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  • Quarta-feira, 15 de abril de 2015 | Correio do Vouga | 23

    opinio

    JOANA PORTELAMe e Revisora de Texto

    Alguma Voz

    Quando eu ouo a voz da fonteNo sei que canto que encerraParece o gozo do mundoDentro do ventre da terra

    Quando eu ouo a voz do rioMe lembro de passarinhoUm livre outro vadioCantando pelo caminho

    Quando eu ouo a voz do ventoNo acerto nem me enganoNo mgoa nem lamento cantiga de cigano

    Quando eu ouo a voz do marTanto mansa quanto atacaNo sei quando de ninarNem sei quando de ressaca

    Quando eu ouo alguma vozNa janela do horizonteDe algum cantando por ns Deus cantando defronte

    (Dori Caymmi / Paulo Csar Pinheiro na voz de Maria

    Bethnia)

    VIVA VOCE. Preparava-me para escrever um texto sobre Abril, livros mil, quando ouvi alguma voz na janela do horizon-te, que me sussurrou: 2 de Abril Dia Internacional do Livro In-fantil; 16 de Abril Dia Mundial da VOZ; 23 de Abril Dia Na-cional da Educao dos Surdos. Ora, o livro infantil pressupe a voz expressiva de pais e educado-res; por outro lado, em contextos educativos, quase s damos pela presena da voz quando algum

    faz subir os decibis da exaltao; pelo contrrio, para as crianas surdas, a voz dos outros uma infinita ausncia, clamando por palavras que se transfigurem em gesto. Demos, pois, a vez VOZ.

    Dar VOZ aos livros. O papel absolutamente primordial da voz na formao de leitores, a im-portncia decisiva de a me/pai ser um corpo que canta para a criana na primeira infncia, lendo-lhe livros sem pginas (lengalengas e cantilenas inscri-tas na nossa memria potica colectiva), foram o tema de uma encantadora conversa de Yolan-da Reys, numa manh das Pa-lavras Andarilhas. Pela sua voz terna de ninar, descobrimos co-mo as palavras da me e do pai so o primeiro texto da leitura de um beb: o rosto, a VOZ, os movimentos corporais, o abrao, a carcia, porque crianas bem pequenas lem ao ouvir a voz de seus pais. Vale mesmo a pena conhecer as palavras sbias des-ta especialista em leitura na pri-meira infncia: www.revistaemi-lia.com.br/mostra.php?id=237 e www.revistaemilia.com.br/mos-tra.php?id=9

    Tambm a voz dos educadores e professores, na sua plasticidade fsica e corporal, passvel de to diversas modulaes, timbres e volumes, de importncia ful-cral na educao literria dos alunos. A este propsito, recor-do aqui um testemunho sobre o

    poder da voz de Matilde Rosa Arajo, que tambm foi profes-sora: Era uma senhora que fa-lava baixinho. E tudo o que dizia era muito importante. Uma figu-ra apagada mas que nos deixava suspensos e presos pelo olhar e pela voz. (). Antnio Torrado conta-nos uma histria antiga a propsito do efeito das palavras ditas pela escritora. () Fomos chamados para fazer parte de um jri de poemas juvenis. () amos seleccionando o que che-gava ao jornal e fazamos encon-tros de leitura em voz alta para escolhermos em conjunto. Sem-pre que era ela [Matilde] a ler os poemas, iam logo para o monte dos escolhidos. At que Antnio Torrado pediu para ler um da-queles poemas aps a leitura de Matilde: Aquilo no valia nada. Mas s depois de o escutarem li-do por mim se apercebiam disso. Ela tinha aquela voz de harpejo e de violino ao mesmo tempo,

    e lia de uma tal maneira que os poemas eram todos aprovados. (in Os livros de Matilde, jornal Pblico).

    Parece-me que, na educao literria das crianas e jovens de hoje, ainda se descura muito a dimenso da leitura em voz al-ta, da oralidade do texto, da sua materializao sonora, corporal e expressiva. Ouvir ler (bem!) em voz alta um raro prazer. Ti-ve um professor que comeava as aulas com essa ddiva. A voz confere ao texto volume, corpo, uma terceira dimenso que o en-riquece com um sexto sentido, prolongando-o com reticncias que ouvinte completa. Pela voz, o texto converte-se em ddiva e a letra ressuscita pela boca. Por isso, so de louvar e multipli-car iniciativas como o concurso D Voz Letra, da Fundao Calouste Gulbenkian (www.da-vozaletra.gulbenkian.pt), ou os programas Um poema por se-mana e Voz da RTP, iniciati-vas que podem ser aproveitadas em termos pedaggicos. Para dar voz aos livros, aqui ficam tambm algumas sugestes pa-ra os mais pequenos: Poemas de Bibe (www.youtube.com/watch?v=CPfYqSzU1Ho); os au-diolivros da editora Boca (J-nior) ou os livros para escutar do blogue Letra Pequena.

    Dar vozes VOZ. Instru-mento de comunicao por ex-celncia, mas tambm de ine-

    fvel experincia esttica, a voz pode ser educada e trabalhada na escola, em iniciativas como, por exemplo, a de Pedro Mes-tre, no Alentejo, com o seu pro-jecto Cante nas Escolas. Mas a voz, na sua dimenso puramen-te corporal, pode ser explorada tambm em disciplinas to dife-rentes como Portugus (leitura expressiva), Fsica (experincias de modulao), Biologia (apare-lho fonador), Expresso Dram-tica (colocao da voz) e, claro, Educao Musical. As potencia-lidades imensas da voz humana justificariam plenamente que Bob MacFerrin, por exemplo, fizesse parte do programa desta disciplina. S para abrir o apetite na laringe, ouam-no no World Science Festival 2009, ou impro-visando com a nossa Maria Joo no Jazz Festival 2002, ou ainda a sua verso da Ave Maria (Ba-ch/Gounod), tudo disponvel na net. O nosso ensino formal ainda muito monocrdico, faltam-lhe as cores vibrantes da criatividade e da polifonia. Haja rasgo! e j agora ouam tambm Foi por um rasgo de voz, do cantautor Pedro Barroso, professor e pio-neiro no ensino de crianas sur-das atravs de musicoterapia.

    Dar VOZ e vez aos surdos. E quando a voz sinnimo de silncio e vazio? Em Portugal, tem havido alguns projectos, em infantrios e escolas bsicas, que proporcionam a toda a turma a aprendizagem da lngua gestual, para que crianas surdas e ou-vintes possam comunicar entre si. Agora, com a Escola Virtual de Lngua Gestual Portuguesa, esta aprendizagem est acessvel a TODOS. E se desafissemos as crianas a fazer vozear as mos? Que o Dia da Voz seja uma opor-tunidade afinada para subir uma oitava na escala da escola, por-que

    Somente as coisas tocadas pelo amor das outrastm voz.

    Fiama Hasse Pais Brando

    De viva VOZ

    Ilustrao de Gmeo Lus

    Na educao literria das crianas e jovens de hoje, ainda se descura muito a dimenso da leitura em voz alta, da oralidade do texto, da sua materializao sonora, corporal e expressiva. Ouvir ler (bem!) em voz alta um raro prazer.


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