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VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734
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Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária: paralelo da esfera cível e trabalhista
Marcelo Terra Reis1
Graziela Martins Coelho2 Resumo: O presente artigo cientifico visa de forma sucinta, explanar a cerca das hipóteses que permitem a desconsideração da personalidade jurídica tanto na esfera civil quanto na esfera trabalhista, visto que a desconsideração da personalidade jurídica possui requisitos específicos para tal feito e na justiça laboral é efetuado de forma peculiar, haja vista a inexistência de um artigo especifico na Consolidação das Leis do Trabalho. Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica. Direito Civil. Direito do Trabalho. Abstract: This scientific paper aims to briefly explain some of the assumptions that allow piercing the corporate veil in both the civil sphere as in labor, since piercing the corporate veil has specific requirements for such labor done and justice is done to peculiar way, given the lack of a specific article in the Consolidation of Labor Laws. Keywords: Disregard of Legal Personality. Civil Law. Labor Law.
Introdução
O presente estudo tem a finalidade de realizar uma explanação da forma em que é
utilizado o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tanto na esfera
cível quanto na esfera trabalhista, haja vista que cada um destes utiliza-se de forma
distinta do referido instituto.
De um lado temos a esfera civil que exige o atendimento de alguns pressupostos,
quais sejam: abuso da personalidade (quando ocorre o uso indevido por parte dos
sócios); objetivo fraudulento; quando há insuficiência de patrimônio da sociedade
para ressarcir os prejuízos causados por sua má utilização, entre outros. Ou seja, tal
como preconiza o artigo 50 do Código Civil.
Por outro temos a Justiça do Trabalho onde autoriza que a responsabilidade por
débitos trabalhistas de uma pessoa jurídica empregadora seja atribuída a seus
sócios, inclusive àqueles que participam de sociedades dotadas de limitação de
responsabilidade. Para tanto, os julgados invocam a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica. Ocorre que, muito embora a referida teoria seja invocada
1 Advogado, Professor e Coordenador do Curso de Direito da FACOS. Doutorando em Direito na UBA
– Universidade de Buenos Aires. 2 Discente do décimo semestre do Curso de Direito da FACOS.
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como fundamento para decisões desta natureza, a sua aplicação, na prática, na
maioria das vezes, não observa os pressupostos e requisitos que orientam seu
desenvolvimento. O resultado, do ponto de vista estritamente jurídico, é uma
utilização inadequada do aludido instituto.
Este problema, entretanto, pode ser resolvido mediante uma reflexão um pouco mais
aprofundada da temática. Com isso, pretende-se colaborar para a correta aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho,
assegurando-se a obtenção do resultado pretendido (a responsabilização dos sócios
das pessoas jurídicas dotadas de limitação de responsabilidade por obrigações
trabalhistas da sociedade) vários dispositivos da lei federal.
Personalidade jurídica
Histórico
Na evolução histórica, podemos verificar que o antigo direito romano não conhecia a
figura da personalidade jurídica. Tampouco o direito germânico admitia tal
concepção. As pessoas naturais eram os verdadeiros detentores dos direitos. No
entanto, no início do Império Romano existiam certas associações com interesse
público, tais como universitates, solidalitates, corpara e collegia.
Justiniano acrescentou ao rol de pessoas jurídicas as fundações, que a princípio,
eram subordinadas à Igreja, e que se tornaram mais tarde independentes. Mas, foi
com o direito canônico que o instituto da personalidade jurídica assistiu a sua maior
transformação, por meio da incrementação das fundações chamadas corpus
mysticum, pelo qual o ofício eclesiástico, provido de patrimônio próprio, era
considerado entre autônomo.3
No entanto, o conceito moderno de pessoa jurídica começou a tomar forma somente
com a Revolução Francesa, com a valorização do indivíduo e a política do
liberalismo. Na revolução industrial, igualmente, com a soma maior de capital para o
3 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito, SEEA Página 13 – 06/11/2001 São Paulo:
Saraiva, 1999, v. 1, p. 99
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sucesso empresarial, sendo aí, o nascedouro da personalidade societária, fruto da
não intervenção do Estado na atividade econômica e da insuficiência de recursos
financeiros individuais frente ao novo momento histórico.
Assim, no direito moderno, as pessoas jurídicas foram designadas da seguinte
forma: no Direito Francês: como pessoas morais; no Direito Português: como
pessoas coletivas;
Pessoa jurídica é a denominação dada pelo nosso Código Civil, pelos códigos
alemães (arts. 21 a 89), italiano (art. 11) e espanhol (art. 35)”.4
No direito brasileiro, cita-se o Código Comercial de 1850, que não reconhecia
expressamente a personalidade jurídica da sociedades comerciais. Porém, o
ordenamento jurídico reconheceu o instituto da personalidade jurídica com o Decreto
nº 1.102 de 1903, o qual estabelecia normas sobre os armazéns gerais, e com a Lei
nº 1.637 de 1907, que possibilitava a personalidade civil aos sindicatos. Mas sua
definição ainda não estava consolidada.
Recentemente, o Estado despertou seu interesse pelas associações e instituições,
principalmente do ponto de vista político, a exemplo das autarquias (Decreto-Lei nº
6.016/43, art. 2º; Lei nº 4.717/65, art. 20 e Decreto-Lei nº 200/67, art. 5º, I),
entidades paraestatais, sociedades de economia mista, previdenciárias,
beneficentes, artísticas e muitas outras. Enfim, ampliou-se o conceito técnico-jurídico
da pessoa jurídica. Todavia, importante salientar que antes da sanção do Código
Civil de 1916, o rol de pessoas jurídicas não estava solidificado.
Nota-se que duas correntes doutrinárias surgiram na tentativa de conceituar o
que seria a personalidade jurídica:
A) MINIMALISTA: A corrente minimalista, liderada por Clóvis Beviláqua,
reduzia o número de regras, ampliando-se o reconhecimento de
4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo:
Saraiva, 1999, v. 1, p. 141
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personalidade jurídica a todas as sociedades civis ou comerciais, “a
qualquer grupamento ou entidade que satisfaça determinados requisitos”.5
B) MAXIMALISTA: A corrente maximalista fazia distinção entre as
corporações e as sociedades, negando a personalidade jurídica às
sociedades civis, sociedades em nome coletivo e sociedade em comandita
simples. Como relata Rubens Requião.6
O Código Civil brasileiro trata da pessoa jurídica nos artigos 40 ao 69, conceituando
e dispondo acerca dela, e admitindo duas espécies de pessoas: a natural e a
jurídica. A natural é a pessoa encontrada como tal na natureza, são os seres
humanos, capazes de direitos e obrigações na esfera civil; já a pessoa jurídica se
encontra subdividida em direito público interno e externo, e direito privado, no qual
se encontram as associações, as sociedades e as fundações, dentre as demais do
art. 44 do Código Civil.
Embora a teoria da desconsideração da personalidade jurídica seja reconhecida no
Código Civil, CTN, CDC, Lei Antitruste e Lei de Crimes Ambientais, a Legislação
Trabalhista não possui em seu bojo a pertinência específica regulamentada de sua
aplicabilidade, gerando interpretações equivocadas e conturbadas.
Conceito e natureza jurídica
Com a finalidade de conceituar o instituto em estudo, deve-se desdobrar a presente
análise e verificar a acepção jurídica do termo pessoa.
De acordo com Washington de Barros Monteiro7 “a palavra pessoa advém do latim
persona, emprestada à linguagem teatral na antiguidade romana. Primitivamente,
significava máscara. Os atores adaptavam ao rosto uma máscara, provida de
disposição especial, destinada a dar eco às suas palavras. Personare queria dizer,
pois, ecoar, fazer ressoar. A máscara era uma persona, porque fazia ressoar a voz
da pessoa. Por curiosa transformação no sentido, o vocábulo passou a significar o 5 ALBERTON, Genacéia da Silva. A desconsideração da personalidade jurídica no Código do
Consumidor – Aspectos Processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, v. 7, p. 28. 6 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva 1998, v. 1, p. 347.
7 MONTEIRO, Washington e Barros (Op. Cit., p. 56)
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papel que cada ator representava e, mais tarde exprimiu a atuação de cada
indivíduo no cenário jurídico. Por fim, completando a evolução, a palavra passou a
expressar o próprio indivíduo que representava esses papéis”. Vejamos o
entendimento de alguns doutrinadores: Para Kelsen, pessoa é a unidade
personificada que representa um complexo de direito e deveres.8 Para Maria Helena
Diniz: “Pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo
sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de Direito é aquele que é sujeito de um dever
jurídico, de uma pretensão de uma titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer,
através de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de
intervir na produção da decisão judicial.”9
Para Silvio Rodrigues: “A pessoa jurídica surge para suprir a própria deficiência
humana, Frequentemente o homem não encontra em si forças e recursos
necessários para uma empresa de maior vulto, de sorte que procura, estabelecendo
sociedade com outros homens, constituir um organismo capaz de alcançar o fim
almejado.”10
Adiante, o mesmo define como pessoa jurídica, “ as entidades a que a lei empresta
personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade
diversa de indivíduos que os compõe, capazes de serem sujeitos de direitos e
obrigações na ordem civil.”11
O ordenamento nacional imputa personalidade jurídica tanto ao homem ao nascer
com vida (pessoa física), como preconiza o artigo 2º do Código Civil, quanto à
pessoa jurídica ao cumprir os requisitos do artigo 45 do mesmo diploma legal.
Também em face da efetiva existência de sociedade ainda sem registro, mas que
atuam no mundo dos fatos, uma solução ampliativa se fez necessária no plano
processual. Desta forma, há previsão legal de representação em juízo de sociedade
8 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 4. Ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1994, p. 188. 9 DINIZ, Maria Helena. Op. Cit, p. 97.
10 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. – Parte Geral. 29. Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, 1 v, p. 64.
11 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. – Parte Geral. 29. Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, 1 v, p. 64.
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sem personalidade jurídica, conforme dispõe o artigo 12, VII, do Código de Processo
Civil.
Diante disso, um dos princípios que fundamentam o conceito de pessoa jurídica é a
personalidade da sociedade distinta de seus membros, ou seja, pessoa física e
pessoa jurídica não se confundem, sendo que a primeira adquire patrimônio
autônomo, pelo qual assegura sua responsabilidade em relação a terceiros e pode
atuar em juízo. Entretanto, esta norma está presentemente abalada pela teoria da
desconsideração da pessoa jurídica, objeto do presente estudo.
Tais princípios fundamentam o que estabelece o artigo 20 do Código Civil, que
confere autonomia patrimonial à pessoa jurídica. O artigo 596 o Código de Processo
Civil corrobora tal princípio, estabelecendo que os sócios não respondem pelas
dívidas contraídas pela sociedade.12
Adiante, a personalidade jurídica caracteriza-se por três requisitos essenciais: a)
Organização de pessoas e bens patrimoniais; b) Objetivos em conformidade com a
lei ou não proibidos; c) Reconhecimento pelo ordenamento jurídico como sujeito de
direitos e obrigações.
Assim é o posicionamento dos doutrinadores, como Darcy Arruda Miranda: “As
pessoas jurídicas, uma vez personificadas, nos termos do artigo 18, tornam-se
entidades autônomas, inteiramente distintas das pessoas físicas que as compõe:
universitas distat a singulis. Podem exercer todos os direitos subjetivos, exceto
aqueles inerentes ao ente humano. As suas deliberações constituem atos próprios
da sua qualidade de entidade moral ou coletiva, nada tendo haver com atos
individuais e seus sócios.”13
Para Hans Kelsen, a pessoa jurídica é uma construção elaborada pela ciência do
Direito em decorrência da necessidade de criação de entidades capazes de
12
Artigo 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dividas contraídas pela
sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento de dívida, tem o direito de exigir que primeiro sejam excluídos os bens da sociedade. 13
MIRANDA, Darcy Arruda. Anotações ao Código Civil Brasileiro, 1986, p. 97.
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realizarem determinados fins que não são alcançados normalmente pela atividade
individual.14
Dessa forma, aprende-se o conceito de pessoa jurídica como sendo um instituto
voltado a conceder direitos e incutir obrigações a determinados entes na esfera
legal, objetivando a concretização de certos propósitos.
Vale ressaltar que, da forma como foi concebida, a personalidade jurídica resultante
de uma coletividade se distancia patrimonialmente da personalidade daqueles que a
compõe.
Análise de sua natureza
Quanto à natureza jurídica, podem-se elencar algumas teorias que foram elaboradas
com o intuito de esclarecer a existência da personalidade jurídica e a razão da sua
capacidade. Tais teorias foram agrupadas em quatro categorias:
A) Teoria da ficção legal e da doutrina;
Segundo a teoria da ficção legal, de Savigne,15 entende-se que somente o homem é
capaz de ser sujeito de direitos.
No entanto, tal conceito recai na ficção quando afirma que a pessoa jurídica tem
vontade própria, à medida em que esta característica é própria do ser humano.
B) Teoria da equiparação;
A referida teoria, a qual foi proposta por Windscheid e Brinz, concebia a pessoa
jurídica como um patrimônio equiparado, no seu tratamento jurídico, às pessoas
naturais.
14
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 4. Ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 188-213. 15
A teoria da ficção legal e Savigny pode ser encontrada na obra Traité de droit romain., tard. Guénoux, Paris 1845, § 85.
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Tal teoria foi alvo de muitas críticas, pois elevou os bens à categoria de sujeito de
direitos e obrigações, confundindo pessoas com coisas.16
C) Teoria orgânica;
Já a teoria da realidade objetiva ou organicista, de Gierke e Zitelmann, opõe-se a
primeira. Ela apregoa que a pessoa jurídica coexiste ao lado das pessoas naturais,
que são organismos físicos, com vontade e determinações próprias. Estas
características não são apenas o resultado das vontades dos sócios ou
administradores, haja vista os poderes e recursos de que ela pode dispor.
D) Teoria da realidade das instituições jurídicas.17
Diante de duas posições antagônicas, teoria da ficção e teoria da realidade, lança-se
uma teoria que amalgama tais posicionamentos: a teoria da realidade da instituições
jurídicas, de Hauriou. Este baseia sua construção na ideia de que a personalidade
jurídica deriva de disciplinamento legal.
Este, tanto pode privar quanto pode conceder personalidade a determinados
agrupamentos de pessoas ou de bens que tenham objetivos comuns.
Portanto, a personalidade jurídica deve ser entendida como um atributo, o qual
é derivado da ordem jurídica estatal. Assim, é a teoria capaz de atender à essência
da pessoa jurídica, pois estabelece que a pessoa jurídica é uma realidade jurídica.”18
Teoria da desconsideração da personalidade jurídica
A teoria sob enfoque teve a sua gênese no direito norte-americano, já no Brasil, o
tema foi abordado inicialmente por Rubens Requião, em conferência intitulada
16
DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 143 17
DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 142 18
Idem, p. 143
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“Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, realizada na
universidade do Paraná.19
Objetiva, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, evitar o abuso de
direito capaz de lesar direitos dos credores, possuindo um viés de evitar fraudes.
Caracteriza-se a fraude quando o devedor pratica atos de disposição patrimonial
sendo insolvente ou na sua iminência.
O Código Civil em seu artigo 20, estabelece que as pessoas jurídicas têm existência
distinta de seus membros, isso leva-nos à conclusão de que os sócios não
responderão pelas obrigações assumidas em nome da sociedade. Todavia, a opção
do legislador de distinguir a pessoa física dos sócios da pessoa jurídica,
representada pela sociedade, não pode adquirir a feição de direito absoluto, sob
pena de, por extremo apego ao formalismo, chancelarem-se situações injustas e
nocivas ao organismo social.
Em última análise, sobrepuja a pessoa jurídica aqueles que dela se utiliza
indevidamente, conquanto tal hipótese, a sociedade deixa de ser sujeito de direito
para ser mero objeto ou instrumento do sócio.
Funda-se tal teoria no fato de que sendo pessoa jurídica criação da lei, não pode a
mesma ser utilizada como meio de se obterem resultados repelidos pelo direito,
devendo coadunar o princípio da autonomia patrimonial com o da boa-fé e com a
necessidade de segurança nas relações jurídico-comerciais.
A regra do artigo 50 do código civil
O artigo 50 do Código Civil prevê hipóteses em que a personalidade jurídica (em
verdade, a distinção entre patrimônio da sociedade e patrimônio particular dos
sócios, decorrente da personificação societária) pode ser desconsiderada, de forma
a reunir patrimônios antes distintos e autorizar a satisfação de obrigações em bens
resultantes desta reunião (o que faz com que, igualmente, se retire a eficácia das
19
REQUIÃO, Rubens em conferência intitulada “Abuso de Direito e fraude através da personalidade jurídica”, realizada na universidade do Paraná (RT. 768/350 e 410/12).
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regras de limitação de responsabilidade dos sócios de sociedade desta natureza que
teve a sua personalidade desconsidera).
A possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica societária foi
abordada em caso concreto no ano de 1897, quando os tribunais ingleses
apreciaram o caso Salomon VS. Salomon e Co, que envolvia o comerciante Aaron
Salomon. O referido comerciante, conforme relatado por Rubens Requião20 possuía
estabelecimento empresarial, atuando isoladamente, como empresário (ou seja, sob
regime da responsabilidade patrimonial ilimitada e sem distinção patrimonial).
Posteriormente, constituiu uma Company (figura equivalente no Brasil à Sociedade
Anônima), juntamente com seis membros de sua família, transferindo, por
integralização de capital, os bens de seu estabelecimento empresarial individual
para referida sociedade e recebendo em troca 20.000 ações (tendo os demais
membros de sua família recebido apenas uma ação cada). Posteriormente, a
sociedade tornou-se insolvente.
Os credores sustentaram que Aaron Salomon utilizou a sociedade como elemento
limitador de sua responsabilidade, pleiteando desta forma que o mesmo
respondesse pessoalmente pelas obrigações da Company. O tribunal de primeira
instância acatou o pleito dos credores, mas tal decisão foi reformada por
unanimidade pela House of Lords, a qual entendeu que a sociedade havia sido
validamente constituída. Segundo Requião, independente do julgado final, a nova
interpretação da instância inferior para o tema acabou por colocá-lo em voga e
influenciar fortemente as cortes estrangeiras, em especial nos Estados Unidos e
Alemanha.
A teoria da desconsideração consiste na possibilidade de ser afastada a
personalidade atribuída à pessoa jurídica, tornando possível a responsabilização
pessoal dos sócios (uma vez que desaparece a separação patrimonial decorrente da
personificação) pelas obrigações da sociedade sempre que for verificada a utilização
indevida da pessoa jurídica. A sua aplicação, em concreto, ocorre para correção de
certos determinados ilícitos, em especial naqueles casos em que a consideração da
20
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v. 1. 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 378
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autonomia patrimonial da pessoa jurídica importar na impossibilidade de correção da
fraude ou do abuso cometido.
Somente pode ser cogitada a desconsideração da personalidade quando a
autonomia patrimonial da pessoa jurídica represente obstáculo para
responsabilização pessoal dos sócios que cometeram atos antijurídicos ou valendo-
se do ente personificado para tanto.
De acordo com o artigo 50 do Código Civil, o abuso na utilização da pessoa jurídica
que autoriza a aplicação da desconsideração, pelo Poder Judiciário, é aquele
caracterizado pela confusão patrimonial ou desvio de finalidade. Como ressalta
Fabio Conder Comparato:
“A confusão patrimonial entre o controlador e a sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica (...). E, compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção deste princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o , destarte, numa regra puramente unilateral.”
21
Presentes estas circunstâncias, a autonomia patrimonial a pessoa jurídica pode – e
deve – ser desconsiderada e, com isso, também superada a limitação de
responsabilidade.
Pode-se, inclusive, com base no artigo 50 do Código Civil, estender a
responsabilidade patrimonial de uma sociedade a outras, desde que integrem
grupos societários (de direito ou mesmo de fato). Basta que se logre comprovar a
atuação de duas ou mais sociedades como se, de fato, uma fosse. A regra do artigo
2º, da CLT, muito embora não se trate de hipótese de desconsideração da
personalidade jurídica22, prevê apenas a solidariedade entre diversos entes
personificados reunidos em grupo societário23 pelas obrigações trabalhistas de uma
das pessoas jurídicas integrantes do grupo, permite que se atinja resultado idêntico
21
COMPARATO, Fábio Conder. O poder de controle na sociedade anônima. 2ª Ed. Atual. São Paulo: RT, 1977, p. 333. 22
Uma vez que a sua própria redação considera e reconhece a diversidade de patrimônios individuais e, portanto, a personalidade autônoma das diversas empresas integrantes do mesmo grupo econômico. 23
Caracterizado por controle ou administração comum.
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do ponto de vista da transferência da responsabilidade pela satisfação da obrigação,
ainda que por outro meio.
A teor do artigo 50 do Código Civil, para que possa o juiz aplicar a desconsideração
da personalidade jurídica, é necessário que seja realizada prova das circunstâncias
especiais, normativamente previstas, autorizadoras de decisão nesse sentido.
De uma forma geral, o ônus da prova incumbirá, seguindo-se da regra do artigo 333,
I, do CPC, ao interessado na desconsideração (o lesado pelo ato praticado com
abuso na utilização da pessoa jurídica). Entretanto, há hipóteses em que o ônus de
provar que a pessoa jurídica não foi utilizada de forma abusiva e contrária à lei
recairá sobre seus sócios. Isso pode ocorrer em processos envolvendo
consumidores de produtos ou serviços fornecidos pela sociedade, em virtude de
possibilidade de se determinar, em processos que se discutem relações de
consumo, inversão do ônus da prova (artigo 6º do CDC), ou ainda, no que interessa
presente, em processos perante a Justiça do Trabalho, em que o trabalhador é
presumido como hipossuficiente em relação ao empregador.
Mas, mesmo nos processos envolvendo credores trabalhistas, a existência em
concreto do fato autorizador da aplicação da desconsideração deve ser provada.
Não presumida.
Sem a prova da presença de uma das circunstâncias legais que autorizam a
aplicação da desconsideração, não há como se superar a distinção patrimonial ou a
limitação de responsabilidade. Entender em contrário significa ofender direta e
frontalmente o artigo 50 do Código Civil e todos os dispositivos legais que
conformam a limitação de responsabilidade do sócio pelas obrigações da sociedade
(artigos 1º da lei S/A, artigo 1.05 do Código Civil e artigos 592, II, e 596 do CPC).
Mas a aplicação incorreta da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
não gera apenas ofensa a dispositivos de lei federal. Os efeitos do mau uso desta
teoria são mais amplos. Os operadores econômicos lidam com a insegurança
jurídica, basicamente de duas formas: a) em uma situação limite, em que a
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insegurança impede completamente ou torna muito custosas a realização de
operações em um determinado mercado, os agentes deixam de operar; b) no caso
brasileiro, onde isso não ocorre, adota-se uma segunda postura, qual seja, os
agentes continuam operando no mercado em que a insegurança jurídica se revela
(ainda que não em grau extremo), mas transferem os efeitos da insegurança jurídica
sobre suas atividades – no caso da desconsideração da personalidade jurídica na
esfera trabalhista, a possibilidade dos sócios serem pessoalmente responsabilizados
pelas obrigações trabalhistas da sociedade – para o preço dos produtos e serviços
que ofertam. E não é necessário se alongar muito para demonstrar quem é que
acaba arcando com este custo ao final.
Para melhor estabelecer o contraponto de ideias, colaciona-se importante decisão
do Superior Tribunal de Justiça, a qual serve de substrato para interpretações das
instâncias inferiores:
Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa executada. Desconsideração da personalidade jurídica. Inviabilidade. Incidência do art. 50 do CC/02. Aplicação da Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. - A mudança de endereço da empresa executada associada à inexistência de bens capazes de satisfazer o crédito pleiteado pelo exequente não constituem motivos suficientes para a desconsideração da sua personalidade jurídica. - A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva . - Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. (REsp 970.635/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 01/12/2009);
Desse modo, verifica-se a necessidade da prova e da existência dos requisitos do
art. 50 do Código Civil para se efetivar a desconsideração da personalidade jurídica.
Ademais, a mera existência de dívida não é capaz de gerar a penhora de bens dos
sócios, tanto é verdade que o próprio STJ possui a Súmula nº 430: “O
inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a
responsabilidade solidária do sócio-gerente.”
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A desconsideração da personalidade jurídica na justiça do trabalho
A desconsideração da personalidade jurídica não é regulada por norma específica
no direito do trabalho. É construção jurisprudencial.
A Justiça do Trabalho, de regra, não exige a comprovação de confusão patrimonial,
fraude ou uso desvirtuado da pessoa jurídica como requisito para a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica e consequente atribuição, aos sócios, da
responsabilidade por obrigações contraídas originalmente pela sociedade
empregadora. Basta a simples constatação da falta de capacidade econômico-
financeira da pessoa jurídica para arcar com a condenação determinada no
processo trabalhista para que a execução seja direcionada contra a pessoa de seus
sócios. Colaciona-se as decisões abaixo:
Execução. Empregador. Despersonalização. Redirecionamento aos sócios. Quando a executada não possui bens passíveis de penhora nem numerário em conta bancária, para a garantia da dívida trabalhista, cabível e afigura o redirecionamento da execução contra os sócios. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Agravo não provido.
24
Desconsideração da personalidade jurídica – inexistência de bem da sociedade – débito trabalhista – cabimento. a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicável para garantir o cumprimento de decisão trabalhista quando inexistem bens da empresa executada a fim de que preserve o direito do empregado que contribuiu para o desenvolvimento da atividade empresarial.
25
Assim, a simples hipótese de prejuízo à satisfação do direito de crédito do
empregado frente à pessoa jurídica empregadora enseja, perante a Justiça do
Trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica. A limitação da
responsabilidade, portanto, não representa obstáculo para satisfação do direito do
empregado da sociedade personificada.
Ocorre que o simples inadimplemento da obrigação da pessoa jurídica não encontra
amparo legal para ensejar a desconsideração. Mesmo assim, a Justiça do Trabalho,
usualmente, reputa que esse evento, por si só, é suficiente para que o patrimônio
24
TRT, 4ª Região. AP nº 00906-1994-731-04-00-7. 2ª Turma. Rel. Juiz João Pedro Sivestrin. J. em 14/05/2008. Pub. No DOERS em 23.05.2008 25
TRT, 20ª Região. AP. 00011-2007-920-20-00-3. Rel.: Juiz Convocado Jorge Antônio Andrade Cardoso. J. em 14.03.2007
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pessoal dos sócios seja atingido em valor suficiente para satisfazer o crédito
executado.
Em outra palavra, não se reputa, por parte do interessado na desconsideração, a
produção da prova da ocorrência de abuso ou qualquer uma das hipóteses do artigo
50 do Código Civil. Basta que seja demonstrado o inadimplemento da pessoa
jurídica empregadora para o avanço da execução em face dos sócios. A Justiça do
Trabalho, inclusive, desconsidera a personificação societária de sociedades dotadas
de responsabilidade limitada para seus sócios ainda que o capital esteja
completamente integralizado.
Criou-se, assim, uma exceção jurisprudencial ao regime legal de responsabilidade
patrimonial os sócios das sociedades de responsabilidade limitada, na medida em
que a personalidade jurídica – e, portanto, também a limitação de responsabilidade –
é desconsiderada com base em fundamento distinto do autorizado pelo artigo 50 do
Código Civil, regra em sintonia com os postulados em que se alicerçou a construção
da teoria da desconsideração.
O direito do trabalho não ignora o conceito de pessoa jurídica. Apenas reputa que os
créditos atribuídos aos trabalhadores não podem ser sacrificados por quaisquer
outras faculdades reconhecidas pelo Direito. Desse modo, enquanto não se verifica
risco de sacrifício aos créditos outorgados aos trabalhadores, a personalidade
societária é plenamente eficaz.
Embora haja um vazio legislativo, sua aplicação decorre da caracterização dos
princípios norteadores da relação trabalhista, tais como o “da proteção”, “da
dignidade da pessoa humana”, “do enriquecimento sem causa”, “da necessidade de
o trabalhador ser recompensado”.
Entretanto, há divergência doutrinária acerca de haver ou não necessidade de se
exigir a fraude e o abuso da personalidade jurídica como requisitos para utilização
da teoria da desconsideração no processo trabalhista.
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Ives Gandra da Silva entende que a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica só pode ser invocada se comprovada fraude na formação ou dissolução da
sociedade, levando à responsabilização dos sócios pelo passivo social,
independentemente da sua participação maior ou menor no capital da sociedade.26
Aryon Sayão Romita entende que o empregado é imune aos riscos da atividade
econômica e que não pode ser prejudicado diante de uma execução insuficiente.27
Alguns civilistas e comercialistas criticam o que chamam de banalização na
aplicação da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica no trabalhista.
Entendem que por não se tratar de um instituto legal, porque não disciplinado pelo
direito material e processual, mas sim uma doutrina, deve ser esta aplicada
restritivamente, isto é, limitadas às disposições legais permissivas.
Portanto, inegável a necessidade de estabelecer limites a essa cadeia sucessória de
responsabilidade patrimonial trabalhista. Também necessário que a aplicação desta
doutrina observe a garantia do devido processo legal, uma vez que se trata de uma
das mais importantes garantias legais.
O direito trabalhista constituiu-se noutro instrumento que tem como escopo proteger
a parte hipossuficiente da relação jurídica, utilizando a doutrina da desconsideração
como meio de salvaguarda dessa relação.
Natureza alimentar do crédito trabalhista
O salário constitui a fonte principal, senão única, de vida para o trabalhador.
Portanto, possui caráter alimentício: meio principal de satisfação das necessidades
alimentares do trabalhador e de sua família.
Devido à natureza alimentar dos créditos trabalhista, diversos dispositivos legais lhe
conferiram posição hierárquica e privilégios superiores a quaisquer outros. A
preferência pelos créditos trabalhistas vem expressamente validada no artigo 186 do 26
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Manual esquemático de direito e processo do trabalho. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999 27
ROMITA, Aryon Sayão. Responsabilidade solidária do sócios ou administradores pelas dívidas trabalhistas. São Paulo: Ltr, 1998
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Código Tributário Nacional, que determina sua preferência sobre os créditos
tributários, assim como o artigo 449 da CLT reafirmou esse privilégio ao dizer que
subsistirão os direitos oriundos da existência do contrato de trabalho em caso de
falência – exceto as restituições e os extraconcursais - ou dissolução da empresa.
Também o direito processual atribuiu proteção ao crédito trabalhista, conforme nos
mostra o artigo 649, IV, do Código de Processo Civil.28 A reafirmação mais recente
da natureza alimentar do crédito trabalhista foi conferida pela Emenda Constitucional
nº 37 de 12/06/02, que alterou o artigo 100 da Constituição Federal de 1988,
simplificando o pagamento de condenações trabalhistas contra a Fazenda Pública,
excluindo-o da ordem cronológica de apresentação de precatórios.
Neste sentido, a Consolidação das Leis Trabalhistas, em seu artigo 2º, § 2º, e a Lei
nº 5.889/73 (artigo 3º, § 2º), que trata do grupo de empresas rurais, introduziram a
desconsideração da personalidade jurídica no campo do Direito do Trabalho
brasileiro, preceituando o que segue:
Art. 3º - Considera-se empregador, rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados. § 2º Sempre que uma ou mais empresas, embora tendo cada uma delas personalidade jurídica própria, estiverem sob direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico ou financeiro rural, serão responsáveis solidariamente nas obrigações decorrentes da relação de emprego.
Também nas hipóteses e fraudes e abusos, como se percebe nos artigos 9º, 10 e
448 da CLT:
Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar,
impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
28 Artigo 649. São absolutamente impenhoráveis:
(...) IV – os vencimentos dos magistrados, os professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, alvo para pagamento de pensão alimentícia;
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Art. 10 - Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos
adquiridos por seus empregados.
Art. 448 - A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não
afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados.
No entanto, ela admitiu, de forma demasiadamente abrangente, a doutrina da
desconsideração, uma vez que previu a possibilidade de se atingir o patrimônio de
outras sociedades integrantes de grupos econômicos, excepcionando a autonomia
patrimonial decorrente da personificação das várias pessoas jurídicas integrantes do
conglomerado, e estabeleceu que, além de empregadora, também as demais
sociedades são solidariamente responsáveis pelo débito trabalhista da
empregadora.
Note-se, porém, que o referido dispositivo legal não exige prova de fraude,
tampouco abuso para que outras empresas respondam por dívidas trabalhistas
desta, bastando simplesmente que integrem o mesmo conglomerado.
Diante destas considerações, podemos inferir por que este dispositivo é alvo de
tantas críticas, nas quais diversos doutrinadores têm opiniões divergentes ao
enquadrá-lo como hipótese que revela uma autêntica aplicação da desconsideração
da personalidade jurídica.
Eis a opinião de Alexandre Couto Silva, que não vê no § 2º, do artigo 2º da CLT uma
consagração da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica:
“O § 2º, do artigo 2º da CLT não se refere à desconsideração, por três motivos: primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque se trata de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo.”
29
Já Rubens Requião concebe como “uma única entidade econômica a união de
29
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999, p. 112
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empresas mater e suas filiadas para os efeitos do direito social”.30 Destarte, está
admitindo a aplicação da doutrina pela CLT, pois está desprezando a personalidade
da pessoa jurídica para atingir a personalidade dos membros que a compõem.
Mesmo diante de opiniões divergentes quanto à consagração ou não, no referido do
dispositivo legal, da doutrina desconsideração, o fato é que os juízes do trabalho,
baseados no princípio in dúbio pro operario, com a finalidade de tutelar o
trabalhador, para compensar sua inferioridade econômica com a superioridade
jurídica, e como reflexo de uma justiça de caráter eminentemente social e sensível à
realidade econômica, adotaram a aplicação da desconsideração da personalidade
para evitarem que ocorram abusos e outras práticas nocivas ao trabalhador.
Importa salientar, o quão distante estão os tribunais trabalhistas do conceito original
de desconsideração da personalidade jurídica, visto que para a aplicação da teoria
da desconsideração é necessária a comprovação de fraude ou abuso, no entanto, é
pacífico o entendimento de que não são exigíveis tais constatações.
Contudo, a maioria dos estudos que versam sobre a doutrina da desconsideração da
personalidade jurídica são dirigidos ao Direito Material e não ao Direito Processual.
Não obstante a responsabilidade patrimonial se afigurar um instituto do direito
material, porque decorrente da relação obrigacional, também será um instituto de
direito processual, quando necessária à atuação do Estado, mediante a tutela
jurisdicional para o cumprimento forçado da obrigação.
O fundamento jurídico justificador da constrição do patrimônio do devedor para
satisfazer a obrigação, decorre da relação jurídica obrigacional, composta de dois
elementos: o débito, de natureza de direito material, e a responsabilidade de
natureza processual.
Essa diferenciação entre dívida e responsabilidade é fundamental quando se
pretende estabelecer a possibilidade de alcance de patrimônio de terceiro, através
da doutrina da desconsideração.
30
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1969, v. 410, p. 12-24
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Portanto, a dívida não se confunde com a responsabilidade. A dívida é pessoal,
vinculando no Direito do Trabalho o empregado e o empregador. A responsabilidade
vincula o crédito exequendo com o patrimônio do executado, mas com a diferença
de que esse executado poderá ser o devedor ou terceiros responsáveis, seja em
decorrência de normas legais, seja em face da aplicação da doutrina da
desconsideração.
Pode-se classificar a responsabilidade patrimonial em primária e secundária, uma
vez que os artigos 591 e 592 do CPC, estabelecem que o devedor responde para o
cumprimento de suas obrigações, com todos os bens presentes e futuros, bem como
também ficam sujeitos à execução os bens dos sócios.
A doutrina da desconsideração dirige-se à responsabilidade patrimonial secundária,
nos casos onde não houve previsão legal do alcance do patrimônio de terceiros.
A CLT tratou da responsabilidade patrimonial nos artigos 876 a 892, contudo, é
omissa quanto à responsabilidade secundária, devendo ser aplicados os artigos 596
e 597 do CPC que tratam de execução.
Artigo 592. Ficam sujeitos à execução os bens:
I- do sucessor a título singular, tratando-se de execução e sentença
proferida em ação fundada em direito real;
II- do sócio, nos termos da lei;
III- do devedor, quando em poder de terceiros;
IV- do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou
de sua meação respondem pela dívida;
V- alienados ou gravados com ônus de execução
Nesse dispositivo legal encontram-se grande acervo de hipóteses em que a doutrina
da desconsideração da personalidade jurídica do devedor se aplica. O entendimento
majoritário é que a relação dos referidos incisos é exemplificativo e não taxativa.
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Contudo, pior é a decisão judicial tomada sem qualquer averiguação da existência
de abuso de personalidade jurídica ou ato ilegal ocasionado pelo executado (seja
administrador, gestor, diretor, sócio, ex-sócio ou procurador do sócio). Mormente
ocorre a referida execução contra os sócios, porque a empresa envolvida não teve
condições financeiras em honrar determinada dívida, ou ainda é mais grave, porque
há dificuldade de localização de bens de sua propriedade para serem penhorados
(embora até possam existir).
Do processo de execução trabalhista
Conforme reza o artigo 889 da CLT, aplicar-se-á ao processo de execução
trabalhista a Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980) que,
em seu artigo 4º, elenca as pessoas que constituem a parte passiva na execução, e
caberá ao juiz valer-se do CPC subsidiariamente, conforme artigo 769 da CLT.
É possível dizer que este é o segmento do direito processual no qual a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica se adapta por excelência, pois é o
momento da execução em que o trabalhador poderá ter seu crédito efetivamente
satisfeito.
Não é apenas a natureza alimentar dos créditos trabalhistas, o protecionismo ao
trabalhador, a dignidade da pessoa humana e o fato do enriquecimento sem causa
que justificam a abrangência dos meios executórios, mas também a imunidade do
empregado aos riscos do empreendimento, conforme artigo 2º da CLT: “Considera-
se empregador a empresa individual ou coletiva, que, assumindo os riscos de
atividade econômica, admite, assalaria dirige a prestação pessoal de serviços.”
Há de se discutir sobre a garantia constitucional da ampla defesa no processo de
execução, já que, ao contrário do que ocorre no processo de conhecimento, há
poucas possibilidades de defesa do executado e ao terceiro.
A análise retirada do presente estudo demonstra que a garantia da ampla defesa,
mesmo o executado não tendo sido parte do processo de conhecimento, foi
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respeitado, pois a sua ampla defesa poderá ser operacionalizada com o manejo dos
embargos à execução e de terceiros.
Considerações finais
Independentemente dos fundamentos decisórios levados a efeito nas decisões
proferidas pela Justiça do Trabalho, evidentemente estabelecidos a partir de um
predicado de proteção do hiposuficiente, da instrumentalidade da celeridade, o que
se percebe é o afastamento entre as decisões e o que prevê a legislação aplicável.
Essa suposta discricionariedade do magistrado, envolvendo a ponderação entre o
caso concreto e o amplo espectro das fontes do direito, dentro de um conceito
derivado do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro e artigo 126 do
Diploma Processual, porquanto a legislação especial apenas é aplicável por
analogia, nega vigência à lei geral (artigo 50 do Código Civil) e estabelece, por
critérios próprios e que são evidenciados na jurisprudência, parâmetros não
previstos pelo legislador, como se houvesse um Poder Normativo que, efetivamente,
revela atuação legiferante.
Neste desiderato, a atuação jurisdicional transcende a própria razão ontológica da
desconsideração, ao estabelecer aplicação objetiva deste instituto como forma de
dar efetividade à jurisdição, mas, ao mesmo tempo em que sua aplicação aponta
para o caminho mais curto, possui potencial de criar injustiças e que afasta a
atuação jurisdicional da imparcialidade e da própria legalidade, quando se julga por
presunção e se impõe constrição sem amparo legal.
Assim, o magistrado se afasta da atuação como intérprete, da aplicação de regras
hermenêuticas, e assume função de legislador para o caso concreto.
Não pretendo negar o fato que a deturpações no uso da pessoa jurídica, o que deve
ser coibido, mas a forma com vem sendo este tema enfrentado, pela aplicação da
teoria da desconsideração, impõe não apenas injustiças, pois gera instabilidade nas
relações e imprevisibilidade para aquele que empreende atividade econômica.
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Ora, o que deve ser coibido é o abuso de direito, representado pelo desvio de
finalidade da pessoa jurídica ou confusão patrimonial, mas não pode negar que a
atividade empresarial pressupõe riscos, que não podem simplesmente transcender a
pessoa jurídica e atingir sócios, sob pena de negar vigência ao livre exercício da
atividade econômica.
O que deve ser considerado é que a ausência de cumprimento de obrigações por
parte da pessoa jurídica necessariamente não deriva de fraude ou gestão irregular
(muito embora haja situações de simples responsabilidade civil), pois a pessoa
jurídica possui autonomia e independência patrimonial.
Com efeito, trata-se de um equívoco interpretar casos concretos pela aparência e,
sob sua justificativa, avocar a aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, pois está impõe efeitos multifacetários e que não podem
estar estruturados em juízo eminentemente subjetivo, ao que se interpretaria como
arbítrio ou discricionariedade do juízo, sendo inegável que as decisões proferidas,
mesmo que em caráter incidental, repercutem em relações de terceiros, na medida
em que criam precedentes, pautando outras decisões.
Da mesma forma, não se pode tangenciar, sob pretexto de uma “justiça pontual”,
que a livre iniciativa econômica é um preceito constitucional, tão relevante quanto o
meio ambiente, o trabalho e a dignidade da pessoa humana, pois o desenvolvimento
econômico é fundamental como meio para satisfazer os direitos prometidos na
nossa Constituição.
Deixando-se de lado as ideologias ou recursos de retórica, deve ser ressaltado que
a pessoa jurídica constitui a sustentação de qualquer economia moderna e tem
como objetivo o lucro, e se a missão do Judiciário for a “justiça caso a caso”, como
medida de proteção a parte materialmente hiposuficiente, é evidente que estará e
criando entraves a atividade empreendedora, assumindo o Judiciário uma posição
de parcialidade.
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