O “COLEGIÃO” DE SÃO FRANCISCO DE PAULA/RS NO SEU
CENTENÁRIO (1918-2018): POSSIBILIDADES DE PESQUISA NA ANÁLISE
DE FOTOGRAFIAS
Dilnei Abel Daros
Universidade de Caxias do Sul – UCS
Samanta Vanz
Universidade de Caxias do Sul – UCS
Resumo: O objetivo deste trabalho foi analisar, mesmo que parcialmente, pois se trata
de um estudo em desenvolvimento, as possibilidades que a fonte iconográfica pode
produzir a respeito da pesquisa histórica de instituições escolares, suas práticas e
culturas. Desse modo, a análise das fotografias e das relações de contexto pôde
colaborar na identificação de uma parte da história do “Colegião”, uma instituição
escolar no Estado do Rio Grande do Sul, localizada em São Francisco de Paula, que
completa 100 anos em 2018. As fotografias remetem a um tempo em que o atual
Colégio Estadual José de Alencar, ainda era conhecido como o “Colegião”, que viria a
tornar-se o Grupo Escolar Estadual, evidenciando aspectos do ambiente escolar e seu
cotidiano no início do século passado. A análise foi embasada em autores da história
cultural, valendo-se da perspectiva metodológica documental e historiográfica para
compor o contexto e o cenário de escolarização nos primeiros tempos dessa instituição.
Palavras-chaves: História da Educação, Fotografia, Instituições Educativas, Memória.
“A imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas sejam feitas”.
(MAUAD, 1996, pág. 10).
A fotografia, enquanto documento de análise histórico, possui um percurso
recente, sendo que sua prática carece de um olhar mais detalhado para que não seja
utilizada apenas como ilustração, sendo tratada de maneira ingênua por historiadores
que carecem de um entendimento maior sobre a problemática visual que a compõe
(BURKE, 1992; GASKELL, 1992).
Para uma abordagem da fotografia enquanto documento historiográfico, há
um deslocamento da visão comum que associa a análise de documentos ao repertório da
escrita, exigindo de pesquisadores e historiadores uma aproximação com os métodos de
antropólogos e etnólogos (PROST, 1998). Para Le Goff (1990), a fotografia está entre
as manifestações mais importantes do final do século XIX e início do século XX, pois é
por meio dela que há uma revolução da memória coletiva, com a possibilidade de
multiplicar e democratizar a memória, permitindo, desta forma, que a memória do
tempo e da evolução cronológica fosse guardada em uma tentativa de entender sua
forma evolutiva.
Deve-se considerar a fotografia como imagem/documento e como
imagem/monumento (LE GOFF, 1990). Como imagem/documento, a fotografia marca
uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares, nos informam sobre
determinados aspectos do contexto na qual se situam. Como imagem/monumento, a
fotografia pode ser considerada um símbolo, aquilo que, no passado, foi estabelecido
como um vestígio a ser preservado para o futuro. Se a fotografia informa, ela também
conforma determinada visão de mundo.
Entender a fotografia como um produto cultural e, portanto, passível de uma
observação sistemática e constituída de sentido, permite que o pesquisador identifique
os possíveis discursos presentes nestes fragmentos da história. Desta forma, como
assume Burke (1992), as fotografias apresentam representações da realidade e não seu
reflexo. A câmera não é, desta forma, um instrumento de registro objetivo da realidade;
antes, passa por um crivo do fotógrafo, que enfatiza em sua seleção seus interesses, suas
crenças, seus valores e preconceitos – relacionando também as próprias convenções
pictóricas de sua época.
E é nisto também que se dá o caráter histórico da fotografia: mesmo sendo
uma representação do real, os elementos registrados pela câmera possuem seu lugar no
tempo e no espaço, estiveram em algum momento compondo um contexto característico
em um recorte cronológico. Para Barthes (1984), a fotografia partilha a história do
mundo: pode representar algo tendencioso e cheio de intenções (até mesmo mentir),
mas não há como negar a sua existência. A fotografia constata algo: não
necessariamente uma representação real do objeto, mas do tempo. O autor considera,
portanto, que do ponto de vista fenomenológico, o poder da autenticidade de uma
fotografia ultrapassa seu poder de representar a realidade; não uma cópia do real, mas
como uma emanação do real passado.
Para Kossoy (2002, p. 43), fotografia é “a imagem, o registro visual fixo de
um fragmento do mundo exterior, conjunto dos elementos icônicos que compõem o
conteúdo: as informações de diferentes naturezas nele gravadas”. Toda a fotografia é
um resíduo do passado e oferece indícios quanto aos elementos que o constituem,
reunindo um conjunto de informações a respeito do fragmento do espaço e do tempo.
É esta representação a partir do real que permite tornar a sua materialidade
uma fonte histórica, sendo importante sempre considerar a relação
documento/representação como algo indissociável, pois uma fotografia é sempre um
documento criado e construído.
Partilhando do pensamento de Burke (1992) e Barthes (1984), Kossoy
(2002, p. 38) afirma que a realidade da fotografia corresponde ao registro expressivo da
aparência do momento registrado, e não necessariamente da verdade histórica: “A
realidade da fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes leituras que
cada receptor dela faz num dado momento; tratamos, pois, de uma expressão peculiar
que suscita inúmeras interpretações”.
É importante, por isso, que se assuma uma postura cuidadosa diante das
dimensões da fotografia: memória e representação. A imagem é a construção de uma
representação, de elaboração cultural, estética e técnica, mas também é criadora de
memórias e recordações.
Considerar os usos, aplicações e leituras que os receptores fazem desta
fotografia permite assumir uma posição em que a mesma se torna passível de múltiplas
interpretações. Desta forma, se faz necessário diminuir o efeito ambíguo por meio do
aprendizado de um código e uma cuidadosa discussão teórico-metodológica que permita
utilizar estas imagens na construção de uma pesquisa histórica, no sentido de que a
dimensão visual da representação do real possa ser integrada à condição de fonte
histórica.
A fotografia como fonte histórica
Barthes (1984) em relação à fotografia, tem um desejo ontológico: quer
saber o que ela é “em si”, qual traço a distingue das outras imagens. Para Gaskell
(1992), a fotografia compõe a classe de material visual, em conjunto com a arte como
artefato, com os elementos que constituem o ambiente visual feito pelo homem e os
elementos comunicativos, como o desenho gráfico. Há, portanto, uma classe própria que
constitui o repertório visual, no qual a fotografia se torna constituinte.
O impacto cultural da fotografia sobre os últimos cento e cinquenta anos
resultou em uma alteração do ambiente visual e dos meios de troca de informação, que
possibilita acentuar seu espectro de significação cultural, sendo considerada tanto uma
forma de comunicação como uma expressão artística: quase todos fazem uso diário da
fotografia, seja como ilustrações, auxílios à memória ou como substitutos de objetos
descritos através dela. Pode-se dizer que a fotografia transformou sutil, radical e
diretamente a disciplina da história (GASKELL, 1992).
A fotografia permite um registro que documenta, mas, é preciso entender
que, da mesma forma que as demais imagens que compõem o material visual, as
fotografias não são instantâneos da realidade, mas como as pinturas, compõem artefatos
culturais e que transmitem complicados sinais culturais codificados aos receptores.
A sua aplicação como fonte histórica carece, portanto, da interpretação: o
uso das imagens nas pesquisas históricas não deve ser relegado à organização do acervo
iconográfico, mas a um contínuo exercício analítico e interpretativo, procurando
identificar a maneira como se cria uma representação visual ligada à um tempo e
espaço.
Ao utilizar a fotografia como um meio de caracterizar uma determinada
temporalidade, percebe-se a sua potencialidade nos estudos da história da educação, na
análise de elementos que compõem os cenários históricos. Esta é a premissa desta
pesquisa: o uso da fotografia para a análise das representações das práticas e da cultura
escolar do Colégio Estadual José de Alencar.
No início do século XX, na área conhecida geograficamente hoje como
Campos de Cima da Serra, a vila de São Francisco de Cima da Serra contava apenas
com o ensino oriundo de professores particulares que atendiam em suas residências,
pelo menos até meados 1914, quando por iniciativa Municipal esses mesmos
professores foram convidados a lecionar em um mesmo local que passou a ser
conhecido como “Colegião”.
O prédio que anteriormente abrigava uma casa comercial passou a ser a
primeira escola municipal tendo, segundo Camillo (1991), como primeiro Diretor
Nestor Lopes Coelho, “que deixou o cargo indo embora, da então vila, sem maiores
explicações” (CAMILLO, 1991 p.10), não apontando até o presente momento dessa
escrita maiores detalhes relativos ao fato.
Entretanto, em 22 março de 1918, através do Decreto nº 2333, o Colégio
Municipal passa a ser administrado pelo Estado e sua nomenclatura passa a ser Grupo
Escolar Estadual José de Alencar, permanecendo em funcionamento nas mesmas
instalações e sendo o prédio oficialmente repassado ao Estado em 19 de setembro de
1922, através de Escritura Pública constante no livro 24 de notas daquela Comarca.
O corpo docente instituído naquela data contava com o Diretor Anthero de
Almeida Brito e as professoras Antonia Mattos, Marieta dos Santos Braga, Alma
Volkart e Ursulina Paglioli Lucena, sendo esses sujeitos naquele contexto inicial os
responsáveis por acolher e instruir em um local determinado os estudantes da vila, que
até então realizavam sua instrução em casas particulares.
Aliado a esse elemento, é necessário discorrer mesmo que de maneira
pontual o ambiente que antecede a instalação das escolas públicas nesse local, que está
relacionado à emancipação do atual município de São Francisco de Paula ter ocorrido
de maneira fragmentada, ou seja, em fases que envolveram falta de condições
financeiras e também disputas políticas que conduziram a extinção do município e seu
retorno ao Distrito de Taquara do Novo Mundo em curtos espaços de tempo, como
menciona Alves (2007) sobre quais datas seriam as corretas: “Diverge-se da data de
fundação da cidade, embora, oficialmente, é festejada a segunda emancipação
(07/01/1903), esquecendo-se da primeira (Lei nº 1152, de 24/05/1878). [...] No entanto,
fica claro que o Decreto nº 563, (23/12/1902), restabelece a condição de Município”
(ALVES, 2007 p.9).
Percebe-se a partir desses elementos históricos que essa escola irá ser aberta
mais de uma década após a emancipação da localidade, que pelos motivos mencionados
anteriormente poderia ainda estar sofrendo de problemas financeiros e estruturais
básicos para o funcionamento da instituição, pelo que se observa nos escritos de
Camillo (1991) relacionados ao primeiro Diretor e suas preocupações ao assumir o
Grupo Estadual Escolar: “Pedia insistentemente ao Exmo. Sr. Dr. Diretor Geral da
Secretaria mobiliário e material de ensino. Recebeu na época apenas sessenta cadeiras”
(CAMILLO, 1991 p.12).
Salienta-se que para essa escrita optou-se por fazer uma análise somente das
fotos mais antigas encontradas até o presente momento, utilizando então um recorte
temporal iniciando desde seu estabelecimento como Grupo Escolar Estadual em 1918 e
seguindo até 1930, sendo um importante delimitador da análise, visto que ela
permanece em andamento.
Para Kossoy (2002), a fotografia está situada em um contexto coordenado
pelo tempo e espaço, levando em conta a tecnologia empregada para o registro
fotográfico. O autor parte, portanto, para a caracterização de fotografia como uma fonte
histórica, um resíduo do passado, sendo que a mesma pode ser dividida em sua análise a
partir de sua materialidade (sua configuração externa) e sua expressão (o conteúdo),
conforme Figura 1:
Figura 1: Fotografia como fonte
Fonte: Kossoy (2002)
Mauad (2004) traz em sua concepção de fotografia como fonte histórica
mais um elemento a ser considerado na totalidade da análise: a visão de intervenção do
historiador, que ao analisar este tipo de documento precisa exercer um novo tipo de
crítica, entendendo as possibilidades criadas a partir de seu testemunho histórico, não
importando se o registro fotográfico documenta um fato ou representa um estilo de vida.
A autora ainda destaca três pontos importantes para a análise fotográfica: o
primeiro compreende a relação entre signo e imagem, que trata a distinção entre
imagem como natural e signo como representação simbólica como um problema para a
análise semiótica. Neste contexto, a imagem é algo que institui um código, onde a
fotografia incorpora funções sígnicas ao assumir um lugar de objeto, de um
acontecimento ou de um sentimento.
O segundo ponto abordado pela autora traz a ideia da imagem fotográfica
como mensagem, estruturada a partir de si mesma, como resultado das escolhas
realizadas, e também das escolhas possíveis que não foram realizadas – o que
propositalmente foi deixado fora de registro: a fotografia passa a ser um escolha entre
escolhas possíveis.
O terceiro ponto compreende a relação entre o plano do conteúdo e o plano
da expressão: o plano de conteúdo considera a relação dos elementos da fotografia com
o contexto no qual se insere, remetendo-se ao corte de tema e espaço; o plano de
expressão diz respeito à compreensão das opções técnicas e estéticas, que envolvem um
aprendizado historicamente determinado, repleto de sentido social.
Partindo do entendimento da fotografia como uma fonte de expressão
situada no tempo e espaço (KOSSOY; 2002), pode-se relacioná-lo aos estudos de
Mauad (1996; 2005) com a identificação do espaço ao qual a fotografia pertence como
um constituinte de significado, estabelecendo os critérios que serão utilizados para a
análise:
a) Espaço fotográfico: recorte espacial da fotografia – natureza do espaço,
sua organização, que tipo de controle pode ser exercido na sua
composição e a quem este espaço está vinculado;
b) Espaço geográfico: diz respeito ao espaço físico representado na
fotografia. Nesta categoria se caracterizam os lugares fotografados:
fundo artificial e natural e espaço interno e externo;
c) Espaço do objeto: contempla os objetos. Procura-se identificar a lógica
existente na representação dos objetos, sua relação com a experiência
vivida e com o espaço construído;
d) Espaço da figuração: relaciona-se com as pessoas retratadas, a hierarquia
das figuras e seus atributos;
e) Espaço da vivência: analisa o tema da foto. As atividades que mereciam
ser fotografadas e os tipos de fotos que destas surgiam.
Utilizar a análise dos espaços que compõem a fotografia como requisitos
permite compreender que a interpretação das mesmas só pode acontecer a partir da
contextualização. Quando a fotografia é entendida como produto de uma cultura,
caracterizada por um discurso próprio, torna-se constituída por informações objetivas
passíveis de interpretação (RUBÍ; ANDRÉS, 2018).
Para o estudo proposto, foram utilizadas três imagens do Grupo Escolar José
de Alencar, disponíveis no acervo da própria escola, em diferentes momentos de sua
história; as imagens foram identificadas cronologicamente para tornar possível uma
análise do contexto da instituição a partir de uma linha histórica. Para Bencostta (2011)
“essas fotografias se consistem em testemunho e representação da escola primária em
determinada época, pois revelam a um só tempo o modo de ser, mas também o de se
conceber a escola; além de revelar formas determinadas de os sujeitos se comportarem e
representarem seus papéis”. Situam-se portanto, como representações de um tempo e
espaço que foi escolhido para ser registrado e preservado nos registros.
As três fotografias coletadas apresentam sua exposição na área externa da
escola. Pode-se considerar aqui duas questões para estas fotos em ambientes externos: o
primeiro que diz respeito às limitações tecnológicas, sendo uma questão de
características das câmeras da época o uso da incidência da luz natural para o registro
fotográfico (KOSSOY, 2002). Outro ponto hipotético é a questão do espaço para a pose:
por ser uma foto posada, em geral para celebrar e registrar alguma data importante, há a
presença de uma grande quantidade de alunos e docentes, o que justificaria a mesma ser
registrada na parte externa da escola, para facilitar o enquadramento e a organização dos
indivíduos.
A primeira imagem analisada (FIGURA 2) se encontra no recorte temporal
entre 1914 e 1917; é possível inferir esta informação pois lê-se na lateral do prédio a
identificação de “municipal” e sabe-se que, a partir de 1918, a instituição torna-se
Grupo Escolar Estadual.
Figura 2: Grupos Escolar Municipal José de Alencar (1914-1917)
Fonte: Acervo CEJA
Nesta fotografia há separação entre os sexos dos alunos, sendo que as
meninas estão sentadas, recatadas, com seus uniformes brancos, enquanto os meninos
estão em pé, atrás, em posição de sentido, ordenados e uniformizados ao estilo militar,
segundo Camillo quando se refere ao período de gestão do primeiro Diretor do Grupo
Estadual Escolar: “Havia aulas de instrução militar” (CAMILLO, 1991 p.12). Abaixo
da porta, no eixo direito da fotografia, estão provavelmente o diretor, em primeiro
plano, e as professoras da instituição, em um segundo plano.
Pode-se inferir que o objetivo desta fotografia era a própria instituição: ao
selecionar o ângulo do registro, o fotógrafo permite visualizar uma parte lateral da
construção, e não apenas a sua fachada, o que dá profundidade à imagem, demonstrando
a extensão do edifício do grupo escolar, mesmo que para isso nem todos os alunos
sejam devidamente enquadrados.
A materialização da instituição escolar pode ser identificada nesta fotografia
por meio do edifício que abriga a escola: uma construção de alvenaria, que traz em sua
estrutura características arquitetônicas características no início do século XX, assim
como é possível identificar alguns preceitos higienistas da época, como as grandes
aberturas para iluminação e arejamento do ambiente. Pela extensão do edifício e pelas
duas portas, pode-se inferir que o grupo escolar possui mais de uma sala.
Além da pose e da formalidade das vestes, a bandeira hasteada acima dos
alunos colabora para a interpretação da solenidade do momento.
A estatura dos alunos, que se diferencia e fica evidente ao se voltar o olhar
para uma análise mais apurada, permite também inferir que a escola era multisseriada –
há crianças muito pequenas junto de crianças mais velhas.
Esta análise também permite identificar alguns detalhes que se tornam
discrepantes dentro da configuração do cenário total: o aluno, no eixo da esquerda da
foto, que é registrado sem um uniforme – suas vestes e seu chapéu não seguem o padrão
dos demais alunos; em meio a ordem e a pose a qual exige o momento, há outros
alunos, também no eixo esquerdo, que fogem da postura habitual – um dos alunos está
cochichando ao ouvido do outro, enquanto uma aluna está sentada com o queixo
apoiado nas mãos. Há, portanto, que se apurar o olhar para aquilo que não está previsto,
para as ações que subvertem o padrão do momento e que possibilitam leituras diversas
que precisam ser identificadas pelo olhar do historiador (LUCHESE, 2014).
A segunda fotografia analisada (FIGURA 3) foi registrada
aproximadamente em 1918, sendo que as figuras identificadas nesta imagem são o
diretor do grupo escolar, Dr. Sílvio Alvares Rabello, que se encontra abaixo do marco
da porta, e a professora Ursulina Paglioli de Lucena, mais a frente, à esquerda. Percebe-
se que a partir da 5ª aluna na fila mais alta, da esquerda para direita, há um movimento
dos corpos se inclinando para a direita, parecendo a princípio um pedido do fotógrafo
para que o corpo do Diretor apareça quase que por completo no registro fotográfico, que
denota a importância do mesmo.
Figura 3: Alunos e docentes do Grupo Escolar José de Alencar (1918)
Fonte: Acervo CEJA
Há ordem e disciplina – a organização dos alunos, provavelmente por idade,
uniformizados, sentados à frente do edifício, em posição formal, de braços cruzados. Há
sete alunos, caraterizados pelo uniforme, sendo que seis deles são estudantes negros.
Não há bandeira hasteada nesta fotografia, mas acima da porta fechada há um emblema,
parecendo ser o brasão estadual.
A ordem geral na disposição dos alunos é quebrada no momento em que se
visualiza alguns indivíduos que não estão na composição habitual junto aos demais:
estão na janela mais à direita, amontoados, permitindo-se uma brecha para o registro do
momento. Não estão uniformizados, e um olhar mais atento permite identificar que há
uma mulher adulta entre os jovens. Permite-se uma reflexão, não findada até o presente
momento: quem seriam estas pessoas?
Há, nos detalhes, mais flagrantes da câmera que permitem uma leitura
avessa: os alunos que fogem da postura obrigatória, aqueles que não estão com o
uniforme completo e que se escondem do registro do diferente; há, entre a pose de
braços cruzados, alguns displicentes, que deixam os braços ao lado do corpo, aqueles
que fogem da postura passando o braço nas costas do colega. Há uma aluna com sorriso
completo, na fila mais à direita, entre dois alunos negros. A ordem e a disciplina
também têm seu momento de ruptura, onde a leitura destes momentos permite ao
historiador narrar novas histórias, fundar novas memórias (BENCOSTTA, 2011).
O momento retratado parece ser algum evento especial, com uma vista da
parte frontal da escola, diferentemente do retratado na Figura 4, que mostra uma
fotografia feita na parte posterior da instituição:
Figura 4: Comemoração cívica (1930)
Fonte: Fonte: Acervo CEJA
A fotografia na parte posterior da escola permite deixar todos os alunos em
um mesmo nível, sendo que a criação do plano da fotografia se dá pela diferença das
alturas dos mesmos. A ordem e a disciplina ficam mais visíveis nesta fotografia, que
retrata uma comemoração cívica. Os alunos, em fileiras ordenadas, estão com vestes de
gala, brancas, com o emblema da escola.
O espaço de centralização da imagem pressupõem um cuidado, uma atenção
na distribuição dos alunos, observando-se que das vinte filas que ali estão contidas e os
milímetros de espaço sobrando na imagem, pode nos remeter a pensamento linear puro,
numérico em sua essência, sendo que 98 % das filas sã compostas por onze alunos:
olhando da esquerda para direita são distribuídos da seguinte forma: 1ª até 8ª fila, onze
alunos; 9ª fila, doze alunos; 10ª até 15ª filas, onze alunos; 16ª fila, dez aluno;, 17ª até
20ª filas, onze alunos novamente. Este cuidado com a organização da disposição dos
alunos na fotografia permite que se entenda o caráter formal da ocasião a ser registrada.
Posição ereta, vestes brancas impecáveis; há diferença nas vestes entre
meninos e meninas, sendo que também não há divisão por sexo, mas todos possuem um
brasão destacado no peito. Não há professores ou adultos, apenas o corpo discente do
grupo escolar, representando a organização e a disciplina do projeto escolar dos anos
30, mesmo que nem todos os alunos estejam visíveis no registro.
A arquitetura da parte posterior da escola permite identificar uma outra
visão da escola, e a diferença existente entre a fachada e o que fica “escondido”. Pode-
se indagar o porquê do registro ter sido feito nesta parte da escola, que apresenta um
aspecto arquitetônico mais simples e menos formal, o que contrasta com a postura dos
alunos e com a configuração do momento.
Das fotos analisadas, esta é a que permite uma leitura de maior austeridade:
há poucos pontos que fogem da circunspecção do momento, e ficam a cargo de um dos
alunos que sai da formação no momento da fotografia, de algumas expressões que
fogem dos demais.
O discurso desta fotografia passa austeridade, formalidade, a ordem que se
espera dos alunos, daqueles que se encontram abaixo na hierarquia da educação, e que
precisam ser disciplinados para que se tornem bons cidadãos. Há a possibilidade de
enxergar indícios que podem caracterizar o período inicial do Governo Vargas, que
assume o poder no ano em que é registrada essa imagem; também é uma das
possibilidades diante da continuidade dos estudos relacionados aos elementos
problematizantes da historicidade dessa instituição escolar centenária, sendo a fotografia
um deles.
Alguns elementos permitem uma análise comparativa das fotografias
através do tempo: não apenas a materialidade da fotografia enquanto suas características
técnicas (cor do papel, qualidade da imagem, foco e nitidez), mas a materialidade
representada, aquela que precisa ser interpretada, que está revestida das práticas e da
cultura das escolas gaúchas na primeira metade do século XX: o edifício e a
possibilidade de reconstruir seu cenário externo por meio das diferentes vistas
apresentadas nas fotografias; o passar do tempo nas vestes e na maneira como as
crianças são organizadas e dispostas no arranjo fotográfico; a ordem e a disciplina,
resultado de uma prática de austeridade na conduta escolar.
Por meio deste conjunto de elementos abordados na análise da fotografia, é
possível sintetizar os três principais aspectos ao considerarmos as imagens visuais
(BARTHES, 1984; KOSSOY, 2002; MAUAD, 2005):
A produção, que relaciona tecnologia, espaço e tempo, sempre
entendendo a fotografia como um objeto que se encontra situado na
história não apenas pelo que retrata, mas também pela sua
materialidade, de seu “poder fazer” (DUSSEL, 2008).
A interpretação, que é constituída através de um conjunto de
elementos, como o fotógrafo, o espectador/leitor/historiador, o
contexto social. Aqui, o entendimento, apropriação do sentindo de
uma imagem, está relacionado com as condições de recepção e de
sua atribuição de valor (informativo, artístico, íntimo).
A questão da fotografia como produto, como o “resultado do
processo de produção de sentido e relação sociais” (MAUAD, 2005,
p. 135). É o resultado da relação entre sujeitos, e é nisto que reside a
sua capacidade narrativa presente na temporalidade.
Para Mauad (2005, p. 135) “as imagens nos contam histórias
(fatos/acontecimentos), atualizam memórias, inventam vivências, imaginam a História”.
As fotografias aqui analisadas contam uma história, retratam um espaço e um tempo
constituído de práticas e de uma cultura própria. Nesse sentido, enquanto a História
associada à Antropologia e a Sociologia permite indagar sobre o conteúdo da fotografia,
sobre as formas de agir e ser no passado, é por meio da Semiótica que a produção do
sentido fotográfico se faz presente através do entendimento da fotografia enquanto uma
mensagem que se processa através do tempo, que é significativa e dialoga com os
elementos da cultura.
A fotografia, entendida como materialidade visual, possibilita que os
campos de estudo que Mauad (2005) relaciona acima sejam compreendidos para além
de sua existência solta na História; é repleta de elementos políticos, estéticos, éticos e
pressupõem uma epistemologia e articulam uma pedagogia (DUSSEL, 2008);
necessitam de uma observação específica, de um olhar cuidadoso, de uma metodologia
para a sua análise, que precisa ser aprendida. Neste trabalho, a pretensão não é um
findar da análise das práticas e culturas do Grupo Escolar José de Alencar, mas uma
possível interpretação que deve ser aprofundada conforme mais elementos históricos
forem sendo restituídos.
Ademais, ao se tratar a fotografia como fonte histórica, é possível tratar
diferentes abordagens, como as possibilidades tecnológicas e de uma cultura visual de
dada época, o conteúdo que possui vestígios de uma cultura material e de um aporte
simbólico e a sua participação na criação de um discurso visual instaurado em um
recorte espacial e temporal.
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