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PARECER JURÍDICO
Assunto: AÇÃO DE INTERDITO PROIBITÓRIO C/C COM PERDAS E DANOS
657/2009 EM FACE DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA FAXINALENSE ÁGUA
AMARELA (E OUTROS)
Tendo em vista o envio por meio do Ofício 027/2011 das
principais peças da Ação de Interdito Proibitório c/c com Perdas e Danos 657/2009 a este
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(CAOPJDC), com relação ao conflito territorial na Comunidade Faxinal Água Amarela de
Cima, localizada no Município de Antônio Olinto, Comarca de São Mateus do Sul, Estado
do Paraná, verifica-se a necessidade de análise do contexto ambiental e cultural em cotejo
com os direitos reais da referida comunidade, como se exporá no presente Parecer Jurídico.
Para tanto, houve a atuação conjunta do CAOPJDC com o
Departamento Socioambiental do Instituto Ambiental do Paraná (DSA/IAP), órgão
responsável pelo procedimento de criação das ARESUR no Estado, para elaboração do
parecer requerido. Em 07 de abril do ano corrente, foi realizada viagem pelo CAOPJDC e
DSA à Comunidade Faxinal Água Amarela de Cima para esclarecimento acerca do conflito
com as lideranças locais e diagnóstico in locu com a elaboração de Relatório de Visita, o
qual serviu como base para a elaboração do presente parecer por propocionar o
contraditório em relação à Petição Inicial e demais peças encaminhadas (Anexo I).
Frise-se que a análise se restringe a questão do reconhecimento
jurídico do Sistema Faxinal, não envolvendo questões processuais próprias da demanda
(ilegitimidade de partes, utilidade e adequação procedimental, necessidade de formação de
litisconsórcio, entre outros).
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1. Do Sistema Faxinal e da ARESUR
Primeiramente, faz-se mister esclarecer conceitualmente a distinção entre Sistema
Faxinal e ARESUR (Área Especial de Uso Regulamentado), acerca dos quais há confusão
por parte dos autores da Ação 657/2009.
Os termos Faxinal ou Sistema Faxinal são utilizados, na maioria das vezes, como
sinônimos. Alguns autores definem o Sistema Faxinal como a forma de organização
camponesa com criação extensiva de animais em áreas comuns, extração florestal
dentro do criadouro comum e policultura alimentar de subsistência. A organização do
Sistema Faxinal está dividida fisicamente em espaços principais:
“As terras do criadouro comum são, em geral, formadas por vales com relevo
suavemente ondulado e presença de cursos d’águas. Elas abrigam um ambiente
florestal alterado pelo pastoreio extensivo. Já as terras de plantar se localizam
geralmente nas encostas, em áreas mais íngremes, e são separadas do criadouro
através de um sistema de cercas e/ou valos” 1.
Trata-se, portanto, de pequenos proprietários rurais que preservam a tradição
centenária de um modo de produção coletivo no qual uma parcela da propriedade de
cada um é destinada ao uso coletivo para criação de animais em uma área cercada
denominada de “criadouro comunitário” ou “faxinal”. A manutenção das cercas do faxinal
é realizada por meio do “puxirão” que consiste no trabalho conjunto de todos aqueles que
usam o criadouro comunitário.
Desse modo, é ilustrativo o relato do morador do Faxinal Água Amarela de Cima,
Antonio Barbosa, no Fascículo 3 do Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e
Comunidades Tradicionais do Brasil2 (Anexo II):
1 LÖWEN SAHR, Cicilian Luiza; GONÇALVES CUNHA, Luiz Alexandre. O Significado Social e Ecológico dos Faxinais: Reflexões Acerca e uma Política Agrária Sustentável para a Região da Mata com Araucária no Paraná. In: Revista Emancipação, 5(1), 2005 (P. 94) 2 Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (PPGSCA/UFAM – FUND. FORD – MMA – MDS). Série Faxinalenses do Sul do Brasil. Fascículo 3: Faxinalenses no Setor Sul do Paraná. Rebouças/PR, Setembro de 2008, p. 3. ISBN 85-86037-20-6. Ver: http://www.novacartografiasocial.com/default.asp.
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“Faxinal é uma tradição de muito tempo, e coisa importante é que nós vivemos
igual, então a pessoa que tem terreno vive igual aqueles que não tem, também
usa o terreno que tem, é um momento de partilha.
Tais características revelam um sistema tradicional de produção desenvolvido pelas
sociedades camponesas, que resistiram à degradação ambiental e continuaram com seu
modos vivendi diferenciado, o que permitiu a preservação da Floresta de Araucária
(Floresta Ombrófila Mista). Apresenta-se, portanto, como um exemplo a ser seguido e
defendido tendo em vista que o governo e a sociedade civil cada vez mais buscam formas
de atuação sustentáveis. Neste contexto, esta experiência auto-sustentada de relevante
importância ecológica, social, histórica e cultural é protegida pelo poder público do
Estado do Paraná que, alinhado com as normas internacionais, constitucionais e federais3,
estabeleceu regramento para a matéria. Inicialmente, através do Decreto nº 3.446/97
(Anexo III), protege-se o Sistema Faxinal como Área Especial de Uso Regulamentado
(ARESUR), pressupondo um ato administrativo de cadastramento do faxinal como
Unidade de Conservação específica do Estado do Paraná:
Art. 1º - Ficam criadas no Estado do Paraná, as Áreas Especiais de Uso
Regulamentado - ARESUR, abrangendo porções territoriais do Estado
caracterizadas pela existência do modo de produção denominado "Sistema
Faxinal", com o objetivo de criar condições para a melhoria da qualidade de
vida das comunidades residentes e a manutenção do seu patrimônio cultural,
conciliando as atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental,
incluindo a proteção da "araucaria angustifolia" (pinheiro-do-paraná).
Depreende-se claramente, portanto, que a ARESUR só poderá ser criada em uma
área onde haja tradicionalmente a presença do Sistema Faxinal, que é descrito no mesmo
artigo, § 1º:
3 Vide Ponto 2. Normas internacionais e constitucionais de proteção aos territórios e das culturas tradicionais.
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§ 1º - Entende-se por Sistema Faxinal: o sistema de produção camponês
tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná, que tem como traço
marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a conservação
ambiental. Fundamenta-se na integração de três componentes:
a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários;
b) produção agrícola - policultura alimentar de subsistência para consumo e
comercialização;
c) extrativismo florestal de baixo impacto - manejo de ervamate, araucaria e
outras espécies nativas.
Sob a esfera de proteção da ARESUR, consoante documento emitido pelo Instituto
Ambiental do Paraná – IAP se encontram inseridos 24 (vinte e quatro) faxinais4, dentre eles
o Faxinal Água Amarela de Cima. O mesmo requerimento que tem o condão de possibilitar
a criação da ARESUR também se presta a solicitar a participação no ICMS-Ecológico,
instrumento de incentivo à gestão ambiental que surge no cenário nacional por iniciativa do
Estado do Paraná por obra da Lei Complementar nº 59/1991 (Anexo IV) enquanto valor
destinado aos Municípios que firmarem compromisso de preservação ambiental. Baseado
no princípio do protetor-beneficiário, este é um mecanismo que funciona como uma
compensação financeira para os Municípios que preservam o meio ambiente através de
áreas de comunidades tradicionais como terras indígenas e faxinais, entre outros programas.
Nesse sentido, os municípios estão sendo incentivados a valorizarem e
reconhecerem a importância das comunidades tradicionais residentes em seu território. Tal
fato é evidenciado pelas Leis Municipais de reconhecimento dos faxinais aprovadas em
diversos municípios como Pinhão, São Mateus do Sul, Rebouças e Antônio Olinto, onde
está localizada a comunidade faxinalense em questão. Estas leis, como se afirma na petição
inicial (p. 3), tem realmente caráter declaratório, o que significa, portanto, que os
4 Seixas, no Município de São João do Triunfo; Papanduva, Paraná Anta Gorda, Ivaí Anta Gorda, Barra Bonita, Marcondes, Guanabara, Tijuco Preto e Taboãozinho, no Município de Prudentópolis; dos Melos e do Rio do Couro, no Município de Irati; Marmeleiro de Baixo, Marmeleiro de Cima, Barro Branco e Salto, no Município de Rebouças; Lageado dos Melos, Taquari e Água Quente dos Meiras, no Município de Rio Azul; Lageado de Baixo, no Município de Mallet; Kruger, no Município de Boa Ventura de São Roque; Emboque, no Município de São Mateus do Sul; Água Amarela de Cima, no Município de Antônio Olinto, Campestre dos Paulas e Meleiro/Espigão das Antas/Pedra Preta, no Município de Mandirituba.
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Sistemas Faxinais já estão constituídos fática e historicamente enquanto contextos
culturais diferenciados, atraindo assim a incidência das normas protetivas.
O Faxinal Água Amarela de Cima tornou-se reconhecido como ARESUR por meio
da Resolução nº 048/2009 (Anexo V) da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos (SEMA/PR). Nesta resolução, em seu artigo 2º, lê-se:
Definir que o criador comunitário ativo corresponde à área integral do Faxinal,
cuja utilização deverá ocorrer respeitando-se as práticas tradicionais e
acordadas pelos faxinalenses. (grifo nosso).
O pedido para a criação da ARESUR correspondente ao Faxinal foi assinado pelo
Prefeito do Município de Antonio Olinto e inicia o procedimento administrativo no
Instituto Ambiental do Paraná (Anexo VI). Tal procedimento requer o envio de (a) mapa e
memorial descritivo do faxinal incluindo a localização do criadouro comunitário, (b)
diagnóstico histórico e realidade atual do faxinal, (c) diretrizes para conservação ambiental
do faxinal (em especial do criadouro comunitário), dando ênfase a conservação da
araucária, (d) apresentação de um plano de ação a serem anualmente avaliadas pelo IAP.
Portanto, é equivocada a afirmação dos autores na exordial que “os requeridos tem
tentado nos últimos meses restringir o uso de propriedade alheia” (p. 3) já que estes modos
de “criar, fazer e viver” 5 específicos dos sujeitos coletivos faxinalenses têm como
característica fundamental a tradicionalidade histórica e cultural. Nesta tradição
consolidou-se voluntariamente uma cessão centenária de partes das áreas particulares
para o uso comum, o que se pode depreender pelo fortalecimento mútuo de pequenos
proprietários ao estabelecerem uma área maior com a finalidade de uso coletivo da terra
para criação de animais à solta.
Toda a regulamentação do modo de vida da comunidade é descrita no Acordo
Comunitário onde é especificado, por exemplo, a quantidade de área particular que pode 5 A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu Art. 216, reconhece como patrimônio cultural brasileiro os diversos modos de “criar, fazer e viver” dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Vide Ponto 2. Normas internacionais e constitucionais de proteção aos territórios e das culturas tradicionais.
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ser isolada e o número de animais por família, e também são relacionadas as proibições
como do uso de agrotóxico, da plantação de árvores exóticas, dos desmates, entre outros.
Esse acordo era antes oral, levando-se em conta inclusive o índice de analfabetismo na área
rural brasileira. Em 25 de abril de 2008, o Acordo foi discutido e redigido em Assembléia
(Anexo VII). Como se lê no artigo 2º da Resolução acima, este acordo é reconhecido
juridicamente como norma interna da comunidade.
Na visita à comunidade realizada pelo IAP e pelo CAOPJDC, os moradores
relataram que dos nove autores da Ação de Interdito Proibitório, sete são pessoas que
compraram terras no faxinal nas últimas décadas e, portanto, quando chegaram na
localidade esta já funcionava de acordo com o modo de vida faxinalense. Ressalta-se que os
moradores da comunidade de Água Amarela de Cima estimam que o modo de uso coletivo
da terra por meio do criadouro comunitário e, portanto, que o Sistema Faxinal tenha mais
de 180 anos. O que é recente, portanto, é apenas a caracterização jurídica do Faxinal como
ARESUR, datada de 19 de outubro de 2009 conforme a supracitada Resolução nº 048/2009
da SEMA, em cumprimento do Decreto nº 3.446/97.
Deve-se, portanto, exigir da parte autora o ônus de comprovação da localização das
áreas relacionadas no anexo à petição inicial denominado “Relação de terrenos com ameaça
de turbação” bem como as matrículas correspondentes. Ora, as lideranças faxinalenses
indicaram que algumas áreas relacionadas pelos autores não estão dentro do território da
comunidade, distinção esta não esclarecida na petição inicial. Deste modo, faz-se
necessário a elaboração de mapas ou a realização de perícia que demonstre a localização
das áreas dos proprietários. Para tanto, é disponibilizado o mapa e o memorial descritivo da
ARESUR do Faxinal Água Amarela de Cima (Anexo VIII). Ressalta-se que a medição do
terreno do faxinal se deu apenas em relação às cercas que delimitam o criadouro, mediante
financiamento da Prefeitura.
Conforme Relatório de Visita (Anexo I), verificou-se que a área de um dos autores
da ação, Felix Gazzola, já foi excluída do criadouro comunitário, pois está localizada na
periferia da área. Não obstante, o terreno continua abrangido pela ARESUR. Outras
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propriedades que estão localizadas em área central do criadouro comunitário devem receber
abordagem diferenciada já que a realização de fechos compromete todo Sistema Faxinal.
Portanto, as propriedades que estiverem dentro da circunscrição da Área Especial de
Uso Regulamentado (ARESUR) estarão sujeitas à determinação normativa que reconhece o
modo de vida e o Acordo Comunitário da comunidade faxinalense, limitando assim o
exercício do direito de propriedade com o objetivo claro no artigo 1º do Decreto nº 3446 de
1997 de “melhoria da qualidade de vida das comunidades residente”, “manutenção do seu
patrimônio cultural” e “conservação ambiental”.
Essa limitação não significa extinção. Os proprietários de terras dentro da ARESUR
podem usá-las de acordo com a normatividade interna do faxinal e também podem vendê-
las, passando ao novo proprietário o dever de respeito às limitações estabelecidas pela
tradicionalidade cultural local. Trata-se de uma limitação socioambiental já que a ARESUR
tem um caráter duplo de preservação cultural e ambiental.
A limitação à propriedade é totalmente pertinente com o sistema jurídico pátrio já
que, embora seja elencada como direito fundamental, não se constitui como direito
absoluto. Está, pois, sujeita ao crivo da função social, que não é apenas uma “bela
expressão” como se afirma na petição inicial (p. 04), mas uma determinação com força
normativa constitucional, conforme artigo 5º, XXIII da Carta Magna.
Nesse sentido, ressalta-se também a inadequação da proposta de conciliação
constante do Termo de Audiência em 19/01/2010 que consistia na obrigação dos
faxinalenses de cercarem as áreas dos autores para que se tornassem definitivamente
particulares, conforme foi relatado pelas lideranças no momento da visita descrita no
supracitado relatório. Evidencia-se, deste modo, que não se tratava de conciliação, mas de
concessão total aos pleitos dos autores e negação do rol de direitos das comunidades
faxinalenses, como se passa a aprofundar adiante.
2. Das normas de proteção do Sistema Faxinal
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Quando se faz citação na petição inicial do artigo 5º, inciso II da Constituição
Federal dizendo que “ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa, a não ser em virtude de lei”, ignora-se a existência de uma gama de dispositivos
normativos com o intuito de proteger o patrimônio sociocultural das comunidades
tradicionais de modo geral e das comunidades faxinalenses de modo específico.
2.1. Normas estaduais e locais
A Constituição do Estado do Paraná afirma em seu artigo 191:
Os bens materiais e imateriais referentes às características da cultura, no
Paraná, constituem patrimônio comum que deverá ser preservado através
do Estado com a cooperação da comunidade.
Nesse sentido, a criação de ARESUR, já longamente trabalhada no ponto 1, não é a
única forma de proteção dos faxinais em âmbito estadual. Aplica-se ao tema a Lei nº
15.673/2007, que reconhece a identidade faxinalense6 pela autodefinição, mediante
Declaração de Auto-reconhecimento Faxinalense, a ser atestada pelo órgão estadual que
trata de assuntos fundiários - ITCG, através da outorga da certidão. Entende a lei em
comento que a cultura faxinalense tem como traço marcante o uso comum da terra para
produção animal e a conservação dos recursos naturais, fundamentando-se na
integração de características próprias.
No Município de Antonio Olinto, foi sancionada a Lei 653/2008 que regulamenta a
Declaração de Autodefinição faxinalense, reconhece os acordos comunitários e proíbe
qualquer ação fora das especificações destes acordos estipulando multa para as infrações. O
modelo de apresentação de abaixo-assinados cumpre o papel de legitimação interna em
relação ao pleito de Autodefinição (Anexo IX). Apresenta-se também o abaixo-assinado 6 Entende-se por identidade faxinalense a manifestação consciente de grupos sociais pela sua condição de existência, caracterizada pelo seu modo de viver, que se dá pelo uso comum das terras tradicionalmente ocupadas, conciliando as atividades agrossilvopastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas sociais tradicionais, visando a manutenção de sua reprodução física, social e cultural (art. 2º, parágrafo único).
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intitulado “Comissão em defesa do Faxinal Água Amarela de Cima”, o qual nos anexos da
petição inicial consta apenas com uma página (p. 112), e na íntegra contém 10 páginas
(Anexo X). Por fim, o abaixo-assinado dos proprietários (p. 124) segue em anexo com a
identificação de pessoas que são de fora da comunidade além da indicação pelas lideranças
da comunidade de pessoas que assinaram simultaneamente abaixo-assinados contra e a
favor ao faxinal (Anexo XI).
Ademais, a Lei Municipal 653/2008 estabelece que as transferências de propriedade
das terras dos faxinais vinculam os novos proprietários a respeitarem as formas
tradicionais de uso, o que não está sendo cumprido pelos autores da Ação. Por fim, destina
80% do valor do ICMS Ecológico recebidos pela Prefeitura e originados da ARESUR às
associações dos respectivos faxinais.
2.2. Normas internacionais e constitucionais
A matéria vem sendo tratada pelas normas internacionais que, com grande
consistência de fundamentos e de validade, estabelecem mecanismos de proteção jurídica
aos territórios e às culturas tradicionais em seus diversos elementos culturais, materiais e
imateriais, que compõem o testemunho da intervenção humana sobre a natureza. Tais
normas foram internalizadas pelo sistema jurídico brasileiro7 e são referidas, em síntese,
nas linhas seguintes.
a) Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural,
promulgada pelo Decreto nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977, e aprovada pelo
Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 77 de 30 de junho de 1977 –
Estabelece mecanismos de reconhecimento e proteção de estruturas com
destacado interesse para a humanidade.
7 É oportuno frisar que, nos termos do § 3º, do art. 5º da Constituição Federal, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
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b) Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 5 de junho
de 1992, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, e aprovada
pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 2 de 03 de fevereiro de
1994. Tal instrumento, dentre outros dispositivos, prevê:
Respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das
comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais
relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e
incentivar sua mais ampla aplicação com a participação dos detentores desse
conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos
benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas: alínea j
do artigo 8;
Proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos biológicos de acordo
com as práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de
conservação e utilização sustentável: alínea c do artigo 10.
c) Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT 8, promulgada
pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, e aprovada pelo Congresso Nacional,
através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002. Com os seguintes
destaques:
Os governos deverão respeitar a importância de que, para as culturas e valores
espirituais dos povos indígenas e tribais, se reveste sua relação com as terras e/ou
8 A Convenção 169 da OIT, revendo a Convenção n.º 107, busca criar um instrumento internacional vinculante tratando especificamente dos direitos dos povos culturalmente tradicionais. Esta Convenção aplica-se aos povos em países independentes que apresentem condições sociais, culturais e econômicas distinguindo-se de outros segmentos da população nacional. A auto-identidade das populações indígenas ou tribais é uma inovação do instrumento, ao instituí-la como critério subjetivo, mas fundamental, para a definição dos povos. Isto é, nenhum estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal como tal ele próprio se reconheça. Os conceitos básicos, pelos quais se norteia a interpretação das disposições da Convenção, são a consulta e a participação dos povos interessados e o direito destes povos de decidir sobre suas próprias prioridades de desenvolvimento na medida em que afetem suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam. A Convenção reconhece o direito de posse e propriedade e preceitua medidas a serem tomadas para a salvaguarda destes direitos em relação à terra e ao território que as comunidades tradicionais ocupam ou utilizam coletivamente.
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territórios que ocupam ou utilizam de algum modo, particularmente, os aspectos
coletivos dessa relação: artigo 13;
Reconhecimento do direito de propriedade e posse desses povos sobre as terras
ocupadas tradicionalmente e direito à utilização de terras não ocupadas, que
venham sendo utilizadas de forma tradicional para atividades e subsistência. É
dever do Estado tomar as providências necessárias para definir as terras que esses
povos ocupam tradicionalmente e garantir a proteção de seus direitos de
propriedade e de posse: artigo 14;
Dever de proteção dos direitos desses povos sobre os recursos naturais
existentes nos territórios. Esses direitos compreendem os direitos desses povos de
participação do uso, administração e conservação desses recursos: artigo 15;
Excepcionalidade da remoção das terras tradicionalmente ocupadas. Quando se
considerarem necessárias a remoção e o reassentamento desses povos, desde que
seja feito mediante seu livre consentimento, dado com pleno conhecimento de
causa. Sempre que possível, esses povos deverão ter o direito de regressarem as
suas terras tão logo deixem de existir as causas que motivaram sua remoção e
reassentamento. Quando o retorno não for possível, esses povos deverão receber
terras cuja qualidade e situação jurídica sejam pelo menos iguais às das terras que
ocupavam anteriormente. Quando esses povos preferirem receber indenização em
dinheiro, esta lhes deverá ser garantida com as devidas garantias. As pessoas
removidas e reassentadas deverão ser plenamente indenizadas por qualquer perda ou
dano sofrido em conseqüência de sua remoção: artigo16;
Deverão ser respeitadas as modalidades estabelecidas pelos povos indígenas e
tribais para a transmissão dos direitos sobre a terra entre seus membros. Os
povos deverão ser consultados sempre que se considere sua capacidade de alienar
suas terras ou transmitirem de outro modo seus direitos sobre essas terras fora de
sua comunidade. Dever-se-á impedir que pessoas estranhas a esses povos possam se
aproveitar dos costumes ou do desconhecimento das leis para obterem a
propriedade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes: artigo 17;
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A lei deverá estabelecer as devidas sanções de toda intrusão não-autorizada nas
terras desses povos, e os governos deverão tomar as medidas para impedir essas
infrações: artigo 18;
Os programas agrários nacionais deverão garantir a esses povos tratamento
equivalente ao concedido aos demais segmentos da população, para (a) distribuição
de terras adicionais quando as que dispunham se tornem insuficientes para lhes
garantir o indispensável a uma existência normal ou para fazer frente ao seu
possível crescimento numérico e (b) concessão dos meios necessários para
promover o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam: artigo 19.
d) Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais
(assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005, com Instrumento de Ratificação
depositado pelo Brasil em 16 de janeiro de 2007, entrou em vigor internacional em
18 de março de 2007), aprovada pelo Decreto Legislativo nº 485, de 20 de
dezembro de 2006, que, em síntese, direciona-se a:
Respeitar e proteger os sistemas de conhecimentos tradicionais, bem como
reconhecer a contribuição desses conhecimentos para a proteção ambiental e a
gestão dos recursos naturais e favorecer a sinergia entre a ciência moderna e os
conhecimentos locais, e, ainda, prevê a integração da cultura nas políticas de
desenvolvimento, em todos os níveis, a fim de criar condições propícias ao
desenvolvimento sustentável e, nesse marco, fomentar aspectos ligados à proteção
e promoção da diversidade das expressões culturais (artigo 13). Tem como
principais objetivos:
proteger e promover a diversidade das expressões culturais;
criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em
benefício mútuo;
encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais
amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma
cultura da paz;
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fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no
espírito de construir pontes entre os povos;
promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a
conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;
reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos
os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações
empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o
autêntico valor desse vínculo;
reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto
portadores de identidades, valores e significados;
reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as
políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais em seu território;
fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de
parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países
em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das
expressões culturais.
e) Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (adotada em
Paris, em 17 de outubro de 2003, e assinada em 3 de novembro de 2003) ,
promulgada pelo Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006, aprovada pelo Congresso
Nacional, através do Decreto Legislativo n º 22, de 01 de fevereiro de 2006, amplia
a esfera de proteção de acervos culturais também no plano imaterial.
A Constituição de 1988 passa a tratar a cultura e os bens culturais de forma mais
aprofundada, destinando uma seção específica ao assunto9, reconhecendo e protegendo o
9 Desde a Constituição de 1937 até a emenda de 1969, há tratamento conjunto entre os bens naturais e culturais.
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pluralismo cultural e a diversidade de valores dos grupos étnicos integrantes do nosso
“processo civilizatório”. Prevê o artigo 216 da Constituição Federal:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
Assim, pode-se concluir que a ordem constitucional vigente se insere no contexto
do reconhecimento do multiculturalismo e lança-se na difícil tarefa de buscar proteger
todos os processos acumulativos dos diferentes grupos portadores de referência à
identidade, à ação e à memória que formam o patrimônio cultural brasileiro.
A par de uma malha normativa internacional e do conjunto de regras, preceitos e
princípios constitucionais já mencionados, no campo legislativo em sentido estrito, merece
destaque o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, preconizando
que os territórios tradicionais são espaços necessários a reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, utilizados de forma permanente ou
temporária. Estabelece como objetivo geral o desenvolvimento sustentável dos povos e
comunidades tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia de seus
diretos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à
sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.
Vale ressaltar que o Decreto de 13 de julho de 2006 do então Presidente da
República, em seu artigo 4º, XXI, inclui a representação dos faxinalenses na Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, dentre
outros quatorze organizações não-governamentais e quinze representantes de órgãos e
entidades da administração pública federal, todos com direito a voz e voto.
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Destaca-se do texto normativo o Decreto nº 6.040 os seguintes objetivos
específicos:
a garantia aos povos e comunidades tradicionais de seus territórios e o acesso aos
recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural
e econômica (inciso I do artigo 3º);
a solução e/ou minimização dos conflitos gerados pela implantação de Unidades de
Conservação de Proteção Integral em seus territórios tradicionais e o estímulo à
criação de Unidades de Conservação de Uso Sustentável (inciso II do artigo 3º);
garantir os direitos dos povos e das comunidades tradicionais afetados direta ou
indiretamente por projetos, obras e empreendimentos: inciso IV do artigo 3º.
Verifica-se que a construção normativa busca proteger amplamente os contextos
culturais, em seus aspectos materiais e imateriais, reconhecendo a importância da
manutenção do território como elemento de destaque na continuidade da cultura viva,
dentro da premissa de que as sociedades e suas manifestações são sistemas dotados de uma
complexidade inerente, que funcionam entre a construção e a reconstrução, unidade e
pluralidade, plenitude e incompletude10.
Em outras palavras, o Faxinal Água Amarela de Cima está situado no tempo e no
espaço presente e obtém a proteção enquanto unidade de conservação ambiental e enquanto
contexto cultural diferenciado, aspectos físicos e simbólicos, materiais e imateriais, que
garantem a incidência concreta das normas supracitadas. Para valorar-se a existência dos
faxinais há que se abrir para o diálogo intercultural, permitindo que os conceitos, valores e
símbolos de compreensão dessas comunidades sejam contemplados em condições de
10 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: Etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; RIBEIRO, Darcy. As américas e a civilização: Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; RIBEIRO, Darcy Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no Brasil moderno.3. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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igualdade com aqueles elementos apresentados pelo discurso proprietário, que representa o
grande topoi11 da cultura moderna.
3 – Diversidade socioambiental, segurança alimentar e desenvolvimento sustentável
nas comunidades faxinalenses
A importância ambiental destas comunidades tradicionais para o desenvolvimento
sustentável da região e do País é elevada, pois são consideradas garantes dos recursos
naturais do País, defendendo a diversidade biológica, qualidade ambiental e o
desenvolvimento social. De outro lado, é de se reforçar o argumento de que a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(PNPCT), instituída por meio do Decreto nº 6.040/2007, adota, entre outros, os seguintes
princípios no campo ambiental:
“Art. 1º. (...)
I - o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e
cultural dos povos e comunidades tradicionais (...)
III - a segurança alimentar e nutricional como direito dos povos e comunidades
tradicionais ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que
respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e
socialmente sustentáveis;
V - o desenvolvimento sustentável como promoção da melhoria da qualidade
de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais, garantindo as
mesmas possibilidades para as gerações futuras e respeitando os seus modos de
vida e as suas tradições;
11 Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura e funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos.
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Ora, nesse sentido, questiona-se a visão de “modernidade” adotada no texto da
petição inicial quando aponta para as comunidades faxinalenses como espaços retrógrados
que impedem o “progresso”. Essa visão está superada pela própria Constituição Federal
que, em seu artigo 216 reconhece como “patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”. O ordenamento jurídico pátrio, portanto, constitui-se tendo a pluralidade
cultural como aspecto estrutural do que decorre o dever do poder público de proteger as
culturas e os territórios dos povos e comunidades tradicionais, ou seja, visando a garantia
do direito difuso à diversidade socioambiental.
A segurança alimentar também é contemplada nas comunidades faxinalenses já que
se trata de pequenos agricultores lidando diretamente com a terra e garantindo a
subsistência de suas famílias. A implantação do modelo de agricultura convencional,
defendido na petição inicial, foi justamente o processo que desencadeou a expulsão dos
trabalhadores do campo, o inchaço das cidades que não estão aptas a absorverem o êxodo
rural, excluindo sistematicamente essa população tanto geográfica como socialmente. É
este modelo que gera a degradação ambiental por meio da monocultura, do uso de
agroquímicos, da plantação de espécies exóticas, do confinamento de animais que vem
demonstrando para a sociedade sua inadequação socioambiental, além da concentração dos
recursos econômicos.
Nesse sentido, destaca-se a conclusão da engenheira florestal Cláudia Sonda que já
assumiu a superintendência do INCRA no Estado do Paraná e atualmente atua no
Departamento Socioambiental do IAP:
As causas fundamentais do desmatamento no Paraná foram num primeiro
momento, os aproveitamentos extrativo-comerciais da erva-mate e da madeira,
para a exportação, seguido da implantação da nova agricultura – intensiva no
uso de insumos químicos, incluindo-se aí os agrotóxicos. Consequentemente,
a expansão da cultura cafeeira no Norte do Estado e mais tarde, da cultura
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da soja, no Oeste, estão entre os principais fatores do rápido
desaparecimento de nossas florestas12.
Por outro lado, as Áreas Estratégicas Para a Conservação da Biodiversidade e Povos
Tradicionais, conforme mapa do ITCG de 2010 (Anexo XII), perpassam as comunidades
faxinalenses e outras comunidades tradicionais como os povos indígenas e os quilombolas,
pois são em seus territórios onde há incidência de remanescentes de florestas. Isso se dá
justamente pela tradição cultural dessas comunidades que incorporam a relação com o
território e as atividades econômicas de forma integrada e não exploratória, o que hoje é
entendido dentro do contexto do desenvolvimento sustentável.
Deste modo, é importante destacar, portanto, o equívoco da petição inicial quando
diz que “as áreas de ‘criação comunitária’, ou compáscuo, deixaram de existir” (p.4), já
que o “mapeamento social dos faxinais” realizado pelo Instituto Equipe de Educadores
Populares, Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses, Pastoral da Terra da Diocese de
Guarapuava e o Projeto Nova Cartografia Social, com o apoio do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, entre os anos de 2007 e 2008,
identificou 227 comunidades faxinalenses no Estado do Paraná13. Tal ignorância em relação
à existência das comunidades faxinalenses, de acordo com o pesquisador Roberto Martins
de Souza, deve-se à invisibilidade social histórica dos povos e comunidades tradicionais.
Nesse sentido, afirma que o supracitado mapeamento teve como objetivo:
Colocar em evidência a visibilidade social dos faxinais e, por conseguinte, de
seus agentes sociais. (...) Por um lado, pretendemos esboçar as lacunas
censitárias sobre os faxinais, buscando apontar a precariedade dos dados
disponíveis; e, por outro, enfatizar a identidade e os conflitos socioambientais,
em consonância com a existência de territorialidades específicas, que se
traduzem em uma nova classificação de posições, manifestadas na permanência
12 SONDA, Cláudia. Reforma agrária, desmatemanto e conservação da biodiversidade no Estado do Paraná. In: Reforma Agrária e Meio Ambiente: teoria e prática no Estado do Paraná. Curitiba:TCG, 2010, p. 13 DE SOUZA, Roberto Martins. Mapeamento Social dos Faxinais no Paraná. In: Terras de Faxinais. DE ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno; DE SOUZA, Roberto Martins (orgs.). Manaus: Edições da Universidade do Estado do Amazonas, 2009, p. 29.
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e luta em torno do uso comum dos recursos básicos, onde o “tradicional” é o
motivo das demandas e disputas contra os antagonistas localizados, descritos
como “chacreiros”, “sojicultores”, “granjeiros”, “empresas madeireiras” e
“empresas de fumo”, além do poder público através de ações que violam formas
tradicionais de uso comum14.
Ora, os autores da ação enquadram-se entre estes antagonistas citados pelo
pesquisador enquanto chacreiros que compraram terras na área faxinalense e têm causado
sérios danos à comunidade desrespeitando o acordo local ao cercar áreas dentro do
criadouro comunitário, assim também com a plantação de monocultura de espécies exóticas
e outras infrações, inclusive objeto de autuação pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP).
Deve-se destacar, nesse sentido, que o próprio “relatório de inspeção ambiental” nº 84281
(Anexo XIII) citado na petição inicial, para embasar a alegação de desrespeito ambiental
pelo Sistema Faxinal(p. 06), tem como denunciado a pessoa do Sr. Henly Keu Shimizu, um
dos autores da Ação, e aponta que as atividades nocivas ao meio ambiente estão sendo
realizadas justamente por aqueles que estão isolando irregularmente áreas dentro do
criadouro comum.
Depois do Relatório de Inspeção Ambiental, o Sr. Shimizu foi também Autuado por
Infração Ambiental por “alterar o aspecto paisagístico ecológico com o plantio de 2,0 há de
eucaliptos, espécie exótica, dentro dos limites do Faxinal Água Amarela com prejuízo ao
meio ambiente e as normas estabelecidas”, infringindo a Lei Federal 9605/98 em seu artigo
63 e o Decreto Federal 6514/08 em seu artigo 73 (Anexo XIV). Verifica-se, assim, que as
infrações ambientais não são produto de uma ação dos faxinalenses, como se quer alegar na
petição inicial, mas de uma ação praticada em território faxinalense por aqueles que
desrespeitam suas regras, dentre os quais os autores da Ação. O depoimento da própria
testemunha dos requerentes, Tadeo Seika, também atesta essa infração quando afirma que o
Dr. Shimizu foi impedido de plantar pinnus na área (p. 169).
Desta forma, é importante destacar que em 2009 o IAP e a Articulação dos Povos
dos Faxinais (APF), justamente com o objetivo de identificar e padronizar as diversas 14 Idem, p. 31.
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formas de danos praticados contra os Faxinais, criaram o Procedimento Operacional Padrão
– POP Faxinalense15. O faxinalense Antonio Barbosa, no mesmo fascículo da Cartografia
Social citado anteriormente, demonstra sua indignação diante dessa violação dos direitos de
manutenção cultural e territorial da comunidade:
Pra nos o que mais traz problema é as pessoas que vem de fora, os chacreiros.
Eles acham que é que nem na cidade, na cidade cada qual tem um pedacinho de
terra, e um só vive naquele pedacinho, e não pode se quer nem entrar no pedaço
do terreno dele. E assim daí eles compram os pedacinho de terra aqui no faxinal
e querem manter a mesma coisa como se fosse na cidade. (...) E daí eles ficam
pensando que ali eles compraram eles mandam ficam prejudicando, não querem
uma criação nem que pise em cima, isso dificulta muito. (...) Vem botar ordem
no faxinal, prejudicando os faxinalenses16.
Assim, verifica-se que a articulação dos proprietários a partir do momento em que o
Faxinal se constitui como ARESUR demonstra o intento de realização de atividades
econômicas com impactos nocivos ao meio ambiente, que por virtude da regulamentação
jurídica da ARESUR são vedados por meio da reafirmação do Acordo Comunitário que as
proíbe taxativamente.
5. Conclusão
Diante do exposto, passa-se a abordagem dos pedidos feito pelos autores na
Ação. O primeiro é pela condenação dos faxinalenses impondo-lhes a abstenção da criação
dos animais à solta. Ora, a criação coletiva à solta é parte essencial da cultura tradicional
dos faxinalenses e não pode ser proibida, pelo contrário, deverá ser protegida como
determina a Constituição Federal. O segundo pedido é pelo provimento declaratório para a
15 HAUER, Margith; GUBERT FILHO, Francisco Adyr. Singularidades do sistema faxinalense. Diretoria de Biodiversidade e Áreas Protegidas/Departamento Socioambiental/Instituto Ambiental do Paraná, 2010. 16 Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (PPGSCA/UFAM – FUND. FORD – MMA – MDS). Série Faxinalenses do Sul do Brasil. Fascículo 3: Faxinalenses no Setor Sul do Paraná. Rebouças/PR, Setembro de 2008, p. 8. ISBN 85-86037-20-6.
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permissão da construção de cercas nas divisas das propriedades, o que justamente evidencia
que está constituída uma área de uso comum, contra a qual os autores agora se levantam.
Portanto, sequer cabe a utilização do instrumento processual do Interdito Proibitório
já que, conforme artigo 932 do Código de Processo Civil, este trata do justo receio de ser
molestado na posse. A moléstia à posse, nesta situação, é decorrente dos próprios autores
da ação em relação à posse comum tradicional da comunidade faxinalense.
Por fim, é importante reforçar o papel do Ministério Público na defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,
ressaltando-se nesse caso o patrimônio cultural brasileiro e paranaense, os direitos das
comunidades tradicionais e a proteção do meio ambiente.
Curitiba, 13 de maio de 2011.
Fabio Bruzamolin Lourenço
Promotor de Justiça
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