DICAVALCANTI
DI CAVALCANTI
Di Cavalcanti (1897 - 1976) um dos principais nomes do modernismo brasileiro. Ao retra-
tar pescadores, sambistas, trabalhadores e, especialmente, mulatas, seu repertrio visual se
consolidou baseado na realidade do pas.
Questo central na obra de Di Cavalcanti a refl exo sobre a identidade cultural brasileira
a partir de uma vertente social. Assim, ele se destaca por aliar marcas das vanguardas euro-
peias modernistas com uma temtica nacionalista, com personagens populares.
Alm de artista, Di Cavalcanti foi ainda um grande agitador, tendo sido um dos respon-
sveis pela organizao da Semana de Arte Moderna, de 1922, e pela fundao do Clube
dos Artistas Modernos, em 1932.
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DI CAVALCANTI
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
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DI cAvALcANTI
SURGE UM MODERNISTA
O pintor em 1975
Filho de um tenente do exrcito que trabalhava na Guarda do Palcio Imperial, Didi, como era chamado na infncia, nasce na rua Mata-Cavalos (hoje Riachuelo), no Centro da cidade, na casa do tio abolicionista Jos do Patroc-nio (1853-1903), casado com Henriqueta, irm de sua me, Roslia. L cresce, entre msica clssica e literatura, e esse contato precoce com as letras influencia, sem d-vida, sua vontade de escrever.
Em 1900, a famlia se muda para So Cristvo. Quase uma dcada depois, Didi entra para o Colgio Militar, aos 12 anos, quando comea a escrever versos e a fa-zer caricaturas. Nessa poca tem aulas de desenho com Gaspar Puga Garcia (18... -1914). Com a morte do pai em 1914, obrigado a trabalhar e comea sua carrei-ra como caricaturista e ilustrador na re-vista Fon-Fon. Dois anos depois, participa do I Salo dos Humoristas, organizado por Olegrio Mariano (1889-1958), no Liceu de Artes e Ofcios do Rio de Janeiro, apresentando caricaturas em nanquim,
elogiadas pela imprensa. Jota Efeg es-creve em O Globo, sobre o Salo do Liceu: O galhofeiro Salo dos Humoristas fei-ra de caricaturas e trocadilhos no fez apenas rir. Nele nasceu Di Cavalcanti.
Em 1917, o artista passa a residir em So Paulo, onde frequenta a Faculdade de Direito do Largo de So Francisco. Realiza sua primeira exposio individual de cari-caturas, na redao da revista A Cigarra, e a partir da cria capas para a revista O Pirralho. Alm disso, comea a trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo. Foi em So Paulo que o apelido Didi encurtou e se firmou, conta o artista em entrevista de 1973 revista Manchete.
A partir dessa poca, ilustra inmeros livros de autores nacionais e estrangeiros e se torna amigo de intelectuais e artistas paulistas como Mrio de Andrade (1893--1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Guilherme de Almeida (1890-1969) e Mon-teiro Lobato (1882-1948), entre outros.
A exposio de Anita Malfatti (1889--1964) (vol. 9 desta Coleo) em 1917 revelou a Di algo muito mais novo que o Impressionismo. O impacto esttico que as obras lhe causaram, somado eferves-cncia cultural da cidade, levam-no a frequentar o ateli do pintor Georg Fisher
[...] A pintura uma arte que precisa de
isolamento. A festa da Semana de Arte Moderna,
terminada na embriaguez dos dias de ao,
ps -me diante da postura de Carlitos no final
de seus filmes... era preciso ir alm! [...].
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
DETALHAMENTO DA OBRA
cINcO MOAS DE GUARATINGUET
DETALHE 1O pintor usa cores anlogas,
em tons de vermelho,
para praticamente toda a
composio, exceto para
o vestido e o chapu azuis
brilhantes da figura que
est frente das demais.
3
4
5
1
2
DETALHE 2A figura, de pele mais clara,
tem uma posio de
destaque em relao s
outras, no apenas pela luz
que emite e o azul que se
contrape s cores usadas
em praticamente toda a
pintura, mas tambm pelo
desenho mais delicado.
51
DI cAvALcANTI
DETALHE 3As cores so modeladas em
tonalidades diferentes, num
contraste claro-escuro de luz
e sombra. A verticalidade
predomina na composio.
DETALHE 5Vestida de modo discreto, recatada,
com um decote que mostra uma
parte do corpo, esta moa confere
ao conjunto um clima interiorano e
ingnuo. Seu olhar peculiar
d pintura uma graa especial.
DETALHE 4A diagonal e a quinta
personagem na janela
criam uma sensao de
profundidade.
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
DENGOSA
uma via, Di Cavalcanti vem se juntar ao naciona-
lismo do Modernismo. Ao lermos sua autobiogra-
fia, o que chama a ateno a predominncia de
sua mentalidade bomia, pelo menos como esta
era compreendida nas primeiras dcadas do scu-
lo no Rio de Janeiro. Lirismo e sensualidade, as
duas caractersticas dessa vida de bomio, talvez
fossem uma manifestao de duas expresses
profundas da formao brasileira. Da a apario
da mulata na pintura de Di, naquilo que ela repre-
senta como resultado de um conjunto de diversos
fatores e que implica, entre outros, a convivncia
entre as diferentes raas e culturas21.
Nesta pintura temos no apenas essa caracte-
rizao da identidade nacional. Temos, mais do
que isso, a sensualidade primitiva explicitada na
nudez e na languidez da personagem.
193850,5 x 73 cm
leo sobre tela
Acervo da Pinakotheke (So Paulo)
R eclinada sobre a mesa coberta de diferen-tes tecidos em que apoia a cabea, uma mulata nua nos olha languidamente. A composio desse interior se completa com um
biombo no plano de fundo.
A personagem domina o espao construdo
por cores quentes e densas, que conferem um
clima de sensualidade cena. Sua fisionomia
tipicamente brasileira, uma mistura de raas que
faz que sua aparncia meio negra, meio ndia nos
remeta questo da identidade nacional, to
alardeada na pintura de Di. Como diz o pintor
Carlos Zilio quando aborda a importante contri-
buio do artista para a identidade nacional: Por
61
DI cAvALcANTI
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
MARINHA
Alguns crticos insistem que a qualidade das
obras das ltimas dcadas deixa a desejar, pois
parecem feitas de maneira rpida e descuidada. O
crtico Mrio Schenberg (1914-90) nos escreve so-
bre essa caracterstica, de modo a redimensionar
tais crticas: Di tinha um senso de humor muito
rico e muito sutil tambm. Em todos os momentos
ele utilizava as circunstncias como uma forma de
exprimir seu humor. Com isso ele foi, de certo mo-
do, o precursor de algumas tendncias muito mo-
dernas da antiarte, se bem que esse aspecto da sua
obra tenha passado muitas vezes despercebido.
Fazia por exemplo esse quadro propositadamente
matado em que a finalidade no era o quadro, era
o gesto; e essa importncia do gesto na sua ativi-
dade est muito relacionada com certos aspectos
da arte conceitual [...]. Para uma avaliao da obra
pictrica de Di Cavalcanti talvez ainda nos falte
uma perspectiva histrica. Na minha opinio, uma
das coisas mais importantes em Di foi a sua cont-
nua preocupao em fazer uma arte brasileira, li-
gada aos aspectos cotidianos da vida brasileira e
procurando atravs deles definir a nossa identidade
cultural. Esta tendncia foi to forte nele que no
conheo qualquer trabalho de Di Cavalcanti que
no a reflita, no reflita esta preocupao. Qual-
quer trabalho de Di, bom ou ruim, um trabalho
brasileiro33.
196860 x 91,5 cm
leo sobre tela
Acervo da Pinakotheke (So Paulo)
U ma das obras tardias de Di, esta paisa-gem construda de maneira comple-tamente diversa das pinturas de outras dcadas. As camadas de tinta transparentes e sem
sobreposies, a cor mais rala e mais tnue e o
prprio desenho menos vigoroso so as caracte-
rsticas que mais chamam a ateno.
A construo do espao completamente di-
ferente das anteriores, quando o artista parecia
compor uma situao quase claustrofbica para
seus personagens e locais que ocupavam a tota-
lidade do espao do quadro, como se ansiassem
por transgredir os limites fsicos da tela. Aqui, a
representao da marinha parece considerar o
espao como algo amplo e distante, como se o
pintor no estivesse inserido nela e, portanto, no
nos inserisse tambm.
As cores so leves, transparentes, e as formas
perderam a robustez e a dramaticidade que ti-
nham. A construo em planos ainda a mesma,
mas, diferentemente de obras de outras dcadas,
cada plano parece estar tranquilamente posiciona-
do aps o outro, sem causar a impresso anterior
de simultaneidade.
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DI cAvALcANTI
ARCANGELOIANELLI
ARCANGELO IANELLI
Arcngelo Ianelli (1922 2009) um dos grandes representantes brasileiros do abstracion-
ismo geomtrico. Suas pinturas mais conhecidas so formadas a partir de quadrados e retn-
gulos sobrepostos, em um refi nado jogo de cores, que produzem uma sensao de equilbrio.
Organizo minhas cores e formas em um espao em que os tons se harmonizam num
efeito semelhante polifonia e ao contraponto, diz Ianelli, comparando-se a um composi-
tor musical. O paulista Ianelli iniciou carreira nos anos 1940, pintando paisagens e retratos.
O caminho para a abstrao, nos anos 1960, veio a partir da pura simplifi cao das cores e
formas. A cor sufi ciente para construir e expressar nosso universo, costumava dizer.
AR
CA
NG
ELO
IANELLI
2
2
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
CRONOLOGIA
1922Filho de Loureno Ianelli e Theresa DellAquila,
ambos imigrantes italianos, Arcangelo Ianelli
nasce em So Paulo, no dia 18 de julho.
Anos 1940Ingressa na Associao Paulista de Belas Artes, sendo aluno
dos pintores Angelo Simeone e Mario Zanini, entre outros.
Em 1942, tem aulas de pintura com Colette Pujol, e dois anos
depois estuda desenho e pintura sob a orientao de Walde-
mar da Costa. Participa de vrias edies do Salo Paulista
de Belas-Artes e se dedica intensamente ao modelo-vivo e
prtica de pintura ao ar livre na companhia de amigos.
Anos 1950Faz as primeiras exposies individuais uma
em So Paulo, na Galeria It, e outra no Rio de
Janeiro, no Palace Hotel. Perodo de trabalho
intenso, voltado para as paisagens urbanas e ru-
rais e para as marinhas.
Anos 1960poca de transio, caracterizada pela pintura
matrica e pelos grafismos. Em 1961, realiza duas
exposies individuais, no MAM-RJ e no MAM-SP,
e participa do X Salo Paulista de Arte Moderna.
No ano seguinte, integra a mostra Prmio Leirner
de Arte Contempornea, na qual obtm o primeiro
prmio de pintura. Aps ganhar o Prmio de Via-
gem ao Exterior em 1964, no XIII Salo Nacional de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, permanece na Eu-
ropa viajando por vrios pases entre 1965 e 1967.
Pouco depois, o I Salo Paulista de Arte Contempo-
rnea lhe concede o Prmio Governador do Estado
(1969). Perodo intenso de exposies no Brasil e no
exterior. Durante essa dcada, participa de quatro
Bienais em So Paulo e uma na Bahia.
Grafismo em Azul1968180 x 130 cmleo sobre telaColeo particular
Fazenda1955
46 x 60 cmleo sobre tela
Museu de Arte Brasileira FAAP (So Paulo)
ARCANGELO IANELLI
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Anos 1970Fase geomtrica. Em 1978, realiza sua primeira retros-
pectiva no MAM-SP, Do Figurativo ao Abstrato. So
inmeros os prmios que recebe nessa dcada, entre
eles: Prmio de Melhor Exposio do Ano em Nvel
Nacional, da Associao Paulista de Crticos de Arte
(APCA), Prmio Gonzaga Duque, da Associao Brasilei-
ra de Crticos de Arte (ABCA), e Grande Prmio da I Bie-
nal Ibero-Americana do Mxico. Participa de mais seis
Bienais, entre elas as de So Paulo, Mxico, Colmbia
e Venezuela. Comea a esculpir em 1974, ano em que
idealiza um mural para a fachada do Edifcio Dimetro
na avenida Faria Lima, em So Paulo, pelo qual recebeu
o Prmio de Pesquisa da ABCA.
Anos 1980Em 1984, realiza mais uma retrospectiva, Ianelli: 40
Anos de Pintura, no MAM-RJ. Em 1987, ganha uma
sala especial na XIX Bienal de So Paulo. Dois anos
depois, recebe o Grande Prmio da II Bienal Interna-
cional de Pintura de Cuenca, Equador.
Anos 1990Em 1992, tem retrospectiva em Quito, Equador, apre-
sentada na Casa de La Cultura Ecuatoriana e no Mu-
seo del Monasterio de La Concepcin. Recebe home-
nagem por seus 70 anos no MAC-USP, em 1992, e no
ano seguinte comemora 50 anos de pintura com uma
exposio no MAM-RJ e no MASP. Atua como curador
e expositor na IX Exposio Brasil-Japo de Arte Con-
tempornea em Atami, Osaka, Kyoto, Tquio e Sap poro.
Nesse perodo, executa a srie conhecida como Vibra-
es, que consagra sua busca na pintura.
Anos 2000Em 2002, realiza a grande retrospectiva de sua obra
na Pinacoteca do Estado de So Paulo, primeira e
nica vez em que as esculturas foram expostas fora
de espaos pblicos. Dois anos depois, o MAB-FAAP
apresenta a individual Os Caminhos da Figurao,
com curadoria de seus filhos Katia e Rubens Ianelli.
No mesmo ano, a editora Via Impressa publica Ianelli.
Coordenado por Katia Ianelli e Alfredo Aquino, o livro
uma homenagem ao artista, que falece em 2009
aps um perodo de muitas limitaes devido a um
derrame sofrido em 2002.
Sem Ttulo1978
180 x 145 cmleo sobre tela
Coleo particular
Sem Ttulo2002
200 x 286 x 50 cm, aproximadamenteMrmore branco esprito santo
Acervo Banco Ita S.A.
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
sim de interpret-la ou, ainda, reinvent--la. Pintava com Rebolo nos bairros afas-tados de So Paulo e, a convite de Mario Zanini, seguiu de trem diversas vezes Praia Grande munido de tintas, paleta e telas em branco. Guardava dessa poca um conselho do amigo, recebido quando questionou a necessidade de se apoiar na representao do mundo externo: Do nada no se cria nada, disse Zanini. O quadro est dentro de ns e no deve se limitar a produzir lugares-comuns. O cu, o mar e a praia existem aqui para motivar a nossa sensibilidade.5
O desenvolvimento da pintura durante esse perodo foi pontuado pelo nascimento dos filhos, Katia (1949) e Rubens (1953), e pelo falecimento do pai em 1957, poca em
que o irmo Thomaz (1932-2001), tambm artista, passou a morar com Ianelli, ainda na casa da Joaquim Tvora. Em dez anos de intensa convivncia, Thomaz tornou-se integrante do grupo Guanabara e realizou exposies com o irmo e com o grupo.
Os laos muito prximos com artistas e intelectuais mobilizaram a vida de Ianelli, mesmo quando ele j no estava filiado a nenhum grupo. Entre jantares, encontros e reunies, nunca perdeu o contato com Vol-pi, Samson Flexor (1907-71) que conhe-ceu por meio de Zanini e Oswald de Andra-de Filho, o Non (1914-72) , Fiaminghi, Charoux, Yolanda Mohalyi (1909-78), Hen-rique Boese (1897-1982), Paulo Mendes de Almeida (1905-86), Srgio Buarque de Ho-landa (1902-82), Abelardo Zaluar (1924--87) e Ubi Bava (1915-88), do Rio de Janei-ro, para mencionar apenas alguns.
Os anos 1950 foram decisivos em sua pintura, e os retratos da filha Katia (ao lado e p. 40) representam um marco nesse sentido, porque j revelam a qualidade de seu olhar na simplificao formal, na cap-tura dos traos fisionmicos, na relao de unidade existente entre a figura e o fundo. As paisagens urbanas com horizontes ele-vados ou, por vezes, elimi nados favo-recem o jogo formal entre as coisas e o espao que elas ocupam. Mas a inteno abstrata torna -se mais ntida nas marinhas desse perodo, na maneira como dialoga com a natureza e a recria, ordenando os elementos, os mastros, as velas e os barcos
Retrato de Katia195761 x 46 cmleo sobre telaMuseu de Arte Brasileira FAAP (So Paulo)
OS ANOS DECISIVOS: 1950-1959
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ARCANGELO IANELLI
para alm de sua inteno figurativa, ex-pressando-se atravs de um jogo rtmico de planos, formas, linhas retas e diagonais. A passagem para uma abstrao pura, uma pura geometria, era o corolrio inevi-tvel. E assim sucedeu6, explicou o crtico Paulo Mendes de Almeida.
A famlia se muda novamente, desta vez para a rua das Guajuviras, e Ianelli instala seu ateli na garagem da ca-sa. Abandona os Sales acadmicos, aos quais se dedicara por alguns anos, e se destaca no XIII Salo Nacional de Arte Moderna, em 1964, ao conquistar o Pr-mio de Viagem ao Exterior. Pouco antes, j chamara a ateno do crtico Mrio Pe-drosa (1900-81), que o convidara a expor as telas negras de sua fase de transio no MAM -SP e no MAM-RJ, em 1961. No catlogo da mostra, Pedrosa escreve: Si-nais de moda pictrica ou de um estado contemplativo beira de perturbar-se, em face das contradies da vida? Opta-mos pela segunda hiptese7.
A fase de transio, que ocorreu no in-cio dos anos 1960, dialoga com uma ten-dncia artstica europeia do ps-guerra conhecida como Tachismo, Informalismo ou Arte Informal, que defendia a impro-visao e a espontaneidade do gesto do artista. A dimenso da tela ampliada, as
tintas se adensam, a textura surge como elemento expressivo, o negro predomina e as formas se tornam irregulares, muito distantes do rigor formal anterior.
A famlia se muda para a rua Correia Dias, no Paraso, pouco antes de embarcar para o Velho Mundo a expensas do prmio conquis-tado no XIII Salo Nacional de Arte Moderna. Foram dois anos viajando pela Europa com a famlia, de meados de 1965 at meados de 1967, seguindo um roteiro elaborado pelo artista em funo de suas exposies itine-rantes e de seus interesses de estudo.
Na ida, navegaram por dois meses a bor-do de um cargueiro e, ao longo do caminho, Ianelli j desenhava os lugares visitados, chegando at a montar um ateli flutuante na cabine do armador.
Interior1956
72,9 x 60 cmleo sobre tela
Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro)
NOVA FASE EM UM NOVO ESPAO
UMA PINTURA DE CARTER ARQUEOLGICO
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
1
DETALHE 1Nos retngulos da vidraa que se desenham na
contraluz, percebemos o encontro das linhas, das
cores e dos planos em que Ianelli se concentrou
posteriormente.
DETALHE 2Os objetos sugeridos ao fundo
caracterizam o espao de trabalho e se
desfazem em seus contornos na relao
com a luz que penetra pela janela.
DETALHAMENTO DA OBRA
O MENINO PINTOR 2
3
45
37
ARCANGELO IANELLI
DETALHE 5Os quadros e molduras que
compem a parede articulam o
espao e tonalizam as sombras,
criando o mesmo jogo de formas
e cores sbrias, caracterstico da
pintura abstrata de Ianelli.
DETALHE 4A proporo do cavalete de um pintor
adulto contrasta com o tamanho do
menino pintor e confere suavidade e
lirismo tela. Paradoxalmente, este o
ponto de contraste mais intenso entre
luz e sombra. A curiosidade que Rubens
tornou-se de fato um artista.
DETALHE 3A bola laranja, o cavalo de
madeira azul e o lao de
fita amarelo nas costas de
Katia, o nico elemento
iluminado na direo oposta
da luz que invade a sala, so
brilhantes pontos de luz. Eles
estabelecem uma estreita
relao entre os seres e
as coisas que povoam
o espao do ateli.
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
VELEIROS195830 x 70 cm
leo sobre tela
Coleo particular
N esta obra em especial, o arranjo das linhas se destaca. Rarefeitas, elas aparecem e desaparecem ao longo de seu traado. A relao com a paisagem se abre e se amplia, com
clara opo pelo formato horizontal da cena.
So poucas as telas de Ianelli nesse formato.
Em Veleiros, somente as linhas negras verticais dos mastros, das cordoalhas e das velas cortam a su-
perfcie de lado a lado, enfatizando a verticalida-
de. As linhas negras horizontais dos barcos e dos
planos de mar e cu so sempre interrompidas e
se espalham por toda a extenso. Movimentam-se
do primeiro ao ltimo plano, provocando um ritmo
que se intensifica no contraste com as verticais e
confere intensa espacialidade obra. O jogo din-
mico entre verticais e horizontais tece uma rede,
formando uma camada sobreposta pintura dos
planos de cor.
Os traos so rpidos, fortes, decididos. Seis
mastros verticais recebem cor e se destacam, enca-
deando o espao horizontal. Os planos de mar e cu,
entre azuis e verdes queimados, os campos de areia e
as laterais dos barcos formam os campos chapados.
47
ARCANGELO IANELLI
Nesse momento, o dilogo entre o desenho e
a pintura, entre linhas e massas de cor, que resulta
em msica. A dimenso temporal acrescentada
espacial, por se tratar de um arranjo de cores, for-
mas e linhas no tempo e no espao. Exige-se tempo
para se contemplar a pintura de Ianelli, para poder
vagar pela trama enredada.
A obra de arte deve falar por si. uma redun-
dncia o artista buscar por outros meios a no ser
atravs de sua obra definir sua mensagem plstica
e sua proposio20, afirmou o pintor. E, conver-
sando com Frederico Morais, acrescentou: Como
a msica, a pintura tem sua prpria linguagem, que
autnoma e, como ela, no desvinculada da emo-
o e da imaginao. O que conta so os valores
formais21.
TARSILA DOAMARAL
TARSILA DO AMARAL
Aximagnatur, venit eni ne experunt alitam aut int quiae nustion sectore icaboritate vene
modipsa pienimu stinum, et fugit quas exceatet, am adios enimil iur re esciissim int, es a
quatios erit aut perit et, quiandi tatusam, volorrum aut el eum hilis ipsus am ius eatur aut
volenim di tem. Ostoria quiatam faceseq uuntor
Abo. Bus quatius dolloreri dit earum inverspis eos ea quaturio. Aliqui ipsunt adisima gnisit
odit aped quame seque plitis adis anda arumqui dolupturem harum sum rere, sed et alit
dolenim iniende nimodit, odis qui necum volor si blabore catendae la quis di aut vid ut debit
aut autem fuga. Nam, tecus aut expla seque con nat imagnam unt, nonse sent.
3
3
TAR
SILA
DO
AMARAL
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
CRONOLOGIA
1886Filha de Jos Estanislau do Amaral e Lydia Dias de Aguiar do
Amaral, Tarsila do Amaral nasce em 1o de setembro em
Rafard ( epoca um distrito da cidade de Capivari), no inte-
rior do Estado de So Paulo.
Ilustrao publicada na capa do livro Pau-Brasil1925
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo
1886 -1906Cresce nas fazendas da famlia em Capivari e Mont Serrat
(hoje Itupeva). Muda-se para So Paulo em 1898 e estuda
no Colgio Sion de 1901 a 1902. No fim do ano, ingressa
no Colgio Sacr-Coeur de Barcelona, Espanha. L, tem
sua primeira experincia com a pintura. Retorna ao Brasil
em 1904, casa-se e reside na Fazenda So Bernardo,
mudando-se posteriormente para a Fazenda Serto. Dois
anos depois, nasce sua filha Dulce.
1913 -1920Separada do marido, muda-se para So Paulo em 1913.
Em 1916, estuda modelagem com Wilhelm Zadig e Oreste
Mantovani. Entre 1917 e 1919, tem aulas de desenho com
Pedro Alexandrino. Nesse perodo, conhece Anita Malfatti.
Em 1920, estuda com o pintor Georg Elpons e, em junho
desse ano, parte para Paris, ingressando na Acadmie Julian
e no ateli de mile Renard.
1922 -1923Viaja pela Espanha e pela Inglaterra. De volta ao Brasil,
conhece os integrantes do grupo modernista por inter-
mdio de Anita Malfatti. No fim do ano, segue para
Paris, onde fixa residncia com o namorado Oswald de
Andrade. Em 1923, estuda com os cubistas Andr
Lhote, Albert Gleizes e Fernand Lger. Volta ao Brasil
em dezembro.
1924 -1926Tem incio em sua pintura a Fase Pau-Brasil, voltada
temtica brasileira. Empreende viagem ao Rio de
Janeiro no carnaval de 1924 e s cidades histricas de
Minas Gerais. Em 1925, ilustra o livro de poemas Pau
Brasil, de Oswald de Andrade. No ano seguinte, viaja
com o poeta pela Europa e pelo Oriente Mdio, reali-
za sua primeira exposio individual em Paris e casa-
-se com Oswald em So Paulo.
TARSILA DO AMARAL
15
Saci Perer192523,1 x 18 cmGuache e nanquim sobre papelColeo particular
1927-1931Reside grande parte do ano na Fazenda Santa Teresa
do Alto. Em 1928, pinta o Abaporu, que origina o
Movimento Antropofgico, e realiza a segunda expo-
sio em Paris, que inclui obras da Fase Antropofgica.
A primeira exposio no Brasil ocorre em 1929, no Rio
de Janeiro. Separa-se de Oswald em 1930; no ano se-
guinte, visita a Unio Sovitica com Osrio Csar, seu
namorado, permanecendo em Paris por alguns meses.
1933 -1949Em 1933, inaugura-se a Fase Social na pintura de
Tarsila. A artista conhece o escritor Lus Martins, com
quem passa a conviver. Comea a escrever regular-
mente na imprensa em 1934, muda-se para o Rio de
Janeiro em 1935 e retorna a So Paulo trs anos de-
pois. Expe em coletivas em Belo Horizonte, Montevi-
du e Santiago do Chile. Ilustra diversas publicaes.
1950 -1963Em 1950, realiza mostra retrospectiva no Museu de
Arte Moderna de So Paulo (MAM-SP), e no ano
seguinte participa da I Bienal Internacional de So
Paulo, conquistando o Prmio Aquisio. Em 1954,
pinta o painel Procisso do Santssimo, a convite
da Comisso do IV Centenrio de So Paulo, e em
1963 apresenta sala especial na VII Bienal In ter-
nacional de So Paulo. Um ano depois, integra a
XXXII Bienal de Veneza. Em 1969, realiza-se a mos-
tra retrospectiva Tarsila: 50 Anos de Pintura.
1973Falece em 17 de janeiro, em So Paulo.
Original de ilustrao para o livro Pau-Brasil1925
Grafite sobre papelColeo particular
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
correspondncia datada de setembro da-quele ano. O namoro era mantido em se-gredo, por no ser bem visto pela famlia de Tarsila e para no prejudicar o proces-so, ainda em curso, de anulao do seu primeiro casamento.
Tarsila regressou Europa em dezem-bro de 1922, com o objetivo de acompa-nhar Dulce e os sobrinhos ao colgio inter-no, depois encontrar-se com Oswald em Paris. Em fevereiro se instalaram na capital francesa, onde a artista montou seu apar-tamento-ateli. Comeou naquela ocasio sua descoberta de fato da Arte Moderna.
Logo depois de ingressar como aluna no ateli do pintor cubista Andr Lhote (1885--1962), percebeu que novos horizontes lhe surgiam. Escrevia para a famlia: Com duas lies ganhei mais que em dois anos3.
Naquela poca, o casal Tarsila e Oswald foi apresentado ao poeta Blaise Cendrars (1887-1961) e esposa. Os quatro torna-ram-se grandes amigos. Por meio de Cen-drars, conheceram poetas, escritores, marchands, artistas e demais personalidades ligadas ao mundo da Arte Moderna. Mes-
mo no grupo de brasileiros que o casal Tarsila e Oswald agora frequentava em Paris, muitos eram vinculados ao Moder-nismo, como o historiador Paulo Prado (1869-1943) e o compositor Heitor Villa--Lobos (1887-1959).
Mulher elegante, vestida por renomados costureiros como Jean Patou (1880 -1936) e Paul Poiret (1879-1944), Tarsila ia a teatros e exposies. Era convidada para jantares e recepes, e recebia intelec tuais e artistas em seu ateli, oferecendo especialidades da mesa brasileira. Jean Cocteau (1889-1963), Erik Satie (1866 -1925), John dos Passos (1896 -1970), Jules Romain (1885-1972), Blaise Cendrars, Constantin Brancusi (1876--1957), Ambroise Vollard (1866-1939), Ju-les Supervielle (1884 -1960), Di Cavalcanti (1897-1976) (vol. 1 desta Coleo), dona Olvia Guedes Pen teado (1872 -1934), Sr-gio Milliet (1898 -1966) e Joo de Souza Lima estiveram entre seus convidados. Em-bora sua desenvoltura fosse internacional, ela afirmava sentir-se cada vez mais brasi-leira, acreditando que manifestaes como a sua, com caractersticas regionais, eram bem aceitas pelo pblico parisiense e revi-talizavam a Arte Moderna.
medida que progredia na elaborao de uma linguagem pictrica prpria, Tar-sila pensava cada vez mais no Brasil, em sua infncia na fazenda, nas velhas tradi-es, nas cores e nos temas brasileiros.
Estudo de cartaz para conferncia de Blaise Cendrars192423 x 15,5 cmGrafite e nanquim sobre papel de sedaPinacoteca do Estado de So Paulo
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
23
TARSILA DO AMARAL
Suas cartas so plenas de referncias ao assunto, e nessa poca ela planeja voltar ao Brasil para preparar uma exposio. Entretanto, prolonga a estadia em Paris para tomar lies durante algumas sema-nas com o pintor Fernand Lger (1881--1955), que Cendrars j havia lhe apresen-tado, e com Albert Gleizes (1881-1953).
O saldo da experincia parisiense, sob orientao de trs pintores cubistas, foi a adequao de sua postura pictrica a um conceito de espao desvinculado da re-presentao da profundidade4. Da lio de Lhote adveio a conciso da forma e a preciso da linha, com Lger depurou o uso das cores e com Gleizes estudou a composio como estrutura integrada.
Tarsila voltou ao Brasil em dezembro de 1923. Ao aportar no Rio de Janeiro, entrevistada pelo Correio da Manh, de-clarou-se cubista. E, para enfatizar sua posio, manifestou sua crena na impor-tncia do movimento: Cubismo exerc-cio militar. Todo artista, para ser forte, deve passar por ele5.
Tarsila chegou a So Paulo como pinto-ra assumidamente moderna e trouxe uma coleo de obras tambm modernas. Algu-mas de sua autoria, outras no.
No incio de fevereiro de 1924, Blaise
Cendrars veio ao Brasil a convite de Paulo Prado. Naquele ano, Oswald, Tar sila e do-na Olvia viajaram ao Rio de Janeiro para apresentar ao poeta suo o carnaval. A artista realizou vrios estudos na ocasio, que depois desenvolveu em pinturas da Fase Pau-Brasil.
O grupo de amigos continuou o per-curso durante a Semana Santa, quando rumaram para as cidades histricas de Minas Gerais, em um processo que deno-minaram viagem de redescoberta do Bra-sil. Tarsila desenhou detalhes da arquite-tura e de aspectos tra dicionais, descobriu a escultura de Aleija dinho e a arquitetura barroca. Principalmente, recuperou esque-mas cromticos populares que lhe agrada-vam quando criana e que depois apren-deu no serem de bom gosto as famosas combinaes caipiras de cores da Fase Pau-Brasil.
Em junho daquele ano aconteceu no Conservatrio Dramtico e Musical uma conferncia proferida por Cendrars, com o objetivo de apresentar a Arte Moderna ao pblico paulistano. Era ilustrada pela expo-sio de obras de Lger, Robert Delaunay
A GESTAO DA FASE PAU-BRASIL
So Paulo (Gazo)1924
50 x 60 cmleo sobre tela
Coleo particular
32
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
A SAMARITANA
tinha o gosto pelo desenho e pela pintura, mas
ainda no se desenvolvera tecnicamente. A Sama
ritana dessa poca. Foi feita a partir de reprodu-
o impressa (oleografia) de pintura italiana de
autor desconhecido e seguiu o mesmo processo da
pintura feita no colgio espanhol.
A obra em questo de um tempo em que
Tarsila ainda no havia estudado desenho (s mais
tarde, em 1917, viria a ter aulas com Pedro Alexan-
drino, durante um ano e meio). Tambm no havia
enfrentado problemas de escoro e detalhes anat-
micos em sesses de pose com modelo-vivo. Esses
aspectos, somados ao grande cuidado com que
apresenta o modelado anatmico, as propores da
figura e a disposio dos braos da figura, levam a
crer que tenha decalcado a estampa original para
dar incio ao trabalho e marcar as zonas de cor.
Tarsila aplicou a tinta de modo extremamente
cuidadoso, em passagens suaves, atenta a luzes e
sombras, quase de forma monocromtica, sem
construir a cor.
191175 x 44 cm
leo sobre tela
Acervo dos Palcios do Governo do Estado
de So Paulo
A primeira notcia que se tem do contato de Tarsila com a pintura data da poca em que estudou no colgio interno em Barcelona, no perodo compreendido entre 1902 e
1904. Na ocasio, ela copiou com dedicao uma
imagem do Corao de Jesus. A crtica Aracy Ama-
ral comenta ter sido um trabalho paciente, decal-
cado, feito durante seis meses, quase um bordado,
mais desafio que pintura, porm essencial para
despertar uma vocao. Muito elogiada por seus
resultados, Tarsila se sentiu estimulada a realizar
outras cpias ao regressar6.
No comeo da dcada de 1910, casada e me de
uma criana pequena, residia na fazenda e estava
indecisa em relao ao caminho a seguir. Escrevia
poemas, dedilhava o piano e se interessava por
pintura. Dedicava-se s artes como autodidata e j
70
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
DETALHAMENTO DA OBRA
RELIGIO BRASILEIRA I
DETALHE 1Seu motivo principal uma imagem da Virgem Maria com o Menino
Jesus, traada em azul maneira de Henri Matisse (1869-1954), em
linhas livres, sintticas e precisas. Trata-se da verso cabocla de um
pequeno retbulo semelhante aos feitos no princpio do Renascimento,
em arco ogival. Segue com suas cores brasileiras os padres tradicio-
nais de representao da Madona com o Menino. Usa azul intenso em
aluso abbada celeste, substitui o resplendor dourado que emanava
da figura de Maria nas pinturas antigas pelo amarelo-manga, delineia
a figura do Menino em rosa.
DETALHE 2Embora Tarsila reduza todos os elementos
da obra a um s plano, como se prensasse
em uma nica superfcie todos os objetos
que lhe teriam servido de modelo, o modo
como apresenta o canto superior direito
sem sombra de dvida alusivo a
uma estampa bidimensional.
1
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71
TARSILA DO AMARAL
DETALHE 3Tarsila coloca na pintura laos, flores, vasos e
ramos, mas evidencia seu carter decorativo e
no devocional eles exercem funo compo-
sitiva importante. Dispe dois pssaros de
modo singelo, mas com presena definitiva
em meio queles elementos.
DETALHE 4Tarsila insere uma Virgem Maria com o
Menino em um nicho do lado direito da
pintura. Dessa vez, destaca o rosto da me
e o corpo da criana com a cor branca, co-
roando o conjunto com moldura de flores
rosa e azuis, para ressalt-los. Usa uma
mancha amarela atrs do menino e a nica
flor vermelha sobre a cabea de Maria, a
fim de criar contraste com o branco.
Nota-se o procedimento legeriano
de oposio de corpos modelados sobre
superfcies lisas, como se observa na rela-
o estabelecida entre o fundo, o vaso
verde, a haste e as flores. A reduo
de todos os planos a uma superfcie
nica est evidente nas flores sobre
a parede do nicho e na barra do
manto da santa sobre o vaso verde.
DETALHE 5Do lado esquerdo, Tarsila coloca um pequeno oratrio-capela, com uma ima-
gem de santa austera, sem a inclinao afetuosa das que carregam o menino.
A imagem esquerda representa provavelmente SantAna com a Nossa
Senhora menina, e a pequena figura sentada de difcil identificao.
Embora a pintura seja cuidadosamente planejada com cores, e as tenses
sejam distribudas com equilbrio a fim de compor uma realidade visual,
a pintora sugere tambm um universo invisvel, compreendido por emo-
es, crenas e conceitos, conformados em imagens e objetos reunidos
ao longo do tempo e organizados segundo suas afinidades.
72
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
ABAPORU
mticas e a busca de razes profundas. A Negra
antecipa esses aspectos em termos conceituais e
formais em cerca de cinco anos.
Tempos depois, uma amiga de Tarsila lhe con-
fidenciou que as pinturas antropofgicas a lem-
bravam de seus pesadelos, e a partir da a pintora
identificou a origem da obra.
A artista descrevia o Abaporu como uma figu-
ra solitria monstruosa, ps imensos, sentada em
uma plancie verde, brao dobrado repousando
num joelho, a mo sustentando o peso-pena da
cabecinha minscula, em frente a um cacto explo-
dindo em uma flor absurda24. Tarsila relacionava
esse personagem ao das histrias que as pretas
velhas da fazenda lhe contavam repetidas vezes
hora de dormir quando era criana. Eram histrias
sobre uma sala sempre fechada, com uma abertura
no forro, de onde se ouvia: Eu caio, eu caio. E caa
um p, que a menina imaginava enorme; eu caio,
e caa outro p. Eu caio!, e aparecia uma mo, e
depois a outra, e o corpo inteiro25.
O Abaporu apresenta a mesma hipertrofia de
perna e brao que A Negra, e se integra paisa-
gem mais do que ela. O p enorme compensa seu
precrio assento em pose de pensador, capaz de
tanta tristeza a ponto de atrofiar a cabea e o
brao que a sustenta. Imobilizado pelo desequil-
brio entre seu gigantismo e seu acanhamento,
necessita do cacto e do sol para manter uma rela-
o estvel com o conjunto.
192885 x 73 cm
leo sobre tela
Acervo do Museo de Arte Latinoamericano de Buenos
Aires Fundacin Costantini (Argentina)
N o dia 11 de janeiro de 1928, aniversrio de Oswald de Andrade, Tarsila o presen-teou com a pintura que terminara havia pouco tempo. Muito impressionado com a obra,
Oswald comentou com o poeta Raul Bopp (1898-
-1984): o homem plantado na terra23.
Muito discutiram sobre a pintura ainda sem t-
tulo. Eram unnimes em achar que aquele era um
ser originrio da terra, vindo do mato, um antrop-
fago. Recorrendo ao dicionrio tupi-guarani per-
tencente ao pai de Tarsila, escrito pelo padre jesuta
Antonio Ruiz Montoya, chegaram a Abaporu, ho-
mem que come carne humana.
O Manifesto Antropfago escrito por Oswald de
Andrade pouco depois estabelece as bases do movi-
mento que ali nascia. Nele, o poeta apresenta a
antropofagia como metfora do processo pelo qual
o homem americano, para formao de sua prpria
cultura, canibalizara, digerira e assimilara de acor-
do com moldes prprios a civilizao europeia.
Embora o Abaporu inaugure a Fase Antropof-
gica de Tarsila, no foi a primeira obra que abordou
suas preocupaes com a emergncia de foras
73
TARSILA DO AMARAL
CANDIDOPORTINARI
CANDIDO PORTINARI
Candido Portinari (1903 1962) um dos artistas brasileiros modernos com maior reper-
cusso internacional. Foi ele quem criou os murais de grandes dimenses Guerra e Paz
(1953-6) para a sede da ONU, em Nova York.
A realidade brasileira, contudo, foi a grande inspiradora de Portinari. Para ele, era essen-
cial retratar os tipos brasileiros a fi m de criar uma pintura tipicamente nacional. Obras como
O Mestio, Lavradores de Caf e Os Retirantes so algumas de suas obras-primas,
realizadas a partir desse princpio.
Portinari ainda colaborou com Oscar Niemeyer em algumas de suas mais importantes con-
strues, como nos murais para a Igreja de So Francisco , na Pampulha, em Belo Horizonte.
4
CA
ND
IDO
PORTINARI
4
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
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CANDIDO PORTINARI
Brasil1961
45 x 145 cm Tmpera sobre madeira
Coleo particular
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
CRONOLOGIA
1903Filho de Baptista Portinari e Dominga Torquato, Candido
Portinari nasce em 30 de dezembro na fazenda Santa Rosa,
prxima de Brodowski, interior do Estado de So Paulo.
1918 -1924Auxilia um grupo de artistas itinerantes a decorar a Igreja
Matriz de Brodowski. Em 1919, ingressa no Liceu de Artes
e Ofcios, no Rio de Janeiro, passando a cursar a Escola
Nacional de Belas-Artes (Enba) no ano seguinte. Expe pela
primeira vez em 1922 e recebe Meno Honrosa. Pinta
Baile na Roa (1923-24).
1928 -1931Com Retrato de Olegrio Mariano,
ganha o Prmio de Viagem ao Exterior.
Em Paris, participa da Exposition dArt
Brsilien (1930) e se casa com Maria
Victoria Martinelli. Regressa ao Brasil
em 1931. Pinta o Retrato de Manuel
Bandeira.
1932 -1934Em mostra individual no Palace Hotel (1932), no Rio
de Janeiro, expe Retrato de Maria e telas com temas
brasileiros, como Roda Infantil e Circo (todas de 1932).
Em 1933, pinta Festa em Brodowski e vrios quadros
depois expostos na Galeria It (1934), de So Paulo,
como Os Despejados, Estivador, Sorveteiro, Lavrador
de Caf, Mestio e O Morro, este hoje pertencente ao
Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
1935 -1939Com a tela Caf (1935), conquista Meno Honrosa
na exposio do Instituto Carnegie (1935), em Pitts-
burgh (EUA). Em 1938, executa os 12 afrescos mu-
rais para a sede do Ministrio da Educao e pinta
Retrato de Carlos Drummond de Andrade. No ano
seguinte, nasce seu filho Joo Candido.
Paisagem de Brodowski1940
81 x 100 cmleo sobre tela
Coleo Gilberto Chateaubriand MAM-RJ
CANDIDO PORTINARI
15
1940 -1941Em 1940, participa da Latin American Exhibition of Fine Arts,
no Museu Riverside de Nova York. No mesmo ano, realiza-
da no MoMA e em outras cidades americanas a mostra indi-
vidual Portinari of Brazil. Em 1941, a Universidade de Chica-
go edita o lbum Portinari: His Life and Art. Em Washington,
a Galeria de Arte da Universidade Howard expe obras do
artista, que pinta os murais da Biblioteca do Congresso.
1943 -1947Ilustra Memrias Pstumas de Brs Cubas. Em 1944,
pinta Nossa Senhora do Carmo, da Capela Mayrink,
no Rio de Janeiro, e a srie Retirantes. No ano seguin-
te, executa o painel de azulejos So Francisco na
Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, e conclui o
mural Jogos Infantis no Ministrio da Educao (hoje
Palcio Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro. Em
1946, expe na Galeria Charpentier, em Paris, e con-
decorado pelo governo francs com a Legio de Hon-
ra. Realiza a srie Meninos de Brodowski. Perseguido
pelo governo Dutra, exila-se no Uruguai em 1947.
1948 -1952Pinta Primeira Missa no Brasil e faz uma retrospectiva no
Museu de Arte de So Paulo Assis Chateaubriand (MASP)
em 1948. Elabora no ano seguinte o painel Tiradentes, pelo
qual recebe a Medalha de Ouro do II Congresso Mundial
dos Partidrios da Paz (1950), em Varsvia. Pinta Chegada
de D. Joo VI ao Brasil (1952). hospitalizado em 1953.
1955Tem sala especial na III Bienal Internacional de
So Paulo e recebe a Medalha de Ouro de melhor
pintor do ano no International Fine Arts Council
(IFAC), de Nova York. Ilustra A Selva, de Ferreira de
Castro. Em 1956, termina os painis Guerra e Paz,
para a sede da ONU em Nova York, pelos quais
recebe o Prmio Guggenheim. Desenha a srie
Dom Quixote (1956). Pinta ndia Caraj (1958). A
V Bienal Internacional de So Paulo (1959) realiza
retrospectiva de sua obra. No ano seguinte, nasce
sua neta Denise, vrias vezes retratada por ele.
1962Candido Portinari falece em 6 fevereiro.
decretado luto oficial de trs dias no Estado
da Guanabara.
Autorretrato1956
46,7 x 38,3cmleo sobre madeira compensada
Paulo Kuczynski Escritrio de Arte
24
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
Projetada por Le Corbusier (1887 -1965) e Oscar Niemeyer com a colaborao de inmeros arquitetos de vrias partes do mundo, erguia-se em Nova York a nova sede da ONU no incio da dcada de 1950.
O Brasil foi solicitado a contribuir para a decorao do edifcio, e o diplomata Jayme de Barros, ento chefe da Comisso de Atos e Organismos Internacionais do Ita maraty, sugeriu ao ministro das Relaes Exteriores, Joo Neves da Fontoura, que fossem ofere-cidas pinturas de Portinari.
Recebida a incumbncia, mesmo contra-riando a prescrio mdica, o artista se lana com grande entusiasmo ao trabalho de exe-cuo das maquetes dos imensos painis, cujos temas seriam a Guerra e a Paz, sntese das preocupaes das Naes Unidas.
As maquetes foram aprovadas pelos arquitetos da edificao e pela diretoria da ONU. Imediatamente, em 1952, Portinari d incio aos estudos de detalhamento e ampliao das figuras sugeridas, traba-lhando nos amplos galpes da extinta TV Tupi, em Botafogo. Dois anos depois, entre as mais de cem obras de sua exposio in-dividual no MASP, foram exibidas as duas maquetes dos painis Guerra e Paz.
Quando o contrato para a execuo do trabalho foi finalmente assinado, em 1955, os estudos preparatrios j estavam bas-tante adiantados ao final do processo, somariam mais de 180, entre esboos e maquetes. Durante nove meses, com a aju-da de Enrico Bianco e Rosalina Leo, Porti-nari pintou cada centmetro daqueles que seriam os maiores painis de sua carreira, com 14 metros de altura por 10 metros de largura cada um.
A imprensa do pas e do exterior acom-panhou com interesse o desenvolvimento dessa obra, que, em sua complexa comple-mentaridade, compe um discurso visual uno sobre os extremos da desgraa e da bem -aventurana, na trgica e comovedo-ra viso do artista. Nas pginas da histria da arte, incontveis guerras so narradas por cenas que as identificam, localizam e datam. A abordagem de Portinari, porm, outra. No identifica guerra alguma, como a afirmar que em essncia todas se equiva-lem no desencadeamento de horror e ani-
Greve195055 x 46 cmleo sobre tela Coleo particular
OS PAINIS GUERRA E PAZ
25
CANDIDO PORTINARI
malidade. No se avista no painel arma nenhuma; a cavalgada apocalptica que corta a cena em todas as direes com seu cortejo de conquista, guerra, fome e morte no traz as cores bblicas do fogo e do san-gue, nem o preto, o branco ou o amarelo. o azul que domina. Uma trgica e dorida sinfonia em azul, passando por toda a sua escala. Estamos diante de um cataclismo aterrador em que os tempos remotos se confundem com a origem dos tempos.
No painel Paz, tal como acontece em seu par, so mltiplas as reminiscncias de obras anteriores de Portinari, como tambm so vrios os vestgios desses trabalhos em quadros posteriores. O que emana desse painel e nos enleva, mais que a ideia de paz, a prpria paz que nos invade ao contem-pl-lo. a sensao de penetrarmos num universo sereno, de comunho fraterna no trabalho produtivo, num reino mgico de cores reluzentes, do som da ciranda de jo-vens num canto universal de fraternidade e confiana, ou da candura dos folguedos infantis. Com todos esses tons dourados, alegres, crepitantes de vida, o pintor parece nos dizer: a paz universal possvel dia vir em que a humanidade desfrutar a paz sem limites no espao e no tempo.
Ao ser anunciado o trmino dos painis, entregues ao Ministrio das Relaes Exte-riores em 5 de janeiro de 1956, desenca-deou-se imenso movimento em meio opinio pblica, liderado por eminentes intelectuais, artistas e organizaes cultu-
rais, e at por sindicatos operrios, dese-jando que fossem exibidos no Brasil antes de seguir para Nova York.
Atendendo ao clamor geral, o Itamaraty transformou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro na mais ampla sala de exposio vista no Brasil at ento. Assim, no dia 27 de fevereiro de 1956, na presena do pre-sidente da Repblica Juscelino Kubitschek e de altas autoridades, representantes po-lticos de todas as tendncias, intelectuais, artistas e uma eufrica multido em clima de jbilo nacional, foi inaugurada a extraor-dinria mostra.
Com a plateia s escuras e os refletores do teatro iluminando os dois painis mon-tados lado a lado no fundo do palco, a obra gerou um efeito visual impressionan-te. Foi a primeira e nica vez que Portinari viu Guerra e Paz erguidos. Nessa mesma
Bailarina1956
73 x 60 cmleo sobre tela
Coleo particular
46
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
DETALHAMENTO DA OBRA
CAF
DETALHE 1No alto vemos o triangulo verde-oliva da plantao, bordeja-
do por personagens sem rosto que repetem gestos muito pa-
recidos, como os de uma dana do trabalho. Destaque para
os homens com as sacas de caf, posteriormente disseminados
por toda a tela. As linhas em diagonal visam claramente a
demarcar uma perspectiva ilusionista. Mas, tal qual o escoro
do brao de Lavrador de Caf (p. 36), o recurso to primrio
e rgido que fica evidente a vontade do artista de expor a
gramtica visual em sua forma mais primitiva e original.
DETALHE 2Do outro lado da tela, empilham-se sacas de caf em uma
coluna, na qual uma iluso de perspectiva muito sinttica
fica igualmente marcada a partir da diagonal formada pela
lateral da ltima saca. A pilha, esquematizada em tons claros
e escuros ritmados, lembra mais uma rstica estrutura de
pedra, pintada em tons terrosos e sem qualquer distino do
fundo geral. Transformadas em elemento quase estilizado,
essas pilhas compem o espao no afresco de mesmo nome,
pintado em 1938 para o prdio do Ministrio da Educao,
como parte da srie Ciclos Econmicos.
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CANDIDO PORTINARI
DETALHE 3No canto oposto da tela, um trabalhador segura um balde prximo a uma
formao rochosa to esquemtica, em seus recortes, quanto a pilha de
sacas. A montanha evidentemente baseia-se nas grutas e rochas represen-
tadas em telas como as de Andrea Mantegna (1431-1506), primitivo do
Renascimento italiano. O homem, em aproximao com a formao ro-
chosa, possui aquela concepo volumtrica e escultrica que Portinari
utiliza na figura do lavrador de caf. As ranhuras enrijecidas de sua cami-
sa em tom acinzentado no diferem da dureza do corte das pedras.
DETALHE 4Figura que equilibra a composio. Nessa mesma
pose, h uma tela anterior, A Colona, em que
uma trabalhadora branca, talvez imigrante, do-
mina o espao, com seus rudes ps descalos e as
grandes pernas abertas em posio de descanso.
Portinari quer enfatizar as caractersticas negras
dos trabalhadores, como em Lavrador de Caf.
Mas o escravo e o imigrante so sobrepostos nes-
ta figura, evocando o movimento histrico do
trabalho na lavoura cafeeira. Do ponto de vista
formal, a roupa branca da negra, diferente da
roupa colorida de A Colona, rgida, as dobras
marcam um volume escultrico.
DETALHE 5Os carregadores de sacas de caf ocupam o centro da cena. So vrios
trabalhadores, todos vestindo camisa branca, como se fossem uma
s personagem rebatida, decompondo o movimento em partes.
A decomposio das fases do trabalho em uma composio esttica
enfatiza a temporalidade suspensa em que se movem as personagens.
Os ps, as pernas, os braos potentes, rolios dos carregadores e da
negra, da mesma cor da terra, sugerem uma relao com o solo, com
a fora da natureza lavrada para produzir a riqueza do pas.
78
GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
obra16: seu carter teatral e, assim, um tanto artifi-
cial. Realmente, a insistncia nessas caracterizaes
tem algo de figurino de teatro.
Outro detalhe que chama a ateno nesse senti-
do a ausncia deliberada no apenas do indgena,
mas de qualquer vegetao ou aluso mata brasi-
leira. H formas cilndricas na vertical, uma faixa
azul-metlica fazendo as vezes de mar, outras faixas
sinuosas a simular montanhas. Essas formas abstra-
1948271 x 501 cm
Painel, tmpera sobre tela
Acervo do Museu Nacional de Belas Artes
(Rio de Janeiro)
Pelo tema escolhido, esta composio hist-rica pintada em Montevidu, Uruguai, foi comparada j na primeira recepo crtica Primeira Missa de Victor Meireles (1832-1903), tela
de 1860 na qual h clara relao dos ndios com a
grande cruz e o sacerdote. No painel de Portinari,
porm, evidencia-se primeira vista a ausncia da
populao indgena, to importante na pintura de
Meireles. O espao, pelo qual se dispersam vrios blo-
cos de figuras, organizado em retngulos, como em
So Francisco Se Despojando das Vestes (p. 74), mu-
ral da Pampulha. Entretanto, no se nota mais nem o
efeito de transparncias nem a sbria interseco
entre planos do fundo e das figuras. As cores dos
planos retangulares so vibrantes, contrastantes, e as
figuras se apresentam muito mais caracterizadas,
destacadas e corpreas muito mais realistas.
notvel o cuidado documental com que so
representadas as personagens histricas da cena.
Exemplos so os portugueses, ora vestidos com boi-
nas, ora organizados em grupos armados, como no
ncleo atrs do altar, direita; ou os representantes
do clero, com seus hbitos no grupo ao centro, ajoe-
lhados em bloco sobre um plano vermelho-vivo. Es-
sas vestimentas caractersticas que organizam os
ncleos distintos de figuras apontam para outra
chave de interpretao, que crticos como Mrio
Pedrosa (1900-81) evidenciaram na recepo da
79
CANDIDO PORTINARI
tas, que nas demais composies se articulam com as
figuras, aqui ganham ares de cenrio.
No centro da cena, uma grande caixa desempe-
nha o papel de altar e s um plano cruciforme azul-
-claro paira sobre o grupo do clero, mas nenhuma
cruz, a no ser a da bandeirola que lembra insgnia
militar. O sacerdote, tambm caracterizado em seus
detalhes de figurino, repete o gesto da tela de Mei-
reles, mas todo o artificialismo de cenrio enfatiza a
conotao pouco religiosa ou mstica do todo. Mrio
Pedrosa escreve posteriormente em 195717, em crti-
ca um tanto severa em relao composio, que
Portinari levou em conta dados histricos sobre a
celebrao, da qual realmente se ausentava a popu-
lao local. A ausncia do elemento indgena que
concede, assim, um ar meramente oficial ao evento,
teatralidade acentuada deliberadamente pelo artista
como forma de viso crtica da histria do Brasil.
ADRIANAVAREJO
ADRIANA VAREJO
Di Cavalcanti (1897 - 1976) um dos principais nomes do modernismo brasileiro. Ao retra-
tar pescadores, sambistas, trabalhadores e, especialmente, mulatas, seu repertrio visual se
consolidou baseado na realidade do pas.
Questo central na obra de Di Cavalcanti a refl exo sobre a identidade cultural brasileira
a partir de uma vertente social. Assim, ele se destaca por aliar marcas das vanguardas euro-
peias modernistas com uma temtica nacionalista, com personagens populares.
Alm de artista, Di Cavalcanti foi ainda um grande agitador, tendo sido um dos respon-
sveis pela organizao da Semana de Arte Moderna, de 1922, e pela fundao do Clube
dos Artistas Modernos, em 1932.
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5
AD
RIA
NA
VAREJO
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
19
ADRIANA VAREJO
NADA DO QUE FOI SER, DE NOVO, DO JEITO QUE J FOI UM DIA2
Nascida em 1964 no bairro de Ipa-nema, Rio de Janeiro, filha de um piloto da aeronutica e de uma nutricionista, a artista costuma declarar que seu interesse e sua atividade de buscar refe-rncias em livros remonta aos 4 anos de ida-de, quando descobriu as obras de arte re-produzidas na coleo Gnios da Pintura. Ela mesma se aceita como uma artista ca-tadora, andarilha, que cata referncias4.
Aps uma tentativa de enveredar pelo universo mais racional da engenharia e at mesmo do desenho industrial e da co-municao visual , Adriana Varejo fre-quenta os cursos livres da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Assim, inicia uma convivncia com a Ge-rao 80, como ficaram conhecidos os jovens artistas que, principalmente no eixo Rio-So Paulo, retomam e recuperam a pintura e outros meios como forma de trilhar novos caminhos, em direes distin-
tas daquelas que nortearam significativa parcela da produo artstica brasileira nas dcadas de 1960 e 1970, marcada pelo Experimentalismo e pelo Conceitualismo.
As primeiras obras da artista foram pro-duzidas em seu pequeno ateli, em 1985, e integravam a srie de pinturas Pr-Histri-cas, pelas quais ela recebe o Prmio Aquisi-o no IX Salo Nacional de Artes Plsticas Funarte, em 1987, inserindo -se, a partir de ento, no cenrio artstico nacional.
O ano de 1987 tambm lhe permite en-trar em contato com uma das matrizes de suas investigaes, o imaginrio do Barroco mineiro: Meu primeiro contato com o Bar-roco se deu atravs de um livro sobre igrejas barrocas no Brasil. Eu j costumava saturar a tela com muita tinta, criando superfcies bastante espessas. Foi quando estive em Ouro Preto pela primeira vez. Fiquei real-mente chocada, em xtase. Era a primeira vez na vida em que entrava numa igreja barroca. Essa igreja ficava num dos pontos mais altos de Ouro Preto e se chamava Nos-sa Senhora do Rosrio dos Pretos do Alto da
Quando cheguei a Ouro Preto, fiquei chocada, em
xtase. [...] sozinha, subindo aquelas ladeiras de
paraleleppedos [...], entrei na primeira igreja barroca
de minha vida [...]. Visitei todas as igrejas da cidade,
vrias vezes, andava descala pelas ruas. 3
AS JOIAS CARNVORAS DO BARROCO
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
Cruz5, mais conhecida como Santa Efignia. Era como se a matria danasse. Forte, vi-va, potente, pululante. Aquilo era para mim uma estranha alquimia entre o ouro e o sangue, entre a riqueza e o drama. Me voltei para Minas, para suas pequenas cidades histricas, suas montanhas, cachoeiras e pedras, e especialmente para Ouro Preto. Aquelas igrejas eram caixas de joias que guardavam complexas e fascinantes joias carnvoras, capazes de ingerir qualquer ele-mento alheio, fragmentos dispersos, acu-mulando-os, deformando-os e integrando--os ao seu universo sagrado6.
No incio foi a empatia, o gosto, o desejo de entrar em contato profundo com essa esttica que ela assimila e retrabalha, num
processo de contraconquista Aleijadinho (c. 1730-1814), Sror Juana Ins de la Cruz (1651-95), o escritor Severo Sarduy (1937--93) e mesmo Guimares Rosa (1908-67), um modernista bastante barroco. A artista inicia ainda em 1987 a srie Barrocos e participa da exposio coletiva Novos No-vos, na Galeria do Centro Empresarial Rio, em Botafogo, realizando no ano seguinte a primeira individual, na Thomas Cohn Arte Contempornea, no Rio.
Sua insero no circuito internacional acontece em 1989, com a exposio cole-tiva U-ABC no Stedelijk Museum, de Amsterd, e na Fundao Calouste Gul-benkian, de Lisboa. Segue-se a participa-o em Viva Brasil Viva (1991), no Lilje-valchs Konsthall, em Estocolmo.
Ainda em 1991, Adriana inicia as sries Terra Incgnita e Mares e Azulejos e rea-liza a segunda individual, na Thomas Cohn Arte Contempornea. No ano seguinte, acontece a primeira individual internacio-nal, na Galeria Barbara Farber, em Ams-terd, e a individual Terra Incgnita, na Galeria Luisa Strina, de So Paulo. Nas obras dessa srie, evidencia-se o processo pelo qual Adriana, aps ter se apropriado do imaginrio religioso barroco, incorpora as referncias e imagens da histria do Brasil e as retrabalha de modo a propor uma viso crtica da relao entre coloni-zador e colonizado.
As representaes etnogrficas dos in-
Natividade1987180 x 130 cmleo sobre telaColeo particular
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ADRIANA VAREJO
dgenas e dos negros, como aquelas elabo-radas por Debret (1768-1848) para ilustrar o livro Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil, combinam-se com o referencial imagtico das igrejas. Sobressai a inteno de discutir o papel civilizatrio da institui-o. A educao segundo os valores cris-tos, a instruo e a converso religiosa constituem instrumentos eficazes para conquistar o povo nativo e afirmar a su-premacia da cultura europeia, que se pre-tende hegemnica como viso de mundo ao impor-se em seus novos domnios.
So essas as diretrizes que norteiam a nova srie, Proposta para uma Cate-quese (1993) (p. 38), apresentada na indi-vidual homnima, na Thomas Cohn Arte Contempornea.
No ano seguinte, a srie dos Irezumis (p. 54) iniciada, e a participao em co-letivas internacionais como a XXII Bienal Internacional de So Paulo e a V Bienal de Havana articula o trabalho da artista com suas investigaes sobre as relaes entre cultura e deslocamento, expressas na mostra Mapping, exibida nesse mesmo ano no MoMA.
O ano de 1995 representou a possibili-dade de ampliar as investigaes que de-pois atravessaro a obra de Adriana. Esse
processo de alargamento tem incio com as sries Acadmicos e Lnguas e Cortes (p. 62 e 74), nas quais se manifestam de forma incisiva os dilogos com a tradio pictri-ca e com a corporalidade, bem como o ca-rter objetal, atribudos pintura. A partir desse perodo, a participao em exposi-es e projetos coletivos internacionais, alm de uma intensificao da presena em mostras individuais, tanto em galerias como em instituies culturais, atestam a contundente insero da artista nesse cir-cuito, assim como ampliam a perspectiva das relaes e discusses que a produo de Adriana estabelece com os distintos cr-culos artsticos pelo mundo.
Ainda que sob pena de ser restritivo, de-vem ser mencionadas, no processo dessa consolidao internacional, a individual na Annina Nosei Gallery, em Nova York, proje-
Distncia1996
195 x 165 x 10 cm leo sobre tela, madeira, garrafas, leo de linhaa
Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeiro Preto
CONSUMAO DA CARNE
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GRANDES PINTORES BRASILEIROSCOLEO FOLHA
ALTAR AMARELO
Ainda est por vir a profunda imerso no Novo
Mundo apresentado por viajantes estrangeiros em
seus relatos, mapas e desenhos de paisagens uni-
verso que Varejo transportar para diversas sries.
Nelas reelaborar narrativas da histria, propondo
um olhar que, paradoxalmente, perceba esses frag-
mentos como totalidade.
Quanto ao imaginrio Barroco, ainda no se
percebe aqui o drama e a eloquncia com os quais
a artista articular criticamente as imagens produ-
zidas nas sries subsequentes. Entretanto, a matria
adquire desde j uma espessura que tornar o vo-
lume um elemento concreto em suas pinturas, e
no apenas um efeito da representao.
1987160 x 140 cm
leo sobre tela
Coleo particular
A ltar Amarelo integra um conjunto ini-cial de obras nas quais a matria da tin-ta e a espessura das camadas constri explicitamente um emaranhado de formas direta-
mente relacionadas ao universo do Barroco brasi-
leiro, em particular s igrejas de cidades mineiras
como Ouro Preto. Ao explorar essa materialidade,
a artista inicia tambm um percurso pelo territ-
rio do imaginrio colonial brasileiro.
Partindo de igrejas, altares, santos, volutas e
azulejos, entre tantos outros elementos referenciais
desse perodo, cria uma iconografia prpria e reco-
nhecvel que j evidencia diversas opes formais
futuras. Tais elementos sero a base de boa parte
das sries da artista, articulando demais interesses
e temas que sero tratados em obras posteriores.
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ADRIANA VAREJO
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DETALHAMENTO DA OBRA
REFLEXO DE SONHOS NO SONHO DE OUTRO ESPELHO
DETALHE 1A obra formada por quatro telas, duas quadradas
ao centro, com dimenses diferentes, uma retangular
acima e outra, oval e menor, abaixo. O conjunto
insere o observador em um ambiente no qual
fragmentos do corpo flutuam em suspenso,
incluindo os reflexos multiplicados pelo efeito do
espelho. Eles fazem que a cabea paire no ar,
ampliando ainda mais o carter espectral da cena.
DETALHE 2As duas telas colocadas no cho e parcialmente
sobrepostas acentuam o carter fragmentrio e a
impossibilidade de se fazer o caminho de volta, para
a unidade do corpo. Uma delas reflete o teto e o
tronco que flutua, decapitado e sem a maior parte
dos membros, at quase atingir o plano superior.
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DETALHE 3A tela redonda, instalada como um espelho convexo
de garagem, reflete toda a sala e nos apresenta
um espao vazio, etreo e mrbido, com pedaos
de um corpo humano suspensos no ar.
DETALHE 4Reforando o estranhamento, apenas
um fragmento do p esquerdo parece
entrar (ou querer escapar) da nica
tela com fundo escuro, por oposio a
todas as outras, que refletem as
paredes. Esse fundo negro, voltado
para baixo, reflete o piso de cimento
do espao expositivo da Bienal.
DETALHE 5O conjunto de seis pinturas recebe o visitante e parece capaz
de fornecer indcios do corpo ali fragmentado: na parte
superior da parede, a cabea; ao centro, tronco e membros,
ainda que em perspectivas distorcidas pelo reflexo; e a
pintura com o fragmento de coxa, perna e p quase a apoiar
no cho, como uma tentativa de reconstituir uma unidade
rompida. O sentido de vazio exacerbado pelas duas
pequenas telas circulares ao lado da representao da cabea.
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CELACANTO PROVOCA MAREMOTO
Oferecidos como fragmentos, anjos, volutas,
panejamentos, cornijas ou qualquer outro elemen-
to do imaginrio seiscentista ali presente j no nos
remetem mais ao Barroco. Em vez disso, banham-
-nos em ondas e ondas que nos fazem afundar,
boiar deriva, perder o flego e hipnoticamente
nos entregar. A gigantesca onda poderamos at
pensar em um mar revolto est ali a nos devolver
os cacos da histria, da pintura, da cultura ultra-
marina que nos foi imposta e que antropofagica-
mente deglutimos. Por outro lado, ela pode ser
pensada como uma revisitao fragmentada da
famosa xilogravura A Grande Onda de Kanagawa,
de Katsushika Hokusai (1760-1849), a nos manter
por um instante em suspenso diante da imensido
do vazio e do silncio.
A imagem produzida a partir de um elabora-
do e delicado processo de escolhas que a artista
revela em videodocumentrio22. Primeiro, fotogra-
fa os fragmentos de azulejos, com seus distintos
matizes de azul (cerleo, ftalo, ultramar, cobalto,
real). Depois seleciona as imagens e as articula por
um processo digital, criando um mosaico de com-
binaes infindveis, uma maquete virtual como
guia para a fase de concluso de cada pintura,
assim como para as decises finais sobre como
articul-las.
Assim foi criada a configurao arquitetnica
na qual se materializou a instalao, como que
aprisionada e potencialmente pronta para explo-
dir em jorros, extravasar as paredes, voltar plena
de fora e vitalidade para a natureza.
2004-2008Instalao com 184 telas
110 x 110 cm cada tela
leo e gesso sobre tela
Coleo do Instituto Inhotim (Brumadinho, MG)
C elacanto Provoca Maremoto21 pode ser
considerado um marco na obra de Adria-
na, por potencializar ao mximo a articu-
lao entre investigaes pictricas e relaes com
a espacialidade, seja pelo vis da arquitetura, seja
pela explorao da tridimensionalidade. Ao subir-
mos as escadarias do pavilho da artista em Inho-
tim, mergulhamos nessas acolhedoras entranhas
aquticas e nos deparamos de imediato com as
questes histricas e culturais propostas na pintura
dos azulejes que compem este ambiente de te-
atralidade e imponncia, mas tambm de calma e
tranquilidade.
Potentes e dramticas, as variaes se insta-
lam a partir dos monocromos brancos e envere-
dam pelos fragmentos de linhas curvas e sinuosas,
incluindo as referncias angelicais barrocas. Im-
pactante, o mar de azuis a explicitao das in-
contveis possibilidades e da diversidade dos tons,
mais do que mera aluso cor do mar. Embora
seja evidentemente uma azulejaria, a instalao
se revela uma infindvel sucesso de imagens,
exacerbada ao revelar o fragmento do fragmento,
a pincelada como fragmento explorado na pintu-
ra, tudo fundido em um amlgama de brancos e
azuis, uma colagem que remonta a tempos passa-
dos e a azulejos que, uma vez partidos, no podem
mais ser substitudos.
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