Desenvolver o cálculo mental: Construção de uma teoria local de
aprendizagem através de uma Investigação Baseada em Design
Renata Carvalho1, João Pedro da Ponte2
1Agrupamento de Escolas Joaquim Inácio da Cruz Sobral, Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, [email protected]
2Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, [email protected] !
Resumo. A Investigação Baseada em Design (IBD) é uma metodologia de investigação promissora que começa a dar os seus passos em Portugal, apesar de ser usada em educação desde a década de 90. O objetivo deste artigo é descrever as potencialidades da IBD na construção de uma teoria local de aprendizagem relativa ao desenvolvimento de estratégias de cálculo mental com números racionais dos alunos do 6.º ano e refletir sobre essa experiência. Subjacente à construção desta teoria local de aprendizagem está o aperfeiçoamento do quadro teórico, do design da experiência e de conjeturas de ensino aprendizagem, ao longo de dois ciclos de experimentação, tendo por base as reflexões da equipa de investigação sobre a preparação de tarefas, as observações em sala de aula e as análises retrospetivas.
Palavras-chave: investigação baseada em design; cálculo mental; números racionais; teoria local de aprendizagem.
Abstract. Design Based Research (DBR) is a promising methodological approach that is making its first steps in Portugal, despite being used in education since the decade of 90. The aim of this article is to describe the potential of DBR in the construction of a local instructional theory for the development of students’ mental computation strategies with rational numbers in grade 6 and to reflect on this experience. Underlying the construction of this local instructional theory is the improvement of the theoretical framework, of the design experience and of learning conjectures, during two experimental cycles, based on reflections of the research team about the preparation of tasks, classroom observation and retrospective analysis.
Keywords: design-based research; mental computation; rational numbers; local learning theory.
Introdução
A complexidade do ambiente de aprendizagem de uma sala de aula constitui um desafio
para a investigação em educação. A compreensão das múltiplas interações que surgem,
bem como das aprendizagens proporcionadas aos alunos requerem metodologias de
investigação sofisticadas, como a Investigação Baseada em Design (IBD)1. Esta
metodologia começou a surgir em educação a nível internacional (Cobb, Confrey,
diSessa, Lehere, & Schauble, 2003; Collins, Joseph, & Bielaczyc, 2004) na década de 90,
Martinho, M. H., Tomas Ferreira, R. A., Vale, I., & Guimaraes, H. (Eds.) (2016).Atas Provisorias do XXVII Sem. Investigacao em Educacao Matematica. Porto: APM, pp.311–326
mas, em Portugal, só muito recentemente começou a ser usada, principalmente em
estudos de doutoramento (Ponte, Carvalho, Mata-Pereira, & Quaresma, em preparação).
A IBD surge como forma de testar e refinar projetos educacionais baseados em
princípios derivados de investigações anteriores (Collins et al., 2004). Esta perspetiva
de refinamento progressivo, que a diferencia de simples experiências de ensino, envolve
a experimentação de uma primeira versão de um projeto ou de uma sequência de
tarefas, analisando os seus efeitos e revendo-a em ciclos sucessivos, sempre com base
na experiência.! Esta metodologia permite não só testar mas também gerar teorias.
Gravemeijer e Cobb (2006) acrescentam que a IBD pode contribuir para minimizar o
fosso que existe entre a teoria e a prática educacional uma vez que incide sobre
problemas que surgem a partir da prática.
Esta comunicação constitui uma reflexão sobre um estudo de IBD que teve origem em
problemas da prática de ensino identificados pela primeira autora, nomeadamente, das
dificuldades dos alunos na aprendizagem dos números racionais e quase ausência de
cálculo mental com este conjunto numérico. O seu objetivo é descrever as
potencialidades desta metodologia na construção de uma teoria local de aprendizagem
relativa ao desenvolvimento de estratégias de cálculo mental com números racionais dos
alunos do 6.º ano e refletir sobre essa experiência.
Investigação Baseada em Design
Cobb et al. (2003) consideram a IBD uma metodologia de investigação propícia à
compreensão de ecologias de aprendizagem. Para os autores, uma ecologia de
aprendizagem é um sistema complexo de interações que envolve múltiplos elementos de
diferentes tipos e níveis, incluindo as tarefas que os alunos resolvem, o discurso que é
encorajado na sala de aula, as normas de participação estabelecidas, as ferramentas e
materiais usados e as relações que se estabelecem entre estes elementos. Esta
metodologia parte da conceção destes elementos, procurando antecipar como estes
funcionam em conjunto para apoiar a aprendizagem.
Cobb, Jackson e Dunlap (2016) caracterizam a IBD por cinco aspetos essenciais: (i)
incide sobre problemas da prática, procurando promover a aprendizagem dos alunos, a
formação de professores ou a mudança sistémica; (ii) baseia-se em intervenções, para
transformar processos que ocorrem em contextos reais; (iii) tem uma forte orientação
teórica e pragmática; (iv) rege-se pelo teste, revisão ou rejeição de conjeturas sobre
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processos e meios de promover a aprendizagem ou a mudança; e (v) dada a sua
preocupação teórica, visa a generalidade.!
Gravemeijer e Cobb (2006) consideram que a IBD desenvolve-se segundo três fases: (i)
preparação; (ii) experimentação em contexto; e (iii) análise retrospetiva. Além disso,
inclui ciclos e microciclos de intervenção e revisão onde se testam e/ou criam novas
teorias (Cobb et al., 2003). O processo interativo que ocorre nos ciclos e microciclos de
intervenção caracteriza-se por ser prospetivo e reflexivo (Cobb et al., 2003): é
prospetivo, no sentido em que as experiências de ensino são realizadas de acordo com
um processo de aprendizagem sujeito a constantes refinamentos e reformulações, e é
reflexivo, porque envolve testes de conjeturas muitas vezes conduzidos em vários níveis
de análise.
A fase de preparação contempla a clarificação da intenção teórica, dos pressupostos da
intervenção onde se incluem objetivos de aprendizagem ou possíveis transformações
pretendidas, bem como a elaboração de uma conjetura de ensino aprendizagem a testar e
a aperfeiçoar ao longo dos ciclos de experimentação (Cobb et al., 2003). Nesta fase
poderão ser realizados estudos preliminares que representem uma mais-valia para a
compreensão da ecologia de aprendizagem (Plomp, 2007). A par disto, Collins et al.
(2004) alertam para a necessidade de se prever diferentes formas de “olhar” a
experiência, ou seja, o foco e as variáveis dependentes e independentes que podem ser
pontos críticos da experiência.
Na fase de preparação é importante pensar nestes aspetos para posteriormente perceber
como se relacionam a fim de avaliar a experiência e sua realização. Collins et al. (2004)
consideram que o foco deve ser contemplado a vários níveis: cognitivo, interpessoal,
grupo ou sala de aula, recursos, escola ou instituição. Por exemplo, o foco de análise de
uma experiência de ensino pode estar na relação entre as regras de sala de aula ou
padrões de argumentação matemática e científica e a aprendizagem dos alunos ou no
modo como a diversidade de experiências dos alunos pode ser um recurso para perceber
as suas ideias.
No que se refere às variáveis dependentes, Collins et al. (2004) consideram que existem
três grandes tipos que, de certo modo, se relacionam com os diversos focos sobre os
quais incide a análise e avaliação da experiência de ensino: variáveis de ambiente, que
inclui o envolvimento dos alunos na aprendizagem em sala de aula, a cooperação entre
alunos, bem como o esforço que fazem para entender o tema que está a ser abordado;
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variáveis de aprendizagem, tais como o conhecimento do conteúdo, capacidades (skills),
disposições, estratégias metacognitivas, estratégias de aprendizagem; e variáveis
sistémicas, como a sustentabilidade, extensão, escalabilidade, facilidade de adaptação e
os custos. As variáveis de ambiente e de aprendizagem implicam a negociação de
normas sociais para as discussões de sala de aula, formas organizadas de intervir e
explicar raciocínios e normas sociomatemáticas (Yackel & Cobb, 1996).
No que respeita às variáveis independentes, Collins et al. (2004) identificam seis que
importa ter em conta: o contexto/ambiente de aprendizagem; as características dos
alunos; o suporte técnico; o apoio financeiro; o desenvolvimento profissional; e a
trajetória da implementação. No entanto, destacam o contexto/ambiente de
aprendizagem como uma variável crítica para o desenvolvimento de qualquer
experiência, bem como as características dos alunos (idade, nível socioeconômico, taxa
de rotatividade, etc.). Consideram ser importante determinar para que tipo de alunos a
experiência é eficaz e de que forma, uma vez que esta pode não funcionar do mesmo
modo com alunos com características diferentes. Este é um aspeto que reforça a
necessidade de experimentação em contextos diversos tal como referem Nieveen,
Mckenney e Van den Akker, (2006).
Na fase de experimentação, Cobb et al. (2003) defendem um envolvimento direto da
equipa de investigação na sala de aula para que seja possível observar as ocorrências e
posteriormente refletir sobre elas. Assim, consideram que é importante: ter uma visão
clara dos percursos de aprendizagem esperados e dos meios possíveis de apoio que
devem ser mantidos e partilhados pela equipa de investigação; manter relações
permanentes entre os profissionais; desenvolver uma profunda compreensão da ecologia
da aprendizagem, não só para facilitar a logística, mas porque esse entendimento é um
objetivo teórico para a investigação; e realizar sessões regulares entre os elementos da
equipa para interpretar acontecimentos e planear novas intervenções. Consideram
importante que a equipa faça registos completos do processo para documentar as
conjeturas em evolução, juntamente com as observações realizadas.
A fase de análise retrospetiva contempla a análise de um grande volume de dados, o que
representa um dos grandes desafios da IBD (Cobb et al., 2003), embora este aspeto
contribua para a credibilidade dos estudos. Esta análise é realizada no final de cada ciclo
de experimentação, enquadrando o conhecimento produzido num contexto teórico mais
amplo. Nieveen et al. (2006) indicam que, no final, o conhecimento produzido traduz-se
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num conjunto de princípios de design que não pretendem ser receitas para o sucesso,
mas sim linhas orientadoras para quem pretende aplicar o conhecimento produzido a
novos contextos. Pelo seu lado, Gravemeijer (2004) refere que a IBD cria “teorias
locais” fortemente influenciadas por conjeturas de ensino-aprendizagem.
Metodologia
O presente trabalho tem por base um estudo qualitativo e interpretativo (Denzin &
Lincoln, 2005) seguindo uma abordagem de IBD (Cobb et al., 2003). Participam duas
professoras e duas turmas do 6.º ano (39 alunos), que tinham previamente abordado as
quatro operações com números racionais nas suas várias representações (decimal,
fração, percentagem) e a primeira autora (daqui em diante designada por investigadora)
como observadora participante. De cordo com a metodologia IBD, o estudo
desenvolveu-se em três fases (figura 1): preparação, experimentação e análise.
Figura 1. Fases do estudo.
A preparação envolveu uma primeira revisão de literatura e um estudo preliminar, com
alunos do 5.º ano da investigadora em 2010/11. Este estudo baseou-se numa conjetura
inicial (quadro 1) e num protótipo de experiência de ensino com 6 tarefas de cálculo
mental, tendo por objetivo perceber as estratégias e erros dos alunos no cálculo mental
com números racionais e as dinâmicas inerentes à realização de uma experiência de
ensino centrada em tarefas de cálculo mental e na discussão coletiva dessas tarefas, a ser
aperfeiçoada em dois ciclos de experimentação a realizar em 2012 e 2013.
Posteriormente foi construída uma nova experiência de ensino tendo por base uma
conjetura que evoluiu do estudo preliminar para o ciclo de experimentação I (quadro 1).
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Quadro 1.
Evolução da conjetura de ensino aprendizagem
A planificação da experiência de ensino contempla a clarificação da intenção teórica da
experiência (Cobb et. al., 2003), que relaciona o objetivo geral do estudo com as
condições em que este ocorre (quadro 2). Contudo, o estudo de fenómenos complexos
como as ecologias de aprendizagem não permite a especificação completa de tudo o que
acontece, tornando-se fundamental definir os elementos que podem ser essenciais,
auxiliares, acidentais ou assumidos como condições de fundo. Assim, definimos focos
de análise e variáveis dependentes e independentes (tabela 1). A definição destes focos e
variáveis, essenciais na IBD, apoiou uma análise e reflexão focada em aspetos
suscetíveis de influenciarem o design da experiência, nos dois ciclos de experimentação,
dando origem a refinamentos no quadro teórico, nas tarefas e gestão da discussão na
sala de aula, como exemplificamos adiante. A fase de experimentação contempla dois
ciclos realizados em duas escolas diferentes. Os dados foram recolhidos recorrendo a
observação direta e participante da investigadora nas aulas em que se realizam tarefas
de cálculo mental e de reuniões de preparação/reflexão da experiência de ensino com as
professoras participantes.
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Tabela 1.
Aspetos considerados na construção da experiência de ensino
A experiência de ensino elaborada pela investigadora foi discutida e preparada com as
professoras das turmas que a realizaram na sala de aula. A experiência é constituída por
10 tarefas de cálculo mental envolvendo números racionais nas representações
fracionária, decimal e percentagem e questões em contexto matemático (expressões com
e sem valor em falta) e não matemático (situações contextualizadas). As tarefas foram
apresentadas aos alunos através de um PowerPoint temporizado, tendo estes 15
segundos para resolver cada expressão e 20 segundos para resolver cada situação
contextualizada e anotar o resultado numa folha de registo. As tarefas possuem duas
partes, cada uma com cinco questões de cálculo mental, sendo no final de cada parte
promovida uma discussão coletiva com partilha de estratégias dos alunos. A gestão
desta discussão na sala de aula foi da responsabilidade das professoras intervindo, por
vezes, a investigadora para esclarecer aspetos relacionados com a comunicação de
estratégias e erros dos alunos. As reuniões de trabalho com as professoras foram áudio-
gravadas e as aulas de cálculo mental foram áudio e vídeo-gravadas para posterior
análise e reflexão sobre os momentos de discussão coletiva. Em cada ciclo de
experimentação, surgem diversos microciclos influenciados pela reflexão realizada pela
investigadora e professoras sobre a forma como decorrem as aulas de cálculo mental, a
adequação do tempo previsto para cada tarefa, estratégias, erros e dificuldades dos
alunos no cálculo mental, contributos do cálculo mental para o tópico matemático
abordado nas restantes aulas de Matemática, aspetos a melhorar na gestão da discussão
e pontos fortes e fracos da aula. Esta reflexão, em conjunto com uma revisão de
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literatura continuada, permitiu aprofundar a conjetura de ensino aprendizagem ou teoria
local de aprendizagem, no sentido de a tomar cada vez mais específica e suscetível de
orientar dinâmicas e abordagens na sala de aula capazes de promover o
desenvolvimento do cálculo mental dos alunos com números racionais.
O quadro teórico (quadro 2) começou por constituir um conjunto de ideias para o
desenvolvimento do cálculo mental dos alunos, tendo por base literatura de referência
(e.g., Caney & Watson, 2003), sendo posteriormente fortalecido com teorias no âmbito
da Psicologia Cognitiva (a Teoria dos Modelos Mentais de Johnson-Laird, 1990) e
estabelecido um conjunto de relações que emergiram da análise de dados.
O refinamento deste quadro teórico centrou-se, primeiro na inclusão do conceito de
imagem mental como elemento essencial ao cálculo mental dos alunos, e posteriormente
evoluiu para representações mentais tendo em conta a teoria de Johnson-Laird (1990).
Numa segunda fase, as tarefas e a comunicação foram excluídas do quadro concetual
por não serem conceitos a desenvolver nos alunos, embora a sua importância seja
indiscutível no quadro da experiência de ensino realizada. São um meio para atingir o
fim pretendido. A referência ao sentido de número foi retirada do quadro concetual, não
por não ser importante, mas por não ser um dos conceitos a analisar. Por fim, e à
medida que a experimentação em ambos os ciclos foi evoluindo, a perceção das relações
entre o uso de factos numéricos, regras memorizadas e relações numéricas foi sendo
clarificada e aprofundada através da análise das estratégias dos alunos.
Na fase de análise foram visionados e transcritos episódios de aula. Este visionamento
decorreu ao longo de toda a experimentação permitindo análises preliminares dos dados,
tendo presentes os focos e variáveis definidas no quadro 2. Neste sentido, a análise
retrospetiva constituiu uma constante ao longo do estudo. No final, esta análise foi
aprofundada permitindo compreender não só estratégias e erros de cálculo mental dos
alunos, mas também a evolução destas estratégias ao longo da experimentação e a
avaliação da experiência de ensino do ponto de vista do design e realização.
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Quadro 2.
Evolução do quadro teórico
Ciclo I – Ponto de partida
Ciclo I – Final do ciclo
Ciclo II – durante a experimentação
Ciclo II – Final do ciclo
Processo de construção de uma teoria local de aprendizagem
Na fase de experimentação foram realizados dois ciclos de experimentação. Os
momentos de preparação das tarefas e de reflexão pós-aula em conjunto com as
professoras participantes, foram potenciadores de refinamentos ao nível do design da
experiência de ensino (tarefas e gestão da discussão) e do quadro teórico como
apresentado na metodologia. Estes refinamentos culminaram no aperfeiçoamento
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sucessivo da conjetura de ensino-aprendizagem desde o estudo preliminar até ao ciclo
de experimentação II (quadro 1). Tendo por base os focos e variáveis definidos na fase
de preparação do IBD, em cada ciclo de experimentação, foram identificados os aspetos
mais significativos e passíveis de originar refinamentos. Apresentamos exemplos de
alguns destes aspetos, que originaram alterações ao nível do design da experiência. Uma
análise mais completa e detalhada encontra-se em Carvalho (2016).
As tarefas
Os refinamentos realizados nas tarefas foram mais significativos no ciclo de
experimentação II do que no ciclo I. No ciclo de experimentação I, as alterações mais
significativas ocorreram a partir da tarefa 7 onde se intercalaram questões com e sem
valor em falta, quando antes se apresentavam expressões sem valor em falta na parte 1 e
expressões com valor em falta na parte 2 das tarefas (figuras 2 e 3). Subjacente a esta
alteração, estão reflexões sobre as estratégias dos alunos (foco cognitivo) e respetiva
evolução (variável de aprendizagem). Inicialmente antecipámos uma evolução das
estratégias dos alunos da parte 1 para a parte 2 das tarefas uma vez que se promovia
uma discussão aquando da resolução da parte 1, mas o grau de dificuldade de ambas as
partes pareceu-nos condicionar esta evolução, pelo que decidimos apresentar tarefas
mais equilibradas. Outro aspeto que influenciou esta decisão foi a dificuldade de alguns
alunos em estabelecerem relações numéricas pelo que a alternância de expressões com
valor em falta, potenciadoras do uso de pensamento relacional (Carpenter et al., 2003),
com outras sem valor em falta pareceu-nos mais adequado. Esta alteração manteve-se
no ciclo II.
No ciclo de experimentação II, um aspeto que marcou a experiência foi a dificuldade
dos alunos em resolver expressões e não situações contextualizadas, como aconteceu no
ciclo I. Isso levou-nos a efetuar uma organização diferente das questões por tarefa no
ciclo II. A par disto, os erros manifestados pelos alunos no ciclo II no cálculo de
expressões e a sua dificuldade em encontrarem estratégias de resolução para uma dada
expressão (foco cognitivo) fez-nos perceber a necessidade de adaptar a experiência a um
contexto de aprendizagem diferente (variável sistémica) onde os conhecimentos prévios
dos alunos estavam aquém do que era esperado e antecipado pela investigadora e pela
professora na preparação das tarefas. De notar que os dois ciclos de experimentação
foram realizados em turmas com características diferentes2 o que fez com que a variável
sistémica em conjunto com a variável independente (contexto/ambiente de
320 XXVII SIEM - Vers~ao Provisoria
aprendizagem) assumissem alguma importância pela necessidade sentida em adequar a
experiência no ciclo II, não só nas tarefas mas na gestão da discussão na sala de aula
como iremos referir adiante.
Figura 2. Proposta inicial de tarefa 9.
Figura 3. Proposta reajustada da tarefa 9 no ciclo I.
Para ilustrar a dificuldade dos alunos em resolver expressões, apresentamos a estratégia
de Luís (ciclo II) para o cálculo de !! +!! logo na tarefa 1: “[!!] Eu fiz da mesma maneira
que a Cristina: 1+1 e 2+2” ou a de António para o cálculo de !! +!! (tarefa extra a meio
da experiência): “Eu pensei assim, já que são os dois com o mesmo numerador eu posso
somar e dá !!”. Estas estratégias mostram dificuldades na compreensão do conceito de
fração, influenciando a forma como os alunos operam na ausência de contexto da
realidade. No caso das operações com numerais decimais, os alunos manifestaram uma
forte tendência para recorrer a contextos de dinheiro, que em situações de adição e
subtração ou de multiplicação de um decimal por um inteiro são uma boa representação
mental de apoio (tendo-se verificado algum sucesso em operações deste tipo). Evidência
disto é a estratégia de Bernardo que, mesmo numa situação contextualizada envolvendo
o conceito de perímetro3, recorre ao modelo mental de um contexto de dinheiro para
realizar o cálculo: “Eu pensei em dinheiro… Pensei que tinha 4 amigos e que precisava
de emprestar dinheiro aos 4. Reparti o 8,8 deu-me 2,2”. Quando surgem questões
envolvendo a multiplicação de numerais decimais este tipo de contexto manifesta-se
321 XXVII SIEM - Vers~ao Provisoria
desadequado e os alunos voltam a cometer erros baseados na incompreensão de relações
numéricas, como mostra a estratégia de Rui para o cálculo de 25,5×?= 5,1 (tarefa 5
ciclo II): “[5] Vê-se logo. 5×5 dá 25 e 5×1, 5”. Rui não recorreu a contexto de
dinheiro, mas estabeleceu uma relação entre 5,1 e 25,5 em vez de fazer o contrário.
Os erros evidenciados pelos alunos no cálculo de expressões simples, associados à
perceção que tivemos da falta de representações mentais de contextos diversos
(Carvalho, 2016) que pudessem apoiar os alunos no cálculo mental, levou-nos, a partir
da tarefa 5, a recorrer a tarefas maioritariamente mistas (parte 1 com situações
contextualizadas e parte 2 com expressões) para que a discussão da parte 1 pudesse
influenciar positivamente a compreensão de representações simbólicas e seu significado
apresentadas nas expressões da parte 2. A figura 4 mostra os ajustamentos efetuados na
tarefa 9 para o ciclo II.
Figura 4. Tarefa 9 reajustada para o ciclo II.
A gestão da discussão na sala de aula
A discussão na sala de aula e interação entre alunos (foco interpessoal) mereceu muita
reflexão, tendo levado a um reajustamento na gestão das discussões coletivas. Na
verdade, é através da discussão das estratégias dos alunos que percebemos a adequação
das tarefas, a evolução das estratégias e o modo como os elementos que definimos a
priori como fundamentais (foco e variáveis) se relacionam e influenciam a dinâmica
desenvolvida. Por exemplo, a dificuldade dos alunos em compreenderem o sentido de
operação multiplicação/divisão com numerais decimais evidenciada na estratégia de
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António para o problema b) da tarefa 9 (figura 4): “É !!!a dividir [por 8,16]. [8 a dividir]
por 8 deu 1. Dividi o 16 por 8 e deu 2. Ai eu coloquei 1,2”, denota dificuldades em
compreender o tipo de quociente originado a partir da divisão de dois numerais
decimais (sentido de operação) assim como o valor posicional dos algarismos. O valor
posicional de 2 no quociente, não foi devidamente compreendido por António, face ao
resultado que obteve da divisão de 16 por 8. Se para dividir 16 por 8 o aluno
multiplicou 0,16 por 100 (para lhe facilitar o cálculo), teria posteriormente de dividir 2
por 100 para assim obter 2 centésimas. Na sequência da explicação apresentada por
António, Rui intervém chamando a atenção do colega para este facto:
Rui: Está errado. Professora ciclo II: Porque é que está errado? Rui: Porque ele pôs 1,2 . . . É 2 centésimas. Ele pôs foi uma unidade e 20
centésimas. Diogo: Mas a conta dele está bem. O resultado é que está mal. (...) Rui: Para fazeres !!. 8÷8 dá 1, certo? E 16 a dividir por 8? António: 2. Rui: Sim, mas tu puseste 20. António: Está correto.
Rui pretendia ajudar António a perceber que estava a dividir 16 centésimas por 8 o que
iria corresponder a 2 centésimas no quociente e não a 20, pois ao indicar como resultado
1,2 o aluno está a considerar que a parte decimal é constituída por 20 centésimas.
A necessidade de desconstruir determinados raciocínios fez com que ambas as
professoras dessem continuidade a abordagens na aula de Matemática para reforçar a
aprendizagem dos alunos em aspetos como este, o que levou a experiência de ensino
para além dos momentos específicos de cálculo mental previstos, relacionando-se e
integrando-se recorrentemente no percurso de aprendizagem matemática dos alunos.
Nos momentos de cálculo mental os reajustamentos realizados na gestão da discussão
passaram pela intensificação do questionamento aos alunos de modo a focá-los mais no
essencial da discussão ou de os ajudar à compreensão das estratégias em discussão, pelo
incentivo à interação crítica entre alunos, como evidenciam os casos de António e Rui,
pelo reforço da relação entre representações dos números racionais e relação entre
operações realizadas em expressões e situações contextualizadas.
No final do ciclo de experimentação II os refinamentos realizados nas tarefas e na
gestão da discussão na sala de aula parecem ter dado os seus frutos tendo em conta as
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estratégias de Diogo (ciclo II) à questão a) da tarefa 9 (figura 4): “Menos. !!!equivale a
!!". Se juntarmos !!" mais !!"!do pai fica !!". E para alcançar metade tinha que ser !!".
!!" é
menos de metade”. O aluno mostra alguma destreza na linguagem e no uso de frações
equivalentes sem necessidade de explicitar cálculos subjacentes, algo que não se
verificou na generalidade dos alunos no início da experimentação. Também a estratégia
de Ricardo para a resolução de uma situação contextualizada apresentada na tarefa4 10
ilustra a flexibilidade que alguns alunos foram adquirindo no cálculo mental com
números racionais: “!!!é um copo e 75% é !! . . . !! é 6 copos”, nomeadamente ao nível da
equivalência entre representações dos números racionais, algo que enfatizámos nas
discussões coletivas. Por último, há a realçar o caso de Rui que no primeiro momento
em que realiza cálculo mental com percentagens considera que o cálculo de 10% se
resume a multiplicar uma quantidade por 10 (10% de 350 =3500). Na entrevista final,
Rui mostra ter-se apropriado de algumas relações numéricas ao referir que 30% de 80 é
24: “Então 5% de 80 equivale a 4 porque se fosse 10% ia ficar sem um zero . . . Depois
pensei o 25 para por o 30. Então, 25% de 80 equivale a 20. Isto dá 24”. Na fase final da
experimentação, Rui mostra agora compreender o que significa calcular 10% de uma
quantidade e decompõe o cálculo de 30% no cálculo de 25% mais 5%.
Conclusão
Procurámos salientar alguns dos elementos críticos no desenvolvimento deste estudo,
que foram promotores de refinamentos no design da experiência. Estes refinamentos
originaram uma redefinição da conjetura de ensino-aprendizagem que assumimos como
teoria local de aprendizagem e que constitui o principal contributo deste trabalho. Isso
foi possível pelo facto da IBD favorecer a proximidade entre professores e
investigadores num trabalho conjunto em prol da aprendizagem dos alunos, marcado
por ciclos e microciclos de experimentação em que a equipa de investigação prepara
antecipando, observa em conjunto e reflete posteriormente com o intuito de melhorar
continuamente. Como referem Gravemeijer e Cobb (2006) trata-se de uma metodologia
favorável à aproximação da teoria à prática. Isso foi também possível porque a IBD
salienta a necessidade de estabelecer uma perspetiva teórica que relacione os objetivos
do estudo com outros elementos particularmente críticos, nomeadamente os vários focos
de análise e as variáveis dependentes e independestes previamente definidas. Estes
elementos apoiaram uma reflexão conjunta e focada entre professoras e investigadora,
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originando refinamentos ao nível das tarefas e da gestão da discussão na sala de aula.
Neste estudo, uma análise sobre o foco cognitivo e interpessoal em conjunto com as
variáveis aprendizagem e sistémica foram essenciais para as mudanças realizadas.
Foi a reflexão acerca destes elementos que originou uma consolidação da teoria local de
aprendizagem apresentada na última coluna do quadro 1. A primeira parte desta teoria
relaciona-se com um conjunto de princípios essenciais para o design de tarefas que
promovem o desenvolvimento de cálculo mental dos alunos (Carvalho & Ponte, 2014).
A necessidade de tarefas com contextos diversos surge a partir da dificuldade dos
alunos (ciclo II) em recorrerem a contextos diferentes dos de dinheiro para operarem
com expressões; o uso de diferentes representações dos números racionais surge como
essencial pelas relações numéricas que proporcionaram ao longo da experiência e é
evidenciado pela flexibilidade que os alunos manifestaram em operar com números
racionais no final da experiência; as tarefas de diferente exigência cognitiva, incluindo
expressões com e sem valor em falta e situações contextualizadas permitiram aos alunos
relacionar representações e operações entre questões diferentes dentro de uma mesma
tarefa ou entre tarefas diferentes; a discussão coletiva como meio para promover o
desenvolvimento de estratégias de cálculo mental dos alunos revelou-se fundamental,
uma vez que estes constroem aprendizagens partilhadas através das múltiplas interações
que estabelecem entre si e com o professor; além disso, a discussão coletiva mostrou
constituir uma boa oportunidade para o professor avaliar formativamente os alunos
relativamente aos números racionais e suas operações. Finalmente, há a referir que neste
estudo, a IBD representou uma mais-valia não só para a construção do conhecimento
em Didática da Matemática e para a aprendizagem dos alunos, mas também para o
desenvolvimento profissional das professoras participantes.
Notas 1 Proposta de designação em português para Design-Based Research de Ponte, Carvalho, Mata-Pereira e Quaresma (em preparação) que usamos neste artigo. 2 Ciclo I – alunos com bom desempenho a Matemática e conhecimentos prévios sobre números racionais e suas operações; Ciclo II – alunos com desempenho mediano/fraco a Matemática e défice de conhecimentos prévios sobre números racionais e suas operações. 3 O perímetro da face de um depósito cúbico é 8,8!!. Qual a medida do lado? – tarefa 5 do ciclo de experimentação II. 4 A Ana quer encher copos com refresco. Cada copo tem !! ! de capacidade. Quantos copos consegue encher a Ana com 0,75! de refresco?
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Agradecimentos
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia através de uma bolsa atribuída à primeira autora (SFRH/BD/69413/2010).
Referências bibliográficas
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