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CONFRONTANDO O ETNOCENTRISMO GREGO: LIBÂNIO E O
ENSINO DO LATIM E DO DIREITO NO ORIENTE
SILVA, Gilvan Ventura da
Um império bilíngue
Há alguns anos, em virtude do impacto das assim denominadas teorias “póscoloniais”
sobre o conjunto das pesquisas desenvolvidas no âmbito das Ciências Humanas, temos
observado uma sensível alteração na maneira pela qual os especialistas consideram a
problemática de criação e manutenção dos impérios. Influenciados pelas teses nativistas e
antiimperialistas que encontraram, nos círculos acadêmicos ingleses, solo fértil a partir da
década de 1970, os autores cuidaram de reformular os modelos de interpretação então em
voga com base em três pressupostos: a) rejeição aos arranjos binários, que opunham “centro”
e “periferia” como categorias estanques, sem mecanismos eficazes de intercâmbio e sem
alterações sensíveis em sua estrutura ao longo do tempo; b) atenção ao papel desempenhado
pelos povos dominados no contexto das relações imperiais e c) valorização das múltiplas
linguagens (escritas, imagéticas, gestuais) mobilizadas para assegurar a dominação imperial
(Mendes, 2008, p. 40). O que passa a ser questionado com veemência é o caráter unilateral,
cêntrico e até certo ponto elitista dos estudos voltados para a compreensão dos vínculos entre
metrópoles e colônias, os quais se ocupavam amiúde em descrever muito mais as ações
implementadas pelos conquistadores sobre as zonas coloniais à luz de uma perspectiva que
poderíamos qualificar como “normativa” ou “prescritiva”, do que em problematizar a maneira
pela qual, em circunstâncias específicas, a dominação imposta a territórios e populações
periféricas e subjugadas adquiria contornos próprios que, em muitos casos, fugiam
completamente às aspirações de controle nutridas pelo “centro”, gerando situações por vezes
insólitas.
Reflexões como essas, que emergem no bojo do amplo processo de descolonização
afroasiática, não tardaram a ser assimiladas pelos pesquisadores que lidam com os impérios
antigos, especialmente o romano, convertido num exemplo emblemático de experiência
imperial, mesmo para os especialistas em História Contemporânea. No âmbito das
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investigações sobre o Império Romano, uma das principais alterações de natureza teórica que
se observa é a tendência ao abandono do conceito de “romanização”, então bastante utilizado.
Cunhado em fins do século XIX para explicar o padrão das relações mantidas entre romanos e
provinciais, o conceito buscava exprimir o teor e o grau de assimilação, por parte das
populações nativas, dos aspectos característicos da cultura romana ou latina, dentro de um
discurso que privilegiava a “missão civilizadora” de Roma. Atualmente, com a ofensiva das
teses póscoloniais e a profusão de dados empíricos oriundos dos territórios provinciais postos
à disposição dos pesquisadores pela Arqueologia, Epigrafia e Numismática, o conceito de
romanização vem sofrendo um sensível deslocamento, abrindo-se espaço para reflexões
comprometidas em iluminar a preservação de aspectos das culturas locais antes e durante a
fase de ocupação romana, com destaque para o modus vivendi das categorias subalternas; em
enfocar as estratégias de resistência e as adaptações ao controle imperial mediante a
proliferação de estudos de casos regionais e em captar a contribuição dos provinciais para a
própria redefinição da identidade dos dominadores, dentro de uma trama complexa de ajustes
e interações recíprocas entre o centro e a periferia (Mendes, 2008, p. 41). O resultado do
impacto das teorias e modelos póscoloniais sobre a historiografia do Império Romano tem
sido, portanto, a superação de uma concepção estática dos mecanismos de dominação romana,
substituída por uma concepção dinâmica na qual os súditos de Roma são tratados não mais
como receptores passivos, mas como agentes ativos da sua própria acomodação dentro do
Império, sendo então capazes de gerar representações, de criar alternativas e de nutrir
aspirações de acordo com os seus próprios interesses e o seu background cultural, sem terem
necessariamente de se pautar pela bitola romana.
Quando nos debruçamos sobre o estudo do Império Romano a partir dessa perspectiva,
uma das principais conclusões que logo ressaltam é o autêntico mosaico de línguas, tradições,
povos e culturas postos sob a tutela de Roma e de seu imperador e que apresentam traços
peculiares caso nos reportemos aos territórios ocidentais ou orientais. Na Pars Occidentis, a
produção de uma identidade romano-provincial foi condicionada, em larga medida, pela
difusão do latim e pela adoção de hábitos e costumes considerados como próprios dos
romanos, tais como a indumentária, o padrão arquitetônico urbano, as exibições nos
anfiteatros e o estatuto jurídico dos municipia. Já no Oriente, por sua vez, a situação era um
pouco mais complexa devido, por um lado, à antigüidade da própria civilização, assentada no
Crescente Fértil milhares de anos antes da fundação de Roma e, por outro, ao prestígio da
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cultura grega, cuja penetração no Mediterrâneo oriental era vigorosa o suficiente para repartir
o Império em duas zonas de influência cultural bem definidas. Não que a posição ocupada
pelo grego fosse hegemônica, pois, no Oriente, as tradições hebraicas, sírias, fenícias,
aramaicas nunca desapareceram por completo. No entanto, mesmo em se tratando de
comunidades e grupos falantes desses idiomas, requeria-se a intermediação do grego. Como
assinala Guarinello (2008, p. 14), “ a cultura grega atuava como uma espécie de sistema
cultural de intercâmbio, como uma cultura franca que permitia o contato entre povos e
pessoas com substratos culturais próprios e distintos, aos quais se sobrepunha sem anulá-los”.
Por essa razão é que, na opinião de Veyne (2005, p. 11), o Império Romano deveria ser antes
denominado Império Greco-Romano, a fim de enfatizar a ascendência, no Oriente, das
tradições culturais helênicas em detrimento da língua e da literatura latinas.
De fato, se levarmos em consideração a cultura de elite transmitida pela paideia, aqui
entendida nos termos da formação literária convencional proporcionada pelas escolas dos
rétores e dos gramáticos, o Império Romano exibia uma nítida feição bilíngüe. A constatação
mais surpreendente, nessas circunstâncias, não é tanto a divisão entre um Ocidente que se
exprimia em latim e um Oriente que se exprimia em grego, mas a permanência, mesmo na
fase de domínio romano, de uma representação que não apenas instituía uma clivagem
simbólica entre os súditos de um mesmo imperador segundo a língua que falavam, mas que,
de modo um tanto ou quanto paradoxal, relegava os dominadores a uma posição subalterna.
De fato, os helenos do Império não somente perpetuavam uma dicotomia secular entre uma
identidade grega e uma alteridade romana, como também consideravam a cultura grega como
a civilização stricto sensu, sendo todos os demais povos, inclusive os romanos, qualificados
como estrangeiros (xenoi) e, portanto, inferiores. Por essa razão, os gregos, de modo geral,
nutriram um estranhamento insolúvel com relação aos usos e costumes romanos, mitigado
apenas de quando em quando pela atuação das elites locais, desejosas de integrar os seletos
círculos do poder imperial, o que as levava a adotar e subvencionar usos e costumes de
procedência romana, como os jogos de gladiadores e a arquitetura triunfal. No Oriente,
prevalecia o princípio segundo o qual a “romanização” das populações indígenas equivalia, no
fundo, a uma helenização, na medida em que tradições culturais por demais exóticas que
recebessem uma tradução grega se tornariam de imediato palatáveis (vale dizer,
reconhecíveis) aos olhos da elite romana. Como sugere Paul Veyne (2005, p. 202), os gregos
não poderiam supor uma honraria maior a ser concedida aos romanos, senão convertendo-os
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em gregos por intermédio de uma ficção que atribuía à Urbs e ao idioma falado por seus
habitantes uma origem grega.
Cumpre notar que a superioridade da cultura helênica diante da romana sustentada
pelas comunidades urbanas do Oriente, gregas por formação ou por opção, não resultou em
nenhum episódio sério de resistência política à dominação imperial, ao contrário do que
observamos entre os judeus. Quanto a isso, as dificuldades de política externa enfrentadas
pelo Império no decorrer da Anarquia Militar em virtude do renascimento da Pérsia Sassânida
e das sucessivas investidas de godos, francos, quados, marcomanos e outros nas zonas
limítrofes trataram de reforçar os laços de lealdade dos gregos para com o imperador. Perante
a devastação provocada pelos invasores, o melhor caminho a seguir seria, sem dúvida, aceitar
a paz oferecida pelos romanos, e disso os habitantes das cidades do Oriente tinham
consciência. Ocorre, no entanto, que mesmo ao adentrarmos a época tardia, quando a imagem
de Roma como um poderoso baluarte contra as ameaças provenientes de um barbaricum
hostil se consolida no imaginário, fato comprovado por todo um discurso textual e imagético
que enfatiza as ações triunfais do imperador, convocado pelos deuses a submeter os bárbaros,
a corrigir a trajetória oscilante do orbis terrarum e a garantir a paz, a polarização entre as
culturas grega e latina não havia sido superada, muito pelo contrário. O latim não integrava
formalmente o currículo das escolas orientais nem a literatura latina, seja a secular ou a
eclesiástica, era consumida pelo seleto público de leitores da época, sendo difícil encontrar, na
Pars Orientis, professores credenciados a ministrar um ensino de alto nível no idioma (Jones,
1964, p. 988).
Essa situação de relativa ignorância dos gregos diante da língua e da cultura latinas, no
entanto, será posta à prova no decorrer do século IV em função de um amplo movimento de
rearticulação do Estado romano no sentido de prover as condições necessárias para a
manutenção do Império, o que implicou um investimento sem precedentes na
complexificação da máquina de governo, adotando-se a separação entre os ramos civil e
militar da administração pública e valorizando-se a competência técnica daqueles chamados a
prestar serviço nas fileiras da burocracia. Essas transformações, embora de natureza política,
não tardaram a apresentar um significativo desdobramento cultural: a reafirmação, mesmo no
Oriente, do latim como língua por excelência da administração, o que desagradou a muitos.
Na seqüência, ganham também destaque os estudos de direito, um ramo de conhecimento do
qual os romanos se orgulhavam de ser os fundadores e que passava a desempenhar um papel
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capital dentro de um Estado burocratizado e centralizado, como o da época tardia. Num
contexto como esse, a antiga polêmica em torno da língua mais importante no Império, se a
grega ou a latina, ressurge uma vez mais.
Os temores de um sofista
Dentre aqueles que se sentiram ameaçados pela ascensão dos estudos de língua latina
no Oriente, conta-se Libânio, o mais célebre orador grego do final da Antigüidade. Originário
de Antioquia, Libânio iniciou sua carreira como professor de retórica em Constantinopla, a
Capital do Império Romano no Oriente, onde foi agraciado, em 348, com uma cadeira
pública, muito provavelmente como recompensa pela elaboração da Oratio LIX, um
panegírico em homenagem a Constâncio II e Constante pronunciado em 344. Em 354,
alegando sérios problemas de saúde, obtém de Constâncio a remoção para a sua cidade natal,
passando em seguida à condição de titular da cadeira de retórica grega mantida pela cúria
municipal, posição que conserva até a sua morte, em 393. Tendo vivido quase toda a segunda
metade do século IV na condição de professor de retórica (sofista, conforme a terminologia
grega) em Antioquia, a sede da prefeitura do pretório do Oriente e principal quartel-general
dos imperadores na luta contra os persas, Libânio foi testemunha de um conjunto de
transformações socioculturais que atingiram a Pars Orientis ao longo do Baixo Império,
muitas delas relacionadas ao movimento de reorganização político-administrativa iniciado por
Diocleciano e Constantino e aprofundado pelos seus sucessores.1 Uma das transformações
mais significativas geradas pela nova configuração do Estado foi, sem dúvida, um
crescimento no interesse pelo latim nas províncias orientais, impulsionado pela ampliação da
máquina pública, que necessitava de funcionários qualificados para atuar nos ramos civil e
militar. À época, uma das profissões que se mostravam mais rentáveis e ao mesmo tempo
mais promissoras quanto à possibilidade de inserção na burocracia imperial era a de advogado
(advocatus), seguida da de notário (estenógrafo), para as quais o conhecimento do latim
representava um trunfo da maior importância na corrida em busca de uma promoção. Como
resultado veremos, no Oriente, em fins do século IV, a formação retórica tradicional, voltada
1 No Império, os termos rétor (especialista em retórica com condições de redigir e declamar discursos em público e de atuar nas cortes de justiça) e sofista (professor de retórica) por vezes se confundiam. A maioria dos assistentes de Libânio na sua escola, em Antioquia, eram rétores, não sofistas, embora exercessem o magistério da disciplina. A utilização do vocábulo sofista para identificar um professor de retórica já é atestada nos textos literários do século I a.C., mas seu aparecimento nas inscrições é bem posterior (Cribiore, 2007, p. 37).
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para o preparo de oradores hábeis no manejo da língua grega e calcada no estudo dos
clássicos, dividir cada vez mais espaço com os estudos de língua latina e, o mais significativo,
ser suplantada pelos estudos de direito, carreira que atrai em proporções crescentes os filhos
dos estratos médios e superiores da sociedade romana, desejosos de obter uma habilitação
capaz de lhes garantir, no futuro, uma confortável posição dentro da administração pública ou
ao menos o exercício de um ofício sabidamente rentável, como era o de advocatus. Diante de
uma situação como essa é que Libânio compõe, em 382, a sua Oratio LXII, um discurso no
qual se dedica a refutar as críticas segundo as quais, embora fosse um excelente professor de
retórica, não teria tido sucesso em obter para os seus alunos uma boa colocação nas esferas de
governo ou nas cortes de justiça. Ao se defender das acusações que lhe eram dirigidas por
seus rivais, Libânio nos permite entrever as angústias vividas, no cotidiano, pelos professores
de retórica grega, especialistas numa disciplina que já não atendia mais as expectativas de
formação profissional daqueles com condições de galgar os estudos superiores.
Na avaliação de Libânio, o desinteresse pelos estudos de retórica e filosofia começa a
aflorar a partir do governo de Constâncio II (337-361), ocasião em que o domínio das
disciplinas conectadas com a paideia, a ampla formação cultural fundamentada na leitura dos
clássicos gregos e no exercício da retórica e da oratória, é relegada a segundo plano,
prevalecendo a habilidade meramente instrumental dos notários (notarii), indivíduos versados
em estenografia e que davam suporte às atividades rotineiras da chancelaria imperial. De
acordo com Libânio (Or. LVII, 9-16):
No que concerne aos filósofos e aos sofistas, e todos aqueles devotados aos ritos de
Hermes e das Musas, ele (i.é, Constâncio) nunca os convidou para o palácio, nem pôs os
olhos neles, ou os elogiou ou teve qualquer coisa a dizer sobre eles e nunca ouviu suas
orações. Em vez disso, ele recebeu bem, manteve em torno de si e fez conselheiros e
professores um conjunto de baderneiros, confundidos com eunucos. Ele abdicou das
funções de imperador em benefício deles, retendo somente o título. [...] E eles acossaram
a educação retórica por todos os meios, humilhando os que a repartiam e dizendo, um ao
outro, que nenhum homem instruído deveria passar despercebido e se tornar seu amigo.
[...] E eles elevaram ao cargo de senadores secretários que não eram nem um pouco
melhores do que os seus próprios escravos em intelecto ou perícia, mas que, em alguns
casos, eram mesmo piores, em um particular ou em ambos. A transformação foi rápida: o
filho do cozinheiro, o filho do lavadeiro, o vendedor de rua, a criatura que pensava estar na
opulência se não estivesse passando fome, era rapidamente um homem em um fino cavalo,
com uma grande propriedade, terras extensas, bajuladores, festas, ouro. E se, por sorte, um
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orador obtinha qualquer cargo pelo seu talento, ele considerava isso como um prêmio pela
bajulação. [...] Os desprezíveis, bêbados, eunucos se tornaram tão insolentes e sem
consciência que eles promoviam os secretários à cadeira de prefeitos do pretório e os
colocavam aí. [...] Assim, quando os estudantes nas escolas viram isso, vocês não acham
que eles disseram uns para os outros: “que vantagem existe para mim nesses afazeres
incontáveis, através dos quais eu tenho que percorrer muitos poetas, muitos oradores e
todo tipo de literatura, se o resultado dos meus esforços exaustivos é que eu não saio do
lugar em desonra, e um outro se torna bem sucedido?” [...] Se a profissão de retórico fosse
uma daquelas respeitadas por Constâncio, os professores teriam feito mal uso de uma
excelente oportunidade. Mas se nenhum dos pensadores foi amigo dele, nem mesmo os
oradores, e se notários que rapidamente anotam as palavras de alguém tem obtido o maior
sucesso, como ficar surpreso com o fato de que certa letargia para com os estudos tenha
afetado nosso alunos?”
Essa citação de Libânio, eivada de juízos de valor contra o governo de Constâncio II,
soberano que detestava e que, em mais de uma oportunidade, atacou com veemência contém,
no entanto, alguns indícios importantes de que, em meados do século IV, tem início uma
modificação progressiva nas exigências de qualificação profissional daqueles que desejassem
fazer carreira na administração imperial, resultado sem dúvida do investimento feito pelo
Estado na ampliação e especialização da máquina pública com a finalidade de tornar mais
eficiente o controle sobre os amplos territórios provinciais. Para tanto, a contribuição de
Constâncio foi decisiva. Uma das principais inovações verificadas sob o governo desse
imperador foi a atenção dispensada aos membros da schola notariorum que, atuando sob seu
comando direto na condição de delegados, interventores e informantes, logo adquiriram um
status superior dentro da hierarquia administrativa. Durante o Alto Império, os notários
costumavam ser recrutados dentre os escravos e libertos imperiais. Sob Diocleciano, o posto
é ocupado já por homens livres unidos aos scrinia (escritórios da chancelaria), mas sem
constituir ainda um corpo (schola) especial. Durante a primeira metade do século IV, os
notarii são estenógrafos de baixa extração até que, sob Constâncio II, os encontramos
redigindo as atas das reuniões do consistorium (o conselho palatino presidido pelo
imperador), ao mesmo tempo em que eram encarregados de missões especiais para as quais se
requeria independência de ação. Nesse momento, eles aspiram aos mais elevados cargos
palacianos. Embora haja controvérsias sobre quem teria sido o responsável pela criação da
schola notariorum, se Constantino ou Constâncio, subsiste a evidência de que sob este último
é que passamos a ter informações mais consistentes acerca da atuação dos notários, o que
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exprime uma ampliação das suas competências e uma elevação do seu status. Não obstante, a
schola notariorum nunca foi muito extensa. Alguns cálculos apontam que, no século IV, o
número de estenógrafos em serviço efetivo junto à corte tenha girado em torno de trinta
(Silva, 2003, p. 67-68). O cargo de notário, no entanto, assumirá um prestígio cada vez maior
ao longo do tempo, sendo cobiçado até mesmo por membros da aristocracia, como Procópio,
parente de Juliano e futuro usurpador sob Valente.
Um dos propósitos de Libânio ao criticar o suposto abandono, por parte de
Constâncio, da filosofia e da retórica em prol da valorização de um conhecimento
eminentemente técnico, no caso a estenografia, era sem dúvida realçar a atuação de seu herói,
Juliano, o qual, portando em suas mãos “armas e livros”, teria devolvido aos estudantes, ainda
que por um lapso de tempo, o prazer pelos estudos (Or.LXII,17). Embora não sejamos
obrigados a compartilhar de uma opinião como essa, marcada por um viés excessivamente
personalista e sem qualquer comprometimento com a veracidade dos fatos, é forçoso
reconhecer que a posição ocupada pelos notários a partir de Constâncio constituía um
importante indicador da nova orientação assumida pela corte, isto é, a tendência a privilegiar
indivíduos que detivessem um conhecimento mais detalhado dos assuntos de governo, que
fossem especialistas em áreas vitais para a administração, e não apenas literatos.2 Não que os
notários prescindissem da formação educacional proporcionada pela paideia, muito pelo
contrário. Quanto a isso, a censura de Libânio aos notários, taxando-os de indivíduos incultos
e provenientes de camadas subalternas da sociedade, não é de todo procedente. Como
assinala Vogler (1979, p. 197), se na época de Constantino os notários possuíam uma origem
social medíocre, a partir de Constâncio eles não são mais meros estenógrafos, pois se começa
a exigir deles a proficiência na língua latina, o que é obtido apenas por intermédio da escola
do rétor.
A ameaça que vem do Ocidente
A principal questão subjacente às queixas de Libânio sobre os apuros pelos quais
passavam os professores de retórica no Oriente não repousa tanto na ascensão de indivíduos 2 Atribuir a Constâncio o abandono da cultura retórica e da filosofia representa, certamente, um exagero dentre os muitos cometidos por Libânio em suas orações. Constâncio não apenas foi o responsável pela indicação de Temístio, um renomado professor de retórica em Constantinopla, para compor o Senado da nova Capital, como também subvencionou com fundos imperiais a cadeira de ensino de retórica grega ocupada por Libânio na mesma cidade entre 348 e 359, até ser autorizado, pelo mesmo Constâncio, a se transferir para Antioquia após insistentes pedidos.
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de baixa extração aos primeiros postos da administração pública, os quais, pelo fato de
deterem um conhecimento especializado qualquer, estariam ocupando as vagas destinadas
àqueles que teriam completado a escolarização exigida de um membro da elite. O problema é
que, diante das novas exigências de governo verificadas na segunda metade do século IV, a
formação tradicional em retórica grega não era mais capaz de fornecer uma resposta
satisfatória. Não que a paideia, calcada na arte do bem falar e de redigir discursos laudatórios
(encômios, panegíricos, laudationes) e depreciativos (psogoi) repletos de recursos estilísticos
emprestados dos clássicos (Homero, Demóstenes, Menandro) e de referências à mitologia não
constituísse um capital intelectual importante para aqueles que almejassem uma melhor
colocação dentro da estrutura social do Império (Cameron, 2008, p. 675). O ponto nevrálgico
é que, diante das necessidades do Estado romano à época, apenas a formação literária
tradicional não era suficiente. Caso os candidatos almejassem uma carreira de sucesso e uma
posição confortável dentro da máquina de Estado, era preciso algo mais, e esse algo mais era
representado por conhecimentos de natureza técnica, em especial o domínio da estenografia,
necessária para todos os que atuavam na condição de secretários, anotando as deliberações
dos administradores públicos e, mais importante ainda, pelo conhecimento do direito, uma
disciplina que, na segunda metade do século IV, se encontrava em franca ascensão (Lieu,
2004, p. 18). Como declara Libânio, para quem os estudos de direito representavam a mais
séria ameaça ao prestígio da educação literária transmitida em língua grega (Or. LXII, 21-23):
Antigamente, era comum verem-se jovens saídos das oficinas e que se preocupavam com o
seu pão diário indo à Fenícia para obter formação em direito, enquanto os bem-nascidos,
com família ilustre, propriedade e pais que desempenhavam serviços cívicos, permaneciam
aqui (i.é, em Antioquia), na escola. E pensava-se que os estudos de direito eram um marca
de status inferior, ao passo que não precisar dessa formação indicava uma alta posição,
mas agora há uma massa em disparada em direção a ela, e rapazes que sabem como falar e
são hábeis em comover uma audiência correm para Berito com a ideia de obterem alguma
vantagem. Mas o que eles não notaram é que, em vez de obterem alguma vantagem, eles
estão fazendo uma troca. Pois não é o caso que com o advento de uma alternativa o
original é preservado para aqueles que o possuem: a alternativa chega, talvez, mas o
original inevitavelmente vai embora. O intelecto é incapaz de adquirir algo fresco e, ao
mesmo tempo, reter o outro. Quem se concentrar em um, abandonará o outro, de modo
que seria melhor se eles tivessem gasto todo o seu tempo no estudo do direito. [...] Para
mim, é suficiente demonstrar que a eloqüência instilada pelos estudos prévios deve ser
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inevitavelmente arruinada pelos estudos de direito e esse último deve prevalecer enquanto
a primeira desaparece.
As diatribes de Libânio se mostram uma vez mais saturadas de uma inequívoca
parcialidade. Recorrendo a um princípio gnosiológico segundo o qual, em face de uma
informação nova, o intelecto humano tende a esquecer aquilo que aprendeu outrora, princípio
este altamente discutível, diga-se de passagem, o nosso autor se esmera em desqualificar o
esforço daqueles que se dedicam ao estudo das leis, os quais, assim como os notários, seriam
provenientes das camadas menos favorecidas da sociedade. Na verdade, o que Libânio
combate é uma tendência, esboçada no decorrer da segunda metade do século IV, de
afirmação do conhecimento jurídico como a principal garantia de uma carreira bem sucedida
por parte dos membros dos estratos médios e superiores da sociedade imperial. A profissão
de advocatus em Roma, é bom que se diga, nunca foi patrimônio dos mais pobres, daqueles
sem condição de percorrer as etapas formais de escolarização, encontrando-se antes incluída
dentre as artes liberales, ou seja, os ofícios desempenhados por homens livres e que, por isso
mesmo, não comportavam remuneração propriamente dita, mas honores. A atividade
jurídica girava em torno de três figuras distintas: o perito na interpretação da lei
(iurisconsultus), o professor de direito e o advogado, responsáveis respectivamente pela
interpretatio da lei, pelo ensino da disciplina e pelo exercício da advocacia em caráter
profissional. Nos primeiros séculos da República, a advocacia ficava a cargo dos
jurisconsultos, dos oradores ou dos patronos, até que o aumento progressivo da complexidade
social conduziu a uma maior especialização das carreiras jurídicas. Desse modo, na passagem
da República para o Principado ocorre a profissionalização do advogado, que mais tarde será
chamado de iuris peritus para distingui-lo do iurisconsultus. A profissão, considerada pelos
romanos como uma das mais nobres pelo fato de proteger os interesses dos cidadãos, tinha
por finalidade oferecer assistência processual àqueles que compareciam em juízo, seja na
condição de réus ou de vítimas (Corbo, 2005, p. 5). A advocacia logo se tornou uma
atividade extremamente lucrativa, razão pela qual irrompe, no início do Principado, uma
polêmica legal acerca da modalidade de remuneração a ser paga aos advogados, havendo
aqueles que defendessem o seu caráter público (e, portanto, não remunerado). No entanto, ao
longo do tempo a advocacia se consolida em Roma como uma das profissões mais bem
remuneradas, exigindo do Estado a adoção de diversas medidas com o propósito de
regulamentá-la (Rodríguez Ennes, 1996). Cláudio, por exemplo, limitou os honorários de um
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advogado ao teto máximo de dez mil sestércios por ação, decisão que se manteve durante todo
o período imperial.
Na fase tardia do Império, a advocacia recebe um considerável incentivo em função do
processo de burocratização característico do período, ao qual já aludimos. A profissão é
reconhecida como um serviço público regulado por um conjunto de prescrições legais e seus
membros integram uma corporação (collegia ou matricula). No tempo de Constantino, já se
encontra estabelecida a exigência de um advogado, ao iniciar na profissão, se inscrever a
título permanente numa determinada corte de justiça, ficando então proibido de advogar em
outra jurisdição, salvo raras exceções.3 Embora não tenhamos condições de precisar o
montante dos rendimentos de um advogado, as informações que possuímos sobre o assunto
não cessam de reiterar o sucesso da profissão (Corbo, 2005, p. 9). Libânio (Or. LXII,45), por
exemplo, se queixa de que os advogados costumavam deixar os tribunais com as “mãos cheias
de ouro”. Não obstante o exagero evidente dessa imagem, subsiste o fato de que a busca pela
carreira forense por parte dos integrantes da elite imperial aumenta bastante ao aproximar-se o
fim do século IV, e isso basicamente por dois motivos. Em primeiro lugar, para aqueles
oriundos de meios sociais mais modestos, o exercício da advocacia constituía uma excelente
oportunidade de ascensão social, compensando o desembolso feito pelos pais na formação dos
filhos. Em segundo lugar, para os integrantes da elite a profissão poderia render em médio
prazo uma carreira bem sucedida na administração pública, pois os governadores de província
por vezes eram escolhidos dentre aqueles que atuavam nos tribunais. A partir daí, abria-se a
possibilidade de ascensão ao vicariato e, na melhor das hipóteses, à prefeitura do pretório.
Além disso, os próprios governadores, sendo chamados a julgar, mas não tendo, em muitas
circunstâncias, a competência jurídica devida, costumavam retirar seus assessores dentre os
advogados da sua jurisdição, o que gerava neles uma expectativa de ingresso na administração
pública (Jones, 1964, p. 500 e ss.). No âmbito da chancelaria imperial, as oportunidades para
um advogado eram igualmente promissoras, uma vez que, no Baixo Império, a iniciativa de
criação dos ordenamentos legislativos cabia ao imperador, ao mesmo tempo em que tanto o
comitatus (a corte imperial) quanto as prefeituras do pretório atuavam como tribunais
superiores de apelação, recebendo recursos de todas as regiões do Império, além de serem
convocados a dirimir dúvidas legais emanadas da corte dos governadores de província, que 3 No Baixo Império, a corte jurídica de primeira instância era a do governador de província. Em seguida, vinham as do vicário, do prefeito do pretório e do próprio imperador. Além do tribunal especial do defensor civitatis, havia outras instâncias responsáveis pelo julgamento de ações envolvendo seus membros, a exemplo das cortes militares e senatoriais, que gozavam assim de um privilégio jurídico conhecido como praescriptio fori.
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muitas vezes não apresentavam a segurança suficiente para deliberar sobre um caso mais
complexo. Desse modo, diante de um volume crescente de consultas e petições endereçadas
aos órgãos da administração superior, a atuação dos especialistas em direito tornava-se mais
do que necessária para o bom funcionamento da máquina estatal (Fernández Barreiro, 1996,
p. 119).
A importância concedida à carreira jurídica teve uma repercussão direta no sistema de
formação dos advogados. Sob os primeiros séculos do Império, o advocatus foi um
profissional versado antes de tudo na ars oratoria, ou seja, nos conteúdos que compunham o
currículo da escola clássica, cumprindo em alguns casos um período de treinamento
específico junto a um jurisconsulto com vistas ao ingresso na profissão. O ensino se
encontrava então disponível a título privado, sem que existissem escolas de direito
subvencionadas pelos poderes públicos (Corbo, 2005, p. 3). Aos poucos, no entanto, a
disciplina vai adquirindo maior consistência, o que é acompanhado pela institucionalização
das escolas mediante o empenho dos jurisconsultos. Em Roma, no início da era imperial,
surgem as primeiras instituições (auditoria) para o ensino do direito fundadas nos moldes das
escolas de retórica e de filosofia, remontando já a essa época a célebre oposição entre
proculianos e sabinianos que se perpetuará pelo menos até o fim do Alto Império (Ellul, 1970,
p. 362).4 Mais tarde vão surgindo pouco a pouco outras escolas de direito, quase sempre
integradas aos templos a fim de aproveitar melhor os recursos bibliográficos destes últimos.
A escola de Berito, a mais florescente academia jurídica do Império Romano, é fundada, ao
que tudo indica, em meados do século III, passando a atrair estudantes de diversas regiões.
Em 334, surge a escola de direito de Constantinopla. A formação regular em direito,
fundamentada na leitura, comentário e explicação dos textos jurídicos canônicos, costumava
consumir quatro anos. No primeiro ano, exploravam-se as Institutas de Gaio e os Libri ad
Sabinum de Ulpiano. No segundo, o aluno passava para os Libri ad edictum, também de
Ulpiano. No terceiro, estudavam-se as Responsae de Papiniano e, no último ano, as
Responsae de Paulo. No século IV, a formação em Direito foi acrescida de mais um ano,
reservado ao estudo dos códigos jurídicos que começavam a ser elaborados: o Código
Gregoriano, o Código Hermogiano e, no século V, o Teodosiano (Marrou, 1990, p. 446). 4 Não dispomos de muitas informações referentes à divisão dos jurisconsultos em escolas rivais de exegese e ensino do direito em Roma. Capito, patrono intelectual dos sabinianos, era tido como um conservador em matéria de direito privado, mas se encontrava em sintonia com as transformações políticas que culminaram na instauração do regime imperial. Já Labeu, fundador da escola proculiana, advogava uma interpretação inovadora do direito privado, mas permanecia preso às tradições da República. No decorrer do Principado, a escola sabiniana tendeu a suplantar a proculiana (Ellul, 1970, p. 362).
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Uma particularidade importante do ensino de direito ministrado tanto em Roma quanto em
Berito ou Constantinopla residia no fato de que a língua predominante era o latim, uma vez
que o volume dos textos de referência da disciplina era redigido nessa língua. E, mesmo
assim, o Oriente, território no qual predominava a língua grega, como mencionamos, assistirá
a um notável desenvolvimento da ciência jurídica, com uma procura muito maior pela carreira
de advogado em comparação ao Ocidente, ao contrário do que seria de se esperar. Apenas
para se ter uma ideia, de acordo com estimativas fornecidas por Jones (1964, p. 509), a corte
do prefeito do pretório do Oriente chegou a contar com cento e cinqüenta advogados.
Pois bem, qual teria sido então o impacto das novas exigências da administração
imperial dentro do sistema educacional que vigorava nas províncias orientais durante a
Antigüidade Tardia? Sem dúvida, uma previsível redução do tempo reservado ao grego com
o propósito de acomodar o latim e o direito, que agora despontavam como disciplinas
importantes, havendo indícios de que o próprio Estado imperial dispensava uma atenção
especial ao assunto. No Egito, por exemplo, constata-se a partir de Diocleciano um aumento
tanto no volume de documentos redigidos em latim quando na tradução de vocábulos gregos
para a língua latina, o que parece indicar uma tentativa dos poderes públicos de difundir o uso
da língua oficial (Liesbeschuetz, 1972, p. 252). Intenção semelhante preside, sem dúvida, a
instalação, em 360, de uma cadeira pública para o ensino de direito em Antioquia, sendo
inaugurada mais tarde, por volta de 388, uma cadeira para o ensino do latim mediante a
iniciativa do Comes Orientis, quando então se observa o início de uma rivalidade entre os
professores de língua grega e latina da qual nos dá notícia Libânio na sua Oratio LVIII,
dedicada a repreender alguns estudantes por terem destratado um pedagogo que ousou falar
mal de um dos professores de latim de Antioquia. Os alunos, ao receberem um treinamento
mais consistente na língua latina, se encontravam melhor preparados para prosseguir com o
estudo do direito em Berito, Constantinopla ou Roma ou para ocupar um cargo público.5
Mesmo no Oriente, o latim era reconhecido como a língua oficial do Império e o seu domínio
era importante para alguém que desejasse se especializar em direito ou atuar nos diversos
ramos da administração civil e militar. Embora o uso do latim não fosse imprescindível para
a rotina do serviço público, uma vez que o governador de província se comunicava com os
5 Mesmo antes da instalação de uma cadeira oficial de ensino de latim em Antioquia já existiam profissionais liberais que atuavam na cidade como professores da disciplina, a exemplo de Celso II, um rétor latino que Libânio tentou, sem sucesso, incorporar a sua própria escola em 358. Na ocasião, o latim ainda não representava decerto uma séria ameaça à retórica grega, ao contrário do que ocorrerá mais tarde, na década de 380 (Cribiore, 2007, p. 211).
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súditos em grego e os dispositivos legais costumavam receber uma tradução grega elaborada
pela própria chancelaria imperial, encarregada também de responder as petições e
correspondências escritas em língua grega, nos escalões superiores da administração civil os
documentos eram redigidos em latim, o mesmo ocorrendo nas diversas repartições do
exército, nas quais o emprego da língua perdurou por mais tempo após a separação entre
Oriente e Ocidente, em 395 (Liebeschuetz, 1972, p. 246). Para os que desejassem ingressar
nos diversos scrinia palatinos e assim compor o staff do imperador, era imprescindível um
conhecimento competente do latim, mesma exigência feita àqueles que desejassem estudar
direito. De fato, as fontes da lei – comentários dos jurisconsultos e coleções das constituições
imperiais – se encontravam em latim e as aulas da disciplina, mesmo em Berito e
Constantinopla eram, ao que tudo leva a crer, ministradas nessa língua até o final do século
IV, o que impulsionou o seu estudo no Oriente, ao menos entre a elite (Cameron, 2008, p.
682). Na fase final do Império, para alguém obter a matricula como advogado numa das
cortes de justiça apenas o domínio da retórica não era mais suficiente, exigindo-se um
conhecimento específico dos assuntos legais, o que pressupunha a competência no latim
(Liebeschuetz, 1972, p. 251).6 Por essa razão é que, na opinião de Libânio (Or. LXII, 43-44),
o latim e o direito surgem como os grandes rivais da retórica grega do seu tempo, sendo
responsáveis por um sensível decréscimo do padrão cultural e pela perda de senso crítico:
A pressão dos assuntos públicos sobre os governadores no que diz respeito à arrecadação
dos impostos e a reserva de uma pequena parte do seu dia de trabalho para tratar das ações
que chegam a sua corte, enquanto se ocupam na maior parte do tempo em caçar os
devedores, tem expulsado os longos e agradáveis discursos e tem revelado que a
verdadeira função do orador é inoportuna: se alguém faz uma declaração completa e traz à
tona algum assunto de sua própria opinião, pensa-se que ele é um tolo e um gastador de
tempo, e isso tem elevado ao poder uma multidão de ignorantes das musas, que não são
melhores que os rapazes de esquina, que nos informam sobre os assuntos pelos quais
vieram à corte por meio de um aceno de cabeça e não de uma declaração bem entonada.
[...] Se a profissão tivesse conservado suas regras antigas e os juízes tivessem pedido uma
declaração bem composta e mandado de volta para a escola quem era incapaz de produzir
uma, vocês teriam visto todos os meus alunos assediados por aqueles que requereriam sua
assistência [...]. Não julguem um orador de primeira classe pelo montante das suas
6 A obrigatoriedade de um advogado possuir formação em direito para exercer o seu ofício somente é atestada em lei na época do imperador Leão (457-474). No entanto, na prática, essa exigência já vinha se configurando desde as duas últimas décadas do século IV, como nos informa Libânio.
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recompensas, mas pela habilidade que de fato demonstra. E se assim o fizer, vocês verão
que as pessoas que tem menos lucros são melhores do que as que tem sido bem sucedidas
em tudo. E se vocês me pedirem para lançar um olhar sobre o dinheiro que chega para
eles, eu iria pedir para olhar suas almas, totalmente desprovidas de cultura. As pessoas
que costumávamos olhar como uma piada com os professores são agora especialistas da
lei.
Aqui novamente Libânio se posiciona contra a advocacia, considerando-a um ofício
próprio de indivíduos sem cultura, isto é, que não demonstravam um conhecimento adequado
da retórica grega e eram desprovidos de capacidade intelectual. Além disso, os advogados
são censurados por não proferirem mais longos discursos ao defenderem uma ação, atendo-se
a declarações sucintas e isentas de qualquer envolvimento particular. Na realidade, o que
Libânio nos revela aqui é a consolidação, em seu tempo, do controle imperial na aplicação do
direito que já vinha se delineando desde a época de Adriano, quando os juízes e jurisconsultos
começam pouco a pouco a ser privados da competência de legislar por intermédio dos
julgamentos por eles proferidos. O abandono da jurisprudência como uma das fontes da
legislação se consolida no Baixo Império, quando então a formulação da lei se torna
monopólio da chancelaria imperial e as penalidades passam a ser previstas no próprio
instrumento jurídico, o que deixa pouca margem de manobra a juízes e advogados.7 Por essa
razão, não haveria, na corte dos governadores de província ou dos vicários, muito espaço
para argumentações extensas ou debates acalorados, prevalecendo os julgamentos de acordo
com as diretrizes previamente fixadas em lei. Além disso, para a adoção de procedimentos
mais diligentes por parte de juízes e advogados influiu sem dúvida o aumento no volume de
trabalho dos tribunais em função das reformas operadas na administração imperial. Com a
duplicação do número de províncias desde a época de Diocleciano houve um crescimento
análogo das cortes de justiça, levando-nos assim a supor que o acesso ao sistema jurídico pela
população tenha se tornado um pouco mais fácil, não obstante a crônica morosidade na
tramitação e julgamento dos processos e os altos custos envolvidos nessa operação. Com a
finalidade de minorar esses problemas, uma medida importante foi a extensão do cargo de
defensor civitatis para todo o Império efetuada por Valentiniano e Valente. O defensor
atuava, em âmbito municipal, como um juiz remunerado com fundos públicos. Possuindo
7 O esvaziamento da competência dos juízes para aplicar as sentenças conforme a complexidade do caso em análise produziu um aumento das consultas dirigidas pelas cortes de justiça inferiores ao comitatus e ao escritório dos prefeitos do pretório visando a solucionar dúvidas e contradições.
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competência civil para julgar em casos menores, sua função era dupla: aliviar a demanda
sobre as cortes superiores de justiça e proporcionar assistência jurídica aos mais pobres
(humiliores) contra os abusos dos poderosos (potentiores) (Ellul, 1970, 442). E, no entanto,
os defensores civitatis vinham, uma vez mais, reforçar a tendência à expansão do sistema
jurídico baixo-imperial.
Considerações finais
A preocupação maior demonstrada por Libânio na sua Oratio LXII não nos parece ser
nem a formação deficiente que ele atribui aos advogados nem o exercício da profissão por
indivíduos de categoria social inferior, mas sim a concorrência que se estabelece, em sua
cidade, entre uma cultura literária reconhecida como grega e, portanto, superior, e uma cultura
estrangeira, representada pelo direito. Para tornar a situação um pouco mais complicada do
ponto de vista do nosso autor, os conhecimentos jurídicos num nível mais sofisticado só
podiam ser consultados mediante o recurso à língua latina, o que esvaziava o grego da
preeminência que ele sempre gozou como idioma adequado à transmissão de saberes mais
complexos, a exemplo da filosofia. Libânio é, portanto, um autor grego que, tendo devotado
toda a sua vida ao estudo e ao ensino da oratória grega, passa a testemunhar, na fase final da
sua carreira, uma inovação no sistema escolar, com a notável ascensão de saberes de
procedência latina em virtude das necessidades geradas pela ampla reforma administrativa
então implementada. Como assinala com propriedade Marrou (1990, p. 443), a ciência do
direito foi uma invenção tipicamente romana, exprimindo o surgimento de um conjunto de
valores fundamentados na atuação do iuris prudens, do perito na interpretação das leis e na
aplicação das regras processuais. Em assim sendo, o direito é um ramo de conhecimento que
escapa à tradição grega, um conhecimento que ela não consegue, a princípio, dominar e que,
portanto, rompe frontalmente com o etnocentrismo helênico. Diante das novas circunstâncias
que emergem na segunda metade do século IV, os estudantes são levados a efetuar uma opção
entre prosseguir com a formação em retórica grega e, no limite, vir a exercer o magistério da
disciplina, ou abraçar a oportunidade de ascensão profissional que se abre por conta da
expansão da burocracia imperial. As queixas de Libânio nos fazem recordar que a escola e a
formação por ela proporcionada devem estar, forçosamente, em sintonia com as demandas do
seu próprio tempo, ainda que para muitos professores, presos a uma perspectiva saudosista
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assim como o nosso autor, as transformações operadas no currículo escolar representem
sempre uma degradação do ensino. Ao optar pela carreira jurídica, os estudantes e seus
familiares estavam, na verdade, realizando um cálculo estratégico visando a explorar da
melhor maneira possível o que a ocasião lhes oferecia. No entanto, sua atitude equivalia, ao
fim e ao cabo, a uma capitulação do grego diante de uma língua até então reputada como
subalterna, servindo assim aos intelectuais como um alerta de que entre a preservação a
qualquer preço de um ideal e a garantia da sobrevivência as populações costumem se inclinar
pela segunda.
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