro de
dias era a nossa escola, tinha que telefonar ao Cludio para ele levar o pontimola dele.
O que me ps mais bem-disposto foi encontrar aqueles chocolates que a tia Dada
tinha trazido, to bons, to bons, to bons!, que eu tive que comer as trs tabletes de
seguida antes que algum me viesse dizer que s podia comer quatro quadrados. Depois
fui falar com a tia Dada:
- Tia, no percebo uma coisa...
- Diz, filho.
- Como que tu trouxeste tantas prendas? O teu carto d para isso tudo?
- Mas qual carto? - ela fingiu que no estava a perceber.
- O carto de abastecimento. Tu tens um carto de abastecimento, no ? - eu, a
pensar que ela ia dizer a verdade.
- No tenho nenhum carto de abastecimento, em Portugal fazemos compras sem
carto.
- Sem carto? E como que controlam as pessoas? Como que controlam, por
exemplo, o peixe que tu levas? - eu j nem lhe deixava responder. - Como que eles
sabem que tu no levaste peixe a mais?
- Mas eu fao as compras que quiser, desde que tenha dinheiro, ningum me diz que
levei peixe a mais ou a menos...
- Ningum? - eu estava mesmo espantado, mas no muito, porque tinha a certeza que
ela estava a mentir ou a brincar. - Nem tem um camarada na peixaria que carimba os
cartes quando levantas peixe quarta-feira?
Depois a minha irm mais nova veio perguntar umas coisas de Matemtica, e eu
lembrei-me que tinha de ir telefonar para algum a contar o mujimbo do Caixo Vazio.
Claro que j estava a pensar em dizer que eram pra uns noventa ou cem, que tinham
trazido trs camies cheios de caixes, e que nem todos os caixes estavam vazios, e at
que eu achava que era nesses caixes que eles punham os midos que desapareciam.
Mas estava to cansado que adormeci.
Sonhei, claro, com o camio ural do Caixo Vazio a chegar na nossa escola, sonhei
com os camaradas professores cubanos a nos ensinarem a cavar uma trincheira e a
trabalhar com aks, e que quando eles iam nos agarrar porque as nossas metralhadoras
no tinham balas, apareceu o Trinit com a polcia e prenderam todos.
O sonho foi to barulhento e cheio de confuses e tiros, que a minha me teve que
me acordar quase de manh a pedir-me para eu no dizer tantos disparates enquanto
sonhava.
- Mas porqu que essa praia dos sovi-
ticos?
- No sei, no sei mesmo... Se calhar ns
tambm devamos ter uma praia s de
angolanos l na Unio Sovitica!
Acordei novamente bem-disposto porque ia praia com a tia Dada, as minhas irms
tinham aulas, e eu era o nico que podia lha acompanhar. Isso tambm era bom porque
como amos estar s os dois, ia dar para lhe enfiar umas baldas que no tinha ningum
ali para me desconfirmar.
Bom dia, menino!, disse o camarada Antnio quando eu j estava a acabar o mata-
bicho. Bom dia, camarada Antnio, tudo bem?, enquanto ele comeava a arrumar
melhor os copos, mudavas os pratos de stio, abria a geleira e espreitava, abria a janela
da cozinha, tudo s por hbito, no que aqueles gestos fossem para alguma coisa, no
sei se j repararam que os mais velhos fazem muito isso.
- Menino, hoje vai passear? - e continuava a mexer nas coisas.
- Sim, vou com a tia Dada praia, o camarada Joo vai nos levar.
- A tia trouxe prenda, menino? - ele tava a rir, assim queria perguntar se a tia tinha
trazido prendas pra todos.
- Tu ainda no falaste com ela, Antnio?
- A tia tava a falar ainda com o pai, ainda no falei bem...
- Hum... - eu sorri. - Acho que ela trouxe-te uns sapatos bem bonitos...
Samos com o camarada Joo. Ele no apareceu bbado porque tinha respeito pelas
pessoas que no conhecia bem, e era chato dar logo m impresso no primeiro dia, quer
dizer, acho que foi isso, porque at veio com uma balalaica toda bem engomada, tipo j
queria que a tia tambm lhe desse uma prenda. Estvamos a descer a Antnio Barroso.
- Ts a ver ali, tia? - apontei para a rotunda que se via l em baixo.
- Sim...
- Ali a piscina do Alvalade! - o camarada Joo comeou j a rir, ele sabia o truque.
- Mas no vejo piscina nenhuma, filho...
- No vs porque estamos longe, mas quando chegarmos l j vais sentir.
O carro aproximou-se da rotunda e teve que afrouxar por causa dos buracos. Havia
bu de gua assim a escorrer no passeio, os midos tomavam banho nos buracos e no
stio onde a gua saa tipo a fonte luminosa da Ilha que nunca chegou a funcionar. O
carro tipo tava a dar soluos.
- Agora j vs, n, tia? - eu ria, ria.
- aqui?
- Sim, esta a piscina dois do Alvalade.
Passamos no Largo da Maianga e eu s tava a rezar para que o camarada sinaleiro
estivesse l. Aquele camarada mandava poster: dum chapu azul bem bonito, luvas
brancas tipo casamento, cinto que vinha do ombro, cruzava frente e s acabava j
junto da pistola, ch, camarada sinaleiro tambm podia dar tiro! e ele tava l mesmo. A
minha tia no disse nada, mas eu reparei que ela ficou impressionada a olhar para ele,
acho que em Portugal no h camaradas sinaleiros assim posterados.
Depois subimos, pedi ao camarada Joo para passar no Hospital Josina Machel, que a
minha tia pensava que se chamava Maria Pia, eu at escapei j rir, percebi que aquele
devia ser o nome que os tugas davam ao hospital, mas tambm, poas, dar j nome de
pia num hospital estiga. Descemos a Praia do Bispo, a avenida tinha acabado de ser
arranjada porque h pouco tempo o camarada presidente tinha passado por ali, e como o
camarada presidente passa sempre a zunir, com motas e tudo, normalmente as estradas
so asfaltadas por causa disso, h muita gente que gosta que o camarada presidente
passe na rua deles porque num instantinho desaparecem os buracos e s vezes at
pintam os traos da estrada.
- Tia... Portugal j tem um fogueto?
- No, no tem, filho.
- que ns temos, e no do tempo dos portugueses, no penses... - apontei para a
esquerda, onde se podia ver o Mausolu. - Quer dizer, ainda no t pronto, mas t
quase...
Quando passamos mesmo na esquina, o Maxando estava na porta, com as barbas dele
enormes, o penteado rasta, e aquela cara que metia medo, eu no sei porqu, coitado,
porque ele at estava sempre a sorrir e falava muito bem com a Tia Maria e com a Av,
mas ns tnhamo muito medo dele.
- Mas porqu que vocs tm medo desse Maxando? - a minha tia, olhando ainda para
ele, ele a sorrir.
- Dizem que ele fuma muita liamba, tia.
- Mas ele faz mal a algum?
- No sei, tia, mas tambm ele tem um jacar em casa, isso j no normal! - eu.
- Um jacar?
- Sim, ele tem um jacar l no quintal dele.
- Mas como? Um jacar?
- Sim, tia, um jacar, daqueles muito compridos. Ele tinha um co, o co foi
atropelado por um militar, e como o militar no tinha um co para lhe devolver, lhe
arranjou um jacar - isto era verdade, todos da Praia do Bispo sabiam.
- E dorme onde esse jacar? Est preso?
- Sim, t sempre preso, dorme l mesmo na casota do co - parece que a minha tia
no queria acreditar.
- filho, tu j viste esse jacar?
- Eu nunca vi, tia, mas toda gente sabe que ele tem l o jacar..., s que o jacar dele
s gosta de ver o Maxando... S ele que lhe d de comer, sabes...
Passamos na fortaleza, entramos na marginal. Eu bem vi que toda aquela zona estava
cheia de militares, mas pensei que fosse alguma reunio l em cima no palcio. A
marginal tinha Faplas com metralhadoras e obuses e de repente comeamos a ouvir as
sirenes. Deve ser o camarada presidente que vai passar, eu avisei, talvez lm em
Portugal seja diferente e ela no saiba. O camarada Joo encostou o carro
imediatamente no passeio, travou, desligou, ps ponto morto e saiu do carro. Eu sa
tambm do carro, s que a tia Dada nunca mais saa. Eu vi l longe os mercedes a virem
bem lanados e estava preocupado porque a tia Dada nunca mais saa do carro. Como j
era tarde pra dar a volta, e nunca se podia correr nestas situaes, falei-lhe pela janela:
- Tia, tia!, tens que sair do carro, rpido.
- Mas sair do carro porqu? Eu no quero fazer chichi! - ela estava mesmo sentada,
impressionante, e ainda estava a rir.
- Mas isto no para fazer chichi, tia, tens que sair do carro e ficar paradinha a fora,
aqueles carros pretos so do camarada presidente.
- filho, no preciso, ele vai passa do outro lado.
- Dona Eduarda, por favor, sai s do carro... - o camarada Joo falava tipo tava com
febre.
- Tia, a srio, sai do carro agora! - quase gritei.
Estava sol. A minha tia saiu do carro, deixou a porta aberta. Fiquei mais descansado,
embora ela parecia que no estava em sentido. O pior foi que quando os carros j
estavam mesmo perto, ela ps a mo dentro do carro para apanhar o chapu. Tia,
no!, gritei mesmo. Acho que ela se assustou e ficou quietinha. Passaram as motas,
depois dois carros, mais um, e no ltimo que tinha as janelas todas escuras acho que ia o
camarada presidente. Depois ainda tive que lhe dizer para ficar quieta que s podamos
voltar para o carro passado um bocado. O camarada Joo tava a transpirar a srio.
Entramos no carro.
- filho, que cerimnia!
- Pois... Escapaste ver a cerimnia de tiros que ia haver se algum Fabla te visse a
mexer, parecia que tavas a danar, ainda por cima ias pr o chapu...
- Mas sempre que o presidente passa vocs tm que ficar em sentido? - ela estava
mesmo espantada.
- No bem em sentido, mas tens que sair do carro para verem que no ests armada
ou que no vais tentar alguma coisa... - eu parece que tambm tinha ficado a transpirar.
- Ah sim...?
- Ah pois, e assustei-me mesmo quando vinhas buscar o chapu porque os carros j
tavam demasiado perto e podiam pensar que vinhas apanhar outra coisa qualquer...
O camarada Joo nem estava a conseguir assobiar. Claro que podia no ter
acontecido nada, mas claro que tambm podia ter acontecido qualquer coisa.
Continuamos em direo s praias, o mar tava picado, um bocadinho picado, ento
ficava assim daquela cor que no d para descobrir se verde, se azul, se qu. De
que cor est o mar, tia?, eu queria ver se ela ia dizer verde ou azul, porque as minhas
irms sempre viam o mar azul, nunca conseguiam ver o verde do mar. Est escuro...,
est verde..., ela percebeu que havia truque na pergunta. Joo, tu achas qu?, mas o
camarada Joo s riu, a eu j sabia que ele no queria participar na conversa.
- Ento vou-te dizer um segredo, tia...
- Diz l, filho.
- O mar est verzul! - eu ria, ria.
Fomos dar a volta quase l no fundo, at onde se podia ir de carro; vimos as
barricadas. Isto o que ?, a minha tia perguntou ao camarada Joo. quartel... um
quartel, ele respondeu. Tinha militares soviticos a guardar a entrada, os soviticos
sempre faziam cara de maus, todos esbranquiados por mais sol que apanhassem,
muitas vezes ficavam assim tipo lagostas.
- Podemos ficar j aqui, no? - ela.
- No, aqui no podemos, tia... Vamos l mais para ao p da rotunda.
- Mas no podemos ficar aqui, nesta praia to verzul - ela sorriu para mim.
- No, tia, aqui no se pode. Esta praia to versul dos soviticos.
- Dos soviticos? Esta praia dos angolanos!
- Sim, no foi isso que eu quis dizer... que s os soviticos que podem tomar
banho nessa praia. Vs aqueles militares ali nas pontas?
- Vejo sim...
- Eles esto a guardar a praia enquanto outros soviticos esto l a tomar banho. No
vale a pena ir l que eles so muito maldispostos.
- Mas porqu que essa praia dos soviticos? - agora sim, ela estava mesmo
espantada.
- No sei, no sei mesmo. Se calhar ns tambm devamos ter uma praia s de
angolanos, l na Unio Sovitica...
O camarada Joo deixou-nos na praia, ele vinha nos apanhar mais tarde, antes da
hora do almoo. Estendemos as toalhas, fomos tomar banho, mas eu acho a gua da Ilha
sempre um bocado fria, claro que a minha tia disse que estava uma maravilha.
Nadamos, depois voltamos s toalhas:
- Tia, em Portugal, quando o vosso camarada presidente passa, vocs no saem do
carro?
- Bem, eu nunca vi o presidente passar l, mas garanto-te que ningum sai do carro,
alis s vezes nem se percebe que o presidente vai num carro.
- Hum!, no acredito, ele no tem as motas da polcia pra avisar? No pem militares
na cidade?
- No, militares no pem. s vezes, se uma comitiva muito grande, convocam a
polcia para afastar o trnsito, mas coisa muito rpida, o presidente passa e pronto.
Claro que os carros se afastam, tambm obrigatrio, mas porque ouvem as sirenes,
percebes?
- Sim.
- Mas quando, por exemplo, o presidente sai ao domingo, vai a casa de algum amigo,
j no leva a polcia, s vezes at vai a p - ela estava mesmo a falar a srio, isso que
me deixou impressionado.
- O vosso presidente anda a p? - at desatei a rir. - Ep, tenho que contar essa aos
meus colegas!, ainda querem estigar os presidentes africanos... Presidente em frica,
tia, s anda j de Mercedes, e prova de balas.
Abrimos o saco com as sandes. A minha tia no tinha muita fome, mas depois de
nadar e correr, uma pessoa fica sempre fobada. Comi mesmo com vontade, ela ainda me
avisou se eu ia ter apetite para o almoo, apetite nunca falta, tia, no te preocupes, eu
respondi j tipo mais velho. Depois a tia Dada me perguntou coisas de Luanda, como
era na escola, se eu gostava dos professores, o que aprendamos, como eram os
professores cubanos, etc. E achei muito engraada a cara de espanto que ela fez quando
lhe contei que ali em Luanda havia muitos bandidos, mas que era uma profisso
perigosa.
- Uma profisso perigosa, dizes tu... E porqu?
- Ento, tia, muito arriscado... - comecei j a explicar. - Se o assalto corre bem, no
h makas, s lucro no dia seguinte. Mas se te apanham, ai u!, a j a tua sade t em
risco!
- Makas problemas, no?
- Sim, maka problema, assunto, tambm pode ser maka grossa, ou maka s...
- E essa dos bandidos, que maka ?
- isso que tou ta explicar... Se for apanhado maka grossa mesmo!
- Porqu?
- Ento, tia, por exemplo, no bairro do Cludio, apanharam um bandido, coitado, s
gostava j de gamar candeeiros, pronto, devia ser l o negcio que ele tinha no Roque
ou qu... y... Apanharam o muadi, lhe deram tanta porrada, tanta porrada, mas tanta
porrada, que no dia seguinte ele voltou l procura da orelha, tia!
- Da orelha? - ela coou a orelha.
- Sim, ele tinha perdido a orelha l, o Cludio mesmo que foi lhe mostrar onde
que tava a orelha, porque eles tinham visto a orelha logo de manh, mas no mexeram a
pensar que era feitio!
- Ai, meu Deus... - ela, impressionada.
- Mas espera... Vou te contar j outras estrias, mais quentes...
- Mais quentes? - esse era o problema de falar com pessoas de Portugal, havia
palavras que eles no entendiam.
- Sim, mais quentes, quer dizer... Olha, por exemplo, ali na Martal quando apanham
um bandido, ele at pensa que vai ser bem tratado.
- Porqu?
- Porque na Martal ningum bate nos bandidos. Alis, h l um senhor mesmo, acho
que at mais velho, que quando ele aparece, a confuso acaba. Bem, claro que quando
apanham o bandido, logo assim na hora, ele ainda tem que aguentar umas chapadas, uns
pontaps, mas depois chega esse senhor, ningum mais toca no bandido.
- Ento fazem o qu?
- Espera, j vais ver... Fica para as cenas dos prximos captulos... - mas ela fez uma
cara estranha.
- Cenas dos prximos captulos?! Como assim?
- Calma s, tia... - fui tirar uma gasosa do saco, abri, dei um golo. - Ento esse kota
chega, diz a toda gente para ir dormir. S vo j alguns homens com ele, levam o
bandido para um quintal tambm a, e l do a injeo. E o bandido a para mesmo.
- A injeo?! Mas esse tal kota enfermeiro? - eu at tive que desatar a rir com
vontade.
- Enfermeiro daonde, tia? Qual enfermeiro esse?! A injeo que lhe do com
gua de bateria! O muadi para logo ali.
- Para? Para de fazer o qu?
- Para!, para mesmo, stop, apaga, campa! Ele morre, tia!
A tia Dada j no quis mais comer a sandes dela, acho que tinha ficado maldisposta
com a estria ou qu.
- Mas isso verdade, filho? - ela se calhar queria que eu dissesse que no.
- At posso te mostrar um colega meu que vive nesse bairro, tia!
Peguei na sandes dela, perguntei se ela queria; ela no queria, comi! Mas como ela
estava impressionada j nem lhe contei o que andavam a fazer no Roque Santeiro
quando apanhavam ladres, coitados, punham s o pneu, petrleo, e ainda ficavam ali a
ver o homem a correr dum lado pro outro, a pedir para lhe apagarem. No sei, h quem
diga que nessa altura de queimarem os ladres com pneus os assaltos diminuram, mas
isso j no posso confirmar. Ela tambm no sabia que em Moambique cortavam
dedos.
- Cortam os dedos todos? - ela j queria se assustar outra vez.
- No, tia, cortam um de cada vez. Um assalto, um dedo, percebes?
Para a conversa ficar mais ligeira, tambm lhe contei algumas estrias que eu sabia
de bandidos que se safavam, como aquele que estava na Praia do Bispo a ser perseguido
por um polcia, depois algum gritou agarra ladro! e um outro polcia pensou que
esse polcia fosse o ladro e lhe vuzou um tiro das costas, o bandido fugiu e ainda tava a
rir.
- Quer dizer, h muitos tipos de bandidos ento, esse foi um sortudo.
- Ah pois, mas tambm h os azarados... Olha, no prdio do Bruno...
- filho, essa estria tambm acaba assim muito mal?
- No, no, acho que esta tu aguentas - ela riu. - No prdio do Bruno, um bandido
tava a assaltar o quinto andar, e tem um kota no sexto andar que quem trata desses
mambos; telefonaram pra ele, ele acordou, saltou por um buraco que h mesmo no sexto
andar e caiu em cima do bandido, s que o muadi, com o susto, desata a correr para as
escadas, s que, qual o azar dele?, tambm j tinha l um guarda espera dele...
- E ele como que fez? Agora no me vais dizer outra vez cenas do prximo
captulo, vais?
- No, no h intervalo... Ele liga o turbo, salta e atira-se do quinto andar!
- E morreu?
- Nem pensar! Caiu, tipo que tava morto, s demorou dois segundos na pausa, olhou,
levantou bem fixe, s tava a coxear, mas a correr, tia, tou ta dizer: coxos, aleijados,
pessoa em cadeira de rodas, aqui em Angola so os que vuzam mais...
- Ento ele safou-se, no?
- Ep, nada!... V s o azar do indivduo - achei que aquela palavra ficava bem -,
tava a passar um carro da polcia, foi apanhado, o Bruno disse que at ficou com pena
dele, poa, j tava quase a fugir... Mas assim, o azar persegue uma pessoa.
Quando o camarada Joo veio nos buscar, o calor j tava insuportvel. Olhei para as
rvores, os pssaros estavam l sentadinhos, no se mexiam, tambm deviam estar a
suar. Do outro lado da rua havia barracas a vender peixe seco, esse sim, quanto mais
ficasse ao sol, melhor. Aquele cheirinho abriu-me o apetite, h quem no goste, mas eu
acho que o peixe seco cheira muito bem, parece sumo concentrado de mar.
J a voltar para casa, passamos no Largo do Kinaxixi, porque eu queria que a tia
Dada visse o blindado que estava l em cima.
- Tia, em Portugal tem um blindado assim pendurado num largo?
- No, acho que no tem...
- Pois aqui tem! Este largo o Largo do Kinaxixi - apresentei.
- Mas antigamente no era este blindado que estava aqui em cima, sabes? - ela
olhava para o blindado com ateno, ia tirar uma fotografia mas eu disse-lhe que era
melhor no, porque ainda estavam muitos Faplas ali na rua.
- Era outro blindado? Maior ou mais pequeno? - eu no sabia que aquele j era o
segundo blindado.
- No, no percebeste...
- Ento?
- Ali havia uma esttua.
- Uma esttua? Qual esttua?
- A esttua da Maria da Fonte - ela parecia ter a certeza.
- No sei, tia... Aqui em Luanda normalmente s temos fontes, assim mesmo a sair
gua com fora, quando rebenta algum cano... - o camarada Joo tava a rir.
Quando chegamos a casa estavam espera de ns para almoar. Tava a dar inveja: as
minhas irms ainda tinham bu de chocolate, isso sempre acontecia, eu era o primeiro a
acabar as coisas.
A minha tia foi-se lavar, no sei porqu, at dizem que a gua salgada faz bem
pele, para qu ir logo a correr tomar banho? J na minha casa tambm tm muito essa
mania, toda hora j banho, banho, acho que no preciso, se calhar basta de dois em
dois dias, ou coisa assim. As minhas irms dizem que os rapazes so sempre assim, no
gostam de tomar banho, mas eu tenho uma colega que s toma banho uma vez por
semana, isso tambm porque na casa dela a gua s vem uma vez por semana, ento
eles enchem a banheira e depois tm que poupar a gua durante a semana toda.
- Correu tudo bem, filho? - a minha me veio me dar um beijinho.
- Tudo bem, sim - dei-lhe tambm um beijinho. - E vimos o camarada presidente
passar, na marginal.
- Ahn...
- Mas a tia Dada tipo que queria levar um tiro...
- Porqu? - o meu pai perguntou.
- Ento... Ela no sabia que tinha de sair do carro, depois ainda escapou meter a mo
no carro para tirar o chapu mesmo quando o camarada presidente ia passar... - sentei-
me. - A sorte que os Faplas no viram nada...
Eram dez para a uma . O meu pai ligou o rdio, mas ainda estava s a dar msica.
Fechei as portas, as janelas, liguei o ar condicionado, ou ar concionado, como ns
dizamos. Senti o cheiro da comida vir da outra sala, era peixe grelhado de certeza
absoluta.
- Me...
- Diz, filho.
- Tu sabias que em Portugal o presidente sai assim na rua sem guarda-costas, e vai
comprar o jornal?
- Sim, filho, se h condies de segurana para isso.
- Bem, pelo menos ao domingo deve haver, porque a tia Dada disse que o presidente
portugus ao domingo sempre vai comprar o jornal a p... Mas isso verdade mesmo,
me?
- Se verdade o qu?
- Que ele no pe militares na rua para sair de casa? Vai assim sozinho... E se tiver
bicha no stio de comprar jornal? - comecei a rir. - A me uam se ele fica mesmo
espera...
Fomos almoar.
Eu queria saber se tinha havido problemas nas outras escolas, se o Caixo Vazio
tinha aparecido perto da escola da minha irm mais velha, porque, segundo o mapa do
Murtala, acho que a escola dela vinha a seguir. Ela disse que no, que tinham visto um
camio e comearam a gritar, mas os professores no deixaram ningum sair das salas, e
ainda bem porque era s um camio que ia a passar em direo ao quartel. Mas, claro,
como que eu no tinha pensado nisso, eles nunca iriam de manh l na escola da
minha irm, de manh eles deviam estar a dormir, por isso que tinham ido escola da
Eunice da parte da tarde, e tambm j tinham ido ao Mutu-Ya-Kevela noite.
Quando cheguei escola, mal via a cara da Romina, percebi logo que havia qualquer
coisa. Estavam todos c fora, de mochila nas costas, ningum queria entrar na sala.
- Mas o qu? - perguntei.
- L na sala... - a Romina, quase a chorar.
- L na sala tem qu? - tambm me deu um medo.
- Tem uma mensagem.
O Cludio e o Murtala me pegaram pelos braos, mesmo eu sem querer ir, iam-me
empurrando, entramos na sala. Olha ali!, me disseram, enquanto olhavam nervosos l
para fora, em direo ao Kiluanji, que ficava junto estrada que vinha do mercado
Ajuda-Marido, de onde eles iam vir, segundo o Murtala. Mas olho aonde?, eu no
estava a ver nada. Ali!, apontaram de novo.
A parede tinha mil e uma inscries, a caneta de feltro, giz, lpis de cor, sangue,
guache, tudo e mais alguma coisa, e eles queriam que eu olhasse para ali - mas depois
reconheci a frase: Caixo Vaziu pasar aqui, hogi, s cuatro da tarde! Estremeci.
- Mas Bruno... - a Petra vinha l com a teoria dela. - Esse hogi no quer dizer que
seja hoje mesmo, ningum sabe desde quando que isso est a!
- Est a mesmo desde hoje mesmo! - o Bruno estava nervoso tambm. - Se no
como que nunca tnhamos visto? Diz l, tu j tinhas visto isso a, minha espertinha?
- a Petra ficou calada.
- Bem... - disse o Cludio. - O problema vai ser convencer os professores que isso
verdade.
- Pois ... - a Romina que j no tinha mais unhas para roer, eu tive que lhe dizer que
ela j ia fazer sangue.
- Eles nunca acreditam, mas depois so os primeiros a correr... - continuou o Cludio.
- O qu que vamos fazer?
- Segundo as minhas contas, ainda podemos apanhar uma falta coletiva... Se todos
estiverem de acordo, ningum vai aula - disse a Petra.
- Mas isso no to simples, Petra... - eu. - Mesmo se faltarmos aula das quatro,
imagina que eles vm atrasados, ou chegam mais cedo, como que vai ser?
- Ah, verdade...
- Bom, ento s temos uma hiptese...
- E qual ento? - o Bruno, enquanto olhava para o muro, devia estar a procurar o
stio mais baixo pra saltar.
- Aceitamos ir s aulas, mas toda a gente fica com as mochilas nas costas... Qualquer
coisa, salva-se quem puder..., quer dizer, quem correr!
A Romina tinha lgrimas nos olhos. Fiquei com pena dela, eu quase que sabia o que
ela estava a pensar: s vezes, quando havia assim situaes de perigo, ela no se
conseguia mexer, ficava s parada. E ela sabia que ia mesmo ser como o Cludio estava
a dizer, se houvesse alguma coisa, todo mundo ia desatar a correr, ningum ia querer
saber dos outros, era sempre assim. O Murtala estava to nervoso que no dizia nada, eu
nem contei nada da estria da Eunice para no deixar a malta mais nervosa,
principalmente a Romina.
No primeiro tempo ainda tiramos os cadernos, escrevemos normalmente, mas
estvamos bem atentos. Quem sentava perto da janela, principalmente o Bruno, o
Filomeno e o Nucha, j nem ficavam sentados, toda hora a espreitar. Vimos um camio
que todo o mundo pegou nas coisas e queria comear a levantar, a camarada professora
Sara at se assustou, no percebeu o que se estava a passar, mas quando j amos abrir,
o Murtala disse: no h maka, esse camio do prdio do Partido. Respiramos fundo,
mas todo mundo ficou j com a mochila nas costas.
A camarada professora Sara era muito boa, como viu que ningum tinha vontade,
aproveitou s para explicar os pormenores do desfile do dia seguinte, mas tambm ela
no sabia grande coisa, tinham-lhe dito ltima da hora que a nossa escola tinha sido
convocada. Ela s nos disse pra irmos fardados, limpos, pra no esquecermos do leno
da OPA, e quem quisesse podia trazer cantil. A concentrao era ali na escola s sete e
meia, depois amos a marchar para o Largo 1 de Maio. Isto queria dizer que amos
marchar com os trabalhadores e outros alunos, e que amos ver o camarada presidente
sentado l na tribuna.
No intervalo a dica do Caixo Vazio foi passada para outras turmas. Um professor
zairense da sala 2 arrumou as coisas dele e no deu aula; segundo o Murtala, aquilo
significava ou que ele era esperto ou que ele sabia muito bem a que horas vinha o
Caixo Vazio. Os corredores estavam bem cheios, ningum tinha deixado as mochilas
na sala, e havia mesmo quem j estivesse sentado nos muros, espera de um sinal de
poeira ao longe, a indicar que o camio estava mesmo a vir.
O Cludio no tinha trazido o pontimola, o Murtala tinha vindo de sandlias o que ia
lhe dificultar a corrida, a Romina e a Petra estavam de saia, isso s podia facilitar as
violaes, o Nucha v l que tinha a correia nos culos, ia dar para correr, mas eu, com
o suor e a massa dos culos toda torta, estava-se mesmo a ver que os culos iam cair
durante a corrida. Assim, tirei os culos, pus no bolso, o mundo ficou todo com falta de
nitidez, mas no faz mal, pensei, fixei um ponto colorido que era a rvore atrs do
muro que eu tinha escolhido pra saltar, agora s tenho que ser rpido, e no cair na
correria. Cair era o pior, toda gente sabe disso, quando se cai os outros pisam, ningum
para pra ver, ningum mais vai te salvar, vais ser pisado por aqueles midos todos a
correr, e se estiveres consciente, o prprio homem do Caixo Vazio que vais ver a
sorrir, se calhar com um canivete na mo.
- Ests a pensar em qu? - a Romina, com a voz a tremer.
- R... - pus os culos pra lhe ver melhor. - No prximo tempo, sentamos juntos, ali
na carteira junto porta. Se houver alguma coisa, desatamos a correr...
- Est bem, est bem... - ela estava mesmo nervosa. - E corremos pra onde?
- Ts a ver aquela rvore cambuta ali?
- Y, tou a ver...
- Samos a correr da sala, se estiver muita gente ali no corredor saltamos logo os
arames em frente sala, corremos praquele canto onde tem o buraco, e se conseguirmos
atravessar rapidamente a avenida, chegamos ali no prdio do Partido, a eles j no nos
fazem nada...
- T bem, t bem...
- S no podemos cair, R, no podemos cair...
- E se cairmos?
- No podemos cair... Tem cuidado porque os mais velhos vo nos empurrar, s
temos de correr em direo ao muro... - voltei a guardar os culos.
O camarada professor de Qumica entrou na sala, e ainda por cima tinha trazido as
calas dele de militar. Isso no era nada bom, porque podia dar raiva nos homens do
Caixo Vazio. O Cludio deu-me o toque, encostou as mos na cala para me chamar a
ateno, mas eu j tinha pensado nisso.
- Pero qu es lo que pasa? Nadie ha trado los cuadernos hoy? - ele comeou a
escrever o sumrio.
- No isso, camarada professor. que hoje vamos ter uma visita...
- Una visita? Es hoy la visita sorpresa del camarada inspector? - ele olhou para as
calas gastas dele.
- No, camarada professor - disse o Cludio. - Parece que outra visita, t ali
escrito... - apontou para a parede.
- Dnde, ah arriba? - fazia esforo com a vista para ler. - Y qu es eso del Caixo
Vazio?
- um problema, camarada professor, um problema... - a Petra, tambm com medo.
- Pero es por eso que tienen esa cara? Estn muertos de miedo... Pero por qu?
- Eles so do Caixo Vazio, camarada professor, nunca ouviu falar?
- No me importa si son del Caixo vaco o del Caixo lleno... Esto es una
escue