UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
IGUATEMI SANTOS RANGEL
CONTANDO HISTÓRIAS, FAZENDO HISTÓRIA: FORMAÇÃO
CONTINUADA COM OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL
VITÓRIA
2009
IGUATEMI SANTOS RANGEL
CONTANDO HISTÓRIAS, FAZENDO HISTÓRIA: FORMAÇÃO
CONTINUADA COM OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Educação, na
área de concentração Cultura, Currículo e
Formação de Educadores.
Orientador: Profª. Drª. Janete Magalhães
Carvalho
VITÓRIA
2009
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Rangel, Iguatemi Santos, 1968- R196c Contando histórias, fazendo história : formação continuada
com os professores da educação infantil / Iguatemi Santos Rangel. – 2009.
241 f. : il. Orientador: Janete Magalhães Carvalho. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação. 1. Professores de educação pré-escolar. 2. Professores -
Formação. 3. Educação permanente. 4. Narrativa. I. Carvalho, Janete Magalhães. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
IGUATEMI SANTOS RANGEL
CONTANDO HISTÓRIAS, FAZENDO HISTÓRIA: FORMAÇÃO CONTINUADA COM OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Tese apresentada ao curso de Doutorado em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação.
Aprovada em 17 de abril de 2009.
COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________________ Professora Doutora Janete Magalhães Carvalho Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Professor Doutor Carlos Eduardo Ferraço Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Professora Doutora Regina Helena Silva Simões Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Professa Doutora Carmen Lucia Vidal Perez Universidade Federal Fluminense __________________________________________ Professora Doutora Inês Barbosa de Oliveira Universidade Federal Rio de Janeiro
A Sebastião Rangel (in memoriam) e Maria de Lourdes,
razão desta minha busca pelo conhecimento.
A Alê, Vinicius, João Victor e Isabella por quem meus
olhos brilham e meu coração se enternece.
AGRADECIMENTOS
À minha irmã Ironilda pelo exemplo de luta e dedicação à educação pública.
A meus quatorze irmãos pelo incentivo e carinho a este seu irmão caçula.
A meus colegas de turma pelo incentivo nos momentos trabalho solitário.
Às professoras que contribuíram com suas narrativas generosas.
À minha orientadora, Janete, pela ajuda precisa e preciosa.
A Deus pelo equilíbrio nos momentos de tensão.
RESUMO
Este trabalho é uma pesquisa cujo objetivo central foi compreender as redes
cotidianas de formação continuada vivenciadas pelos professores de cinco Centros
Municipais de Educação Infantil. Utiliza os aportes teórico-metodológicos da
hermenêutica diatópica de Boaventura Souza Santos (2000, 2005, 2006), pela via
da sociologia das ausências e sociologia das emergências e o trabalho de tradução,
combinado com a hermenêutica do sujeito da experiência de Larrosa (2002). Busca
evidenciar, como essas professoras vivenciam os processos de formação
continuada, buscando compreender os movimentos produzidos no cotidiano em
torno das necessidades de formação. A pesquisa indica que existe um modo
peculiar de se formar no cotidiano as escolas e que, para além das propostas e
projetos de formação continuada que são propostos pelo Sistema Oficial, as
professoras produzem espaços-tempos onde acontecem trocas de conhecimento, e
são construídas redes de aprendizagens mútuas por meio do intercambiamento de
experiências. Nesse sentido, faz-se necessário construir outras/novas possibilidades
de formação continuada com as professoras que privilegiem processos de
negociação e intercambiamento de sentidos, produção, fabricação e interação
no/do/com o cotidiano. A pesquisa enfatiza, que não faz mais sentido uma
perspectiva que assuma a formação dos professores como sujeitos destituídos de
saberes-fazeres, é necessário promover uma formação com os professores em
redes de interação e de compartilhamento de conhecimentos e experiências.
Palavras-chave: Formação continuada. Narrativas. Cotidiano.
ABSTRACT
The research aimed mainly at understanding the daily nets of continuing formation
experienced by different teachers of five Municipal Children Educational Centers. It
was used for the development of the research the theoretical-methodological
supports of the hermeneutica diatópica of Boaventura Souza Santos (2006), through
the sociology of the absences and the sociology of the emergencies and the
translation work, and together with the hermeneutica of the subject of the Larrosa
(2003). The research made evident through the teachers’ narratives, how such
teachers experience the processes of continuing formation, searching for
understanding the movements produced during daily life around the necessities of
formation. The research made possible to realize that there is a peculiar way to form
schools in the everyday life, and that besides the proposals and projects of
continuing formation proposed by the Official System, teachers produce space-time
where the knowledge exchange takes place, and nets of mutual learning are built
through the exchange of experiences. This way, it is necessary to build other new
possibilities of continuing formation, so the continuing formation with teachers must
favor the processes of negotiation, feelings exchange, production and interaction in,
of and with everyday life, and there is no more sense a perspective that assumes the
formation of teachers as subjects deprived of knowledge-actions, but a formation with
the teachers in interaction, sharing and knowledge of experiences nets.
Keywords: Continuing formation. Narratives. Everyday life.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
CAPÍTULO I 1 PAISAGEM DA PESQUISA: SEUS LUGARES E TEMPOS............................25 CAPITULO II
2 A METODOLOGIA COMO NARRATIVA: HISTÓRIAS DE UMA
PESQUISA E DE UM PESQUISADOR...........................................................49
2.1 CENA UM: INICIANDO O CONTATO COM O CONTEXTO E O
TEXTO DA PESQUISA.....................................................................................50
2.2 CENA DOIS: DE MÉTODO E METODOLOGIAS, FAZENDO O CAMINHO
AO CAMINHAR.................................................................................................56
2.3 CENA TRÊS: OS CONTORNOS DA PESQUISA.............................................63
2.4 CENA QUATRO: O EXERCÍCIO DE ESCUTA DAS NARRATIVAS.................68
2. 5 CENA CINCO: TRADUÇÕES ..........................................................................75 CAPITULO III
3 OS USOS DAS TEORIAS..................................................................................79 3.1 AS TEORIZAÇÕES SOBRE ESCOLAS E FORMAÇÃO COM
OS PROFESSORES NO COENGENDRAMENTO SUJEITO-OBJETO............92
3.2 TRADUZIR E TRADUZIR-SE: ARQUEOLOGIA DAS EXISTÊNCIAS
INVISÍVEIS DE PROCESSOS DE FORMAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DOS
SABERES-FAZERES DOCENTES...................................................................95
3.3 AO INVÉS DO FUTURO, O PRESENTE: SOBRE MEMÓRIA
NARRATIVA.....................................................................................................103
3.4 SOBRE O SENTIDO DA EXPERIÊNCIA........................................................105
CAPÍTULO IV
4 ALGUMAS HISTÓRIAS DE COMO SE CONSTITUEM AS PROFESSORAS
E SUAS POSSÍVEIS RELAÇÃO COM PROCESSOS DE
FORMAÇÃO CONTINUADA.......................................................................... 110
CAPITULO V
5 FORMAÇÃO CONTINUADA NO COTIDIANO DA ESCOLA: “SE
VIRA NOS TRINTA” OU COMO OS PROFESSORES INVENTAM A
PRÁTICA PEDAGÓGICA................................................................................129
5.1 SABER DA EXPERIENCIA E SABER EXPERIENTE: FORMAÇÃO CONTINUADA EM CONTEXTO DE AÇÃO................................................141 5.2 COTIDIANO E FORMAÇÃO CONTINUADA: TESSITURA DE REDES
NAS ESCOLAS ..............................................................................................149
5.3 TECENDO OS FIOS DE UMA REDE SEM FIM............................................155
5.4 PROCESSOS DE RESISTENCIA: LIGANDO AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA PRÁTICA PEDAGÓGICA..................................................162 5.4.1 Uma história para ser contada: Cristina uma professora com os dois
pés em São Pedro...................................................................................168
5.5 POSSIBILIDADES DE TRADUÇÃO EM TORNO DE UM
GRUPO DE DISCUSSÃO COM AS PROFESSORAS....................................172
5.5.1 Âmbitos da tradução: possibilidades........................................................178
5.5.1.1 Narrativas: convergências para se pensar em um projeto de formação
com as professoras......................................................................................179
5.5.1.2 Narrativas: insurgências em torno de processos de singularização,
pluralização e diferenciação na formação continuada com
as professoras.............................................................................................181
CAPÍTULO VI
6 AUSÊNCIA, EMERGÊNCIA E TRADUÇÃO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE FORMAÇÃO CONTINUADA COM AS PROFESSORAS................185
6.1 A SOFISTICAÇÃO METONÍMICA: A NEGAÇÃO
DA EXPERIÊNCIA........................................................................................189
6.2 A CRÍTICA DA RAZÃO PROLÉPTICA: EM FAVOR DA
DILATAÇÃO DO PRESENTE PELA POSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO
NO HOJE DA ESPERANÇA DO AMANHÃ....................................................194
6.3 DIMENSÕES DA FORMAÇÃO CONTINUADA COM
OS PROFESSORES......................................................................................196
6.3.1 Primeira Dimensão: Toda formação continuada que não é
pensada em articulação com os professores se volta
contra os professores................................................................................197
6.3.2 Segunda Dimensão: Ninguém forma ninguém, mas,
Paradoxalmente, ninguém se forma sozinho............................................202
6.3.3 Terceira Dimensão: Narrar histórias é uma forma de
fazer a história..............................................................................................205
6.3.4 Quarta Dimensão: A formação em contexto tem que ser o
texto da formação continuada....................................................................212
6.3.5 Quinta Dimensão: O saber da experiência produz um
professor mais experiente...........................................................................217
6.3.6 Sexta Dimensão: Toda formação remete a redes cotidianas cujos
fios e nós dão sustentação à prática pedagógica.....................................225
6.3.7 Sétima Dimensão: Formação com os professores e
não dos professores....................................................................................229
7 QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO:
CONTINUIDADES E OUTROS MAIS.............................................................232
8 REFERÊNCIAS...............................................................................................238
INTRODUÇÃO
A formação continuada de professores é uma temática que sempre nos interessou,
fato esse que tem nos motivado a empreender tentativas de compreensão dos
complexos processos que envolvem a formação continuada dos professores e a
constituição da docência (RANGEL, 2003). Dessas experiências fomos elaborando
algumas percepções, resultando daí nosso posicionamento político e epistemológico
em relação à maneira como esses programas são apresentados aos professores e
seus reflexos no cotidiano das escolas.
Ao participar dos programas de formação continuada, fomos amadurecendo nossa
compreensão do complexo processo que envolve as atividades de formação
continuada dos professores, então, passamos a conceber a formação continuada
como parte de um projeto coletivo cujas dimensões extrapolam a visão unicamente
técnica, envolvendo uma ampla e diversificada rede de subjetividades que
compõem o coletivo escolar. Nesse sentido, não se justifica pensar em programa de
formação pelos e para os professores, pois aquilo que não é pensado, planejado,
concebido em articulação com os professores, exerce pouca influência sobre a
forma como eles realizam sua prática pedagógica e produzem a docência.
Uma das questões centrais que tangenciam todo nosso trabalho é justamente em
torno das possibilidades de articulação no cotidiano dos centros municipais de
educação infantil de propostas de formação que se realizem como um movimento,
um fluxo, um desejo engendrado pelos próprios professores no cotidiano das
escolas, sem desconsiderar as determinações sociopolíticas mais amplas, porém
com a potência de, instituintemente, ir se realizando por dentro e nas bordas do
sistema oficial.
Nessa direção, acreditamos que a perspectiva de pesquisa no/do cotidiano oferece
alguns dos elementos necessários para efetuar a compreensão desses processos
de formação continuada que são realizados com os professores no cotidiano de
suas práticas. Por meio de uma aproximação mais detida e pela voz dos
professores, expressa em suas próprias narrativas, fizemos um exercício de
compreender como os professores vivenciam a experiência de sua própria formação
continuada no cotidiano dos Centros Municipais de Educação Infantil de Vitória.
No âmbito dos processos de formação com os professores, a perspectiva do uso da
narrativa se apresenta como uma busca para recuperar o sentido e o significado da
experiência docente, dando ao saber/fazer do professor uma maior visibilidade.
Dentre esses estudos, destacam-se os trabalhos de Linhares (2001), para quem
tudo o que não é feito com os professores se volta contra eles. Ressalta essa autora
que os professores têm sofrido múltiplos processos de agenciamento e, dentre
esses, destaca aqueles produzidos pela oficialidade e pela academia que, por meio
de estatísticas, números e dados, acabam criando uma realidade educacional em
“molduras”,1 que não condiz com a realidade vivida nas escolas. Tais molduras
produzidas para a escola acabam por criar uma imagem distorcida do professor e
das escolas, pois
Costumam destacar um quadro de horrores que tende a se agravar. Por um lado, pintam os monstros da globalização, comandados pelo neoliberalismo e neoconservadorismo, apresentando-os como quase inamovíveis; por outro, as perspectivas da escola são sombrias [...]. Quantas vezes, depois de conferências ‘brilhantes’ que só enfocam o ‘poder do mal’, escutamos comentários de professores desanimados, tais como: se o diabo é total e invencível o que faremos na escola? (LINHARES, 2001, p.163).
Linhares (2001) ressalta ainda que, contra a perspectiva determinista ou
apocalíptica, é preciso potencializar aquilo que os professores têm produzido nas
escolas, como táticas possíveis e que dão à prática docente o sentido de resistência.
Nessa perspectiva, acredita que a comunicabilidade e a socialização dos fazeres e
saberes dos professores tornam-se possíveis por meio da valorização das narrativas
da prática, pois, segundo a autora,
As narrações – como dimensão pedagógica – representam uma construção permanente de pontes entre sujeitos e objetos de aprendizagem e de ensino, entre saberes e fazeres, entre tempos e espaços múltiplos, entre poesias e teorias, entre realidades concretas
1 Linhares (2001), a partir de Santos (2005), desenvolve uma crítica às formas dominantes de produção de subjetividades na Modernidade. Segundo a autora, tal operação resulta na produção de subjetividades “subjetivadas”. Contra tal perspectiva, Santos (2006) propõe a produção de subjetividades inquietantes. Esse processo faz-se possível pela substituição dos espelhos produzidos pela oficialidade e pela academia, espelhos que refletem uma imagem única, distorcendo ou camuflando a realidade.
e ficção, entre as diferentes formas de vida e as de morte (LINHARES, 1999, p. 27).
A respeito do sentido político que as narrativas representam no processo de
constituir o professor como sujeito autônomo, faz referência aos discursos oficiais
que, reconhecendo o poder emancipador das narrativas e da memória, buscam
desarticular os projetos coletivos, remetendo a história e a prática do professor ao
esquecimento e a um individualismo técnico-pedagógico. Assim,
Nas reformas educacionais, que atingem nossas escolas, uma das estratégias mais usadas é a de isolar o professor e cada instituição escolar, levando a uma experiência de fragmentação e de perda de suas memórias e narrações profissionais, existenciais, institucionais e políticas. Não podemos esquecer que isolados perdemos a memória, por ser esta uma construção sempre histórica, coletiva. Depois de reduzidos, uns e outros, a uma tábua rasa, segundo a expressão de Locke, torna-se mais fácil nela escrever com a lógica do pensamento único (LINHARES, 1999, p. 81)
Alves e Garcia (2001), em suas análises, destacam a necessidade de olhar para a
escola e seus professores não a partir daquilo que eles não são, ou daquilo que eles
não fazem. Dessa forma, as autoras têm buscado pensar os processos de formação
com os professores com base nas experiências produzidas nos cotidianos das
escolas, pois
A maior gravidade das certezas internalizadas que se fixam numa avaliação negativa da escola [...] é que não se trata de acontecimentos dispersos e desqualificados, mas de opiniões ditas abalizadas, que se entranham na pesquisa e nas concepções educacionais dos pesquisadores, direcionando os olhares para apenas visualizarem o negativo, a falta, a incapacidade, o descaso. Parece, assim, não se darem conta de que numa problemática há sempre claros e sombras e que memórias e projetos, de que inapelavelmente as pesquisas são feitas, não estão desvencilhadas de contradições, hibridismos e possibilidades (ALVES; GARCIA, 2001, p. 45).
Na perspectiva de desenvolver uma escuta e um olhar mais afeto às questões
íntimas da prática docente, foi necessário estabelecer uma relação de
“inteligibilidade heterológica”2 como proposta por Santos (2006) e empreender uma
concepção de pesquisa que não se surpreenda com o que não é perfeitamente
compreendido/entendido ou “racionalizável” na prática pedagógica; uma postura que 2 Carvalho (2009) propõe a utilização do termo comunidade heterológica por considerá-lo mais adequado para referir-se à existência de uma pluralidade de vozes envolvidas nos processos de tradução. Nesse sentido, há uma tentativa de superação da perspectiva unicamente dialógica.
desconfie de análises convenientes e fáceis da escola e dos professores, que os
enquadra dentro de categorias teóricas e metodológicas, com o objetivo de melhor
controlá-los.
O exercício de compreender os professores por meio de suas próprias narrativas,
produzidas na experiência docente, exigiu-nos uma abertura epistemológica, ou
seja: ao invés de ouvir para enquadrar, adotamos a postura de ouvir para
multiplicar; ao invés de ouvir para controlar, procuramos ouvir para emancipar; ao
invés de ouvir para categorizar, privilegiamos a escuta como exercício da diferença.
A multiplicidade de vozes que compõem o cotidiano escolar precisa ser considerada
nos processos de formação continuada com os professores, na perspectiva de se
estabelecer novas-outras formas de constituir-se professor.
Os estudos com o cotidiano buscam extrair das práticas dos professores, no
cotidiano das escolas, outras lógicas, formas de saberes e fazeres singulares,
atentando para “ [...] a humilde razão do cotidiano” (LEFEBVRE, 1991, apud ALVES
et al., 1998, p. 3), o que remete a não compreender o cotidiano unicamente a partir
do olhar3 racionalizador e distante da modernidade científica.
Como observar não é um processo destituído de história, precisamos alimentá-la com processos de resistência, que possibilitem outras formas de ver e perceber que fujam de opções binárias e maniqueístas, como isto ou aquilo, para usar os sentidos em sua amplidão e diversidade, explorando suas fronteiras, e, tendo mesmo coragem de romper fronteiras, colocando-se nos entre-lugares de que nos fala Bhabha, assumindo a ambivalência do isto e aquilo – lugar de onde se pode captar o que antes não seria possível, limitados que estávamos pelas ortodoxias de fronteiras disciplinares e pela hegemonia da visão, excelência da modernidade. Ver com todos os sentidos, eis o mundo que se nos abre para melhor captarmos o que o limite da visão até então nos interditava (ALVES; GARCIA, 2001, p. 48).
O sentido da resistência explicitado por Alves e Garcia (2001) está nas formas
singulares de fazer a escola que cada professor e professora assumem no cotidiano,
que compendiam
3 Alves (2001) faz uma crítica à razão metafísica que, por meio indutivo, buscou comprovar hipóteses estabelecidas a priori. Elas buscam revitalizar o sentido da experiência, propondo quatro premissas básicas para a compreensão do cotidiano: o sentimento do mundo; virar de ponta a cabeça; beber em todas as fontes; e narrar a vida e literaturizar a ciência.
Histórias inscritas no corpo, nas vísceras: no coração, sede das memórias [...]. Histórias que vêm de longe trazendo saberes docentes silenciados, mas que reaparecem quando se puxa os fios embaralhados que as guardavam, ansiosas pela tessitura. Valioso material onde está acumulada a memória da escola, tão desprezada porque pesquisa apenas no instituído – as leis, os regimentos, as normas, os documentos oficiais – deixando de lado a vida, as paixões, as alegrias e as dores, a criação diária que possibilita a invenção e a reinvenção da escola a cada dia (ALVES; GARCIA, 2001, p. 49).
Na esteira da crítica às estereotipias produzidas sobre os professores, pela
discursividade oficial, destaca-se que a história da profissão docente tem sido
produzida à revelia dos professores e, nos capítulos em que aparece a ação
docente, vincula-se a imagem do professor a um profissional fragilizado ou
idealizado. Assim, os professores ou não se reconhecem nos discursos oficiais ou
diminuem-se diante deles, pela impossibilidade de aproximarem-se das imagens
idílicas produzidas sobre a profissão docente. Alves (2003), a partir da concepção
de história desenvolvida pelo historiador francês Marcel Détienne, propõe a escrita
da história tendo como pressuposto a história vivida e narrada/contada pelos
próprios sujeitos da história. Sendo assim,
A história da pedagogia constituir-se-ia da própria prática da pedagogia contada por seus praticantes docentes. Entendendo assim, que a história está ‘encarnada’ no ‘sujeito’ que a conta – o praticante da escola, permitindo compreender a história da escola a partir das várias versões contadas pelos sujeitos da escola (ALVES, 2003, p. 84).
A história assim pensada, sob a perspectiva e pela voz dos professores, acrescenta
mais histórias à história, possibilitando uma maior compreensão dos fatos,
contrapondo-se à historiografia oficial; não em oposição ou desconsideração a tal
história, pois essa também representa a voz e percepção de um grupo social que,
pelas relações de poder, tornou-se hegemônica. O que se busca ao acrescentar
histórias à história é incluir capítulos que foram omitidos, invisibilizados ou mesmo
silenciados, possibilitando, assim, uma confrontação de “versões da história”, para
que seja possível uma outra versão mais complacente com aqueles que, por
situações contingenciais, não escreveram sua versão e ficaram relegados ao
esquecimento.
Pensar a formação com os professores a partir do resgate de suas narrativas e
memórias é tornar viva suas esperanças (FREIRE, 1997), pois, como nos lembra
Benjamim (1993, p. 37), “[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos
encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem
limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois”. Assim, a
memória reconecta passado, presente e futuro em um continuum, sem limites,
trazendo possibilidades de criação e invenção da vida a cada instante. A memória,
de alguma forma, atualiza-nos ao presente, tornando-nos mais vivos. Estabelece um
sentido de pertença e coletividade, o que nos remete ao projeto de emancipação
que, na acepção de Santos (2005), é sempre e impreterivelmente algo que se
constrói coletivamente, ou seja, ninguém se emancipa sozinho.
Ainda Perez (2006, p.2) destaca que, no contexto atual, a perspectiva de trabalho
com a memória e a narrativa representa uma resistência, pois:
Num tempo veloz e fugaz, em que a alienação, o isolamento e o silenciamento das experiências nos forçam a perder nossa memória coletiva, rememorar é compartilhar memórias [narrar], é uma ação rebelde que adquire um caráter de resistência política, a memória compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o tempo acelerado da vida social nos impõe. Numa realidade em que democracia e liberdade representam práticas de consumo e que o apagamento da memória coletiva constitui a senha para a apartheid social, o encontro com o outro pode nos salvar do aniquilamento (PEREZ, 2006).
Ressaltando a importância da memória e o seu significado para a produção da
subjetividade, um ditado africano assinala: “Quem não sabe para onde está indo
deve lembrar-se de onde veio”. Sem memória, não somos nada; com memória,
podemos nos tornar sujeitos localizados em um espaço/tempo, sendo capazes
de assumir uma atitude crítica diante da realidade. A memória está intimamente
ligada à experiência, pois ninguém pode experienciar em nosso lugar e, assim,
os acontecimentos e fatos vividos dão densidade à existência. Por sua vez, a
experiência está intimamente ligada ao enredamento ao qual estamos todos
sujeitos, sendo a coletividade das experiências o que confere à experiência
humana uma idiossincrasia particular. Por isso, somente uma infinidade de
métodos pode tentar captar os significados atribuídos às experiências vividas
pelos sujeitos no cotidiano das escolas.
Os efeitos desse silenciamento das narrativas têm consequências nos processos
de formação com os professores, pois a diminuição do sentido da experiência
tem concorrido para a produção da ausência de sentido de constituir-se professor
e isso é verificado nos encontros de professores em que, cada vez mais, se
observa certo ceticismo quanto à profissão docente, evidenciado em falas e
depoimentos do tipo: “Deus que me livre ser professor”; “Ser professor é ser
sofredor”; “Não aguento mais ser professor”; “Na primeira oportunidade que tiver,
vou deixar a educação”. Esses depoimentos revelam que, para além de uma falta
de perspectiva da profissão, há um nítido processo de alheamento pessoal e
profissional, ativamente produzido pela discursividade oficial.4 E isso é
preocupante, pois, sem esperança ou realizações, o professor convive
diariamente com a iminência de um abandono da profissão, desenvolvendo uma
espécie de anorexia docente.5 A respeito desse processo vivido/sofrido pelos
professores, Perez (2006, p. 2) destaca:
O isolamento do homem contemporâneo, o apagamento da memória coletiva e o empobrecimento da experiência humana são conseqüências de uma forma de conhecer que colonializa mentes, dociliza corpos e invisibiliza outras racionalidades, tratando-as como irracionalidades.
Mais uma vez, destaca-se o sentido e o significado da experiência na
constituição do professor e esse aspecto precisa ser “redimensionado”, pois,
como já acentuamos, aquilo que os professores fazem nos cotidianos nos quais
estão inseridos, por reciprocidade, também faz o professor, constituindo-o. O
4 Cabe aqui uma nota para destacar que esse processo é ativamente produzido. A mídia, sobretudo em momentos de divulgação de resultados de índices da educação, não poupa esforços para identificar os culpados pelos baixos índices alcançados pelos alunos. A profissão de professor é tida, no imaginário social, como muito difícil e com condições subumanas. A questão é: a quem interessa produzir uma imagem fragilizada da escola pública e dos alunos e professores? 5 A comparação cabe aqui por referir-se a um duplo processo ocorrido no sujeito. O primeiro e mais agudo diz respeito à autopercepção distorcida que acomete o sujeito, de maneira que não mais consegue perceber-se como ele de fato é. Assim, a consulta ao espelho é sempre problemática, pois revela uma imagem distorcida, o que acarreta um processo de busca pela imagem perdida. O segundo processo complementar é o de perda da imagem e refere-se aos processos ficcionais aos quais estamos sujeitos, que fabricam imagens e colocam à venda nos shopping centers, reguladas pela lógica do mercado. O anoréxico paga o preço simbólico e, posteriormente, o patológico pela estetização da aparência, relegando a existência a um segundo plano. Quando nos referimos á “anorexia docente”, é também por esse processo característico, observado em alguns professores que, diante da perda da percepção da profissão, adotam uma postura de emagrecimento intelectual: alguns cursos “só para o mérito”, um pouco de planejamento, pitadas de didática e pedagogia, nada que os engorde intelectualmente.
material do qual são feitos os professores tem um forte componente: a prática
pedagógica entendida como docência. Assim, Linhares (1999, p. 54) ressalta:
Quem nos faz professor é o ato de ensino; nesse sentido perdemos nossa virgindade professoral quando lecionamos a primeira vez, de lá para cá, passando o trauma/expectativa da primeira vez, a profissão não resiste a novidades [...]. A escola vai produzindo a experiência de sermos professores e estudantes, embaralhando-nos como o pó e a estrada de que são feitas as sujeições e saídas com as quais recriamos os embates, nos vão recriando enquanto ajudamos a recriar a escola e a sociedade.
É fundamental, então, pensar nos processos de constituição do professor. Que
experiências, que teorias, que expectativas, que projetos alimentam suas ações
cotidianas? Quais são as condições às quais os professores estão sujeitos na
sua prática cotidiana? Que relações têm sido estabelecidas no cotidiano das
escolas? Essas relações têm impedido ou potencializado os professores a
produzir experiências significativas que tenham o potencial criativo e criador da
prática pedagógica? Aos professores no cotidiano são possibilitadas
oportunidades de estabelecer relações com os outros professores ou estão
confinados a um isolamento?
Em síntese, a questão central de nosso trabalho foi compreender as lógicas
presentes nas práticas pedagógicas cotidianas, sobretudo nos processos
de formação continuada com as professoras de educação infantil que
atuam em cinco centros municipais de educação infantil localizados na
Região de São Pedro, manifestos nas suas próprias narrativas. Buscamos
perceber como as professoras mobilizam e fazem usos dos saberes e produzem
novos/outros saberes-fazeres; tentamos demonstrar as táticas que as
professoras utilizam para oferecer alternativas às propostas oficiais,
estabelecendo redes de formação que acabam sendo marginais, mas que se
mostram mais significativas.
Cumpre destacar a crença de que a docência se configura como uma profissão que
está sujeita inevitavelmente à coletividade, ou seja, somos professores, sempre no
plural, e nos tornamos professores no encontro com os outros (alunos, pais de
alunos e colegas de trabalho), o que nos remete a pensar a formação a partir de
compartilhamentos. Sendo assim, formação “com” os professores e não formação
“dos” professores. Outra questão complementar à ambivalência no processo de
formação diz respeito à incompletude; somos “incompletudes fundantes”, portanto,
ainda que julguemos que há muito a compartilhar com os professores, também
sentamos à mesa e nos rendemos aos banquetes do cotidiano, aprendendo com as
experiências vividas pelos professores no exercício da docência.
O título de nosso trabalho de pesquisa, “Contando histórias e fazendo história: a
formação continuada com os professores de educação infantil”, revela a
preocupação que os estudos nos/dos/com os cotidianos têm em mostrar que há uma
infinidade de saberes e fazeres sendo produzidos pelos professores nos espaços-
tempos da prática pedagógica, e que, por uma perspectiva científica assumida na
Modernidade, têm sido desconsiderados, ou mesmo desacreditados. A principal tese
desenvolvida ao longo do trabalho é que os processos de formação não podem
prescindir de uma compreensão dos múltiplos processos formativos que são vividos
pelos professores nos diversos contextos em que estão inseridos e, de maneira
especial, no cotidiano das escolas. Logo, não faz sentido o discurso que afirma a
necessidade de formação dos professores. É mais razoável assumir a perspectiva
de formação com os professores, entendimento este que atribui ao professor o
lugar de sujeito de sua própria formação em processos de interação com outros
professores e com especialistas e gestores, localizados prioritariamente em
contextos de formação.6
A formação com os professores só faz sentido a partir de um lugar comum, o que
pressupõe uma inteligibilidade heterológica como o proposta por Santos (2006), sem
a qual se corre risco de se pregar no deserto ou se estabelecer um diálogo de
surdos. A inteligibilidade heterológica remete à experiência como dimensão
6 A referência a “contextos de formação” busca superar a ideia de que se devem desconsiderar as condições de trabalho em que os professores desenvolvem sua prática e propor programas e projetos que tenham como principal estratégia cursos intensivos em forma de treinamento fora da escola, para que depois os professores voltem e tentem aplicar os conhecimentos nos lugares de inserção de sua prática. A principal crítica a essa perspectiva de formação reside no fato de que, em sua maioria, partem de uma situação idealizada em que professores e alunos só existem no universo imaginário dos especialistas, cuja tarefa é oferecer um cardápio de soluções, na maioria das vezes individuais, que, por sua insuficiência teórica e principalmente metodológica, não encontram muita possibilidade de usos nas práticas.
discursiva integradora fundamental, para que haja uma fertilização de saberes e
fazeres, em que aquele que assume o papel de formador e o que assume o de
formando se compreendam e ambos possam se desenvolver pessoal e
profissionalmente. Tal perspectiva formativa se aproxima da perspectiva freiriana,
pois ressalta a impossibilidade de conscientização unilateral “[...] ninguém
conscientiza ninguém, porém ninguém se conscientiza sozinho”. Quando se fala de
relações humanas, características imanentes dos processos de formação
continuada com o professor, emergem processos, no mínimo, multilaterais, de trocas
e socialização de conhecimentos, cujo princípio é que ninguém forma ninguém mas,
paradoxalmente, todos se formam mutuamente.
A importância das narrativas dos professores está na potencialidade que os
conteúdos das histórias têm, sobretudo para serem utilizados como material de
autoformação, coformação e heteroformação, ressaltando, porém, que tal trabalho
está para além de significados morais.7 Souza (2006) refere-se a essa perspectiva
na pesquisa social, de maneira especial na educação, como narrativas de formação.
Diferentemente de apenas utilizar as narrativas como recurso para desenvolvimento
de outros estudos, a perspectiva que assumimos concebe a “narrativa em si” como
elemento fundamental no processo de pesquisa e de formação. Sendo assim, é
importante destacar que o trabalho com a narrativa se faz no fio da navalha, pois,
como afirmamos, não se trata de usar a narrativa apenas como recurso para revelar
estruturas, sejam elas lingüísticas, sejam político-ideológicas.
O especial cuidado com as histórias que as professoras contam de si e dos outros
encontra sustentação nas reflexões que buscam reconhecer o discurso da escola,
sobretudo na voz dos sujeitos que a produzem por meio de muitas experiências,
vividas e sentidas. A potencialidade da experiência como importante dimensão
formativa se insere nesse movimento que busca cavar, no chão das escolas, para
descobrir/evidenciar, desinvisibilizar as múltiplas formas de saberes e fazeres que
7 É importante destacar que o uso das narrativas não se enquadra na perspectiva de formação a partir de usos morais que das histórias acabam sobressaltando. Não é o caso de ouvir a história do bom professor, do que deu certo, do bom exemplo. Nesse sentido, quando utilizamos a expressão positividade, não nos referimos a bom, bem, certo, melhor, etc. Acreditamos que, das histórias contadas, cada leitor irá construir diferenciadas impressões e que é certo que aprendemos com toda e qualquer experiência e, invariavelmente, não nos é dado ter o controle das experiências que queremos ter na relação com os outros.
sempre ali estiveram e que não eram reconhecidas pela lente da cientificidade
moderna (OLIVEIRA, 2006).
É importante destacar que essas muitas/múltiplas experiências sempre estiveram
nas escolas, produzidas pelos sujeitos que vivem seu cotidiano, entretanto, sobre a
oitiva da ciência moderna, todo o amplo campo de experiência é resumido a um
objeto de pesquisa, quase sempre um recorte da realidade que, posteriormente, é
analisado, esquadrinhado, obliterado, enfim, objetivado. A pesquisa com o cotidiano
busca considerar essas experiências, portanto deve primar pela aproximação da
realidade com todos os sentidos, num mergulho sem muitos equipamentos, para,
assim, não criar artificialidades.
Com a tentativa de estabelecer ligação entre processos formativos e narrativas das
práticas e compreender os múltiplos processos formativos que são experienciados
pelos professores nos diversos contextos em que exercem sua prática, sobretudo no
cotidiano de cinco centros municipais de educação infantil de Vitória, estruturamos o
presente trabalho da seguinte forma:
No primeiro capítulo, procuramos fazer uma caracterização do contexto da pesquisa,
trazendo alguns elementos sócio-históricos que nos permitiram compreender a
região de São Pedro e, nessa região, a inserção dos Centros Municipais de
Educação Infantil (CMEI). Já nessa parte do trabalho, buscamos apresentar algumas
narrativas de moradoras-professoras e suas relações com a história de São Pedro.
Fizemos também uma descrição dos CMEIs, tentando mostrar aspectos
característicos, como: estrutura física, número de alunos atendidos, comunidade e
outras informações. Consideramos importante essa descrição, pois a compreensão
do contexto da pesquisa é fundamental para ajudar no entendimento da sua
estrutura.
No segundo capítulo, contamos um pouco dos dilemas que vivenciamos ao nos
aventurarmos em uma pesquisa com o cotidiano. Recorremos a algumas narrativas
das professoras, mas, principalmente, utilizamos nossas anotações de bordo para
expor nosso caminho e, assim, contamos algumas histórias sobre a trajetória
empreendida por nós nesses quase 11 meses de itinerâncias no cotidiano de cinco
centros municipais de educação infantil. Apresentamos este capítulo subdividindo-o
em cinco cenas, a saber: a primeira cena se refere à entrada na escola, é quando
contamos um pouco dos desafios de estabelecer uma aproximação com os
cotidianos pesquisados; a segunda cena retrata a compreensão que temos do
método, explicamos nesse particular, como utilizamos as ferramentas de que
dispúnha e como tivemos que produzir maneiras peculiares de fazer pesquisa; na
terceira cena apresentamos os contornos da pesquisa, inclusive procurando
descrever como constituímos o campo, vivenciando todos os seus desafios,
sobretudo no que se refere à arbitrariedade que envolve o recorte da realidade; na
cena quatro, narramos um pouco da experiência de escuta que pudemos vivenciar e
descrevemos qual o sentido de ouvir as narrativas; e, finalmente, na cena cinco,
tentamos mostrar como nos posicionamos diante da realidade, principalmente diante
das narrativas, esclarecendo que, mais do que explicar os processos de formação,
nossa tentativa é de compreensão desses processos.
No terceiro capítulo, mostramos como utilizamos as teorias. Procuramos destacar a
perspectiva teórico-metodológica da pesquisa e desenvolvemos algumas reflexões a
partir dos aportes teóricos que temos utilizado. Destacamos o pensamento de
Santos (1987, 1989, 2000, 2006), sobretudo a sociologia das ausências, sociologia
das emergências e o trabalho de tradução, expressos na denominada hermenêutica
diatópica. É atribuída especial atenção à dimensão da experiência, como elemento
catalizador da existência humana. Nesse sentido, as narrativas das professoras
ganham destaque, pois são suas formas singulares de produção da condição
docente localizas no espaço-tempo do cotidiano.
No quarto capítulo, procuramos agrupar algumas histórias contadas pelas
professoras motivadas pela proposição que lhes fizemos de que narrassem como se
deu seu processo de formação como professora, destacando aspectos fundamentais
que elas considerassem que contribuíram de forma significativa para sua escolha
pela profissão de professora, para seu desenvolvimento profissional e pessoal
dentro da carreira do magistério. Essa questão inicial foi a mais provocadora e na
qual mais as professoras se expuseram. Algumas até mesmo se emocionaram, pois
o exercício de rememoração, principalmente de opções pessoais e profissionais, é
sempre carregado de emoção.
No quinto capítulo, buscamos desenvolver uma compreensão mais arguta das
narrativas, inclusive retomando algumas para ilustrar o pensamento que estamos
desenvolvendo sobre a formação continuada com os professores. Para um melhor
encadeamento na leitura, subdividimos este capítulo em cinco momentos: no
primeiro, abordamos como os professores se organizam no cotidiano para vivenciar
os processos de formação, observando quais espaços-tempos são previstos e os
significados que os professores atribuem a essas experiências; no segundo,
tentamos demonstrar as táticas que os professores utilizam para oferecer
alternativas às propostas oficiais, estabelecendo redes de formação que acabam
sendo marginais, mas que se mostram mais significativas para os professores; no
terceiro, apresentamos a narrativa completa de uma professora, cujos elementos,
acreditamos, possibilitam uma infinidade de leituras e compreensões sobre
processos de formação continuada vivenciados ao longo da carreira e no cotidiano
das escolas; no quarto, utilizamos algumas narrativas que remetem a pensar a
escola como espaço-tempo atravessado por diversas influências, fato esse expresso
no conteúdo das narrativas, que revelam, o tempo todo, essa interdependência dos
diversos âmbitos da sociedade; no quinto momento, apresentamos a narrativa de
uma professora moradora de São Pedro, pois acreditamos que sua história expõe
algumas marcas que nos ajudam a pensar a prática pedagógica como um projeto
cujas matrizes se ancoram não só no saber, mas também no fazer, ressaltando a
centralidade da experiência.
No sexto capítulo, realizamos uma revisão das principais ideias desenvolvidas em
nosso trabalho, com destaque para a tese central, formação continuada com os
professores. Evidenciamos um pouco mais o desenho teórico-metodológico que
estamos chamando de formação continuada com os professores e, assim,
estabelecemos algumas dimensões para se compreender e empreender tais
processos de formação no cotidiano das escolas. Tivemos o cuidado de desenvolver
cada uma das dimensões, inclusive recuperando algumas narrativas que julgamos
que pudessem evidenciar essas dimensões. Também estabelecemos diálogo com
os aportes teóricos na perspectiva de garantir que as dimensões sejam
compreendidas como princípios norteadores e não como verdades absolutas sobre
a formação continuada. Esse esforço de síntese permitirá que cada leitor possa
desenvolver uma compreensão pormenorizada das principais ideias contidas na
tese.
Escrevemos, ainda, algumas considerações finais com o título que remete à
continuidade do estudo e das possibilidades de compreensão desta temática “Quem
conta um conto aumenta um ponto: continuidades e outros mais”. A ideia é que o
trabalho possa provocar novos/outros estudos nessa mesma direção, buscando
compreender essa intrincada e complexa rede de formação continuada que é
produzida nos cotidianos das escolas.
CAPÍTULO I
1 PAISSAGEM DA PESQUISA: SEUS LUGARES E TEMPOS
O bairro de São Pedro traz, como uma de suas marcas sócio-históricas, a luta
política por direitos sociais, como moradia, saneamento, saúde e educação, dentre
outros. Conhecido nacionalmente como “lugar de toda pobreza” na década de 80,
devido ao documentário homônimo feito pelo jornalista Hamilton de Almeida (1983),
São Pedro tornou-se rapidamente um lugar bastante rico do ponto de vista das
possibilidades de compreensão das contradições presentes em uma sociedade
excludente.
Essas marcas históricas do bairro de São Pedro continuam exercendo uma atração
sobre aqueles que acreditam que é possível construir uma sociedade mais justa em
termo de direitos ao exercício de cidadania. Nosso trabalho de pesquisa se inscreve
nessa perspectiva, pois acreditamos que o bairro de São Pedro abriga uma
infinidade de histórias que tem a potência de nos fazer perceber que é preciso
acreditar nas possibilidades de construção de um projeto de sociedade que promova
o reconhecimento as camadas mais pobres da população, sobretudo que tenha um
compromisso ético-político com a escola pública.
De certa forma, nossa atuação profissional nos centros municipais de educação
infantil da região de São Pedro, por, pelo menos, nove anos, permitiu-nos criar uma
identificação com esse lugar e, com o tempo, fomos aprendendo a viver o cotidiano
das escolas e CMEIs. A escolha de São Pedro para o desenvolvimento de nosso
trabalho, além do fato de ser um lugar em que já atuamos, tem as seguintes
motivações: a) a crença de que, nas histórias de lutas políticas vivenciadas pelos
seus moradores, principalmente nos movimentos em torno da conquista do direito à
educação, encontraremos um material riquíssimo para tentar compreender as micro,
meso e macrodeterminações que perpassam os processos de constituição da
docência; b) ser o lugar que, por questões sociais, abriga o maior número de
estabelecimentos educacionais, além de outros projetos sociais, permitindo, assim,
um amplo campo de estudo; c) finalmente, acreditamos que, nas narrativas das
professoras que vivenciam o cotidiano dos centros municipais de educação infantil,
encontramos elementos que mostram os movimentos instituintes que são
produzidos de forma sutil no desenvolvimento da prática pedagógica, sobretudo em
um contexto perpassado por questões sociais, como é a realidade das famílias e
dos alunos da região de São Pedro.
Na perspectiva de fazer uma aproximação com o cotidiano de São Pedro e tecer
uma caracterização do lugar da pesquisa, optamos por recorrer às reflexões de
Andreata (1997), Dias (2001), Gurgel (2004), Fortunato (2005) e também dos
vídeos documentários “Lugar de toda pobreza”, do jornalista Hamilton de Almeida
(1993), e “São Pedro lugar de toda pobreza 20 anos depois” do cineasta Henrique
Gobbi (2003), narrativas de professores moradores de São Pedro, narrativas
recolhidas de um projeto de trabalho desenvolvido por uma professora do CMEI,
Gilda de Atayde Ramos (2006), cujo título é “A cor da leitura e o meio ambiente” e,
ainda, utilizamos as percepções que fomos elaborando em contato com a vida
cotidiana da região da Grande São Pedro.
Em seu livro “São Pedro”, Dias (2001, p. 7) faz referência à visibilidade que São
Pedro começou a ganhar diante da intelectualidade capixaba e da sociedade como
um todo, sobretudo a partir da década de 80:
Dezesseis de junho de 1983. Nove da manhã. Não cabe mais ninguém no Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Estudantes, intelectuais, jornalistas, funcionários da Universidade, curiosos de plantão. O choque é grande, há choro por todo o lado. Num telão, desfilam fortes imagens de pessoas da periferia de Vitória, disputam alimentos com urubus. Jovens e idosos, senhoras e crianças, mesmo recém-nascidos que vivem no lixo. Caminhões coletores são literalmente atacados ao chegarem ao local de despejo.
Esse período ficou marcado por grande efervescência no cenário nacional.
Estávamos em plena transição do período de ditadura política para a
redemocratização do País.
A situação dos moradores de São Pedro caiu como uma bomba na sociedade
capixaba, pois não se tratava de miseráveis reclusos nas mais longínquas cidades,
nos rincões do País, nem eram vítimas de catástrofes naturais; São Pedro era o
retrato da crescente miséria urbana, fruto de um processo de urbanização
desordenado e aliado à crescente falta de condições nas zonas rurais,8 tão perto e,
ao mesmo tempo, tão longe estavam seus moradores dos parâmetros mínimos do
exercício da cidadania. Era uma catástrofe humana. Um testemunho vivo de que,
quase na última década do século XX, no limiar do milênio, as desigualdades sociais
representam um desafio para mais um século. Parte dessa miséria é registrada na
foto 1.
Foto 1. Moradores de São Pedro no auge da invasão na déc de 80
Nos versos de um poeta popular e morador de São Pedro, a história da ocupação é
contada de forma bastante singular:
No ano de setenta e sete Foi começando a ocupar Só tinha sete famílias Morando neste lugar Derrubaram seus barracos Eles tornaram levantar Quando foi o mês de outubro Do mesmo ano corrente A notícia espalhou Ajuntando muita gente Formando São Pedro Dois E foi assim pela frente.
8 A constituição de São Pedro é resultado de dois fatores correlatos: o primeiro refere-se à falta de políticas públicas para as populações que vivem em zonas agrícolas, o que as levava a almejar uma vida melhor em outro lugar, “a cidade”; o outro fator foi a industrialização da região metropolitana de Vitória, fato esse que atraiu um grande contingente de pessoas que vieram à procura de trabalho e oportunidade de uma vida melhor. Esse movimento provocou, na paisagem urbana, uma série de mudanças significativas, criando uma ocupação desordenada dos espaços. A esse respeito, Dias (2001) ressalta que os moradores originais de São Pedro são os operários das fábricas que se instalaram no final da década de 70 na Grande Vitória. A história de formação do bairro São Pedro se inicia a partir de 1987, quando as primeiras famílias de imigrantes, atraídas pelos grandes projetos industriais, começam a ocupar o manguezal da região.
Em dezembro de oitenta Ocuparam outra vez Foi aí que se deu o nome Agora São Pedro Três E depois surgiram o resto O Quatro, o Cinco e o Seis. (ADENIR BENEDITO ALVES, poeta local)
O período a que faz referência o poeta é o de transição de um modelo
socioeconômico que, na época, significava a passagem do modelo agrário e rural
para um modelo urbano industrial. A erradicação dos cafezais provocou uma grande
imigração no sentido campo-cidade, tendo como consequência um crescimento
desordenado, gerando os bolsões de miséria nos centros urbanos. Nesse particular,
vale ressaltar que o fenômeno da ocupação desordenada não foi um privilégio da
capital, Vitória, pois tal fato se repetiu em quase todas as Capitais e centros
urbanos, um fato que cobra seus dividendos, mesmo tendo já passados quase 30
anos. Assim, problemas relacionados com a falta de saneamento básico, crescente
aumento da violência, dentre outros, são reflexos da falta de política de ocupação
dos centros urbanos.
Na década de 80, Vitória era uma cidade partida, dividida entre uma classe social
que gozava das oportunidades inerentes ao chamado milagre econômico, cujo
reflexo aqui representava a expansão urbano-imobiliária, e outra classe social que
se constituía às margens, “marginal”, alheia à urbanidade, que não podia contar com
os benefícios da vida na cidade, nem com o pleno exercício da cidadania,
paradoxalmente, cidadãos sem cidadania.9
A fundação de São Pedro retrata a história daqueles desterrados que buscaram
levantar uma cidade e produzir cidadania daquilo que aparentemente não servia
para nada, o lixo. Os depoimentos e narrativas revelam essa face característica
daquele lugar que por muitos, ainda hoje, é conhecido como lugar de toda pobreza.
Tal fato fica evidenciado nos versos de Andreatta (2003) citado por Nunes (2007, p.
45).
9 Paradoxalmente, porque a palavra cidadania remete a pensar exatamente isto, pessoas cujas condições de vida são garantidas na e pela cidade. Nesse caso específico da ocupação de São Pedro, durante muitos anos, seus moradores foram considerados indivíduos na cidade, não indivíduos da cidade, fato esse caricato reforçado por serem invasores da ordem social urbana. São Pedro, antes de tudo, é uma invasão.
No lixo tem bicho Mas também tem gente com fome Cantando, colhendo, vendendo, Morrendo no lixo. Do bicho, do homem perfumando, Que fuma cachimbo importando Com dinheiro tirado do lixo Com bicho Que o povo procura Pra tentar comer Porque emprego não tem, Aumento não vem E, no lixo, mesmo com bicho, Tem lata, plástico, papel... Tem até panela que jogam fora, E vidros com resto de mel [...] No lixo tem noitadas de lua cheia, Porcos de arroba e meia, Urubus de todas as qualidades: _ “Abutres” humanos em busca de novidades, De votos, misérias. _ E urubus de verdade [...].
Na mesma perspectiva da professora-poeta e moradora de São Pedro, Graça
Andreatta, a lente do fotógrafo registra os dilemas vivenciados pelos moradores de
São Pedro em uma foto (2) que ficou conhecida nacionalmente. Homem e urubus
disputando um mesmo espaço, sob o olhar omisso das autoridades, afinal essas
cenas aconteciam a não mais do que 4km da sede do governo.
Foto 2
As muitas e diversas histórias contadas pelos muitos moradores revelam aspectos
singulares desse processo de construção do bairro de São Pedro. Como ressalta
Dias (2001), em São Pedro, cada rua, cada esquina, cada casa, cada escola encerra
uma história de lutas, uma história em curso.
As ruas de São Pedro contam um pedaço da história vivida pelos moradores. Seus nomes testemunham momentos marcantes de sua luta pelo direito a moradia: Rua da Coragem; Rua do Acordo; Rua do Grito; Rua da Permanência; Rua da Dificuldade; Rua da Desigualdade; e Beco do Amor (DIAS, 2001, p. 17)
Nas narrativas particulares colhidas das memórias recentes, afinal aconteceram “um
dia desses”, identificam-se traços característicos de uma história que ainda tem
muito para ser contada e/ou produzida. Nas escolas, ainda é possível encontrar
personagens vivas que, de forma intensa, participaram dos movimentos de lutas que
possibilitaram à região de São Pedro conseguir uma série de conquistas do ponto de
vista dos direitos humanos e direitos sociais. A narrativa de uma das professoras
que começou sua carreira no magistério, ainda no auge da ocupação, revela o
quanto em São Pedro se vive o passado presente.
O grupo de mulheres católicas, do qual eu participava, em uma eleição do Movimento Comunitário formou um chapa, perdemos a eleição, mas a equipe permaneceu unida criando então a MUSP (Mulheres Unidas de São Pedro) que conseguiu um grupo de pais para trabalhar voluntariamente na creche. Mais tarde fomos regularizadas e fizemos curso de berçarista, ministrado pelo SENAC, depois fiz magistério, passei no concurso público e estou aqui até hoje (CRISTINA, PROFESSORA). A narrativa revela não só a dimensão pessoal das lutas, que, por si sós, são legítima
mas, também a sua dimensão política. Lutas que se misturaram às demandas de
produção da vida no cotidiano dos moradores de São Pedro. Sem dúvida, para essa
professora, a participação política significou também a possibilidade de crescimento
e desenvolvimento em todas as dimensões da vida, fato que se consolidou por meio
do exercício do magistério na mesma escola que existia anteriormente somente no
projeto “utópico de existir” 10. O teor da frase final, “estou aqui até hoje”, revela que
estar nessa escola até hoje não significa apenas conveniência diante do acaso, mas
resiliência diante das adversidades. Significa também uma opção política pessoal
pelos dali, pelos seus.
10 Essa professora nos revelou que foi um sonho, uma realização conseguir trabalhar nessa mesma creche que um dia tinha lutado para ver ser construída. As lutas que travaram dão um significado diferente à forma de ser e estar professora nessa creche, pois é fruto de sua luta pessoal e coletiva.
Alves (2002), a partir das reflexões de Santos (2005), destaca que a opção pelos
nossos, pelos que estão perto, pelos que estão dentro, é fundamental e, ainda que
pareça um ato inconsequente, pressupõe a eleição de uma teoria de apoio, pois
nossas escolhas estão carregadas de significados e intenções políticas. Sendo
assim, a opção de escolher o lado das pessoas, dos sujeitos concretos, ao invés de
optar pelo “lado das coisas”, coloca-nos o desafio de, o tempo todo,
reconsiderarmos nossas posições e nossos projetos pessoais e coletivos.
Essa mesma professora, em outro depoimento, revela uma faceta importantíssima
da dimensão social da emancipação, que está presente nos movimentos sociais e
que busca, na teia das relações, possibilidades de produzir outras lógicas que
subvertam a lógica única imposta pela oficialidade. Ela, então, narra sua
“retrospectiva surpresa” diante de um São Pedro que já não é mais o mesmo,
embora continue sendo um São Pedro que não só se modificou, mas também
produziu transformações naqueles que participaram de suas conquistas. Eis a
narrativa:
Logo que cheguei fui à igreja católica, primeira do bairro. Me sentei no banco e fiquei me segurando, pois balançava muito. Entrou um menino negro e sujo que se sentou perto de mim, pensei que era um menino de rua ou sem família, mas chamou a atenção pois ele sabia todas as orações e cantava muito bem, fiquei encantada. Depois descobri que aquele garoto era Elizeu, que hoje é o subsecretário de educação de Vitória (CRISTINA, professora).
O fato poderia ser inusitado e talvez não merecesse nenhum destaque nos campos
da memória dessa professora, se não se tratasse de um menino negro e pobre, que,
mais tarde, viria a se tornar professor. Em uma sociedade onde o lugar em que se
mora, a cor da pele, a condição social, o nível de escolaridade e a profissão são
distintivos que se carregam na testa, determinando muito daquilo que se pode
alcançar em termos de prestigio social; ou seja, em um país onde a “desigualdade
do berço é o berço da desigualdade social”, a ascensão de uma pessoa vinda da
camada miserável da população é fato que merece rememoração.
A importância desse acontecimento é marcante para essa professora-moradora o
que a faz identificar pelo nome o menino negro e pobre que de professor chegou a
ser subsecretário de Educação de Vitória. Mas a mesma vida cotidiana que revela
esse movimento de emancipação traz também marcas de processos de regulação
e/ou autonomia controlada, fatos contraditórios que também são percebidos no
cotidiano. Nesse caso específico, do menino negro e pobre, evidenciado na narrativa
da professora Cristina, revela-se um duplo movimento. O primeiro salta aos olhos
pela sua força quase icônica, ou seja, uma história que revela e inspira muitas outras
histórias de superação já publicadas ou que ainda continuam anônimas e possíveis
de serem identificadas nas crônicas da vida cotidiana de São Pedro.
O segundo movimento, esse não explicitado na narrativa da professora Cristina,
revela o quanto os acontecimentos e os fatos que marcaram e marcam a vida
cotidiana de São Pedro têm uma dimensão política importante. Esse mesmo menino
negro, pobre e professor que, de maneira emblemática, significou o ícone de um
movimento de libertação ou ascensão dos moradores de São Pedro, na década de
80, também exercia importante influência na luta dos professores da rede municipal.
Foi convidado a assumir, na Secretaria Municipal de Educação, a função de
subsecretário de educação, com o objetivo de arrefecer os ânimos tanto dos
movimentos sociais, como dos professores, contribuindo para a reeleição na
prefeitura da Capital, no ano de 2001.11
São Pedro é, assim, um bairro cujas histórias escondem nuances importantes que
revelam idiossincrasias características do lugar de toda pobreza que, em pouco mais
de duas décadas, conseguiu erguer-se e se inserir na cotidianidade da vida
metropolitana de Grande Vitória. São Pedro é lugar de toda pobreza, mas caldeirão
de riqueza cultural. Seus moradores gostam de sublinhar que do lixo fizeram tudo,
literalmente, tudo.
A questão específica do lixo é um capítulo especial nas histórias de São Pedro. Em
uma reunião na escola, uma mãe de aluno de um dos CMEIs revelou: “Eu não tenho
vergonha, eu catei lixo, não posso esconder essa realidade, faz parte de minha
história”. De algum modo, o lixo faz parte da vida de todos os moradores de São
Pedro e, de uma forma mais ampla, o lixo estabeleceu elos de ligação entre
11 O magistério sempre significou uma força política muito expressiva nos rumos da política da Capital. Daí a preocupação de cooptar a categoria em torno de um projeto no qual os professores se sentissem contemplados.
realidades tão distintas e distantes, ainda que separadas por não mais do que quatro
quilômetros.12
Na crônica “O Lixo”, Veríssimo, de forma brilhante, descreve como dois vizinhos
passam a se relacionar, a se “aproximar” através de seus lixos. Por intermédio da
observação cuidadosa, eles vão penetrando um na vida do outro, pela análise dos
resíduos deixados na lata do lixo (cartas, remédios, comidas, bebidas, bilhetes,
fotografias, recordações, etc.), segundo o autor, “Através do lixo, o particular se
torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.
O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social”13.
Da mesma forma que, na crônica, os moradores de São Pedro passaram a se
relacionar com a classe média e alta por meio de seus lixos “resíduos”, no caso em
cena, a classe média/alta, “o centro”, relaciona-se com a classe baixa "a periferia -
São Pedro”. Na crônica, o desfecho é uma aproximação, cujo pano de fundo são os
interesses afetivos que, misturados a singularidades de vidas particulares, desejam
e passam a ser partilhados, intermediados sempre pelos resíduos produzidos na
vida cotidiana.
No caso da relação que os moradores de São Pedro passaram a estabelecer com o
lixo produzido na Grande Vitória, o pano de fundo é fundamentalmente social e
político, pois não se tratava de fazer leituras ou conjeturações sobre aqueles que
produziam o lixo; significava uma apropriação literal do lixo, que, a princípio, não era
um texto a ser lido, mas um resíduo, produto a ser consumido para produzir
condições de sobrevivência, de forma literal, por pessoas que, devido às situações
contingenciais já explicitadas, não tinham condições de exercer com dignidade sua
cidadania. Entretanto, por conta dos usos que os moradores começaram a fazer do
lixo, o fato tomou uma dimensão política de proporções não previstas.
12 São Pedro, até a metade da década de 70, era uma realidade desconhecida dos moradores da Capital. Como ninguém monitora seu lixo, não havia qualquer preocupação com o destino dos resíduos produzidos nos centros urbanos. 13 A crônica na integra encontra-se disponível em: http://literal.terra.com.br/verissimo/biobiblio/cronologia/cronologia.shtml?biobiblio2 > Acesso: 17 fev. 2008.
O lixo passou a ser um símbolo da luta dos moradores de São Pedro, pois foi ele
que possibilitou a sobrevivência e, posteriormente, a vida da comunidade de São
Pedro. No livro “São Pedro”, Gurgel (2004, p. 40) ressalta que o lixo, em certa altura
dos conflitos, deixa de ser até mesmo problema, ou seja, a questão é: o significado
que o Estado e as elites davam ao lixo era diferente dos significados atribuídos pelos
moradores de São Pedro. Eles imediatamente passaram a utilizar o lixo como fonte
de renda e processo de resistência, pois “o lixo que simbolizava sua miséria,
significava também sua riqueza”, a única possibilidade de sobrevivência.
Sem dúvida, o lixo dividia interesses, entretanto, para os moradores, o lixo passou a
significar um duplo benefício. O primeiro era a possibilidade de usarem o lixo para
aterrar as suas moradias que, naquela época, eram feitas de madeira por cima das
águas do manguezal “as palafitas” (Foto 3). Assim, as toneladas de lixo que eram
depositadas diariamente, vindas da região urbana de Vitória, traziam um beneficio
que não podia vir de outra forma, como um aterro feito com areia ou pedras. O outro
benefício estava ligado à exploração econômica do lixo, o que logo os moradores
aprenderam a fazer. Por meio da organização de trabalhadores, os moradores
aprenderam que do lixo se podia tirar subsistência.
Foto 3. As palafitas simbolizavam essa luta pela sobrevivência
Nesse contexto da ocupação de toda a região de São Pedro, a questão ambiental
vai ganhando força, de maneira que, no final da década de 80, a invasão do
manguezal passou a ser um problema a mais a ser administrado pelo Poder Público,
pois as pressões vindas de organismos de defesa ambiental assinalavam que era
necessária uma intervenção política para resolver o problema. Os impactos da ação
do homem no meio ambiente já eram sentidos e, no caso específico de São Pedro, a
luta tinha uma dimensão peculiar, pois se tratava de uma luta por espaço entre
caranguejos e seres humanos.
Inibir o processo de ocupação em defesa do manguezal pressupunha, também,
desenvolver uma ação visando a garantir que os moradores “invasores” tivessem
onde construir suas moradias. Como o Poder Público, à época, não conseguiu
equalizar o problema, a força da ocupação foi feita com o prejuízo da preservação
do manguezal. Segundo Dias (2001), os biólogos, ao se debruçarem sobre esse
processo de ocupação, mesmo tendo passado quase duas décadas, acreditam que
não havia alternativa sustentável que não passasse por uma ação política. Essa
ação mais efetiva do Poder Público, nas questões referentes ao processo de
ocupação, somente terá inicio quase uma década depois do ápice da ocupação, por
ocasião da visita do Papa João Paulo II.14
Em outra comovente visão sobre os conflitos vividos pelos moradores durante a
ocupação e o processo de consolidação das lutas sociais na região de São Pedro,
Andreatta (1987) ressalta que os moradores passaram a identificar-se com o lixo,
assumindo-o como propriedade sua, “o lixo é nosso” e, no mesmo espírito que dá
título ao seu livro “São Pedro, na lama prometida, a redenção”, os moradores
buscaram produzir, dos destroços, dos excessos, dos restolhos, da sobra da
civilização, a sua história. Como ressalta Benjamim (1993), dos refugos, dos
restolhos da civilização, as crianças produzem e recompõem, em seus brinquedos, a
história da humanidade. Em São Pedro, de forma análoga, há essa recomposição
dos elementos que compõem a história dos moradores que produziram existência a
partir dos excessos, das sobras do progresso e do desenvolvimento.
O atendimento educacional em São Pedro também é fruto de lutas travadas pelos
primeiros moradores “invasores”. As histórias narradas pelas professoras moradoras
14 A visita do Papa João Paulo II, em 1991, foi um divisor de águas. Segundo algumas moradores, os holofotes se voltaram para São Pedro. Houve uma pressão da Igreja para que se fizessem investimentos, inclusive o próprio Papa doou uma quantia em dinheiro para os moradores. Sem dúvida, a visita possibilitou uma intervenção mais sistemática do Poder Público na região, inclusive fortalecendo os movimentos sociais.
de São Pedro revelam que os centros municipais de educação infantil misturam-se à
própria história do bairro e têm como marca a luta das mulheres trabalhadoras que,
por necessidades socioeconômicas precisavam ter um lugar para deixar seus filhos
protegidos enquanto saíam para trabalhar.
Os Centros Municipais de Educação Infantil
A caracterização de uma realidade corre sempre o risco de caricaturização e,
correndo esse risco, não sem causa, fizemos um trabalho de selecionar em
documentos oficiais e não oficiais, bem como em narrativas e, sobretudo, em
observações da paisagem cotidiana de São Pedro,15 aspectos característicos que
nos permitissem fazer uma descrição pormenorizada da realidade dos CMEIs.
Ainda que a paisagem geográfica de São Pedro tenha se modificado desde sua
ocupação, na década de 80, alguns traços permanecem intocáveis, principalmente o
retrato socioeconômico que se configura, em grande maioria, porque os moradores
são trabalhadores assalariados, que vivem de atividades de prestação de serviços
ou em comércio e indústria (no caso dos homens) ou serviços domésticos (no caso
das mulheres). Tal fato se revela nas pesquisas que são feitas pelas escolas da
região e que são usadas para subsidiar as ações educacionais vinculadas ao Projeto
Político-Pedagógico. Como exemplo, observam-se os dados do CMEI Gilda de
Atayde Ramos, como descritos no seu projeto:
A comunidade atendida pelo CMEI constitui-se de famílias que recebem em média
de dois a três salários mínimos. O nível de escolaridade varia entre ensino
fundamental e médio. No que diz respeito à ocupação, observa-se um fenômeno
importante na caracterização profissional, a modificação do perfil dos pais, pois,
anteriormente, a grande maioria dos moradores sobrevivia das atividades de
subsistência, como a pesca e a reciclagem do lixo. Essa realidade tem sido
modificada; hoje se identifica, entre as profissões: auxiliar de serviços gerais,
diarista, vendedor, atendente, policial, moto boy, cozinheira, cabeleireira,
comerciante, atendente e auxiliar de obras. “Em relação à religião, observa-se um 15 Muito tem sido dito e escrito sobre São Pedro. Entre nós, professores, há um consenso de que é muito bom trabalhar em São Pedro, lugar de muitas escolas e creches, fato esse que se revela nas narrativas: “ Eu amo trabalhar aqui” (LUCIANA, professora).
sincretismo religioso, não havendo a prevalência de uma determinada religião,
apesar de observar-se um fenômeno que é reflexo da realidade nacional, ou seja, a
expansão das chamadas “igrejas evangélicas”, como registra o Projeto Político-
Pedagógico do Centro Municipal de Educação Infantil Gilda de Atayde Ramos
(2007).
Com referência à constituição étnica, observam-se crianças predominantemente
negras e pardas. Essa informação é declarada no questionário enviado às famílias,
o que mostra uma maior conscientização das raízes socioculturais e também
confirma um dado observado em nível nacional referente à localização geográfica da
população negra, que está, predominantemente, nas periferias dos grandes centros
urbanos, como é o caso de São Pedro.
Ainda que essa caracterização se refira às famílias que frequentam o CMEI Gilda de
Atayde Ramos, tal perfil pode ser atribuído a toda a região de São Pedro e esse fato
se revela pela proximidade geográfica dos bairros e mesmo dos centros municipais
de educação infantil. Os cinco centros municipais de educação infantil onde a
pesquisa foi realizada guardam uma proximidade geográfica bastante expressiva,
pois, em sua totalidade, não abrangem mais do que um raio de 10km, chegando
alguns deles, a serem separados por não mais do que 100 metros. Tal fato nos
permite afirmar que os aspectos socioeconômicos identificados nas pesquisas
realizadas pelas equipes técnicas dos CMEIs são aplicáveis em toda a comunidade
de São Pedro na qual esses centros estão inseridos.
É importante destacar que, apesar da caracterização feita, observam-se dimensões
da vida que nunca permitem uma narrativa muito pormenorizada. Sendo assim,
acreditamos que muito do que aqui descrevemos sejam apenas aproximações da
realidade que nos serviram no momento da pesquisa e que não é a única narrativa
possível, já que estão em permanentemente processo de transformação na
dinâmica cotidiana.
A chamada Grande São Pedro possui, no total, seis centros municipais de educação
infantil. Desses, apenas o CMEI Anísio Spinola Teixeira não foi pesquisado. O
motivo relaciona-se com a distância dos demais CMEIs, contingência geográfica que
inviabilizou os excessivos deslocamentos que precisamos fazer durante a pesquisa.
Apesar dessa ausência, acreditamos que os cinco CMEIs incluídos em nossa
pesquisa expressam bem os processos cotidianos de formação continuada na
realidade de São Pedro. Os CMEIs selecionados para a pesquisa foram: CMEI Gilda
de Atayde Ramos, CMEI Giorgina da Trindade Farias, CMEI Padre Giovani
Bartesagi, CMEI Magnólia Dias Miranda e CMEI Zilmar Alves de Mello.
Apesar da proximidade dos CMEIs, destacam-se, em suas histórias, aspectos
característicos que dão a cada uma dessas unidades escolares características
próprias. Essas singularidades articulam-se às histórias e lutas políticas
características da constituição da Região da Grande São Pedro, histórias que
fizemos questão de marcar, por seu caráter social e histórico. Passaremos, a seguir,
a fazer uma caracterização dos cinco CMEIs, destacando aspectos de sua história,
trazendo dados de sua estrutura física, bem como de sua forma de organização
atual. Os dados descritos a seguir originaram-se dos Planos de Ação das
Unidades16 e, em alguns pontos, foram necessárias informações adicionais que
conseguimos por meio de narrativas ou documentos complementares, como fotos
presentes nos CMEIs e projetos desenvolvidos com as crianças que visavam a fazer
um resgate da história da escola.
Centro Municipal de Educação Infantil Gilda de Atayde Ramos
Nossa trajetória começa com uma comunidade que tem registrado em sua história de conquista o lixo como pano de fundo, que viveu espaços divididos com moscas, baratas, ratos e outros transmissores de moléstias (Projeto Político-Pedagógico Gilda de Atayde Ramos, 2007).
16 O Plano de Ação é um documento oficial produzido ao final de cada ano letivo pelos membros da comunidade escolar sob a direção do Corpo Técnico-Administrativo (CTA), contendo uma descrição das ações intencionadas para o ano seguinte. Nesse documento, além de uma descrição detalhada de aspectos administrativos, há também os principais projetos de trabalho a serem desenvolvidos pelos CMEIs.
A citação introdutória dessa tentativa de caracterização do contexto
socioeducacional do entorno do CMEI Gilda de Atayde Ramos,17 dá o tom da
dimensão política e social das lutas travadas por essa comunidade para ter garantia
de seus direitos básicos de cidadania, sobretudo o direito à moradia e à educação.
Nesse aspecto, a luta pela escola ocorreu concomitantemente com a luta pela
moradia e, consequentemente, por muitos outros direitos que foram sonegados a
essas pessoas que, na década de 80, vieram fazer suas apostas de vida em São
Pedro.
Como descrito no documento “Plano de Ação”, o movimento de conquista de
atendimento às crianças de 0-6 anos aconteceu no bojo dos movimentos por
melhorias das condições de vida. A força dos movimentos sociais possibilitou o
enfrentamento das demandas crescentes por locais para atendimento às crianças e,
nesse contexto, o CMEI Gilda de Atayde Ramos foi a primeira escola de educação
infantil mantida pelo Poder Público, como destaca o Plano de Ação (2007):
Coube à força organizadora da comunidade o papel de transformar o espaço onde a criação de escolas nasceu do idealismo, coragem e persistência das lideranças. Uma escola que se inicia em um cômodo de madeira cedido pela moradora Graça Andreata, que se incorpora ao movimento de luta para com as famílias que aqui se instalaram e que pudessem contar com a formação educacional de seus filhos, constituindo-se assim a primeira turma de pré-escola. Em seguida a comunidade continua com o movimento de luta para a sede comunitária na qual havia um espaço de sala reservado para as aulas, onde no período da manhã o espaço funcionava como pré-escola e à noite era a vez dos adultos ocuparem a sala para o curso de educação integrada. Este espaço passa a chamar-se ‘Cantinho da Amizade’, assistido pela Secretaria de Ação Social, no qual seus professores trabalhavam sem remuneração à espera de contrato. Alguns anos depois é constituído um novo prédio para a escola ‘Grito do Povo’ atual EMEF “Francisco Lacerda de Aguiar” e o ‘Cantinho da Amizade’ com a educação infantil ocupam o espaço que era da EMEF.
17 Dentre as muitas contradições presentes na história da comunidade de São Pedro, há uma que se refere à tensão existente entre as comunidades de Ilha das Caieiras e São Pedro, fato esse que se manifesta na luta por assumir a autoria do ato fundacional de atendimento educacional na região. Segundo os registros oficiais, o CMEI Gilda de Ataíde Ramos foi a primeira instituição de educação infantil da região, entretanto os depoimentos dos moradores da região revelam que, antes mesmo de existir a intenção pública de oferecer atendimentos às crianças, as mães e moradoras da região já faziam atendimentos, sistemáticos, às crianças. Sendo assim, nos registros oficiais, o atendimento tem início com a oferta feita pelo antigo Cantinho da Amizade e atual CMEI Gilda de Atayde Ramos e, nos registros não oficiais, “narrativas das moradoras”, o atendimento se iniciou com a antiga Creche casulo no bairro de Ilha das Caieiras, atual CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha.
O CMEI Gilda de Atayde Ramos tem uma importância social e histórica singular,
pois prefacia o atendimento educacional institucional “oficial” às crianças da
educação infantil na região de São Pedro,18 significando, do ponto de vista social, a
possibilidade não só de as crianças estudarem, mas também de as mães poderem
trabalhar e melhorar sua condição de vida.
Por uma mulher, a professora Graça Andreatta, a história se inscreve com letras
fortes, e a continuidade das lutas também é feita por outras mulheres professoras e
mães de alunos que têm, no Plano de Ação da Escola (2007), seus nomes grafados
como reconhecimento.
No decorrer da trajetória do CMEI Gilda de Atayde Ramos, merecem destaque algumas pessoas que muito se engajaram no desafio de construir essa escola, buscando a qualidade e o sucesso dos nossos alunos. Podemos citar nomes, mas cientes, de que todos que aqui passaram influenciaram de modo construtivo e significativo a história do nosso CMEI: Graça Andreata, Eugenia Carmem, Ângela Ribeiro, Ivana Raimundo, Terezinha Alves Pereira, Flavia Rodrigues, Silvanete dos Santos, Maria Pereira, Maria José Dionísio Lapa, Luzia de Almeida, Maria da Penha Gon, Geralda de Faria, Rosalina da Arantes Couto, Marlene Ferron.
É importante destacar que muitas dessas mulheres “personagens” ainda continuam
trabalhando na escola e na comunidade, de maneira que isso é um fato
característico da região de São Pedro, “suas histórias parecem que não tiveram
tempo de virar história”, pois estamos a menos de três décadas de sua ocupação, ou
seja, São Pedro é um bairro que ainda continua se construindo, sua história está
continuamente se fazendo.
18 Já nos referimos ao fato de haver uma discordância de datas quanto ao início do atendimento educacional a crianças na região de São Pedro. O CMEI Gilda de Atayde Ramos encontra-se no centro dessa disputa, que se configura uma luta entre uma versão oficial e outra não oficial. Para algumas moradoras, o atendimento educacional a crianças de 0-6 anos teve início com o movimento de ocupação, ainda na década de 80, quando algumas mulheres moradoras iniciaram o atendimento informal, destacando-se, nesse episódio, a figura da Tia Laura, uma mulher sem estudos que tomou a frente da associação e proporcionou atendimento às crianças. Desse movimento inicial, surgiu uma pequena instituição vinculada à Legião Brasileira de Assistência, chamada, inicialmente, de Creche Casulo. Essa primeira creche será depois conhecida como CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha. Sendo assim, o CMEI Gilda de Atayde Ramos é a primeira instituição oficial a oferecer atendimento, mas os registros não oficiais creditam ao CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha o pioneirismo no atendimento, ainda na década de 60.
A participação feminina na comunidade contribuiu para o surgimento de entidades,
como o Movimento das Mulheres Unidas de São Pedro (MUSP), 19 mas as
conquistas do bairro continuaram sempre marcadas por muita luta e esperança
trazidas para o interior da escola. Assim, aquela creche, que até então era o
Cantinho da Amizade, após decreto da Prefeitura, que regulamentava que as
escolas deveriam receber nomes de educadores, passa a chamar-se Gilda de
Atayde Ramos.
Atualmente o CMEI Gilda de Atayde Ramos conta com uma estrutura física arrojada
(Foto 4). Sua arquitetura destaca-se das construções de seu entorno, com doze
salas de aula, um laboratório de informática, uma sala de vídeo, sala de professores,
sala de pedagogos, sala da diretora, dois pátios para atividades dirigidas e educação
física, refeitório, amplo estacionamento e sala de direção. No período vespertino, a
escola conta, além da diretora, com uma secretaria escolar, duas pedagogas,
dezenove professoras, uma é professora dinamizadora. O CMEI atende, no turno
vespertino, a um total de 262 crianças com idades que variam de seis meses a sete
anos.
Foto 4. Vista parcial da entrada do CMEI Gilda de Atayde Ramos
19 A MUSP teve uma participação importantíssima na história da constituição do bairro de São Pedro e, em especial, no movimento de reivindicação de atendimento educacional para as crianças da região. É um capítulo à parte a luta das mulheres de São Pedro.
Centro Municipal de Educação Infantil Zilmar Alves de Mello
Dos centros municipais de educação infantil da região de São Pedro, o Zilmar Alves
de Mello é o mais novo. Traz a marca característica do Sistema Educacional
Brasileiro, ou seja, crescimento empurrado pela demanda, o que, na região de São
Pedro, parece sempre crescente. Fato que se comprova por essa região contar com
o maior número de escolas e creches do Sistema Municipal de Ensino, totalizando
seis centros de educação infantil e seis escolas.
O CMEI Zilmar Alves de Mello funcionou de forma provisória durante,
aproximadamente, quatro anos em uma casa adaptada. Sua construção apresenta
uma tendência que já se evidencia na região de São Pedro, a verticalização das
construções. Funcionando em três pavimentos, atende, prioritariamente, a crianças
de seis meses a seis anos, entretanto, no ano de 2007, teve que abrigar, em caráter
emergencial, uma turma de 1ª série. Esse fato revela, como já havíamos feito
referência, a necessidade que o sistema de ensino tem de adequar-se à crescente
demanda por educação. Nesse caso específico, a escola mais próxima, EMEF
Neuza Nunes de Aguiar, também da Prefeitura Municipal, não teve condições de
absorver essa demanda.
O CMEI atende aos moradores que residem em Nova Palestina, Conquista e
Redenção. Como revelado no Plano de Ação da unidade os moradores, em sua
expressiva maioria, apresentam baixo nível socioeconômico, mas são muito
organizados, o que também é uma marca característica de toda a Região de São
Pedro. Esse fato que se reflete nas lutas por melhorias, tanto no atendimento
educacional como nos demais serviços prestados à comunidade, por exemplo, o de
Saúde. A região conta com uma policlínica de médio porte, além de mais quatro
postos de saúde que atendem aos moradores da Grande São Pedro e localidades
vizinhas.
O CMEI Zilmar Alves de Mello possui uma estrutura física imponente (Foto 5). Essa
é uma característica de quase todas as construções da Prefeitura Municipal,
tornando-se um fato caricato, pois se observam, na paisagem, os contrastes de uma
sociedade que ainda não alcançou a garantia de direitos iguais, sobretudo no que
diz respeito às condições de moradia. Como reflexo dessa assimetria social, podem
ser vistos, ao lado dessas construções imponentes, casebres, alguns construídos
nas mais precárias condições, o que assevera o contraste entre a potência do
Estado e a impotência da população, especialmente a de São Pedro.
Foto 5. Vista parcial/externa do CMEI Zilmar Alves de Mello
Centro Municipal de Educação Infantil Giorgina da Trindade Farias
O CMEI Giorgina da Trindade Faria, como as outras instituições educacionais da
região de São Pedro, surgiu das reivindicações e lutas travadas pela comunidade
local que, em meio ao processo de ocupação de São Pedro, na década de 80,
buscava condições de moradia e, consequentemente, atendimento pelo Poder
Público de necessidades básicas, entre elas, a de oferecer educação às crianças e
jovens.
O funcionamento da escola teve início em 1995, em um espaço provisório,
“improvisado”, atendendo, prioritariamente, a crianças das comunidades de São
Pedro III, Conquista, Redenção, São Pedro IV e Nova Palestina. Esse espaço
provisório funcionou durante aproximadamente 12 anos.
Atualmente, o CMEI Giorgina funciona com uma estrutura adequada (Foto 6),
contando com um total de 680 alunos, divididos em dois turnos, nos horários de 7h
as 11h30min (matutino) e 13h as 17h30min (vespertino). O corpo docente da escola
tem 16 professores no turno vespertino. Também conta com duas auxiliares de
berçário que ajudam as professoras no cuidado com as crianças menores. A
estrutura física é composta por salas de aula, laboratório de informática, sala de
professores, sala de pedagogos, três pátios, um reservado para as crianças dos
berçários, refeitório e sala de direção.
Foto 6. Vista parcial da entrada do CMEI Georgiana da Trindade Farias
Centro Municipal de Educação Infantil Magnólia Dias Miranda Cunha
O CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha é o mais antigo da região e, segundo
narrativas dos moradores, é a mais antiga instituição pública a oferecer atendimento
gratuito à população da Grande Vitória. Sendo assim, esse CMEI se insere na
história das lutas por atendimento em creches e pré-escolas no Estado do Espírito
Santo.
Sua criação data de 1973, um ano antes de ter início o movimento de invasão da
região de São Pedro e, em sua história, há alguns capítulos singulares, pois nasceu
antes da oficialidade, fruto do trabalho voluntário que estava sendo desenvolvido
pela comunidade, representado por moradoras mulheres-voluntárias que se
juntaram para oferecer, mesmo com condições precárias, atendimento às crianças
da região, conhecida, na época, como Ilha das Caieiras e Condusa.
Esse fato histórico é significativo até mesmo por motivos políticos, pois, nos arquivos
oficiais, consta, como primeira instituição educacional de educação infantil na região
de São Pedro, o CMEI Gilda de Atayde Ramos, fato esse contestado pelas
moradoras “professoras” que trabalharam como voluntárias na primeira instituição.20
Segundo elas, o trabalho que vinham realizando, mesmo sem preparação
profissional, foi um fator preponderante para o atendimento institucional, uma marca
que se evidencia nas narrativas das professoras fundadoras, pois algumas daquelas
“mães-voluntárias” acabaram admitidas como funcionárias nas escolas criadas pela
Prefeitura.
O CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha talvez seja o que melhor simboliza esse
movimento social existente na região de São Pedro. Sua localização está às
margens do mangue, próximo a algumas palafitas (estruturas que ainda resistem ao
tempo), cercaniado pelas colônias de pescadores, na rua da associação de
desfiadeiras de siri. A estrutura (Foto, 7) ainda que imponente, mostra a forte ligação
que a escola tem com os movimentos de ocupação e desenvolvimento dessa região.
No CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha, as histórias das professoras moradoras
contam um pouco do início do atendimento na região de São Pedro e revelam,
inclusive, as tensões geradas entre os moradores da Ilha das Caieiras e os
“invasores” que, no início da década de 80, iniciaram o processo de ocupação,
tornando-se por um período de tempo vizinhos indesejados. Nessa escola, dentre os
profissionais, muitos foram alunos da antiga instituição conhecida como Creche
Casulo, mantida pela Legião Brasileira de Assistência. Esse fato é significativo
porque, na direção da escola, hoje, está um ex-aluno que, em sua narrativa, revela:
“No CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha, eu reencontrei minha história” (JOSÉ
RODRIGUES, professor-diretor).
20 Esse capítulo especial da história do atendimento educacional, na região de São Pedro, é narrado pela Tia Laura, uma mulher moradora da Ilha das Caieiras, que iniciou um trabalho voluntário na década de 70, atendendo a crianças da região e que, posteriormente, foi apoiada pelos órgãos públicos, primeiro pela extinta LBA, posteriormente, pela Secretaria de Ação Social e, finalmente, pela Secretaria de Educação.
Foto 7. Vista parcial da entrada o CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha
Centro Municipal de Educação Infantil Padre Giovani Bartesagi
O CMEI Padre Giovani Bartesagi é o menor da região e atende, prioritariamente, aos
moradores dos bairros Condusa e Santo André, mas, devido à proximidade, a escola
atende também aos demais bairros do entorno. Fica localizado na divisa do bairro
São Pedro e Ilha das Caieiras, um bairro com belezas naturais e, sobretudo,
marcado pela vasta produção cultural. É muito conhecida a tradição que ocupa
quase todas as ruas do bairro: a de desfiar os siris que são pescados no manguezal
que contorna toda a região de São Pedro.
O início do atendimento também foi marcado pelas lutas dos moradores. Na
narrativa da professora Cristina, ficam evidentes os conflitos vivenciados pelos
moradores para conseguir a construção do CMEI:
O CMEI foi um restaurante de uma pessoa que morava aí ao lado, antes de existir essa creche, mas foi cedida para a comunidade, para o crescimento de São Pedro. Nessa época, a comunidade tinha uma necessidade muito grande, por as crianças estarem vivendo em situações de risco, porque era um aterro, mangue, lama, então tinha muitas pinguelas e as crianças precisavam de um espaço, por isso, na época, o prefeito alugou este espaço por um determinado tempo, para atender à comunidade, então ele resolveu fazer a compra desse terreno. Um morador ficou com um espaço. Na época, tinha muita criança fora da escola e, no dia 10 de agosto de 1981, o prefeito inaugurou a creche, e foi meu primeiro dia de trabalho como professora [...] São Pedro não é mais um lugar de toda a pobreza. Existe pessoa com dificuldades financeiras, risco social, mas não são mais aqueles casos que existia antes, mas, então, se juntava uma comissão e iam reivindicar os seus direitos e essa necessidade foi a reivindicação do povo, porque começou a chegar mais gente, ter mais invasão, e essas famílias eram de pessoas que tinham muitos filhos. Mesmo existindo o CMEI, o primeiro da Ilha das Caieiras que teve, ele não acoplava todas as crianças que viviam em situações de risco, então foi reivindicado e, na época o prefeito era uma pessoa participativa dentro das comunidades, então ele veio e viu a necessidade de tirar essas crianças desses lugares de risco, porque já haviam acontecido vários acidentes, como crianças que morriam afogadas na pinguela e,
na Ilha das Caieiras, quando era um lugar pequeno, não aconteciam esses casos e, quando acabava acontecendo, a gente ficava meio surpresos e indignados com a situação. Tantas mortes e acidentes nessas pinguelas, principalmente crianças. Foi aí que ele resolveu, então, comprar esse espaço. (CRISTINA, professora).
Na narrativa, fica evidenciada a força da participação política da comunidade ao
reivindicar seus direitos. Na época, a Ilha das Caieiras, por ser o bairro mais antigo,
acabou sentindo fortemente esse movimento de ocupação. O CMEI Padre Giovani
Bartesagi surge nessa tensão para atender a uma necessidade que se apresentava
crescente na época.
Um fato característico desse CMEI é a forte influência sobre os movimentos
socioculturais da região. A influência dessa atividade socioeconômica é sentida no
cotidiano das escolas, pois muitos filhos e netos das desfiadeiras de siri são alunos
do CMEI. Esse fato se materializa no currículo das escolas: o caranguejo, o siri e os
mariscos, de modo geral, são conteúdos quase obrigatórios nos projetos e
atividades das escolas da região.
Esse CMEI, dentre todos, é o único que não possui uma estrutura física adequada
para atender às crianças (foto 8). Há um processo de aquisição de um terreno ao
lado do CMEI para se efetuar a ampliação do prédio e adequá-lo às necessidades
de atendimento às crianças e às condições de trabalho do professor.
O CMEI funciona em dois turnos (7h às 12h e 13h às 18h) e são atendidas 350
crianças, divididas nos turno matutino e vespertino. Conta com um total de 19
professores, uma diretora e quatro pedagogas, duas por turno de trabalho. Além
desses profissionais, o CMEI tem uma equipe de apoio para realizar as atividades
de limpeza, higienização das crianças, secretaria e segurança.
Foto 8. Vista parcial da entrada do CMEI Padre Giovani Bartesage
Os cinco CMEIs referidos acima constituem o lugar da pesquisa, compreendido
enquanto contexto perpassado pelas relações de saberes, fazeres e poderes. No
próximo capítulo explicitamos como habitamos esses espaços-tempos da pesquisa,
procurando compreender as redes de formação continuada que são produzidas no
cotidiano das escolas.
CAPÍTULO II
2 A METODOLOGIA COMO NARRATIVA: HISTÓRIAS DE UMA
PESQUISA E DE UM PESQUISADOR
A compreensão da metodologia, como percurso traçado e trilhado pelo pesquisador
no desenvolvimento da pesquisa, remete a pensá-la como uma narrativa de como se
efetuou o trabalho investigativo, contendo as muitas histórias que o pesquisador
seleciona intencionalmente para tentar explicitar o percurso de sua busca
investigativa e corrobora, ou não, os seus objetivos e questões de pesquisa. Na
pesquisa com o cotidiano, o recurso das narrativas é imprescindível, pois muitos
fenômenos a que estamos expostos somente podem ser compreendidos tentando
traduzi-los em muitas histórias (ALVES, 2001). As histórias dão o contorno da
problemática, ajudando-nos a olhar de forma multifocal, não desconsiderando
nenhum ponto de vista, pois cada ponto de vista é a vista de um ponto (SANTOS,
2006). O homem conta histórias para fazer valer seu ponto de vista, mas, ao fazê-lo,
coloca seu ponto de vista em relação aos muitos outros e, sendo assim, toda
narrativa remete a um coletivo, pois não contamos histórias para nós mesmos, ainda
que, no fundo, seja uma forma de nos autonarrarmos.
A metodologia de pesquisa, compreendida como percurso, comporta uma dimensão
narrativa, pois pressupõe uma trama em que interagem os sujeitos da pesquisa
“pesquisador-pesquisado”, constituindo o contexto da pesquisa, entendido como
espaço-tempo perpassado pelas relações de saberes, fazeres e poderes articuladas,
as dimensões micro, meso e macrossociais e, nesse contexto, também o texto da
pesquisa concebido como espaço-tempo praticado ou da experiência já feita. Nesse
caso específico, os processos de formação continuada.
Assim, nosso esforço foi no sentido de desenhar o percurso da pesquisa, tentando
fornecer ao leitor informações que permitam, também, tecer sua própria
compreensão dos processos de formação continuada vivenciados na trama do
coletivo escolar pelos professores de cinco centros municipais de educação infantil
da região de São Pedro. Como já ressaltamos na introdução, desenvolvemos a parte
da metodologia a partir de cinco cenas, cada qual destacando um aspecto particular
do percurso investigativo.
2.1 CENA UM: INICIANDO O CONTATO COM O CONTEXTO E O TEXTO DA
PESQUISA
A escola é terreno altamente envolvente. Seu cotidiano está povoado de múltiplas
significações que
Produzem ruídos, sons graves, agudos, metálicos, agressivos, pungentes, gritos, sussurros e silêncios, e tem cheiros que falam de fome, de medo, de desejo, de pobreza, de ansiedade, de dor e de prazer. Tudo isso sem falar nos corpos que quando tocados falam de suas histórias, de como foram cuidados ou abandonados (LINHARES; GARCIA, 2001, p. 51).
São acontecimentos múltiplos que constituem a paisagem cotidiana de toda e
qualquer escola, e não diferentemente a dos CMEIs. Nesse sentido, perspectivar
uma pedagogia de laboratório é uma impossibilidade, como também o é uma
pesquisa de laboratório que submete a vida e a experiência à assepsia dos métodos
científicos, sem considerar as múltiplas dimensões da realidade que são
incapturáveis, não cabendo, portanto, no cânone estreito da chamada cientificidade
moderna.
A partir de uma tentativa de aproximação das redes cotidianas, fizemos um exercício
de entrar no CMEI e de nos misturar com os movimentos que compõem a dinâmica
da escola. Nesse exercício, em pouco tempo, estávamos participando dos encontros
de formação, das atividades com as crianças, dos planejamentos, das atividades
coletivas, de reuniões de pais, dos conselhos de classe, de reuniões do Corpo
Técnico-Administrativo (CTA), dos projetos de trabalho, enfim, nossa presença foi
um elemento a mais que passou a figurar o currículo dos CMEIs.21
21 Na educação infantil, uma das lógicas colocadas, talvez mais do que nos outros níveis, é o fato de o currículo não comportar uma linearidade e previsibilidade; fatos e acontecimentos alteram o planejamento. Uma pipa que cai, um passarinho que entra pela janela, um arco-íris , enfim, esses eventos não podem passar despercebidos, aliás, na educação infantil, quase nada passa despercebido, pois as crianças, com sua percepção aguçada, captam todos os movimentos e estão o tempo todo tentando imprimir, nas práticas curriculares, elementos da realidade. Como pesquisador, não pudemos passar despercebido. Ao andar nos corredores, ao participar de atividades, sempre
Estar na escola, sem elevar-se acima das questões colocadas no cotidiano, o
exercício de estar lá, constantemente, preenchendo os espaços-tempos da escola,
não foi muito fácil, pois um pesquisador sempre ocupa um espaço representativo.
Desse incômodo não pudemos nos furtar, pois, por mais que não quiséssemos,
acabávamos por ocupar um lugar. Foi nos conferida uma distinção acadêmica,
muitas vezes pouco cômoda, pois, em momentos de dúvidas, nos momentos de
formação ou em outros contextos, as professoras e pedagogas logo nos procuravam
com propostas do tipo: “O que você sabe sobre esse tema? O que você acha, afinal,
você está fazendo doutorado!”.
Como nos referimos acima, ao pesquisador é reservado um lugar destacado, um
imaginário construído a partir de uma visão de conhecimento que muitas vezes é
hiperdimensionada, pois, por mais que o pesquisador detenha um determinado
saber, esse saber é sempre relativo, já que não há conhecimento no geral, como
também não há ignorância no geral. Santos (2006) ressalta que a relação que
aprendemos a estabelecer com o conhecimento foi baseada em uma concepção que
assume o conhecimento científico como absoluto, capaz de explicar todos os
fenômenos. A razão metonímica e a razão proléptica22 são expressões dessa
perspectiva científica (SANTOS, 2006), pois advoga-se uma razão exaustiva,
completa e totalizadora, fora da qual só há irracionalidade. Assim fazendo, afirmam-
se como conhecedoras pela negação de outras formas de conhecer.
É importante destacar que as duas referidas formas de racionalidade são
complementares, ainda que guardem especificidades no que se refere aos modos
de operação. No que tange às particularidades, a razão metonímica é a forma mais
acabada do pensamento científico, pois é obcecada pela ideia de totalidade sob a
forma de ordem. Segundo Santos (2006), os traços característicos dessa forma de
estava rodeado de crianças. Algumas professoras logo atribuíram essa atenção das crianças ao fato de eu ser homem, o que, de certa forma supria uma carência da figura masculina. 22 Santos (2006) esclarece que a razão metonímica e a razão proléptica são apenas duas das quatro formas de manifestação da chamada razão indolente. As outras duas são: a razão impotente e a razão arrogante. Sobre as duas primeiras, ele afirma: “ A razão metonímica, se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria prima; e a razão proléptica, não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente” (p. 96).
racionalidade são: a) reivindica status de forma acabada e única de conhecimento;
b) dicotomiza os saberes, o que impõe uma conjugação entre simetria e hierarquia,
expressa nos modos seculares de pensar o mundo como polos antagônicos (norte-
sul, homem-mulher, ocidente-oriente, civilizado-primitivo, branco-negro; c) Advoga-
se uma razão exaustiva, completa, acabada, sendo incapaz de aceitar que a
compreensão ocidental do mundo é apenas uma das possíveis compreensões e não
a verdadeira; d) impõe-se não pela via argumentativa, mas, sim, pelo viés da
imposição, expresso no pensamento produtivista e no pensamento legislativo.
Carvalho (2006) ressalta que, no campo educacional, a razão metonimica se
expressa na maneira de organização dos espaços-tempos escolares, na
hierarquização das relações, na disciplina e ordenamento dos corpos e mentes,
enfim nos diversos modos subjetivos de produzir a escola. Entretanto, ainda que
essa estrutura de organização se apresente como homogênea, o cotidiano se
configura como terreno híbrido, propício a formas singulares de produzir a escola.
Importa, então, que a escola e os professores não sejam tomados como objetos,
mas, sim:
Que seja analisada e vivida em sua singularidade, buscando a afirmação de práticas alternativas e a superação das práticas verticais, homogeneizadoras. Importa também que, no interior da escola, seja considerada a pluralidade que a habita em termos de classe, raça, credo, etnia, cultura, etc. (CARVALHO, 2006, p. 48).
A crítica à razão metonímica é a maneira de fazer com que essas formas singulares
de produção da vida sejam reconhecidas e compreendidas, possibilitando, assim,
que haja uma razoabilidade entre diferentes maneiras de conhecer e conceber a
realidade. A critica à razão metonímica encontra, na sociologia das ausências, seu
principal referente, por meio de um trabalho de busca por aquilo que foi
invisibilizado. Assim, realiza-se a transformação de saberes, antes desconsiderados,
em saberes credíveis. Trata-se, portanto, de transformar objetos impossíveis em
possíveis e, com base neles, transformar a ausência em presença.
No que se refere à razão proléptica, Santos (2006), de igual modo, procura fazer
uma descrição de suas principais características: a) funda-se na ideia da
monocultura do tempo linear, o que remete à ideia de futuro certo e de progresso, o
futuro é tudo de bom; b) opera no nível das expectativas por uma recusa a viver o
aqui e agora, “desperdício da experiência”, uma aposta alta no amanhã, sem um
investimento consistente no hoje; c) ambiciona o domínio da história por meio da
planificação do futuro.
Carvalho (2006) ressalta que a crítica à razão proléptica se efetua pela via da
sociologia das emergências, um trabalho que reside no esforço de substituir o tempo
vazio do futuro por um presente de possibilidades. No campo educacional, remete a
pensar o cotidiano como um amplo e múltiplo campo de possibilidades onde os
sujeitos praticantes das escolas podem produzir sua experiência, imprimindo à
história contornos diferenciados. Buscam-se valorizar os saberes e fazeres dos
professores, entendendo que há um amplo campo de experimentação e produção
de práticas alternativas. Assim:
A sociologia das emergências é a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas. Enquanto a sociologia das ausências amplia o presente, juntando ao real existente o que dele foi subtraído pela razão metonímica, a sociologia das emergências amplia o presente, juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que ele comporta [...] (SANTOS, 2004, apud CARVALHO, 2006, p. 51).
Contrapondo-se à perspectiva científica que distingue e descarta saberes que não
se enquadram no cânone estreito, a razão cosmopolita (SANTOS, 2006) busca uma
visão mais razoável de saberes, propondo uma “ecologia de saberes”, em que as
diferentes formas de saber entram em um jogo, estabelecendo pontos de contato e
alargando limites. A crítica sustenta-se na incapacidade que a razão metonímica e a
razão proléptica têm de estabelecer diálogos com outras formas de saberes.
A partir dessa nossa compreensão sobre a necessidade de produzir uma pesquisa
tendo em consideração a multiplicidade de saberes/fazeres presentes no cotidiano,
efetuamos o mergulho no cotidiano dos cinco centros municipais de educação
infantil. Como já destacamos, a princípio, nossa entrada provocou-nos
estranhamentos, entretanto, à medida que fomos estabelecendo contatos mais
frequentes com as professoras, com as pedagogas, com os alunos, com os
funcionários da escola e com a comunidade em geral, fomos diminuindo esse
sentimento de estranhamento, mas compreendíamos que, por mais que nosso
esforço fosse o de diminuir a distinção e a separação entre pesquisador e
pesquisado, não conseguiríamos passar despercebido, ou seja, nossa presença
provocava e evocava comportamentos diferentes.
Em relação à consideração às múltiplas formas de saberes e fazeres, de início,
vivenciamos o conflito de ajustar nosso olhar ou aguçar nossa percepção para
aumentar nossa compreensão. Como ressalta Von Foerster (1996), citado por Perez
(2001), o olhar também é crivado de determinações histórico-sociais. Precisamos
exercitar uma forma de olhar para o cotidiano de um modo mais ampliado, para que
possamos perceber nuances, pistas, indícios que nos levem a uma compreensão
das redes de subjetividades que são tecidas e, também, como essas redes têm a
potência de produzir outras lógicas e outros conhecimentos, diferentes daqueles que
a lente da cientificidade moderna tem produzido sobre a escola e sobre os
professores.
Para ilustrar essa perspectiva de compreensão das redes de produção de
conhecimento no cotidiano, citamos a experiência que tivemos ao participar das
conversas, discussões, informações, debates, etc., nos horários de recreio e lanche
das professoras. Ao chegar ao CMEI, adotávamos três procedimentos rotineiros:
íamos à sala da diretora e pedagogas, passávamos nas salas de aulas e
reservávamos um tempo para sentar na sala dos professores e participar das
conversas. Com o tempo, fomos percebendo que esse espaço-tempo, ainda que
resumido, pois compreendia apenas 20 minutos diários, apresentava-nos um
panorama de como as coisas estavam na escola e no sistema educacional, ou seja,
é na sala dos professores que as percepções desses profissionais se revelam e,
revelando-se, explicitam o pulso da escola.
Em uma dessas experiências, as professoras falavam de suas insatisfações com a
forma como a Secretaria de Educação vinha conduzindo a formação continuada. No
caso específico, elas relataram que teriam que participar de grupos de estudos
divididos por séries (berçários – crianças de 6 meses a 2 anos; maternais – crianças
de 3 anos; jardins – crianças de 3 e 4 anos; e pré – crianças de 6 anos). As
professoras se expressaram da seguinte forma:
Não entendemos a forma de organização da formação continuada, essa divisão por turmas. A educação infantil compreende um período, uma fase de desenvolvimento da criança. Ao invés de separar os professores por série, repetindo a forma de organização do currículo nos CMEIs, deveria ser promovida a interação dos professores das diferentes turmas (faixas etárias) para que, assim, possa provocar a integração na prática pedagógica no cotidiano, de maneira que superássemos a dificuldade que hoje temos de articulação e continuidade do trabalho pedagógico (Anotações feitas na sala dos professores)
A crítica das professoras, expressa na fala citada, ao Sistema Educacional, ainda
tenha emergido em um momento de informalidade, de troca de figurinhas
(AZEVEDO, 2004), sintetiza uma percepção bastante apurada e revela uma
necessidade legítima das professoras no cotidiano, necessitando de um
enfrentamento para que o trabalho pedagógico possa ser desenvolvido melhor. Esse
nível de conhecimento ou percepção dos problemas vivenciados pelos professores
torna-se mais fácil de ser captado por uma metodologia que tenha condição de
aproximar-se do cotidiano das escolas, utilizando-se de diferentes maneiras para
compreender a realidade.
A pesquisa com o cotidiano responde à necessidade de se produzir uma pesquisa
mais afeta às questões-problema dos professores, sujeitos praticantes do cotidiano,
e busca, também, uma necessária articulação desses saberes-fazeres com as
outras formas de saberes-fazeres com o objetivo de produzir uma
complementaridade dialógica. Alves (2001) faz referência a um procedimento
metodológico ao qual chama de “sentimento de mundo”. Na contramão da
perspectiva metodológica que buscou sempre manter um distanciamento, o não
envolvimento com os “sujeitos/campo de pesquisa”, propõe um mergulho com todos
os sentidos na realidade, sabendo que,
É preciso ter claro de que não há outra maneira de se compreender as tantas lógicas do cotidiano senão sabendo que estou inteiramente mergulhada nelas, correndo todos os perigos que isso significa. É preciso, assim, buscar saber sempre os meus tantos limites (ALVES, 2001, p.16).
Na pesquisa com o cotidiano, a dilatação do cânone epistemológico se opera por
meio das redes de subjetividades cotidianas que efetuam uma dilatação dos
contornos teóricos, provocando uma reatualização permanente do conhecimento. O
cotidiano apresenta-se como um campo inesgotável de conhecimentos, com
contornos sempre provisórios e em franca expansão, o que inviabiliza uma
delimitação previamente estabelecida. A teoria é um produto imperfeito, provisório e
relativo do cotidiano. No limite da teoria são produzidas outras/novas teorizações. O
cotidiano é o palco onde se travam diuturnamente disputas que envolvem
negociações de sentidos e consequentemente se produzem novas epistemologias.
Ninguém está imune à imprevisibilidade do cotidiano, pois a prática atualiza a teoria,
passando-a a limpo. Quase sempre, é do mergulho que efetuamos que emergimos
com novos/outros fôlegos, querendo ver mais coisas do que até então. O cotidiano é
provocativo e, como não se apresenta de forma homogênea, previsível,
categorizável, ele sugestiona um movimento intermitente de busca por
compreensão, o que nem sempre é possível a partir de metodologias convencionais.
A não convencionalidade do cotidiano se expressa na autorização para utilização de
uma pluralidade metodológica, traduzida na expressão de Certeau (1994) “mil caças
não autorizadas”. Ao entrar no cotidiano, ainda que tenhamos um projeto com um
desenho metodológico bem esquadrinhado, a dinâmica cotidiana redesenha e
imprime à pesquisa um movimento diferente, muitas vezes mais lento, outras vezes
mais rápido. Como pesquisadores, somos convidados a compreender essa lógica
que foge e se diferencia da lógica teórico-metodológica que estabelecemos. Ou nos
submetemos a essas lógicas, para tentar compreendê-las, ou nos afastamos,
provocando uma incomensurabilidade dialógica. Como ressalta Ferraço (2004), ou
nos envolvemos nessas redes cotidianas deixando-nos muitas vezes emaranhar
nelas para assim aprender com esses nós, ou ficamos de longe, teorizando sobre o
cotidiano.
2. 2 CENA DOIS: DE MÉTODO E METODOLOGIAS, FAZENDO O CAMINHO AO
CAMINHAR
A ideia de método pressupõe, a princípio, dois pontos que historicamente parecem
incongruentes. O primeiro e, o mais assente entre os pesquisadores, é tomar o
método como cânone, como dogma, como receita, como procedimento, como algo-
ritmo. O método, na acepção mais positivista, é inquestionável, repetido quantas
vezes for pelos mais diversos pesquisadores, desde que obedecidas as etapas
prescritas, tem-se o mesmo e invariável resultado.23 Outra concepção de método o
toma como processo e tal visão o concebe como estratégia criativa, capaz de
renovar-se, tornando-se apenas um exercício de atenção/vigilância epistemológica.
O método, nessa segunda perspectiva, não é, necessariamente, o instrumento de
captura da realidade, que enquadra e emoldura a realidade, subjugando-a,
colocando-a em análise, pois não pode ser o redutor da realidade. Deve, ao
contrário, ampliar o cânone e permitir maior mobilidade e compreensibilidade. Nesse
sentido, o método, na perspectiva da pesquisa com o cotidiano, tem como sinônimo
a tática. A esse respeito, Certeau (1994, apud OLIVEIRA,2001) ressalta:
As estratégias são as ações e concepções próprias de um poder, de um instituído. Na gestão de suas relações com o seu ‘outro’, os sujeitos reais, a princípio submetidos a estes poderes, mas potencialmente ameaçadores em suas ações instituintes [...] tática são as ações calculadas pela ausência de um lugar próprio [...] considerando que ao fazerem uso dos espaços, ocasiões e possibilidades encontradas nas ‘lacunas’ das estratégias dos poderosos [...] os ‘fracos’ estão realizando operações de usos sobre os produtos do sistema.
Nesse sentido, as táticas remetem às possibilidades de usos e consumos que o
pesquisador faz dos instrumentos e das teorias para compreender a realidade,
pressupondo uma postura que é sempre política, mesmo que tal densidade política
apareça de forma sub-reptícia, entrelaçada com questões que aparentemente não
são políticas, mas têm uma questão política escondida (DERRIDA, apud
LINHARES; GARCIA, 2001). Assim, o método, como tática, representa uma
cartografia das possibilidades, entretanto não se configura como uma rota segura,
com todas as prescrições (local de embarque, hora do embarque, lugar a ocupar na
viagem e destino previsível). O método como tática não é uma camisa de força,
constitui-se num roteiro, uma referência para possibilitar uma maior transitoriedade
23 O positivismo parte de três premissas básicas. Primeira premissa: a sociedade humana é regulada por leis naturais", leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humana”; segunda premissa: a metodologia das ciências sociais tem que ser idêntica à metodologia das ciências naturais, posto que o funcionamento da sociedade é regido por leis do mesmo tipo das da natureza"; 3ª premissa: da mesma maneira que as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízos de valor, de ideologias políticas, sociais ou outras, as ciências sociais devem funcionar exatamente segundo esse modelo de objetividade científica.
nos espaços-tempos investigativos, não pode resumir-se à aplicação de técnicas,
também não é subsumido ao percurso.
A partir dessa perspectiva de compreensão, buscamos nos inserir no cotidiano sem
um percurso definido. Interessava-nos ter contato com cada professor, podendo,
desse contato, perceber como eles desenvolviam sua prática pedagógica, ouvir
suas aspirações, seus desafios, suas queixas e também suas realizações, porém,
nosso foco de atenção concentrou-se nas narrativas referentes aos processos de
formação continuada que eles vivenciavam no cotidiano, tentando extrair desses
processos as maneiras como os professores se articulam no coletivo para produzir a
docência e se formar continuamente.
Como já ressaltamos, ao chegar ao CMEI, tínhamos o cuidado de ir até a sala da
diretora e da pedagoga, depois passávamos nas salas dos professores e
conversávamos com as professoras e com os alunos e, no trânsito de uma sala a
outra, também falávamos com os demais funcionários da escola. Nosso pensamento
inicial foi ouvir cada professor individualmente e, ao mesmo tempo, participar dos
momentos de formação continuada estruturados pela escola, mas essa nossa ideia
foi aos poucos abortada. A diretora e a pedagoga concordaram que participássemos
do cotidiano, com a ressalva de que não poderiam modificar a rotina para que
fizéssemos nossa pesquisa. Assim, tínhamos que nos adequar aos espaços-tempos
da própria escola.
Com o desenvolvimento da pesquisa, após várias visitas aos CMEIs, chegamos à
conclusão de que o melhor seria aproveitar as oportunidades que apareciam. A
partir de então, fomos cotejando os professores nos momentos que eles tinham
disponíveis. Nesse esforço para ouvir, fomos elaborando algumas estratégias.
Percebemos que os momentos de planejamentos nem sempre eram sistematizados
pelas pedagogas ou pela diretora. Assim, algumas vezes, utilizamos esse momento
para ouvir as narrativas e, como eram momentos coletivos por turma (as professoras
do pré, as professoras do maternal, etc.), tivemos que ouvi-las coletivamente. Em
outros momentos, aproveitamos o intervalo de um turno para o outro, já que muitos
professores ficavam na escola para trabalhar no outro horário. Também
conseguimos marcar alguns horários com algumas professoras que se
disponibilizaram para nos ouvir em outro horário.
Esses ajustes, que fomos aos poucos fazendo para nos adequar à dinâmica do
cotidiano, acabamos por compreender que faziam parte do próprio desenvolvimento
da pesquisa. Como ressalta Morin (1999), todo empreendimento investigativo
comporta riscos (im)previsíveis e necessários. Pesquisar é não fechar-se ao
inesperado, à surpresa, à dúvida, à incerteza. Outro aspecto fundamental da atitude
investigativa é a capacidade de olhar a realidade em uma perspectiva múltipla.
Segundo Morin (1999), a realidade é complexa e cada fenômeno responde na língua
em que é perguntado, comportando uma infinidade de possíveis respostas
“verdadeiras”, o que remete a uma pluralidade metodológica.
Morin (1999) ressalta que a história do desenvolvimento do pensamento científico,
em seus capítulos, “não tão metódicos”, revela que o conhecimento se desenvolve
por processos sub-reptícios, muitas vezes na contramão dos procedimentos
metodológicos clássicos da ciência. A título de exemplo, destaca saberes produzidos
fora do cânone estreito da razão arrogante (SANTOS, 2006), saberes produzidos
por pesquisadores de bom senso. Dentre esses, a École des Annales, que por sua
vocação transdisciplinar, acrescentou à história, além da dimensão antropológica e
sociológica, a dimensão política e econômica, possibilitando, assim, uma nova
história. Segundo ele:
A história das ciências não se restringe à da constituição de proliferação das disciplinas, mas abrange, ao mesmo tempo, a das rupturas entre as fronteiras disciplinares, da invasão de um problema, de uma disciplina por outra, de circulação de conceitos, de formação de disciplinas híbridas que acabam tornando-se autônomas; enfim, é também a história da formação de complexos, onde diferentes disciplinas vão ser agregadas e aglutinadas. Ou seja, se a história oficial da ciência é a da disciplinaridade, uma outra história, ligada e inseparável, é a das inter-poli-transdisciplinaridades (MORIN, 1999, p. 107).
Nessa perspectiva, o método é tão somente a consciência do que se pretende
conhecer, porém sem garantia alguma de que se alcançará; nem tampouco o melhor
caminho a seguir; é tão somente “a consciência do percurso”. Não é tanto ponto de
partida, mas antes lugares de chegada, o que remete a uma atitude retrospectiva.
Assim, “[...] fazer o caminho ao andar, é o relançar constante do pensamento, rumo
a essa linha difusa e sempre a haver que é a imaginação de um horizonte” (NUNES,
2005, p. 35).
A necessidade de constituir um método para poder compreender as tensões
geradas no desenvolvimento do processo de formação continuada com os
professores no cotidiano da escola e, em particular, a compreensão das redes
cotidianas de formação docente explicitadas nas narrativas dos professores supõe
uma pluralidade metodológica, como a proposta por Alves (2002, p. 290), em que o
cotidiano é concebido como espaço-tempo “[...] das culturas híbridas [...] da
mediação cultural e política [...] da hibridação, da diferença, da negociação, da
tradução e do entre-lugar [...] da polifonia, do dialogismo [...] da narração [...], da
complexidade”. Nessa perspectiva, o saber/fazer docente, como epistemologia da
prática, extrapola a lógica da racionalidade técnico-científica e se assenta também
no campo da ética, no campo da estética e no campo da linguagem, frutos da
atividade material humana.
Sendo assim, o estudo objetivou compreender as lógicas presentes nas práticas
cotidianas, sobretudo nos processos de formação continuada com os professores,
manifestos em suas próprias narrativas. Dessa forma, procuramos perceber, nas
narrativas, elementos que potencializassem práticas emancipatórias, aspectos que
ligassem a dimensão micro à macro, percebendo a dimensão política dos saberes e
fazeres cotidianos. Buscamos, enfim: compreender como os professores
mobilizam e fazem usos dos saberes e produzem novos/outros saberes-
fazeres; tentamos demonstrar as táticas que os professores utilizam para
oferecer alternativas às propostas oficiais, estabelecendo redes de formação
que acabam sendo marginais, mas que se mostram mais significativas para os
professores; captar movimentos de compartilhamento e formação mútua, a partir do
estabelecimento de redes; perceber movimentos criativos e criadores produzidos
dentro da escola como manifestações instituintes; mapear no cotidiano com os
professores, esses múltiplos fluxos que produzem a escola, a partir de suas
experiências de se constituir professoras.
A pesquisa com o cotidiano busca subverter a lógica que somente concebe os
professores como objetos de nossas pesquisas e, sendo assim, buscamos
potencializar o desenvolvimento do protagonismo do professor, sobretudo nos
percursos discursivos de suas próprias narrativas, tentando colocá-lo no lugar da
autoria, na produção de um saber sobre si mesmo. Ao narrar sua experiência de
constituir-se professor, inserido em um coletivo institucional, pudemos estabelecer
pontos de contato entre as múltiplas experiências, possibilitando, assim, um diálogo
a partir de lugares de experimentação profissional, o que remete à insuspeitável
determinação do coletivo, pois somos professores sempre no plural, ainda que
desenvolvendo práticas pessoais. Sobre essa marca característica da pesquisa com
o cotidiano, Alves (2002, p. 283) ressalta:
Somos aprendizes permanentes do respeitar os outros enquanto legítimo outro [...] a decisão de se desenvolver a orientação coletiva tem a ver com uma necessidade político-epistemológica: para desenvolver a pesquisa do/no cotidiano, precisamos do olhar do outro, o que cria um movimento irreversível de solidariedade epistemológica.
Além da necessidade do olhar do outro, Alves (2002) sublinha mais outros três
princípios orientadores da pesquisa com o cotidiano. São eles: a) a questão da
diferença. A esse respeito questiona: como ver o outro como legítimo outro, sujeito
de conhecimentos válidos e necessários?; b) a questão da escrita. Nesse sentido,
questiona: como escrever diferentes textos para múltiplos públicos? O que é ser
autor de um texto? O que significa autoria?; c), por último, a questão do entrelugar.
A esse respeito ressalta:
Para saber como se traçam conhecimentos nos tantos cotidianos em que todos vivemos, é preciso inverter e juntar o que já sabíamos, traçando palavras, atos, sujeitos: concretoabstratoconcreto, partetodoparte, espaçotempo, [...] alunoprofessoraluno [...] de modo permanente, portanto, buscando compreender nossos tantos entrelugares do viver cotidiano, vamos tendo que buscar e compreender nossos tantos entrelugares de pesquisa que enfrentamos nos entrelugares teóricos em que nos colocamos, lugar de fronteiras que de nós exigem que traduzamos nossos princípios e os repensemos e expandamos a partir de negociações inevitáveis, o que nos faz em processo contínuo de hibridização (ALVES, 2002, p. 290).
Nessa perspectiva, a pesquisa com o cotidiano busca uma compreensão da
realidade em uma teorização que se pretende ascendente, distinguindo-se da
perspectiva clássica de pesquisa que, historicamente, se caracteriza por uma
teorização em movimento descendente, do alto para baixo, do Norte para o Sul, do
Oriente para o Ocidente, do geral para o específico, do macro para o micro e,
finalmente, da teoria para a prática. E, também,
Pensar o cotidiano e erguê-lo à condição de espaço e tempo privilegiado de produção da existência e dos conhecimentos, crenças e valores que a ela dão sentido e direção, considerando-o de modo complexo e composto de elementos sempre necessariamente articulados, implica em não poder dissociar a metodologia em si das situações estudadas por seu intermédio. Essa talvez seja uma das forças dessa metodologia, que não coloca como partes distintas as diversas dimensões que envolvem a pesquisa, ou seja: a teoria e a prática; os saberes formais e os saberes cotidianos; o modelo social e a realidade social; os dados relevantes e os irrelevantes cientificamente; os observadores e os observados; o conteúdo e a forma; etc. Ao trabalharmos nessa perspectiva, assumimos a realidade estudada em sua realidade complexa (MORIN, 1995), revelando seu caráter multifacetado, abdicando de procedimentos dicotomizadores e redutores de sua riqueza, com seus ônus e bônus (OLIVEIRA, 2001, p. 41).
Sobre a dificuldade teórico-metodológica de pesquisar com o cotidiano, em especial,
dos perigos de se tomar o cotidiano como objeto de análise teórico-metodológica,
Ferraço (2003, 162) ressalta:
De modo geral, uma metodologia de análise ‘a priori’ nega a possibilidade do ‘com’, do ‘fazer junto’. Resulta em uma metodologia que antecede, que pensa antes o que poderá acontecer. Possível, mas não passam de previsões, como as do tempo... A identificação objetiva de ‘categorias’ e/ou ‘temas’ de análise dos cotidianos só é possível, só tem sentido em estudos e pesquisas ‘sobre’ os cotidianos. Pesquisar ‘sobre’ traz a marca da separação entre sujeito e objeto. Traz a possibilidade de identificarmos o cotidiano como objeto em si, fora daquele que o estuda, que o pensa ao se pensar. Traz a marca do singular, do identificável em sua condição de objeto. Pesquisar ‘sobre’ aponta a lógica da diferença, do controle. Resulta no sujeito que domina, ou crê dominar, o objeto. Um ‘sobre’ o outro, que ‘encobre’, que se coloca ‘por cima’ do outro sem entrar nele, sem o ‘habitar’. Pesquisar “sobre” sugere a intenção de poder falar do outro a partir do outro, isentando-nos desse outro, colocando-nos separado desse outro.
A perspectiva de trabalhar com e não sobre trouxe um desafio particular para a
pesquisa, inclusive para os processos de formação com os professores, por meio de
suas narrativas, pois, historicamente, a formação docente estruturou-se a partir de
uma lógica modelar, em que os professores são colocados no lugar do não saber.
Em tais propostas, privilegia-se a transmissão passiva de conhecimentos, o que
sempre foi feito pelos especialistas. Pensar em outras possibilidades de formação
com os professores traz como desafio complementar a concepção do professor
como sujeito portador de diferentes e múltiplos saberes/fazeres ligados à sua
prática.
2. 3 CENA TRÊS: OS CONTORNOS DA PESQUISA
O campo de investigação na pesquisa com o cotidiano nem sempre pode ser
delimitado. Quando somos imersos no cotidiano da pesquisa, temos a impressão de
que há uma força centrípeta impulsionando os contornos delimitatórios do campo
para mais longe, o que impossibilita os enquadramentos do campo, com limites
fixos. Em nosso caso, logo percebemos que a delimitação do campo era
problemática, pois pesquisar cinco centros municipais de educação infantil, tentando
compreender, por meio das narrativas, os processos de formação continuada
vivenciados pelos professores e, ainda, perceber como esses processos de
formação se articulam à perspectiva de construção de um projeto coletivo de
sociedade.
Considerando a impossibilidade de delimitar um campo, buscamos estabelecer os
contornos da pesquisa, que compreendia cinco centros municipais de educação
infantil, nos quais passamos um período de 11 meses. Por meio de acordos com o
corpo técnico administrativo (CTA), participamos dos mais diferentes momentos da
escola: horário da entrada, reuniões de pais, conselho de escola, conselho de
classe, planejamento pedagógico, formação continuada, horário de recreio,
atividades pedagógicas. Nesses diferentes contextos de participação, estivemos
atento às pistas e indícios que nos levassem ou simplesmente nos fizessem
reconhecer os processos de formação continuada vivenciados pelos professores.
Como nos interessava compreender processos de formação continuada vivenciados
pelos professores no cotidiano, utilizamos, fundamentalmente, como texto principal,
as narrativas desses professores. O tempo todo estivemos atento àquilo que as
professoras24 falavam sobre sua prática pedagógica e, principalmente, sobre o
significado que a formação continuada tinha em seu desenvolvimento profissional.
Nesse exercício de buscar indícios, pistas e sinais, fomos conversando com os
professores nos espaços-tempos do cotidiano, fomos identificando e nos
identificando com eles que se mostravam mais susceptíveis a nos emprestar suas
histórias por meio de narrativas.
No desenvolvimento da pesquisa, buscamos estabelecer uma unidade de frequência
que nos permitisse ouvir um número significativo de narrativas, mas também
estivemos atento à relevância das narrativas para a compreensão de nossas
questões de estudo, ou seja, buscamos um equilíbrio entre unidade de frequência e
unidade de contexto.25 Pela impossibilidade de ouvirmos todas as professoras
procuramos selecionar as narrativas que maior aproximação estabeleciam com
nossa questão de pesquisa. Estivemos alerta também à variabilidade presente nos
textos narrativos, para que assim pudéssemos abordar nossa temática a partir de
um espectro mais amplo.
Ressaltamos, mais uma vez, que buscamos ouvir um número significativo de
professoras para a composição do corpus da pesquisa, visando a obter diferentes
dimensões dos processos de formação continuada. Assim, extraímos as narrativas
mais significativas para nossa questão de pesquisa. Nesse esforço, conseguimos 32
professoras, um diretor, dois pedagogos e um membro da comunidade. Foram seis
professoras do CMEI Padre Giovani Bartesage, seis professoras do CMEI Magnólia
Dias Miranda Cunha, seis professoras do CMEI Giorgina da Trindade Farias, cinco
professoras do CMEI Gilda de Ataíde Ramos e nove professoras do CMEI Zilmar
Alves de Mello. As narrativas dessas professoras nos permitiram a produção deste
trabalho de pesquisa. É importante destacar que os espaços-tempos da escola não
são facilmente penetrados e que, quando nele estamos, temos que nos submeter às
suas lógicas para tentar compreendê-las. Nesse esforço, tivemos que estabelecer
24 Procuraremos fazer referência à professora, pois nossa pesquisa teve, como universo, os profissionais que atuam na educação infantil e que, em sua expressiva maioria, é constituída de mulheres/professoras. Ressaltamos que, quando necessário, utilizaremos a referência a professor, reportando-nos a uma generalização em torno da profissão de professor. 25 Unidade de frequência refere-se à quantidade de narrativas que se consegue coletar; já a unidade de contexto reporta-se à significância dessas mesmas narrativas para as questões de investigação.
nossas próprias táticas para viver a pesquisa com o cotidiano, construindo nossos
próprios percursos investigativos.
Assim, os professores que ouvimos desenvolvem suas práticas nos cinco centros
municipais de educação infantil da região da Grande São Pedro. A opção por essa
região deve-se à nossa experiência de trabalho nos CMEIs durante oito anos, em
um projeto de intervenção curricular.26 Outro aspecto determinante de nossa opção
refere-se às características socioculturais da região e seu entorno. São Pedro como
local de intensas lutas por direitos sociais e humanos. Foi, inclusive, no passado,
conhecido como “lugar de toda pobreza”. A população constitui-se, em sua maioria,
de pessoas de classe popular que, devido às condições sociais e econômicas,
tiveram e ainda têm sonegada uma série de direitos, que impedem os moradores do
pleno exercício da cidadania.
Os centros municipais de educação infantil inscrevem-se nesse movimento da
história local por melhorias nas condições de existência. Sendo assim, acreditamos
que, no cotidiano dos CMEIs, ainda persistem elementos que configuram
movimentos de resistência, com o objetivo de melhorar as condições de atendimento
educacional e também em todos os demais âmbitos sociais (moradia, saneamento,
segurança, lazer, etc.).
Nessa direção, cada professor foi provocado a “puxar da memória” recordações dos
percursos de formação ao longo da carreira e as experiências em curso no
cotidiano. Tal processo exigiu uma atitude reflexiva diante dos desafios colocados
pela prática, concorrendo para uma proliferação de investimentos na constituição de
um corpo de conhecimento que desse suporte à ação docente. Nesse exercício,
percebemos não práticas extraordinárias, mas processos de produção e criação
cotidianos revelados no humilde e contínuo envolvimento que as professoras
explicitaram em suas ações, expressos em atitudes como a da professora Marta,
que nos procurou e disse: “Eu preciso contar minha história, pois ela, sem dúvida, irá
inspirar muitas pessoas a continuar a lutar pelos seus sonhos”. Mais tarde, quando
26 Trata-se do Programa de Educação Multicultural de Vitória (PROEMV), que se desenvolveu no período de 1996-2003. Tinha como objetivo revitalizar a Proposta Curricular da Educação Infantil, por meio da articulação de práticas que privilegiassem os aspectos socioculturais característicos da região de inserção do CMEI, sobretudo os elementos da cultura infantil.
tivemos a oportunidade de ouvi-la, de fato, sua história revelou a luta de uma mulher
trabalhadora que, de auxiliar de serviços gerais (ASG), conseguiu estudar e se
formar professora. Lutando contra as condições adversas e galgando degrau por
degrau, concluiu a graduação, já com uma idade avançada, com planos de fazer
pós-graduação e, com orgulho, exerce a profissão de professora na mesma escola
que um dia havia trabalhado em seu primeiro emprego como berçarista. Eis a
narrativa da professora Ana Marta:
Quando eu entrei na Prefeitura, em 86, eu nunca tinha trabalhado fora. Meu esposo colocava todo mundo na Prefeitura, mas ele me disse que eu não ia aguentar, porque tinha que dar duro, e eu falei: ‘Me coloca para varrer rua’.Então ele me colocou para ser servente. Naquela época se chamava servente, nem sabia o que era aquilo, aí me colocou. Não existia berçarista naquela época, mas eu me sentia tão mal, porque eu nunca tinha trabalhado, eu me apavorei, me senti mal com o meu primeiro emprego. Aí comecei a estudar na escola do Bairro República. Quando eu entrei, eu só tinha a quarta série, mas fiz o supletivo, estudei até a oitava série, depois eu fiz o concurso de berçário e passei, depois veio aquela febre, que tinha que ser professor. Eu fui estudar, fiquei quatro anos, reprovei um, entrava na escola de manhã e, à tarde, trabalhava. Eu gosto muito de ajudar as pessoas, eu fazia o almoço, o pessoal ficava encantado, os professores, as pedagogas. Aí, em 99, não tinha mais magistério e eu fui a última do curso a formar, aí passei pra Pedagogia, fui fazer, aí me formei. Não é brincadeira trabalhar e estudar, ainda mais de noite. Na hora da merenda, eu ia na sala dos professores pra eles me ensinarem Matemática. Isso ainda era no magistério, mas fui muito importante mesmo e, ano que vem eu vou fazer a pós. É muito importante o estudo.
A história da professora Ana Marta, demonstra de forma concreta, que “quem conta
o fazer aumenta no coletivo o saber”, e que não somos professores individualmente.
Acreditamos ser possível a emergência e/ou insurgência de tais movimentos, por
meio da constituição de comunidades compartilhadas (CARVALHO, 2006) de
saberes/fazeres, localizadas nos cotidianos das escolas, tendo como material
fundamental de formação as narrativas das práticas dos professores.
O campo das narrativas tem a vitalidade de provocar no coletivo institucional um
autoconhecimento por reconhecimento dos professores, sujeitos/autores da prática
educativa, como sublinha Perez (2005, p. 1):
Resgatar, memórias e narrativas no cotidiano da escola, afirmando-a como lugar de pertencimento, é reatualizar oportunidades preexistentes e desenvolver possibilidades latentes de recriar, através da prática educativa, a história local a partir do lugar _ realidade social experimentada diretamente, vidas comuns suscetíveis de criar normas locais, normas de solidariedades e oportunidade de realização de uma história diferente.
Nesse sentido, buscamos compreender as ações dos praticantes do cotidiano a
partir de processos de descobertas ou decifragem de acontecimentos e fatos que
por, sua fugacidade, foram desconsiderados ou invisibilizados (SANTOS, 2006) pela
racionalidade moderna. Assim, privilegiamos a constituição de um campo de
investigação onde os sujeitos praticantes da escola, em especial as professoras,
puderam contar suas histórias, intercambiando experiências de si e dos outros,
constituindo um universo relacional propício para a fertilização de fazeres e saberes,
já que somos sempre professores no plural. Assim fazendo, reiteramos o que
expressa Larrosa (1999, p. 22) quando afirma:
O sentido do que somos depende das histórias que contamos a nós mesmos [...], em particular das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal [...]. Talvez nós homens não sejamos outra coisa que um modo particular de contarmos o que somos.
Alves (1998) ressalta que o trabalho de pesquisa com o cotidiano assemelha-se à
tarefa de “despergaminhar” as marcas impressas no verniz da Modernidade sobre a
escola e seus professores, o que exige um esforço sobremaneira, tal como o esforço
de um artífice que, silenciosa e persistentemente, com um pincel, retira camada por
camada as aparências, para encontrar escondido, por debaixo da espessa camada
oficial, as muitas outras pinturas multicoloridas que caracterizam a prática docente.
Nesse trabalho de raspar o verniz com que pintaram as escolas e as práticas dos
professores, fomos surpreendido com a riqueza do material humano e discursivo
que povoa o chão da escola. As narrativas demonstram o quanto os professores têm
procurado produzir uma prática pedagógica comprometida com o desenvolvimento
da educação.
Essa constatação nos remeteu à contradição da discursividade oficial que sempre
buscou/busca atribuir aos professores grande parte do fracasso do sistema
educacional, colocando-os como culpados. Historicamente, os professores foram
vistos na condição de expiadores dos males da educação. (LINHARES, 2000).
Entretanto, apurando-se as “culpas” ou dividindo-as, podemos afirmar que os
professores têm expiado a educação e “levado a culpa no lugar de outrem”. No
cotidiano, percebe-se que essa expiação pedagógica não é sem causa, pois muitos
professores assumem a profissão como um comprometimento que extrapola a
dimensão unicamente profissional, como pode ser percebido na narrativa da
professora Rosa.
Eu tenho 16 anos de magistério e, ao longo desses anos, eu percebi que, para ser professor, tem que ser por amor; se não amar, não fica, porque uma das situações é ter que ter muito controle da situação em relação ao trabalho. Se você não estiver puxando a família, dificilmente ela frequenta a escola, então ‘tem que se virar nos 30,’ como diz o outro. Então, se não tiver amor, não consegue segurar a barra [...] a complicação é em relação, por exemplo, nós, que somos professores, a gente corre no dia-a-dia, tem que dar conta da família, tem que dar conta do esposo, dos filhos, mas eu trabalho porque eu gosto dessa profissão, é por amor mesmo, eu gosto de ver o menino trabalhando, se esforçando, se desenvolvendo, procuro pegar como ele estava comigo até depois no fim do ano, depois eu fico namorando, olhando o que ele fez no início e o que ele está fazendo agora, e eu fico boba, porque eu gosto de ver, eu fico fascinada de ver aquele crescimento tão gostoso, você vê que a criança se sente bem, quando ele está crescendo, quando alguém está, de verdade, desenvolvendo o trabalho com ela. Ela sente quando você gosta dela, e eu trabalho muito com jogos, e isso é uma satisfação muito boa.
A narrativa da professora Rosa revela seu compromisso com o desenvolvimento dos
alunos, o que pode ser percebido pelo sentido de continuidade que atribui à prática
pedagógica. Mas sua narrativa revela também a complexidade que envolve a prática
pedagógica, pois, entre desafios pessoais e profissionais, “tem que se virar nos 30”,
ela vai produzindo sua experiência de ser professora.
2. 4 CENA QUATRO: O EXERCÍCIO DA ESCUTA DAS NARRATIVAS
Ao assumir, como foco da pesquisa, a compreensão dos processos de formação
continuada com as professoras por meio de suas narrativas, foi de fundamental
importância o exercício de escuta de suas histórias sobre o processo de
constituírem-se professoras. A escuta, como procedimento de pesquisa,27 pressupõe
uma atitude ativa em relação à fala do outro, o que requer a consideração do outro
como legítimo outro e não como objeto de nossas teorizações. Isso nos exigiu um
exercício de articulação nos diversos espaços-tempos das professoras. Tivemos que
lidar com a incompatibilidade de agendas. Estivemos o tempo todo à caça das
professoras que quisessem nos contar suas histórias. Algumas vezes realizamos um
27 A escuta, como procedimento de pesquisa, é amplamente utilizada em pesquisa do tipo qualitativa, sobretudo nos estudos relacionados com a história oral. Barbier (1997) emprega o termo “escuta sensível”, referindo-se a uma atitude do pesquisador de compreender o grupo percebendo dimensões não tão perceptíveis aparentemente.
trabalho de cotejamento, de namoro para que parassem e se permitissem falar e ser
ouvidas.
A narrativa encerra em si, a um só tempo, conteúdo e forma da pesquisa, ou seja,
ao narrar suas histórias, os professores vão estabelecendo os contornos do
conhecimento em formação. A tarefa do pesquisador, por sua vez, resume-se ao
que Certeau (2000) chama de “caças não-autorizadas”, o que, em nossa acepção,
diz respeito às táticas utilizadas para que os professores nos contem seus “segredos
docentes”, explicitando-nos as múltiplas dimensões da prática pedagógica e,
consequentemente, os percursos de formação que têm trilhado na sua carreira.
Como táticas para captarmos as narrativas, a princípio, escolhemos os momentos
em que os professores estavam em processos de formação, mas essa nossa opção
logo caiu por terra, pois esses momentos, como não são muitos, estão sempre
“carregados”, com uma pauta extensa, tornando difícil a negociação, a não ser que
nossa participação fosse como especialista formador.28 Fomos percebendo que
nossas caças teriam que obedecer à lógica da caça mesmo, não tendo um momento
fixado para ouvir as professoras. Sendo assim, ficamos, muitas vezes, à espreita,
aproveitando os momentos que sobravam, os momentos em que os professores
“não tinham muita coisa para fazer”, ou momentos combinados com as pedagogas
para que nos cedessem um espaço-tempo para ouvir as professoras. Essas
oportunidades não eram muitas, pois tínhamos que combinar uma série de fatores.
Por termos cinco escolas, tínhamos ainda que articular esses momentos com a
combinação de dias e horários que tivemos que estabelecer com os CMEIs. Os
fatores combinados eram: pauta vazia nos horários de planejamento, algum
problema que impedisse o funcionamento do CMEI, disposição das professoras para
narrar.
28 No CMEI Padre Giovani Bartesage, assumimos esse lugar em um dos encontros de formação previstos no calendário. O CTA pediu para abordar aspectos da constituição do Projeto Político- Pedagógico. Essa experiência foi importante para a compreensão da distinção que existe entre formação com os professores e formação dos professores. O fato de já estar no cotidiano das professoras não foi suficiente para estabelecer a razoabilidade heterológica como proposta por Santos (2006), ou seja por mais que fizéssemos um esforço de não criar uma distinção entre pesquisador e pesquisados, as professoras insistiam em nos delegar um certa autoridade acadêmico-formativa.
Apesar dessas dificuldades, estivemos atento às narrativas para compreender os
movimentos presentes no cotidiano que faziam com que os professores
compartilhassem suas experiências de/em formação continuada uns com os outros,
buscando perceber como as marcas socioculturais peculiares da região de São
Pedro apareciam nas narrativas dos professores ao referirem-se aos alunos dessa
região e verificamos, também, como se configuravam os discursos sobre a tensão
entre os conflitos locais e o contexto social/global.
No que diz respeito à forma de captar as narrativas, como já nos referimos, a
princípio, tínhamos privilegiado os encontros de formação continuada no interior dos
CMEIs, mas, com o desenvolvimento da pesquisa, precisamos ampliar nossos
momentos de captura das narrativas. Com ajuda de recursos tecnológicos,
gravamos as falas das professoras. Posteriormente, fizemos transcrição dessas
falas, buscando construir/tecer, entre os discursos, uma narrativa possível da escola
e das professoras, que objetivou apontar os processos de formação continuada
vivenciados por elas no cotidiano das escolas, identificando as lógicas presentes nos
saberes/fazeres docentes que se contrapõem à lógica única do saber instituído,
“oficial”. Tentamos, ainda, mapear, nas narrativas, as ações de compartilhamento do
saber e formação mútua que potencializassem processos de emancipação.
A respeito da postura do pesquisador, no momento de encontro com os professores
e na escuta de suas narrativas, Dias e Cicillini (2005, p. 3) destacam:
Os encontros constituem momentos de trocas efetivas e de real envolvimento em que histórias se entrelaçam, vozes se cruzam, olhares se mesclam. Pesquisador e formadora, então protagonistas em ação, experimentam total indiferenciação, sendo esperado do pesquisador que, mesmo percebendo esta complexa rede simbiótica que se estabelece nos encontros, possa realizar o movimento de distanciamento reflexivo que lhe garanta o rigor do trabalho: tem de possuir o segredo da distância exata, do equilíbrio preciso entre a proximidade e o afastamento, entre a presença e a ausência [...]. Também se espera do pesquisador uma atitude respeitosa, flexível, espontânea, curiosa, uma forma de conduzir o processo com delicadeza, arte e intuição, desenvolvendo o sensível olhar pensante, capaz de captar o outro, a si próprio e a experiência, na sua largueza maior. Espera-se também que não se esqueça de que os [professores] formadores (as) têm plena autoridade sobre o conteúdo da experiência que desejam compartilhar.
Nessa perspectiva, recorremos à sociologia das ausências, à sociologia das
emergências e ao trabalho de tradução como desenho metodológico possível para
melhor compreender as múltiplas dimensões das narrativas das professoras.
Segundo Santos (2006, apud OLIVEIRA, 2006) o trabalho da sociologia das
ausências apresenta uma alternativa à razão metonímica, e isso é feito pela
valorização da experiência, a partir da crítica benjaminiana,
Que é o fato de a riqueza dos acontecimentos se traduzirem em pobreza da nossa experiência, e não em riqueza, na medida em que a transformação do mundo com base na razão metonímica, desacompanhada que foi de uma compreensão adequada deste levou à destruição e ao silenciamento dos povos e das culturas externos submetidos a ela.
De igual forma, historicamente, a razão metonímica ocupou-se em explicar os
fenômenos no campo educacional; as pesquisas apressaram-se em estabelecer
categorias de análises, esquadrinhando, conjecturando e cientificizando a prática
pedagógica. Tais procedimentos, devido à sua ambição em explicar, não se
ocuparam em viver/compreender29 o cotidiano, desprezando o manancial de
experiência e de conhecimento derivado daí, o que se traduziu em um processo de
silenciamento e invisibilização das múltiplas experiências desenvolvidas pelos
professores, sujeitos praticantes das escolas. Por meio da sociologia das ausências,
pode-se investir no potencial narrativo das professoras, com o objetivo de
compreender os múltiplos processos de produção ativa de ausências, tentando
identificar, paralelamente, as formas criativas e criadoras de táticas e estratégias
usadas pelos professores para se manterem presentes, como sujeitos da ação
docente.
Por sua vez, a sociologia das emergências, no trabalho educacional, estabelece um
patamar propositivo, a partir do que Santos (2006) chama de “Ainda-não”,30 uma
categoria sociológica que encerra em si uma potencialidade infinita, pois
29 Morin (2000) desenvolve uma crítica importante à ciência moderna, principalmente por ela centralizar seus projetos na explicação do mundo e não na sua compressão. 30 Esteban (2003) utiliza essa categoria para relativizar os julgamentos de valor que são feitos nos processos avaliativos, quando se procura fugir do determinismo e do bipolarismo do “saber X não saber”. Potencializam-se as conquistas futuras dos alunos. Assim, o “Ainda-Não Sabe”, estabelece um patamar sobre quaisl novos investimentos poderão ser feitos no presente, tendo em vista o futuro que se quer construir.
É o modo como o futuro se inscreve no presente e o dilata. Não é um futuro indeterminado nem infinito. É uma possibilidade e uma capacidade concreta que nem existem no vácuo, nem estão completamente determinadas [...]. Subjetivamente o Ainda-Não é a consciência antecipatória [...]. Objetivamente, o Ainda-Não é, por um lado, capacidade (potência) e, por outro, possibilidade (potencialidade) (SANTOS, 2006, apud OLIVEIRA, 2006, p. 100-101).
Sendo assim, concebe as lutas e projetos como movimentos que se inscrevem na
história e reúnem condições de tornarem-se realidades assentes a partir do
investimento no presente, especialmente, no manancial de experiências que têm
sido produzidas, que merecem ser reconhecidas como credíveis e multiplicadas por
seu caráter coformativo. No âmbito da pesquisa educacional, a sociologia das
emergências mostra-se bastante profícua, pois sua vocação para produção de
condições possíveis “aqui e agora” vitaliza as práticas pedagógicas, inserindo nelas
o que Freire (1997) chama de esperança permanente de emancipação.
Segundo Oliveira (2006) a relação entre os dois referidos procedimentos
sociológicos, sociologia da ausências e sociologia das emergências, evidencia-se
pela especificidade de cada uma:
A primeira dedica-se ao desvendamento das experiências já existentes, do que já é; a segunda vai se dedicar ao estudo das experiências possíveis, daquilo que ainda não é, mas que amplia o que já é, inserido nele possibilidades e expectativas que ele comporta. Ambas permitem repensar o futuro, relacionando a construção dele aos elementos concretos dessas muitas realidades, radicalizando expectativas assentes em possibilidades reais, superando o idealismo das expectativas falsamente infinitas e universais que a modernidade criou (OLIVEIRA, 2006, p. 102).
Complementar ao trabalho de compreensão e reconhecimento dos saberes-fazeres
dos professores no cotidiano das escolas - “sociologia das ausências” - e da
potencialização das experiências em curso desenvolvidas nas escolas, visando a
produzir o futuro a partir do presente - “sociologia das emergências” - o trabalho de
tradução objetiva estabelecer uma inteligibilidade entre diferentes formas de
conhecimento. A respeito da necessidade de um trabalho de tradução no campo
educacional, principalmente no cotidiano, Oliveira (2006, p. 109-110) ressalta:
Entendo que muitos dos conflitos e questões culturais problemáticas no interior da escola têm a ver com diferenças internas de uma mesma cultura e da ausência de trabalho interno de tradução que permita a tematização delas e a busca de acordos possíveis a
respeito do fazer educativo e algumas de suas premissas. Leituras de mundo diferentes e mesmo antagônicas integram as diferentes culturas, baseadas, sobretudo, em convicções político-ideológicas diferentes, tornadas irreconciliáveis em determinadas circunstâncias [...] tem-se na escola um campo particularmente fértil para a prática da tradução, bem como para ampliação da credibilidade de modos diferenciados de estar no mundo existentes, mas invisibilizados pela modernidade [...] ignoradas pelos educadores e pesquisadores atrelados à razão metonímica. Multiplicar essas experiências ao compreendê-las como pistas e sinais de um fazer pedagógico futuro mais emancipatório e transformá-las crescente e gradativamente.
Sendo assim, por meio da hermenêutica diatópica, combinando os três referidos
procedimentos metodológicos, procuramos apontar, pelas narrativas das
professoras, quais outras lógicas estão presentes nas formas singulares de
produção de saberes/fazeres cotidianos. Assim, recorremos às seguintes
estratégias, utilizando dois momentos distintos: o primeiro coletivo, refere-se à nossa
participação nos encontros de formação continuada no cotidiano dos CMEIs, onde
as professoras tinham oportunidade de refletir sobre os desafios inerentes à
docência e/ou aprendiam sobre novos conhecimentos referentes à sua prática
pedagógica. Nesses momentos, estivemos atento às formas como as professoras
explicitavam suas histórias individuais, inserindo-as no coletivo institucional, e como
esse intercambiamento de experiências constituía a narrativa da escola.
Combinados com as narrativas coletivas feitas nos momentos de formação
continuada, buscamos estabelecer momentos específicos de narrativas individuais,
permitindo-nos, assim, identificar como os professores narram, em contextos
pessoais, fatos e histórias comuns à docência.
Combinando esses dois momentos de narrativas, individuais e coletivas, pudemos
perceber como os professores articulam suas experiências cotidianas no movimento
mais amplo da sociedade. Pudemos observar também a intrincada rede de relações
existente entre as dimensões micro, meso e macro, pois acreditamos que as formas
pessoais de perceber o mundo se inscrevem nas formas plurais de constituição do
mundo.
Carvalho e Simões (2002) ressaltam que o movimento de inscrever a história
particular de cada sujeito na histórica coletiva, de inscrever o instituinte no instituído,
é um movimento ambivalente, como uma via de mão dupla, remetendo, assim, ao
campo do imaginário, pois:
A sociedade se estabelece e se institui (instituições) sobre as dimensões do econômico-funcional, mas também pela dimensão do simbólico. Assim, o real, o racional e o simbólico se entrecruzam e interpenetram na formação do imaginário social que fornece identidade à dada sociedade pelo magma de significações [...]. O campo do instituído (história feita, hegemônica) aparece como um campo de reprodução e/ou de esfera da heteronomia, da reificação, da tecnoburocracia, etc. O campo instituinte e/ou da história se fazendo e a ser feita surge como um campo de possibilidades, como projeto de autonomia, participação e luta contra-hegemônica (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 14).
Nas narrativas, as dimensões do real e do simbólico se interpenetram, de maneira
que aquilo que contamos de nós próprios e dos outros combina elementos do real e
do imaginário, ou seja, contém muito do que gostaríamos de fato que tivesse
acontecido, isto é, não se pode escapar da premissa clássica dos contadores de
histórias que sabem que “quem conta um conto sempre aumenta um ponto”. As
narrativas não são apenas relatos, mas recursos para dar visibilidade a
acontecimentos e fatos que consideramos importantes e que, em nossa acepção,
estabelecem nexos múltiplos entre nossas histórias particulares e o movimento da
história coletiva no âmbito da sociedade.
Assim, pensar a escola como espaço-tempo de produção de subjetividades
inquietantes (SANTOS, 2006) é potencializar o manancial político que há nas
práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas e que, na maioria das vezes, são
desconsideradas pela discursividade oficial. Tal tarefa supõe um recurso à
compreensão dos processos de produção dessas subjetividades ou ao campo das
representações.
Ainda segundo Carvalho e Simões (2002), o imaginário social não se institui como
objeto de conhecimento, de tal forma que possamos identificá-lo por procedimentos
imediatos. Sendo assim:
Investigá-lo significa adentrar pelas vias da linguagem, dos ritos e dos mitos, admit-lo como algo que institui/instituindo sentido à vida humana e social. Sendo assim, a/s escola/s e a educação só poderão vir a se constituir como campo de possibilidades se não ’naturalizarem’ suas práticas, cristalizando-as e aprisionando-as na rotina/heteronomia de seu cotidiano (CARVALHO; SIMÕES, 2002, p. 16).
2. 5 CENA CINCO: TRADUÇÕES
Visando a uma “compreensão possível”31 dos processos de formação continuada no
cotidiano das escolas, assumimos a perspectiva de que a realidade nunca nos
oferece dados “presentes”. A realidade é concebida como um campo de
significações, onde se produzem dados. Sendo assim, acreditamos, como Santos
(2006), que o novo paradigma científico, deve interessar-se pela produção de um
saber encarnado ou de uma racionalidade envolvente, que se ocupe e se preocupe
com a realidade, visando a intervir nessa realidade, produzindo emancipação.
Como ressalta Alves (2001), aquilo que classificamos como objetos em uma
tentativa de aprisionamento, principalmente nas ciências sociais, nunca foi e nunca
será objeto no sentido clássico do termo. Daí resulta a dificuldade no
estabelecimento de categorias de análises e interpretação. Nas pesquisas, sem
dúvida, a parte mais complicada é quando temos que cotejar os dados da realidade
com os pressupostos teóricos. Nesse processo, sempre estamos sujeitos ou
tentados a “forçar uma barra” para que haja a redução da realidade à teoria.
Entretanto, as pesquisas com o cotidiano mostram que a realidade não cabe dentro
do cânone estreito da razão instrumental técnica. O cotidiano, por sua vocação para
a diferença, pluralidade e singularização, sempre extrapola a bitola estreita da
ciência moderna. Fazem-se necessário, então, outros/novos métodos, uma
pluralidade metodológica para a compreensão da complexidade da realidade da vida
e das relações sociais. É preciso inventar objetos ou, na acepção de Santos (2006),
tornar objetos impossíveis, dentro da cientificidade moderna, em objetos possíveis e
necessários na pós-modernidade, pois, para os sujeitos cotidianos, ser objeto é
sempre o pior lugar, remete à manipulação e à classificação. O lugar de objeto de
pesquisa é sempre desconfortante e, sobretudo, despotencializador.
Como acreditamos que realidades são constituídas sempre na mediação social,
buscamos privilegiar, em nossa pesquisa, o estabelecimento de alguns dos 31 Estamos chamando compreensão possível, por acreditarmos que toda tentativa de compreensão supõe, a seu turno, também uma incompreensão, ou seja, todo ponto de vista é a vista de um ponto, não significando nunca, nem sempre, que seja a melhor visão. Assumimos, assim, que a realidade, sendo dinâmica, jamais se permitirá a produção de um conhecimento que se preste à repetição e assumimos o limite da nossa teorização sobre o cotidiano.
elementos de uma comunidade compartilhada (CARVALHO, 2005) e interpretativa
de conhecimento. Entretanto, o trabalho de interpretação e/ou tradução proposto por
Santos (2006) diferencia-se da perspectiva racionalista de categorização objetiva da
realidade. O trabalho de tradução supõe a consideração e o reconhecimento dos
saberes dos diferentes atores envolvidos na pesquisa, concebendo todo saber como
um saber válido. A respeito da tarefa espinhosa de articular saber teórico e saber da
experiência, Santos 1993 (apud ALVES, 1998, p. 108) ressalta:
Neste claro-escuro de lutas e consensos, mais do que verificar ou falsificar teorias, o nosso trabalho metodológico consiste em avaliar teorias. E nesta avaliação, várias teorias divergentes são aprovadas, ainda que raramente com as mesmas classificações. E as classificações não são ferretes que imprimimos nelas a fogo. São olhares que lhes lançamos do ponto movente em que nos encontramos, um ponto situado entre as teorias e as práticas sociais que elas convocam. Mas o ‘estar entre’ não significa ‘estar fora’. Significa tão só ‘estar’ num lugar específico, o do conhecimento científico, na teia de relações entre teorias e práticas [...]. Mudar de teoria é o mesmo que reconstituir um barco, tábua a tábua, no alto mar. Temos um lugar específico (e um plano de olhar) mas não um lugar fixo ou fora para ver passar as teorias. Melhores ou piores, as teorias somos nós a passar no espelho da nossa prática científica dentro do espelho maior da nossa prática de cidadãos.
Nesse sentido, ao pesquisar não nos coube o lugar da autoridade interpretativa,32 ou
seja, como também fomos exposto às redes de relações, estivemos sujeito aos
múltiplos processos de negociação sobre os significados da realidade
explicitada/produzida nas narrativas dos sujeitos praticantes da escola. A relação
entre diferentes perspectivas não pode furtar-se ao trabalho espinhoso e
concomitante de negociação de significados e estabelecimento de inteligibilidade
possível. A respeito da tensão característica desse processo de negociação entre
diferentes comunidades interpretativas, Carvalho (2005, p. 105) ressalta:
Uma comunidade compartilhada é uma comunidade interpretativa, cujo auditório (comunidade encarada na perspectiva do conhecimento argumentativo) está em permanente formação e é a fonte central do movimento [...]. Os auditórios e as comunidades possuem uma dimensão não apenas local, mas translocal, que permite a
32 Sobre a autoridade ou propriedade tradutora, Santos (2006) esclarece que tal autoridade não é distintiva, ou seja, uma consigna outorgada por alguém. Trata-se de um processo de negociação de sentidos e lutas no interior de uma dada comunidade. A princípio, todos estão em condições de traduzir, desde que façam parte dessa comunidade. A questão de fundo que perpassa todo o processo de tradução é o sentido e significado da tradução: o que traduzir?, Entre que traduzir? Quem traduz? Quando traduzir? Com que objetivos traduzir?
interpenetração de conflitos e consensos globais com conflitos e consensos locais.
As determinações sofridas pelas análises de sentido tornam o processo de
compreensão da realidade complexo, como complexa é a realidade. A tradução
combina-se com a perspectiva de entendimento para além do que é aparente ou do
que foi reificado pela Modernidade, ou silenciado, e sugere um trabalho de
escavação arqueológica pelas ausências produzidas, na busca por elos perdidos
que possam reconectar passado, presente e futuro. A esse respeito, Santos (2006)
remete o trabalho de tradução a uma perspectiva diatópica da hermenêutica da
suspeição e também ao que ele chama de exercício de imaginação sociológica.
Sobre a hermenêutica diatópica, ele afirma que se trata de um trabalho de
razoabilidade científica, ou seja, uma atitude menos arrogante e mais complacente
com formas singulares de saber, que não se encaixam no cânone da razão
instrumental técnica:
O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude - um objetivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura [saber] e outro, noutra. Nisto reside o seu caráter dia-tópico (SANTOS, 2006).
Sobre o exercício de imaginação sociológica, Santos (2006) ressalta que se inscreve
no campo da possibilidade de pensar “para além” do que a racionalidade científica
da Modernidade nos acostumou a pensar, instituindo, assim, um movimento de fazer
a história, modificando as condições as quais estamos sujeitos.
Sendo assim, na busca de uma melhor/possível compreensão das narrativas da
prática, realizamos um exercício de compreendê-las a partir da própria realidade,
identificando os elementos que a constituem e quais os movimentos presentes de
resistência; quais os processos instituintes; quais táticas e estratégias estão
presentes e como os professores estabelecem redes de relações e se constituem
como coletivo institucional e instituinte.
Ressaltamos, mais uma vez, que esses cinco referidos procedimentos teórico-
metodológicos (contato com contexto e texto, fazendo o caminho, os contornos
da pesquisa, a escuta sensível e possibilidades de tradução) têm, como
horizonte, os objetivos da pesquisa que são: compreender, por meio das
narrativas das práticas das professoras de educação infantil, quais lógicas são
produzidas no cotidiano, e como essas lógicas dão conta de possibilitar que elas
modifiquem suas práticas por meio de processos de formação continuada. Ainda,
tentar compreender como as professoras mobilizam e fazem usos dos saberes e
produzem novos/outros saberes/fazeres e, também, como essas redes de
saberes e fazeres tecidas no cotidiano dos CMEIs se apresentam como
alternativa às propostas de formação oficiail.
Cumpre destacar que a perspectiva metodológica adotada em nosso trabalho de
pesquisa remete a uma epistemologia que busca superar a visão aplicacionista do
conhecimento, ou seja, mais do que uma teoria de suporte, trabalhamos com uma
concepção de pesquisa que parte da premissa de que todo conhecimento é passível
de usos e consumos. Sendo assim, no próximo capítulo, explicitaremos como temos
usado as teorias para nos auxiliar na compreensão dos processos de formação
continuada vivenciados pelas professoras no cotidiano dos centros municipais de
educação infantil.
CAPÍTULO III
3 OS USOS DAS TEORIAS
Segundo Oliveira (2005), os professores, quando imersos nas redes cotidianas, não
utilizam os conhecimentos in natura; há um processo de bricolagem, de tradução, de
criação, de subversão e de fabricação de conhecimentos. Nessa perspectiva, o
conhecimento, ao invés de diretriz, de marco, de epistemologia de suporte, torna-se
um elemento a mais a juntar-se e misturar-se na complexa rede cotidiana de
produção de conhecimentos necessários para a efetivação da prática pedagógica.
Como ressalta Alves (2002, p.13), “[...] há um modo de fazer e criar conhecimento
no cotidiano, diferente daquele aprendido na modernidade, especialmente, e não só,
com a ciência”.
Com referência à formação continuada dos professores, trabalhamos com essa
mesma hipótese, qual seja, de que há um modo de se formar professor no cotidiano
diferente daquele proposto em programas e projetos institucionais que, tendo como
base manuais didático-pedagógicos produzidos à luz das modernas teorias,
propõem-se a ensinar aos professores como ensinar os alunos. Nesse sentido,
acreditamos ser necessário ouvir os professores para que, por meio de suas
narrativas, possamos compreender essas redes de saberes-fazeres que são
produzidas de maneira instituinte e se apresentam como alternativa às propostas
modelares de formação continuada, que têm como pressuposto a racionalidade
técnica.
A crítica à racionalidade técnica e ao conhecimento totalizante, como sustentado
pela racionalidade moderna, insere-se no movimento intervalar em que Santos
(2006) caracteriza o contexto atual da Modernidade, afirmando que o que estamos
presenciando não é só uma mudança de época, mas, sobretudo, uma época de
muitas e profundas mudanças no âmbito da epistemologia e da sociedade. A
transição paradigmática, termo utilizado por Santos (1987), refere-se a
deslizamentos e tensões entre modelos epistemológicos e modelos societais. A
intensa relação e a compreensão das interdependências entre esses dois âmbitos
de mudanças são fundamentais para se pensar e perspectivar as sociedades no
século XXI.
Sobre a transição paradigmática, Santos (1987) desenvolveu uma série de reflexões
buscando não só localizar, mas, inclusive, caracterizar esse fenômeno de final de
século. Para isso, faz uma leitura arguta do contexto social local e global, nacional e
transnacional, articulando suas análises com a produção acadêmica e científica. A
caracterização que ele desenvolve desse momento sócio-histórico é a seguinte:
Um período histórico é uma mentalidade. É um período histórico que não se sabe bem quando começa e muito menos quando acaba. É uma mentalidade fraturada entre lealdades inconsistentes e aspirações desproporcionadas entre saudosismos anacrônicos e voluntarismos excessivos. Se, por um lado, as raízes ainda pesam, mas já não se sustentam, por outro, as opções parecem simultaneamente infinitas e nulas. A transição paradigmática é, assim, um ambiente de incerteza, de complexidade e de caos que se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e nas ideologias, nas representações sociais e nas inteligibilidades, nas vidas vividas e na personalidade. E repercute-se muito particularmente, tanto nos dispositivos da regulação social, como nos dispositivos da emancipação social. Daí que, uma vez transpostos os umbrais da transição paradigmática, seja necessário reconstruir teoricamente uns e outros (SANTOS, 2000, a, 2000b).
Trata-se de um espaço-tempo de suspeição, pressupondo uma atitude mais flexível,
mais complacente com a vida, mais comedida. A transição paradigmática, em última
instância, é a materialização da crise do paradigma dominante que, desde a
Revolução Científica, se arvorou como uma metanarrativa epistemológica e societal.
O que Santos (1985) chama de período de transição foi prefaciado por uma
profunda crise no seio do paradigma dominante de ciência. Quais as condições da
crise? Santos ressalta que a condição fundamental para a instauração da crise é a
insuficiência de respostas ou a insustentabilidade das soluções epistemológicas e o
agravamento dos problemas sociais. Nesse sentido, os indícios da crise iminente da
ciência moderna são a falta de regulação dos objetivos-fins da ciência e as
sucessivas fissuras no verniz da cientificidade que colocaram expostas as
insuficiências das ciências, o que Santos (2000) chama de promessas não
cumpridas.
O paradigma dominante, para Santos (1987), caracteriza-se como um movimento
ascendente no âmbito das ciências que buscam uma distinção na forma de produzir
a vida e compreender a sociedade, que recusa, peremptoriamente, a experiência,
sobretudo as experiências imediatas, considerando-as formas inacabadas ou
inválidas de chegar à verdade, rotulando-as de senso comum, ou conhecimento
vulgar “pré-científico”.
Santos (1987) destaca também as marcas do desenvolvimento do paradigma
dominante que se constituiu a partir do século XVI, sobre a presidência das ciências
naturais no século XIX estendeu-se às ciências sociais. Ocupou-se de estabelecer
fronteiras entre conhecimento científico (Matemática, Física, Astronomia, etc.) e
conhecimento não científico (senso comum, humanidades, filosofia, literatura,
teologia, etc.); estabeleceu os chamados métodos científicos e o estatuto
epistemológico (p.ex. teoria heliocêntrica - Copérnico; teoria da órbita dos planetas -
Kepler; teoria da queda dos corpos – Galileu e o método de Descartes).
O estabelecimento dessa nova visão do mundo encontrará eco no pensamento de
diversos teóricos. O primeiro e talvez o mais influente, no que diz respeito a essa
nova visão sobre o mundo racionalmente compreensível e possível, é o de Newton.
Para ele,
[...] o mundo é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar em um vazio, um mundo em que o racionalismo cartesiano se torna cognoscível, por via da sua decomposição nos elementos que o constituem (SANTOS, 1987, p. 17).
Essa ideia newtoniana tem reverberações no âmbito societal, pois a ascensão da
burguesia, no final do século XVIII, associará a figura do mundo máquina à ideia de
desenvolvimento e progresso. Nesse sentido, tal determinismo mecanicista
perspectivou uma metaepistemologia do real/mundo. Ainda no plano social, a
perspectiva de compreensão e domínio da natureza e do estado final da evolução
leva à crença na possibilidade de reduzir a sociedade a fatos sociais objetivamente
observáveis e mensuráveis, passíveis de serem controlados. Esse pensamento se
expressa nas proposições de Durkheim em “Solidariedade Orgânica”, de Comte em
seu “Estado Positivo” e de Spencer e a sua “Sociedade Industrial”.
Santos (1987) ainda destaca que, no âmbito dos sistemas jurídicos, tal perspectiva
de objetivação do mundo também teve repercussões, de maneira que se buscou
estabelecer relações entre as leis do sistema jurídico, feito pelos homens, e as leis
inescapáveis da natureza.
O movimento científico que teve início no âmbito das ciências ditas duras alcança as
ciências sociais, chamadas de pré-científicas até então. A esse respeito, Santos
(1987, p.18) ressalta: “[...] a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no
racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações
veio a condensar-se no positivismo oitocentista". Na busca de um maior rigor
científico, as ciências sociais assumem o modelo mecanicista por duas vertentes: a
primeira, pela aplicação dos princípios epistemológicos e metodológicos das
ciências naturais, e a segunda, pela reivindicação de um estatuto epistemológico
próprio. Entretanto, ambas as vertentes “[...] têm sido consideradas antagônicas, a
primeira sujeita ao jugo positivista, a segunda, liberta dele, e qualquer delas,
reivindicando o monopólio do conhecimento científico-social” (SANTOS, 1987, p.
19). O que acaba por descaracterizar as ciências sociais naquilo que as distingue e
as caracteriza, ou seja: o não estabelecimento de leis fixas/imutáveis; a não previsão
fiável; a subjetividade a qual estão sujeitos os fenômenos sociais. Tal crítica à
tentativa de redução das ciências sociais às naturais reside na busca de que, “[...]
por maiores que sejam as diferenças entre os fenômenos naturais e os fenômenos
sociais é sempre possível estudar os últimos como se fossem os primeiros”
(SANTOS, 1997, p. 10).
Dessa forma, o paradigma científico da Modernidade é assim descrito por Cunha
(1998):
Dicotomiza as ciências naturais e as ciências sociais; impõe o modelo das ciências naturais às ciências sociais; define fronteiras que dividem e encerram a realidade; o conhecimento avança pela especialização e é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre o que incide. Sendo disciplinar, é disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor, valoriza a restrição do conhecimento à especialidade, à área a qual pertença; consagra o homem como sujeito epistêmico, mas o desconhece como sujeito empírico. O conhecimento factual não tolera interferência de valores. Constrói a distinção dicotômica entre sujeito e objeto; reforça a rigidez do método e pune a qualquer perspectiva
de não cumprir seus desígnios. O método é tão ou mais importante que o objeto de estudo; produz conhecimento e desconhecimento. Faz do cientista um conhecedor especializado e do cidadão comum um ignorante generalizado; constrói-se contra o senso comum que considera superficial, ilusório e falso; simboliza, na ruptura epistemológica, o salto qualitativo do conhecimento, só sendo comum para o conhecimento científico (CUNHA, 1998, apud CARVALHO, 2002, p. 18)
Como já nos referimos, essas características do modelo de ciência gestado na
Modernidade, por sua incapacidade de se sustentar devido à velocidade e à
relatividade em que se produz conhecimento, entrou em crise, sendo essa crise o
momento inicial de um período/época de profundas e irreversíveis mudanças,
tornando-se impossível antever as consequências ou mesmo sinalizar a direção,
pois
Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (SANTOS, 1987, p. 3).
O primeiro aspecto importante a salientar sobre a crise do paradigma dominante da
ciência é que ela foi gestada no interior da própria ciência. Trata-se de uma reflexão
dos cientistas filósofos33 preocupados com o desenvolvimento do pensamento
científico, ou seja, os objetivos/fins da ciência. Outros dois aspectos concomitantes
são: a crise é não só profunda como irreversível, sendo necessária a produção de
novas paragens científicas, outras formas de conhecer que incluam as dimensões
éticas e estéticas; e o outro aspecto é referente à incapacidade epistemológica de
saber o que haverá depois desse modelo, ocorrendo apenas especulações que
teimamos, precipitadamente, em nomear.
A crise se desenvolveu a partir do que Santos (1987) chama de rombos, no verniz
da cientificidade, expondo as contradições e as incertezas que a ciência criticava no
senso comum. A quantidade e extensão dos rombos são proporcionais à pretensão
científica de compreender o mundo e a todos com uma escrita única, a da 33 Santos (1987) ressalta que a crise do paradigma da Modernidade foi gestada dentro da própria ciência, ou seja, devido às insuficiências teóricas em frente aos desafios apresentados à ciência. Assim, as primeiras e mais contundentes críticas foram feitas pelos próprios cientistas que começaram a perceber que a leitura científica do mundo não significava a única nem a mais confiável.
Matemática. A seguir, na ordem utilizada por Santos (1987), são apresentados os
principais rombos:
Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma dominante ao propor a teoria da
relatividade e da simultaneidade: “A simultaneidade de acontecimentos distantes
não pode ser verificada […] é, portanto, arbitrária. Não havendo simultaneidade
universal, o tempo e o espaço absoluto de Newton deixam de existir" (SANTOS,
1987, p. 25). Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir
um objeto sem interferir nele, sem alterá-lo e, a tal ponto, que o objeto que sai de um
processo de medição não é o mesmo que lá entrou. A ideia de que não
conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos
do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza
de Heisenberg (SANTOS, 1987). O teorema da incompletude de Godel ressalta que
"[...] é possível formular proposições indecidíveis que não podem demonstrar, nem
refutar, sendo que uma dessas proposições é precisamente a que postula o caráter
não contraditório do sistema" (SANTOS, 1987, p. 27). Já a teoria das estruturas
dissipativas e o princípio da "ordem através de flutuações" estabelecem que “[...] em
sistemas que funcionam nas margens da estabilidade, a evolução explica-se por
flutuações” (SANTOS, 1987, p. 28).
A partir dos rombos provocados no paradigma científico da Modernidade, a ciência
passou a se pensar, e a razão indolente é questionada, instaurando outras formas
de conhecimento, incluindo aquelas mais afetas às necessidades cotidianas, uma
razão mais razoável e, nesse sentido, a ciência tende a conceber,
[...] em vez da eternidade, a história; em vez de determinismo, a imprevisibilidade; em vez de mecanismo, a interpretação; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 1987, p. 28).
Assim, um novo paradigma começa a ser perspectivado no interior do paradigma
dominante, um paradigma que Santos (1987) chama de paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente. Sobre essa mudança no
pensamento científico, Cunha (1998, apud CARVALHO, 2002, p.18-19) assim se
posiciona:
O conhecimento não é dualista, se funda na superação da distinção, revalorizando os estudos humanísticos; percebe que a tendência é de que as ciências da natureza sejam presididas por conceitos, teorias, metáforas e analogias das ciências sociais; é assumidamente analógica: conhece o que conhece pior pelo que conhece melhor, o conhecimento é total e constitui-se ao redor de temas. Os temas são galerias em que os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Por isso, sendo total, é local: avança à medida que o seu objeto se amplia, é como as raízes de uma árvore, alastra-se em busca de novas e mais variadas interfaces; é tradutor: incentiva os conceitos e teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser usados fora de seus contextos de origem; aceita a transgressão metodológica. Entende que a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora se seu habitat natural; assume que os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças e valores são parte integrante da explicação científica. O objeto é continuação do sujeito. Todo conhecimento é autobiográfico; entende que nenhuma forma de conhecimento é, em si, racional e, portanto, dialoga com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas; valoriza o conhecimento do senso comum com que no cotidiano orientamos nossas ações e damos sentido à nossa vida.
Essa perspectiva científica reintroduz o sujeito no centro da teorização científica,
compreendendo que só faz sentido conhecer para também se reconhecer no
conhecimento produzido, e que a ciência é uma produção social e histórica,
obedecendo, assim, às determinações de seu tempo. Vivendo em um tempo em que
se questionam os usos e abusos do desenvolvimento científico, sobretudo, um
tempo de mercadorização do conhecimento, é preciso questionar-se sobre os
objetivos e fins da ciência. Santos (1987) posiciona-se não contrário ao
desenvolvimento da ciência, também não antagoniza o saber científico ao saber do
senso comum; o que propõe é uma razoabilidade possível entre dimensões da vida
historicamente incomensuráveis, como se ambas não fossem dimensões humanas.
No âmbito dos processos de formação continuada de professores, esse movimento,
que busca produzir um saber mais afeto às questões do cotidiano, uma saber mais
transdisciplinar, um saber menos dualista, aparece a partir de estudos que buscam
estabelecer uma maior aproximação com o cotidiano das práticas dos professores
no interior das escolas. Problematiza a questão da assimetria existente entre as
proposições teórico-metodológicas embutidas nos programas de formação,
questiona a forma e o conteúdo das propostas de formação continuada e, como
alternativa a um modelo oficial, na perspectiva de produção de um conhecimento
mais comprometido com as demandas dos professores, propõe-se entender as
lógicas presentes nas formas em que os professores se articulam no cotidiano da
escola, e considerar os movimentos presentes no cotidiano as escolas, tentando
compreender a potência desses movimentos, sobretudo como possibilidade de
formação continuada.
Santos (1989) propõe o uso edificante da ciência, em que esta não se distancie das
questões afetas ao cotidiano (pobreza, violência, fome, guerras, miséria, exclusão,
etc.); um saber que não se pretenda acima e à frente da humanidade. A respeito da
pretensão do saber científico em distinguir-se e afastar-se do saber do senso
comum, Alves (2002) com base em Santos (1995) ilustra com seis roteiros sobre as
pretensões e arrogâncias da ciência moderna em arvorar-se como um saber único e
totalizador sobre tudo e sobre todos. Finaliza cada roteiro/história indicando
possibilidades de comensurabilidade entre saberes distintos.
Primeiro roteiro
Saber e ignorância: o saber moderno, quando ainda voava baixo, parecia ter duas
asas iguais e um vôo equilibrado. À medida que cresceu, verificou-se que as duas
asas eram desiguais: uma voava alto e chamava-se vocação crítica e a outra voava
baixo e chamava-se vocação de cumplicidade. Essa assimetria produziu um ser que
sabia e não sabia ao mesmo tempo, porém não tinha consciência de seu não saber.
Santos (1995) propõe a dupla ruptura epistemológica: assim como a ciência
ascendeu do senso comum ao saber científico, faz-se necessário um descender da
ciência ao senso comum "[...] para isso é preciso, contra o saber, criar saberes e
contra os saberes, contra-saberes". Santos (1995, p. 104-105) indica que a criação
de novos saberes e contrassaberes deverá se orientar pelos seguintes topóis: “1.
Não toque. Isto é humano; 2. É mais importante estar próximo do que ser real; 3.
Afirmar sem ser cúmplice, criticar sem desertar."
Segunda história
O desejável e o possível: quando o desejável era impossível, foi entregue a Deus;
quando o desejável se tornou possível, foi entregue à ciência; hoje, que muito do
possível é indesejável e algum do impossível é desejável, temos de partir ao meio,
tanto Deus como a ciência. Para cultivar esses novos interesses, imaginamos uma
escola pragmática, a qual consistirá de duas classes: na primeira, chamada
consciência do excesso, aprendemos a não desejar tudo o que é possível só porque
é possível; na segunda classe, chamada consciência do déficit, aprendemos a
desejar também o impossível, sendo assim,
É preciso frequentar as duas classes na perspectiva de se criar/formular necessidades radicais. Essas necessidades radicais não podem ser fruto de produção racional, unicamente, mas emergem antes da imaginação social e estética de que são capazes as práticas emancipatórias concretas. O reencantamento do mundo pressupõe a inserção criativa da novidade utópica, no que nos está mais próximo (Santos, 1995, p. 10-6).
Alves (2002) retoca essa alegoria destacando o sentido da experiência como algo
que nos implica e nos move do lugar que estamos para outro lugar que queremos
estar.
Terceira história
O interesse e a capacidade: o homem e a mulher modernos viverão sempre numa
cidade de fronteiras cuja transformação rápida assentará na equação “interesse =
capacidade”. Quem tinha interesse nas mudanças tinha capacidade para elas e,
quanto maior o interesse, maior a capacidade. Com o reordenamento
socioeconômico, a equação interesse = capacidade já não dá conta de resolver
todas as questões. As leis da história têm sido repensadas. A ideia de um único
sujeito da mudança/revolução já não dá conta de responder às múltiplas
determinações sociais, pois,
Em termos gerais, todos nós, cada um de nós, é uma rede de sujeitos em que se combinam várias subjetividades correspondentes a varias formas básicas de poder que circulam na sociedade. Somos um arquipélago de subjetividade que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas (SANTOS, 1995, apud ALVES, 2002, p. 24).
Assim, é preciso reencontrar e reencantar os sujeitos, é preciso encontrar formas de
desasujeitar o sujeito, nisto há formas de resistência e possibilidades de lutas
políticas.
Quarta história
O alto e o baixo ou o solista e o coro: a hierarquização provocou uma reutilização. O
poder emana do alto para baixo. Entretanto, a aceleração histórica tem aberto
brechas que possibilitam a ascensão de alto/baixo para cima. É preciso atacar o
cânone da especialização. Há uma guerra sendo travada no campo social e político,
a guerra da interpretação do mundo. É importante, porém, que o processo de
desmantelamento dos monopólios seja conduzido de modo a criar mil comunidades
interpretativas e não redundar em milhões de renúncias à interpretação. Tal como
nos romances de Dostoiewsky, segundo Bakhtin, temos de aprender a ser
polifônicos.
Alves (2002, p. 26) sublinha que é preciso respeitar os "praticantes" que, na escola,
não se propõem somente a (re)produzir e ressalta: "Como pesquisadora, que
contribuição dou para perceber esses tantos [professores] não como ‘massa’ a que
se tem que fazer adaptar as lindas ideias que alguns outros têm, mas como coro-
sujeito coletivo que conta lindas canções, já aqui e agora?”.
Quinta história
As pessoas e as coisas: a ciência moderna é um grande projeto para nos despertar
a vontade de "dominar" as coisas ou a "supercoisa", a natureza. O projeto de nos
tornar à vontade com as coisas nos fez perder o à vontade com as pessoas. Os
microdespotismos cotidianos do trabalho, do lazer e do consumo estão ligados a
essa perda de vontade. Segundo Santos (1995), para Marx, a alienação assentava,
sobretudo, na estúpida competição pelo trabalho (atualmente, nossa estúpida
alienação pelo consumo). O inimigo está dentro de nós e em toda parte.
Alves (2002, p. 27) destaca que "[...] a opção radical de escolher o lado das
pessoas, dos sujeitos encarnados, dos praticantes dos cotidianos ou como
queiramos chamar, depende de nossa teoria de apoio. Esse lado é dentro!”.
Sexta história
As minirracionalidades não são racionalidades mínimas: o processo de
especialização criou fissuras que fazem escoar do receptáculo da razão nossa
crença no porvir, produzindo irracionalidades globais. A tentativa de criar
racionalidades, que vivem à sombra daquelas chamadas racionalidades racionais,
faz-se necessária e urgente. A Pós-Modernidade sabe que as soluções estão em
micropoderes ou minirracionalidades (soluções de bolso), assim, “[...] quanto mais
global for o problema, mais locais e mais multiplamente locais devem ser as
soluções,” o que potencializa/vitaliza os processos de emancipação.
Alves (2002) ressalta que a crise que têm vivido os professores, de modo especial
as insuficiências dos grandes sistemas teórico-metodológicos da pedagogia e da
didática em produzir um saber mais inteligível, tem levado os professores, no
cotidiano, a produzir localizada/cotidianamente alternativas/saídas possíveis,
soluções portáteis que se constituem como táticas de vivência e, muitas vezes,
sobrevivência.
Os seis roteiros propostos por Santos (1995) e assumidos por Alves (2002) em um
contexto de difícil teorização e produção de alternativas possíveis,34 têm como
finalidade sublinhar a incomensurabilidade histórica entre conhecimento científico e
conhecimento do senso comum, derivando dessa dicotomia múltiplos processos de
intolerância (intelectual, racial, religiosa, econômica, política, etc.).
No âmbito dos processos de formação continuada com os professores, a
perspectiva de superação da incomensurabilidade entre conhecimento científico e
senso comum também aparece e traz questões de fundo, como: em que medida os
saberes da docência produzida na lida cotidiana podem articular-se aos saberes das
disciplinas e aos saberes pedagógicos produzindo uma prática que tenha melhor
condição de responder às demandas dos professores, da escola e dos alunos? As
mil formas de saber-fazer que os professores inventam no cotidiano podem ser
inscritas no cânone da cientificidade moderna?
A incomensurabilidade entre o conhecimento científico e a experiência da vida
prática (senso comum) é uma das maiores promiscuidades do saber científico, pois
ignora a muitos e intelectualiza uma pequena parcela da população (os cientistas).
34 Alves (2002) utiliza esses roteiros para desenvolver seu pensamento por ocasião do aniversário de 25 anos do Programa de Pós–Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo. Na ocasião, estávamos todos sob o impacto do “11 de setembro” e, por esse motivo, a dificuldade em encontrar alternativas credíveis/possíveis.
Contra esse distanciamento do saber científico e da vida prática, Santos (1987, p.
41-42) propõe a ruptura com a ruptura epistemológica, significando essa
Um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência. Enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência, mas deixa o senso comum tal como estava antes dela, a segunda ruptura transforma o senso comum com base na ciência constituída e no mesmo processo transforma a ciência. Com essa dupla transformação pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência prudente, ou melhor, [...] um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem.
A ruptura com a ruptura epistemológica, dupla ruptura, faz-se necessária para suprir
o débito histórico que a ciência acumulou com a vida cotidiana e a “experiência”,
pois a ciência, pretensamente, arvorou-se acima, à frente e, principalmente, distante,
muito distante da vida prática ou praticada pelos indivíduos ditos normais. A ciência,
historicamente, desenvolveu-se pela negação e aniquilação do saber comum ou do
senso comum, consequentemente, com extermínio de seus portadores, em um
franco processo de epistemicídio.
Assim, busca-se uma religação de saberes (MORIN, 2000) em uma perspectiva de
complementaridade dialógica. Até onde o saber da vida não dá conta de explicar, o
saber científico continua e, onde o saber científico é limitado\insuficiente, o saber da
vida complementa. A aproximação e/ou familiarização entre as formas de saberes
visa à produção de outros saberes, por meio da fertilização mútua. A questão central
não é a busca de um estatuto único, de um saber puro intocável, irrepreensível, não
é esse o caso, nem o caso de buscar-se um saber que não se especialize e não se
complexifique. Muito pelo contrário, a perspectiva de aproximação entre saberes que
historicamente se mostraram incomensuráveis é justamente na tentativa de fertilizar
esses saberes, surgindo, assim, outras/novas possibilidades de olhar para os
fenômenos, produzindo maior compreensão. Santos (1987, p.10) ressalta que essa
busca por aproximação visa a
Transformar a ciência de um objeto estranho, distante e incomensurável com a nossa vida, num objeto familiar e próximo, que não falando a língua de todos os dias é capaz de nos comunicar as suas valências e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza aquém e além deles.
Nessa perspectiva, a ciência tornar-se-ia um objeto, um artefato, uma linguagem, um
instrumento, enfim, algo compreensível, entendível, usável pela maioria das
pessoas, rompendo, assim, com o monopólio ou estatuto acadêmico/institucional.
Santos (1987) a esse respeito ressalta que a ciência é produzida, em sua grande
maioria, à revelia da vida. Como a vida não cabe em tubos de ensaios, muito menos
não se aprisiona facilmente ao controle asséptico dos laboratórios, o conhecimento
científico é produzido a portas hermeticamente fechadas, resultando dessas
pesquisas um produto de aplicação acadêmico-científica, ficando a vida e “os
sujeitos” como cobaias de testes, para validar uma vida artificial que se produziu nos
laboratórios.
O desenvolvimento dessa análise é paralela e também para além, única e
exclusivamente da determinação de questões éticas e morais do desenvolvimento
da ciência. Santos (1987) alerta que o conhecimento científico é uma produção
político-econômica que comporta em si multideterminações de ordens várias
(religiosas, econômicas, políticas, raciais, de gênero, éticas, etc.), ou seja, o
desenvolvimento científico é expressão de poder. Sendo assim, não é uma
descrição/compreensão das realidades, mas, fundamentalmente, uma produção de
realidades, que atende a interesses políticos e econômicos. Nesse sentido, a
produção acadêmico-científica sofre processos de agenciamentos que são
expressões de poder, imprimindo, na forma e no conteúdo das descobertas
científicas, um selo de classe. Referindo-se a esse processo, Santos (1987) lembra
dos debates em torno de direitos à exploração da ciência que, sobretudo, nos ditos
países desenvolvidos, significam mais do que desejo de fazer avançar a ciência em
nome do bem comum, significam exercício de poder; primeiramente econômico e,
secundária ou concomitantemente, poder político. Santos (1987, p. 34), a título de
ilustração, destaca:
Tanto nas sociedades capitalistas como nas sociedades socialistas do leste Europeu, a industrialização da ciência acarretou o compromisso com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas A ciência tem sido utilizada para consolidar a dominação dos poderosos sobre as minorias.
Segundo Santos (1987), esse processo de elitização do saber científico tem
provocado pelo menos um duplo processo com consequências bastante evidentes.
Primeiro, a estratificação das relações de poder entre os cientistas, o que confere
uma espécie de “status científico” a determinados cientistas, garantindo uma maior
cientificidade a determinadas pesquisas em detrimento de outras ditas não tão
científicas. O segundo aspecto relevante e decorrente desse processo é o
aprofundamento do fosso entre os grandes centros de pesquisa e a periferia, o que
tem colocado os países periféricos como reféns dos grandes centros, representantes
das multinacionais que, por meio de políticas que desconsideram as especificidades
locais, impõem contratos e normas de uso do saber científico e visam a aumentar
ainda mais seu poder sobre os países periféricos.
Assim, ressalta-se que “a ciência”, ou melhor, “as ciências” não são e nunca foram
neutras, como postulou o positivismo comtiano,35 ainda que inúmeras tentativas
tenham sido feitas para reduzir a ação do sujeito na pesquisa científica, expurgando-
o. A presença do sujeito no centro da produção científica introduz na acepção
heisenbergiana,36 já referida anteriormente, o princípio da incerteza, da dúvida.
3.1 AS TEORIZAÇÕES SOBRE ESCOLAS E FORMAÇÃO COM OS
PROFESSORES NO COENGENDRAMENTO SUJEITO-OBJETO
Santos (2000), ao referir-se à forma dominante de produção de conhecimento na
Modernidade, ressalta que tal perspectiva produziu mais conhecimento por
desconhecimento do que por reconhecimento, ou seja, se, por um lado, produziu
progresso, por outro, trouxe destruição. Esse duplo processo não é muito refletido
pela ciência, principalmente por remeter ao campo da ética. Porém, neste início de
século, a ciência moderna tem sido arguida, e tais questionamentos representam o
35. “A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações veio a condensar-se no positivismo oitocentista" (SANTOS, 1987, p.18). 36
“Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medicação não é o mesmo que lá entrou [...]. A idéia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza de Heisenberg” (SANTOS, 1987, p. 25).
aspecto fundamental da chamada crise do paradigma da ciência moderna. Assim,
pergunta-se: como estar mais afeto a uma racionalidade envolvente? Como
privilegiar uma ciência edificante? E, no âmbito dos processos de formação com os
professores, questiona-se: como superar a perspectiva unilateral de formação
continuada e construir uma proposta que consiga articular os professores e as
escolas em torno de um projeto?
A ciência sempre se colocou como o diapasão da vida, entretanto, na busca de um
saber totalizante, constituiu-se em um saber totalitário e totalizante. Na busca de um
saber que incluísse a todos, tornou-se um saber que excluiu muitos. A racionalidade
técnica científica, expressão do projeto de Modernidade, desenvolveu-se
“contrafeita” às suas ambições, não cumprindo o que prometeu e, ainda hoje, vive
paradoxalmente da renovação das promessas não compridas.
A respeito das promessas não cumpridas pela Modernidade, descritas por Santos
(2005), destacamos aquelas que, em nossa acepção, estão mais próximas do
debate educacional. São elas:
a) a incapacidade de os Sistemas Nacionais e Transnacionais equalizarem os
problemas de acesso e permanência das crianças nas escolas. Estima-se que no
mundo ainda exista em torno de 875 milhões de analfabetos. Só no Brasil, esse
número chega a 15 milhões, o que corresponde a 13,3% da população. Dos 55
milhões de crianças de 10 a 15 anos no Brasil, 40% estão desnutridas; 1,5
milhão entre 7 e 14 anos está fora da escola. A cada ano, 2,8 milhões de
crianças abandonam o ensino fundamental. Das que concluem a 4ª série, 52%
não sabem ler nem escrever;
b) o trabalho infantil ainda é um opróbrio. Uma, em cada 12 crianças do planeta,
enfrenta as piores formas de exploração no trabalho e isso é o que revelou um
relatório do Fundo das Nações Unidas Para a Infância (UNICEF), divulgado em
Londres, em fevereiro de 2005. No Brasil 5,4 milhões de crianças e jovens
trabalham. Esse número significa que 12,7% da população entre 5 e 17 anos
estão, de alguma forma, inseridos no mercado informal de trabalho e longe das
salas de aula;
c) a diferença entre países ricos e pobres, em relação à desigualdade,
aumentou desde o começo dos anos 90, com um grupo minoritário de nações
(que representa 14% da população mundial) dominando metade do comércio
mundial. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2004), 80% da
riqueza mundial estão nas mãos de 15% dos mais ricos. No Brasil, os 10% mais
ricos se apropriam de 46,9% da riqueza nacional e 90% dos brasileiros possuem
pouco mais da metade da renda. Pior: nos últimos anos, o quadro de extrema
desigualdade não sofreu mudanças significativas.
Esses dados37 mostram que o desenvolvimento prometido pela modernidade
científica ainda não se cumpriu. Nesse sentido, Santos (2000) propõe uma nova
racionalidade, que se preocupe não só com o conhecimento, mas, sobretudo, como
esse conhecimento é utilizado. Argumenta contra o uso apenas e unicamente
técnico e propõe o uso edificante da ciência.
Segundo Santos (1989), a aplicação técnica está pautada na perspectiva da ciência
moderna, cujas características já foram amplamente descritas acima. A superação
dessa visão limitadora e limitada da ciência só pode ser possível a partir de um uso
edificante da ciência. Tal perspectiva de “uso edificante” do saber científico
pressupõe alguns princípios:
A aplicação edificante ocorre numa situação concreta que considera a existência de quem a aplica (compromisso ético e social). Os meios e os fins não estão preparados e a aplicação incide sobre ambos. A aplicação é um processo argumentativo e a maior ou a menor adequação das competências argumentativas entre os grupos em conflito por ela – o consenso não é a média nem é neutro. Nos vários contextos de aplicação, o cientista precisa lutar pelo equilíbrio de poder, tomando partido dos que possuem menos poder. A aplicação edificante tenta reforçar as definições emergentes e alternativas da sociedade, deslegitimando as formas institucionais e os modos de racionalidade de cada contexto – porque cada um deles promoveria a violência e não a argumentação. Para a aplicação edificante, o sentido do uso do know-how técnico é subordinado ao know-how ético que tem prioridade na argumentação. Para essa aplicação, os limites e deficiências dos saberes locais não justificam sua recusa, pois isso significaria o desarme argumentativo e social das competências argumentativas (comunicadas) neles. Na aplicação edificante, a ampliação da comunicação e o equilíbrio das competências argumentativas visam a criação de sujeitos socialmente competentes.
37 Os dados podem ser encontrados no endereço: < http://www.consciencia.net/>.
Essa aplicação vigora na comunidade científica, e os cientistas comprometidos com tal aplicação, lutam pelo aumento da comunicação e da argumentação no âmbito da comunidade científica, além de lutarem também contra as formas institucionais e os mecanismos de poder que produzem violência, silenciamento e estranhamento nela (SANTOS, 1989, p. 58-161).
Assim, não se justifica produzir saberes sem sentido, recusa-se o saber pelo saber;
todo conhecimento tem que ser “encarnado”. A perspectiva de uso edificante da
ciência busca escapar do essencialismo e do racionalismo, recusando a ideia de que
há, no conhecimento, uma entidade que está acima e ao alto das nossas
comezinhas vidas, distantes do horizonte do homem comum. Acredita que existem
conhecimentos diversificados. Então, toda forma de conhecer comporta em si o
conhecimento de uma só forma, o que pressupõe uma limitação intrínseca. Jamais
podemos saber tudo sobre uma determinada coisa. Por mais minuciosa que seja a
nossa análise, sempre haverá limites, frestas, lacunas, labirintos por onde o
conhecimento transcorre livre. Ainda que a racionalidade moderna insista em
aprisionar, “disciplinar” o conhecimento dentro de um único método, o conhecimento
da realidade tem por vocação a transgressão.
Por ser imetódico, também de vocação transdisciplinar, esse novo saber é mais
comprometido com a vida e comporta em seu protocolo o sujeito, sobretudo por
acreditar que não é o “método pelo método” que permite a compreensão da
realidade. Não são os instrumentos de pesquisa (questionários, testes, formulários,
entrevistas, etc.) que produzem a pesquisa, mas, sim, os sujeitos que transformam o
método em metodologias, inserindo o movimento e a ação e carregados de
determinações sociais, históricas, políticas e econômicas.
3. 2 TRADUZIR E TRADUZIR-SE: ARQUEOLOGIA DAS EXISTÊNCIAS INVISÍVEIS
DE PROCESSOS DE FORMAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DOS SABERES-FAZERES
DOCENTES
Santos (2000), ao referir-se ao processo de produção de conhecimento na
Modernidade, aponta que o epistemicentrismo, como característica fundamental do
pensamento ocidental, sobretudo europeu, produziu um conhecimento muito mais
por desconhecimento do que por reconhecimento. Não interessava ao pensamento
hegemônico dos grandes conquistadores dos séculos XVI e XVII reconhecer as
formas singulares de conhecer. Sendo assim, estabeleceu-se uma relação entre
saber e não saber – o saber eleito foi o do colonizador. A respeito da redução das
múltiplas formas de conhecimentos e experiências presentes nas diversas culturas a
uma forma única de saber intelectual, Santos (2006, p. 94) questiona:
A experiência social em todo mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante [...] esta riqueza social está a ser desperdiçada [...] para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade.
Essa nova forma de racionalidade proposta por Santos (2006), contrapondo-se a
razão indolente, busca uma compreensão do mundo a partir de uma inteligibilidade
possível, entendendo que todo ponto de vista “científico” é apenas a vista de um
ponto, não significando a totalidade. Assim, a redução da realidade é uma
impossibilidade, o que remete a uma racionalidade mais envolvente, ou ao que
Santos (2006) chama de razão cosmopolita ou cosmopolitismo.
A respeito da razão cosmopolita no âmbito da epistemologia e do cosmopolitismo no
âmbito societal, Santos (2006) refere-se a ambos os movimentos como
complementares, cujo alimento único são as lutas desenvolvidas pelas culturas que
historicamente foram (são) silenciadas por uma razão indolente no âmbito da
epistemologia e pela globalização no âmbito societal.
Segundo Oliveira (2006), a reflexão de Santos sobre as tensões geradas pela
Modernidade em face à consolidação de uma sociologia das ausências, uma
sociologia das emergências e um trabalho de tradução, parte de premissas
fundamentais:
Em primeiro lugar, a compreensão do mundo excede a compreensão ocidental do mundo. Em segundo lugar, a compreensão do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder social têm a ver com concepções do tempo e da temporalidade. Em terceiro lugar, a característica mais fundamental da concepção ocidental de racionalidade é o fato de, por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o futuro (OLIVEIRA, 2006, p. 76).
Com referência à sociologia das ausências, Santos (2006) esclarece: por tratar-se
de uma sociologia das ausências, não é uma sociologia ausente, ou seja, “ausência”
é condição substantiva, supondo uma determinação; já “ausente” é adjetivo
pressupondo uma predisposição, uma tomada de decisão. Assim, a sociologia das
ausências busca compreender os processos de produção substantiva das
ausências. Sobretudo nas culturas não hegemônicas, tenta entender os processos
de silenciamentos sofridos, que fizeram com que essas formas de saber fossem
relegadas a formas inferiores e, por sua vez, desprezíveis. Portanto,
Visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como alternativa não-credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com ela. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presença (SANTOS, 2006, p.102).
Para Oliveira (2006), essa característica da sociologia das ausências é a que mais
se aproxima da teorização educacional, pois o campo educacional é fértil em
processos de produção de ausências e, por meio de um trabalho de tradução, pode-
se fazer emergir do chão das escolas (ALVES, 2001) algo mais do que aquilo que a
oficialidade quer nos fazer acreditar. Como ressaltam Alves e Garcia (2001), é
possível ver jardins nos chão das escolas, mesmo que não se considerem as
condições às quais os professores são submetidos a produzir sua prática; mas,
mesmo assim, é possível perceber movimentos criativos e criadores que buscam
produzir a escola a cada dia.
Um trabalho complementar ao da sociologia das ausências é o da sociologia das
emergências, que representa a consolidação do trabalho de “arqueologia das
existências invisíveis”. Busca trazer à tona, à superfície, tudo o que foi silenciado,
tudo o que foi desprezado pelo cânone estreito da razão indolente. Saberes-fazeres
que, por não se adequarem à racionalidade ocidental, foram subsumidos a formas
irracionais de ser e estar no mundo. Assim,
A sociologia das emergências consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre as quais é possível atuar para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade de frustração. Tal ampliação simbólica é, no fundo, uma forma de imaginação sociológica que visa um duplo objetivo: por um lado, conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança;
por outro, definir princípios de ação que promovam a realização dessas condições (SANTOS, 2006, p. 118).
Por fim, a ideia de tradução é fundamental, pois traz novos contornos para o debate
sobre comensurabilidade e incomensurabilidade, entre diferentes e muitas vezes
distantes culturas e/ou formas de saber. Se há necessidade de tradução, é devido à
dificuldade de se estabelecer uma dialogicidade razoável entre diferentes formas de
saber. Nesse sentido, em vez de perpetuar o “diálogo de surdos” que,
historicamente, tem privilegiado a relação entre o saber científico “acadêmico” e a
vida prática, “senso comum”, busca-se uma comunicabilidade ou, como já nos
referimos, o estabelecimento de comunidades interpretativas, pressupondo o
estabelecimento de comunidades heterológicas. Ou seja, grupos de pessoas,
comunidades e categorias profissionais que se coloquem diante do desafio de
pensar em alternativas possíveis, no âmbito de uma coletividade.
A perspectiva da tradução é usada para possibilitar e/ou ampliar o diálogo, produzir
comunicabilidade e inteligibilidade, entretanto, existem questões de natureza política
não tão óbvias, pois remetem inescapavelmente ao âmbito das relações de poder: o
que traduzir? Quando traduzir? Qual o objetivo da tradução?
Reportando a questão da tradução ao contexto educacional, Oliveira (2006) ressalta
que o pensamento de Santos (2006) é bastante significativo, pois, no cotidiano das
escolas, encontram-se “temas quentes”, em torno dos quais se faz necessário um
trabalho de tradução para tornar possível uma maior inteligibilidade entre os
praticantes da escola. É importante destacar que o trabalho de tradução não visa ao
estabelecimento de consensos, não é esse o caso. A tradução presta-se a permitir o
estabelecimento de pontos de contato entre diferentes perspectivas, concepções,
culturas presentes na escola, inclusive suscitando e/ou renovando conflitos que,
devido a uma não compreensão, não haviam se tornado possíveis, ficando
anestesiados. A esse respeito Oliveira (2006, p. 109) ressalta:
O exercício da tradução através da hermenêutica diatópica pode ser de extrema relevância para o estabelecimento de um diálogo voltado à busca e à definição de acordos que possam, mais do que satisfazer os diferentes interlocutores, favorecer os processos de aprendizagem
dos educandos pelo que podem introduzir de coerência e instaurar de coletivização da ação educativa.
Nessa perspectiva, a tradução é fundamental para a constituição de redes de
formação com os professores no cotidiano da escola, pois pode estabelecer pontos
de contato entre diferentes e divergentes perspectivas teóricas e culturais,
compreendendo uma multiplicidade de visões sobre as práticas cotidianas. O
cotidiano pensado assim pode possibilitar inúmeras iniciativas criativas, pois a
fertilização de ideias e o conflito de visões conectam-se ao fluxo do desenvolvimento
do pensamento.
Retomando as questões centrais em torno dos processos de tradução, Santos
(2006), primeiramente, esclarece que a tradução se efetua em dois âmbitos
específicos: o primeiro é o âmbito dos saberes e o segundo o dos fazeres (práticas
sociais). A respeito do primeiro, o autor esclarece que a tradução consiste no
trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas, buscando identificar
preocupações e/ou aspirações convergentes em torno das quais se possam
estabelecer pontos de contatos e diálogos possíveis. Santos (2006) exemplifica
esclarecendo que, mesmo em temáticas com um círculo de aceitação amplo, por
exemplo, os direitos humanos, há divergências no interior de determinadas culturas,
sobre o que de fato se constitui o direito humano como categoria universal.38 A ideia
da tradução é sempre a de criar zonas de contatos e espaços para diálogos para se
ampliar a compreensão e, assim, estabelecer novos/outros parâmetros para ação.
Está embutida aqui também a ideia da impossibilidade de aceitação de um
universalismo e/ou uma teoria geral seja sobre qual temática for.39 Da mesma
maneira, no âmbito das práticas pedagógicas, e/ou processos de formação
continuada, é necessário produzir o diálogo permanente, mesmo em relação a
38 Santos (2006), em seus estudos, buscou mostrar que a concepção ocidental de direitos humanos não contempla a islâmica, como também não contempla as demais. No caso da versão ocidental, os direitos humanos se resolvem em uma simetria simples entre direitos e deveres, ou seja, só pode ter direitos quem tem deveres, fato que justifica, por exemplo, a não concessão de direitos a natureza por essa não poder exercer deveres. Por sua vez, a concepção islâmica do direito humano flexibiliza essa relação, não estabelece essa simetria individualista e busca uma solução no coletivo, ou seja, não privilegia direitos individuais e, sim, direitos coletivos. Entretanto, tanto a concepção ocidental como a islâmica não são suficientemente completas, o que justifica a necessidade de estabelecimento de pontos de contatos, “porosidades”, entre ambas para que, assim, possam dialogar e se complementar reciprocamente. 39 Santos (2006) desenvolve a ideia de universalismo negativo contra a perspectiva de se estabelecer uma teoria geral ou metacognição que explique tudo a todos.
temáticas que, aparentemente, abrigam uma uniformidade de pensamento. A
tradução visa a abrir espaços para a proliferação de outras/novas percepções.
O que traduzir? Segundo Santos (2006), o ponto central nessa questão é a
compreensão do que ele chama de zonas de contato,40 um território cuja
característica é sua vocação para a porosidade e para a permeabilidade, um
espaço-tempo de negociações de sentidos entre mundos-da-vida normativos, onde
práticas e conhecimentos se encontram, se chocam e interagem. Mas outra questão
deriva da primeira: o que colocar em contato? Não necessariamente o que é mais
relevante ou central, a principio. A dinâmica do trabalho de tradução vai
possibilitando que os diferentes saberes e culturas, por meio de processos de
negociação, estabeleçam critérios para que seus topóis possam ser expostos,
entretanto as zonas de contatos são estabelecidas nas margens ou nas periferias
onde os elementos das culturas não representam círculos muito expressivos no
interior da cultura. Nesse sentido, a tradução tem uma vocação também para
produzir um duplo movimento: um centrífugo que converge do exterior para o
interior, da periferia para o centro, e outro centrípeto do interior para o exterior, do
centro para a periferia. Logo, é possível que, nesse diálogo, pontos de uma
determinada cultura e/ou saber que, no contato inicial, se mostraram marginais,
periféricos, possam, com o desenvolvimento do trabalho de tradução, avançar para
um centro com um círculo de representatividade mais expressivo de uma
determinada cultura.
A questão dos conteúdo da tradução no âmbito escolar remete a pensar na relação
que se estabelece entre os conhecimentos ditos científicos “saber das disciplinas” e
os conhecimentos da docência “saberes da experiência”. Carvalho (2006, p. 55) a
esse respeito esclarece:
Do ponto de vista da comunidade escolar, deve o trabalho de tradução dirigir-se aos conhecimentos científicos em sua relação com os conhecimentos e/ou saberes de ‘experiências feitas’, tecidos em rede, como para a tradução dos espaços e tempos e pelos lugares marcados
40 Zonas de contatos, segundo Santos (2006, p.130) “[...] são zonas de fronteiras, terras de ninguém onde as periferias ou margens dos saberes e das práticas são, em geral, as primeiras a emergir. Só o aprofundamento do trabalho de tradução permite ir trazendo para a zona de contacto os aspectos que cada saber ou cada prática consideram mais centrais ou relevantes”.
pela individualização que impedem a emergência de novas práticas e atitudes voltadas para a identificação de interesses comuns.
Entre que traduzir? Entre diferentes saberes e/ou culturas e entre diferentes práticas
sociais. Como o mote principal da tradução é produzir diálogos e esquemas de ação
no interior das práticas sociais dos diversos grupos políticos, a tradução tem
conseguido avanços antes inimagináveis, pois, por meio de dispositivos que
realinham estratégias de ação, estabelece convergências em campos em que antes
só havia indiferença e divergências. Tem sido assim com a conjugação de ações em
torno dos movimentos operários, que se abrem para estabelecer interfaces com
movimentos ecológicos, movimentos feministas, de desempregados e outros mais.
Quando traduzir? Como princípio, as diferentes temporalidades devem ser
consideradas, o tempo deve ser mais do que um corte sincrônico, ou uma imersão
diacrônica. É preciso uma vigilância permanente para que a contemporaneidade não
se converta em simultaneidade, ou seja, é preciso que se considere a história, pois
toda cultura é histórica. Nesse aspecto, Santos (2008) alerta para o fato de que,
mesmo versões multiculturalistas que, a princípio, se apresentam com um desejo e
uma vocação democrática, trazem embutido um canibalismo cultural, a outra face do
imperialismo e/ou do colonialismo, pois, em favor do diálogo multicultural,41 impõe-se
uma temporalidade única, tornando, assim, a impossibilidade de uma maior
compreensão da História.
No âmbito escolar, não diferentemente do âmbito sociocultural mais amplo, o
trabalho de tradução deve atravessar as práticas pedagógicas, criando
oportunidades para que se instaurem processos de tradução, como ressalta
Carvalho (2006, p. 56):
[...] do ponto de vista da escola, sempre que possível, o cotidiano escolar deve estar voltado para a superação da razão metonímica e da razão proléptica e, nesse sentido, propiciar oportunidades de contatos entre os agentes escolares, [...] visando a eliminar o domínio das certezas e do futuro certo e produzir alternativas ao existente, coletivamente orientadas.
41 Boaventura desenvolve a critica à ideia de multiculturalismo simples como adição de elementos das culturas umas às outras e propõe o que ele chama de multiculturalismo de resistência, uma versão crítica contra o multiculturalismo hegemônico. A esse respeito, ver o endereço: <http://www.ces.uc.pt/publicacoes/res/pdfs/IntrodMultiPort.pdf>.
Quem traduz? Santos (2006, p. 133), reconhecendo que esse talvez seja o ponto
mais contradito do processo de tradução, esclarece que, “No futuro próximo, a
decisão sobre quem traduz irá, provavelmente, tornar-se uma das mais decisivas
deliberações democráticas na construção da globalização contra-hegemônica”.
Como a tradução é um procedimento menos técnico e mais político, com forte
envolvimento ético-emocional, deve ser protagonizada pelos envolvidos nos
movimentos sociais e é, por indicação, tarefa do intelectual cosmopolita.
Na escola a tarefa da tradução, como é uma atividade coletiva, compete aos sujeitos
envolvidos na trama escolar, ou seja, a constituição de uma comunidade escolar
alicerçada nos princípios da produtividade dialógica.
Como traduzir? Por meio de um trabalho argumentativo. Nesse aspecto, Santos
(2006), de saída, apresenta um problema, pois toda argumentação assenta-se em
axiomas, em regras, em ideias que são aceitas como verdadeiras pela comunidade
científica. O trabalho de tradução abdica de estabelecimento de topóis a priori,
sendo esse um trabalho de construção no processo. “A medida que o trabalho de
tradução avança, vai construindo os topóis que são adequados à zona de contato e
à situação de tradução. É um trabalho exigente, um seguro contra riscos e sempre à
beira de colapsar” (SANTOS, 2006, p.133). O segundo ponto de estrangulamento
refere-se à língua na qual se traduz. O autor lembra que a língua predominante nas
zonas de contato tem sido a imperial. É preciso, portanto, criar uma zona de contato
cosmopolita onde se possa pronunciar em diferentes línguas o que antes era
impronunciável por uma perspectiva monolítica. Esse impronunciamento leva a
última dificuldade: como traduzir os silêncios “[...] a gestão do silêncio e a tradução
do silêncio são das tarefas mais exigentes do trabalho de tradução” (SANTOS, 2006,
p. 135).
Considerando essas duas dificuldades a serem enfrentadas no processo de
tradução, é necessário realizar o exercício permanente de escuta, a instauração de
uma política de reconhecimentos ou, como sugere Carvalho (2006, p. 56), “[...] é
preciso buscar, na comunidade escolar, o núcleo de estereótipos sobre política e
educação, incrementando o diálogo em todas as instâncias e níveis, pois o que
momentaneamente substitui a certeza, produz insegurança, mas pode significar a
semente de uma nova configuração”.
3.3 AO INVÉS DO FUTURO, O PRESENTE: SOBRE A MEMÓRIA NARRATIVA
A razão indolente tem como premissa fundamental a ideia de progresso e futuro
certo. A perspectiva metanarrativa de que se revestiu a ciência moderna desconfia
do presente e tende a esquecer o passado. Santos (2006) ressalta que essa razão
procura dilatar o futuro à custa da contração do presente, o que remete ao
desperdício da experiência. No futuro, depositam-se as esperanças, os projetos, as
realizações da humanidade; a humanidade assim pensada é um projeto sempre
inacabado, algo sempre adiado até a próxima invenção, até a próxima descoberta.
Na perspectiva contrária à razão indolente, Santos (2006) propõe a razão
cosmopolita, uma racionalidade mais afeta aos problemas cotidianos. Portanto, mais
razoável, por meio da já referida hermenêutica diatópica, busca uma dilatação do
presente e uma contração do futuro assim referidos:
[...] o âmbito dessa subtração e dessa contracção de modo a que as experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes. Tornar-se presentes significa serem consideradas alternativas às experiências hegemônicas, a sua credibilidade, poder ser discutida e argumentada e as suas relações com as experiências poderem ser objecto de disputa política. A sociologia das ausências visa, assim, criar uma carência e transformar a falta da experiência social em desperdício da experiência social. Com isso, cria as condições para ampliar o campo das experiências credíveis neste mundo e neste tempo e, por essa razão, contribui para ampliar o mundo e dilatar o presente. A ampliação do mundo ocorre não só porque aumenta o campo das experiências credíveis existentes, como também porque, com elas, aumentam as possibilidades de experimentação social no futuro. A dilatação do presente ocorre pela expansão do que é considerado contemporâneo, pelo achatamento do tempo presente de modo que, tendencialmente, todas as experiências e práticas que ocorrem simultaneamente possam ser consideradas contemporâneas, ainda que cada uma à sua maneira (SANTOS, 2006, p.105).
A aposta de Santos (2006) no presente deve-se à sua crença de que é aqui e agora
que se inscreve a vida de cada um e de todos nós, como possibilidade de projetar-
se no futuro. O futuro é aquilo que fazemos no presente. Cuidar do presente é
garantir o futuro. O esforço de presentificar a experiência é fundamental para os
processos de emancipação do sujeito, porque ela dá densidade à vida.
Benjamin (1993), ao fazer referência à importância da experiência e às formas
narrativas de contar e encantar-se com a vida, destaca que a memória, para o
sujeito, representa a possibilidade de a um só tempo religar passado, presente e
futuro. O passado daquilo que fomos e que jamais deixaremos de ser; o presente,
aqui mesmo, como espaço-tempo da experiência sempre a nos cobrar, estamos
vivos; e o futuro, como possibilidade, como movimento e história.
Assumir a perspectiva de trabalhar com a narrativa no processo de constituição da
formação docente é uma postura política, pois busca recolocar o sujeito professor no
centro da teorização educacional. Nesse sentido, o protagonismo docente é
concebido como uma realidade, pois, como salienta Linhares (2002), a história da
educação brasileira é constituída da somatória de todas as histórias de professores
e professoras que diuturnamente têm assumido o magistério, desenvolvido sua
prática pedagógica nas milhares de escolas, centenas de milhares de classes
escolares, atendendo ao chamado do ensino. Essa história pressupõe um capítulo
especial onde se escrevam as histórias, dando, assim, aos textos oficiais uma
versão mais próxima e mais comprometida com a experiência.
. Nesse sentido, todo processo de narração é também um processo de negociação,
entre diferentes visões sobre um mesmo fato. Essa tensão gerada por posições, na
maioria das vezes antagônicas, dá à história um sentido de historicidade.
A respeito das diferentes visões sobre a história, Santos (2002), ao referir-se ao
processo colonizador sofrido pelos países latinos, especialmente da América do Sul,
destaca ainda que o olhar do colonizador foi o que prevaleceu na
confecção/invenção da história. Mesmo que o olhar do colonizado tenha se
subsumido ao do colonizador, ainda assim, há versões diferentes para esse
acontecimento. Santos (2002) provoca ao questionar: quem descobriu quem?
Remetendo a análise à concepção dialética da história que parece mais justa, pois
relativiza os fatos históricos, introduz uma outra concepção da história.
Contar, narrar, rememorar são processos de resistência, principalmente quando as
vozes são as dos esquecidos da história, aqueles cujos processos de silenciamentos
empurraram para o lado de fora da história. Os professores de alguma forma
também têm sido silenciados na história. Suas vidas são estudadas, seus resultados
são medidos, suas concepções são categorizadas, seus motivos são questionados,
enfim, são objetos de diversas teorizações que, durante os séculos XIX e XX,
tornaram exposta a veia docente sem, entretanto, ouvir a versão dos professores.
3. 4 SOBRE O SENTIDO DA EXPERIÊNCIA
A experiência é talvez a única dimensão da vida incapturável pelo outro e ninguém
pode experimentar vicariamente, pois experimentar só é possível encarnadamente.
Benjamim (1993), preocupado com o declínio da experiência, sobretudo com o
sentido único da experiência, falando especificamente sobre o avanço da
industrialização/automação da produção artística, destaca que tal processo debita
tanto no passado como no futuro da história humana. No passado, porque rompe
com a tradição e esvazia o manancial de experiência que é transmitido de pai para
filho, de artista para artista, de uma geração para outra. Tudo é resumido, passado a
limpo, maximizado, atomizado, em última instância, “capitalizado”. O débito no futuro
é representado pela falta de projeto, não se vê possibilidade de emancipação; a
história é como que prefaciada, não sendo mais possível produzi-la, reescrevê - la
ou inventá-la. Sem experiência, não há rastros, não há caminhos, não há
alternativas.
Benjamim (1993) mostra-se mais complacente com o sujeito da história, pois o
coloca no interregno, no entre “retrospectivas passadas e prospectivas futuras”, com
a condição de mover-se por entre a história. A mobilidade do sujeito por entre as
estruturas, sem dúvida, torna o pensamento de Benjamim mais próximo à
perspectiva pós-crítica e ao projeto emancipatório.
Benjamim (1993) acredita que é possível escrever as estórias dos sujeitos na
história, mesmo a contrapelo. É como remar contra a corrente, o que não é muito
fácil, mas ele sabe que não há respostas fáceis. Benjamim não acredita no fim certo.
Para ele, não há só jogos de cartas marcadas e todo jogo é um jogo, comporta a
imprevisibilidade, a inventividade e a criatividade. Ainda que as regras estejam
dadas, só se consumam quando chega o final e, nesse sentido, não há final, muito
menos final certo. Tal assertiva vem de sua crença na abertura da história. Cada
jogo é mais um jogo, não o derradeiro, e todo jogador acredita até o último
momento que é possível virar o jogo. “Afinal de contas não tem cabimento entregar o
jogo no primeiro tempo”.
Virar o jogo, na acepção benjaminiana, é escovar a história a contrapelo,42 buscando
nessa história outras histórias que escapam ao enquadramento oficial. Sendo assim,
à margem, na periferia, sub-repticiamente ao sistema oficial, sempre sobrevive uma
cultura marginalizada ou, nos termos deleuziano, uma “cultura menor”, porém não
menos importante, que, por seu caráter de resistência, mostra-se com uma
vitalidade e um potencial ilimitado de emancipação. O projeto emancipatório é fruto
de lutas feitas por entre a história oficial, comportando quase sempre longos
períodos de uma espécie de encubação histórica. Lutas nas quais não se está
sozinho; só se luta com alguém, mesmo que esse alguém seja aquele de nós no
qual nós já não nos reconhecemos mais (as lutas existenciais).
Ainda sobre os sentidos e significados da experiência, Larrosa (2002) também
argumenta sobre sua impossibilidade de acontecer em face da dinâmica da
sociedade moderna. O excesso de informação, o excesso de opinião, a falta de
tempo e o excesso de trabalho, características da Modernidade, são fatores que se
colocam contrários à experiência. Eis uma das grandes contradições da sociedade
moderna, já que a idiossincrasia da formação do sujeito remete inescapavelmente
ao sentido da experiência ou das experiências que nos constituem, indicando,
42 Esse termo refere-se ao conceito de história desenvolvido por Benjamim (1993). Ao historiador, sobretudo no que se refere ao materialista histórico, cabe a tarefa de perscrutar a história, no termo mais contemporâneo, “virá-la de ponta a cabeça”, extraindo da história mais histórias do que de fato as histórias “oficiais” revelam. Em sua sétima tese sobre o conceito de história questiona: “Com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia? A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam, são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento, pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.
assim, a direção dos fluxos de mudanças que imprimimos à nossa existência, pois,
inevitavelmente, aquilo que fazemos também nos faz.
A respeito da densidade da experiência, Larrosa (2002) destaca que experiência não
tem, necessariamente, relação com acontecimentos e fatos, pois se, assim fosse,
seríamos todos nós sujeitos experientes. Ele, então, explicita sua posição:
A experiência é o que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que passa ou o que acontece, ou o que toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe (LARROSA, 2002, p. 21).
Larrosa (2002) arremata sua percepção sobre o significado da experiência na
Modernidade. Argumenta sobre o declínio da experiência, isso devido à opção pelo
acontecimento, pelo fato, pela informação em detrimento da “sabedoria de vida
vivida”. Nesse sentido, Larrosa (2002, p. 21) afirma: “Nunca se passaram tantas
coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. É mais rara, porque os processos
de agenciamentos presentes na sociedade moderna engendram processos de
resignação e subserviência, de maneira a produzir uma espécie de amortização das
consciências. Como exemplo, ele cita a asfixia da informação: “[...] a informação não
é experiência [...] a informação não deixa lugar para a experiência, é quase o
contrário da experiência, quase uma anti-experiência” (LARROSA, 2002, p, 21).
Tal processo é também observado por Santos (2005), por outras vias. No prefácio
geral de sua obra “A critica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”,
ele questiona, perplexo:
Não parece que faltem no mundo hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo [...]. Vivendo nós no início do milênio num mundo onde há tanto para criticar porque se tornou tão difícil produzir uma teoria crítica? (SANTOS, 2005, p. 23).
Será que não estamos sendo tocados por tão evidentes e contundentes
acontecimentos de maneira a provocar uma indignação? Talvez sejam
acontecimentos, coisas que passam e modos de tocar a vida que não estejam nos
tocando, que não estejam nos passando ou nos acontecendo. Assim nos
acostumamos com uma “sociedade espetacular” (GUY DEBORD, 1997), que inverte
a realidade de maneira que preferimos o filme, a novela, o drama, a propaganda, o
reality show ao real.43 A sociedade do espetáculo hipervaloriza o fato, a informação
em detrimento das experiências, pois essas precisam de um tempo, obedecem a
uma lógica que não interessa ao sistema. Assim, há um desinteresse pela
experiência, que nem sempre é interessante, ou potencializadora da
espetaculização das consciências. Desse modo,
A realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente (GUY DEBORD, 1997, p. 10).
Como efeitos dessa inversão e/ou espetacularização da vida, temos a atitude de
naturalização dos acontecimentos, de maneira que encaramos as coisas como se
fossem acontecimentos banais, que adicionamos as nossas vidas e passamos a
conviver com esses fatos como se fossem extensões de nossa existência.
Guy Debord (1997, p. 9) destaca ainda: “[...] o espetáculo em geral, como inversão
concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”, ou a negação da vida pela
sobrevivência. Assim, observam-se, na sociedade moderna, pessoas que,
deliberadamente, assumem a sobrevivência em detrimento da vida; a vida é algo
que fica resumida, ou adiada para um tempo futuro, que, na maioria das vezes, não
chega nem mesmo com a aposentadoria, está já em franco declínio na sociedade do
trabalho. A esse respeito Guy Debord (1997, p. 11) afirma:
Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível.
Essa crítica à negação da vida ou da capacidade de pensar o vivido como espaço-
tempo das experiências significativas que nos constituem tem importância crescente
43 Observa-se, em especial, a espetacularização das desgraças e das tragédias da vida humana. A guerra tem tornado uma atração à parte na programação das grades de televisão, de maneira que suspeitamos dos motivos das guerras. Sabemos que, para além de questões religiosas ou étnicas, as guerras escondem interesses políticos e econômicos que produzem guerras para manutenção do poder.
na teorização social, pois remete à reflexão sobre o que os sujeitos sociais estão
fazendo daquilo que os agenciamentos modernos têm feito com eles nas relações
cotidianas (trabalho, família, escola, lazer, etc.).
Falando ainda da experiência,44 é importante destacar que, contrapondo-se à
sociedade espetacular ou à regulação social imposta na sociedade, a atividade de
rememoração/narração apresenta-se como alternativa exequível. Por esse motivo,
Benjamin (1993) salienta que a narrativa deriva da experiência, sendo a memória o
seu receptáculo privilegiado, ou seja,
Possui a qualidade de provocar transformação na forma como as pessoas compreendem a si próprias, aos outros, ao contexto social, político, cultural e histórico em que se deram e ainda estão se processando suas experiências. Pode-se dizer também que, além do aspecto formativo, a narrativa é um processo auto-formativo. O movimento de assumir o protagonismo da própria vida implica, entre outras coisas, mergulhar em si mesmo e distanciar-se de si, desconstruir e reconstruir as próprias experiências, teorizar sobre essas mesmas experiências, aprender a aprender, aprender a estranhar aquilo em que se acredita (CICILLINI; DIAS, 2005, p. 2).
Assim como Cicillini e Dias (2005), acreditamos que, nas formas de narrar-se,
encontramos também possibilidades de formar-se professor, sobretudo quando os
contextos narrativos permitem a elaboração de um texto formativo. Nesse aspecto,
acreditamos que as histórias narradas pelos professores compõem um amplo e
irrestrito campo de conhecimentos sobre a docência. Portanto, possibilitar que os
professores narrem suas experiências docentes, destacando aspectos referentes à
sua opção pelo magistério, ao seu percurso de desenvolvimento profissional, aos
desafios enfrentados no desenvolvimento de sua prática pedagógica na escola e,
sobretudo, fazendo referência aos processos de formação continuada que têm
participado, pode oferecer um material que concorra para processos de auto-hetero-
coformação. Nos capítulos que se seguem, apresentaremos as narrativas
tangenciado as questões que envolvem os processos de formação continuada que
os professores vivenciam no cotidiano das escolas, tentando evidenciar as
possibilidades de formação que são produzidas no cotidiano dos cinco centros
municipais de educação infantil que pesquisamos.
44 Nesse sentido da experiência como constituidora da nossa existência e matéria-prima da memória, Audous Huxley ressalta que “Experiência não é o que acontece com um homem é o que um homem faz com o que lhe acontece".
CAPÍTULO IV
4 ALGUMAS HISTÓRIAS DE COMO SE CONSTITUEM AS PROFESSORAS
Por que o recurso às narrativas das professoras como possibilidade para se pensar
em processos de formação continuada? As narrativas traduzidas em histórias de
professoras acumuladas ao longo do desenvolvimento profissional trazem em si uma
dimensão que, durante muito tempo, na pesquisa científica, sobretudo na área da
educação, estava esquecida. Segundo Souza (2006), a partir das reflexões de
Nóvoa (1988), o crescente interesse por essas histórias está ligado ao movimento
atual que procura repensar as questões de formação dos professores, acentuando
a ideia de que ninguém forma ninguém e que a formação é, inevitavelmente, um
trabalho de reflexão sobre os percursos de vida. O conteúdo das histórias contém
um material importantíssimo para ser explorado nos processos formativos.
Ressaltando a riqueza das histórias vividas e contadas pelas professoras, sobretudo
a importância da história como categoria linguística central na constituição do
homem, Alves (2001) destaca que nós somos aquilo que contamos de nós mesmos,
constituindo-nos numa espécie de identidade.
O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos quando narramos uma história. Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que lembramos não são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado, e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais (THOMPSON, 1998, apud ALVES, 2001).
Se nos constituímos por meio das narrativas que fazemos de nós próprios e das
histórias que os outros contam sobre nós, a constituição do professor também
obedece a essa premissa fundamental. Todos nós guardamos histórias de
professores e professoras que marcaram nossas vidas, que ainda arquivamos na
memória e às quais recorremos quando somos confrontados com situações que nos
solicitam essa lembrança.
A narração tem estreita relação com a atividade de rememoração. Lembrar é
aprender, e aprender é lembrar. Essa dialógica remete a pensar nas imagens que
buscamos nas lembranças, uma condição importante para ajudar-nos em nossos
processos formativos, pois, revisitando percursos de desenvolvimento pessoal e
profissional, as professoras são convidadas a encontrar possibilidades de se
encontrar pelos labirintos da memória. Lembrar é também encontrar saídas! Como
já nos referimos na parte inicial “quem não sabe de onde veio dificilmente sabe para
onde está indo”, consequentemente, com poucas chances de se encontrar.
Ao narrar, as professoras são convidadas a reencontrar-se com a história e, nesse
exercício, tem a possibilidade de demarcar alguns dos percursos empreendidos. A
prática docente oferece muitas ciladas. Quem é professor sabe que muitas vezes
nos encontramos perdidos, fato que se exprime em fechamentos conceituais
expressos em narrativas vindas das escolas que afirmam: “Os alunos não têm mais
jeito! Eu já fiz tudo, mas não tem jeito! As famílias estão todas desestruturadas e não
ajudam! Eu não acredito mais na escola!”.
Essas expressões recorrentes nas conversas de sala de professores, nos
corredores e pátios, revelam alguns dos fechamentos e/ou encruzilhadas a que todo
professor está sujeito no desenvolvimento da profissão. Mas, lembrar ou recorrer à
história é uma das condições para encontrar e abrir portas, “possibilidades, saídas”,
e a lembrança desses fatos mostrou-se um ponto forte, pois da realização e do
projeto feito surge a possibilidade de continuar fazendo.
O recurso de utilizar as memórias de formação das professoras tem-se mostrado
relevante, pois a experiência docente não se inicia com a formação acadêmica, fato
amplamente discutido na literatura sobre processos de formação. Considerar essas
histórias narradas como material de formação possibilita, primeiramente, uma
autorreflexão sobre percursos formativos e percursos docentes e,
complementarmente, possibilita a ampliação das referências docentes para aqueles
professores que tiverem acesso às narrativas.
No cotidiano da pesquisa, fomos percebendo que essas histórias são acessadas
pelas professoras com muita frequência, sobretudo em momentos informais de
discussões. Na sala dos professores, no horário do pátio, era muito comum vir à
tona fatos e acontecimentos inerentes ao processo de formação inicial e continuada.
Destacamos que, nesses momentos, podíamos identificar as instituições onde as
professoras se formaram e, também, as instituições que atualmente frequentam
(especialização, cursos de aperfeiçoamento, oficinas, etc.). Um fato muito comum se
refere à lembrança dos professores que mais marcaram seu percurso acadêmico e
ainda a contingências do percurso de formação, como falta de dinheiro, dificuldade
com os familiares, etc.
Antes de passarmos às narrativas, é importante sublinhar que o uso que fizemos
das histórias foge da perspectiva crítico-interpretativista. A direção que assumimos
concebe essas narrativas como dimensão singular da experiência docente, em que
cada professor, de forma única, viveu a sua. Assim, não privilegiamos análises
comparativas, pois, como afirma Ferraço (2005), a pesquisa com o cotidiano se
resguarda do uso excessivo das teorias de apoio para afirmar as falas dos
professores, porque, na lógica do cotidiano, não há comparações, cada experiência
é única e essa singularidade tem a potencialidade de fertilizar outras experiências,
provocando uma multiplicidade de experiências.
4.1 MOSAICO NARRATIVO: PARTES DE HISTÓRIAS INDIVIDUAIS QUE
CONFLUEM PARA HISTÓRIAS COLETIVAS
Contar histórias não é fácil, sobretudo quando somos solicitados a fazer isso. No
geral, nossas narrativas são espontâneas, recurso linguístico que usamos mais de
forma ilustrativa do que como recurso conceitual ou histórico. Mas o uso que
fazemos das histórias expressa a necessidade que temos de existir, não apenas
conceitualmente, mas de forma encarnada nas histórias que contamos e nas
histórias que nos contam sobre nós, pois a vida de quem já viveu só existe nas
histórias que se podem contar sobre ele. Assim, contamos histórias para que
aqueles de quem alimentamos lembranças jamais morram em nós. Dessa maneira,
as histórias narradas são tentativas de manter vivo em nós o passado e aprender
com suas lições, para melhor viver o presente e ter expectativas futuras
(BENJAMIM, 1993).
Outra dimensão expressa por Benjamim (1993) é a possibilidade de, por meio das
narrativas, estabelecermos e ampliarmos círculos de diálogos em torno de temáticas
que nos passam. O valor da narrativa está na vinculação que tem com a obra
realizada, ou seja, a narrativa tem como fonte a experiência já feita. Depreende-se
daí que tem a potência para organizar em torno de si uma pluralidade de
pensamentos concorrendo para a constituição do projeto coletivo. Benjamim ressalta
também que aquele que se propõe a narrar o faz sem uma distinção entre grandes
e pequenos fatos e lembranças, ou seja, tudo aquilo que é colocado na trama
narrativa, de alguma forma, merece ser considerado.
Ao ouvir as narrativas das professoras, chamou-nos a atenção como histórias tão
particulares e fatos tão peculiares, quase todos contados na primeira pessoa do
singular, revelam uma pluralidade que remete à constituição de uma história
coletiva. Essas narrativas integram a história da constituição da profissão de
professora no Brasil e revelam as transformações em curso dessa história,
produzida nas dobras dos cotidianos das escolas.45
As marcas de professora, mulher e mãe, de condição socioeconômica baixa,
aparecem recortando quase todas as narrativas, revelando que a docência no Brasil
é uma mistura de contingência socioeconômica, fato que leva o magistério a ser
caracterizado como profissão de quem tem menos condições financeiras e opção
ético-política relacionada com a vinculação que o magistério estabelece com as
questões sociais.
Na narrativa da professora Cristina, aparecem algumas dessas marcas, destacam-
se as marcas sociais e econômicas:
Eu me tornei professora porque eu sempre estudei. Tinha muita dificuldade, eu sempre gostei da escola, apesar de que nossa família também tinha muita dificuldade, era um ano estudando e o outro parado, mas eu via a professora como um ser essencial para a vida das pessoas, porque era ali que a gente aprendia as primeiras letras, apesar de eu ter vivido momentos com professores muito agressivos, com régua de madeira. Eu apanhava para saber o b-a-bá, então era aquela coisa mecânica. Eu aprendi a ler e a escrever com muita agressividade, mas eu sentia prazer em saber ler,
45
Almeida (2004), a partir da compreensão das histórias das muitas mulheres professoras, mostra que a relação que as mulheres estabeleceram com o magistério não comporta uma narrativa única. Ainda que as mulheres tenham sido submetidas ao magistério, sua aceitação abrigava outros interesses, dentre eles, os das próprias mulheres que na época viam no magistério uma oportunidade de se inserir na vida pública e alcançar autonomia diante das imposições de uma sociedade machista.
e eu era uma criança que não tinha muitas oportunidades, pela dificuldade da minha família, em relação a recursos, então eu me tornei professora porque eu amava aquele ambiente, onde eu frequentava, eu achava legal ser professora, eu não fui fazer magistério obrigada, mas porque eu achava que, dentro do curso de magistério, você poderia realizar vários desejos, porque a vida da gente é realização de desejos, então era um desejo que eu tinha, e não um sonho, porque sonho é uma coisa que se sonha, e pode concluí-lo até no pensamento, e desejo é aquilo que você sente, que você vive. Quando eu fui fazer o magistério, era um magistério diferente, porque eu tenho 27 anos de magistério. Avaliando tudo hoje, eu acho que eu fui fazer o magistério para ter uma profissão, mas também fui por amor, aquele desejo de conquistar, viver aquela situação e estar no lugar daquela pessoa.
Chama-nos a atenção, na narrativa da professora Cristina, a forma como ela vai
revelando o lugar e a condição que a motivaram a tornar-se professora. Sua
experiência revela um contexto em que a educação era também sinônimo de
disciplina, “castigo físico”, mas esse fato não eliminou dela a vontade de assumir o
magistério para poder contribuir de alguma forma com as crianças que, como ela,
não têm nem condições nem oportunidades.
Talvez o fato de morar no bairro São Pedro contribuiu para a professora Cristina ter
uma ligação muito forte com a prática educativa dos seus alunos. A diretora referia-
se à professora Cristina como uma professora comprometida com a escola,
entretanto, participando da vida do CMEI, pudemos perceber que o
comprometimento da professora Cristina, não era só com o CMEI, era com a
educação das crianças e com a comunidade como um todo.
Sua história traz as marcas que agora ela tinha a oportunidade de amenizar nos
seus alunos. “Filha de São Pedro”, participou de todo o movimento de ocupação do
bairro. Posteriormente, foi uma das primeiras professoras da região, fato que
outorga a ela uma espécie de autoridade docente dentro do CMEI. A experiência de
vida da professora Cristina, revela que, ao exercer sua prática, ela vê, em cada
aluno, seu reflexo. Assim como ela se tornou professora, apesar de muitas
dificuldades, acredita que os seus alunos também poderão ser “alguém” na vida.
A materialidade da vida e o sentido da experiência destacam sua narrativa como um
texto formativo, pois mostra como sonho e realidade se conjugam dentro de um
projeto de existência. O uso que faz do substantivo “essencial” revela sua crença na
construção de possibilidades a partir da vida concreta, o que se evidencia em sua
própria vida de mulher, filha de família pobre, mas com muitos sonhos e, sobretudo,
com um desejo de conquistar algo na vida. Na professora Cristina, opera-se a
transformação da experiência em si em um saber experiente, o que redimensiona
sua perspectiva de vida e dá sentido à prática pedagógica, fazendo dela uma
professora comprometida com a escola e com os seus alunos.
As narrativas revelam dimensões importantíssimas a serem consideradas para uma
tentativa de compreensão do cotidiano. Ouvir os professores extrapola a perspectiva
unicamente analítica. Interessou-nos ouvi-las a partir de uma perspectiva da
hermenêutica da compreensão da realidade (SANTOS, 2006). Ao assim fazer,
colocamos em suspense nossa tendência de esquadrinhar e de tecer análise, muitas
vezes, a partir de nossa única oitiva, desconsiderando a riqueza das narrativas em
si.
A narrativa em si tem a potencialidade de emergir como discurso. A esse respeito,
Fischer (2004) desenvolve uma justificativa para valer-se do recurso às histórias de
vida, em particular o uso de depoimentos e narrativas individuais para relacionar
com contextos coletivos. O esforço da autora foi mostrar que, mesmo que o sujeito
não exista como identidade autocentrada e que se expresse pelo discurso, a
vitalidade do discurso pode operar a mudança, possibilitando que o sujeito do
discurso se afirme, não individualmente, “identitariamente”, mas como coletivo
organizado, no caso em questão, em que as professoras se fortaleçam em suas
formas singulares de perceber, sentir e narrar suas práticas.
Fischer (2004) apresenta outras contribuições importantes para apoiar a emergência
das narrativas como discurso: a imersão no contexto de pesquisa, a aproximação
com os sujeitos da pesquisa e a indistinção com a realidade. A emergência da
narrativa como discurso se justifica porque, tanto no plano epistemológico como no
societal, as histórias que compõem o universo de formação permitem aos
professores o estabelecimento de vínculos (discursivo, político, cultural, social,
histórico, afetivo) entre aqueles que narram e aqueles que têm contato com as
histórias. Ainda que essas dimensões, em muitas pesquisas, apareçam como pano
de fundo, em nosso trabalho de pesquisa, o estabelecimento de vínculos com o
discurso do cotidiano, expresso nas narrativas, é uma questão que, aparentemente,
não tem uma dimensão política, mas traz embutida uma forte vocação para a
construção do projeto de emancipação.
Apresentaremos, na sequência, extratos de quatro narrativas produzidas a partir da
proposição que fizemos às professoras para que nos contassem como se deu o
processo de escolha e identificação com a docência. Registraremos também uma
narrativa na íntegra, para que possamos ter uma dimensão mais completa das
diversas nuances que envolvem o processo de formação e desenvolvimento no
interior da profissão ao longo da carreira.
Primeira história
Dos bastidores da escola à cena da escola
Iniciamos com a narrativa da professora Daniela, pois, em nossa compreensão, tem
muitos elementos que retratam as trajetórias de constituição das professoras.
História singular que se liga e se comunica com as muitas outras histórias plurais,
vividas de forma única pelas professoras. Eis a narrativa.
Eu fui criada nos bastidores da escola. Minha mãe era diretora, foi professora, então eu estava sempre na escola estudando e sempre nos bastidores, nas reuniões, nos encontros e antigamente, tinha planejamentos, que era tudo no sábado. Estava na arrumação das festas e eu gostava muito, acho que por eu ter muita admiração pela minha mãe como professora e por algumas pessoas que faziam parte da escola, como a pedagoga, então eu tinha dentro de mim, que, quando eu crescesse, eu queria ser igual à tia fulana e eu admirava aquele mundo. Pra mim era muito bonito ser professora, ser pedagoga. Quando eu tinha uns dez anos e eu estava na 4ª série, às vezes as professoras me pediam alguma coisa, como: “Daniela, segura a turma lá pra gente”. Então parecia que eu já tinha aquele jeito assim. Sempre fui líder de grupo, esse tipo assim, então eu sempre ia e gostava de brincar de ser professora na minha rua. Minha brincadeira era fazer o dever de casa na minha rua com todo mundo. Eu estudava de manhã, então à tarde o pessoal ia lá pra casa, e eu dava aula, eu tinha o meu quadrinho, eu era a professora da turma. Então eu acho que me tornei professora muito antes de entrar na faculdade e aí, quando eu quis fazer o magistério, eu estava com 15 anos, meus pais não queriam deixar eu estudar, eles falavam: ‘você só vai poder fazer o magistério, se você fizer à noite outro ensino médio’. Então eu falei: “Está bom, vou fazer”. Aí eu fazia magistério de manhã e ensino médio à noite na escola pública e à tarde eu fazia um curso, na área de educação, mas os meus professores achavam que eu tinha que ser advogada. Eles falavam que eu tinha que fazer escola técnica, mas eu não conseguia me imaginar dentro da escola técnica, eu não quis fazer, eu tinha um geniozinho bem forte, aí eu fiz o magistério, trabalhei numa creche particular, na Praia da Costa, e depois arranjei emprego na área médica, fiquei trabalhando. Depois eu passei na faculdade, fiz o vestibular, passei, então eu acho que o que mais contribuiu foi essa vontade que eu tinha de chegar onde eu estou hoje, apesar de hoje eu achar que tenho de ir mais além. Era isso que eu queria ser, eu queria ser pedagoga e queria ser professora. Foram meus pais que contribuíram muito, apesar de a gente ter uma origem humilde, mas a gente tinha muitos livros em casa e meu pai escreve, ele é professor e também escreve vários poemas, então eu sempre estive ligada a essa área, a esse mundo de livros e de histórias, de coisas assim.
Destaca-se, na maneira como a professora Daniela expõe, o forte teor de
determinação pela profissão, revelando que seu processo de constituir-se professora
foi se produzindo na própria docência, pois relata que, ainda com dez anos, já
frequentava o contexto da escola. A influência de sua mãe professora é outro fator a
se ressaltar. O exemplo deixado por ela, associado a outros exemplos na escola,
exerceu uma influência significativa em sua decisão. Ainda que não possamos
dimensionar a relação que essas experiências vivenciadas ao longo de sua vida
tenha sobe a forma como a professora Daniela exerce a docência atualmente, temos
fortes indícios de que as formas de constituição da profissão estabelecem ampla
relação com os percursos de vida.
A respeito dessa trama narrativa que envolve lembranças passadas, projetos em
curso e também expectativas futuras, Alves (2009, p. 2) nos lembra que:
No caso do praticante da docência, “aprendemos o ofício” nas inúmeras “aulas” assistidas e compartilhadas durante toda a trajetória que nos levou a ‘escolher a profissão e nela ficar’ pelas relações que mantemos com os praticantes dos múltiplos contextos cotidianos em que vivemos. Por isso mesmo, as narrativas vêm misturando: a) o passado com o presente (histórias de ontem comparadas com o hoje e nas quais este indica possibilidades para o que ainda virá e nas quais os tempos se misturam não tendo, nunca, limites precisos); b) memórias organizadas com as narrativas que nos foram feitas por outros e nas quais, sem problema, assumimos, inúmeras vezes, o lugar de protagonistas; c) a existência nos inúmeros contextos cotidianos, mostrando a relação de uns sobre os outros; d) situações difíceis sempre misturadas com algum caso engraçado ou urlesco, que contradiz e problematiza, muitas vezes, o que vem sendo dito; e) realidade e imaginação, pois nenhuma narrativa é neutra e conta com importante contribuição do estilo de quem a conta, seja um grande cientista, seja uma praticante do contexto escolar.
A chamada simetria invertida,46 fato característico na constituição do professor,
mesmo que não determine a forma como desenvolveremos, e nos
desenvolveremos na profissão, e, também, a maneira como nos envolvemos com a
profissão, fornece-nos algumas pistas para compreendermos as complexas redes
46 Termo que se refere ao fato de o professor se constituir não apenas pela via acadêmica, ou seja, os anos que o aluno tem contato com um professor durante sua vida exerce certa influência. Caso ele, mais tarde, opte pelo magistério, depreende-se daí que há uma tendência de os professores, sobretudo no início da carreira, recorrerem a modelos de docência aos quais foram submetidos nos tempos em que eram alunos.
que envolvem os percursos formativos. A questão que perpassa essa articulação,
entre lembranças passadas, possibilidades inscritas no presente e expectativas
futuras, é a consideração com esses diferentes espaços-tempos formativos que
cada professor traz como experiência pessoal e profissional.
Outro aspecto que merece destaque é o sentido de continuidade que os percursos
narrativos desenham. No caso da professora Daniela, isso se evidencia pelo fato de
manifestar seu desejo de ir além, ou seja, continuar estudando, “se formando
continuamente”, entendimento esse que revela o quanto coloca na formação
expectativas de inscrever no hoje possibilidades de produção de seu futuro pessoal
e profissional. Como ela já tem pós-graduação, confidenciou-nos que seu desejo é
fazer mestrado, um projeto que terá que ser adiado em função de um outro projeto,
o de ser mãe.
Segunda história
A certeza de ser professora!
As narrativas das professoras demonstram um mosaico de motivos e intenções que
envolvem “raízes e opções” (SANTOS, 2006) pelo magistério. De quase destino
único, como já expresso acima, às demonstrações de identificação inequívoca pelo
magistério são reveladas em narrativas como a da professora Esdra:
A minha trajetória foi praticamente igual a das meninas, em questão daquele dom de criança, de brincar, de dizer que ia ser professora. Tia para lá, tia para cá. A minha mãe também é professora, cresci também ali dentro da escola, participando de tudo, me envolvendo nas atividades e, quando eu terminei o antigo ginásio, até a 8º série, foi hora de entrar no magistério, eu já estava certa de que iria ser professora e fui fazer o magistério que ficava um pouco distante da minha casa e, como nossa situação financeira era um pouco mais complicada, eu me matriculei pra fazer contabilidade, que era perto de casa, e fazer o magistério em Coqueiral de Itaparica. Eu morava em Paul, fica bem distante e comecei a fazer os dois cursos, contabilidade à noite e magistério lá que, caso eu não conseguisse ter o dinheiro da passagem, eu já estaria matriculada no outro, mas graças a Deus, eu consegui terminar, com muita dificuldade, que só Deus sabe como. Meus pais são separados. Era minha mãe para tudo e, desde o primeiro ano de magistério, eu já substituía à tarde e à noite lá na escola onde minha mãe trabalha até hoje e ali fui pegando prática. Já era praticamente quase uma professora lá, mas eu já trabalhava, já tinha meu dinheirinho, então ajudava e, quando eu terminei o magistério, foi aquela sensação de não ter passado na UFES. Tentei duas vezes sem cursinho. Consegui entrar na faculdade agora, depois que eu efetivei na Prefeitura de Vitória, eu já dava aula lá e, em escola particular também e trabalhando sempre com substituições em escola particular. Quando eu efetivei em Vitória, no primeiro ano, já entrei na faculdade pra fazer o Curso de Pedagogia e consegui concluir o ano passado, mas era uma luta constante, pra fazer o que eu queria, igual à gente fala, que não é demagogia, que trabalha no que gosta, no que quer e no que ama, não, porque, quando a gente vê uma professora reclamando que é estressante e tal, a gente fica até com aquele receio de falar: “Nossa, eu amo a minha profissão!”. Então a gente prefere ficar lá do que muitas vezes falar o
que sente realmente. Claro que faz falta falar que a garganta fica machucando, igual na faculdade, por ter essa prática, a gente vivencia muita coisa, vai aprendendo muita coisa, e essa faculdade, assim, não que eu não tenha aprendido nada, mas sempre tem aquela coisazinha que fica, mas foi ajudando e eu nunca tive dificuldades na faculdade, sendo sincera, por causa disso, mas é aquela questão das meninas que nunca tinham mesmo, bom, não sei, só sei que a gente não precisava correr atrás das coisas, a gente tinha tudo lá de mão beijada, na época que eu fiz.
A professora Esdra mostrou-se muito receptiva a nosso convite para que nos
contasse sua história. Percebemos que ser professora para ela é algo que a
realiza. Como nas outras narrativas, aparece na cena aquela “menina moça mulher”
normalista que, de forma idílica, vislumbra um mundo de possibilidade na profissão
de professora. Sua narrativa revela a força desse sonho: “Eu estava certa de que
seria professora”. Com a realização de seu sonho, aparecem os desafios da
realidade, ou seja, a professora Esdra primeiro conseguiu se efetivar por meio de
concurso público e só, então, pôde dar continuidade a seu projeto (sonho-realidade),
ou seja, agora como professora, de fazer a faculdade de Pedagogia para ser mais
professora ainda (professora com curso superior).
A narrativa da professora Esdra também traz as marcas da contradição presente na
sociedade e revela um fenômeno bastante peculiar inerente à formação de
professores no Brasil. O magistério ainda prescinde de uma formação superior-
anterior, como a professora Esdra revela, “[...] desde o primeiro ano de magistério eu
já substituía à tarde e à noite lá na escola onde minha mãe trabalha até hoje e ali fui
pegando prática, já era praticamente quase uma professora lá”. Mas o fato de estar
inserida na prática antes mesmo de estar formada, segundo ela, ajudou-a em seu
curso de formação em Pedagogia. Esse fato revela a complexidade que envolve os
processos de formação tanto inicial como continuada, ou seja, os processos de
formação precisam ser compreendidos em suas intrincadas redes de relações.
Terceira história
Uma professora multipluridocente
As histórias das professoras encantam por combinar uma mistura de heroísmo e
profissionalismo. A narrativa da professora Eleir é, assim, uma história que nasce do
idealismo, ou mesmo do romantismo, daquela filha, “menina mulher”, que abraça a
causa de ser professora por contingência contextual, pois só havia essa opção. Ser
professora, mais do que uma escolha, era uma determinação. Ou se era professora
ou não se era “nada mais do que dona de casa”. Essa opção, mesmo que não
explicitasse uma escolha, configurava-se numa resistência, tinha esse caráter, pois
o magistério, para muitas mulheres, como para a professora Eleir, significou a porta
de entrada para vida pública e para o processo de conquista de sua emancipação
socioeconômica.
Quando eu era adolescente, tinha aquela coisa do romantismo pela profissão. Eu queria ser professora por causa dessa questão de afetividade, gostava de ensinar de aprender. Na escola, eu sempre fui boa aluna, sempre tive bom relacionamento com os professores, sempre tive esse romantismo, aquela coisa idealizada na cabeça, então acabou, com o tempo, que eu percebi que eu poderia ter outras vertentes, mas eu morava no interior, e lá não oferecia muitas oportunidades, então o único curso profissionalizante que tinha era o magistério. Outro curso que tinha não era profissionalizante, que era o de auxiliar de contabilidade, então eu conversei com meu pai e resolvi fazer o magistério por oferecer essa possibilidade. Minha família não tinha uma situação financeira boa, era razoável A gente vivia tranquilo, mas eu precisava trabalhar, precisava de um curso que me permitisse, ao concluir, já começar a trabalhar, então eu fiz o magistério sem muita opção, mas não era aquela coisa assim, não era um coisa forçada, mas, se tivesse outras oportunidades, eu teria também tentado outra coisa, talvez até faria a opção do magistério, mas tentando essas outras também, mas eu não tive, a única que eu tinha eu entrei e permaneci e, ao concluir o magistério, eu fiz uma prova de seleção, e foi em uma cadeira do interior, na roça mesmo. Então dois anos iniciais eu trabalhei pelo Estado, na roça, então passei dois anos no interior assim, fora de casa, então foi uma experiência muito boa pra mim. Eu estava com 18 anos de idade, nunca tinha ficado fora de casa. Eu tive que ficar na casa de uma outra família e eu tenho essa amizade até hoje. Foi uma experiência boa, mas muito desafiante, foi sofrido, às vezes eu chorava, e era uma época muito difícil. Não tinha energia, nem água. Na escola onde eu trabalhava, eu fazia merenda e essa senhora que eu fazia hospedagem me ajudava a fazer a merenda, e as crianças comigo lavavam as vasilhas, lavávamos os banheiros, e a gente tinha que pegar água do rio, descer um ladeira e trazer. Hoje é tão cômodo na escola, tão simples abrir a torneira. Não tinha material direito, era insuficiente, então muita coisa eu tinha que comprar do meu bolso, papel chamex, essas coisas. Então essa experiência foi muito boa, porém muito desafiante, e eu me senti muito preparada. Isso foi em 1984, aí, em 1985, eu fui contratada pelo Município de Vitória e minha avó morava aqui em São Pedro, aí eu vim pra casa da minha avó sozinha, meu pai permitiu, tudo aqui estava bem no começo.
As imagens que a professora Eleir vai trazendo à tona nos permitem vislumbrar um
percurso formativo que supera a perspectiva unicamente acadêmica, ou seja, é uma
professora que se constituiu também pelas experiências que passou: sua escolha
consciente pela profissão, seu início longe de casa, “na roça”, as redes de
solidariedades tecidas com uma moradora da comunidade que cedeu hospedagem
para ela e também as redes estabelecidas com os alunos que tinham que ajudar a
lavar as vasilhas da merenda. Tinham que pegar água no rio, limpar os banheiros. A
lembrança do choro, como expressão de tempos difíceis, traz junto também a
certeza de que “[...] essas experiências foram muito boas, porém desafiantes, e eu
me senti muito preparada!”.
Sua história remete a pensar que os percursos profissionais estabelecem forte
ligação com os percursos formativos, ou seja, a preparação a que faz referência a
professora Elenir é fruto de um amplo e complexo processo vivenciado no cotidiano,
que mistura diferentes dimensões da vida pessoal e profissional. Como ressalta
Perez (2003), um olhar atento sobre as histórias de vida nos permite compreender
como essas mulheres vão desterritorializando-se e reteritorializando-se num
processo de construção permanente de sua identidade profissional.
A professora Elenir finaliza sua narrativa fazendo referência à sua vinda para região
de São Pedro, no início da década de 80 “[...] minha avó morava aqui em São Pedro,
aí eu vim pra casa da minha avó sozinha, meu pai permitiu, tudo aqui estava bem no
começo”. Em outras partes de sua narrativa, podemos identificar como ela se
integrou nesse movimento de construção do atendimento educacional na região de
São Pedro, mostrando como a docência, para além de uma aplicação técnico-
pedagógica, também tem uma forte dimensão político-social.
Quarta história
Marcas de mulher professora: experiência de vida
Já havíamos ouvido várias histórias, muitas forjadas nos bastidores de vidas
subjugadas por condições bastante adversas. Como já nos referimos, o contexto e o
texto da constituição das professoras parecem, em muitos de seus capítulos, uma
história única. São mulheres quase todas vindas de famílias de condições
socioeconômicas baixa e com uma obstinação pelo crescimento pessoal e
profissional, mas a história da professora Marinete traz um acontecimento que, sem
dúvida, produziu uma marca indelével em sua vida, pois sua escolha, de alguma
forma, tem a força da lembrança do percurso que a conduziu ao magistério:
Bom, antigamente, eu era policial militar e foi nessa época que eu engravidei. Como naquele tempo o regime era bem fechado, eles não permitiam que a policial casasse ou engravidasse e, como eu tinha engravidado, fui forçada a sair da Polícia Militar pelo fato de eles quiseram que eu fizesse um aborto para continuar na polícia, então eu tive que deixar a carreira de policial. Eu fiquei desempregada e meu marido tinha uma firma de construção civil e teve que fazer um serviço numa cidade do interior. Então, nós nos mudamos para lá. Eu achei bom, porque eu estava passando por um momento difícil da minha vida, então fomos embora para o interior e lá eu tive meu filho. No ano seguinte, eu tive minha filha e fiquei por lá mais ou menos quatro anos. Em 1990, eu retornei para Vitória para fazer magistério e, como eu tinha o ensino médio completo, eu consegui me formar mais cedo. Em 1992, eu me formei. Em 1992, eu voltei para o interior, porque eu sabia que, em Vitória, ia ser difícil eu
conseguir dar aula, porque eu não tinha experiência, então comecei a dar aulas numa escola da 1ª a 4ª série e, em 1996, eu retornei para Vitória. Em 1997 e 1998, eu trabalhei numa escola de 2º Grau dando aula no ensino médio e, em 1999, eu fiz um concurso e comecei a dar aula pela Prefeitura. No ano 2000, eu fiz faculdade de Pedagogia, em 2004, terminei e, em 2005, comecei a fazer pós-graduação em Educação Ambiental. Em 2007, terminei a pós-graduação.
Após ouvir a professora Marinete nos questionamos: o que dá experiência e qual o
sentido da experiência para a constituição do sujeito? Essa é uma história de uma
professora que aprendeu com a experiência da vida. Sua narrativa remete a uma
compreensão da inter-relação entre diferentes percursos e trajetórias de vida e
diferentes saberes-fazeres que constituem a prática do professor. Larrosa (2001)
atribui à experiência uma dimensão importantíssima da vida, fora da qual apenas
somos espectadores.
Marinete nos falou de sua angústia diante da escolha que foi forçada a fazer.
Segundo ela, na época, era quase impossível questionar a autoridade militar. O fato
de ser uma das primeiras mulheres a ser admitida na Policia Militar já era inusitado
em uma sociedade machista. Mas ficar grávida, ter filhos fazendo parte de uma
corporação? Como sua opção foi pela maternidade, precisou imprimir novos rumos
à sua vida pessoal e profissional.
Seu encontro/envolvimento com o magistério se dá nesse contexto. Sua narrativa
nos causou grande impressão, de maneira que acabamos por nos identificar com a
sua história, pois, de alguma forma, sua experiência pessoal a tinha transformado
em uma experiente profissional, fato esse constatado por nós nas diversas vezes em
que tivemos a oportunidade de acompanhar o seu trabalho no cotidiano dos dois
CMEIs em que ela atua na região de São Pedro.
As marcações históricas referentes ao seu percurso de formação mostram uma
professora extremamente ativa, como ela mesmo revela. No decurso de menos de
20 anos, pôde reverter a condição gerada pela sua saída da Policia Militar e concluir
seu Curso de Graduação em Pedagogia e também sua pós-graduação em
Educação Ambiental e efetivar-se na Prefeitura de Vitória.
As narrativas de Daniela, Esdra, Eleir e Marinete são histórias de mulheres
professoras que conjugam dimensões singulares e plurais. Ainda que cada uma
acontece em espaços-tempos diferentes, trazem, como pano de fundo, uma
temática singular, as formas de constituição da docência como projeto de realização
pessoal e profissional. Falam também de percursos formativos que envolvem raízes
e opções (SANTOS, 2006) pelo magistério e abrem possibilidades para se
compreender a complexidade que abrange a formação continuada dos professores
Ressaltamos mais uma vez que a narrativa escrita ou narrada de percursos de vida
pessoal e profissional possibilita à professora ampliar o diálogo com os outros. Tem
como fundamento a concepção que vê na narrativa, assim como na escrita, um
exercício de autoria e um ato potencializador de processos reflexivos. Assim, em
processos formativos, a estratégia de escrever, narrar, refletir sobre o vivido
possibilita ao professor articular-se em torno de um coletivo, o que torna essa tarefa
um ato de resistência (SOARES, 2003).
Última história... sem fim...
O exercício de ouvir, desenvolvendo a escuta sensível (BARBIER,1998), permitiu-
nos o envolvimento com uma infinidade de histórias, mas apenas pudemos
transcrever uma pequena parte delas. Compreendemos que, muito além das
narrativas que podemos captar, cada professor e cada professora tem consigo uma
infinidade de experiências cujo volume encheria teses e mais teses.
Como utilizamos das narrativas apenas extratos, ocorreu-nos a necessidade de
transcrever uma narrativa completa, revelando as diversas facetas de uma história
de professora que teima em não ter fim, pois quem já foi e quem é professor sabe
que desse ofício não nos aposentamos nunca. Escolhemos a narrativa da
professora Fabíula, porque revela as muitas facetas de um percurso que tem muito
a nos mostrar sobre trajetórias de formação, e sobre como se constitui e permanece
sendo professora, apesar dos desafios da docência.
Como tudo começou...
Primeiro, eu tive um contato com uma tia minha que era professora e ela tinha em casa uma
biblioteca enorme, cheia de livros, então eu passei a ficar todas as tarde na casa dela,
porque não tinha ninguém pra ficar comigo e minha mãe e meu pai trabalhavam. Então eu
ficava lá, eu lia muito e achava muito legal sobre o que ela falava do trabalho dela. Eu
sempre tive admiração pelas professoras, sempre gostei de estudar muito, de ler e brincava
muito de ser professora. Escrevia muito com o giz quebrado que sobrava. Sempre quis ser
professora, porém, na época do vestibular, eu fiquei com dúvida de ser professora ou não,
por conta do salário mesmo. Eu achava que ser professora me limitaria, eu achava que ia
chegar uma época em que eu não avançaria mais, então tentei partir para Psicologia; aí,
pensei melhor, e achei mesmo que eu devia ser professora, aí desisti da Psicologia e fui
fazer Pedagogia. Fiz pedagogia e sempre pensando em fazer um mestrado, porque eu
queria ser professora de curso superior. Depois eu tive uma experiência em uma escola
particular e eu vi que não era aquilo que eu queria para mim. Acho que eu tinha alguma
ideologia muito forte, senti que eu sendo professora e estando na escola pública, eu atingiria
esse meu objetivo, aí comecei a trabalhar na rede pública, fiz especialização, fiz
Psicopedagogia. Comecei a estudar muito, fiz o mestrado e aí, nesse percurso todo, com
certeza, tinha aquela utopia de achar que ia transformar o mundo, e tinha o seu fundo de
verdade, sim. A gente faz diferença, sim. Quando a gente lida com os alunos (mas é tudo
diferente daquelas lições que a gente tem no início) se depara com uma série de fatores e
também eu acho que, na nossa profissão, tem um dia que a gente está mais disposta e
outros não, mas, de modo geral, eu posso dizer que eu gosto do que eu faço. Quando eu
tento me imaginar fazendo outra coisa, eu não consigo. Eu gosto muito de ser professora,
mas eu acho que é uma profissão muito pouco reconhecida, mesmo com toda a importância
que a gente sabe que ela tem, isso é um problema.
Redes de formação: ninguém é professor, sempre somos professores
A experiência mais significativa que eu tive com troca de experiência foi na COPEDUC, uma
cooperativa que eu trabalhei na Serra e que conseguiu agregar um grupo de pessoas muito
motivadas para o magistério. Tinha um pessoal que gostava de ler, que estava disposto a
arregaçar as mangas para trabalhar melhor. A pessoa que estava na frente disso tudo era
uma pessoa também que tinha muita leitura, que estava a fim de fazer diferente. Na rede de
Vitória também já tive experiências. Eu acho que a função do pedagogo na escola publica é
importante, mas o pedagogo está ocupado com tantas outras coisas que ele não está mais
atuando no pedagógico ou, se ele atua, está atuando muito pouco, de forma fragmentada,
ele está trabalhando na parte mais burocrática que qualquer outra coisa.
Os limites e as possibilidades da formação
Eu sei que há várias pesquisas que relacionam o mau desenvolvimento dos alunos com a
formação dos professores. Em termos da minha formação, eu acho que eu tive uma
formação em nível de graduação mesmo, muito boa. Eu acho que a formação realmente
deu conta de trabalhar as questões do ensinar, do conteúdo, mas não deu conta de
trabalhar as relações sociais, toda a problemática que chega à escola, que é do ponto de
vista social. Por exemplo, a formação não fala das questões de disciplina, de violência, de
miséria, da família. Essas situações que atravessam a sala de aula e a gente não sabe o
que fazer. Mesmo que eu tenha estudado essas questões, essa teoria não consegue dar
conta da realidade. Acho que, na prática mesmo é que você tem que perceber e descobrir
as melhores formas de lidar, aí eu acho que o cotidiano nosso de professor, ele embrutece
muito a gente. Tem um livro muito legal que fala disso, é aquele ‘Por entre as pedras...’,
acho que aquele livro descreve tudo que acontece quando a gente chega à escola, a gente
entra cheio de sonho, cheio de utopia e, se não tomar cuidado, vai sendo destruído. Eu acho
que a leitura ajuda muito a não endurecer, a gente vê as coisas por outros aspectos, se não
ler e distanciar completamente da leitura, na maioria das vezes, o estímulo fica negativo.
Então, tem que se realimentar dessa teoria pra ter que continuar sendo humano, senão se
desumaniza. Por exemplo, de manhã, eu trabalho com a segunda série, então eu posso
usar textos mais longos, posso usar com as próprias crianças reflexões um pouco mais
complexas do que eu consigo fazer aqui. Eu utilizo muito poema, poesia, para discutir com
eles também sentimentos, numa tentativa de tentar deixá-los mais humanizados. Eu acho
que isso surte muito efeito, a literatura, eles ainda gostam de ouvir histórias e é muito
importante pra pensar. Tem um monte de coisas sobre a vida que eles não pensam, acho
que a gente está num momento que para todo mundo é só ação e ninguém pensa muito
sobre as coisas. Com a literatura, a arte de um modo geral, se você pensar, música, livros,
teatro, são coisas que fazem a gente pensar, nos humaniza muito, é um recurso muito
interessante que a gente tem pra usar enquanto formação, para os alunos enquanto você
está atuando.
Preocupações de uma professora formadora
Na formação que eu tenho participado, tem acontecido uma coisa que me angustia demais:
quando eu estava na condição de trabalhar na formação dos professores, quando eu estava
na faculdade, eu achava que os professores estavam tão desmotivados, tão desanimados...
Quando eles vão para a sala de aula, é só lamentação, é desespero, a pessoa não
consegue levar à frente a sua proposta, às vezes é falta de condições de trabalho, número
excessivo de alunos na sala de aula, salário. Com certeza isso é tão presente que a
educação vai desmobilizando, vamos colocar assim, é muito angustiante, tanto para quem
está a fim de ouvir alguma coisa sobre formação, quanto para quem está na formação. Eu
acho que essas reivindicações devem ser feitas, mas elas têm que ter fóruns específicos
para acontecer. Agora querer transformar todo e qualquer momento em momento de
reivindicação, aí não acontece nem a reivindicação nem a formação, fica tudo sem
acontecer, fica o muro das lamentações.
Desafios docentes: heterogeneidade, violência e carências
Acho que um desafio é conseguir responder às diferentes formas em que as crianças se
encontram. Numa turma de pré, eu conheço crianças que estão quase lendo e trabalhando
sozinhas. Acho que o grande desafio é conseguir atender às diferentes necessidades de
cada criança. Outro desafio é lidar com a questão da agressividade, a indisciplina, a questão
social, às vezes chega e a gente não sabe como resolver... Crianças, por exemplo, que
dizem que a mãe está presa, que a mãe está presa porque deu um tiro no avô, e essa
criança chora todos os dias, vem para cá com fome, tem todas as coisas que a gente tem
que cuidar e tem de dar uma atenção pra isso também. Isso é um desafio. A questão da
higiene e saúde também, nesse CMEI nem tanto, mas muito problema de doença de pele
que a gente vê que é um problema mesmo e a gente tem que estar atento a isso, estar
trabalhando com as crianças. Elas são tão pequenas, mas elas precisam perceber, saber se
cuidar. Um outro desafio que me veio agora é que as crianças de hoje em dia são muito
carentes de atenção dos adultos e, às vezes, a gente se sente sufocada dentro da sala de
aula. Elas querem atenção o tempo todo, o tempo todo com você e, mesmo quando a gente
dá uma atividade, tem um monte de criança perto de você, elas querem sua presença,
querem te pegar, te abraçar, te contar cada coisa que elas fazem no dia, então fica muito
claro que elas não têm ninguém de adulto que elas possam estar dividindo, elas querem,
então, dividir com você e a gente se sente sufocada mesmo.
A experiência
Eu acho que é uma coisa muito importante para nossa formação. Isso é um processo que
acontece natural e passa, às vezes, sem a gente perceber. De repente, a gente observa o
outro trabalhando e, pra gente tentar encontrar a pista daquilo que ele faz, aí a gente vê que
aquela turma rende tanto e então eu vou observar o que aquele colega faz, qual o
diferencial dele. A gente consegue fazer isso e eu acho que na minha formação toda, eu
sempre fiz isso, tentando ver. Com certeza, na primeira vez que eu entrei em uma sala de
aula, eu sofri muito, porque a gente não tem experiência, a gente está crua ainda, e eu acho
que a gestão do momento da sala de aula é um dos fatores que vai garantir o seu sucesso
ou não como professor. Se você é uma pessoa organizada e consegue manter a disciplina
e, para manter a disciplina a gente tem que encontrar um caminho, não tem uma mágica, a
gente tem que encontrar, às vezes, a gente encontra errando, e daí a gente encontra os
mecanismos certos para a organização. Logo, quando eu entrei na rede, eu ouvia falar
muito que a gente tinha que trabalhar as atividades diversificadas, mas aí a gente vai
observando um colega, outro, eu gosto muito de observar o modo de gestão dos diretores,
cada diretor também tem um perfil, e isso a gente observa, o que dá certo, o que não dá
certo, e é por aí.
A narrativa da professora Fabíula nos convida a mergulhar nessa complexa rede de
subjetividades que envolve a formação tanto inicial como continuada com os
professores. As imagens que ela busca na memória para nos falar de opção pelo
magistério, de experiências de formação continuada no cotidiano das escolas, de
formas de relacionamento com os saberes, fazeres e poderes e de desafios
inerentes à docência são imagens que tangenciam as grandes questões que
perpassam a formação continuada e também os grandes dilemas da profissão de
professor.
Da opção de menina-moça-mulher que, desde criança, brincou com o giz quebrado
que sobrava evocando as lembranças de sua tia professora, passando pela
experiência de fazer um curso superior em Pedagogia e depois continuar seus
estudos, concluindo o mestrado, a narrativa da professora Fabíula traz à cena,
mesmo de maneira rápida, as grandes questões que tangenciam os desafios da
educação pública e, especialmente, a formação do professor. Dentre essas
questões, destacam-se: opção pelo magistério público em confronto com a iniciativa
privada: “Eu tive uma experiência em escolar privada, e eu vi que não era aquilo
que eu queria para mim [...] acho que eu tinha uma ideologia muito forte, senti que
eu sendo professora e estando na escola pública, eu atingiria esse meu objetivo”;
os desafios de estabelecer uma relação satisfatória entre os aportes teóricos e os
demandas da prática: “A questão da violência, mesmo que eu tenha estudado essas
questões, essa teoria não consegue dar conta da realidade, acho que, na prática
mesmo é que você tem que perceber e descobrir as melhores formas de lidar, aí eu
acho que o cotidiano nosso de professor, ele embrutece muito a gente”; a
desvalorização do magistério: “Eu gosto muito de ser professora, mas eu acho que é
uma profissão muito pouco reconhecida, mesmo com toda a importância que a
gente sabe que ela tem, isso é um problema”; a falta de identidade do pedagogo: “O
pedagogo é muito importante, mas ele está atuando mais na parte burocrática, está
atuando muito pouco, de forma fragmentada”; o problemas de violência e a falta de
apoio da família “Outro desafio é lidar com a questão da agressividade, a
indisciplina, a questão social, às vezes chega e a gente não sabe como resolver.
Crianças, por exemplo, que dizem que a mãe está presa, que a mãe está presa
porque deu um tiro no avô, e essa criança chora todos os dias, vem para cá com
fome, tem todas as coisas que a gente tem que cuidar e tem de dar uma atenção pra
isso também, isso é um desafio”.
Enfim, a narrativa da professora Fabíula apresenta-se como um texto que nos
permite diversas possibilidades de compreensão dos processos de formação
continuada vivenciados no cotidiano. Ela encaminha sua fala acentuando a
necessidade de apurar o olhar, ou seja, aprender a ver (ALVES, 2001). Assim ela se
expressou: “De repente, a gente observa o outro trabalhando para a gente tentar
encontrar a pista daquilo que ele traz”, mas, para além de observar, é preciso
aproximar e estabelecer o diálogo, para que, assim, se possam produzir alternativas
em um coletivo instituinte no cotidiano das escolas, superando o isolamento didático-
pedagógico característico da sociedade moderna.
CAPÍTULO V
5 FORMAÇÃO CONTINUADA NO COTIDIANO DA ESCOLA: “SE VIRA NOS
TRINTA” OU COMO OS PROFESSORES INVENTAM A PRÁTICA PEDAGÓGICA
O cotidiano da escola é um terreno bastante complexo. A dinâmica que configura as
relações espaço-temporais nem sempre permite traduções (SANTOS, 2006) de suas
lógicas. Segundo Esteban (2003), a escola é a própria teoria do caos em realização,
o que pressupõe uma multiplicidade metodológica e epistemológica para se tentar
compreendê-la. Para se obter melhor compreensão sobre a complexidade do
cotidiano de um centro de educação infantil, é necessário vivenciá-lo
cotidianamente. Isso remete a uma tentativa de superar as abordagens teórico-
metodológicas que buscam apenas explicar, abdicando, assim, do trabalho de
compreensão da realidade. Nosso estudo se insere nessa perspectiva de
compreensão das redes cotidianas, com um recorte especial para os processos de
formação continuada que professores vivenciam no desenvolvimento de suas ações.
O primeiro desafio com o qual nos deparamos, como pesquisador, foi com a
delimitação de um campo quase que ilimitado de pesquisa. Em pesquisa social, o
corte que pretensamente fazemos na realidade e as tentativas de amostras que
selecionamos quase sempre subvertem nossos instrumentos de medidas, pois a
realidade, sobretudo a social, não se rende às mensurações. Essa peculiaridade nos
rendeu muitas horas de conflitos, pois, como tínhamos feito a opção de trabalhar
com cinco centros municipais de educação infantil, sofremos com a estranha
sensação de que não estávamos dando conta de cercar, de controlar, de
esquadrinhar e explicar aquela realidade. Como ressalta Perez (2003, p.97):
No exercício de investigar e problematizar o cotidiano escolar, deparamo-nos com o emaranhado complexo de significações que envolveram as experiências humanas neste exercício, o pesquisador, tal como um artesão, puxa fios, desdobra significados e elimina as fronteiras que tradicionalmente têm marcado os diferentes campos da pesquisa em educação, tecendo uma nova configuração para compreensão do conhecimento humano.
Nesse exercício cotidiano de aproximação e distanciamento com as redes de
significações de professores, pedagogos, diretores e demais participantes da vida da
escola, procuramos nos envolver e enredar pelo cotidiano dos centros municipais de
educação infantil, rendendo-nos à humilde razão do cotidiano de que nos falam
Alves e Garcia (2000). De alguma forma, encontrávamos-nos em processos que já
havíamos vivenciado como professor aos quais agora voltávamos na condição de
pesquisador e tentávamos elaborar uma outra compreensão, diferenciada, com o
entendimento que havíamos tido com aquelas experiências.47 Mas, como temos
defendido, experiência é experiência, cada uma é singular. A experiência encerra-se
na dimensão do presente e, mesmo que relembremos, não mais poderemos sentir e
viver novamente o que sentimos e vivemos no passado, daí a experiência remeter
inescapavelmente ao tempo em curso.
De maneira bastante expressiva, as professoras revelam, em suas narrativas, que
as atividades de formação fazem parte de cotidiano dos CMEIs, fato esse percebido
nos diversos espaços-tempos durante a pesquisa. A partir de uma busca feita nos
registros do CMEIs, e em conversas com as pedagogas e a diretora, pudemos
identificar os principais investimentos que são feitos em processos de formação. Em
quase todos os CMEIs, com alguma variação mínima, a formação continuada
estrutura-se da seguinte forma:
a) formação na escola: essa atividade está vinculada a um calendário enviado
pela Secretaria Municipal de Educação no início do ano, no qual aparecem
listadas datas previstas para que as unidades escolares se organizem para
realizar atividades de formação. Essas datas são mais ou menos fixas, mas,
no decorrer do ano, algumas unidades conseguiram negociar para trocar as
datas, ajustando-as à necessidade local. A unidade central, no início do ano
letivo, enviou uma correspondência solicitando às escolas que
apresentassem uma proposta de utilização desses dias. Algumas escolas
fizerem de forma estruturada, mas outras se limitaram a listar alguns
conteúdos sem muita sistematização;
b) formação oferecida pela Secretaria Municipal de Educação: a Secretaria
seleciona alguns temas de interesse geral e realiza encontros de formação 47 Falamos dessas experiências anteriores, pois já trabalhamos, anos atrás, nesses centros municipais de educação infantil. Em alguns deles, inclusive, encontramos professoras com as quais trabalhamos juntos e, nesse contexto, estávamos em situações diferenciadas. O fato de voltar agora na condição de “pesquisador” provocou uma certa estranheza nas professoras, e também nos causou um incômodo, pois, na visão das professoras, estávamos sempre passeando: “Iguatemi está passeando por aqui”. Não estar dando aula é o mesmo que não estar fazendo nada.
para grupos específicos. As professoras relataram os encontros de
alfabetização que, nesse ano, foram realizados por regiões;
c) projetos de formação com apoio da Secretaria Municipal de Educação: essa
atividade foi uma novidade introduzida nesse ano. As escolas podiam
submeter projetos de formação e solicitar apoio financeiro (pagamento de
palestrante, oficineiro) para desenvolver uma atividade de formação fora do
horário de trabalho. Durante nossa permanência no campo, apenas o CMEI
Zilmar Alves de Mello apresentou projeto. É importante destacar que os
projetos desenvolvidos fora do horário de trabalho tinham, além do
financiamento, após a aprovação, certificados expedidos pela Secretaria
Municipal com a carga horária total dos encontros. Esse atrativo que, a
princípio, parecia um diferencial, mostrou-se não muito eficiente, porque os
trâmites burocráticos para acessar os recursos eram tantos, que os CMEIs
preferiram, em sua quase maioria, não fazer uso desse dispositivo;
d) planejamento com as pedagogas: esse espaço constituía-se de encontros
semanais, às vezes, dois por semana, em que os professores se reuniam
para planejar com a pedagoga e/ou com colegas de turmas para organizar as
atividades. Os professores nem sempre percebiam esse espaço como
momento de formação, mas tivemos oportunidade de acompanhar alguns
desses momentos e observar que a pauta tinha muitos elementos formativos;
e) “se vira nos trinta”: uma atividade de formação que acontecia todos os dias
nos 30 minutos finais do turno de trabalho. Algumas escolas estruturavam
juntando os minutos finais e reuniam-se em um dia à noite ou em um final de
semana. Grosso modo, esse tempo tinha muito mais o caráter normativo do
que formativo. A Secretaria impôs essa atividade para que os professores
cumprissem a carga horária de cinco horas diárias de trabalho.
Para além desses espaços-tempos formais de formação, nosso esforço se
concentrou em compreender outros espaços-tempos em que os professores
produziam a partir das necessidades emanadas de sua prática. Nesse esforço,
participamos dos diferentes momentos organizados de formação - como os citados
acima - e estivemos atento aos significados que os professores atribuíam às
atividades de formação formais e informais. Sendo assim, acompanhamos vários
planejamentos pedagógicos realizados entre os professores e as pedagogas.
Participamos da formação prevista no calendário. Estivemos nos 30 minutos no final
do turno, os “se vira nos trinta”. Nesses momentos, participamos de duas formas
distintas, na primeira, acompanhando as atividades de formação e, na segunda,
participando de forma ativa, desenvolvendo uma atividade de formação como
proposta pelo Corpo Técnico Administrativo da escola.
É importante destacar que, durante a realização da pesquisa, as professoras e o
CTA da escola, solicitavam nossa participação de forma mais direta nas atividades
de formação. Como já havíamos trabalhado nas escolas da pesquisa, nossa
presença estimulava essas propostas. A princípio, mostramo-nos reticente, pois
poderíamos exercer um tipo de influência que, de alguma forma, interferiria nos
objetivos da pesquisa. Esse nosso zelo está relacionado com a compreensão que
temos da dinâmica cotidiana da escola. Nela todo mundo é solicitado a ajudar, não
há espaço para observação.48 Quando somente estamos observando “sem fazer
nada”, isso logo desperta certa animosidade nos professores.
A ideia da formação com os professores, perspectiva teórica que assumimos,
justifica-se pela creditação que busca dar as experiências instituintes que têm sido
produzidas nas escolas com e pelos professores, experiências essas que
ultrapassam as propostas oficiais. O instituinte, que tem como marca o desejo, a
necessidade, a vinculação com o coletivo, encontra um terreno mais propício para o
seu desenvolvimento em propostas de formação continuada. Segundo Alves (2002,
p. 13), no cotidiano, escrevem-se outras lógicas “[...] há um modo de fazer e criar
conhecimento no cotidiano, diferente daquele aprendido, na modernidade,
especialmente, e não só, com a ciência”.
Assim, a questão que se coloca é: como decifrar esses conhecimentos para poder
compreender o cotidiano das escolas e potencializar os movimentos que são
produzidos pelos professores, pedagogos e diretores? A postura do pesquisador
48 Essa crítica à perspectiva clássica de pesquisa é expressa em uma experiência pessoal vivenciada em outro contexto de pesquisa. Ao entrar na escola, no primeiro dia, para uma atividade da pesquisa, a coordenadora de turno solicitou-nos que nos identificássemos. Quando falamos quem éramos, estávamos em três pesquisadores, e ela então exclamou: ___ Vocês são os OBS. Não entendendo muito bem o significado do termo, ela então explicou: ___ Vocês são aqueles alunos da UFES que vem aqui e ficam nos observando!
supõe uma visão não hierárquica e linear sobre o desenvolvimento do
conhecimento, pois, no cotidiano, o conhecimento se desenvolve por meio de redes
que se tecem, com múltiplos fios, constituindo um emaranhado que mistura todos os
sujeitos cotidianos em uma trama educacional, incapaz de estabelecer/delimitar
territórios específicos. No cotidiano, estamos todos enredados, cada professor com
sua prática, o currículo e as nuances oferecidas pelos infinitos conteúdos, os alunos
com suas singularidades, enfim, tudo e todos nesse jogo de fazer/ser escola. Assim,
cada elemento é colocado nessa teia de maneira que o conhecimento somente se
constitui na relação entre os diferentes contextos. Esse tecido complexo é expresso
nas narrativas a seguir:
Eu costumo dizer que, a partir do momento que você fala que há essa troca, tem-se uma linha de pensamento que amplia mais, porque, às vezes, eu estou ali no dia-a-dia com as minhas crianças, e tenho uma visão, mas conversando com uma colega, ou com uma pedagoga elas podem me dar uma outra ideia de alguma coisa, ou uma sugestão, seja numa atividade ou prática, que eu acho que vai me ajudar, às vezes a gente fica meio angustiada, por exemplo, eu tenho 30 crianças e, às vezes, tem uns três ou quatro que estão com problemas de disciplina, ai precisa dar uma melhorada, e no dia-a-dia, às vezes, a gente não desperta para um detalhe e, a partir do momento que se tem uma troca de experiência com uma colega ou com uma pedagoga, a gente acaba tendo uma outra visão, acaba te ajudando, com uma ideia, às vezes, a pedagoga vai a outro CMEI e fala que viu um projeto tal, e dá ideia de fazer, mas não precisa ser igual, mas eu posso estar adaptando, e isso pode surtir um efeito muito grande, então essa troca eu acho de suma importância (ROSE, professora).
A criança, geralmente, quando ela não consegue fazer uma atividade, é observando algumas colegas, a maneira como elas encorajam, essa criança que tinha medo porque encontrava dificuldades, então eu aprendi, vendo algumas colegas trabalhando, como lidar com esses alunos, quando tudo que ele não precisa ouvir é você tem que fazer e acabou. Tudo que ele não precisa ouvir é isso, e ai a gente vai se acalmando também, porque é muito difícil para um professor pegar aquele aluno, que toda vez que você vem com uma proposta de trabalho, ele não que fazer, ele tem medo, entra em desespero, ou ele não consegue, enfim, tem suas historias, às vezes chora, e como conquistar isso? Foi vendo que eu consegui conquistar os meus alunos a estarem fazendo, especialmente hoje eu tive um aluno que não quis fazer, porque eu acho, que no início, quando eu fui marcar presença para os alunos, eu achava que tinha de falar para fazer e pronto acabou, agora eu tento fazer de outra forma, tipo, mostrando o que a gente pode aprender ali, que espaço é esse em que estamos, que é uma escola. Eu acho que tem que conquistar afetivamente o aluno, o fazer ele acreditar que você é alguém que está ali para ajudar, não alguém que esta ali para apontar que ele é isso ou aquilo, ficar apontando os erros, e a gente nunca vai conseguir fazer uma coisa se a gente não tenta, então eu aprendi na minha prática e nos meus erros, vendo algumas colegas agindo, eu vi mesmo, de parar e ficar atenta. Hoje meus alunos sabem que eu sou uma professora que exige, mas eles não têm medo da minha exigência, porque ele não têm medo de me pedir ajuda, de dizer que não consegue. Eles são à vontade, mas sabem que eu sou uma professora que todo mundo tem que fazer as atividades, então é conversando, ouvindo, às vezes as minhas colegas não tenham dado conta de como eu parava para ouvir como elas tratavam essas crianças pra eu aprender, e eu tinha uma dificuldade muito grande (ANDRÉIA, professora).
Salta à nossa compreensão que, quando estamos falando de processos de
constituição da docência, não podemos prescindir de sua dimensão coletiva, algo
que já destacamos ao nos referir à inescapável determinação do coletivo, ou seja,
somos professores em processos interacionais, o que remete a pensar que o
desenvolvimento da profissão de professor se realiza na interdependência do outro,
sejam esses outros os alunos, sejam os gestores, sejam os pais, enfim os diversos
outros sujeitos envolvidos na tarefa educativa. Nas narrativas citadas, percebe-se
que os elementos constitutivos da docência exercem uma influência significativa na
forma como o professor se coloca diante do desafio de exercer sua prática
pedagógica.
As narrativas da professora Andréia e da professora Rose têm diversos pontos de
contatos. Destacaremos o que nos fornece elementos para ampliar nossa
compreensão das redes de formação continuada, que são estabelecidas no
cotidiano e também para nos ajudar na percepção a respeito da complexidade que
envolve a prática pedagógica e a interdependência entre prática pedagógica e
formação continuada com os professores.
Tanto Andréia como Rose buscam evidenciar que exercer a docência não é uma
atividade de aplicação, não há a chamada transposição didática, todo conhecimento
no cotidiano está completamente à mercê dos usos possíveis que se fazem deles,
não há conhecimento in natura, livre de processos de determinação, acabado e
pronto para ser usado. Os professores revelam ter consciência disso, quando
exclamam “a teoria na prática é outra”. Eles não dão conta da indisciplina, não
conseguem que os alunos alcancem os objetivos, fatores geradores de certa
angústia pedagógica.
Questionamos as professoras sobre os espaços-tempos em que acontece a
formação continuada e, como resposta, nas narrativas, aparece uma indistinção
entre momentos estruturados e não estruturados para formação, mas destaca-se,
também, nas narrativas, o fato de muitas professoras revelarem o movimento que
existe entre elas de troca e compartilhamento de formação, fenômeno esse que
percebemos nos diversos momentos em que estivemos participando no cotidiano.
Esses espaços-tempos não formais revelam-se um momento importantíssimo para o
desenvolvimento das professoras. Isso fica evidenciado nas narrativas de diversas
delas. A professora Andréia destaca esses momentos informais e atribui a eles a
função complementar das propostas formais. Ela mostra, também, que esses
momentos quase sempre não são precedidos de planejamentos. Acontecem por
força das necessidades “às vezes de dar uma fugidinha”, mas são importantes para
se estabelecer relações didático-pedagógicas com os colegas de trabalho:
Existem muitos momentos na escola em que a gente, bom, existe o corredor, em que a gente conversa entre os professores, é uma coisa interessante. Quando os alunos estão agitados, você dá uma fugidinha, acalma e volta, dá uma respirada. Então isso também é interessante e, nesse momento, você conversa com um, com outro, essa troca de corredores, até mesmo no horário do lanche, no ponto de ônibus, acontece, sem se programar, e eu vejo como uma formação, a formação não é só aquele momento em que se diz, momento de formação (ANDRÉIA, professora). Como a professora Andréia, a professora Ana Claudia também credita a essa rede
de trocas e compartilhamento um dimensão importantíssima, pois, nesse processo,
estabelecem-se referenciais sobre as práticas. Um professor aprende com o outro,
ajuda o outro e ambos podem crescer juntos.
Comigo acontece assim, a gente sempre está trocando experiências, discute uma com a outra o que está fazendo. Sempre se tem uma ideia nova, a gente mostra os projetinhos da sala e tem também, durante a semana, um dia que a gente fica até mais tarde na sala dos professores, aí a gente troca também com as outras professoras (ANA CLAUDIA, professora).
Já nos referimos à impossibilidade de trocar experiências, entretanto esse é um
termo bastante recorrente entre as professoras e representa uma forma de
expressar a necessidade que as professoras têm de estabelecer referências sobre
sua prática em relação à prática de outras professoras, o que, em nossa
compreensão, é bastante relevante do ponto de vista do desenvolvimento pessoal e
profissional. “Trocar experiências” expressa a natureza coletiva da prática
pedagógica, não se é professor no singular, pois somos professores sempre no
plural.
Os momentos que a gente tem aqui, diferente das outras escolas em que eu trabalho, que não é em Vitória, é diário, seja na entrada ou na saída, ou naquele momento que a gente fica das 17h30min às 18h, a gente está sempre conversando, trocando idéias, experiências, trocando anseios, dificuldades, vitórias, derrotas, problemas, sem contar as formações que a gente tem. A formação continuada fora daqui, a cada mês, é uma turma que vai, ou um professor que vai, para estar discutindo, aprendendo, ouvindo coisas que muitas vezes não condiz com a nossa sala de aula (ADRIANA, professora).
Nessa narrativa, a professora Adriana afirma a continuidade e a permanência de
intercâmbios de conhecimentos e experiências com os outros colegas e ainda
sinaliza que, para além desse movimento no cotidiano da escola, existem outras
atividades das quais também participam. Ela, entretanto, mostra-se reticente, pois,
nessas formações que acontecem fora do contexto escolar, há uma maior
dificuldade de os conhecimentos trabalhados nos encontros encontrarem
rebatimento na prática pedagógica no interior do CMEI.
Fica evidente que uma formação mais afeta às questões do cotidiano comporta uma
multiplicidade de conteúdos que, por sua característica não tão disciplinar, não se
resumem a um pacote fechado de treinamento, quase sempre planejado pelos
“experts”, longe da escola, estruturado a partir de avaliações quantitativas que se
esforçam para explicitar a face feia “feita” da escola, face essa que serve para
sustentar discursos políticos, que não têm nem aproximação nem comprometimento
com a realidade (LINHARES, 2000). Como revela a professora Adriana, somente faz
sentido uma formação que valorize a continuidade, que dê conta das múltiplas
necessidades do coletivo da escola, que sua amplitude comporte os mais variados
temas e possibilite às professoras conversar sobre sua prática, que estimule a
narração das experiências, que tenha um tempo reservado para que os professoras
possam contar suas ansiedades e dificuldades, por fim, que vivencie e também
celebre as conquistas individuais para que se somem ao coletivo (PEREZ;
SAMPAIO; TAVARES, 2001).
Esse dispositivo de compartilhamento de informações e produção de
conhecimentos, por meio da socialização e narração das experiências, é
fundamental, pois estimula o processo de reflexão na e sobre a ação docente. Cada
experiência narrada estabelece vínculos pessoais e profissionais com o narrador.
Assim fazendo, o professor, ao narrar, expõe-se ao coletivo como um texto a ser
lido e compreendido pelo outro (LARROSA, 1999, apud PEREZ, SAMPAIO;
TAVARES, 2001).
Percebemos que a dinâmica da educação infantil, em alguns aspectos, guarda uma
especificidade que a distingue dos outros níveis de ensino (fundamental e médio). O
principal ponto de distinção e que tem reflexos diretos nos processos de formação é
o fato de as professoras permanecerem um maior tempo em contato com os
alunos.49 Isso faz com que elas busquem táticas para conseguir estar juntos em
momentos distintos e trocando experiências sobre suas turmas. Em nossas
49 O professor da educação infantil tem um contato maior e mais intenso com os alunos. O cotidiano mostra que, no período de permanência no CMEI, os professores passam grande parte deste tempo em sala de aula, ficando reservados dois planejamentos semanais e os intervalos de recreio.
andanças no cotidiano dos CMEIs, fomos compreendendo que existe uma
verdadeira rede de trocas que é tecida o tempo todo, rede essa que comporta
diversas facetas, muitas das quais nem mesmo uma pluralidade metodológica é
capaz de captar. Nos horários de pátio, tão vigiados pelo corpo técnico-
administrativo, as professoras aproveitam para trocar informações e conhecimentos,
intercalando momentos de vigília, atenção às crianças e imersão em discussões
sobre problemas profissionais e, muitas vezes, também pessoais. Esses momentos
fogem a qualquer controle, são espaços de fuga, “uma fugidinha”, mas também
espaços-tempos de lutas e neles se criam identificações com colegas de turmas e
são elaborados planejamentos sobre projetos coletivos. Essa peculiaridade é
explicitada na narrativa da professora Maria Helena:
Os momentos onde há maior troca da experiência é quando se pode usar da experiência do seu colega. Não tem momento específico, eu acredito que nós ficamos muito ainda focados em sala de aula e os momentos mesmo de compartilhar são os momentos onde se está nos corredores com os colegas. Quando a gente divide o pátio, sala de frente para sala, a gente mostra as novidades para os colegas. Horários de o professor lanchar, são momentos onde o professor fala das angústias, fala dos bons alunos, fala das experiências de ansiedade, de alunos que ele não está conseguindo avançar, então não existe momentos específicos, mas são esses aí, nós temos os momentos de reuniões, mas não é como eu falei, ainda falta aquela coisa de, hoje o professor fulano de tal vai relatar uma experiência que está ou não dando certo.
Percebe-se, na narrativa da professora Maria Helena, que as redes que são tecidas
não encontram uma uniformidade, sendo impossível preestabelecer um texto e um
conteúdo formativo para esses momentos. Quase sempre são determinados a partir
de necessidades contingenciais ou mesmo ao acaso, como coincidência de horário
de pátio, disposição da sala, projetos desenvolvidos na escola, etc. A respeito dessa
sinuosidade dos processos formativos vividos por professores no cotidiano, Azevedo
(2003) refere-se a esses diferentes espaços-tempos de formação como táticas dos
praticantes da escola. Como referência, ela cita a sala dos professores, um lugar
quase sempre povoado por múltiplos textos e linguagens, mas nele o tempo todo
pulsa formação, afinal, nesse espaço-tempo, todo professor revela sua prática e
revela-se como texto para ser lido pelos colegas, como conteúdo para ser
interpretado no coletivo:
A gente está começando um trabalho de inclusão e as trocas de informações mesmo nos próprios corredores, quando a gente se esbarra, na hora do almoço, a gente senta entre os professores, leva um texto legal, passa para o outro, é esse tempo que a gente tem (DANIELA, professora)
Os corredores a que se refere a professora Daniela, por ser espaço de constante e
intenso fluxo, proporciona esses esbarrões, esses encontros e a possibilidade de
trocas, não previstas, não planejadas, mas que, em muitas ocasiões, são fecundas,
pois fixam um ponto de encontro para se conversar sobre fatos e acontecimentos
que nem sempre os espaços-tempos da rotina estruturada permitem. Os professores
estão o tempo todo provocando esses encontros nos corredores, às vezes ao acaso,
mas também como tática para subverter a ordem do instituído, um passeio na sala
ao lado, uma ida ao banheiro, uma saída para simplesmente recobrar as energias.
Como nos referimos anteriormente, outro espaço-tempo significativo é a sala dos
professores. Passamos muitas horas frequentando a sala dos professores dos
CMEIs e, em diferentes momentos, nos horários de recreio, nos intervalos de um
turno para o outro, no “almoço”. Ao assim fazê-lo, logo percebemos a diferença que
se configura em relação aos demais níveis de ensino. Os professores da educação
infantil se agrupam no recreio por turmas, pois como as crianças são muito
pequenas, não é possível ser feito um recreio único. Nos intervalos, muitas vezes,
acontece de se encontrar professores das diferentes turmas. Percebemos, ainda,
nas conversas informais, uma riqueza de informações, pois, mesmo na
informalidade, esses espaços são utilizados pelos professores para trocar figurinhas
e “abobrinhas” (AZEVEDO, 2004) quase sempre tendo como texto os contextos
educacionais. Essas trocas aconteciam geralmente a partir de uma história que uma
professora conta sobre sua experiência pessoal-profissional.
Segundo Certeau (2000), a tática é a constituição de múltiplos pontos de fixação que
são estabelecidos por meio do intercambiamento de experiências. Se, na estratégia,
o recurso é a captura e a cooptação, na tática, é justamente o contrário, é a
libertação para que a experiência aconteça e se multiplique e, em vez da cooptação,
opta-se pela multiplicação, pela singularização e para a diferenciação dos
acontecimentos. Assim, uma experiência narrada não se presta à captura literal. Os
sujeitos contam não uma repetição, a narração remete à multiplicidade e à diferença.
Perez (2003) ressalta que o trabalho de narrar não obedece à lógica recordação de
acontecimentos lembrados cronologicamente. A narrativa é um discurso que é
forjado no jogo de linguagens, em que o narrador se utiliza de dados da realidade
para estabelecer a trama linguística a partir de experiências passadas e
experiências em curso, que fazem com que sua narrativa ecoe, tenha sentidos sobre
sua própria identidade e se comunique com espectador.
É importante destacar que esses espaços-tempos sub-reptícios, marginais,
periféricos, instituintes, apresentam-se no cotidiano como expressão da tática.
Sendo assim, não há qualquer possibilidade de controlá-los. Acontece todo o tempo
e o tempo todo. Com a pesquisa, fomos percebendo que os professores, inclusive,
estabelecem códigos, sinais que funcionam como mecanismos de organização
coletiva e, por mais que se tente inibir ou sistematizar esses espaços, não é
possível. Como regra do instituído, na rotina do CMEI, é estabelecido que o
planejamento aconteça apenas duas vezes por semana, entretanto os professores
subvertem essa lógica, criando situações não previstas para planejar, para estar
juntos, para trocar experiências e para constituir um coletivo. Em nossa vivência no
cotidiano, muitas vezes encontramos professoras planejando no horário de pátio,
professoras utilizando-se de estagiários para planejar, recorrendo às auxiliares de
serviços gerais, combinando com outro colega de corredor, enfim, múltiplas formas
de fazer para suprir necessidades de aumentar o saber.
Como destaca Ferraço (2005), a respeito dos fluxos cotidianos, por sua
característica de imprevisibilidade, não há muito o que fazer, pois eles são assim.
Não adianta imaginarmos ou nos enganarmos, pois não é de outra forma. Ou nos
submetemos a essas tantas lógicas cotidianas, tentando compreendê-las em seus
fluxos, ou nos afastamos delas, o que incorre numa impossibilidade de penetração e
compreensão do cotidiano. A narrativa da professora Daniela revela esse movimento
criativo em que os professores buscam imprimir as suas práticas. Os espaços-
tempos são expandidos em busca de possibilidades de produzir alternativas para o
desenvolvimento de suas práticas. Como afirma Ferraço (2005), no cotidiano, o
tempo chrónos é apenas uma forma de contar o tempo, as outras formas são
produzidas nas dobras do cotidiano:
A gente tem um grupo de estudo, que a gente tem meia hora e, nesse grupo de estudos, a gente debate textos, a gente discute informações, a gente participa do fórum de conversação, e os textos que a gente recebe lá, a gente traz para discutir no grupo de estudos, embora seja pouco tempo, a gente está tentando fazer isso nas terças e quintas e, nos outros dias, a gente acaba discutindo as coisas da escola mesmo, os projetos e atividades, informativos, que não tem como fugir mesmo, e a formação continuada que a gente tem na Prefeitura de Vitória, que é um dia que a gente consegue um palestrante para vir, agora a gente tá começando um trabalho de inclusão, e as trocas de informações mesmo nos próprios corredores, quando a gente se esbarra, na hora do almoço, a gente senta entre os professores, leva um texto legal, passa para o outro, é esse tempo que a gente tem, essas são as informações que a gente tem mesmo, a Prefeitura garante pra gente que a formação é continuada (DANIELA, professora).
Os espaços e tempos, mesmo curtos, na educação infantil, são uma possibilidade de troca de experiência, do próprio conhecimento, de perguntar para as pessoas, de mais conhecimento, isso vem a somar ao nosso trabalho e a gente tem a possibilidade de planejamento. Mesmo que o tempo seja curto, nós fazemos leituras com todo o grupo, daí nós podemos compartilhar a troca através do conhecimento da leitura, isso tudo ajuda no nosso conhecimento (MARTA, professora).
Ainda a respeito da relação que os professores estabelecem com os espaços-
tempos nas escolas, percebemos, no cotidiano da pesquisa, que as professoras
parecem estar o tempo todo enredadas em processos formativos. Entretanto a
dinâmica da escola imprime à rotina uma aceleração do tempo e essa aceleração é
sintetizada na expressão “se vira nos trinta”, logo caricaturizada no cotidiano,
referindo-se à imposição oficial às escolas e aos professores para cumprirem os
“trinta minutos” que sobram no final do dia:
Esse ano a gente está fazendo dessa forma, com duas vezes na semana para estar se reunindo. É a complementação do horário. A gente tira essa meia hora para está ali colocando os pontos, e ali tem aquele bate-papo, a gente coloca para cada um o que está acontecendo no CMEI. Fora isso, a gente tem nossa formação continuada que acontece uma vez por cada dois meses, às vezes a gente tem uma dúvida e, a partir disso, a gente tenta passar as ideias, isso que é importante (ROSANA, professora).
Os cinco centros municipais de educação infantil que pesquisamos encararam essa
determinação muito mais como um problema do que como uma solução, foi uma
imposição para cumprir a carga horária. As professoras, em sua quase maioria,
criaram mecanismos de resistência para que esse tempo não se efetivasse.
Chegavam atrasadas, não traziam os textos, puxavam outros assuntos, enfim, cada
professora, cada pedagogo e o diretor foram inventando formas de sobreviver e
viver esse momento, ou somente “se virar nos trinta”.
5.1 SABER DA EXPERIÊNCIA E SABER EXPERIENTE: FORMAÇÃO CONTINUADA EM CONTEXTO DE AÇÃO A teoria em movimento é mais uma forma de referir-se à dimensão da experiência
docente, pois o professor está o tempo todo exercendo sua profissão na tensão
gerada entre as promessas de uma epistemologia de apoio e as incertezas de uma
prática que sempre se apresenta de forma mutante. Assim, com um pé na teoria e
outro na prática ou inteiro na práxis, a experiência pedagógica encaminha o
professor para uma compreensão de que teoria sem prática é o mesmo que prática
sem teoria e que, a meio termo, pode-se perspectivar uma ação mais razoável, em
que tanto o saber como o fazer são conectados como faces distintas, porém de uma
mesma e única moeda, o que remete ao engendramento característico da atividade
humana. Assim, “[...] os estudos do cotidiano se traduzem numa teoria das práticas,
que nos possibilita explicar a teoria em movimento que informa as práticas
cotidianas das professoras” (PEREZ, 1993, p. 107)
A tentativa de razoabilidade científica proposta por Santos (2006) remete ao que
Esteban (2003) chama de teoria em ação, o que estabelece um novo status para a
teoria, aproximando-a da realidade imanente. Como afirma a professora Daniela “[...]
as crianças não cabem dentro da teoria”. Sua crítica é incisiva às propostas que
chegam à escola como uma tábua salvadora, com promessas “não cumpridas” de
produzir soluções “teóricas” para problemas práticos. Na mesma direção, a narrativa
da professora Rita destaca essa assimetria entre proposições teóricas e soluções
práticas: “Nem tudo que a gente aprende na teoria dá para levar para a prática”.
Todo professor sabe que todo conhecimento produzido à revelia das condições
concretas de produção da docência soa como ativismo intelectual e serve mais para
adornar do que para dar sustentação à prática.
As formulações teóricas sobre o currículo ressaltam essas contradições presentes
nas propostas curriculares, revelando que, pelo meio do caminho das propostas de
normatização e sistematização de matrizes/grades curriculares, os professores, as
escolas e os alunos subvertem as ordens instituídas e produzem um currículo muito
diferente daquele proposto. Os currículos praticados (OLIVEIRA 2005), os currículos
realizados (FERRAÇO 2005) são expressões claras de que é preciso considerar
essa ampla rede de bricolagens, de fabricações, de experimentações, de invenções
e de burlas que corre sub-repeticiamente nas escolas. Essas redes não só são reais
como se multiplicam e amplificam a percepção dos conteúdos que de fato são
veiculados nas escolas.
No âmbito da formação, essa abordagem é fundamental, pois coloca em perspectiva
a visão de que os conteúdos formativos não podem prescindir de uma compreensão
de processos pedagógicos vividos e sentidos nas práticas dos professores. A
expressão “na teoria é uma coisa e na prática é outra”, usada por muitas professoras
ao criticar as formações, ainda revela a visão dicotômica sobre a práxis humana e
não pode ser desconsiderada nos processos de formação. A narrativa da professora
Daniela é bastante esclarecedora, pois mostra como os professores se relacionam
com o conhecimento, deixando sobressaltar esse amplo campo de experimentação
que é o cotidiano:
Nós tivemos um trabalho de assessoria de artes, para avaliar os desenhos das crianças, tanto do berçário quanto do pré. Havia aquela dúvida de como avaliar, como entender o desenho de cada um, isso no maternal e eu peguei livros para estar pesquisando, aí eles começam a fazer o solzinho, os desenhos começam a ter formas. O berçário I é só a folha suja, o berçário II é aquela coisa circulada, aí depois se inicia com o solzinho, inicia os primeiros traços para começar a fazer o bonequinho e eu não entendia aquilo, como que alguns estavam naquela transição. Aí uma professora trouxe alguns livros para gente está analisando e não encaixava, não batia com a fase que a criança estava e como eu não tinha total experiência naquilo, aí chocou, né? A questão da prática e a teoria que não estavam se encaixando, mas ela veio e conversou depois, explicou como seria, e não ficou claro, porque cada um é cada um, né? Mas é uma coisa interessante de se analisar no dia a dia, porque a teoria, é claro que a gente não pode dispensar, não pode deixar de lado, a teoria está aí, tem coisas que são até maravilhosas e quem dera que fosse sempre assim, mas acredito que seja também uma questão de interpretação, da gente ter conhecimento mesmo, tentar fazer uma análise, de certa prática, certa teoria, porque a gente lê muitas coisas, mas e aí? Como é que a gente faz lá? Na sala de aula com 20, 30 e 40 crianças, eu acho que muito da discussão dos professores em relação à teoria e à prática, eu acho que é isso, como fazer? Como colocar a teoria na prática se você tem umas 40 crianças na sala? Igual essa questão dos níveis, níveis de alfabetização, está lá na teoria, A Prefeitura de Vitória adotou essa teoria, mas a gente acaba não seguindo totalmente essa teoria, mas a gente sabe que ela está aqui, a gente trabalha na Prefeitura, trabalha no CMEI, a gente tinha até que fazer uma avaliação por escrito. Eu acho que a gente tem que ver o que da prática cabe na teoria, ao invés de ver o que da teoria cabe na prática, tem muita coisa na teoria que a gente consegue ver, um texto que a gente lê e a gente consegue ver que realmente está acontecendo, a gente pode não perceber naquele momento, mas, quando a gente vai ler um texto e a gente diz: ‘Nossa que legal! Minha sala está funcionando assim e foi essa autora que disse!’.
Nessa narrativa, podemos perceber diversos aspectos que podem ser explorados
para uma melhor compreensão das produções cotidianas. O primeiro aspecto refere-
se à relação que o professor estabelece com o conhecimento. A professora Daniela,
ao receber os conhecimentos referentes às fases de desenvolvimento da escrita nas
crianças, mostra-se bastante responsiva. Entretanto, ela revela que os
conhecimentos recebidos em processos de formação continuada oferecidos pela
Secretaria de Educação não a satisfazem, então recorre a outros conhecimentos em
livros, tenta ampliar sua compreensão sobre essa teoria.
Entretanto, em um processo de estabelecer comparações, começa a identificar as
insuficiências das teorias, o que a leva a afirmar que nem sempre as crianças cabem
dentro das proposições teóricas. Esse aspecto mostra que não há um “sítio ativo
pedagógico”,50 tem teorias que cabem e outras que não cabem na realidade, não há
conhecimento total (SANTOS, 2006) que dê conta de responder a todas as questões
cotidianas.
Essa assertiva é expressa mais uma vez quando ela relata “Eu acho que a gente
tem que ver o que da prática cabe na teoria, ao invés de ver o que da teoria cabe na
prática”. A professora Daniela demonstra sua preocupação com a separação que
acontece entre a teoria e a prática. Mesmo que sua fala também esteja carregada da
mesma contradição que ela pretende superar, percebemos que há uma busca por
produzir um saber que estabeleça correlações com as demandas do cotidiano.51
Procurando compreender como os professores se organizam no cotidiano de suas
práticas pedagógicas e produzem sua profissionalidade a partir de movimentos de
autoformação e coformação, questionamos os professores sobre os momentos de
formação vivenciados no cotidiano da escola e qual a importância para seu
desenvolvimento e para sua prática profissional. Em uma compreensão panorâmica
desse processo, podemos destacar alguns pontos:
O primeiro refere-se à consideração e ao grau de importância que os professores
atribuem aos processos de formação continuada, considerando a formação de
50 Usamos essa expressão tomando-a emprestada da fisiologia, pois se refere à atividade enzimática que, para fazer conexões no âmbito do sistema nervoso central, precisa de uma estrutura compatível, “exatamente igual” para se acoplar. Assim, não há teoria compatível com tudo e com todos os alunos. 51 É importante aqui destacar nossa concepção da relação teoria e prática. A premissa básica traz embutida a noção de coengendramento nessa relação, sendo impossível operar a divisão ou delimitação de campos específicos, de certo teoria e prática. São faces de uma mesma e única moeda.
fundamental importância para seu desenvolvimento profissional. Sem exceção,
todos os professores consideram que sua profissão está na dependência de
processos de atualização, capacitação, treinamento, enfim, reconhecem que apenas
a formação inicial não dá conta de oferecer os instrumentos necessários para que
eles desenvolvam sua profissão satisfatoriamente, como ressalta a professora Rose:
“As crianças de hoje já nascem com os olhos abertos.” Observamos, na sala dos
professores, nos corredores, nas conversas informais, uma preocupação com essa
questão, e esse fato é revelador, pois indica o esforço de dar conta da profissão,
respondendo de forma profissional às necessidades da prática pedagógica. Já
havíamos constatado esse profissionalismo no magistério em nossa dissertação de
mestrado (RANGEL 2003), fato que se revela pelo alto índice de formação inicial e
especialização52 dos professores que atuam na educação infantil no Sistema
Municipal de Educação.
A formação continuada é uma necessidade contingencial. Isso aparece nas
narrativas, pois, para dar conta das demandas socioeducacionais, os professores
revelam um desejo de manter continuamente seu aperfeiçoamento por meio de
processos formativos. Entretanto, eles são conscientes de que cursos, oficinas,
palestras e capacitações, em geral não dão conta de instrumentalizá-los para os
desafios do cotidiano. Na expressão da professora Karine, fica explícita a assimetria
entre processos formativos e processos docentes:
Tem aquela hora da formação que a gente senta junto, como planejar, é um contato com a pedagoga que eu acho muito importante, eu acho interessante porque faz a gente ver com outro olhar, o seu trabalho. Toda vez que eu participo de alguma formação, eu vejo que é um crescimento para mim, alguma coisa que eu estava errando, que eu poderia melhorar, poderia ser melhor naquilo, então eu acho que é de extrema importância para o educador sempre estar buscando. As pessoas têm uma visão que educador não precisa, mas, na verdade, precisa. Assim como um médico, um advogado, a gente precisa cada dia buscar mais, ler mais, estudar mais, para estar preparado para os nossos alunos. É como o pessoal fala, que antigamente as crianças nasciam com os olhos fechados, hoje em dia nascem como os olhos abertos, então o educador tem que mudar o plano de aula dele, porque, se ele ficar sempre na mesma, ele vai ficar como um péssimo funcionário, péssimo educador. Então eu vejo que as formações são pra isso.
A narrativa da professora Karine nos ajuda a compreender que os professores,
assim como ela, estão vigilantes diante dos desafios da prática pedagógica e,
mesmo que atribuam aos processos formativos uma importância significativa,
também sabem do limite desses processos, pois ser professor-professora é tarefa 52 Dados do censo escolar, Sistema Municipal de Educação de Vitória.
que se exerce na tensão entre as teorias de apoio e as dúvidas presentes, no campo
de experimentação que é a prática pedagógica.
O segundo ponto diz respeito à percepção que os professores têm desenvolvido dos
programas de formação que são oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação.
Na concepção de alguns professores, esses programas têm se resumido a
propostas sem cumplicidade com as necessidades dos professores. Isso é expresso
na narrativa da professora Solaine:
Eu não sei se é devido a ter que seguir uma metodologia, não há uma coisa muito nova na rede, não acho que exista coisa nova, inovadora. Se a rede pudesse estar investindo, acreditando mais nos profissionais que ela tem e se esses profissionais falassem e agissem, isso seria mais interessante, essa formação. Você não sabe em que eu me formei, o que eu passo ou o que eu posso estar te transmitindo, porque que eu tenho que pagar cinco mil a você para vir dar uma palestra, porque eu não procuro saber se tem alguém que tenha a capacidade de fazer, da própria rede mesmo, investir mais nesses que estão querendo seguir esse caminho aqui.
A narrativa da professora Solaine mostra que os professores acreditam na
potencialidade dos processos formativos que utilizam os próprios profissionais da
rede. Segundo ela, esses profissionais têm capacidade de estabelecer trocas de
experiências mais significativas.
A experiência é uma dimensão totalmente pessoal e intransferível, e essa dimensão
da experiência coloca todo professor na dependência de buscar seu próprio caminho
para o desenvolvimento profissional. Mas também a experiência é interdependente,
ou seja, não existe experiência em si, a experiência é relacional. A nossa percepção,
que é a estrutura primeira, que opera a interface com a realidade, precisa de
elementos externos para que assim possamos produzir as respostas “experiências”.
As narrativas das professoras, quase sempre, trazem como pano de fundo os
contextos de formação, em que estão envolvidas em situações nas quais são
provocadas e mobilizadas a produzir uma resposta que, na maioria das vezes, não
está pronta, precisando ser produzida.
O salto do saber da experiência para um saber experiente só se opera por meio da
apropriação dos diversos elementos que compõem a experiência. Um professor
pode, cotidianamente, lidar com situações didático-pedagógicas sem, no entanto,
ser tocado, ser mexido, ser provocado, por essas situações. Mesmo que passe
muitos anos executando uma tarefa, não lhe imputa a experiência como produto
direto dos anos, ou seja, não há uma transferência direta. Anos desenvolvendo uma
determinada tarefa pode significar anos de repetição da mesma atividade, o que a
torna um exercício mecânico, irrefletido.
Experiência aqui se coaduna com a perspectiva larrosiana, para quem experiência
não se resume a experimentar, ter contato ou provar. Experiência é aquilo que nos
toca, que mexe conosco, que nos desequilibra, que nos provoca e nos passa. A
ampliação do conceito pressupõe uma compreensão de que é preciso uma
longitudidade, supondo um espaço-tempo para que ela aconteça.
Quando acentuamos a importância da experiência, acreditamos que o tempo,
incluindo passado, presente e futuro, é considerado, pois nenhuma experiência
desconsidera o já feito/sabido e o que se poderá vir a fazer/saber. Um professor
experiente é aquele que aprende com as experiências passadas, vive o presente
sabendo que sua prática é também devir, ou seja, vir a ser, e assim acredita que o
futuro o tornará mais preparado, sabido/experiente, nisso se resume o sentido da
formação continuada.
Benjamim (1993), ao fazer a critica à fugacidade do instante que comprime toda a
existência, assinala que, sem uma compreensão da história, perde-se a
intensidade da vida. Sem história, o homem não se reconhece no tempo e no
espaço. A concepção de história de Benjamim remete à experiência, para ele, nas
histórias contadas por meio das narrativas, há um manancial de experiências
“sabidas” que torna o sujeito não apenas suporte da informação e da opinião. A
experiência remete a um tempo que se contempla, tempo para apurar o aprendizado
das relações e das coisas.
Na narrativa da professora Adriana, podemos perceber como a experiência de anos
pode transformar-se em sabedoria acumulada, ou saber experiente:
Eu tive uma experiência há uns dois anos atrás que não foi em rede municipal, foi em escola privada. Eu sempre trabalhei com essa faixa etária de cinco e seis anos, onde eu tinha duas crianças que tinham dificuldade em estar trabalhando nessa parte de alfabetização e eu não estava conseguindo. Eu achava que a culpada era eu, eu que não conseguia mostrar para a criança, ela não conseguia distinguir as letras, estávamos no meio do ano, e ela não identificava o nome dela e eu já estava a
ponto de desistir. Aí uma colega de sala foi até minha casa, conversou comigo, levou materiais para mim, jogos, coisas que eu ainda não tinha acesso na época, falou para eu esquecer tudo que já tinha feito para essa criança, era para eu recomeçar, como se fosse o primeiro dia. Ela falou para eu pegar uma bola, levar para a sala de aula, chamar as duas crianças, levá-las para a quadra, sentar no chão e começar a brincar de bola, ou qualquer outra coisa que chamasse bastante atenção. Eu me lembro de ter fracassado mais de uma vez, levei uma bola, uma raquete de ping-pong, junto com esses brinquedos, eu levei fichas com os nomes dos brinquedos e um alfabeto, comecei a brincar normalmente. Aí eu pensei, vamos juntar aqui no cantinho e vamos fazer uma outra coisa. A partir daí entrou nesse processo de descoberta, de letras. A partir desse dia, que eu vi que faltava eu mesmo chegar até essas crianças e, sem querer, eu estava julgando, estava afastando as duas das outras, eu estava rotulando, eu fiz uma colega de trabalho enxergar a minha ansiedade, o meu medo. Eu comecei a entrar em pânico, porque era tanto minha vida profissional, quanto minha vida particular. Então, a partir desse dia que eu cheguei a trabalhar junto com elas, aí, sim, no outro dia, eu compartilhei essa experiência com o meu grupo, que na época eram 27 alunos e, pelo menos três vezes na semana, eu juntava, ia para algum parquinho, para alguma quadra, para estar junto deles. Eu acho que isso para mim foi uma experiência de vida. Se não fosse essa colega, acho que eu já não estava mais lá no próximo ano, eu tive de sair de lá para assumir em outro município, isso foi para mim uma experiência de vida e profissional, para o meu crescimento (ADRIANA, professora). Observa-se que o elemento catalisador que faz a professora Adriana buscar mais
conhecimento é a experiência com os dois alunos, que a provoca e a desequilibra,
deixando-a ansiosa. Ela, então, se mobiliza e se movimenta em busca de
alternativas. A experiência tem essa virtude, remete sempre à diferença, à
multiplicidade, à criação, à invenção e à construção de novas possibilidades.
Paradoxalmente, uma pessoa experiente não é aquela que é capaz de realizar uma
mesma tarefa por muitos anos, mas aquela que desenvolve a condição de sempre
estar modificando sua prática, incluindo elementos novos.
No cotidiano, os professores produzem outras formas de conhecer, utilizam-se de
diversas teorias e metodologias para atender às necessidades da prática (já nos
referimos a impossibilidade de um conhecimento in natura). Nas narrativas, fica
evidente que os professores usam as teorias em processos de bricolagem, pegam
partes de uma teoria com outra, misturam e produzem não uma prática receituária,
pois todo dia, o tempo todo, estão sendo confrontados com situações que não estão
previstas nos manuais teóricos:
A Rede Municipal de Vitória trabalha com construtivismo-sociointeracionista e eu tive um aluno que não conseguia alcançar. Eu fui tentando de todas as formas, até que eu parei e falei: ‘Espera aí, não estou conseguindo trabalhar com esse construtivismo? Então eu vou voltar lá atrás e vou tentar no ‘ba-be-bi-bo-bu’, e daquela forma ele conseguiu. Então foi um confronto, querendo ou não, porque eu acho que sempre um vai exigir um outro tipo de recurso ou técnicas para se trabalhar ou outras teorias (MILENA, professora). Esse “mix” feito pelos professores torna-se necessário, porque a teoria, no
cotidiano, é apenas uma sinalização; não é rota segura. Como ressalta Oliveira
(2005), o cotidiano é terreno movediço, não sendo previsível as rotas a serem
percorridas, o que há é uma grande preparação.
Eu vejo na teoria que ela dá um caminho, ela da uma direção, mas, com a prática e a ação, é que a gente vai aprendendo. Ás vezes você vê uma coisa na prática, mas que precisa de uma adaptação, de um reajuste, porque, como professores, somos adultos diferentes, temos crianças diferentes e, às vezes, o que surte efeito para uma colega minha na teoria, pode ser diferente para mim. Um exemplo que veio na minha mente: um castigo que eu dei e uma garota que trabalha aqui na escola, acho que uma estagiÁria, e ela tava perguntando como é a questão do castigo aqui, mas esse castigo não é bem um castigo, isso era na época do meu pai, que existia palmatória, ajoelhar no milho, e essas coisas assim, mas eu acho que, com certeza, a gente tem que estar intervindo para a educação da criança (ROSE, professora). É importante destacar que, nas narrativas, as professoras revelam algumas
contradições ao referir-se à relação entre teoria e prática, mas entendemos que esse
traço característico também faz parte da própria constituição das professoras.
Coube-nos acolher isso como uma condição e não como uma limitação, mesmo
porque os processos de formação inicial e continuada a que se submeteram trazem
essas marcas em seus currículos. Mas observamos um esforço dessas professoras
em sinalizar para uma tentativa de realizar a aproximação entre esses âmbitos da
atividade humana.
Concebemos a relação teoria e prática como âmbitos indissociáveis. O
coengendramento imanente a esse processo não faz distinção entre campos de
atuação remetendo unicamente à natureza imediata da atividade. Assim,
entendemos que a ação do professor não se resume à prática, e a atividade do
especialista, por sua vez, à teorização sobre esse prática, pois são atividades
indissociáveis. Parte da crítica à ciência moderna reside nessa separação arbitrária
e abstrata entre ciência e sensocomum, entre saber e fazer. A perspectiva da
pesquisa com o cotidiano, sobretudo com os aportes da sociologia das ausências, a
sociologia das emergências e o trabalho de tradução visa a desconstruir essa ideia
de saber desencarnado de fazer e vice-versa. Entendemos que os professores, em
suas múltiplas formas de fazer, produzem novos/outros saberes.
5.2 COTIDIANO E FORMAÇÃO CONTINUADA: TESSITURA DE REDES NAS
ESCOLAS
Uma de nossas preocupações na pesquisa era com a identificação de movimentos
de criação e invenção, seja no desenvolvimento de metodologias, seja nos usos que
os professores fazem das teorias de apoio. A invenção e a criação não são
acontecimentos que, à primeira vista, identifiquemos como tal. Muitas invenções
precisaram de tempo e, muitas vezes, de um olhar externo para reputar como algo
inventivo. Talvez pelo fato de que, quando imersos no fenômeno, pouco o
percebemos. A tarefa educativa respeita essa norma, quase sempre. Como
professores, não nos damos conta das múltiplas dimensões de nossa prática.
Alves (2001) ressalta que essa pouca capacidade de olhar e perceber esses
movimentos de inovação, de invenção, de criação e produção da escola é fruto de
um processo de reificação, operado pela cientificidade moderna. Sendo assim, como
nosso olhar não é apenas uma decodificação de sinais, mas uma interpretação,
fomos ensinados a só ver aquilo que não dá certo, aquilo que não funciona: o
professor descompromissado, os alunos que não aprendem, as escolas sucatiadas,
enfim, esse quadro de horrores é pintado de maneira que não conseguimos
enxergar os jardins que brotam no chão das escolas. O exercício de buscar esses
movimentos remete à sociologia das ausências e das emergências e ao trabalho de
tradução. Como ressalta Santos (2006), essa forma de ver não é operada
ativamente pela oficialidade, sendo assim, é necessário um trabalho para fazer
emergir do chão das escolas aquilo que foi ativamente invisibilizado.
Um professor de educação infantil com suas crianças, no dia a dia exercendo sua
prática pedagógica, poderia levar um olhar descuidado a remeter à repetição,
entretanto, como ressalta Oliveira (2005), no cotidiano, ainda que apresentem uma
paisagem familiar, no interior dessas ações residem movimentos que reconfiguram
cotidianamente as formas de constituição de professores e alunos e também dos
conteúdos. A heterologia da prática revela o sentido da práxis social e humana.
Morin (2001) ressalta que a complexidade da realidade humana não se reduz a
formas de simplificação ou a um conhecimento que aprisione os sujeitos a condições
espaço temporais lineares. A perspectiva teórica que associa a escola e os
professores ao atraso, à estaticidade, à cópia e à transmissão desconsidera as
condições de produção dessas imagens fragilizadas. Se as escolas guardam esse
estigma, não se pode culpabilizar individualmente o professor, muito menos
coletivamente os professores, pois eles são um dos principais protagonistas da
educação, são os que produzem a educação diariamente com as condições mais
adversas.
Esses movimentos, quase imperceptíveis pela lente da Modernidade, configuram
uma profissão que se realiza no espaço-tempo da mediação “simbólica”, pois os
professores são o que conseguem ser na relação com o outro; os professores
sozinhos não produzem a escola. A docência, afirma Perez (2007), é puro devir,
movimento, transformação, criação, invenção. A partir das reflexões de Deleuze, a
autora explica:
Devir não é imitação ou assimilação, devir é dupla captura. A experiência da dupla captura, faz da docência um estado inédito tiver_ que no plano do visível se materializa na relação com o outro e que no plano do invisível, se expressa na conjugação de novos fluxos, que abalam nossa subjetividade e nos desterritorializam, lançando-nos à exigência de criarmos outras formas de existir (pensar, sentir, agir), que encarnem este estado inédito que se fez em nós, este outro que nos tornamos. A dupla captura incorpora a diferença e instaura a abertura para a criação de outras formas de estar sendo no mundo. A docência como devir, é um estado inédito, uma invenção que anuncia novas possibilidades éticas-políticas-estéticas para o espaço escolar ( PEREZ, 2007).
Esses fluxos silenciosos, contínuos e persistentes são expressos nas narrativas das
professoras, pois elas buscam se envolver em processos de formação como
alternativas possíveis aos desafios da prática pedagógica e esse desejo é expresso
na narrativa da professora Esdra. Quando convidada a falar sobre a possibilidade de
criação e produção de conhecimento no cotidiano da escola, revela que está sempre
envolvida em processos de mudança e que esse desejo de mudar e inovar é
partilhado pelos colegas do grupo, pois a percepção dela é que, de igual modo, os
professores buscam mudanças e as inovações propostas oficialmente não refletem
as necessidades dos professores. Esdra, então, sugere uma alternativa como
possibilidade de se formar um coletivo que extrapole a dimensão unicamente escolar
e que se constitua comunidades ampliadas de formação:
Eu vejo que todo mundo tenta renovar, diversificar, só que o diversificar é já uma coisa muito conhecida, ou a palestra vem de fora, ou é um vídeo, ou um debate sobre algum tema. Apesar de ser bem dinâmico, poderia ser mais diferente, esse espaço nós poderíamos juntar com outras escolas ou fazer uma excursão pelo bairro. Isso seria então um inovar, se é isso que você pensa como inovar, mas é sempre o grupo, nunca é individual, por isso que todos se envolvem, porque não fica aquela coisa obrigada (ESDRA, professora).
Essa fala é recorrente entre as professoras e fica evidenciada no cotidiano, quando
muitas professoras demonstram uma necessidade contingente de mudança,
movimento esse forçado pelas contínuas e intensas mudanças na sociedade e seus
reflexos diretos nos processos de ensino e aprendizagem. Constituir-se professor é
tarefa existencial. Não existe docência como essência, figura romântica de um
período em que se davam aulas, ministravam-se conteúdos e formavam-se
cidadãos:
Eu lembro que um tempo atrás, logo que eu entrei, a gente não tinha essa coisa de capacitação, essas coisas, não, a gente trabalhava de acordo com o que a gente tivesse aprendido e, se a gente for ver, um tempo atrás, anos atrás, nossos professores eram assim, tradicionais, e infelizmente, a gente passa o que a gente aprende, então, depois dos contatos que eu fui tento com outros grupos, com outras pessoas, com outros profissionais, eu senti toda a necessidade de estar mudando, isso tem uns 10 a 12 anos atrás, por aí, eu vim percebendo que aquela prática não estava me dando bom retorno, quando eu passei a trabalhar com jogos, além de textos e leituras compartilhadas com os alunos. Eu mesmo não achava muito que os meninos, no final do ano, iam ler. É uma situação complicada de se passar: será que realmente isso vai dar certo? Mas, se não tentar, não sabe. É complicado, mas não pode parar no espaço, a coisa está andando e, se você ficar para trás, fica parado no tempo, e professor não pode parar, o professor tem que andar junto com a tecnologia. (ROSA, professora).
Os professores estão cotidianamente produzindo formas de sobreviver e viver a
docência, formas que, muitas vezes, por uma perspectiva científica, são
desconsideradas ou invisibilizadas. Os estudos com o cotidiano tentam mostrar a
riqueza que há nesses saberes-fazeres. Como ressalta Oliveira (2005), a partir das
reflexões de Santos (2006), as pesquisas com o cotidiano têm tentado fazer o
trabalho de dar visibilidade, pela via da compreensão dos saberes e fazeres dos
professores, à realização da docência.
Assim, neste trabalho, trazemos à tona a narrativa da professora Elenir, uma
professora que na educação já exerceu diversos papéis, desde professora a
gestora, lugares institucionais e instituintes que persistem em aparecer como marcas
em sua vida:
Eu sei o meu papel como educadora, eu sei do que as crianças precisam nesse relacionamento comigo, eu sei que eu tenho algo a fazer, não é porque eu tenho que receber um salário, mas eu
acredito mais que isso, que o que me impulsiona é saber que eu posso fazer alguma coisa para tornar as crianças pessoas melhores, e elas também me tornam melhor, porque eu preciso me educar para estar com elas, porque a forma como a gente conversa com um adulto a gente não pode conversar com uma criança, a gente sabe que a criança recebe as palavras com sensibilidade, então a gente tem de ser educado ao trabalhar com elas. Isso é um momento de formação, a gente tem essas conversa onde a gente compartilha as coisas, o conhecimento em si também, porque, principalmente, eu que me formei há tantos anos e se a gente não se atualiza a gente se sente fora do tempo, fora do lugar, parece que as coisas avançam muito e a gente fica para tras. Exemplo essa questão da tecnologia, da informática. Eu demorei um pouco, eu criei uma barreira com o próprio computador, porque parecia que isso não era do meu mundo e, para uma criança que começa desde cedo, é muito natural, para mim já não foi, então esses momentos eu enxergo como momentos de superação e são muito importantes para mim (ELENIR, professora).
A professora Elenir, em sua narrativa, revela o vigor da docência, e sua crença nas
possibilidades de formação continuada é afirmada pela sua certeza de que tem uma
contribuição a dar e que a profissão é feita, sim, de devir, aspecto esse que ela,
humildemente, reconhece ao admitir suas insuficiências diante de demandas que
estão batendo o tempo todo à porta da escola, como revela na questão da
informática. A professora Elenir deixa transparecer que, mesmo que tenha alguns
anos de experiência docente, as necessidades contingenciais a colocam na
condição de “aprendiz de ser professora”, fato esse que não a desanima, mas a
impulsiona para continuar se formando no cotidiano, por meio de compartilhamentos
e trocas com os outros professores.
É importante destacar que a tessitura de redes de formação no cotidiano é um
movimento sinuoso, que se expressa por fluxos que nem sempre podemos captar.
Na tessitura, não é dado sempre o poder de escolher os fios, pois eles aparecem e
se apresentam de forma eruptiva. Assim, a rede é obra de artesanato, de
bricolagem, de experimentação, de fabricação, sua característica principal é a
complexidade, pois, como cada professor e cada prática representa um fio, não é
possível a repetição. Sendo assim, o tecido cotidiano remete à diferença, à
singularidade, à pluralidade.
Essa forma plural de produzir conhecimentos nós podemos perceber no cotidiano,
pois, por mais que haja um jeito prescritivo de ser professor, por mais que os
pressupostos didáticos pedagógicos estabeleçam formas de exercer a docência, os
professores inventam sua própria forma de dar aulas, fazem de seu jeito. A
expressão característica “eu faço do meu jeito”, a princípio, remete a uma
perspectiva individualista, mas as narrativas mostram que esse “fazer do seu jeito”
não desconsidera os muitos outros jeitos de fazer, inclusive os inclui, de maneira
que o jeito próprio de produzir a docência é um mix de muitos jeitos que os
professores foram juntando ao longo da carreira. As narrativas das professoras
Marta e Rosana evidenciam esse modo peculiar de criar conhecimento cotidiano,
por meio de processos de adaptação dos conhecimentos:
Na verdade passa a ser aquilo que é a proposta, ou seja, aquele conhecimento que a gente adquire adaptadas à realidade, e a gente tenta fazer isso, não da forma que está lá, mas a gente tenta adequar as crianças ao ambiente, para a faixa etária. Então nós partimos de acordo com o que nós temos aqui, o brincar com as crianças, as cantigas de roda, partindo sempre também da proposta vivenciada por eles. Exemplo, eles vivem muito mais uma música como o “funk”, de que uma cantiga de roda, então tem que aproveitar a proposta do referencial e partir da realidade. Na verdade, nós não somos voltados para a proposta curricular, mas dá para vivenciar (MARTA, professora). O que a gente percebe é que é complicado você estar seguindo esse currículo prescrito. A gente tenta, mas a realidade das comunidades às vezes te impede de estar executando uma determinada tarefa, até mesmo alguma situação em sala de aula. O comportamento das crianças impede também, às vezes, a gente chega à sala e tem que fazer outra coisa, não aquilo que já foi predeterminado, tudo certinho, como regra básica, a gente trabalha mais com a realidade da comunidade, da turma (Rosana, professora).
Oliveira (2005) faz referência a esse processo de bricolagem e mestiçagem de
conhecimentos no cotidiano destacando que não existe conhecimento unicamente
aplicacionista. Daquilo que foi aprendido na faculdade ou nos processos de
formação continuada, os professores desenvolvem formas peculiares de produzir
conhecimento e de usar esses conhecimentos.
Os estudos do cotidiano envolvem a convicção de que a vida não é apenas lugar de repetição e de reprodução de uma ‘estrutura social’ abstrata que, além de explicar toda a realidade, a determinaria, como supõem, ainda hoje, alguns. Compreender esses processos específicos de produção do real, para além dos seus elementos ditos estruturais exige de nós, pesquisadores, uma viagem ao processo de constituição da ciência moderna e dos limites que este impõe aos diversos campos de pesquisa (OLIVEIRA, 2005).
Acreditamos, também, que os professores não são meros repetidores de conteúdos,
não são apenas “via de conteúdos” como sublinha Ferraço (2005). Por mais que se
queira, a vida cotidiana se ocupa de operar essas pequenas e sutis mudanças nos
conteúdos, nos métodos, nos currículos, na escola e nos professores. A professora
Daniela sinaliza que uma coisa é o professor trabalhar com um número reduzido de
crianças e aplicar os conhecimentos teóricos, outra bem diferente são os processos
de negociação que os professores precisam fazer para que os conteúdos sejam
trabalhados. Daniela então diz: “A questão é, como desenvolver essas proposições
teóricas com uma sala com 30-40 alunos”.
Como nos referimos, a tessitura das redes não é processo fácil, obedece a múltiplas
lógicas, muitas vezes de forma sub-reptícia, sem e contra a autoridade de um
próprio instituído. A vitalidade dessas redes reside no fato de que a composição
desses fios é negociada o tempo todo, entre os próprios professores, entre os
professores e a comunidade, entre professores e o CTA da escola. Isso faz com
que, na tessitura, não se incorra no risco de atar fios novos em panos velhos e vice-
versa.53 Uma das queixas expressivas dos professores é que, quando os fios são
dados ou impostos de cima, quase sempre, o processo de tecer é comprometido,
pois os conhecimentos que compõem os fios não são compatíveis com as
necessidades dos professores. No cotidiano, a tessitura é realizada fio por fio, numa
operação de artesão, e isso é expresso na narrativa da professora Elenir, que,
solicitada a lembrar de acontecimentos e fatos que a ajudassem a perceber a
relação que procura estabelecer entre os conhecimentos teóricos e o saber da
experiência, busca na memória um momento importante em sua carreira para
explicar:
Eu acho que uma coisa não caminha sem a outra e, para desenvolver um bom trabalho e ser um bom profissional, tem que aliar a teoria à pratica. Eu vejo a teoria como um suporte e a prática como um laboratório, não num sentido pejorativo, mas naquele sentido de poder estudar, analisar a teoria e poder colocá-la em pratica. A teoria, muitas vezes, exige o ideal, é posto na teoria o ideal, mas, na prática nós temos o real, na prática, às vezes, nós precisamos ser muito ousados, a gente precisa ousar, e na época que teve essa ruptura do tradicional com o construtivismo eu vivi tudo isso. Eu trabalhei no tradicional, vim para a Prefeitura de Vitória e, nesse momento, foi como se tirassem o meu chão, mas a Prefeitura, nessa época, deu bastante curso, bastante motivação, havia muitos momentos de troca, a gente fazia grupos de estudos para estar conhecendo as outras escolas. Eu te confesso que eu não entrei com segurança, não, eu comecei bastante temerosa, porque eu tinha que aprender coisas novas, eu já sabia praticamente tudo, mas precisava de coisas novas, mas eu repeti a experiência, porque eu vi que deveria aproveitar aquele momento, recortei todos os desenhos que eu tinha em uma cartilha, tirei onde tinha as sílabas e fiz um joguinho de memória e comecei ali a romper o medo. Levei para sala aquele jogo, sentei com as crianças no chão, em círculo e jogamos o jogo, era o nome da figura e a figura. Foi uma experiência muito gostosa, um momento muito bom e eu passei para o pedagogo o que eu tinha feito, passei para as colegas, então é caminhar e pensar.
A professora Elenir buscou na memória esse fato de sua vida, coincidentemente, um
fato que representa para ela e para a educação, na rede municipal, um período de
transição e também de crise, como ela expressa: “Tiraram meu chão”. Na época, a
53 Essa expressão refere-se à crítica à cultura do reformismo muito presente nas políticas educacionais, cuja lógica é fazer mais do mesmo ou de outro modo, reformar/mudar para continuar do mesmo jeito.
mudança, na perspectiva teórico-metodológica dos processos de alfabetização, foi
percebida com todos os sentidos pela expressiva maioria da professoras. O
construtivismo “desceu de cima para baixo” como uma determinação de sistema.
Sendo assim, mudanças tinham que ser realizadas na prática. Da teoria “ideal” para
a prática “real”, a professora Elenir busca, em sua experiência docente, elementos
que potencializem o novo momento e, nesse esforço, vai criando suas próprias
formas de fazer o novo, num primeiro momento misturando o “tradicional” com o
“construtivismo”. Na narrativa da professora, fica evidente esse processo de
fabricação, bricolagem e criação que as professoras empreendem, como ela mesma
ressalta, a ideia de pesquisar a prática, o movimento de reflexão está presente
quase que o tempo todo como um diapasão “a prática é como laboratório”. Como
ressalta Nóvoa (1995), uma pesquisa de laboratório na educação só seria possível
considerando o amplo e múltiplo campo de laboratórios que são as práticas que os
professores realizam no cotidiano das escolas.
5.3 TECENDO OS FIOS DE UMA REDE SEM FIM
O tempo todo da pesquisa nos debatemos com questões relacionadas com a
maneira como iríamos selecionar as narrativas e desenvolver uma compreensão
delas. Nesse processo, não pudemos nos furtar dos dilemas do pesquisador
do/no/com o cotidiano. Qual narrativa escolher? Como colocá-las no texto sem
reduzi-las à análise a partir de teorias? Como estabelecer conexões entre as
diferentes narrativas? E a questão dos diversos CMEIs, isso deveria ficar
evidenciado nas narrativas? Enfim, como ressalta Esteban (2003), na pesquisa com
o cotidiano, o pesquisador tem uma série de providências a tomar. A primeira é o
cuidado que tem que ter consigo mesmo. A esse respeito ela destaca que, como as
pesquisas com o cotidiano pressupõem um mergulho com todos os sentidos, não
havendo a separação sujeito e objeto, faz-se necessário um cuidado com nossas
formas subjetivas de produzir a realidade. A segunda preocupação está no esforço
de captar a realidade sem interromper os fluxos de movimentos nela presentes, para
que, assim, possa melhor compreendê-la em curso, ou seja, não fazendo o recorte
para depois isolar, esquadrinhar, categorizar e analisar os fatos fora dos contextos.
Esteban (2003) destaca ainda que a pesquisa com o cotidiano tem essa sinuosidade
característica, pois, como opta pela via da compreensão e não da explicação,
pressupõe um risco maior.
A dinâmica da pesquisa com o cotidiano é marcada pela incerteza e indica que um mesmo processo coletivo pode dar margem a diferentes procedimentos individuais, marcados pela singularidade das experiências que também fazem com que procedimentos individuais semelhantes configurem processos coletivos distintos. Como conseqüência, são muitas as relações possíveis e não há trajetos predefinidos, lineares, cujos pontos de partida sejam fixos e os pontos de chegada previsíveis.
Sem pontos fixos, buscamos trabalhar com as narrativas em um processo que
Azevedo (2004) chama de tessitura de uma colcha de retalhos. Nossa colcha traz,
como retalhos, algumas das narrativas das professoras. Nesse sentido, fizemos um
esforço de juntar as narrativas para compor um mosaico narrativo sobre os
processos de formação continuada no cotidiano dos centros municipais de educação
infantil, possibilitando que todos os fragmentos possam ser colocados à mostra.
Outra ideia complementar é fornecer ao leitor pedaços-recortes, para que se permita
uma visão caleidoscópica dos processos de formação, possibilitando que cada leitor,
individual e coletivamente, enxergue pontos de vista e façam múltiplas leituras dessa
realidade, podendo, assim, compreender a articulação entre todas as partes dessa
ampla e complexa rede de subjetividades que é produzida no cotidiano das escolas.
Apresentamos, a seguir, os retalhos “narrativas” para que sejam tecidas colchas dos
mais diferentes matizes. Frisamos que, nessa parte, apresentaremos a narrativa em
si, permitindo que seja compreendida sob as mais diferentes perspectivas.
Redes solidárias de ajuda mútua
Nessa última formação que foi sobre como alfabetizar as crianças realizada há uns
dois anos, era tudo à base de papel, decorar, fazer com que os alunos escrevessem
cada vez mais, para poder se alfabetizar, então tinha algumas amigas minhas que
se encantaram com a forma como a gente mostrou para a criança o universo das
letras, das palavras. Por meio de uma brincadeira, de uma música, elas foram
descobrindo esse universo e, para algumas colegas nossas, foi uma novidade, não
imaginavam que seria assim. Esse momento foi para mim muito satisfatório
(ADRIANA, professora).
Contra o pedagocentrismo e didaticentrismo: a favor do coletivo
Na educação infantil, eu vejo um grupo mais individualista, cada um com as suas
turmas e você fica ali, cinco horas, só você e a sua turma. Já nos outros níveis, não,
eu acho que a ajuda é bem maior, você divide as turmas com outros professores.
Então, às vezes, é assim, um aluno tem problema comigo, mas também tem
problema com você, dificuldades, né? O fato de você conseguir chegar junto, a
solução do problema é maior, se a gente conseguisse trabalhar mais junto, o
trabalho seria mais interessante. Eu acredito muito nessa relação de todo mundo
junto (KÁTIA, professora).
Contradições de um mesmo processo
Então, foi lançada uma proposta de formação, onde cada turma vai e participa, os
professores vão e participam dessa formação. Aqui, na escola, nós temos
desenvolvido alguns temas, mas eu, Rosana, acho que a formação tem somado, é
positiva e, vamos dizer assim, claro que não é tão positivo, né? Porque você vai lá
no teórico, vê a matéria, quando você vai colocar em prática mesmo, foge um pouco
da realidade da escola, porque a escola pede uma coisa, a comunidade pede outra
coisa totalmente diferente daquilo (ROSANA, professora).
Nós já tivemos muito [formação continuada], podemos dizer que, no passado, isso
era feito com bastante intensidade, mas, de uns anos para cá, essa troca tem
enfraquecido, os momentos são poucos, os horários têm diminuído cada vez mais. A
gente quase não tem tido esse tipo de troca, de conversa, entre um e outro, entre
uma professora e outra (MILENA, professora).
Oficinas de aprender com o outro: o intercambiamento de experiências
Quando você está mais ali na prática eu percebo que há um entrosamento maior,
agora, quando a gente está mais ali no estudo dos conteúdos mesmo, na
sistematização dos documentos, eu percebo que vai mais pela linha mesmo. De
repente, é uma necessidade, naquele momento a gente está se preparando para
estudar, para depois irmos para a prática, mas, assim, nos momentos de oficina em
que existe aquela troca de uma sala com a outra, que a gente compartilha o trabalho
com a outra turma, aí eu percebo essa diferença (LUCIANA, professora).
Como eu falei, nesse encontro que eu tive, eu achei legal a troca de escolas da
mesma região. Acho que eles poderiam fazer assim, trabalhar nas escolas da
região, porque, às vezes, a gente pensa em uma pessoa que trabalha lá em
Camburi e as coisas lá são diferentes daqui de São Pedro. Então isso eu achei
diferente, a troca de CMEI com CMEI, algum projeto legal, alguma pessoa com ideia
nova e estar passando isso para as outras (CLAUDIA, professora).
Outra coisa também que eu acho que seria interessantíssimo, eu penso que nós
trabalhamos em uma região, São Pedro I, Ilha das Caieiras, não tem só o CMEI
Gilda, tem outros CMEIs com as mesmas características, com a mesma clientela, e
por que não tem esse intercambio? A gente podia ver o que está dando certo lá
também. Eles vão nos receber, mas as coisas ficam muito fechadas. Eu sinto falta
de contato com outros professores, outros profissionais, e a gente precisa ser amiga,
porque o colega já errou e, quando a gente tem uma integração de CMEI, imagina
que coisa linda (RITA, professora).
Eu lembro que, uma vez, uns três anos atrás, nós tínhamos uma pedagoga aqui
que, além de nos incentivar no trabalho, nos momentos de estudos, ela trazia textos,
discutia, nos levava a outros CMEIs para conhecer outros ambientes, outros tipos de
trabalho. Era legal, era como se fosse um intercâmbio entre os professores e,
infelizmente, isso acabou, mas assim, essa troca é fundamental, eu acho, e o
professor tem que estar a todo o momento se atualizando, trocando com o outro
ideias, experiências, angustias (Professora Milena).
O limite da teoria
Eu acho que a teoria nasce da observância do dia-a-dia mesmo, da prática. Alguém
teve um olhar além daquilo ali, do que todo mundo consegue enxergar, então parte
da observância, da experiência, e o homem vai criando, como o próprio Vygotsky,
não foi partindo da experiência? Só que, muitas vezes, toda teoria também é
limitada, porque é o ângulo de visão de uma pessoa e também daquela realidade,
que difere desse bairro para aquele bairro, de um país para outro país. Mas eu
acredito que a teoria não está tão distante da prática, porque partiu dela, mas, pra
gente, às vezes, não funciona: isso é teoria e isso é prática. Não, a gente tem que
ver em qual teoria está embasado a nossa prática. Por que a gente pensa assim?
Por que a gente age assim? Dentro de qual paradigma eu estou? A gente sabe que
o pensamento da gente, o modo da gente agi, é da forma como nós fomos
educados, na nossa cultura (GISELI, professora).
Eu já trabalhei de formas diferentes. Você falou sobre a teoria e a prática. Eu gostei
muito de fazer o PROFA,54 mas nem tudo do PROFA eu consegui inserir na sala de
aula. Eu acho o máximo quando a gente trabalha com letras maiúsculas, porque a
criança sente interesse em buscar a outra letra, que é a letra cursiva, e isso eu pude
confirmar e conferir com a minha turma de primeira série, onde as crianças só
usavam letra de forma, e chegava outubro, quando a maioria da sala já estava
alfabetizada, eu tinha disponível uns cartazes com as letras cursivas, aí eles ficavam
olhando, fazendo, daqui a pouco estava todo mundo tentando fazer aquela letra
cursiva. Agora, quando é trabalhar em dupla, não sei como é que eles conseguiram
trabalhar em dupla numa sala com 40 alunos, porque eu não conseguia, era uma
bagunça [ela faz referência aos vídeos que mostravam professores usando
estratégias de organização de sala e estratégias de ensino]. Então, nem tudo que a
gente aprende na teoria dá para levar para a prática, mesmo porque a gente tem
que modificar, porque são turmas muito heterogêneas e têm necessidades
diferentes, e fazer aquele agrupamento aproximado sempre acaba em conflito,
porque o aluno não queria sentar com fulano, ele fala que não vai e, daqui a pouco,
quer fazer sozinho e tentar convencer ela a sentar com o outro coleguinha é difícil,
mas não é impossível (MICAELLY, professora).
Eu já tentei trabalhar com o sistema de monitoria. Toda vez a gente vai tentando, a
prática difere um pouco, a teoria e a prática, às vezes, conseguem trabalhar juntas,
mas, às vezes, não. Eu acho que, em um processo de alfabetização, o que dá certo
tem que dar certo para todo mundo, então o professor, às vezes, acaba sendo
cobaia de algumas coisas e, muitas vezes, do próprio aluno, porque não é o acerto
54 PROFA – Refere-se a um programa de formação continuada do professor alfabetizador desenvolvido pelo Ministério da Educação em parceria com os Estados e Municípios.
do mérito, mas é acertar para que facilite para eles aquela questão que a gente
colocou ontem na alfabetização. Somos aprendizes e alunos já professores. Só que
gente esbarra em algumas coisas, é que nem ensinar conceitos matemáticos. Até
que ponto o professor tem a paciência de esperar o resultado final? O aluno tem mil
caminhos para chegar até lá, mas, como a gente já sabe o que é, a Matemática é
uma das atividades mais difíceis de ensinar, é que nós não temos a paciência de
esperar o final, e o caminho dele, isso foi até dito por Jaqueline, que faz doutorado
nessa área (RITA, professora).
Necessidade de valorização dos saberes e fazeres dos professores
Eu acredito, porque nós temos professores com uma bagagem muito boa de
experiências. Pode vir alguém de fora, São Paulo, Rio de Janeiro, mas, na própria
instituição de ensino, a gente consegue encontrar e eu já havia falado antes. Você,
às vezes, vai muito longe pra trazer uma coisa e esquece que aqui perto você tem e,
sinceramente, eu não consigo ver a palavra formação continuada, como eu já falei
no início, eu acho que, não (MARIA HELENA, professora).
Eu não sei se é devido a ter de seguir a uma metodologia. Não há uma coisa muito
nova na rede. Não acho que exista coisa nova, inovadora. Se a rede pudesse estar
investindo, acreditando mais nos profissionais que eles têm, e se esses profissionais
falassem, agissem, seria mais interessante essa formação. Você não sabe em que
eu me formei, o que eu passo ou o que eu posso estar te transmitindo. Por que que
eu tenho que pagar cinco mil a você, para vir dar uma palestra? Por que eu não
procuro saber se tem algum professor que tenha a capacidade de fazer, da própria
rede mesmo, investir mais nesses que estão querendo seguir esse caminho aqui?
(SOLAINE, professora).
A escola como espaço de formação
Primeiro, eu acredito o seguinte, uma escola, além de uma biblioteca para crianças,
eu acredito que nós deveríamos ter uma biblioteca para o professor. Na minha
concepção, uma escola onde o professor não tem espaço para leitura para ele, onde
ele não tenha bons livros, que ele não tenha revistas, eu acredito que o professor
tem que ser estimulado, o professor tem de estar lendo sempre e atualizado. Às
vezes, as escolas não oferecem revistas, não oferecem bons livros, já parte daí
(MARIA HELENA, professora).
Eu vejo a formação não só como um momento sério, mas como um momento de
descontração, um momento de aprender, momento de troca e, muitas vezes, eu
tenho ficado preocupada com a formação. Assim, de sentar lá e fazer um programa
pedagógico, aquela coisa assim: ‘Vamos colocar no papel, vamos colocar no pape’ e
aí é aquela coisa muito séria. Eu acho que tem que ter mais troca, tem que haver
mais descontração, como as formações que aconteceram à noite. Exemplo: eu
trabalho o dia todo, aí chega a noite: “Vamos lá, vamos colocar no papel”, então não
tem uma dinâmica para motivar o grupo, e eu sinto falta disso aqui, na formação
(KARINE, professora).
Desafios em torno da emergência de um professor pesquisador -reflexivo
Eu escolhi a carreira porque eu adorava crianças, tenho muita paciência, sempre fui
dedicada, aí fiz o magistério, logo depois fiz pedagogia e, quando eu estava quase
me formando, teve um concurso para Serra e Vitória. Fiz para os dois e fui chamada
para Serra, depois passei no concurso de Vila Velha, e depois passei no concurso
de Vitória, aí fui para Vila Velha, fui para Vitória, e estou aqui nessa carreira.
Ultimamente estou um pouco desiludida com a profissão. São muitas crianças na
sala de aula, pouca valorização, então a gente vai ao sufoco, perdendo um pouco o
ânimo. A gente escuta nas formações que os professores têm que ser pesquisador,
têm que ter dinâmica, criativo, mas, às vezes, nossa realidade é completamente
diferente, salas de aulas supercheias, crianças que precisam de um tratamento,
crianças com fome, aí a gente faz um encaminhamento, por escrito, e, quando a
gente vê o retorno já está acabando o ano, então eu estou um pouco desiludida com
a profissão, eu acho que, se eu pudesse voltar atrás, eu não faria a mesma coisa,
não (MICAELLY, professora)
Nesse mosaico/caleidoscópio narrativo, podemos compreender que, nas histórias
contadas, fatos relatados, acontecimentos relembrados, não há um fluxo de
compreensão que encaminhe para uma metanarrativa. Assim, assumimos a ideia da
formação como processos intermitentes de investimentos que são feitos pelos
professores a partir de necessidades múltiplas. Não faz sentido buscar nas
narrativas elementos que permitam eleger as declarações certas, as que se
aproximem de concepções teóricas ou mesmo subsidiem proposta política. Fizemos
um exercício de compreensão, recusando a ideia de estabelecer juízos. A pesquisa
com o cotidiano não abdica da tradução e da compreensão, mas se furta a produzir
uma verdade única sobre os professores, opta pela diferença, pela multiplicidade e
pela pluralidade.
5.4 PROCESSOS DE RESISTÊNCIA: LIGANDO AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA PRÁTICA PEDAGÓGICA Como temos destacado, nosso interesse concentrou-se na tentativa de
compreensão dos processos de formação continuada experienciados pelos
professores no cotidiano de suas práticas. Entretanto, ainda que nosso foco tenha
se dado na dimensão micro das relações sociais, não pudemos nos furtar ao
trabalho de estabelecer nexos entre as diversas dimensões da experiência
social/educacional. Nessa direção, buscamos identificar nas narrativas os elementos
que nos permitissem estabelece relações entre o cotidiano imediato e as
determinações macrossociais. Desse modo, percebemos, nas narrativas das
professoras, que, no miudinho da escola, as tensões sociais, as relações
sociopolíticas são sentidas de forma latente, sobretudo nas marcas características
inerentes ao contexto da pesquisa, ou seja, a realidade social do bairro de São
Pedro, já contextualizado no primeiro capítulo. A narrativa a seguir evidencia esse
fato:
O maior desafio que eu enfrento, talvez Micaelly também, não sei, nós temos alguns alunos com risco social, nós temos alunos com falta de limites, indisciplinadas, crianças que os pais precisam trabalhar, e eles ficam aos cuidados de irmãos quase da mesma idade. Eu não sei como isso funciona, então, assim, são tão desafiadores, porque a gente nunca sabe o que nos espera no outro dia, como eles vão estar, o que vai ser necessário para você conseguir concentrar, enfim, dar essa importância para a atividade, ou do respeito ao outro. Isso é uma rotina, é uma coisa que deixa de ser prazer, imagina ter de falar todos os dias a mesma coisa? (RITA, professora)
As professoras, em sua grande maioria, acreditam na dimensão política de sua
prática, mesmo que não revelem isso de forma explícita. Segundo Rangel (2003), o
professor faz política no limite de sua prática. Sua postura pedagógica
consubstancia sua ação política e vice-versa. Nos corredores, nas reuniões de pais,
na hora do recreio, na hora do lanche, enfim, o tempo todo levantam questões como:
o alto índice de violência no bairro, a falta de condições das famílias, a influência das
drogas, a ausência dos pais, todos esses temas que têm reflexo direto no cotidiano
dos CMEI.
As pesquisas com o cotidiano buscam inverter a lógica estabelecida que afirma
haver uma via de mão única na relação entre o micro e o macro. Santos (2006)
propõe uma combinação de escalas para uma melhor compreensão dos fenômenos
sociais em que as macroescalas, as mesoescalas e as microescalas aparecem
como possibilidades de leitura de uma mesma problemática. A respeito das escalas,
Santos (2006), a partir da cartografia simbólica do direito, mostra que a escala é
uma das três formas de representação social. As outras duas são a projeção e a
simbolização. Especificamente sobre as escalas, ele ressalta que não existe escala
única, totalizadora, ou seja, quando se muda a escala, consequentemente, muda-se
o objeto. Sendo assim, a tentativa de utilização de uma escala universal tem
provocado distorções de compreensão da realidade. Ainda que sua análise se dê no
contexto do direito, a partir de estudos comparativos sobre os usos de escalas para
compreensão de realidades distintas,55 o próprio autor, em nota de rodapé, sinaliza
que essa cartografia simbólica extrapola os âmbitos jurídicos, podendo ser aplicada
em diferentes contextos, inclusive no da educação.
Para uma maior compreensão da relação que as diferentes instituições sociais
estabelecem entre si, Santos (2005) utiliza outra figura de linguagem bastante
esclarecedora, que acreditamos nos fornecer elementos para ampliar a percepção
que temos das escolas e dos sujeitos praticantes que a produzem diuturnamente.
Segundo Santos (2005, p. 48), “[...] uma sociedade sem espelhos é uma sociedade
aterrorizada pelo seu próprio poder”. Quais são os espelhos que refletem e quais
são as imagens refletidas pela sociedade? Respondendo à primeira questão, a mais
55 Santos (2006) cita, para exemplificar, a experiência que teve ao tentar compreender as questões do direito em estudos realizados em Portugal, Cabo Verde e Brasil. Ele percebeu, na convivência com diferentes comunidades, que existem variadas compreensões do direito: “Trata-se de formas de direito infra-estatal, informal, não-oficial e mais ou menos costumeiro” No âmbito sociojurídico, revela-se a existência do direito local, que significa uma legalidade de grande escala; o direito nacional, que significa uma legalidade de média escala; e um direito mundial que é uma legalidade de pequena escala.
fácil! O direito, a política, a ciência e a educação.56 Qual a importância do uso do
espelho? Segundo Santos (2003, p. 47-48), pelo uso, se opera a transformação,
Quanto maior é o uso de um dado espelho e quanto mais importante é esse uso, maior é a probabilidade de que ele adquira vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver refletida no espelho, é o espelho a pretender que a sociedade o reflita. De objeto do olhar, passa a ser, ele próprio, o olhar. Um olhar imperial e imperscrutável, porque se, por um lado, a sociedade deixa de se reconhecer nele, por outro não entende sequer o que o espelho pretende reconhecer nela.
Como afirmamos, a educação é um espelho, mas um espelho sob a moldura da
ciência. Nesse aspecto, Linhares (2002) afirma que a produção científica sobre as
escolas e sobre os professores tem se ocupado em pintar uma imagem caricata e
distorcida. As pesquisas, em sua grande maioria, em nome de um estatuto
epistemológico que protege “esconde” os pesquisadores da realidade, não se ocupa
dos problemas como eles são percebidos por aqueles que os vivem no cotidiano.
Sendo assim, os “problemas de pesquisas” nem sempre encontram rebatimento nos
problemas da vida. No que diz respeito às produções sobre as escolas e os
professores, as narrativas dos professores revelam essa assimetria entre saber da
experiência e saber acadêmico, em que se observa o alastramento de um em
detrimento do outro. A respeito desse tom, dadas as pesquisas na área da educação
pela racionalidade técnico-científica, Linhares (2002, p. 5) destaca:
Não é raro que percentagens e índices quantitativos sejam acumpliciados com imagens, que vão desde as propagandas até as metáforas jornalísticas, enfatizando que os fracassos escolares e educacionais são produzidos pela incompetência do professorado. Poderíamos encher páginas com exemplos anedóticos dessas descargas de responsabilidade. Preferimos lembrar como as professoras e os professores são lançados, recorrentemente, na ficha dos culpados [...] De toda maneira é fácil identificar imagens que culpabilizam injustamente o professor a professora não só por lhe ter sido negada.
Nosso mergulho no cotidiano nos mostrou que a realidade é muito mais multicolorida
do que os quadros sombrios e cinzentos que pintam a escola e seus professores.
Percebemos movimentos que se caracterizam pela vitalidade das práticas
56 Boaventura não faz referência explícita à educação como instituição social espelho, entretanto acreditamos ser a educação um grande e significativo espelho a refletir a sociedade moderna, cujo uso tanto individual como coletivo tem tido implicações diretas nas formas de relações sociais, mas, em sociedades periféricas, ainda não tem ampliado e consolidado o seu uso
pedagógicas que são realizadas, a despeito dos problemas que existem. O
professor tem escrito uma outra história, que é produzida com muitas renúncias,
com muitas abstinências, com muitos sacrifícios e negações; é um profissional que
subsiste as muitas formas de constituir-se professor, em uma sociedade que
aprendeu a ver o professor como um profissional necessário, mas não fundamental
no desenvolvimento da sociedade brasileira. Como ressalta Nóvoa (1995), a respeito
dessa contradição em relação à valorização e concomitante desvalorização do
magistério, o professor é um profissional, “entre dois”, pois absorve as contradições
da sociedade que vê no conhecimento uma forma de emancipação e atribui à escola
e ao professor um lugar de destaque no discurso político, entretanto,
paradoxalmente, mantém a instituição “escola” e o profissional “professor” alijados
da materialização das políticas públicas.
No cotidiano, ao escutar os professores, sensibilizamo-nos e, algumas vezes,
ficamos emocionados com suas histórias, fomos levado a pensar, várias vezes, na
figura proposta por Santos (2005) sobre os “espelhos” e buscamos estabeler
relações com Linhares (2005) que destaca a importância das imagens na
constituição das subjetividades na sociedade moderna. Somos formados a partir de
miríades de imagens que nos são apresentadas desde a infância, e essas imagens,
como num filme, vão produzindo nossa história. Nesse filme, intercalamos diversos
papéis, como diretor, ator principal, roteirista, coadjuvante, etc. Tal como a imagética
da vida, que vai nos envolvendo em uma trama visual, sonora, tátil, olfativa e
gustativa, somos também envolvidos em imagens que são produzidas sobre as
escolas e sobre os professores, de tal forma que uma professora, exclamou “Falar
sobre a escola qualquer um pode falar, mas fazer a escola, somente poucos
conseguem fazer”.
Os professores fazem parte não do grupo dos que discursam sobre a escola, mas
dos que fazem a escola cotidianamente. A oportunidade de narrar suas histórias,
buscando articular suas experiências singulares a um coletivo institucional, mostrou-
nos que há mais coisas entre a escola e a academia e os sistemas do que as teorias
de apoio supõem. Essas muitas e tantas coisas são expressas em narrativas como
as que se seguem:
Bom, eu acho que eu, como educadora, meu maior desafio, porque, assim, eu sou muito preocupada de estar ali na sala de aula, é ser importante, fazer estar presente para as crianças, estar ali não pra passar o tempo, passar o mês, a semana, mas de deixar uma marca nessa criança e, às vezes, eu fico chateada, às vezes eu vejo umas crianças que não consegue avançar, aí isso me deixa chateada e eu fico pensando: ‘Será que a culpa é minha? Igual a proposta de diminuir o número de alunos. Seria o ideal, para mim, no caso, porque o desafio para mim é esse, de chegar no final do ano e ter alcançado o meu objetivo, todos estejam sabendo escrever o nome, que todos saibam que a professora é uma boa educadora, então o meu maior desafio é esse, de dar conta do que eu vim fazer (KARINE, professora). A minha experiência foi aqui e eu pretendo me aposentar aqui, na região de São Pedro, porque eu amo trabalhar aqui, porque eu respeito e sou respeitada. Lá, na escola particular, você é respeitada com presentes, já aqui, não, aqui a gente vê, no olhar da criança, quando ela sente falta de você. A criança em si, desde pequena, já tem compromisso, já tem a responsabilidade muito grande, e eu tenho que trabalhar a responsabilidade dessa criança, trabalhar a autoestima da criança, dar carinho para elas. Então, eu vejo que meu papel, como educadora aqui, é esse, às vezes, a criança vem muito violenta, com palavras agressivas, mas, às vezes, é a experiência do que ela vivencia em casa (CRISTINA, professora).
Ao ouvir as narrativas e acompanhar um pouco do trabalho e também da vida das
professoras, fomos envolvido pelo discurso do cotidiano, de maneira tal, que
percebemos ser necessário fazer a operação teórico-epistemológica e inverter as
lógicas, para que possamos fazer não a escola refletir a sociedade, mas a escola ser
colocada como um grande espelho, cuja moldura não mais seja a ciência, mas uma
moldura feita de muitas histórias de lutas e conquistas individuais e coletivas de
professores que têm produzido a escola a cada dia no cotidiano, apesar e a despeito
das políticas públicas que, muitas vezes, não refletem nem de longe os desejos e
necessidades dos professores e alunos das escolas públicas brasileiras.
Como nenhuma sociedade pode viver sem espelhos, como também nenhuma
sociedade pode viver sem educação, nosso esforço precisa ser no sentido de
emoldurar o espelho das escolas com as narrativas dos professores que têm pagado
o preço para que a escola pública resista às diversas investidas de desqualificação
dos trabalhos desenvolvidos pelos professores. Nessa perspectiva, apresentamos
algumas narrativas que mostram como as professoras se esforçam para mostrar a
beleza que brota do chão das escolas, com práticas simples e singulares que fazem
a educação no cotidiano.
A narrativa da professora Esdra revela essa simplicidade-singularidade das práticas
que buscam extrapolar a dimensão do “ensino/transmissão” e vão além,
preocupando-se com a educação dos seus alunos e compreendendo que essa
tarefa tem início em casa, continua na escola e nunca tem fim. A professora mostra
também como os diversos temas sociais, que fazem parte do mundo vivido
(HABERMAS, 1989), não escapam à tematização da escola, trazendo a
necessidade que as escolas têm de serem mais permeáveis, com temas quentes e
presentes na sociedade, como a violência, as drogas, a corrupção, a injustiça social,
etc. Essa narrativa mostra a distinção característica do trabalho nessa região, fato
muitas vezes pouco compreendido por algumas professoras que, a partir de um
aluno idealizado, de uma família idealizada e de uma sociedade idealizada não
conseguem perceber que as condições concretas dos alunos são matéria-prima
para sua atuação pedagógica e não o limite. Ou se aceita essa condição, vivendo-a
em sua intensidade máxima,57 ou se assume uma postura de transferência de
responsabilidades, deixando de lado a busca por uma maior compreensão e
interlocução com a condição dada.
Na nossa prática, a gente não está só preocupada com a questão de ensinar, mas também educar e cuidar, que é muito discutido também. A gente se preocupa com o bem-estar da criança, com a saúde e isso tudo ajuda bastante. A gente acaba se envolvendo com a comunidade de modo geral, com as famílias que estão aqui pedindo nossa ajuda, às vezes alguma dificuldade que a família encontra e vem pedir nossa ajuda, tentamos passar os valores, a questão da higiene, eu quero ele melhor como ser humano. Os primeiros princípios da dignidade, a questão de amar o próximo, amar a natureza, a questão de que o direito de um acaba quando começa o do outro. As comunidades carentes estão muito desprovidas disso, dessas questões sociais, da união com os pais, da importância de estimular o filho a ler, explicar para eles de forma simples como que a criança aprende, porque elas aprendem também com nossos gestos. As crianças são muito mais espertas do que a gente imagina, elas nos percebem pelas nossas atitudes (Esdra, professora). A sensibilidade da professora Esdra é revelada na sua narrativa. O fato de
reconhecer a percepção que os alunos têm de sua prática aumenta sua
responsabilidade com sua forma de ser e estar professora. Esdra demonstra
compreender que os alunos sabem o tamanho de seu compromisso com eles. Suas
atitudes são a medida de uma prática que se realiza e se concretiza no cotidiano.
57 Muitas são as características de uma postura pós-crítica diante dos desafios da vida, mas essa predisposição para o enfrentamento da vida é uma das que mais se aproximam das abordagens do cotidiano. Não há soluções mágicas, não há salvação, não há promessas de uma vida feliz, o que existe é uma horizontalidade que remete à vivência e à experiência, ou seja, em vez de sofrer a crise, vive-se a crise, para poder aprender com ela.
5. 4. 1 Uma história para ser contada, Cristina:58 uma professora com os dois
pés em São Pedro
Esta é a história de uma mulher e é, também, a história de um povo. Uma mulher de pequeno porte e de grande força; um povo pequeno e de grande luta. Só até aqui conseguimos falar, separadamente, da mulher e do povo. Porque suas historias se fundem e se confundem, no dia-a-dia do bairro de São Pedro. (ANDREATTA, 1987).
Cristina é uma professora que demonstra um envolvimento com a docência que
extrapola os limites da nossa compreensão. Seu esforço cotidiano revela a ligação
que ela estabelece entre a prática pedagógica e o compromisso político. Sua história
se confunde com a história do desenvolvimento do atendimento educacional na
região de São Pedro, pois ela foi uma das primeiras professoras a trabalhar nessa
região, atendendo a crianças na faixa etária de zero seis anos. Consideramos
importante registrar um pouco mais da sua história, pois mostra a ligação da prática
pedagógica com o movimento mais amplo da produção de um projeto de sociedade.
Eis a narrativa:
Sim, trabalhei tendo o Curso de Magistério. Na época tinha uma prova escrita, e ele me deu a oportunidade de trocar de função de auxiliar de serviços gerais para professora. Era um espaço que tinha dois salões. Era um tumulto de crianças pela quantidade de crianças, eram misturados entre três, quatro, cinco e seis anos de idade, todos nesse mesmo salão. Na época, eu tinha 60 alunos de quatro, cinco e seis anos. Então, nesse espaço, foram matriculadas as crianças, e essas crianças ficavam aqui o dia inteiro, era horário integral para todos, não tinha meio expediente. O espaço era inadequado para atender à comunidade de São Pedro, então foi organizada a construção desse CMEI (CRISTINA, professora).
Já fizemos referência à trajetória que levou Cristina a escolher a profissão de
professora. Na continuação de sua narrativa, identificamos elementos que
aproximam sua experiência dos movimentos presentes no cotidiano que
estabelecem ligações entre as dimensões micro e macro da sociedade. Como nos
referimos, o professor, ao exercer sua prática, não o faz desvinculado dos contextos
sociopolíticos mais amplos. Sendo assim, por mais local que seja a atuação do
professor, conecta-se aos outros movimentos presentes na sociedade. A seguir,
apresentamos sua narrativa: 58 A escolha da narrativa da professora Cristina se deu pelo fato de ela ser moradora de São Pedro e sua vida se misturar com a história das lutas sociais dos moradores. Além disso, a professora Cristina é mãe. Seus filhos estudaram nas escolas de São Pedro. De alguma forma, sua narrativa sintetiza uma história que ser repete nas histórias de muitos alunos que frequentam os CMEIs da região de São Pedro.
Sobre fatos e acontecimentos que marcaram e influenciaram sua trajetória na
profissão de professora
Minha mãe é analfabeta. Nunca teve a oportunidade de aprender e, quando a gente
estava na escola, ela dizia sempre para nós: “O estudo é que vai fazer você, porque
hoje eu não conquistei o desejo de ser alguém na vida”. E foi buscando o estudo
que eu optei pelo magistério, porque eu achava legal ensinar pessoas. Então, foi
minha mãe o instrumento maior na minha vida, na minha formação, não para fazer
magistério e ser professora, porque, quando eu fui ser professora, eu fui por opção,
porque, antigamente, eles ofereciam mais esses cursos profissionalizantes,
magistério, contabilidade e minha preferência ficou em magistério. Eu acho que era
a maneira de passar o conhecimento dentro daquele Curso de Magistério o que me
trazia muito prazer, de como você ia fazer aqueles trabalhos com as crianças, todo
o conteúdo, a prática e a teoria me fizeram aguçar mais ainda essa vontade de ser
professora, porque eu era uma pessoa que vivia em um bairro que quase não tinha
moradores. Tinha umas dez famílias apenas e eu achava que era legal a teoria e a
prática. A prática que os professores mostravam para dar aula, eu achava legal,
porque eu vivia num mundo muito sem livros; no magistério eu nunca tive um livro,
eu nunca tive condições de comprar, eu estudei o magistério todo pegando
emprestado com os outros e lendo corrido e indo à aula, porque tinha vontade. Os
livros, as imagens, aquilo tudo me chamava para querer saber mais.
Formação: continuidades e fluxos
Eu acho que todos nós, a vida inteira, vamos ser aprendizes e, mesmo eu
terminando o curso, hoje eu tenho uma graduação, cada vez que você participa
desses momentos, você aprende mais, te dá visão de como você atua hoje numa
sociedade, principalmente de famílias tão desestruturadas. O conhecimento é o
caminho para você dar suporte ao seu aluno para que ele valorize a si próprio, como
ser humano, saiba respeitar a si próprio, porque, se você aprender como lidar com
situações em que vivemos hoje, que são tão difíceis de solucionar, as formações
vêm para ampliar seus conhecimentos, elas vêm para facilitar o seu trabalho. Por
exemplo, eu acho que nós, em qualquer profissão, você precisa estar sempre
andando para frente, você não pode parar, porque as coisas não param, a
sociedade não para, a tecnologia vêm, as coisas vêm e vêm com as mudanças,
cada vez mais e nós precisamos, principalmente a classe de professores,
independente da classe social, independente de fator econômico, aluno é aluno e
ele tem toda a capacidade e nós somos os condutores desses conhecimentos.
Precisamos dar a eles essas possibilidades da realização de seus desejos, porque a
valorização é uma coisa muito importante e são nessas capacitações, nesses
grupos de estudos que você interage com o outro. Assim como o outro, você é
sempre aprendiz e tem que estar sempre aprendendo, você não pode parar, porque,
a cada dia, são crianças, são famílias e sociedades, tudo vai modificando.
Emancipação e cidadania: uma história para recordar e se multiplicar
Bom, vou falar do CMEI Padre Giovane Bartesage, que é o espaço que eu tenho
mais vivência no dia a dia. Nós somos uma equipe na construção e formação de
cidadãos. Nós trabalhamos, eu acho que o Padre Giovane sempre busca valorizar a
criança e dizer a ela que ela é importante e que tem valores. A formação cidadã é
instruir a criança, porque, mesmo que ela viva com dificuldade familiar, as situações
de família aqui, a gente se preocupa com eles, como cidadãos, a nossa
preocupação com a formação dessa criança é para que ela tenha uma visão dentro
da escola, e como ela vai ser lá fora, porque a sociedade espera por ela, e você tem
que mostrar a ele de uma forma prazerosa.
Se você estiver na escola porque você precisa de um salário [...] você tem que lutar
pelos seus direitos, porque a desvalorização da classe do magistério hoje é uma
coisa, né? A educação vem crescendo muito, em relação a ter uma valorização das
crianças, das famílias; hoje nós trabalhamos dentro de um contexto muito amplo em
relação ao avanço, porque as pessoas também precisam estar caminhando junto e
a gente tenta fazer isso, caminhar junto, com um objetivo comum: a formação do
cidadão, dessas crianças que estão inseridas aqui, para que elas sejam realmente
cidadãs, quais os direitos e deveres delas. Elas têm muitos direitos e, se tiverem a
oportunidade de saber os seus direitos, vão saber cumprir os seus deveres e, se
você não der esse suporte, você não pode ser educador com as vendas nos olhos,
você tem que ser educador para educar, e o que é educar? É mostrar a criança, é
ensiná-la a viver dentro da realidade, é dizer que ela é importante e que tudo que se
passa, se passa com um objetivo, para a criança e para nós. Um exemplo: um aluno
que, na época em que ele era daqui, há muitos anos atrás, todo mundo dizia que ele
ia ser um marginal, pela estrutura familiar, e hoje ele está estudando na UFES.
Minha filha, que dei tanto suporte, de cursinhos e tal, não conseguiu passar no
vestibular e ele conseguiu, porque ele foi lá na minha casa me dizer, depois de
tantos anos que eu não via esse aluno e ele foi me dizer: “tia, eu passei na UFES,
para Educação Física”. Então, alguém conduziu essa criança que tinha tantos
rótulos de coisas ruins e a condução começa lá, de zero a dois anos, no ventre da
mãe, você pode levar essa criança a realizar o desejo dela e hoje eu fiquei muito
feliz. Um dia, à noite eu cheguei em casa e ele me chamou. Na hora eu tomei um
susto, mas ele veio me dar a notícia que tinha passado na UFES, para Educação
Física, e muitos que tem tantas oportunidades e dinheiro, não conseguem, é por
isso que temos que valorizar essas crianças, independente das situações elas vão
ser sempre crianças, sempre alunos, e sempre cidadãos. Você só forma cidadão
com respeito, com carinho e compreensão, dando possibilidades, para enfrentar
suas dificuldades e diga sempre que ela é capaz, porque ela pode tudo, basta
querer, porque eu conquistei e eu tive vitórias e vivi situações dessas, na Grande
São Pedro. Eu sou uma vitoriosa, mas tive sempre alguém para me instruir, para me
ajudar, principalmente a minha família, apesar de todas as dificuldades.
A narrativa da professora Cristina poderia ser uma experiência a formar a moldura
dos espelhos das escolas. Os elementos que a compõem são bastante expressivos
e sinalizam possibilidades de se pensar em um projeto de docência que contemple
as múltiplas dimensões da formação. Primeiramente, a dimensão pessoal, aspecto
fortemente evidenciado. Ao ler sua narrativa, em alguns trechos, evidenciou-se que,
de alguma forma, a lembrança de seu aluno, hoje universitário, é um encontro com
parte de sua própria história, pois ela, também, tinha sofrido dificuldades para ser
hoje a “professora Cristina”. A segunda dimensão importantíssima é o forte conteúdo
social e político, expresso nas referências que faz às condições sociais e
econômicas das crianças da região de São Pedro. Esse fato leva Cristina a afirmar
que, para além de um compromisso didático-pedagógico com a profissão, os
professores têm que assumir um comprometimento social e político, abraçar a
docência como prática político-social. Finalmente, a narrativa expressa um vigor e
uma crença nas possibilidades, mesmo que as condições sociais não se apresentem
favoráveis. Contra uma perspectiva determinista, ela imprime movimentos que
buscam, nas fendas e brechas do cotidiano, forjar uma outra realidade a partir da
realidade dada.
5.5 POSSIBILIDADES DE TRADUÇÃO EM TORNO DE UM GRUPO DE
DISCUSSÃO COM AS PROFESSORAS
A tradução tem como pressuposto central a possibilidade de produzir inteligibilidade
heterológica entre os diversos saberes e fazeres, ou seja, está em jogo a condição
de produzir um conhecimento por reconhecimentos. Nesse sentido, fez-se
necessário organizar um novo encontro com as professoras em torno das narrativas.
O objetivo desse encontro com as professoras foi para apresentar os dados e poder
dialogar com elas, para que, assim, pudéssemos, conjuntamente, produzir
novas/outras percepções sobre as narrativas.
Fizemos contato com os cinco centros municipais de educação infantil e falamos da
necessidade que tínhamos de realizar um novo encontro com as professoras para
efetuar o trabalho de tradução dos dados da pesquisa e poder ampliar nossa
compreensão das narrativas. Nessa etapa, fizemos questão de ampliar o círculo de
abrangência. Sendo assim, entregamos uma carta convite para todos os professores
dos cinco CMEIs, entretanto encontramos dificuldade para conseguir a adesão das
professoras ao nosso encontro, pois, como já destacamos por meio das narrativas, o
cotidiano é realidade bastante dinâmica e, muitas vezes, imprime um ritmo veloz
sobrando poucos espaços-tempos para as atividades coletivas, ou seja, para que
as professoras reservem um espaço-tempo para falar e se permitir o exercício da
escuta. Foi preciso um trabalho de articulação, pois muitas professoras, literalmente,
deixam a escola correndo para dar conta de outros compromissos, seja em outros
trabalhos, seja em compromissos com a família ou mesmo compromissos sociais.
Outro aspecto a destacar a respeito da organização desse grupo de discussão em
torno das narrativas é o fato de as professoras, em sua grande maioria, já não mais
estarem exercendo sua cadeira na mesma escola.59 Nos cinco centros municipais de
educação infantil, observamos uma rotatividade muito grande de professores. Isso
por si só dificulta a possibilidade de a escola se constituir como coletivo articulado
em torno de um projeto coletivo. Tivemos que buscar referência das professoras que
tinham trabalhado no ano anterior, para que, assim, pudéssemos fazer com que a
carta-convite chegasse às suas mãos.
No dia três de setembro de 2008, preparamos o encontro para receber as
professoras. Tínhamos a expectativa de receber pelo menos as 32 professoras
envolvidas na pesquisa, mas nosso otimismo não se concretizou, pois apenas cinco
professoras e um membro da comunidade compareceram. Mesmo assim, não nos
furtamos ao trabalho de tradução. A dinâmica que organizamos para que
pudéssemos efetuar o trabalho foi a seguinte: primeiramente, contamos um pouco
da história da pesquisa; logo a seguir, elaboramos uma apresentação contendo os
objetivos da pesquisa; na sequência, apresentamos as narrativas que foram colhidas
nos 11 meses em que estivemos imerso nos cotidianos dos cinco CMEIs, ouvindo as
professoras e observando os movimentos e os fluxos no cotidiano. A ideia era
apresentar os dados e, concomitantemente, dialogar com as professoras sobre as
possibilidades de interpretação das narrativas apresentadas. Como o trabalho de
tradução não se resume à aplicação de um método-técnica, mas remete a uma
postura diante da realidade, permitimos, nesse encontro, uma abertura à novidade, à
imprevisibilidade e às diferentes interpretações ou mesmo diferentes
posicionamentos em torno do trabalho que estávamos apresentando.
Quando iniciamos o trabalho, logo pudemos perceber que as professoras encontram
uma identificação com as formas singulares de narrar-ser, ou seja, quando
apresentamos as narrativas, foi como se as professoras estivessem diante de suas
próprias narrativas e de suas próprias histórias, fato esse que nos remeteu a pensar
que, no cotidiano, há fluxos, há processos de singularização, há processos de
pluralização e de diferenciação, mas também há processos de identificação,
processos de coletivização em torno dos quais se agregam e se juntam os
59 Essa rotatividade de professores nas escolas é também uma marca característica do sistema educacional brasileiro. A cada ano, temos quase que uma “nova escola” sendo constituída, o que dificulta a articulação de um projeto coletivo e uma continuidade nas ações.
professores. Isso é muito característico, quando elas se veem retratadas na história
de uma das colegas.
A narrativa do cotidiano se apresenta como um amplo campo de produção de
reconhecimentos, sobretudo por meio de processos de identificação no discurso do
outro, ou seja, as professoras foram percebendo que a narrativa da colega
professora se liga à sua própria narrativa. Como já nos referimos, o texto narrativo é
um texto polifônico60 em que os diversos narradores, no caso específico as
professoras, se encontram e também se expressam no texto do outro. Cada
professor, individualmente, se apropria e interage com os diversos outros
narradores, de maneira que não há uma narrativa em si destituída do contexto
narrativo, ou seja, ninguém narra do alto, de longe ou a partir de uma consciência
autônoma singular centrada. Sempre narramos no plural, sempre narramos a partir e
com as diversas e múltiplas narrativas nas quais estamos imbricados e envolvidos.
Ao apresentarmos as narrativas, as manifestações das professoras revelaram esses
enredamentos presentes nos textos e histórias contadas por quem vive no cotidiano,
por meio de manifestações simples de empatia, expressas em sorrisos, em
cutucadas de ombros ou mesmos em comentários do tipo: é assim mesmo que
acontece! Isso também já aconteceu comigo.
Esse momento mostrou-se extremamente fecundo, permitindo-nos, mais uma vez,
compreender que as formas singulares de narrar-se expressam movimentos
coletivos em torno de projetos de produzir e constituir (ser) professora. Chamou-nos
a atenção, também, a forma como cada narrativa exerce uma influência que atua
como um catalisador, em torno do qual as demais narrativas acabam sendo
atraídas, ou seja, uma narrativa que encontra uma círculo de identificação mais
amplo, com o qual as professoras se identificam, “empatizam” e acabam detonando
60 “A noção de polifonia desdobra-se sobre a idéia de que o falante nunca acha a palavra despovoada das vozes dos outros, pois nunca será encontrada de forma neutra, sem o ponto de vista alheio intrincando sua existência. O próprio pensamento encontra a palavra habitada, uma vez que uma consciência pode ser decomposta em várias vozes [...]. E ao caracterizar a polifonia, Bakhtin deixa claro corresponde à coexistência de falas equivalentes de sujeitos diferentes em um mesmo espaço discursivo. vozes num mesmo espaço discursivo, podemos caracterizar a narrativa como polifônica sob dois aspectos. No primeiro, o dialogismo é inerente a qualquer ato lingüístico, pois as palavras não são neutras na língua e estão repletas das posições dos outros, ou melhor, a minha narrativa contém de certa maneira, por vezes velada, a voz do outro” (CONTE, 2005, p. 79).
processos de identificação. Sendo assim, é fácil entender por que, algumas vezes, a
narrativa da escola nos parece, à primeira vista, uma metanarrativa, ou uma
narrativa única.
Mas, efetuando o zoom, a aproximação, o cotejamento com essas narrativas,
percebe-se que, exatamente nessa aparente uniformidade do texto ou das formas
de compreensão do cotidiano expresso nas narrativas das professoras é que reside
a singularidade da produção da experiência de se constituir professora. Então,
nesse trabalho de aproximação, pudemos, como indicativo, destacar dois pontos
que nos parecem importantes para a ampliação de nossa compreensão dos
processos de formação continuada com as professoras.
O primeiro deles, e talvez o mais relevante, é expresso na narrativa da pedagoga
Kelen que revela, em sua fala, as sutis mas eficientes formas de exercício de poder
presentes nas relações estabelecidas no cotidiano:
As formações que a gente tem, elas são mais, como você falou, informação do que formações, até porque o professor chega, senta, estou me colocando no lugar do professor, como professora também, porque a gente ouve o outro falar, mesmo quando é formação aqui do CMEI, que a gente não chama ninguém, que a gente faz, acaba sendo o CTA que faz a formação e, mesmo quando o professor dá sugestões, a gente pede: “Vamos colocar sugestões”. Mesmo colocando sugestão, a gente, do CTA, que seleciona as sugestões, somos nós, do CTA, vamos colocar assim, ou a SEME. Mas, quando é na escola, a gente seleciona as sugestões, a gente quem pontua o que cada um precisa saber e, na verdade, eu acho que eu ia fazer o inverso. Eu tenho refletido muito sobre isso, de partir do grupo? O que é que é importante para o grupo? O que que o grupo quer para fazer a formação? Não sei como, mas fazer esse movimento ao contrário, pois que acaba sendo essa coisa hierarquizada como você colocou. É, a gente sempre tem preocupação da parte teórica para a parte prática. Na verdade, mesmo fazendo a parte prática do professor falando, a gente sempre direciona a que vai falar da prática, então é uma coisa muito, muito direcionada (KELEN, pedagoga).
Revela-se que, mesmo em processos em que se busca imprimir outras maneiras de
organização da formação continuada, permanecem as relações de poder,
expressas na autoridade constitutiva, no caso específico em questão, a autoridade
de um poder próprio instituído, qual seja, o poder da Secretaria Municipal de
Educação e, mesmo quando delegada à escola, a autoridade do CTA representa, na
maioria da vezes, manifestação do pensamento oficial. Mas, ainda que essa
hierarquização expressa nas relações de poder esteja presente o tempo todo,
coexistem processos de resistência que buscam imprimir outros fluxos, outros
movimentos para se pensar em investimentos em processos de formação
continuada.
Na sequência da narrativa, o grupo busca pelos fios da memória para destacar uma
experiência que teve em torno de uma proposta de formação continuada
desenvolvida pelas professoras dinamizadoras.61 Essa experiência, segundo a
narrativa das professoras, apresentou os elementos que podem aproximar-se de um
movimento instituinte, pois se diferencia da estrutura modelar que, muitas vezes, é
imposta ou simplesmente reproduzida pelas escolas; como se pode observar na
discussão a seguir.
Pesquisador Teve alguma experiência de formação de que participaram que tenham tentando trabalhar de uma forma diferenciada? Pedagoga Vanuza Eu acredito que seja muito positiva a formação feita pelas dinamizadoras de Educação Física. Elas quem fizeram a formação ali. Eu achei que, como isso foi fundamental, faltava aquilo. Elas fizeram a formação, qual o objetivo? Elas só queriam dizer por que estou aqui, qual o nosso real trabalho? Eu achei a formação fantástica. Pesquisador Falem um pouco como elas fizeram? Professora Luciana Elas, dentro da área específica de Educação Física, elas relataram mais ou menos como elas trabalhavam no cotidiano com os nossos alunos na educação infantil, porque, como eu disse, no dia da formação foi um ganho muito grande que teve na educação infantil de vir o professor de Educação Física, especialista na área, um professor de Artes, embora nossos professores regentes desenvolvam muita coisa da arte, a gente faz muitas coisas na Educação Física, dentro da sala, do movimento do corpo de expressão corporal e tudo mais, porém eles vão mais a fundo por causa do conhecimento científico, mesmo que eles tiveram na faculdade, na especialização que cada um tem, então, assim foi muito gratificante a forma como eles passaram isso para gente, até porque a formação foi para isso. A dinâmica como eles encaminharam foi fantástica, entendeu? Então foi assim, foi muito gratificante e muito legal. Pesquisador O que mais pode ser destacado dessa experiência? Pedagoga Kelen No final, cada um teve o que é Educação Física na educação infantil para você está até no registro, e cada professor colocou e dali elas tiraram para o próprio conhecimento delas e assim formação delas o que o professor pensa da educação física. Nessa formação surgiram diversas questões, até divergências, porque tinha professores, ainda que achassem assim:’Para que o profissional de Educação Física se eu trabalho nisso?’ Então, eu achei aquela formação assim, impecável. Poxa eu amei. Pesquisador Mas por que vocês chegaram a essa conclusão? Pedagoga Kelen Na verdade, foi o seguinte, a Secretaria Municipal de Educação tinha algumas formações no calendário, algumas previstas que o CMEI teria de fazer e outra que a SEME viria, só que agora, assim, a SEME não vem mais dar formação, a escola que tem que dar todas as
61 As professoras dinamizadoras são profissionais de Educação Física e Artes que atendem aos CMEIs dando aulas nas suas respectivas áreas de conhecimentos. Como o trabalho desse profissional é recente dentro dos CMEIs, há muitas controvérsias sobre o que, de fato, eles devem fazer, ou seja, estão o tempo todo tentando consolidar um espaço de atuação que não se resuma a ocupar o tempo para que as professoras realizem os planejamentos.
formações62 e, assim, então, a gente não tinha assim o que colocar, não havia nada previsto, ai a gente pensou: “É, existe tanta dúvida em relação ao professor dinamizador, tantos questionamentos”. Então, na hora, elas se prontificaram, na hora elas fizeram, então elas tinham feito uma formação anterior e a professora de artes no dia falou: ‘Eu também quero uma formação de Artes para falar do meu trabalho’. Então, elas falaram a parte teórica, o que estão fazendo em cada turma, projetos, e o objetivo era: qual o objetivo da Educação Física na educação infantil. Pode-se depreender, dessa experiência narrada pelas professoras, o segundo
ponto que nos ajuda na ampliação da compreensão dos processos de formação
continuada com as professoras. Como já revelado, a Secretaria de Educação
mantém uma política de formação na qual estão previstas em calendário as
atividades a serem desenvolvidas pelos CMEIs, entretanto, como já destacamos, no
cotidiano, os programas, projetos “pacotes” são consumidos e usados das formas
mais diferenciadas possíveis, ou seja, por mais que se nutra uma expectativa em
torno do que as escolas e os próprios professores devem fazer, é na dinâmica do
cotidiano que se efetivam as propostas.
Como o CMEI tinha que organizar toda a dinâmica da formação continuada e os
espaços-tempos não propiciam momentos para se planejar o que fazer desses
encontros, as escolas tiveram que encontrar uma forma de preencher esses
momentos com atividades, muitas delas feitas de maneira improvisada. Em uma
conversa informal, não gravada, com uma pedagoga e uma diretora de CMEI,
pudemos perceber que o processo de autonomização dos CMEIs esconde
contradições muitas vezes não evidenciadas. Uma delas é em torno do que a o CTA
desse referido CMEI nomeia de “excesso de autonomia”. “Agora a escola tem que
fazer tudo. Parece até que estão empurrando para escola todas as decisões!”
(DIRETORA do CMEI)
Nesse jogo, a Secretaria tem, cada vez mais, assumido o papel de fiscalizadora,
controladora dos processos. No que diz respeito à formação continuada, essa
observação também procede, pois, no ano de 2008, as formações previstas em
calendário passaram a ser geridas totalmente pelas escolas, porém cada escola
tinha que submeter uma proposta de formação com as datas, as atividades
descritas, inclusive indicando os locais onde aconteceriam e a carga horária das
atividades de formação.
62 Essa mudança foi introduzida no ano de 2008.
5.5.1 Âmbitos da tradução: possibilidades
Santos (2006) destaca que o trabalho de tradução se dá em dois âmbitos distintos,
porém complementares: no âmbito das práticas sociais e no âmbito dos saberes ou
das produções socioculturais. No âmbito das práticas, ainda que nossa tese tenha
interfaces com outras práticas sociais, não nos movemos nesse terreno, tentando
estabelecer relações entre elementos presentes nas narrativas das professoras e
outras práticas sociais, mesmo que esses pontos de convergência-intersecção se
façam presentes, por exemplo, com o movimento de emancipação da mulher que
tem uma ampla e irrestrita vinculação com a constituição da profissão docente, como
já fizemos referência na parte introdutória de nosso trabalho.
Como não fizemos a opção pelo trabalho de tradução entre práticas, restringimo-nos
a desenvolver o trabalho de tradução mais na perspectiva da possibilidade de
construção de uma comunidade interpretativa (SANTOS, 2006) e de uma
comunidade compartilhada (CARVALHO, 2006). Nesse sentido, as narrativas nos
serviram para tentar compreender como os professores percebem os processos de
formação continuada no cotidiano das escolas, os significados que esses processos
têm para os professores e quais são as táticas utilizadas por eles para se
constituírem como coletivo instituído-instituinte em processos de formação no
cotidiano dos centros municipais de educação infantil. É importante destacar que,
tendo esses objetivos em mente, fez-se necessário ampliar os aportes teóricos para
além unicamente da hermenêutica diatópica, ou seja, em alguns pontos específicos
do trabalho, buscamos desenvolver a compreensão, tangenciado pelos aportes da
hermenêutica do sujeito da experiência e da diferença de Larossa (2002).
Visualizamos, assim, dois caminhos nos quais nos movemos para tradução-
interpretação das narrativas. Um primeiro na perspectiva de compreensão das
narrativas, a partir de um consenso em torno do qual se agregam as experiências
convergentes, e em torno do qual possam se perspectivar um projeto de formação
continuada emancipatório e assim se constituir em uma proposição mais ampla na
esfera de um porvir de formação continuada com os professores nos cotidianos das
escolas.
Na outra direção, a possibilidade de se pensar a formação continuada descolada de
um projeto ou programa em torno de um consenso mínimo que proporcionasse a
modelação das atividades de formação. Nessa perspectiva, procuramos identificar
nas narrativas movimentos que apresentam essa vocação para a singularidade, para
a pluralidade e para a diferença. Destacamos que essa segunda perspectiva não se
presta a nenhum tipo de captura, a nenhum tipo de convergência, a nenhum tipo de
consenso, a nenhum tipo de aprisionamento, o que se traduz na impossibilidade de
anúncio de um projeto ou programa. Nas narrativas das professoras, esse
movimento se expressa nas maneiras singulares ou particulares com que cada
professor ou cada coletivo escolar busca vivenciar os processos de formação, sendo
impossível a realização de um projeto modelar.
A partir desse ponto, apresentamos as narrativas dentro dessas duas perspectivas:
uma já referida, que sinaliza para a perspectiva de confluência, convergência para
uma comunidade interpretativa ou comunidade compartilhada em torno de um
projeto formativo emancipatório; e outra associada à perspectiva da diferenciação,
da pluralização das propostas de formação continuada.
5.5.1.1 Narrativas: convergências para se pensar em um projeto de formação com
os professores.
Como nos referimos acima, a intenção é apresentar algumas das narrativas que
convergem para a constituição de um projeto de formação continuada, ou seja,
extraímos das narrativas os elementos que, no nosso entendimento, os educadores
acreditam que sejam fundamentais para empreender o processo de formação com
os professores no cotidiano. Não temos a pretensão de asseverar um projeto de
formação, mas apresentar as formas como os professores se revelam sobre esses
espaços-tempos presentes no cotidiano, assim nos limitaremos a extrair das
narrativas pontos que se aproximam do que poderia se constituir em possibilidade
de formação de uma comunidade compartilhada de conhecimento e/ou de formação
no coletivo dos centros municipais de educação
Sobre troca de conhecimentos em um coletivo organizado
A gente tem um grupo de estudo. Nesse grupo de estudos, a gente debate textos, a gente discute informações, a gente participa do fórum de conversação, e os textos que a gente recebe lá, a gente traz para discutir no grupo de estudos na escola (DANIELA, professora). Bom, eu acho que a formação aqui é bem legal, porque junta os dois grupos, então você acaba conhecendo as pessoas, trocando idéias [...] e há compartilhamento entre o grupo todo [...] e essa troca sempre esta muito acessível. A gente está sempre colado, quem quer se informar se forma. O material também é bem rico, é muito organizado, tem uma pastinha pra gente, do grupo de estudos (ESDRA, professora). Bom, aqui, na escola, é meia hora todos os dias, que, às vezes, a gente usa textos, ou a gente vê vídeos ou discute as coisas que acontecem na sala de aula, que nem agora que a gente está estudando o processo de alfabetização, então a gente se orienta, alguém conta uma coisa outro conta outra (KÁTIA, professora).
Podemos depreender dessas narrativas que a possibilidade de constituição de um
projeto-programa de formação, a partir do que está colocado no cotidiano, deve ter
como elementos centrais: a troca e a socialização de experiências; a organização do
coletivo dos professores em espaço-tempo garantido para tal; um grupo de estudo
com temáticas de interesse dos professores com suporte em textos, vídeos e em
outros materiais instrucionais;.
Como palestras e intercambiamento de experiências por meio de visitas em
torno de temáticas específicas
Tem uma vez por mês também, como a última que a gente teve. Nós fomos lá ao morro da Fonte Grande, nós tivemos aulas sobre educação ambiental, então está sempre direcionado para alguma coisa. Na outra vez, foi daquele professor que falou sobre questões afro, foi uma palestra, as formações estão sendo boas aqui na escola, só que estão direcionando mesmo, estão trazendo gente para dar as palestras, isso enriquece mesmo, quando você vê que a pessoa tem experiência e traz propostas diferentes (KÁTIA, professora). Aqui, nesse colégio, tem um projeto que nós fizemos uma visita numa cidade do interior e lá nós vimos bem de perto essa questão, e lá tinha crianças, e parentes das crianças que estavam passando por lá e eles contavam o que era que acontecia e tinha um cara fazendo uma palestra que contava coisas bem enriquecedoras do que realmente era e isso está sendo bastante interessante. Esse tipo de experiência ajuda muito na nossa instrução (MARINETE, professora). Eu acho que é fundamental. Eu lembro que uma vez, uns três anos, nós tivemos uma pedagoga aqui que, além de nos incentivar no trabalho, nos momentos de estudos, ela trazia textos, discutia, nos levava a outros CMEIs para conhecer outros ambientes, outros tipos de trabalho. Era legal, era como se fosse um intercâmbio entre os professores (MILENA, professora).
Percebe-se, nessas narrativas, que o fato de as professoras estarem vivenciado a
formação por meio de outros contatos em espaços-tempos fora da escola também
pode contribuir com o processo de formação continuada, ou seja, sair da escola
também pode significar sair dos lugares conceituais cristalizados, ou sair de sob a
tutela da autoridade instituída dentro da escola, fato sobre o qual as professoras
também revelam preocupação, pois ainda quem coordena as atividades de
formação é o pedagogo e o diretor (planejamento, desenvolvimento e avaliação).
Como planejamento da prática pedagógica
Tem aquela hora da formação que a gente senta junto para planejar. É um contato com a pedagoga que eu acho muito importante, eu acho interessante, porque faz a gente ver com outro olhar o seu trabalho. Toda vez que eu participo de alguma formação, eu vejo que é um crescimento para mim (KARINE, professora). Formação é no planejamento, no qual eu e minha colega de trabalho trocamos ideias [...] Tem como importância a organização do trabalho, as angústias que às vezes a gente pensa que só tá acontecendo comigo, então a gente troca as experiências mesmo, para estar crescendo (RAQUEL, professora). Bom, o planejamento, nós temos para esse ano três planejamentos, semanais, onde nós temos um acompanhamento com o pedagogo e nós ficamos livres com o material, com o tema das nossas pesquisas e, quando eu estou com o pedagogo, eu gosto muito de conversar não só o que eu pretendo trabalhar, mas eu procuro conversar sobre algum aluno, algum aluno que não está bem, ou que não está sendo trabalhado e, aí em cima dessa conversa, você acaba também discutindo o que se pode e o que não pode ou deve trabalhar, quais são as possibilidades de trabalho que se pode estar colocando na turma. Eu gosto muito de conversar com o pedagogo ao longo do ano, sobre cada aluno, sobre as dificuldades, em relação à turma. Então, o que se tem a fazer durante o ano são os ajustes, de acordo com a turma, de acordo com os alunos, vê o que eles pedem, quais as dificuldades (ANDRÉIA, professora).
O planejamento é um espaço-tempo também bastante evidenciado pelos
professores. Apesar de não haver uma compreensão desse espaço como espaço
formativo, alguns professores revelam que o fato de parar uma, duas ou três vezes
por semana para organizar o trabalho pedagógico sozinha ou com o colega de
turma, acompanhados da pedagoga, configura-se como um importante momento de
formação.
5.5.1.2 Narrativas: insurgências em torno de processos de singularização,
pluralização e diferenciação da formação continuada com os professores
A singularidade como as professoras se mostram em suas narrativas torna a
tradução um trabalho complexo, o que remete a pensar a formação como fluxos,
como deriva, como devir, ou seja, não abrindo qualquer possibilidade de organizar
um campo teórico-metodológico em torno do qual as formações pudessem ser
desenvolvidas de forma modelar.
Como exemplo desse processo de singularização, diferenciação e pluralização
podemos citar os usos que os diversos CMEIs fizeram do documento norteador da
política de formação continuada (SEME, 2007). Ele tinha, como uma de suas
finalidades, dar organicidade ao programa de formação continuada da rede
municipal, entretanto, como aparece nas narrativas, as escolas fizeram diversos
usos desses espaços-tempos, fato esse que, mais uma vez, evidencia que, na
relação da escola com os sistemas instituídos, não há somente consumo, não há
somente obediência, não há somente subserviência, mas também há usos, desusos
e resistências que muitas vezes se manifestam nas formas criativas e inventivas
com que os professores burlam as propostas instituídas.
A expressão “se vira nos trinta”, ainda que caricata, referindo-se aos 30 minutos
finais de cada turno de trabalho, acabou incorporada ao imaginário das professoras,
constituindo-se em um axioma na rede: “Nós temos que nos virar para dar conta dos
alunos!”. Por correlação, a formação continuada também acabou incorporando esse
“se virar nos trinta”. Ao procurar estruturar a formação continuada nesse espaço-
tempo, no final do turno de trabalho, por mera formalidade (para cumprir a carga
horária), para os professores, significou que a formação era algo que não ocupa a
centralidade do trabalho da escola, sendo feita nas dobras, nos tempos entre, nos
intervalos, enfim uma atividade menos importante realizada a contrapé da atividade
que justifica a escola e os próprios professores, ou seja, as aulas, essas, sim,
imprescindíveis.
Assim, cada CMEI, a seu modo, organizou esse espaço-tempo de forma diferente e,
dentro dessas diferentes formas de organização, também cada professor se
comportou de modo diferente. Sendo assim, alguns CMEIs simplesmente
obedeceram ao que estava proposto no documento, organizando-se naqueles 30
minutos para estudo; outros dividiram esse tempo: um tempo para a formação
continuada das professoras, quando liam textos, discutiam sobre a prática
pedagógica e o desenvolvimento dos projetos coletivos, e o outro tempo para
informações burocrático-admistrativas da escola. Teve CMEI que juntou esses
tempos em um tempo único, no qual organizavam uma atividade de formação nos
finais de semana. Alguns CMEIs, pela impossibilidade de organização e articulação
no coletivo, jamais conseguiram fazer com que esse tempo se realizasse a contento
do que estava sendo proposto, ou seja, com uma proposta modelar, verticalizada,
institucionalizada, os diversos CMEIs, com seus praticantes no cotidiano,
encontraram formas de fazer e diferenciar esse proposição modelar. A seguir,
apresentaremos as narrativas em que as professoras evidenciam esses processos
de diferenciação, singularização e pluralização presentes no cotidiano.
O uso dos diferentes espaços tempo de formação
Existem muitos momentos de formação, existe o corredor, em que a gente conversa entre os professores [...] essa troca de corredores, até mesmo no horário do lanche, no ponto de ônibus, acontece sem se programar, e que eu vejo como uma formação. A formação não é só aquele momento em que se diz, momento de formação (ANDRÉIA, professora). A gente tá começando um trabalho de inclusão, e as trocas de informações, mesmo nos próprios corredores, quando a gente se esbarra, na hora do almoço, a gente senta entre os professores, leva um texto legal, passa para o outro (DANIELA, professora). Os momentos onde há maior troca da experiência, e onde se pode usar da experiência do seu colega, não tem momento específico [...] os momentos mesmo de compartilhar são os momentos onde se está nos corredores com os colegas, quando a gente divide o pátio, sala de frente para sala, a gente mostra as novidades para os colegas, horário de o professor lanchar, são momentos onde o professor fala das angústias, fala dos bons alunos, fala das experiências, de ansiedade, de alunos que ele não está conseguindo avançar, então não existem momentos específicos (MARIA HELENA, professora). E quando eu digo formação continuada, sobre esses cursos que tem nos oferecidos, agora com a musicalização de novo, a gente consegue fazer, porque, no horário, não dá, então eu acho isso importante, essa iniciativa de manter isso. Eu acho que, para a educação infantil, ajuda muito esse desenvolvimento e, fora isso, tem a rádio corredor, às vezes, a gente está no pátio, ou num lanchinho, a gente aproveita aqueles dez minutinhos, então essa parceria trabalhar em par é muito legal, fortalece e engrandece o trabalho muito (RITA, professora).
O corredor e o horário de lanche na sala dos professores são dois espaços que
aparecem em várias narrativas. Especificamente sobre esses espaços-tempos,
como espaços-tempos de formação, nós pudemos empreender uma tentativa de
compreensão sobre os significados que eles assumem na dinâmica do cotidiano.
A sala dos professores é um território de passagem, especialmente na educação
infantil, em que a dinâmica da rotina não permite que os professores fiquem nesse
espaço por mais do que 30 minutos diários, mas ele está sempre habitado, pois os
horários são escalonados, ou seja, não tem um único recreio para todos os alunos.
Segundo Azevedo (2004), são espaços-tempos que permitem vir à tona, à flor da
pele as questões docentes mais íntimas. Assim, aquele problema que se está tendo
com um determinado aluno, um determinado pai-mãe que não participa, uma
determinada atividade que não funcionou, o salário que não está muito bom, enfim,
questões que são colocadas na roda de conversa, possibilitando uma infinidade de
leituras. Na expressão de Azevedo (2004), essas trocas de figurinhas permitem
que cada professora se constitua como um coletivo em formação permanente.
Sobre aprender com o outro
Não sei se você já percebeu, mas eu tenho uma ideia um pouco diferente das pessoas aqui da escola. Eu vejo o conhecimento como um estar ajudando o outro, não sei se é porque eu vivencio mais o ensino fundamental e o ensino médio, eu trabalho aqui já vendo outras realidades em outras circunstâncias. Então, em relação ao aprender e ao conhecer, a gente vê o quão importante e quão significativo para cada um. Está explicito que ninguém aprende sozinho, a gente aprende com o outro, e eu acho que, como a gente aprende com o outro, então a gente tem que estar trazendo atividades, para um estar ajudando o outro [...] às vezes, você estar la pelejando com um aluno, o outro vem, em dois minutinhos, e consegue fazer aquilo que você não conseguiu fazer em um dia. É tão importante essa relação de um com o outro que, às vezes, um colega consegue o que você não conseguiu (KÁTIA, professora).
Mais uma vez destaca-se a perspectiva de formação com o outro em redes
interativo-colaborativas de formação. Ressaltamos a ideia da experiência como uma
dimensão que não tem campos epistemológicos nem societais definidos, ou seja,
não há qualquer possibilidade de normatizar ou dizer o que do outro iremos
aprender, de certo que o tempo todo e de diversas maneiras estamos em ambientes
de interação, o que possibilita essas trocas. Outro aspecto a considerar é a
assunção do outro como legítimo outro, ou seja, concebendo-o em suas diferenças e
singularidades.
Cumpre, ainda, ressaltar que a dinamicidade do cotidiano impossibilita o
estabelecimento de um fluxo único, isto é, como o que há são apenas tendências,
não podemos asseverar que haja prevalência de uma perspectiva sobre a outra;
podemos, sim, reafirmar o caráter hibrido do cotidiano, tendo como sua principal
característica essa permanente mudança dos fluxos, de maneira que, por vezes,
encontramos, nas narrativas das professoras, uma tendência para um consenso em
torno de um projeto e, em outros momentos, percebemos que, de fato, não há como
estabelecer uma proposta modelar, cabendo apenas seguir os fluxos. Em síntese,
nos âmbitos da tradução em suas duas perspectivas já referidas, tanto as narrativas
que sinalizam para a possibilidade de articulação em torno de um projeto de
formação com os professores no cotidiano como na outra direção, as narrativas que
sinalizam para a impossibilidade de um consenso. Tanto em uma direção como em
outra, o que há são apenas tendências.
CAPÍTULO IV
6 AUSÊNCIA, EMERGÊNCIA E TRADUÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE
FORMAÇÃO CONTINUADA COM OS PROFESSORES
A tese central que defendemos neste trabalho é que não faz mais sentido falar em
formação dos professores, atribuindo-lhes o lugar de receptores de conhecimentos,
por meio de pacotes de soluções teóricas para os desafios que enfrentam no
cotidiano das escolas. Os professores desenvolvem uma tarefa complexa. Sua
atividade se realiza na tensão entre a “bigorna” das demandas da sociedade
moderna e o “martelo” das epistemologias de apoio, o que exige que ele vá ao
extremo, levando-o a produzir um saber-fazer que não é apenas repetição das
teorias e também não é um saber destituído de teorias (ativismo), enfim, um saber-
fazer mais afeto às questões do cotidiano, um saber encarnado, produzido na lida
diária. Assim,
Pensar com é produzir uma outra forma de olhar a realidade enxergando-a em sua multidirecionalidade, incorporando ao pensamento as múltiplas possibilidade de conexões, cortes, aproximações, percepções. É subverter o modo disciplinar de olhar o outro e, ao mesmo tempo, enfrentar o desafio de reorganizar nosso conhecimento sobre o outro e sobre nós mesmos (PEREZ, 2003, p. 97-98).
Nas narrativas, podemos perceber, por meio das histórias contadas pelas
professoras, que a formação continuada, quando articulada a um coletivo instituinte,
responde melhor às necessidades docentes, pois essas redes cotidianas vão se
tecendo em torno de temas surgidos com a prática pedagógica, o que pressupõe um
desenho formativo transversal e uma vocação para a diferença, para a
singularização, para a heterogeneidade, para a pluralização e para a negociação de
sentidos.
A formação com os professores exige o desafio de estabelecer relações de
alteridade, pois coloca especialistas e pesquisadores no mesmo patamar dos
professores. Nesse sentido, não há relações hierárquicas de “um saber” sobre “um
não saber”. Em tal processo, opera-se o que Santos (2006) chama de razoabilidade
heterológica, que remete à compreensão da impossibilidade de se estabelecer uma
metateorização sobre as práticas pedagógicas e sobre os processos de formação
continuada, sendo necessária, portanto, uma complementaridade de saberes e
fazeres, onde as diferentes percepções de uma mesma realidade sejam
consideradas.
O trabalho que nos propusemos na pesquisa foi trazer à tona a narrativa como
discurso, e esse desejo se configurou a partir da escuta sensível e da dialogicidade
entre os diferentes discursos narrativos. A opção pela narrativa, mais do que um
recurso de pesquisa, configurou-se como uma posição política, contrapondo-se às
grandes teorizações cujos enunciados partem sempre de grandes leis gerais para a
compreensão da realidade particular. A perspectiva de trabalhar com o cotidiano
buscou inverter essa lógica em uma tentativa de compreender como as professoras
produzem sua prática apesar das grandes formulações teóricas.
A narrativa, como discurso, insere-se no jogo político de dizer o que precisa ser dito
e o que precisa ser escutado. Manter intactas as falas das professoras, mais de que
estilo linguístico, configurou-se uma tática textual. Sendo assim, acreditamos que as
narrativas, mais do que ser esquadrinhadas, categorizadas e analisadas, devem ser
compreendidas como um texto em um contexto, no qual muito tem sido produzido e
muito há que ser realizado ainda, mas, por uma perspectiva política assumida na
modernidade, não tem recebido o devido reconhecimento.
Assim, nossa pesquisa configurou-se numa busca por aquilo que a Modernidade
pintou com uma cor única, escondendo o colorido que existe nas escolas. Tal
trabalho remete ao que Santos (2006) chama de tradução, que se materializa pela
via da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, constituindo,
nessa tríade, a chamada hermenêutica diatópica63 que, na acepção de Santos
(2006), é mais que um procedimento científico-epistemológico, é uma postura
política, com recurso importante à experiência e à emancipação, pois se propõe a
dilatar o cânone estreito da cientificidade moderna. 63 A esse respeito, Santos (2006) esclarece: “A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topois de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objetivo inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu caráter dia-tópico”.
Segundo Oliveira (2006, p. 81), os três procedimentos metodológicos aqui referidos
se apresentam como um campo bastante fecundo para se pensar em possibilidades
emancipatórias no campo educacional, pois:
Identificar e valorizar outros modos de pensar e de estar no mundo, para além daquilo que a razão metonímica, com suas dicotomias e suas necessidades de ordem, percebe e aceita como existentes, são atitudes fundamentais. Para compreender o que de fato acontece nos processos educacionais que escapa aos modelos pedagógicos e propostas curriculares oficiais, é preciso considerar como formas de saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo válidas, tudo aquilo que a escola tem sido levada a negligenciar em nome da primazia do saber científico e da cultura ocidental, branca e burguesa sobre os/as demais.
A sociologia das ausências se propõe a compreender os modernos processos de
produção de ausências, sobretudo aquelas que produziram múltiplos silenciamentos
e invisibilizações das formas de saber/fazer presentes nas diversas culturas. Nesse
sentido, ressalta Santos (2006, apud OLIVEIRA, 2006, p. 82):
Uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como alternativa não credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças.
No que se refere ao campo das narrativas como procedimento de pesquisa, o
recurso à sociologia das ausências, à sociologia das emergências e ao trabalho de
tradução apresenta-se como alternativa possível à produção de novas
racionalidades O trabalho de tradução supõe uma crítica a razão indolente em suas
quatro facetas, que se propõem hegemônicas na Modernidade. São elas:
A razão impotente, aquela que não se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; a razão arrogante, que não sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade; a razão metonímica, que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima; e a razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe
como uma superação linear, automática e infinita do presente (SANTOS, 2006, p. 95).
A tradução busca uma inteligibilidade possível entre diferentes formas de
compreensão de um mesmo fenômeno. Empreende, por meio da já referida
hermenêutica diatópica, criar interfaces e pontos de contato no interior dos quais
seja possível estabelecer uma produtividade heterológica, com o objetivo de
possibilitar compreensão. Segundo Santos (2006), trabalho complementar ao
trabalho de tradução é o uso de diferentes escalas para se compreender um dado
fenômeno social. A perspectiva multiescalar e a transescalar permitem uma leitura
mais afeta ou razoável dos problemas enfrentados nos diferentes âmbitos da
sociedade. De acordo com Santos (2006, p 104):
Na modernidade ocidental, a escala dominante aparece sob duas formas principais: o universal e o global. O universalismo é a escala das entidades ou realidades que vigoram independentemente de contextos específicos. Tem, por isso, precedência sobre todas as outras realidades que dependem de contextos e que por essa razão são consideradas particulares ou vernáculas. A globalização é a escala que, nos últimos vinte anos, adquiriu uma importância sem precedentes nos mais diversos campos sociais. Trata-se da escala que privilegia as entidades ou realidades que alargam o seu âmbito a todo o globo e que, ao fazê-lo, adquirem a prerrogativa de designar entidades ou realidades rivais como locais [...]. No âmbito desta lógica, a não-existência é produzida sob a forma do particular e do local. As entidades ou realidades definidas como particulares ou locais estão aprisionadas em escalas que as incapacitam de serem alternativas credíveis ao que existe de modo universal ou global.
Contra a perspectiva de uma escala única, Santos (2006) propõe uma combinação
de diferentes escalas, permitindo, assim, aproximações e distanciamentos
necessários para a compreensão dos problemas enfrentados em diferentes
contextos sociais, como propõe também uma inter-relação entre esses diferentes
âmbitos, numa complementaridade heterológica, ou seja:
A idéia central da sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem saber em geral. Toda a ignorância é ignorância de um certo saber e todo o saber é a superação de uma ignorância particular [...]. Deste princípio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de diálogo e de disputa epistemológica entre os diferentes saberes. O que cada saber contribui para esse diálogo é o modo como orienta uma dada prática na superação de uma certa ignorância. O confronto e o diálogo entre os saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias. Neste domínio, a sociologia das
ausências visa substituir a monocultura do saber científico por uma ecologia de saberes (SANTOS, 2006, p. 106).
Nesse contexto, a perspectiva narrativa na pesquisa educacional apresenta-se como
um campo de possibilidades de produção de outros/novos saberes. A narrativa,
como escala para compreensão da realidade, pode possibilitar novas leituras dos
processos socioeducacionais, em particular, nos processos de formação com os
professores, pois traz a força da voz do professor como denominador para operar os
resultados da educação. Tornado objeto factível pela sociologia das ausências e
pela sociologia das emergências, a narrativa inscreve-se no campo das
possibilidades e, sendo assim, é concebida como um recurso e não como um relato.
Nesse sentido, tem o potencial vitalizador das práticas emancipatórias, pois
As narrativas dos sujeitos são a sua representação da realidade e, como tal, estão prenhes de significados e reinterpretações [...]. O fato da pessoa destacar situações, suprimir episódios, reforçar influências, negar etapas, lembrar e esquecer tem muitos significados e estas aparentes contradições podem ser exploradas (CUNHA, 1998, apud DIAS; CICILINI, 2006, p. 2).
Nessa mesma direção, Perez (2001) destaca que o potencial formativo das
narrativas encontra-se, sobretudo, na vitalidade que cada texto narrativo apresenta,
em que cada professor se expõe para o coletivo que se realiza no trabalho docente
(LAROSSA, 1999, apud PEREZ, 2001, p. 87). A narrativa funciona como um
dispositivo detonador de um processo de autorreflexão e correflexão que permite a
reconstrução de percursos pessoais e profissionais.
6.1 A SOFISTICAÇÃO METONÍMICA: NEGAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
Santos (2006) alerta para o fato de que, embutida na ideia de progresso, está
também, subjacente, a ideia de que devemos virar as costas para o passado, para o
antigo. A contemporaneidade assim concebida é uma sucessão automática e um
dispositivo que nos impulsiona para um futuro certo, sempre mais promissor, mais
próspero, mais limpo e feliz. Assim, o progresso é sinônimo de contemporâneo que,
por sua vez, remete à Modernidade científica. É algo que aprendemos a desejar
para nossas vidas pessoais, para nossas carreiras profissionais e para o bem
comum da sociedade. Acreditamos mesmo que seja o final certo, o resumo, a
síntese, o corolário da vida, fora do qual só há atraso, barbárie e estagnação.
Mas, apesar de essa perspectiva da Modernidade apresentar-se como hegemônica,
Santos (2006) problematiza ao referir-se à assimetria escondida nesse jogo. Como
assim? Do mesmo modo que “[...] o olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com
uma enxada não consegue ver nela senão o camponês pré-moderno”(p.100), no
âmbito dos processos educacionais, especificamente no da formação continuada do
professor, o olhar que vê um professor a labutar na docência com um giz branco e
um quadro-negro diante de uma sala cheia de alunos não consegue ver, também,
senão um professor “tradicional”, atrasado e que precisa se reciclar.
Nessa contradição e/ou aparente/reticente miopia, no olhar
moderno/contemporâneo, reside a assimetria. Santos (2006) esclarece que, por trás
dessa operação, se esconde uma hierarquia e arrogância de quem estabelece os
tempos e determina o quê, como e quem pode ser considerado
contemporâneo/moderno. Por esse entendimento, um professor e uma escola que
não cederam aos apelos do progresso, do futuro certo da metatecnologização da
prática pedagógica, estão sempre atrasados, sendo, assim, candidatos a se
reciclarem a se formarem para lidar com o futuro, para lidar com o novo, para
responder às perguntas ainda não formuladas, para preparar o futuro (incerto/vazio).
De certo, “[...] a contração do presente, esconde assim, a maior parte da riqueza
inesgotável das experiências sociais no mundo” (SANTOS, 2006, p. 101). Nessa
direção, a docência e/ou prática pedagógica em curso é sempre concebida como um
déficit, como uma falta, como um hoje estático que precisa tornar-se amanhã
dinâmico, sendo necessária sua contração e/ou subtração por um projeto de
formação continuada que encaminhe o professor do passado para o professor do
futuro, do giz branco e do quadro-negro para o mouse e quadro digital “computador”.
A questão que se coloca nessa travessia é a subtração do presente, do agora,
desse tempo que nos cabe ou que nos pertence. O que fazer do hoje?
Santos (2006), nesse particular, mais uma vez, a partir da crítica benjaminiana,
sinaliza que a pobreza da experiência não é a expressão de uma carência, mas,
antes de tudo, a expressão da arrogância de não se querer ver e muito menos
valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora dos cânones da
razão com que podemos identificar, valorizar e reconhecer.
Alves (2001), na mesma direção, ressalta que esse não querer ver é a outra face do
não saber ver. O não querer ver remete à dimensão ético-política enquanto o não
saber ver, à dimensão epistemológica. Alves (2001), então, desenvolve sua reflexão
destacando que, como ver não é apenas operação mental em nível biofisiológico,
mas antes de tudo, é percepção em nível sócio-histórico que envolve múltiplos
processos (memória, associação, decodificação, armazenagem, atenção, etc.),
assim, na Modernidade, fomos ensinados, “educados”, para ver bem, ver o belo, o
bonito, ver o que é perfeito, ver apenas e somente apenas uma imagem, qual seja, a
imagem e semelhança da ciência “perfeição”.
A crítica da razão indolente é a condição necessária para se recuperar nossa
capacidade de ver e enxergar as muitas experiências que têm sido produzidas, por
uma ampliação das expectativas presentes.
Mas, uma questão que é recorrente à teorização boaventurística diz respeito à
necessidade de dilatar o presente, uma tarefa que não parece nem simples, nem
teórica. O presente, como categoria sociológica, nunca foi bem compreendido;
quase sempre é um espaço-tempo fugaz, que, do ponto de vista de uma cronologia
funcional, não dura mais do que hoje, circunscrito às 24 horas diárias. Mesmo dentro
dessas 24 horas, há variações em torno do que é, do que já foi e do que ainda será.
Esse jogo revela, em última instância, as tensões que residem no espaço da
existência humana, ontem, hoje e amanhã, ainda que instantes/tempos distintos são
espaços-tempos que se conjugam na realização do projeto de emancipação,
proposto na crítica a razão metonímica.
A crítica à razão metonímica, assim pensada, busca se contrapor à sua sofisticação,
encontrando alternativas no campo das possibilidades assentes e em curso nas
experiências sociais e/ou nas práticas sociais. Nos processos de formação com os
professores, o trabalho da sociologia das ausências se efetua pela via do
reconhecimento das experiências de formação continuada que têm sido produzidas
nas escolas por meio de diálogos “horizontalizados” entre diferentes
saberes/fazeres. Nesse aspecto particular, nós buscamos, nas narrativas, elementos
que nos permitiram enxergar essa potência presente no cotidiano das escolas que,
por sua vitalidade inscrita nos corpos, nas vidas das professoras que tivemos a
oportunidade de ouvir e ver, podem contribuir com o projeto de formação continuada
com as professoras. Destacamos aqui alguns extratos dessas narrativas-conceito. 64
A professora Maria Helena, após puxar pelos fios da memória lembranças de suas
professoras primárias, revela o quanto sua prática é influenciada por essas
lembranças e também como o contexto de sua prática pedagógica tem influenciado
sua forma de atuação com as crianças:
Eu lembro, e com experiências muito boas, foi um aprendizado muito bom que eu tive com elas, e isso eu procuro estar me espelhando para fazer o mesmo com os meus alunos. Agora, quando eu vim trabalhar nessa escola aqui, aqui nesse CMEI, eu dei de cara com o ecossistema manguezal na minha janela, eu fiquei pensando: ‘Eu fiz Curso de Geografia! Eu trabalho com o pré, a gente vai ter de usar isso aí. Não dá pra olhar para a janela e deixar passar em branco, como se fosse qualquer parede branca, ou verde mesmo, não tem razão”. E foi aí que eu comecei a fazer um projeto, mas eu consigo colocar o meu Curso de Geografia nas minhas aulas aqui, no CMEI, mas, me espelhar em pessoas que marcaram muito nessa pratica foi muito as professoras do primário (MARIA HELENA, professora).
Na narrativa, a professora Maria Helena revela detalhes característicos da região de
São Pedro. De fato, a intimidade com o ecossistema manguezal é uma marca
característica dessa região, como já nos referimos no Capítulo II, quando fizemos a
contextualização do campo de pesquisa. Os moradores e, especificamente, os
alunos têm o mangue como sua realidade mais imediata, inclusive do mangue
muitas famílias ainda tiram sua sobrevivência. O mangue é parte do currículo dos
CMEIs e, no caso da professora Maria Helena, um elemento central no
desenvolvimento de sua prática pedagógica, contribuindo com seu processo de
formação continuada.
64 Narrativa-conceito é o termo que temos utilizado para afirmar o texto narrativo como discurso e como epistemologia da prática. Uma narrativa, como sinalizou uma professora no grupo de discussão, pode muito bem ser uma citação. Algumas das falas das professoras poderiam ser concebidas como uma teoria, pois expressam com relativa precisão os significados da docência.
É importante destacar que a professora Maria Helena, quando faz referência a seu
trabalho, relaciona-o com o manguezal. Em conversas informais não gravadas, ela
fez questão de nos mostrar seu projeto completo, envolvendo uma pesquisa ampla
em torno do Rio Santa Maria e de seus afluentes até chegar a desembocar no
manguezal. Realizou passeios com as crianças até a foz do Rio Santa Maria para
verificar o assoreamento das margens e avaliar os demais problemas advindos da
ação do homem.
A narrativa da professora Maria Helena mostra uma professora comprometida com o
desenvolvimento de seu trabalho e, principalmente, com problemas que extrapolam
o âmbito de sua sala, envolvendo as questões macro em torno do aquecimento
global e a ação do homem nesse processo. Quando questionamos a professora
Maria Helena sobre as possibilidades de articulação entre as teorias de suporte e o
saber da experiência, mais uma vez, ela demonstra uma preocupação em fazer as
devidas e necessárias adaptações dos conteúdos à realidade, inclusive recorre a um
exemplo que mostra sua preocupação com o significado do conhecimento para as
crianças da região de São Pedro.
Como posso dar aula para um menino aonde o livro de Geografia vem todo falando da historia do Rio de Janeiro e da cidade de São Paulo e, como você vai fazer aquilo? É o que eu faço. Tento adaptar, tento pegar aquele modelo, para estar encaixando no modelo da realidade da minha criança. É claro que eu não posso negar ao meu aluno uma outra informação que não seja do local onde ele nasceu, o lugar da sua realidade, eu não posso estar fazendo isso, até porque os meios de comunicação estão aí e mostram, mas, em contrapartida, eu posso estar mostrando meu aluno como era a região de São Pedro, que eu até já passei o filme para eles, antigamente e hoje. Para falar só da cidade de São Paulo como era em 1847, se eu não posso falar da migração alemã que iniciou aqui, em 1848, e no Espírito Santo, a imigração Italiana. Então, na medida do possível, eu tento adaptar e dar uma peneirada, tentando me sensibilizar do que eu poderia passar para o meu aluno (MARIA HELENA, professora).
Chamou a atenção o fato de a professora Maria Helena demonstrar uma
preocupação com o contexto social da região de São Pedro. O filme a que ela fez
referência65 é um documentário produzido na década de 80 que, inclusive, nós
também utilizamos para fazer a caracterização da região de São Pedro. Quando ela
revela seu intento de sensibilizar-se com as condições nas quais tem que exercer a
docência, lembramos o desafio que é para cada professor não se tornar apenas um
65 “Lugar de toda pobreza”, do Jornalista Hamilton de Almeida, filme que retrata a miséria humana vivida pelos moradores da recém-invadida região de São Pedro, no início da década de 80. No filme, além de cenas chocantes de homens, mulheres e famílias disputando restos de comida com urubus, há riquíssimos depoimentos dos moradores falando de sua condição e de suas reivindicações.
mero transmissor de conteúdos. Fica evidente que sua prática é perpassada por
desafios que, em muitos casos, envolvem opções, posicionamentos diante da
realidade. Também em conversas informais, não gravadas, ela revelou-nos sua
insatisfação com as condições nas quais tem exercido a profissão, pois trabalha em
dois horários, passa o dia correndo de um lado para o outro para dar conta das suas
duas cadeiras como professora.
6.2 A CRÍTICA DA RAZÃO PROLÉPTICA: PELA POSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO
NO HOJE A ESPERANÇA DO AMANHÃ
Nóvoa (2005), na mesma perspectiva de Santos (2006), destaca que as políticas
educacionais, escudadas em pareceres cientificistas, hiperdimensionam as análises
sobre e para o futuro, desconsiderando os contextos mais urgentes e presentes da
realidade concreta, o que ele chama de excesso de futuro e exiguidade de presente.
No famoso quadro de Paul Klee “Angelus Novus”, os anjos da Modernidade
parecem não mais fazerem caso do presente; estão de costas para o presente,
construindo as soluções em um futuro que, por contingências, não cabe todo mundo,
um mundo mais leve, mais seleto, mais possível, a partir de soluções tecnológicas,
porém para poucos.66
Santos (2006) critica essa perspectiva de contração do presente em favor do futuro,
essa ideia de progresso desconsidera a experiência e a necessidade de produzir o
futuro a partir do presente. No texto a “A queda do Ângelus Nóvus”, Santos (2006)
também se refere a essa terrível, porém real, imagem da Modernidade, que, de
costas para o passado e sem fazer caso do presente, apenas contempla o futuro.
Nóvoa (2005) ressalta que, se por um lado, há um excesso de discursos com
promessas no porvir, por outro, há uma escassez de propostas pedagógicas que
coloquem a educação e os professores na agenda, de fato, das políticas e dos
políticos. É preciso ajustar essa equação, reduzindo a assimetria entre o dizer e o
fazer da educação, avançando de uma educação só de discurso para um discurso
66 Viagens espaciais, territorialização de ilhas isoladas, processos de criogenia para ampliar a vida, etc.
da educação, em que os professores possam ter seus saberes e fazeres
reconhecidos e considerados no processo de elaboração das políticas educacionais.
A respeito da tensão entre presente e futuro, Nóvoa (2005) sublinha, ainda, que a
questão não é apenas escolher um ou outro, ou mesmo opor um ao outro; a questão
é colocar o tempo na proporção relacional que ele compreende e, nesse sentido,
estabelecer nexos entre ambos, de maneira que nem um nem outro tenha
prevalência, até porque, sendo ele relacional, não podemos viver nos dois ao
mesmo tempo e, se assim o fizéssemos, não estaríamos inteiros e,
consequentemente, não nos realizaríamos: a questão, então, é não nos
submetermos à tirania da urgência até porque não é adiantando o relógio que o
futuro chega mais cedo. Nóvoa (1999, p. 27) ressalta:
Exigimos do presente o que esperávamos do passado. A urgência não nega o tempo. Ela sobrecarrega-o com exigências inscritas apenas na imediatez [...] É por isso que, na ausência de um pensamento sobre o futuro, a urgência contribui para o destruir. A sua pretensa neutralidade temporal é totalmente ilusória, por que toda a preferência implica uma escolha e toda a preferência excessiva pelo presente conduz necessariamente a opções excessivas contra o futuro.
Mas esse desacordo é aparente. Ambos, recusam um presente e um futuro como
“fugas” ou “refúgios”. A alternativa é não nos prendermos, em demasia, ao presente
ou ansiarmos demais pelo futuro, mas arrazoar entre ambos e viver comedidamente
um no outro. Aqui cabe também a crítica de Santos (2006) a uma das formas de
manifestação da razão indolente, ou seja, a razão proléptica. A critica à razão
proléptica reside na sua incapacidade de dispensar cuidado e atenção ao presente,
concebendo-o como dimensão-instância única capaz de produzir o futuro, ou seja,
“Em lugar de pensarmos um par dicotômico e estático, o presente que é e o futuro
que não é, passamos a pensar processualmente, na criação e gestão das
possibilidades de vir a ser” (OLIVEIRA, 2006, p.100).
Santos (2006) trabalha sobre a ideia de que a realidade não se restringe àquilo que
existe; ela comporta também possíveis não realizados, ou melhor, projetos que são
gestados e se apresentam como possibilidades de produzir a própria realidade.
Nesse sentido, as narrativas se inscrevem nesse horizonte de possibilidades, do
ainda não, mas com a potência de virem a se constituir em realidades, e é
justamente nesse terreno que se justifica o trabalho de tradução.
6. 3 DIMENSÕES DA FORMAÇÃO CONTINUADA COM OS PROFESSORES
Ocorreu-nos a necessidade de, ao nos encaminharmos para a parte final de nosso
trabalho, fazer um levantamento dos principais pontos que perpassaram o
desenvolvimento da pesquisa. Uma tese tem, necessariamente, que apresentar uma
aposta. Procuramos fazer tal aposta a partir do corolário central da tese, qual seja: a
necessidade de superar a ideia de formação dos professores e passar a trabalhar na
perspectiva de formação com os professores em processos de interação em
contextos de inserção da prática pedagógica. Associado a esse ideia central,
encontramos uma série de outros aspectos, dimensões, princípios que, por sua
importância, acreditamos que também se somam à compreensão dos processos de
formação continuada com os professores.
As sete dimensões aqui destacadas podem ser encontradas no decorrer de todo o
trabalho, fato amplamente percebido nas narrativas, pois os professores, o tempo
todo, evidenciam a necessidade de se pensar em processos de formação mais
articulados e horizontalizados. De maneira especial, procuramos trazer essa ideia
também nos aportes teóricos, sobretudo na hermenêutica diatópica por meio da
sociologia das ausências, da sociologia das emergências e do trabalho de tradução.
Se pudéssemos sintetizar nosso intento, algo impreciso, depois de escrever tanto,
arriscar-nos-íamos a afirmar que esse trabalho buscou, pela via da hermenêutica
diatópica, efetuar o devido reconhecimento às formas de produção das experiências
formativas que cada professor vivencia no cotidiano de sua prática pedagógica em
um coletivo institucional, ou seja, buscamos demonstrar como, no cotidiano, os
professores produzem a experiência de constituir-ser professor por meio de
processos de formação continuada que se realizam de forma muitas vezes
clandestina, marginal no cotidiano das escola, e que essas formas subversivas,
anônimas, instituintes apresentam-se como alternativas às proposições modelares
que são, em sua quase maioria, impostas pelo sistema educacional.
.
A seguir, apresentaremos as sete dimensões da formação continuada que pudemos
construir em nossas escutas das professoras e em nossa percepção do cotidiano,
sem a pretensão de considerá-las as únicas e as melhores. Apresentaremos sem
uma ordem hierárquica entre elas. Apenas a dimensão homônima à nossa tese, por
motivos razoáveis, colocaremos como derradeira até para fazer jus a nosso esforço
de afirmar a necessidade de o professor ser protagonista nos processos de
formação.
6.3.1 Primeira dimensão: toda formação continuada que não é pensada em
articulação com os professores se volta contra os professores
A respeito desta dimensão, destacamos o fato de que, em muitas das propostas
e/ou reformas educacionais, os professores são concebidos como antagonistas.
Esse fato, segundo Nóvoa (2005), tem levado alguns sistemas a desenvolverem
pacotes reformistas “à prova de professores”.67 Essa perspectiva concebe o
professor apenas como um mero executor de programas oficiais, sem uma visão
crítica sobre tais programas. Ao conceber o professor como um sujeito apolítico,
destituído de conhecimentos, de desejos, de vontades, os sistemas educacionais
obliteram a visão, não levando em consideração que os professores são, em última
instância, os principais protagonistas no processo de implementação das políticas
educacionais.
A consciência da interdependência presente na relação entre professores e sistemas
precisa ser traduzida nas múltiplas formas em que os professores são envolvidos no
desenvolvimento das propostas de formação continuada (planejamento,
desenvolvimento e avaliação), pois o que não é feito com os professores, a história
da educação tem revelado que acaba se voltando contra eles. Então, essa mesma
história tem indicado que os professores tendem a se mostrar reticentes e
resistentes aos pacotes oficiais que descem de forma verticalizada e baixam nas
escolas. A esse respeito Linhares (2008, p. 6) destaca:
67 Essa expressão sintetiza a perspectiva reformista na educação, sustentada na crença de que as reformas podem ser pensadas nos gabinetes por um grupo de experts e, posteriormente, imposta aos sistemas e aos professores. Nessa linha de raciocínio, uma reforma bem arquitetada seria aquela cujos mecanismos internos fossem tão seguros que, por mais que os professores quisessem, não conseguiriam distorcer os rumos da reforma.
Os professores tendem, principalmente, a resistir muito mais às políticas – que planejada fora da escola reservam aos professores espaços aplicacionistas –, do que aos movimentos instituintes, onde sempre há condições de participação docente e discente, como formas de criação e de autonomia compartilhada.
Destacamos, nesse aspecto, que os professores, por sua experiência docente,
precisam ter seus saberes e fazeres considerados nos processos de construção das
políticas educacionais, nas suas diversas fases. O olhar docente possibilita
redimensionar as propostas oficiais, dando-lhes um “banho de realidade”, e os
movimentos instituintes introduzem nas propostas oficiais elementos novos e
necessários para que a educação possa cumprir sua função social de produção de
sujeito com capacidade de se posicionar diante dos desafios da sociedade. Como
ressaltam Ferraço e Carvalho (2008), não podemos prescindir da voz e da presença
dos professores nos espaços e tempos em que se articulam propostas de formação,
ou seja, não podemos propor projetos nem para nem pelos professores, mas com os
professores.
A arrogância pedagógica de pensar o que é melhor para o outro sem considerá-lo como legítimo outro, capaz de pensar por si e de projetar sua vida, tem marcado grande parte dos projetos a que temos tido acesso em nossas pesquisas com os cotidianos das escolas (FERRAÇO; CARVALHO, 2008, p.7).
Assim como não podemos viver pelo outro, também não podemos projetar por e
para eles, sem eles (NUNES, 2005). No âmbito dos processos de formação, o
reconhecimento desses saberes e fazeres dos professores é fundamental, pois,
Por mais bem intencionados que os burocratas dos sistemas e mesmo os gestores e especialistas que estão nas escolas possam ser, não há como propor projetos à revelia dos sujeitos que estarão, direta ou indiretamente, envolvidos no desenvolvimento desses projetos no cotidiano das escolas [...]. Decorre daí a necessidade de ouvir o outro em suas necessidades, interesses, desejos e expectativas pessoais e profissionais, concebendo o outro como legítimo outro.
Nesse jogo inter-relacional, em qualquer âmbito da vida, a necessidade do outro se
evidencia no fato de que não podemos nos realizar a não ser no diálogo e na
interação com os outros.
A formação continuada dos professores, quando pensada descolada dos contextos
de inserção da prática pedagógica, parte da premissa que traz embutida, em sua
inscrição, modulações discursivas que concebem o professor como aquele que não
sabe e que, por esse motivo, precisa saber. Esse fato justifica os investimentos em
pacotes e programas de formação. Os pacotes, programas e projetos, quando
concebidos a partir dessa verticalidade e/ou arrogância, trazem implícita uma
percepção dos professores como aquele sujeito que não está preparado, que é
descompromissado, que precisa ser reciclado, que não tem a postura correta e
outras tantas percepções distorcidas.
Observa-se, nessa perspectiva, uma ênfase exagerada no déficit didático-
pedagógico do professor, o que justifica a presença e a intervenção sistêmica por
meio de programas e projetos, por certo, em sua maioria as atividades de formação
continuada propostas pelos sistemas trazem embutida essa ideia de déficit docente,
o que impossibilita uma compreensão mais ampliada das possibilidades de
formação a partir da articulação de um projeto coletivo de formação construído com
e pelos professores, com base nas necessidades do cotidiano.
Outro aspecto a considerar, nessa tensão característica que envolve a divergência
de interesses de professores e sistemas educacionais, é o fato de que os
professores tendem a desenvolver uma desconfiança histórica dos pacotes
reformistas. Observamos isso na forma como os eles se posicionam em relação ao
documento que institui a política de formação continuada da rede municipal de
educação (SEME, 2007). Nos pressupostos da proposta, aparecem referências a
valorização do professor e seu saber docente e a concepção do professor como um
profissional crítico-reflexivo.
Entretanto, ainda que o documento sinalize uma valorização dos saberes-fazeres
produzidos na docência, a dinâmica que o documento adquire no cotidiano,
sobretudo na maneira como ele é traduzido em ações de formação no cotidiano,
revela certa incongruência entre seus aportes teóricos e as atividades desenvolvidas
nas práticas, fato expresso em algumas narrativas das professoras, em especial
uma que nos chamou a atenção, pois a professora mostra-se inconformada com
uma prática que permanece, qual seja, a de apostar em um messianismo teórico-
metodológico que acredita que haverá de acontecer “em um futuro próximo”, que
chegará alguém, com uma metaepistemologia e/ou metametodologia que dará conta
de resolver os problemas que os professores enfrentam no cotidiano de suas
práticas. A recusa a essa arrogância é traduzida nas narrativas a seguir, colhidas a
partir do questionamento que fizemos às professoras sobre a possibilidades de
existência de movimentos criativos e inventivos produzidos na escola em que elas
atuavam. Elas, então, expõem:
Não há uma coisa muito nova na rede, não acho que exista coisa nova, inovadora, mas se a rede pudesse estar investindo, acreditando mais nos profissionais que elas têm, e se esses profissionais falassem, agissem, seria mais interessante essa formação continuada [...]. Por que que eu tenho que pagar cinco mil a você, para você vir dar uma palestra? Por que eu não procuro saber se tem algum professor que tenha a capacidade de fazer, alguém da própria rede mesmo? (SOLAINE, professora). Nós temos professores com uma bagagem muito boa, de experiências, pode vir alguém de fora, São Paulo, Rio de Janeiro, mas, na própria instituição de ensino, a gente consegue encontrar, e eu já havia falado antes. Você, às vezes, vai muito longe pra trazer uma coisa e, as vezes, esquece que aqui perto você tem e, sinceramente, eu não consigo. A palavra formação continuada, como eu já falei no início, eu acho que não (MARIA HELENA, professora).
Percebe-se, nas narrativas das professoras Solaine e Maria Helena, que elas se
mostram céticas quanto à possibilidade de alguém de longe e de fora produzir um
saber e fazer que dê conta de resolver os problemas que elas vivenciam no
cotidiano, e mais, elas acreditam que as alternativas poderão ser produzidas a partir
do compartilhamento de conhecimentos e do intercambiamento de experiências, no
caso, os próprios professores da rede, em momentos organizados, poderiam
compartilhar seus saberes e fazeres com os outros professores.
Outro aspecto característico da tensão entre professores e sistemas é manifesto na
forma como as professores interpretam os programas e projetos que “baixam na
escola” sem o envolvimento prévio. O caso do programa de formação continuada é
um fato característico desse descompasso, pois os professores, diante da imposição
desse tempo para estudo no final do expediente, encararam muito mais como
punição do que como oportunidade, ou seja, serviu apenas para acentuar a
oposição dos professores em relação ao sistema. Os professores absorveram a
proposta como uma medida para fazer com que cumprissem a carga horária na
íntegra nas escolas.
Essa questão, ainda que pareça secundária, esconde outros problemas orgânicos
que precisariam de soluções mais elaboradas e articuladas como política pública na
área da educação. A jornada dupla e tripla dos professores é um dos problemas do
magistério no Brasil. Fato também constatado nas narrativas, pois as professoras
revelam a dificuldade de lidar com a correria do dia a dia de um lado para o outro.
Citamos aqui, mais uma vez, a narrativa da professora Kátia que, diante da solução
encontrada pela sua escola para ocupar os 30 minutos diários para estudo,
exclamou: “Não acredito que você está do lado da SEME!”. Sua expressão revela o
grau de tensão que existe nessa relação que se mostra bastante conflituosa.
Ao invés de soluções fáceis, faz-se necessário avançar para outras possibilidades,
por exemplo, a elaboração de um plano articulado em torno da carreira do
magistério, com possibilidades reais de cessão de funcionários entre as Secretarias
Municipais e Estadual, diminuindo, assim, a necessidade de os professores se
deslocarem de um município para o outro.68 A queixa da professora Kátia, e de
muitas outras, era exatamente pelo fato de esse período de meia hora, em que
agora teriam de ficar estudando, já ser computado como tempo de deslocamento de
um sistema para o outro. Isso é uma prática muito comum. Professoras que
trabalham pela manhã em São Pedro e, na parte da tarde, têm que dar aula na
Serra, em Vila Velha, em Cariacica ou até mesmo em Aracruz, em alguns casos.
Uma medida adotada, sem considerar as contingências do exercício da profissão,
que acabou se revertendo em um desgaste para o sistema como um todo. Então se
virar nos trinta significou, além desse cumprimento formal de carga horária, um
transtorno para alguns professores que precisavam desse tempo para o
deslocamento para outros locais de trabalho.
Destacamos que o que não é feito com os professores a partir de processos de
negociação no coletivo das escolas tende a voltar-se contra os próprios professores. 68 Essa questão já foi discutida dentro do plano de articulação política da região metropolitana. A principal ação seria a cessão de professores entre os sistemas municipais e o estadual. Como os professores, sobretudo os que trabalham na região da Grande Vitória, atuam, concomitantemente, em dois sistemas, seria feito um estudo para possibilitar que eles pudessem exercer sua função docente na mesma escola com uma carga horária semana de oito horas, ou seja, na prática, os professores e os sistemas teriam um professor de tempo integral para administrar. Essa operação já é praticada, de maneira informal, por meio de permutas feitas entre professores que, individualmente, optam por juntar suas duas cadeiras em uma única rede.
Linhares (2001) enfatiza essa peculiaridade das políticas públicas que são
produzidas como soluções de gabinete de longe e de fora das escolas e, por meio
do chamado efeito springer,69 produzem os mais (in)diferentes e divergentes
sentimentos nos professores, dificultando o seu envolvimento em tais projetos-
programas.
6.3.2 Segunda dimensão: ninguém forma ninguém, mas, paradoxalmente,
ninguém se forma sozinho
Essa dimensão remete à inescapável determinação coletiva dos processos
formativos. Como destaca Santos (2006), somos redes de sujeitos envolvidos em
processos de interação nos diversos espaços-tempos de produção das
subjetividades (espaço doméstico, espaço do mercado, espaço mundial, espaço do
trabalho). Nessa perspectiva, não se pode perder de vista que os professores são
sujeitos individuais, porém exercendo práticas fundamentalmente coletivas. Não há
prática pedagógica em si como também não há formação em si.
A perspectiva de individualização dos processos de formação se contrapõe à
especificidade do trabalho docente, pois a produção da docência e,
consequentemente, da escola é feita por meio de negociações de sentidos no
interior de uma coletividade que se realiza no trabalho pedagógico. Daí o aforisma
freiriano que se liga diretamente ao caráter ético e político do trabalho do professor.
Isso ficou amplamente evidenciado nas narrativas. Percebe-se, na dimensão micro
das relações pedagógicas, que o tempo todo os professores estão vinculados a um
fazer que não é só seu, um fazer que não é só repetição, um fazer que não é só
fazer, mas também é reflexão sobre os objetivos/fins da sua prática.
Sendo assim, desconsiderar essa determinação coletiva da prática incorre em
proposta individualista que, por sua visão parcial/individual, apenas faz arremedos
paliativos em problemas que precisam de soluções mais consistentes e coletivas.
69 Refere-se às decisões que são tomadas nos gabinetes na comodidade do ar refrigerado e tendem a ter um impacto naqueles que não tiveram oportunidade de se manifestar.
O problema de um professor contém o problema de muitos outros professores que,
por sua vez, reflete o problema da escola e da sociedade. Na prática pedagógica,
as múltiplas dimensões da vida humana em sociedade desfilam à frente do
professor e é sempre um convite à reflexão tanto individual como coletiva. Algumas
questões que estão colocadas como desafios para a perspectiva científica da
Modernidade, sobretudo na área da educação, são: como produzir conhecimentos
que não se reduzem a formulas modelares de aplicação? Como produzir uma
pedagogia de laboratório que dê conta de enfrentar os desafios presentes no
cotidiano das escolas? Como formular uma metateorização que seja passível de
ser traduzida em política educacional?
Sem uma resposta acabada para essas questões, nosso esforço foi no sentido de
buscar, por meio da atenção dispensada às narrativas das professoras, algumas
possibilidades para se pensar em processos de formação continuada que não sejam
propostas modelares e caibam em um maior número possível de contextos de
inserção. Que não sejam laboratoriais, mas se configurem em amplo e diversificado
campo de experimentação onde se pode aprender com as experiências uns dos
outros. E, por fim, que tenha a consciência de suas limitações diante das
transformações da realidade.
A partir das reflexões de Foucault (1990), Larossa (1994) destaca que a constituição
narrativa da experiência de si não é algo que se produz em um solilóquio ou em
um diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em um diálogo entre narrativas, entre
textos. A interação remete ao colóquio no qual se dá a narrativa. Portanto, a
narração é uma necessária interação entre sujeitos em processos de
compartilhamento de suas histórias e de seus conhecimentos.
Larossa (1994) exprime essas determinações da narrativa ao destacar que narrar
não é uma operação simples de recolher histórias no baú da memória, pelo
contrário, narrar é um processo de articulação entre as experiências e fatos que nos
aconteceram, que nos passaram e que, no curso de nossas vidas, continuaram a
fazer sentido. Então, mais do que simplesmente recordar, a narrativa é também
obra de construção discursiva, quando o narrador se revela, se imprime e se
expressa por meio das histórias que conta sobre si mesmo e sobre os outros.
Logo, as narrativas possibilitam o intercambiamento de experiências em um coletivo,
permitindo que haja um crescimento mútuo, relativizando a relações clássicas nos
processos de formação nas quais se observa uma autoridade constituída que tem a
função de direcionar, estabelecer os conhecimentos que serão transmitidos. A
respeito da perspectiva de dialogicidade em processos de formação, Ferreira e
Grossi (2004) citado por Carvalho (2006, p. 1) destacam:
As histórias narradas amealham vozes revividas e constelações de imagens, enredando os fios da existência. Mobilizam um ouro universo, emaranhado portador de memória e de experiência do vivido [...]. Tornam possível a travessia do relato individual nomeado e singularizado, para a engenhosa construção do coletivo.
As narrativas situam-se em um interregno discursivo, pois, como palavra
pronunciada, já não é propriedade de quem pronuncia e muito menos de quem a
absorve. Assim, a narrativa é acontecimento, história que, por ser história, está
sempre sujeita às transformações, tanto em uma ponta como na outra do processo
dialógico ou nos muitos pontos de um processo heterológico. Em uma palavra,
narrativa é interação discursiva.
As narrativas em si não contêm uma vinculação com as dimensões mais amplas da
sociedade, mas também não se pode afirmar que a narrativa se reduz a um
individualismo ou particularismo. Narrar é uma atividade que traz uma marca
sociocultural. Sempre narramos imersos em contextos específicos. Acreditamos,
assim, que os professores ao narrar o fazem a partir de uma perspectiva singular,
mas, ao mesmo tempo, pluralizam-se nos tempos e espaços da narração, ou seja, o
endereçamento de seu relato produz modificações no conteúdo de seu próprio
discurso.
Cumpre destacar que há uma articulação entre uma narrativa em si e uma narrativa
para si, entre um universo singular único, “o narrador” e um multiverso “plural”
coabitado pelos personagens que compõem as narrativas. Destacamos a
interconectividade e a interdependência entre as narrativas ou a polifonia narrativa.
A aprendizagem é sempre uma atividade interna, mas forjada na interação com os
contextos de inserção social de maneira que somos atravessados pelos diversos
discursos com os quais temos contatos e, nessa interação, reside o significado pleno
da aprendizagem. A formação continuada deveria ser pensada como uma ação
realizada no coletivo escolar, utilizando como matéria-prima os discursos-narrativos
dos sujeitos envolvidos no desenvolvimento de suas práticas.
6.3.3 Terceira dimensão: narrar histórias é uma forma de fazer a história
Aqui, mais uma vez, cabe a lembrança benjaminiana sobre a articulação entre
memória e narrativa. Para Benjamim (1993) um acontecimento vivido se encerra no
tempo-espaço da sua vivência, ao passo que um acontecimento lembrado
estabelece ligação com aquilo que foi com o que é e com o que poderá vir a ser,
dando, assim, às histórias que são constituídas nossas vidas o sentido de
continuidade e movimento.
As muitas histórias individuais narradas pelos professores se inscrevem num
movimento mais amplo de compor a história com os fatos, acontecimentos e
experiências das múltiplas e diversificadas práticas pedagógicas. Ao compartilhar
experiências íntimas, pessoais, cada professor contribui com um percepção
particularizada da história o que, de certa forma, amplifica a compreensão dos fatos
e acontecimentos, dando a oportunidade de assim se obter uma visão mais ampla
da história.
Nesse movimento de ouvir as histórias, podemos nos deparar com narrativas
extremamente envolventes. As professoras foram bastante generosas em revelar
aspectos singulares de suas vidas pessoais e profissionais que, por seus conteúdos
implícitos, consideramos “narrativas-conceito”.
A narrativa-conceito é uma forma que encontramos de atribuir às histórias das
professoras um lugar epistemológico, ou seja, entre as muitas palavras que
envolvem uma narrativa, existem algumas sentenças que, por seu vigor semântico-
discursivo, encerram uma ideia, um axioma, uma aposta que, imediatamente, é
reconhecida e traz consigo a condição de atrair em torno dela outras histórias.
No grupo de discussão que realizamos para apresentar os dados da pesquisa, essa
ideia da narrativa-conceito ficou mais evidente. Como estratégia, organizamos uma
apresentação contendo algumas lâminas com extratos da pesquisa, além dos
aportes epistemológicos que orientaram o trabalho. Fizemos questão de apresentar
aos professores muitas narrativas que passaram a fazer parte de nosso texto. A
certa altura de nosso encontro, quando estávamos lendo as narrativas, uma das
professoras nos questionou:
____ Qual o autor que falou isso?
Então, retrucamos:
___ Essas falas são de professoras da rede.
Diante dessa constatação, a professora ficou admirada com a profundidade da
narrativa. Esse fato nos remeteu a pensar que
Não existe formação no singular, a formação é sempre um processo intersubjetivo. Escutar, ler, articular saberes, unir fazeres e incorporar vozes, palavras, memórias, histórias e narrativas ao processo de formação das professoras é ampliar a própria perspectiva de formação. O que é fundamental não é o modelo final a ser atingido, mas a dimensão formadora da narrativa (PEREZ, 2003, p. 117).
Retomando a questão da narrativa como dimensão importante na constituição da
história, ressaltamos, mais uma vez, que as histórias individuais contadas pelas
professoras se inscrevem em um movimento mais amplo de produção da história.
Como já enfatizamos, no Capítulo IV, por meio das histórias narradas pelas
professoras, este movimento de inscrever na história as muitas histórias das
professoras parte da premissa de que a história oficial tem sonegado importantes e
valiosas passagens, sendo necessário efetuar um investimento em outras formas de
produzir a história, nesse caso, sendo contada na perspectiva das próprias
professoras.
Nessa perspectiva, consideramos oportuno trazer para o nosso texto alguns
excertos de histórias de professoras/educadoras moradoras de São Pedro para nos
ajudar a compreender alguns dos elementos que fazem parte da história do
atendimento educacional, especialmente na educação infantil, na região de São
Pedro. Achamos relevante apresentar três histórias que nos parecem significativas
para destacar essa dimensão da narrativa como constituidora da história e também
como possibilidades de formação continuada. São as narrativas da professora
Cleide, da tia Laura e do professor-diretor José Rodrigues.
Essas três histórias têm pontos de interfaces, revelam aspectos singulares do
desenvolvimento do atendimento educacional da região de São Pedro, falam de uma
história que ainda não faz parte da história oficial. Cabe-nos, aqui, fazer uma
referência não com a profundidade historiográfica necessária.
Começamos com o relato da professora Cleide. Sua narrativa, a primeira que
tivemos a oportunidade de ouvir em nossa pesquisa, é a porta de entrada para uma
história cujos personagens em diferentes espaços-tempos exerceram-exercem uma
influência na história do atendimento educacional, sobretudo na educação infantil na
região de São Pedro. Nas próprias palavras de Cleide, ela revela-se:
Pesquisador Como começa sua história como professora?70
Professora Cleide É eu fiz o magistério e entrei aqui como auxiliar de serviços gerais. Na época,71 eu estava no segundo ano do magistério, aí depois eu me formei e passei para o quadro de magistério, aí, depois do magistério, eu fiz minha graduação na Faesa, em Pedagogia, fiz o quarto ano também e agora eu fiz a pós-graduação, terminei agora. Careira longa, né?
Pesquisador Como começou o atendimento às crianças da região de São
Pedro?
Professora Cleide No início, foi assim, existia o movimento familiar, e tinha um vereador que mandava muita coisa na região, aí foi criado esse movimento e a Tia Laura teve essa visão, né? Das crianças que não tinham para onde ir, não iam para a escola, ficavam na rua, e a carência era muito grande. Hoje já nem tanto, né? Hoje já se tem mais controle da situação, dessa pobreza mesmo, então foi assim que surgiu. Antes era só uma casinha, que antigamente era um postinho de saúde, aí nessa casa que abrigava essas crianças, no início, eram poucas, eram umas cinco, depois subiu para 15, e essas crianças, iam para a escola e ficavam aqui também, inclusive colocou-se a tia Laura. Na época, ela não tinha estudo nenhum. Então ela era presidente do movimento, e ela falava: eu vou
70 Nós fizemos algumas pequenas adaptações nas questões para que a narrativa possa fazer sentido para o leitor, entretanto mantivemos na íntegra as narrativas. 71
Cleide é filha da tia Laura. Esse tempo refere-se à atuação na antiga creche Casulo mantida pela extinta LBA,
que era vinculada à Secretaria de Assistência Social. A época refere-se a 1964, de acordo com a narrativa da Tia
Laura..
colocar você pra tomar conta disso assim né, então ela chamou algumas pessoas da comunidade, pediram que ela escolhesse essas pessoas, essas pessoas que mais estavam com a comunidade, aquelas que saíam para reivindicar, dando assessória para a própria comunidade, então ela juntou essas pessoas, então ficou ela, a tia Laura. Uma cozinheira que, inclusive se aposentou agora, pegou também uma estudante, que estava no segundo grau, e ela ficou como uma recreadora. Se eu não me engano, ela foi contratada até como recreadora, e depois ela foi se aperfeiçoando, ela estudou e eles a contrataram depois, como professora. E assim foi melhorando...
Pesquisador Quando é que você entra nessa história? Você estudou aqui
também?
Professora Cleide Não, inclusive essa minha irmã, Nara, foi aluna daqui. Aí com aquilo tudo, a gente via aquele trabalho, que era muito bonito então eu comecei a me interessar eu nem me imaginava sendo professora, mas depois, com a mamãe também incentivando, né? Somos seis irmãs, e seis professoras, aí foi indo uma atrás da outra.
Pesquisador Suas seis irmãs são trabalham na Prefeitura de Vitória?
Professora Cleide Sim, todas as seis são da Prefeitura de Vitória. Tem uma que já se aposentou, foi essa que eu falei que foi recreadora na época. Teve outra que está para se aposentar, porque teve mal de Parkinson aos 39 anos.
A professora Cleide, atualmente, atua no Jardim II do Centro Municipal de Educação
Infantil Magnólia Dias Miranda Cunha e também participa do Conselho de Escola.
Sua narrativa é bastante ilustrativa, pois revela, mais uma vez, a forte ligação que a
constituição da profissão docente tem com os movimentos sociais e principalmente
de emancipação da mulher. Chamou-nos a atenção a influência que exerce a tia
Laura. Observa-se que, mesmo que a tia Laura seja mãe da professora Cleide, ela
faz questão de referir-se a ela não como mãe, mas como tia Laura, uma espécie de
referência na região.
Como a tia Laura já se encontra aposentada, para ouvir sua narrativa, precisamos ir
até à sua casa. Como sua idade já se encontra avançada, procuramos encontrar o
melhor momento para tal. Com a ajuda de outro personagem que faz parte desta
história, o professor José Rodrigues, nós marcamos um encontro com a tia Laura
para que ela pudesse nos falar um pouco de sua história como educadora.
A narrativa da Tia Laura revelou-nos alguns aspectos bastante significativos,
possibilitando-nos compreender questões relevantes da constituição do atendimento
de crianças da educação infantil na região de São Pedro. Devido à riqueza de
detalhes de sua narrativa, achamos importante reproduzir a sua fala na sua quase
integralidade, no dialogo registrado a seguir:
Pesquisador Como começou o atendimento às crianças da educação infantil na
região de São Pedro?
Tia Laura Na época, era UPPE (Unidade de Proteção ao Pré-Escolar). E era presidente da comunidade, eu era funcionária da Prefeitura, aí cada mãe ia lá um dia ajudar, era voluntário. A gente tinha uma escala de mãe, às vezes ia uma, às vezes iam duas, aí, depois que eu virei presidente da comunidade, minha filha foi contratada como servente, mas atuava como professora, isso foi em 64.
Pesquisador Isso foi na época da invasão de São Pedro?
Tia Laura Justamente, mas, na época, em 63, era Ilha das Caieiras, e eu tinha muitos alunos acolhidos, e a gente batia de porta em porta procurando alunos, e era assim, eles entravam de manhã e saíam às quarto horas. Eles não levavam roupas, não levavam nada. Lá tinha verba para tudo, verba para alimentação, verba para isso, verba para aquilo, então eu, como presidente da comunidade, eu é que movimentava a verba, eu era a tesoureira, então eu movimentava a verba, eu fazia aplicação, via em que ia aplicar, ai comunicava à LBA, e ela liberava, e a gente tinha umas pessoas que davam orientação a gente, tanto da LBA, quanto da Prefeitura, então a gente tinha muita assistência, e orientação. Eu ainda estava estudando à noite, então eles me orientavam muito, me ensinaram a fazer prestação de conta, que eu não sabia como era. Eu fui receber a verba da LBA, eu recebi um cheque de 15 milhões, que, na época, era milhões. Eu fiquei com esse cheque embaixo do meu colchão mais de uma semana. [...] as crianças ficavam lá na creche, de oito meses a seis anos, aí saíam de lá para ir para a escola, por isso que era proteção ao pré-escolar, aí, depois mudou, era pré-escola da Ilha das Caieras, aí depois, a poucos anos que mudou para CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil). Houve votação para escolher esse nome de Magnólia. Magnólia foi, ela era madrinha de Glória,72 mas aí, como já tinha uma lá em Santo Antonio, aí não podia ter dois nomes, e a Magnólia ganhou. Magnólia foi a minha professora, ela era madrinha de Glória Miranda da Cunha.
Pesquisador Como que a senhora vê o envolvimento de suas filhas com o
magistério? Foi influência da senhora?
Tia Laura Influência minha, porque eu tive uma infância muito sofrida, porque eu vim parar aqui com quatro anos e, quando chegou aqui, meu pai morreu. Eu trabalhava em casas de família, vigiava crianças para ganhar um prato de comida, e isso tudo na minha infância, ai depois casei e, trabalhei na casa de muita gente, casas de família, e comecei a lavar roupa para fora, aí a gente conheceu o Nenél, a gente já conhecia ele, mas ele era garoto, tinha uma fábrica, então eu não queria ter a vida que eu tive, aí eu virei líder do movimento comunitário, eu era presidente, a gente ia atrás mesmo, não ganhava nada, o que a gente ganhou foi alguns benefícios, mas, se a ilha está com está hoje, antes não tinha nada, tinha luz em só uma parte, a água a gente tinha que andar também pra pegar, e corre daqui, e dali, foi melhorando, pedia a um e a outro. As pessoas não davam muito valor, e essa creche foi a primeira de Vitória.
Pesquisador Foi a primeira creche de Vitória?
72
Glória foi diretora durante muitos anos dessa mesma creche que a tia Laura fundou. Em conversa informal,
não gravada, a tia Laura falou das tensões existentes entre Glória e ela, pois Glória foi indicada pela Prefeitura e
tinha formação em magistério e ela não tinha formação e era indicada pela comunidade.
Tia Laura Foi. Tinha uma, também, mas era particular, e era só para as mães domésticas trabalharem, e essa foi primeira de Vitória, depois foi abrindo outras. Só aqui, agora, acho que tem cinco ou seis. Tem o Magnólia Dias Miranda Cunha, tem o Gilda de Atayde Ramos, tem o Padre Geovani Bartesage, temo Giorgina da Trindade Farias e tem o Zilmar Alves de Mello. O Padre Giovani fui eu que dei a maior força para abrir, indiquei, fui para lá e tudo.
Pesquisador E hoje, qual a percepção que a senhora tem da comunidade de São
Pedro, especialmente em relação ao atendimento educacional?
Tia Laura Hoje é um querendo ser mais do que o outro. Tem movimento comunitário, mas, olha houve eleições para movimento comunitário e eu nem fiquei sabendo, porque eu que ia de porta em porta, chamando um, chamando outro. Quando acabava o meu mandato, que era de dois anos, e como não fazia outra eleição, eles criavam a assembléia, e me elegiam novamente, eu fiquei 12 anos, sai em 81 [...], eles gostava muito do meu trabalho. Vinha um pessoal do Rio de Janeiro da LBA fazer visita. Eles falavam que eu não tinha muito grau de estudo, mas que eu fazia um trabalho muito bom, porque a gente trabalhava por amor, eu ganhava porque era da Prefeitura, né? Eu tinha meu salário de servente, aí, depois, fui para merendeira, depois fui coordenadora, fui subcoordenadora, tudo sem diploma.Fui diretora, fui tudo, fui babá, cozinheira, aí a Prefeitura aumentou meu salário, mas eles não queriam me dar uma função que quem entrasse tirasse, mas, como eu não tinha um estudo, um diploma, ele falou para a secretaria dele ver qual era o cargo depois de merendeira que não precisava de diploma, aí ela disse: ‘Auxiliar de secretaria’. Ai ele disse: ‘A partir de hoje, a Laura vai ser auxiliar de secretaria’. Foi em 7 de julho de 77 e, a partir daí, eu estava fichada na carteira, aí depois foi mudando os nomes, né? Eu me aposentei como auxiliar administrativo, mas eu comecei a fazer um [...] muitas crianças passaram por mim, chegava uma mãe lá e falava assim: ‘Tia Laura, a senhora não tem alguma coisa pra mim hoje, não?’ Aí eu falava, não, hoje eu não tenho nada para dar à senhora. Aí ela falava: ‘Eu preciso ir trabalhar, eu posso deixar meu filho aqui?’. Pode deixar. Aí eu ajudava, é por isso que muita gente gosta de mim. Eu tenho certeza que muita gente gosta, eu nunca saí de casa que alguém não fala, oi tia Laura. Passam na frente da minha casa, oi tia Laura, num sei nem quem é, às vezes, mas é muito bom.
Percebe-se em toda a narrativa da tia Laura um vigor muito grande, principalmente
pela riqueza de detalhes, revelando uma identificação e comprometimento com as
crianças da região de São Pedro durante quase toda a sua vida. Tia Laura é uma
personagem que faz parte da vida e da história da região de São Pedro. A marcação
histórica quanto ao início do atendimento às crianças nos chama a atenção, pois
existem divergências em torno da época em que, efetivamente, começaram os
atendimentos educacionais e, principalmente, referentes aos créditos a serem
conferidos, se à Prefeitura Municipal ou à Legião Brasileira de Assistência ou se à
iniciativa pioneira da própria comunidade.
O fato é que, mesmo antes de existir um sistema oficial instituído para oferecer
assistência educacional às crianças, a comunidade, por seus próprios meios, iniciou
o que mais tarde vai se configurar na Unidade de Proteção ao Pré-Escolar (UPPE),
posteriormente, Creche Casulo, depois Centro de Educação Infantil (CEI) e,
atualmente, Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI).
A narrativa do professor e diretor José Rodrigues é bastante esclarecedora e,
juntamente com a narrativa da professora Cleide e da tia Laura, ajuda a entender a
importância dos movimentos instituintes de constituição do atendimento educacional
às crianças na região de São Pedro. Assim se efetivou nossa conversa:
Pesquisador Como começou o atendimento às crianças na região de São
Pedro?
José Rodrigues Oficialmente, o CMEI foi instituído em 1964, entretanto, antes disso, já vinha sendo feito um trabalho educativo na comunidade. A tia Laura foi uma das fundadoras. Ela atendia praticamente sozinha. Ela era presidente da comunidade com três ou quatro pessoas, e só que esta história não foi muito divulgada. Embora, quando a gente foi fazer um pouco o resgate desta história,73 aí contactamos os moradores que têm netos aqui no CMEI. O trabalho de atendimento surgiu muito antes. A prova disto é que eu estudei aqu. Fazendo as contas, a gente percebe que começou antes. O trabalho de atendimento na Ilha das Caieiras foi bem antes. O nome Magnólia foi em homenagem a uma professora que trabalhava no Magnólia, que morava no centro da cidade e que vinha de cavalo, vinha de barco para dar aula na Ilha das Caieiras. A história da educação na Ilha das Caieiras começa bem antes do que o CMEI Magnólia inclusive. Dava aula em algumas casas. Hoje, se você for fazer uma pesquisa da região de São Pedro, da Ilha das Caieiras, vai ver que tem umas cinco professoras morando na Ilha das caieiras.
Pesquisador Essa foi a primeira creche da região?
José Rodrigues Na região de São Pedro foi a primeira, na Grande Vitória foi a segunda. Da Prefeitura também é a primeira. O padre Geovani era o Cantinho da Amizade. Quando surgiu o cantinho da amizade essa creche aqui já existia. Talvez seja em torno disso que existe o conflito. A história de São Pedro e as lideranças que construíram essa história, talvez até por um pouco de individualismo, não querem misturar a história de São Pedro com da Ilha das Caieiras e com o Bairro Condusa. Creche da ilha das caieiras, ela foi a primeira unidade de ensino mantida pelo poder público, atendia quem? Ilha das caieiras e Condusa. O bairro Condusa foi o segundo bairro de São Pedro. Na década de 80, a Prefeitura já estava aqui há muito tempo não tinha mais convênio.
Essas três histórias (Cleide, tia Laura e José Rodrigues) se entrelaçam e
apresentam elementos que merecerem aprofundamentos a partir de outras
narrativas para que assim possa se constituir essa história do início do atendimento
educacional a crianças da educação infantil na região de São Pedro. Nosso objetivo,
73
Esse resgate foi feito com as turmas de pré como parte de um projeto institucional que visava a resgatar a
história do Centro Municipal de Educação Infantil Magnólia Dias Miranda Cunha.
ao selecionar essas três narrativas, é evidenciar o quanto essas falas narradas no
cotidiano dos CMEIs, podem contribuir para a constituição da história.
Destacam-se, nessas três narrativas, as marcas históricas que são impressas a
cada fato revelado, a cada personagem convidado a participar, a cada experiência
lembrada, de maneira que nos permitem afirmar que São Pedro tem uma história
que se confunde ou se funde com a história da educação, pois os principais
elementos se encontram presentes, educação como luta política e educação como
prática de liberdade. São Pedro é um lugar em que se fazem presentes as lutas
políticas e as lutas sociais em torno de direitos básicos, como saúde, educação,
saneamento. Também em São Pedro há um forte recorte de gênero presente nas
lutas sociais e, nesse aspecto, destaca-se a presença feminina como uma ícone
dessa luta.
Nas três histórias, aparece, como pano de fundo, também a luta para conseguir se
formar-se/constituir-se professora/educadora.74 A tia Laura mesmo lembra que não
conseguiu fazer curso para ser professora, mas, de alguma forma, o fato de suas
seis filhas fazerem a opção pelo magistério sinaliza que sua incapacidade de se
formar professora, na verdade, revela uma contingência do contexto sócio-histórico
ao qual esteve submetida por boa parte de sua vida.
3.3.4 Quarta dimensão: a formação em contexto tem que ser o texto da
formação continuada
Por que a referência a contexto de formação? Por que a insistência na escola como
lócus privilegiado para a formação? Por que aparece de forma contundente, nas
narrativas das professoras, esse ceticismo em torno das proposições de formação
descoladas do contexto escolar? Por que as professoras insistem em sublinhar que
a teoria na prática é outra? Do que os professores estão falando? O que suas falas,
74 A tia Laura fez questão de em sua narrativa se autoafirmar como educadora. Ela contou-nos que nunca conseguiu concluir os estudos (terminar o ensino médio). Esse fato, inclusive, trouxe problemas na hora de se aposentar, pois a Prefeitura reconhecia o trabalho que ela desempenhou de maneira informal na comunidade como professora/diretora, porém não conseguia fazer seu enquadramento funcional para efeito de aposentadoria. Ela, então, afirmava não ser professora como suas filhas, mas era educadora, pois a maioria das crianças da comunidade já havia passado pelas suas mãos.
suas histórias revelam? Por que insistem em dizer que fazem do seu jeito, e não do
jeito que foi prescrito? E o que significa esse fazer de seu jeito? Há um jeito singular
próprio de fazer ou é possível pensar em um jeito modelar de fazer? Cada professor
de educação infantil, em cada sala em cada CMEI, poderia desenvolver sua prática
pedagógica de uma mesma forma? Há uma formação inicial e continuada que dê
conta de formatar um jeito único de fazer? Ou cada um faz de seu jeito e do jeito que
dá para fazer?
Essas questões em torno da formação aparecem o tempo todo nas narrativas dos
professores e nos provocam a pensar, que: quando os professores afirmam que
fazem do seu jeito, à primeira vista, pareça ser um particularismo no fazer,
entretanto, com o tempo, fomos percebendo que os professores estão falando de
um lugar sócio-historicamente construído que, por questões contingenciais, muitas
acabam fazendo o que dá para fazer e não aquilo em que acreditam, e mesmo
querem fazer. Essas contingências são expressas nas referências que fazem às
condições nas quais são desafiadas a desenvolver sua prática pedagógica; uma
turma com 30 e 40 alunos de quatro, cinco e seis anos, quando, na verdade, deveria
ter no máximo 25; uma jornada de trabalho de 12 horas diárias, quando deveriam
ser no máximo de oito horas, enfim, essas condições têm uma relação muito
próxima com a forma como as professoras conseguem dar conta de suas aulas.
Mas é importante frisar que, em momento nenhum, percebemos que os professores
abdicam de estar ali, em frente à turma, tentando encontrar alternativas para
conseguir dar conta de sua prática pedagógica, por meio de um fazer e de um saber.
É um fazer que não é puro ativismo e também não é pura teoria, constitui-se em um
interregno entre fazer e saber, remetendo, mais uma vez, ao coengendramento
característico que envolve a práxis humana. Ou seja, o professor, em sua prática
pedagógica, o tempo todo vive a tensão entre um fazer que se multiplica, se
pluraliza e se singulariza, mas, paradoxalmente, esse mesmo fazer, em alguns
momentos, vocaciona-se a se sistematizar e a se homogeneizar. Portanto, fazer do
seu jeito é uma forma de dizer: é do jeito que dá para fazer.
Nesse sentido, a formação em contexto busca superar uma perspectiva de formação
associada ao treinamento de habilidades e competências, à reciclagem de métodos
e técnicas, à atualização de conhecimentos e informações ou mesmo à qualificação
cartorial, certificatória,75 que objetiva imprimir em cada professor uma espécie de
selo de qualidade com o qual se procura criar uma distinção artificial entre os
professores qualificados e os professores não qualificados. A formação continuada
ou permanente está para além de uma ação pontual ou para além de uma
instrumentalização técnico-formal do professor.
Nas narrativas das professoras, o que aparece como desafios e como questões
problemáticas a serem enfrentadas não são as questões relacionadas com os
conteúdos a serem ensinados, nem são questões vinculadas à utilização de
metodologias-técnicas a serem empregadas.
No grupo de discussão, uma professora narrou uma experiência de formação que
ilustra bem esse deslocamento em torno da construção de uma perspectiva
diferenciada de formação continuada do professor não focada unicamente no não-
saber do professor. Após apresentarmos algumas das percepções sobre as
narrativas das professoras, a palavra foi franqueada para que elas pudessem
expressar, de forma espontânea, sua percepção sobre as possibilidades de
investimentos em processos de formação. A professora Lilian se posiciona da
seguinte forma:
Assim eu trabalhei num lugar logo que eu comecei com 17 anos no interior, e foi assim até que hoje eu defendo essa teoria que a minha Secretaria usava com a gente. Eles iam à escola e davam um teste para o aluno para ver se eu estava dando todo o conhecimento que eles pediam, aí deram lá testes para meus alunos e meus alunos não tinham nem ideia do que era fração, aí a Secretaria me chamou e disse: ‘O que está acontecendo?’. Eu respondi: ‘Não sei!’. Aí, quando chegaram às minhas férias, eles me encaminharam: ‘Então, nas suas férias, você vai passar uma semana estudando fração com uma equipe’. Eu gostei, porque eu queria aprender. A gente se sente culpada por não conseguir ensinar aos alunos. Olha, o curso foi ótimo, adorei uma equipe do Rio de Janeiro que foi lá em Rondônia. Era um curso para a gente mais tudo com música, música muito legal mesmo. Aprendi um monte de coisa. Aí, no outro ano, quando eles foram lá para dar os testes aos meus alunos e eles estavam feras, porque tudo que eu aprendi eu passei para eles, então eu acho que a formação para mim deveria ser assim. Eu preciso saber o que eu tenho que dar para meus alunos. Não sei como no caso, assim, a educação infantil aplicaria um teste para ver se eu estou conseguindo passar todos os conteúdos necessários para as crianças se desenvolver e aí os alunos que estão em dificuldades é porque eu estou. Eu acredito nisso, os alunos não estão conseguindo aprender porque eu não sei, nem estou sabendo o conteúdo aí faria uma formação específica na área que eu estou com dificuldade (LILIAN, professora).
75 Tal qual a atividade de cartório, os cursos fazem apenas chancelar, “autorizar”, o exercício profissional sem se preocupar com a qualidade dessa formação. Tal prática, muito comum no processo de formação, submete a formação do professor à lógica do mercado.
Fica evidenciada uma compreensão da formação a partir de uma perspectiva
salvacionista: uma professora do interior, em apuros didático-pedagógicos, socorrida
por um especialista que vem da Capital para oferecer o saber pronto para
solucionar os problemas da prática pedagógica. Como a narrativa da professora
Lilian de certa forma caricaturou uma modelagem de formação clássica, insistimos
em perguntar sua condição atual como professora atuando na educação infantil.
Textualmente, a questão que lhe fizemos foi: Mas, professora Lílian, você acredita
que hoje você tenha a formação adequada para atuar com os alunos?
A sequência de sua narrativa revela a complexidade e as contradições que
envolvem os processos de formação continuada e mais, expõe a necessidade de se
pensar em processos de formação articulados a contextos de inserção da prática
concreta.
Não, hoje eu tenho, ainda mais que eu já fiz graduação e pós-graduação, mas eu ainda sinto muita dificuldade nessa questão que você mesmo abordou. Agorinha mesmo, a questão do afeto do aluno que te cobra, te segura e quer, e têm os outros querendo a atenção e você precisa está passando. Eu sinto dificuldade nessas questões, como atender, dá um ensino de qualidade para 20 alunos, não deixar ninguém de lado. O que passar para eles eu sei; o que eu não estou conseguindo é como passar para todos e auxiliar todos a se desenvolver integralmente (LILIAN, professora). Evidencia-se que os desafios que estão colocados na prática pedagógica, na
sociedade atual, requerem um profissional mais sofisticado, que seja capaz não só
de operar sistematicamente conteúdos e métodos de ensino, mas também capaz de
interagir em ambientes de aprendizagem. No caso em questão, o da professora
Lilian, não se trata mais de saber o que os alunos não sabem, mesmo porque ela
mesma se questiona: mas não sei como seria na educação infantil (o que um aluno
de dois anos deve saber em termos de conteúdos?). Também não se trata
unicamente de saber o que o professor não sabe para assim fazer ele saber por
meio de cursos e capacitações. A professora Lilian então diz: “O que passar para
eles eu sei; o que eu não estou conseguindo é como passar para todos e auxiliar
todos a se desenvolver integralmente”.
No contexto atual, as questões referentes aos conteúdos (conceituais,
procedimentais e atitudinais) aparecem como um pano de fundo, mas não estão no
primeiro plano, ou seja, as professoras falam de dificuldades de lidar com a dinâmica
da sala da aula, a heterogeneidade das turmas, a singularidade das práticas.
Queixam-se de como os conteúdos socioculturais (violência, agressividade, falta de
limites, falta de afeto, indisciplina, etc.) que povoam as salas de aula as
desestabilizam e colocam muitas vezes as teorias de suporte ou as âncoras
didático-pedagogicas que levam para a sala de aula em transe. Uma turma de
alunos-crianças de cinco e seis anos, com crianças com os mais diferentes
interesses, algumas vindas de famílias “desestruturadas”, com conteúdos culturais
diferenciados, algumas com déficits sociais por serem negras, ou por serem de
baixa renda, ou por terem pai e mãe alcoólatras. Essas crianças parecem desafiar
as teorias, parecem colocar os saberes e fazeres do professores permanentemente
em suspensão:
[...] se for para ver tanto que a gente faz, não é mole, não. Ter que pegar 25 crianças, às vezes quase 40, e trabalhar com eles no dia-a-dia, um por um, ou em grupos, ou um todo, é cansativo, são várias cabecinhas diferentes, são várias famílias, situações diferentes, algumas até em situação de risco, fácil, não (ROSA, professora).
Quando as professoras falam da dificuldade que encontram em lidar com a
complexidade do cotidiano, essa questão aparece associada à problemática da
aplicação ou usos das teorias de suporte que supostamente deveriam auxiliá-las em
seu fazer pedagógico. A teoria sócio-histórica de Vygotsky, a teoria psicogenética de
Piaget, a própria psicogênese da língua escrita de Emilia Ferreiro, quando descem
ou “baixam na sala de aula”, não encontram uma correlação fácil, pois não há
teorização fácil sobre o cotidiano, não há resposta pronta para lidar com o cotidiano,
não há acabamentos para lidar com a pluralidade e a diversidade do cotidiano; o que
há são possibilidades. Então, a formação em contexto tem como desafio não se
resumir à oferta de cursos, whorkshop, oficinas e palestras distantes, descoladas e
descontextualizadas do coletivo escolar e do projeto pedagógico. É preciso pensar
em outras perspectivas. É preciso construir propostas que considerem esses
contextos, que partam desses contextos, que retornem a esses contextos e que se
proponham a viver esse contexto.
Assim, a formação em contexto tem que se configurar no próprio texto da formação,
ou seja, sugere-se uma inversão das setas que historicamente orientaram o
desenvolvimento das políticas educacionais e também as políticas de formação dos
professores, em vez de uma seta única, do alto a baixo, do norte a sul do sistema
para a escola (da SEME para ESCOLA), que se possa pensar em uma via de mão
dupla onde não haja um centro distribuidor das propostas, mas haja multicentros ou
diferentes referencialidades ou diferentes setas, que vão de baixo a cima, de cima
abaixo, de um lado para o outro, permitindo, assim, que, dessas multirreferências,
possam se encontrar as alternativas necessárias e possíveis para se desenvolver
propostas, projeto e programas de formação.
O texto da formação, nesse sentido, necessariamente, tem que ser um hipertexto,
um multitexto, um contexto, em que cada professor possa se encontrar e possa se
encantar com essas multiplicidades de experiências produzidas no cotidiano das
escolas e, assim, possam, do contato com esses diversos textos e contextos,
encontrar pretextos para continuar se formando permanentemente em um
investimento pessoal e profissional, individual e coletivo.
.
6.3.5 Quinta dimensão: o saber da experiência produz um professor mais
experiente
O saber da experiência de que nos fala Larossa (2002) amplifica nosso próprio
saber, retroalimentando-nos e nos tornando mais disponíveis para novas-outras
experiências. Para Larossa (2002), a experiência não se encerra no espaço-tempo
do acontecimento; ela traz consigo todo o tempo anterior “preparação” como
também se prolonga na continuidade e nos seus desdobramentos. Logo, um
acontecimento vivenciado por uma professora no decurso de sua carreira pode ter
exercido, continuar exercendo e ainda exercer influências em sua maneira de
constituir (ser) professora ao longo de sua vida. A experiência marca e significa a
existência.
Um professor experiente, no sentido que atribui Larossa (2002), não
necessariamente, é um professor velho de profissão, mas também pode sê-lo. O
professor experiente é aquele que se abre à experiência docente, podendo
perceber, em alta intensidade, tudo que passa, tudo que o toca, tudo que lhe
acontece, tudo que mexe com ele, tudo que o provoca, tudo que o convida à
docência.
Nessa perspectiva, fomos buscando nas narrativas algumas das experiências que
significam e/ou ressignificam o percurso pessoal e profissional das professoras.
Nessa busca, não podemos deixar de lembrar um relato emocionante, não gravado,
feito pela professora Cristina.
Estávamos em uma atividade de formação continuada.76 A temática proposta pelo
CTA era a construção do Projeto Político-Pedagógico do Centro Municipal de
Educação Infantil. A estratégia adotada foi uma breve exposição de conceitos-chave
usando como recursos o data-show. Após essa explanação, foram divididos grupos
identificados por cores, e cada grupo de professores e funcionários foi convidado a
fazer uma dramatização/encenação de situações do cotidiano: período de adaptação
das crianças, entrada das crianças na escola, relação com as famílias, horário de
pátio, reuniões de pais, hora do recreio, etc.
A ideia era possibilitar a cada grupo colocar em sua representação cênica a
percepção que eles tinham de cada detalhe do cotidiano da escola, entendendo que
das diversas representações se abstrairia a concepção de educação infantil que
expressa o Projeto Político-Pedagógico do centro municipal de educação infantil. O
resultado foi bastante rico, pois os professores foram, aos poucos, se descontraindo
com as imagens e representações criadas em torno das figuras mais caricatas da
escola. Assim, todos se envolveram com a representação da diretora, com a
representação da auxiliar de serviços gerais e com a representação de algumas
mães.
O trabalho estava bastante rico. Na representação do cotidiano da sala de aula, a
professora Cristina, de forma espontânea, compartilhou um depoimento bastante
emocionante. Ela narrou como travou uma luta pessoal/profissional com um aluno
de Jardim I que, durante o período inicial, “adaptação”, a havia desestabilizado ou,
em suas próprias palavras, “colocou minha capacidade profissional em teste”. Ela
então, relata:
76 Essa atividade era uma das sete previstas no calendário escolar quando se trabalhava com temáticas escolhidas pelo coletivo escolar. Nesse dia, a escola parava, ou seja, não havia atendimento às crianças. Algumas escolas reuniam os professores dos dois turnos em um único momento para desenvolver a atividade de formação continuada.
Eu não sabia o que fazer com esse aluno. Em meus quase 25 anos de trabalho, nunca tinha me sentido tão incapaz de superar um problema com aluno em sala de aula.
Ela disse que o aluno chorava o tempo todo, da hora em que chegava até a hora de
ir embora. Já havia passado mais de quatro semanas e o aluno não parava de
chorar. Ela já havia feito tudo, inclusive conversado com a mãe.
___ Eu, ao final do dia, chorava. Fui para casa e chorei sem saber o que poderia fazer mais por aquele aluno.
Seu depoimento surpreendeu a todos, pois se tratava de uma professora
considerada pelo grupo uma boa professora, uma professora dita experiente.
Eu sabia que tinha que fazer algo também por mim. Não admitia que não pudesse dar conta do caso deste aluno.
A professora Cristina, então, relatou que, depois de várias investidas, conseguiu
contornar o problema. A maneira encontrada foi aproximar-se mais do aluno
tentando compreendê-lo para além do contexto escolar. Ela exclamou, então:
Eu aprendi muito com esse aluno, hoje sou uma professora melhor, superei algo que a princípio pareceu-me insuperável.
A experiência tem essa dimensão formativa importante e a narrativa potencializa no
coletivo a reflexão. Não estava prevista essa participação espontânea da professora,
revelando-se, expondo-se como texto para ser lido e interpretado pelo coletivo. Não
se tratou, por parte da professora Cristina, de uma tentativa de se posicionar, de se
impor, de se opor ou mesmo de propor uma maneira certa “competente” de resolver
problemas de crianças, como choro excessivo no período de adaptação.77 Mais uma
vez, ressaltamos o desejo de expor-se como um texto para ser lido-interpretado pelo
grupo, para que dessa exposição possam surgir múltiplas e diferenciadas posições e
percepções.
77 Destacamos aqui que o relato espontâneo se diferencia da perspectiva de modelagem da prática pedagógica, muito comum nas atividades de formação. Em muitos programas, lança-se mão dos relatos de experiências para que os professores que estão ouvindo possam aprender como proceder. A mensagem é sempre a mesma: se essa professora, como vocês, com todos os problemas, conseguiu fazer, deu certo, vocês também podem conseguir. É só querer, o que evidenciava uma perspectiva individualista da formação.
A forma de narrar no coletivo, como fez a professora Cristina, remete à perspectiva
benjaminiana, pois é justamente nesse interregno discursivo em que a narrativa é
produzida que está a vitalidade e seu poder, a partir de um coletivo escolar
organizado, no caso em questão, para discutir a construção do projeto-político
pedagógico. Os espaços-tempos foram pensados e organizados para que, assim,
fossem utilizados, mas a vida subverte as lógicas e, de forma espontânea, o desejo
de compartilhar, de socializar, de expor, de compor o coletivo sempre aparece na
forma de uma expressão muito característica, quando os professores estão reunidos
em tornos de questões que envolvem suas práticas pedagógicas:
___ Na minha sala tem um aluno que...
___ Comigo aconteceu algo muito parecido...
Essas expressões, assim como a expressão clássica dos contadores de escolas
“Era uma vez”, tem a virtude de abrir um veio condutor que permite aos professores
inundar os programas/projetos de formação continuada de histórias coletivas
produzidas simultaneamente ao processo de produção da experiência de constituir-
se professora. Cabe ressaltar que, é nas abordagens clássicas de formação de
professores que os espaços-tempos organizados acabam colonizados pelos
conhecimentos ditos científicos, sobrando pouco ou quase nenhum espaço-tempo
para que o professor narre suas experiências, provocando um compartilhamento de
seus saberes/fazeres.
Assim, cabe a crítica larrosiana ao excesso de informação, ao excesso de opinião,
ao excesso de trabalho e à falta de tempo característicos da Modernidade.
Percebemos que, quando os professores insistem em trazer à cena os cotidianos
vividos, falta tempo, “não se pode fugir do assunto”, tem que ser mais
objetivo,sucinto nas colocações. Essa contradição presente nos processos de
formação revela que esses espaços-tempos ainda se configuram mais como lugar a
defender do que lugares de compartilhar, ou seja, parte de premissas dadas a priori,
organizadas a partir de um final imaginado, reservando aos professores poucos
espaços para narrar suas histórias.
Pensando no cotidiano da escola e nas possibilidades de seu coletivo se constituir
como uma comunidade compartilhada de conhecimentos ou mesmo uma
comunidade plural, faz-se necessário refletir sobre alguns obstáculos para o
estabelecimento dessas redes de saberes e fazeres e para a circulação desses
saberes-fazeres nos espaços-tempos. Como tentamos demonstrar nas narrativas,
há movimentos que caminham para a constituição das redes que, em nosso
entendimento, são movimentos que precisam ser visibilizados e potencializados para
que eles possam, por meio desses fluxos instituintes, constituir práticas alternativas
de formação com os professores.
Em relação aos obstáculos à constituição das redes de saberes e fazeres nos
cotidianos, podemos identificar que a experiência, como possibilidade de
constituição dessas redes cotidianas de saber e fazer, torna-se uma impossibilidade
por conta do que Larrosa (2002) pontua como três excessos e uma falta. É
importante destacar que a teorização larrosiana, a partir da hermenêutica do sujeito
da experiência,78 busca atribuir uma autonomização, em seu processo formativo, de
maneira que toda formação remete a processos de singularização, o que
impossibilita de imediato uma captura, uma sistematização e uma modelagem,
cabendo, simplesmente, a aceitação desses processos de diferenciação, de maneira
que cada professora empreende percursos próprios e singulares, mesmo quando
vinculados a um contexto coletivo.
O primeiro excesso a que faz referência Larrosa (2002) é o de informação.
Paradoxalmente, vivemos na sociedade do conhecimento, sociedade tecnológica ou
sociedade da informação, mas, se informação é o princípio do conhecimento, a
hipertrofia da informação se traduz na incapacidade de produção do conhecimento
e, consequentemente, da experiência com o conhecimento. Então, uma sociedade
78 “O sujeito da experiência não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer [...] . O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos [...] o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar [...] o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2002, p. 5).
hipertrofiada pela informação é uma sociedade atrofiada de experiência. A
velocidade e a superficialidade com que a informação é veiculada nos diferentes
meios de comunicação (internet, televisão, radio, revistas) não permitem que a
experiência aconteça. Esse fato também é evidenciado por Guy Debord (2006).
No âmbito específico dos processos de formação, observa-se como, na sociedade
em geral, constata-se uma voga informativa sobre a consigna de que se informar
também é se formar. Assim, percebemos, na atualidade, uma busca frenética por
(in)formação. São cursos e mais cursos subsumidos a abordagens superficiais,
abordagens informacionais, acreditando que a informação por si só opera a
formação. Morin (2000), contra tal perspectiva, ressalta que “[...] mais vale uma
cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia (de informação)”. Evidencia-se que
não é quantidade da informação que garantirá a qualidade da formação.
A experiência de sentido que o conhecimento tem para cada sujeito individual é tão
importante quanto o sentido dessa formação. O excesso de informação, por outras
vias, produz a escassez da formação ou uma antiformação, pela impossibilidade de
se experienciar. Essa critica é amplamente feita às políticas de certificação
implementadas no Brasil, sobretudo a partir da década de 90, que, em um processo
de macdonaldização da formação,79 tomaram a formação muito mais como um
portfólio e/ou cardápio a la carte de informações do que como uma dieta ou uma
composição nutri-intelectual de conhecimento, ou seja, a cardapialização da
formação ou macdonaldização remete ao segundo excesso, à falta de tempo,
porque não há tempo! Nas narrativas, as professoras revelam que tudo precisa ser
resumido, subsumido, comprimido, de maneira que “se virar nos trinta”, expressão
emblemática que tem atravessado todo o nosso trabalho, é o corolário da lógica
presente nesses processos de (in)formação que reduzem a experiência a um
experimentar a um aperitivo intelectual.
79 Tomo emprestado esse termo de Gentilli (1995), quando faz a crítica às formas como o pensamento neoliberal se apresenta na educação, com a lógica do fast food, desconsiderando suas determinações histórico-sociais. Nos processos de formação continuada, a macdonaldização se expressa nos programas e projetos que trazem, em seu conjunto de ações, um aligeiramento da formação, não levando em considerações as múltiplas dimensões da formação docente.
O segundo excesso que, de certa forma, tem relação com o primeiro e com o
terceiro é o excesso de opinião. Paradoxalmente, na sociedade dos especialistas,
onde se encontram soluções para tudo, a opinião se evidencia como a grande
vedete que alinha, delineia, sustenta e ostenta os pacotes e projetos educacionais. A
opinião é contrária à ideia de experiência, e a opinião também é contrária a
possibilidade do desenvolvimento do conhecimento. O excesso de opinião é a
expressão de uma ansiedade produzida pelo excesso de informação, de maneira
que aprendemos a opinar sobre tudo, a ter respostas prontas para todas as
questões, uma sensação de que sabemos tudo sobre tudo, uma sensação de nos
bastar a nós mesmos. Tal ascensão da opinião se dá pelo acesso rápido à
informação. Um sujeito moderno pode, ilusoriamente, ter a sensação de que é um
sujeito bem formado. O contato com os jornais, com as revistas, tudo isso produz
uma falsa sensação de uma formação sólida, então o excesso de opinião por outras
vias nos coloca como sujeito envolvido por tudo e em tudo, mas que não nos
envolvemos em nada.
O terceiro excesso é o excesso de trabalho. Nesse aspecto, Larossa (2002) faz uma
distinção importante entre trabalho e experiência. O trabalho em si não produz a
experiência. Na sociedade moderna, aprendemos a organizar nossas vidas em torno
do trabalho, chegando mesmo a constituir doenças relativas a essa nossa obsessão
pelo trabalho workaholic,80 caracterizadas pelo excesso de trabalho.
O trabalho, na sociedade moderna, tem ocupado a centralidade de nossas vidas.
Nas narrativas, observamos esse excesso de trabalho como um elemento inibidor da
experiência. As professoras revelam a incidência de jornada dupla e tripla de
maneira que é muito comum elas resumirem sua atividade de vida à atividade de
trabalho. Estão o tempo todo a trabalho ou no trabalho. Segundo Larrosa (2002),
essa obstinação pelo trabalho tem por trás o desejo do homem moderno de ter o
80 Workaholic é uma expressão americana que teve origem na palavra alcoholic (alcoólatra). Serve para designar uma pessoa viciada em trabalho. As pessoas viciadas em trabalho sempre existiram, no entanto, essa última década acentuou sua existência motivada pela alta competitividade, vaidade, ganância, necessidade de sobrevivência ou, ainda, alguma necessidade pessoal de provar algo a alguém ou a si mesmo(a).
domínio do outro, de si próprio e da natureza. A atividade ou hiperatividade subtrai o
tempo que a experiência precisa para acontecer, ou seja, o excesso de trabalho
torna-se uma antiexperiência. Nesse sentido, anos de trabalho não se traduzem em
experiência. Assim, podemos encontrar professores com muitos anos de trabalho,
mas incapazes de se expor a uma experiência significativa. Em muitos aspectos,
perderam a condição de ser tocados, mexidos, envolvidos, assim, executam a
docência como operação técnico-metodológica, tal qual um operário em uma linha
de montagem.
O trabalho, nesse sentido, não estabelece relação direta com a experiência, apesar
de também poder se transformar em experiência. Larrosa (2002), a partir da crítica a
esse excesso de trabalho e a pouca experiência, abre espaço para falar da falta de
tempo que, de certa forma, tem íntima ligação com esse excesso de tempo que
dedicamos ao trabalho. Então, a falta de tempo se traduz, em nossa condição
moderna, a pouca disponibilidade para o outro, para o encontro, para o
acontecimento, para a celebração, o que impossibilita a constituição de uma
comunidade. Nas narrativas, a falta de tempo é sintetizada na expressão que
aparece recortando todo o nosso texto, “se vira nos trinta”.
A partir da compreensão e do entendimento de que a sociedade moderna se
estrutura tendo como premissas básicas esses três excessos e uma falta, Larrosa
(2002) propõe como alternativa a possibilidade de constituição e formação do sujeito
da experiência. Primeiro, não tomar a experiência como trabalho. Experiência não
como sinônimo de trabalho ou como evento, não como aquilo que passa, mas que
nos passa; não como aquilo que acontece, mas aquilo que nos acontece; não como
aquilo que forma, mas aquilo que nos forma. Nesse sentido, a experiência
pressupõe um envolvimento. A compreensão do sentido da experiência nos ajuda a
entender o porquê de tanto investimento em informação e pouco envolvimento com
a formação, ou seja, a hipótese que nos ocorre pensar é que o que há é uma
acumulação de cursos que mais informam do que formam o professor.
6.3.6 Sexta dimensão: toda formação remete a redes cotidianas cujos fios e
nós dão sustentação à prática pedagógica
Essa dimensão é amplamente evidenciada pelos professores em suas narrativas.
Quase sempre, os professores manifestam a necessidade de a formação ser
concebida como investimento longitudinal articulado ao tecido educacional, ou seja,
uma atividade de envolvimento coletivo construída pelos professores, e com os
professores, o que remete a pensar que todo investimento em proposta de formação
continuada não pode deixar de considerar as redes cotidianas de formação que são
tecidas nas escolas, e a compreensão dessas redes exige um mergulho nesses
processos que acontecem de maneira intermitente.
Nas narrativas, as professoras revelam que, no cotidiano, mais importante do que
produzir um saber-fazer individualizado, circunscrito ao âmbito da sala de aula, é
produzir um saber que se diferencia, que se pluraliza, que se fertiliza e que se
singulariza nas múltiplas práticas pedagógicas. O tempo todo, de diversas formas e
também com diversas modulações, as professoras expressam que mais importante
do que fazer é fazer com, fazer com o colega fazer com os alunos, fazer com a
participação da família, fazer com múltiplas interfaces com a comunidade. Enfim
fazer para aumentar o saber fazer (PEREZ, 2001).
A formação com as professoras não suporta uma abordagem modelar. Em suas
narrativas, quando expressam de maneira recorrente que já estão céticas quanto à
possibilidade de uma formação atender às demandas da prática, por outras vias, as
professoras estão sugerindo que há uma necessidade urgente e latente de produzir
um saber encarnado, um saber que deriva desse fazer cotidiano, que não seja
unicamente subsidiado por uma teoria de suporte, mas um saber-fazer que suporte
uma teoria e que transporte essa teoria para um outro patamar de compreensão do
cotidiano. Ainda que a professora entre em sua prática, interaja com ela, investida
em uma teoria, ela jamais sairá desse contexto de inserção da prática pedagógica
da mesma forma como iniciou. Tanto o professor está sujeito às mudanças, como a
própria teoria em movimento é transformada ou, na expressão das próprias
professoras, “a teoria adaptada, é ajeitada, é transformada, é modificada”, pelos
usos (CERTEAU, 2000) que são feitos pelos diversos praticantes.
Entendemos que, para além de uma metateoria, há uma teoria imetódica, ou uma
teoria mais aberta, mais permeável às sutis e necessárias transformações inerentes
ao cotidiano. Santos (2006), a partir da crítica à razão indolente nas suas quatro
formas de manifestação, quais sejam: a razão arrogante, a razão metonímica, a
razão proléptica e a razão impotente, deixa claro que, mais do que saber, é preciso
reconhecer. Então, uma racionalização ou uma outra perspectiva de racionalização
das práticas pedagógicas e, consequentemente, dos processos de formação
continuada dos professores precisam incluir a dimensão do forma com, para que,
assim, possa haver a heterologia dialógica. Então, a dimensão da formação com o
professor, para além de uma formação entre os professores, pressupõe uma
perspectiva emancipatória e uma perspectiva ético-política em que a questão
central não é apenas uma horizontalização fácil, mas um processo de auto, hetero, e
coformação produzido a partir, no e com o cotidiano das escolas.
Cumpre destacar, também, que, além de estar ligada a um coletivo institucional, a
prática de professor estabelece ligação com um projeto individual. Na narrativa, as
professoras deixam claro, de forma explícita, que o comprometimento pessoal do
professor revela seu compromisso político com sua prática. Como ressalta Rangel
(2003), o professor faz política no limite de sua prática.
Mas a ausência de um projeto coletivo, não apenas do professor, mas, sobretudo,
da escola incorre na criação de guetos didático-pedagógicos. Esses guetos tornam-
se lugares/ilhas de resistência e/ou desistência, a favor/contra uma construção
coletiva. Ainda que sejamos professores individualmente exercendo nossa prática,
somente nos sustentamos na coletividade.
A face mais perversa do processo de individualismo revela-se na perda dos
referenciais, o que remete ao reforço do pedagocentrismo e do didaticentrismo, em
que cada professor, individualmente, no interior de sua sala, fechado na sua
concepção própria, inventa uma prática desconectada do coletivo, que se reflete nas
narrativas, quando revelam que “sobrevivem a cada dia fazendo do seu jeito”. Em
nossa vivência no cotidiano das escolas, percebemos que os espaços-tempos
escolares comportam uma dinâmica que, em muitas ocasiões, produz um tipo de
professor que, individualmente, dá conta do recado na sua sala de aula, mas,
coletivamente não produz a escola.
Mas o individualismo ou o fechamento a um didaticentrismo e pedagogicentrismo no
qual muitas escolas e, consequentemente, os professores, muitas vezes encontram-
se envolvidos, pode significar um impedimento à possibilidade de constituição de
uma coletivo articulado no cotidiano da escola, ou seja, se o projeto coletivo se
expressa como um desejo e uma vontade, sua realização somente poderá se
efetivar por meio de negociações no interior dessa própria coletividade, ou seja, não
há soluções fáceis produzidas de longe e de fora para as escolas e para os
professores
No cotidiano, cada professora é enredada por fios e nós que dão sustentação à sua
prática pedagógica. Essa dimensão é exemplificada por um das narrativas das
professoras:
Eu sou daquela que eu observo muito as coisas, onde eu vou, o que eu estou ouvindo. Então, por exemplo, eu não via muito o contato de professor com professor, para saber o que o outra está trabalhando, o que ele está passando, para você saber também como você pode melhorar, para que, quando a criança vir, eu possa dar continuidade, então eu já percebi em curso a necessidade de estar trocando com os outros profissionais e, dentro da escola, para estar aproveitando (ROSA, professora).
Fica evidenciado, nas narrativas, que toda professora realiza sua prática na
interdependência com as outras professoras. Na educação infantil, isso é
hiperdimensionado. Se, em outros níveis de ensino, a disciplinarização e a
especialização dos saberes é mais acentuada, na educação infantil, pela
especificidade do trabalho pedagógico do professor da educação infantil, as
barreiras disciplinares ainda não estão completamente erigidas, o que permite e
provoca os professores a, necessariamente, ter que trabalhar de forma integrada.
Considerando também a condição heterônoma das crianças da educação infantil,
na qual a necessidade do adulto é mais latente, coloca para o professor o desafio de
trabalhar com o colega, daí as professoras fazerem referência a esses momentos de
trocas de experiências nos planejamentos, nos horários de pátio.
Assim, por meio dessas redes, as professoras se permitem ressignificar, modificar
ou agregar à sua formação conhecimentos que até então não haviam incorporado
ao seu fazer pedagógico. A própria dinâmica do cotidiano sugere uma abertura para
essas possibilidades de modificação no fazer pedagógico, fato esse expresso nas
narrativas, quando as professoras afirmam que fazem de um determinado jeito e,
por intermédio da observação cuidadosa, consciente de uma colega de trabalho,
puderam redimensionar sua própria prática. Nessa dinâmica, sem um fluxo
predeterminado, sem um planejamento feito, sem um roteiro, sem uma
intencionalidade formativa, reside muito do que cada professor é no
desenvolvimento de sua prática pedagógica, ou seja, todo professor se constitui na
inter-relação com muitos outros professores, daí o entendimento de que não é
possível ser professor individualmente, circunscrito ao âmbito da sua prática
pedagógica. A prática pedagógica não resiste ao confinamento, ao seccionamento.
A prática tem vocação para a multiplicidade para a interatividade, para a
conectividade e para a transversalidade.
Azevedo (2003), a partir da compreensão das redes cotidianas que são produzidas
nos cotidianos das escolas, ressalta que todo espaço-tempo se constitui em
espaço-tempo de formação, seja por meio da relação com os outros professores,
seja por meio da relação com os alunos, seja por meio da relação com a
comunidade, seja por meio da relação que estabelece com os poderes instituídos.
Não há um platô formativo, mas, sim, um movimento formativo um processo
intermitente que se produz nas dobras do cotidiano.
A perspectiva do cotidiano assume a formação continuada como um processo de
enredamento ao qual os professores estão sujeitos e pelo qual são completamente
atravessados. Essas redes expressam na visão de Santos (2006), pelos contextos
de inserção social ao qual estamos envolvidos, seja o espaço doméstico, seja o
espaço do mercado, seja o espaço da comunidade, seja o espaço da cidadania e
espaço mundial, espaços-tempos quando são produzidas as subjetividades
imanentes ao processo de formação de cada sujeito. Nessa perspectiva, Nóvoa
(1991) ressalta a impossibilidade de se efetuar a separação entre a dimensão
pessoal e a dimensão profissional. Na pesquisa com o cotidiano, essa crítica se
acentua, pois, acredita-se na impossibilidade de dissecação dos diferentes espaços-
tempos nos quais nos formamos, ou seja, somos professores, alunos, pais, mães,
trabalhadores, homens, mulheres, gestores. Exercemos diferentes papéis em
diferentes espaços-tempos que, somados e misturados, produzem uma forma de
ser- estar singular.
Sendo assim, qualquer perspectiva de formação com os professores precisa
considerar essa multiplicidade à qual os professores estão o tempo todo sujeitos.
Outro aspecto a destacar é o cotidiano como lugar da tática, como lugar da
bricolagem, como lugar da reinvenção da fabricação da experiência de ser-estar
professor. Não é um espaço-tempo monolítico, mas é um espaço-tempo crivado de
contradições onde-quando se observa que ocupamos diferentes papéis.
6.3.7 Sétima dimensão: formação com os professores e não dos professores
É importante fazer uma distinção entre duas perspectivas de formação que
aparecem no desenvolvimento da tese e que, por sua proximidade, merecem um
tratamento específico. Quando falamos de formação com os professores, não nos
remetemos, necessariamente ou conclusivamente, a uma formação entre os
professores. É importante lembrar que a perspectiva que trabalha com o
reconhecimento dos saberes e fazeres dos professores no cotidiano das escolas
incorpora uma discussão já feita no âmbito do processo de formação docente que
sai de uma proposta estruturada, acabada de formação para uma formação não tão
verticalizada. Então, a “formação com” também não se resume a uma formação
entre os professores, abdicando, assim, de uma interação com aportes teóricos e/ou
outros lugares conceituais, externos ao cotidiano.
“Formar com” também pressupõe, como principio básico, a alteridade entre os
sujeitos envolvidos nos processos de formação. A questão é a horizontalização das
relações. Nessa perspectiva, cada um, individualmente, tem muito a contribuir nesse
processo de formação. Então, a formação com os professores não subsume ou
abdica da possibilidade de teorização, o que incorreria em um fechamento às
possibilidades de emancipação.
A discussão se amplia no sentido que temos que pensar a formação não descolada
das agências formadoras e muito menos dos debates acadêmicos. A proposição da
formação com os professores não abdica da perspectiva teórico-metodológica, ou
seja, a proposta não é que, no interior das escolas, cada professor, individualmente,
ou como coletivo escolar, se forme a partir de uma compreensão e de uma
entendimento circunscrito ao universo e ao âmbito da própria escola, sem dialogar e
sem interagir com a dimensão macro ou com as dimensões socioacadêmicas. O que
propomos com a defesa da formação com os professores aproxima-se do que
Santos (2006) sugere, o estabelecimento de uma inteligibilidade dialógica, ou uma
razoabilidade entre os diversos/diferentes âmbitos de produção de conhecimento,
escola, sistemas e academia.
A crítica à desarticulação dos diferentes âmbitos de formação do professor, já
amplamente evidenciada pelas pesquisas, destaca que, historicamente, o que se
observa no âmbito educacional e com um recorte também para a questão da
formação continuada é que a academia produz as teorias, os sistemas absorvem e
transformam essas teorias em programas/projetos ou políticas públicas, e ao
professor, no final da cadeia, cabe apenas a tarefa de executar essas teorias e dar
corpo aos projetos-programas. O que propomos na formação com os professores é
que esse fluxo histórico se configure como uma via de mão dupla ou mão múltipla
onde tanto a academia, como os sistemas e os próprios professores possam
estabelecer diálogos produtivos em torno das questões que afetam tanto os próprios
professores no cotidiano de sua prática, como também os sistemas e à academia.
Acreditamos que há uma possibilidade de ampliar a compreensão dos processos de
formação nos três âmbitos, a saber: dos professores no cotidiano das escolas,
porque podem, a partir do diálogo com a academia e com os sistemas, refletir sobre
suas condições docentes, sobre como eles podem estar envolvidos, como fazem
usos das diversas teorias e como são responsáveis ou corresponsáveis pelas
políticas educacionais. No caso dos sistemas, esse diálogo pode ser bastante
frutífero, quando os sistemas, a partir da escuta sensível das narrativas dos
professores, podem redimensionar suas propostas, seus projetos e programas,
incluindo nessas proposta e programas as demandas imanentes do cotidiano, dando
às propostas/projetos/programas um banho de realidade e, por fim, a própria
academia, nesse diálogo, nessa interação com os professores e com os sistemas,
pode abdicar ou suspender essa áurea cientificista e reconhecer que há mais coisas
entre a academia e a escola e os sistemas do que a vã razão indolente supõe.
Então, mais do que uma discussão semântica, a perspectiva de compreensão da
formação, não a partir de um enquadramento do “outro”, do “eles”, mas com os
professores, está mais direcionada para um projeto de emancipação. Nesse sentido,
mais do que uma formulação ou uma metaformulação em torno da formação
continuada do professor, o que propomos é construir alternativas de formação que
considerem e reconheçam as múltiplas formas e os múltiplos espaços-tempos que
se produzem ou que se constroem na formação continuada dos professores. Assim,
nem formação dos professores, nem formação entre os professores, mas formação
com os professores, pois os desafios da docência não são desafios individuais, e
muitos deles não têm soluções unicamente técnicas. É preciso investir em processos
de produção da docência no coletivo institucional, por meio do intercambiamento de
saberes e fazeres, tendo como lócus privilegiado o cotidiano das escolas.
CAPÍTULO VII
7 QUEM CONTA UM PONTO AUMENTA UM PONTO: CONTINUIDADES E
OUTROS MAIS ...
Nosso trabalho de pesquisa, como toda narrativa, traz embutido um convite a
novas/outras possibilidades narrativas, pois a intenção não foi produzir uma
formulação exaustiva e conclusiva sobre processos de formação continuada
vivenciados pelos professores no cotidiano dos cinco centros municipais de
educação infantil. Nesse sentido, não nos propomos, ao terminar o trabalho, a
elaborar uma conclusão, mas apontar alternativas no horizonte de possibilidades,
para que possa ser ampliado o debate e estabelecido o diálogo permanente entre as
diferentes instâncias que pensam, articulam, desenvolvem e avaliam as propostas
formação continuada com os professores.
Destacamos mais uma vez que nosso interesse nesta pesquisa foi tentar
compreender as lógicas presentes nas práticas pedagógicas vivenciadas pelas
professoras no cotidiano, sobretudo nos processos de formação continuada em
cinco centros municipais de educação infantil localizados na região de São Pedro.
Buscamos perceber como as professoras mobilizam e fazem usos dos saberes e
fazeres e produzem novos/outros saberes-fazeres. Por meio das narrativas que elas
produziram sobre suas experiências, juntamente com nossa percepção dos
movimentos e fluxos presentes no dia a dia da escola em torno da formação
continuada, procuramos demonstrar as táticas que as professoras utilizam para
oferecer alternativas às propostas oficiais, estabelecendo redes de formação que
acabam sendo marginais, mas que se mostram mais significativas para elas.
Santos (1997) sublinha, ao desenvolver suas teses sobre o conhecimento no
contexto da crise dos paradigmas, que todo conhecimento é autoconhecimento, todo
conhecimento é local e total, todo conhecimento é científico natural e social e todo
conhecimento visa a tornar-se senso comum. Nessa mesma direção, reconhecemos
que este trabalho também é uma incursão em nossa própria história, ou seja, uma
forma também de nos autonarrar. Muitas histórias descritas poderiam muito bem ser
autobiográficas, pois, como professor de educação infantil, tendo desenvolvido
nossa prática pedagógica nesses mesmos centros municipais de educação infantil,
acumulamos muitas histórias às quais recorremos, em vários momentos da
pesquisa, para compreender pontos específicos das narrativas das professoras e
também muitas histórias de professores com os quais trabalhamos que, de igual
maneira, nos auxiliaram a compreender nuances específicas nas histórias narradas
pelas professoras. Tais experiências nos ajudaram a desenvolver um conhecimento
mais envolvente sobre o processo de constituir-se professora.
Também reconhecemos que, para além de produzir um conhecimento
desencarnado, empreendemos a tarefa de produzir um saber-fazer que se propõe a
dialogar permanentemente com os contextos nos quais esses saberes-fazeres foram
produzidos, inclusive com um linguagem que permita a cada
leitor/professor/professoras se reconhecer nos textos produzidos. Nossa pretensão,
nesse aspecto particular, é que nosso trabalho se “sensocomunize” e que os
professores possam utilizar esse saber para aumentar seu fazer.
Nosso estudo não teve a pretensão de estabelecer um patamar propositivo único.
Esse não é o caso, mesmo porque um dos elementos que mais ficou evidenciado na
pesquisa foi justamente a impossibilidade de se estabelecer uma lógica única, um
porto seguro epistemológico ou um patamar propositivo, do qual se possa
perspectivar uma modelagem de formação continuada que tenha todos os
elementos capazes de satisfazer tanto as necessidades dos professores, como as
necessidades do sistema educacional e também encontrar correlação com os
pressupostos epistemológicos.
Como ressalta Oliveira (2006), a pesquisa com o cotidiano se inscreve no âmbito
das possibilidades de se pensar em alternativas possíveis e credíveis. A partir das
já referidas sociologia das ausências, sociologia das emergências e do trabalho de
tradução, podemos asseverar que a compreensão das narrativas das professoras
aponta três horizontes de possibilidades, todas inscritas no movimento mais amplo
de produção de alternativas à dominação hegemônica, em favor de um projeto de
emancipação.
O primeiro horizonte de possibilidades está atrelado à crítica à razão metonímica
pela via da sociologia das ausências. Assim, evidencia-se que, para além da crítica
às formas de saber e fazer das professoras, crítica essa empreendida pela
racionalidade técnico-cientifica e/ou razão metonímica, pudemos perceber, nas
narrativas das professoras, e durante a nossa permanência nos espaços/tempos
dos centros municipais de educação infantil que há movimentos que buscam
produzir a experiência de se constituir professora e de produzir a docência, que se
contrapõem à perspectiva que busca rotular, estigmatizar, desqualificar o trabalho
das professoras.
As narrativas são abundantes e mostram que muito tem sido produzido, e que há um
desejo de saber e fazer latente no cotidiano, ou seja, as professoras revelam, em
suas experiências, que querem, e que necessitam continuar a aprender para
melhorar o seu fazer, contrariamente à proposição de que o cotidiano é um terreno
estéril, vazio, ermo onde só há descomprometimento, só há erro, só há repetição. A
crítica da razão metonímica busca, por meio do trabalho da sociologia das
ausências, trazer à tona essas produções ou estabelecer uma política de
reconhecimento dessas relações e interações possíveis e credíveis que são
produzidas nos diversos cotidianos das escolas.
Nessa perspectiva, buscamos efetuar o trabalho de tradução para que, em vez da
produção e proliferação de ausências, se efetue o reconhecimento da presença
docente, pois, diuturnamente, quando bate o sinal, cada professor e cada professora
se encontra diante do desafio cotidiano de produzir a sua experiência docente e,
metaforicamente, ao assinalar a presença do aluno, as professoras também dizem
presente e, como presente, sempre estão no cotidiano. Sua presença se faz por
esse investimento feito no horizonte das possibilidades, muitas vezes enfrentando
contingências de uma profissão que ainda sustenta, no imaginário social, um certo
prestígio. Também o discurso político a considera como de fundamental importância
para a sociedade, mas, na prática, ainda é uma profissão feita de muita abnegação,
de renúncias e de investimentos anônimos. Sendo assim, a critica da razão
metonímica faz-se necessária para uma possibilidade de reconhecimento e de
visibilização dessas múltiplas práticas que estão sendo produzidas.
O segundo horizonte de possibilidades remete à crítica da razão proléptica como
condição para se articular, no coletivo dos CMEIs, um projeto que vise a dilatar os
espaços-tempos para que as experiências de formação se efetivem produzindo,
assim, emancipação dos sujeitos evolvidos. Ainda que nem toda experiência por si
só tenha condição de produzir emancipação, ou seja, se, por um lado, há
resistência, superação e emancipação, por outro, observamos que também há
abstinência, renúncia, reificação, descomprometimento e abandono da profissão.
Entretanto, acreditamos que toda proposição se inscreve em um movimento de
produção de um campo de possibilidades. Assim a critica da razão proléptica se faz
necessária para se entender que, ainda que não haja certezas, precisamos nos
mover para um campo de possíveis ainda não realizados, como diz Santos (2006),
mas que se inscreve no movimento presente, como atividade de cuidado e vigilância
para que o futuro seja mais profícuo. Então a sociologia das emergências apresenta-
se como essa possibilidade de inscrever no presente ou de extrair dessas
experiências em curso aquilo que de mais significativo há para produzir o futuro
hoje, no horizonte de possibilidade. Em vez de esperar o futuro, produzimos o
presente; em vez de esperar um professor competente/habilidoso em um futuro,
exercemos atividade de cuidado e vigilância no aqui e agora.
Nesse aspecto, podemos destacar, nas narrativas, esses movimentos que se
inscrevem nesse horizonte de possibilidade, no presente, como as próprias
professoras revelam. Assim, poder-se-ia pensar, aqui, hoje e agora! Criar e/ou
dilatar o espaço-tempo da formação, não individualizada, mas em um coletivo que
se organize, que se envolva e se resolva em torno de um projeto
construído/constituído para enfrentar os problemas vivenciados pelas professoras,
não um espaço-tempo espremido, resumido, subsumido entre as atividades ditas
mais importantes, mas um espaço-tempo pensado, articulado e organizado para que
a experiência da formação aconteça.
Outra alternativa é a constituição de uma escola de professores que pudesse
agregar/juntar esses profissionais em torno de um projeto de compartilhamento e
intercâmbio capaz de fertilizar, de multiplicar, de pluralizar, de singularizar essas
experiências, garantindo, assim, a permanência e a continuidade de processos de
formação. E ainda uma outra alternativa, a criação de espaço-tempo para a narração
e compartilhamento de experiências, ou seja, por meio da utilização das tecnologias,
fossem criadas redes de interatividade-conectividade para que, no compartilhamento
de saberes, se possam ampliar possibilidades de fazeres. Mais uma vez, a crítica à
razão proléptica por meio da sociologia das emergências tem essa tarefa de fazer
emergir, de forma horizontalizada, as experiências em curso desenvolvidas nas
escolas.
Finalmente, o trabalho de tradução como um terceiro horizonte de possibilidades,
como já nos referimos ao longo da pesquisa, é a possibilidade de significação da
experiência docente para além de um saber-fazer circunscrito, individualizado e
individualizante, realizado na solidão didático-pedagógica. A tradução remete à
interação, à dialogicidade, ou seja, traduzir e traduzir-se é uma forma de dizer e
mostrar-se a uma rede de outras formas de saberes-fazeres. Desse modo, cada
professor é convidado a se mostrar, a se expor para ser traduzido, ser interpretado e
ser compreendido em contextos de formação.
A tradução constitui-se um elemento fundamental para que as professoras entre si,
as professoras e os sistemas, as professoras e a academia, a academia e os
sistemas, enfim, para que todos os âmbitos envolvidos no processo de formação
possam estabelecer diálogos e encontrar pontos de intercessão, encontrar círculos
ampliados de dialogicidade e, assim, possam estabelecer projetos que sejam
possíveis. Como ressalta Santos (2006), o trabalho de tradução, especialmente
neste caso, tradução entre saberes, tem a potencialidade de estabelecer a
inteligibilidade heterológica, ou seja, uma complementaridade de saberes e fazeres
ou, por outra via, produzir conhecimento por reconhecimento das múltiplas formas
de saberes e fazeres.
A respeito dos três horizontes de possibilidades na articulação de um projeto de
formação continuada, tendo como aporte a sociologia da ausências, a sociologia
das emergências e o trabalho de tradução, Carvalho ( 2006, p. 57) ressalta:
Cabe ao coletivo escolar tematizar os fundamentos com argumentações de suas práticas discursivas para que possa ocorrer, pela análise das ausências, das emergências e pela estratégia da tradução, a subversão do discurso alienígena, um texto articulado ao vivido coletivamente por professores e alunos, que seja situado na tensão entre o local e o global, c se constitua de modo dialógico, heterológico, interpretativo e plural.
Esses três horizontes de possibilidades podem contribuir para que as redes de
formação continuada vivenciadas nas escolas possam ser ampliadas e estabeleçam
novos desenhos teórico-metodológicos permitindo que seus contornos sejam
permanentemente redefinidos pelos próprios praticantes e, assim, possam trabalhar
com um círculo mais abrangente de temáticas que compõem os desafios que os
professores enfrentam diariamente na prática pedagógica, tornando, então, a
atividade de formação também um exercício de criação e emancipação.
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