DIÁLOGO EM LETÍCIA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO
SUL
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Antoninho Muza Naime
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Ernst Tugendhat
DIÁLOGO EM LETÍCIA
Tradução:
Maria Clara Dia
Ana de Resende
Coleção:
FILOSOFIA - 133
PORTO ALEGRE
2002
© Copyright de EDIPUCRS
Título original: Dialog in Leticia, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1997
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa desta
Editora
Capa: Larissa Goldoni e Roberta Wencel
Diagramação: Isabel Cristina Pereira Lemos
Diagramação da versão digital: Paolla Monticelli
Revisão: Maria Clara Dias
Cooperação: Julien Charles Bonnin
Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos
Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles
T915d Tugendhat. Ernst
Diálogo em Letícia / Ernst Tugendhat; tradução de Maria Clara
Dias, Ana de Resende. — Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
126 p. — (Coleção Filosofia; 133)
Tradução de: Dialog in Leticia
ISBN: 85-7430-288-O
1. Filosofia 2. Ética I. Título II. Série
CDD 170
Coleção Filosofia - 133 5
PREFÁCIO
Este texto foi escrito na segunda metade de 1995 em Santiago, no Chile, e
não encontrou muita aceitação em um colóquio no semestre de verão em
Constança. Há, possivelmente, alguns erros (se ao menos soubesse exatamente
quais), e outras formulações são demasiadamente curtas ou construídas de forma
pouco clara. Apesar disso, conservo a versão original. Após ter-me corrigido tão
freqüentemente nos últimos anos, não devo agora segui-lo sempre fazendo. A
questão acerca do que possa ou não ser útil neste texto, o leitor deverá decidir por
si mesmo. Além disso, nunca houve um autor filosófico cujas afirmações não
fossem julgadas por seus leitores de forma distinta da sua.
Devo agradecer aos meus pacientes e sagazes interlocutores de Constança
e também ao Institut für die Wissenschaften vom Menschen, de Viena, que, durante
o período previsto para elaboração final, hospedou-me com grande amabilidade e
indulgência.
6 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO I
O senhor de São Domingo e o diálogo foram, de uma forma ou de outra,
inventados, O lugar, não. Existe, ao sul da Colômbia, um estreito corredor entre
Peru e Brasil, que fornece ao país um acesso ao Amazonas, e cujo porto é Letícia.
O fato de que tenha escolhido Letícia não tem nada a ver com a etimologia do
nome, mas antes, talvez, com o fato de que eu tenha pensado, naquele tempo, em
passar da América Hispânica ao Brasil. Letícia é um lugar entre dois mundos, que
juntos formam, por sua vez, um mundo que se diferencia, por exemplo, da Europa
Central, apesar de ser igualmente europeu — embora aqui e lá isto não seja, em
geral, encarado assim. Para a escolha de meu interlocutor, as diferenças
geográficas (ao menos estas) não desempenham, em um certo nível de abstração,
papel algum.
Já nos havíamos reconhecido e cumprimentado no portão de embarque do
avião, em Bogotá. Nos últimos cinqüenta anos, desde que ele, por um curto
período, me deu aulas particulares de espanhol, não havíamos mais nos visto.
Naquele tempo, em Caracas (ele vivia sem mulher, cercado por dezesseis cães, e
sempre me recebia fumando e de pijama), impressionou-me não apenas por sua
erudição, mas por suas (para mim) provocativas concepções políticas (eu tinha, na
época, quinze anos). Como emigrante procedente de outro lugar — fugira da
ditadura de Trujillo, na República Dominicana — tinha um ódio enorme pelos
norte-americanos. Para ele, os nazistas não eram os únicos demônios. Esta foi
minha primeira experiência no perspectivismo moral, e ele, minha primeira figura
marcante de mestre.
Três horas depois nos encontrávamos, mais uma vez, no porto de Letícia.
Ele queria ir de barco a Iquitos. Eu queria navegar rio abaixo, rumo ao Brasil.
Ambos tínhamos ainda muito tempo e sentamo-nos em um bar. Lá ele se lançou
imediatamente à filosofia, e, mais especificamente, à minha filosofia, tal como
―moscas no mel‖ 1. Ele me disse que acompanhava meus escritos em filosofia
moral, desde 1978.
T: Com o meu último livro, Lições sobre Ética (1993), pensei ter
descoberto o ovo de Colombo, mas, logo depois da publicação, acometeu-me a
1 Nota da tradução: No original: ―eine Gans...‖ (―como um ganso se atira às maçãs
podres‖)
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 7
dúvida de ter incorrido novamente em erros grosseiros, justamente com relação
ao tema principal — a questão da justificação2.
I: É surpreendente que você tenha sempre retrocedido na filosofia moral.
Seus escritos, desde as Retratações de 1983, dão a impressão de que você sempre
procurava apenas reparar a dificuldade da posição anterior. Mas, em contrapartida,
você manteve intactos alguns pressupostos problemáticos. Quando alguém vê o
percurso em seu todo, deve se perguntar o que propriamente aconteceu. Você
ficará surpreso se eu disser que considero as Três Preleções, de 1981 — justamente
o trabalho que você rejeitou, com a publicação das Retratações — sua obra mais
importante. Nele é visível o progresso realizado face ao seu primeiro artigo em
teoria moral, de 1978, — ―Linguagem e Ética‖ (Philosophische Aufsätze, p. 275,
no original): você desenvolve, na primeira das três conferências, um novo conceito
do que deve ser compreendido por justificação da moral, que eu considero
convincente e com o qual, por minha vez, trabalho, desde então. Mas, nas
Retratações — que você publicou simultaneamente às Três Preleções em
Problemas da Ética (Reclam, 1984) —, interrompe-se a linha ascendente, e você
fica como que preso em um atoleiro, do qual, desde então, você não saiu mais. E
por quê? Para você, o conceito sobre como a moral na modernidade deve ser
justificada — ao qual você havia chegado no final da terceira conferência —
parecia ser irremediavelmente contratualista. Mas a posição não era de forma
alguma contratualista; ela permaneceu apenas corno urna insinuação. Você partiu
do pressuposto correto de que uma moral moderna só pode ser justificada na
medida em que a instância de justificação possa ser constituída apenas dos
interesses empíricos de cada um. Pode-se seguramente chamar a isto de uma
posição instrumentalista, mas instrumentalismo e contratualismo não são a mesma
coisa. O contratualismo é apenas uma forma de instrumentalismo.
T: Isso você terá que me explicar. Em primeiro lugar, estou, de fato,
impressionado com a sua alta estima por este trabalho antigo. Devo admitir que
eu nunca mais o revi.
I: Isto se nota, lamentavelmente, disse ele rindo. Ninguém, exceto eu,
levou a sério esse trabalho, e isto é bastante compreensível, posto que você
mesmo, já na sua publicação, o reprovou (ver o ―prefácio‖ de Problemas da
Ética, p. 8, no original). Acrescente- se a isto o fato de Jürgen Habermas, antes
mesmo da sua publicação, ter discutido o manuscrito original em inglês no
―excurso‖ do livro Consciência Moral e Agir Comunicativo (p. 78 ss., no
original), de tal modo que o escrito tornou-se irreconhecível. E, no meio anglo-
saxão, ele foi conhecido apenas desta forma indireta.
2 Nota da tradução: A expressão alemã ―Begründung‖ será aqui traduzida por
―justificação‖, seguindo a orientação do próprio autor.
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T: No que diz respeito às Retratações, devo admitir que as escrevi
demasiadamente rápido, e que oscilei, face ao problema da justificação da moral
moderna, entre diferentes concepções.
I: Não é isto o que estou querendo dizer. Qualquer um pode escrever de
modo apressado e hesitante. As seções 2 e 3 são o que há de mais obscuro em seu
trabalho. Isto não seria, contudo, um infortúnio. O infortúnio consiste na idéia fixa
de que a única possibilidade de afastar o suposto contratualismo de 1981 seja a
aceitação de uma ―propriedade essencial‖ aos integrantes da comunidade moral.
Com razão, você defende, desde 1981, a concepção de que aquilo que você chama
moral tradicional sempre se apoiou em uma propriedade supra-empírica, na qual se
acreditava (como, por exemplo, ser filho de Deus ou estar sob a tradição de uma
outra autoridade). Esta foi a base a partir da qual você insistiu, nas Três Preleções,
que a moral na modernidade só poderia ser justificada em interesses empíricos. Ao
invés disso, você novamente se dirige, nas Retratações, a uma propriedade, não
mais supra-empírica, mas ―essencial‖ (p. 153, na edição original). Isso se torna
análogo ao modo como, na tradição estóica falou-se na ―natureza‖ da pessoa, o
que, para nós na tradição católica, tinha conseqüências lamentáveis. Não foi tão
terrível que você tenha, naquela época, defendido esta concepção, mas sim que
você, até as Lições sobre Ética, inclusive, não a tenha fundamentalmente posto em
questão, ainda que a referência a uma ―propriedade essencial‖ não reapareça de
forma explícita; nas Lições, ela é substituída pelo discurso acerca de uma
―concepção de bem‖. Os trabalhos mais explícitos são os dois artigos do período
intermediário — ―Zum Begriff und zur Begründung von Moral‖ e ―Die
Hilflosigkeit der Philosophen‖ (Philosophische Aufsätze, p. 315 e p. 371, no
original) — pois, em ambos, você insiste em que, frente aos interesses empíricos
— você continua a falar simplesmente de contratualismo — algo mais é exigido
para que possamos falar de ―consciência moral‖ (Gewissen) e de ―respeito moral‖,
declarando, no entanto, não saber em que deve ser justificado este ―mais‖. Aqui,
vemos você se debater em seu próprio anzol.
I: Eu achava, então, que não poderia fazer mais do que apenas assinalar a
dificuldade. Abandonei a esperança de encontrar uma solução, porque me parecia
claro que, na modernidade, não se poderia postular algo de superior, quer religioso
quer metafísico. A solução instrumentalista (como você a chama) parecia-me, no
entanto, insustentável. Eu via, como também nas Lições, a relação face ao
contratualismo de forma semelhante àquela que se apresentava para Kant: o
contratualismo aparece, em Kant, como base, por assim dizer; mas para poder falar
de uma consciência moral e de um dever incondicional, ele acreditava ter que
introduzir sua razão pura. A ética do discurso é uma variante, na medida em que
ela mantém o conceito forte de razão, embora o interprete de outra forma. Que esta
razão ―com maiúscula‖ — como eu a chamava — era pura ilusão, já me parecia
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claro, há muito tempo. Como, então, compreender o ―mais‖ procurado? Sugeri,
então, nas Lições, que há um sentido de bem, e nenhum outro, que não precisa ser
reconhecido por todos, mas que poderia sê-lo (p. 80, na edição original). ―E
nenhum outro‖ quer dizer: pode-se, ao menos, justificar que o contratualismo
reforçado através do respeito seja o único conceito de bem que ainda resta, e que,
no entanto, deixa em aberto a liberdade de cada um se submeter a ele. Nesta
liberdade, no conceito de autonomia, portanto, parece estar agora a solução.
I: Mas isto era justamente apenas o ovo de Colombo, riu ele. É essencial,
acima de tudo, tornar clara a continuidade entre esta tentativa de solução e a
posição das Retratações. Os pressupostos são os mesmos. Era preciso, antes dc
mais nada, poder referir-se a uma ―qualidade essencial‖, mas esta, agora, não
precisa ser real, mas apenas possível. Mas não se pode construir uma moral com
base em uma qualidade possível, ainda que esta seja a única do ―ser bom‖
(Gutsein). Some-se a isto que você desvirtuou, nas Lições, o que e o conto algo
pode ser justificado na moral. A questão não é se uma determinada concepção
pode ser justificada como concepção de bem, mas se esta concepção pode ser
justificada face a outros indivíduos, ou melhor, como os indivíduos podem
fundamentá-la reciprocamente. Aqui eles devem poder remeter-se a algo real, com
o qual eles se identifiquem; se isto não puder ser uma ―propriedade superior‖, só
pode ser seu interesse. Você tem ressaltado, com razão, desde o final dos anos
oitenta, a importância dos sentimentos morais: indignação, ressentimento e
sentimento de culpa. Nestes sentimentos negativos constitui-se finalmente o dever
moral. Como, no entanto, justificar frente a outro, que, quando ele se comporta de
tal ou tal modo, tem motivo para sentir-se culpado, porque deve contar com a
legítima indignação dos outros, se a culpa e a indignação devem depender de que
ele apenas possivelmente compreenda-se a si mesmo desse modo?
T: Mas isto faz sentido. Quando alguém não aderiu ao jogo da
moral, a indignação cai no vazio.
I: Não questiono que a liberdade possua aqui um lugar importante. E
também sistematicamente forçoso que, assim como você diz, o dever repouse
sobre um querer. Não obstante, você atribuiu um peso à possibilidade de “lack of
moral sense” que, segundo a minha visão, ela não tem. Quando você fala de jogo
da moral‖, eu apenas posso responder: a moral precisamente não é um jogo. A
distinção consiste em que cada um está livre para tomar ou não parte em um
jogo. Está-se sujeito, ao contrário, aos sentimentos morais negativos, queira-se
ou não (aqui eu apenas repito suas próprias elucidações). As normas às quais se
relacionam tais sentimentos podem ser consideradas tanto como justificadas
quanto como injustificadas, e elas devem poder ser justificadas frente a alguém,
para que ele as perceba como legítimas. Digo ―ele‖, porque ainda não se impôs
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entre nós a maneira européia e anglo-saxã, que nos obriga a dizer ―ele‖ ou ―ela‖
ou mesmo apenas ―ela‖ 3.
T: Eu sei. Vocês são mesmo uns machistas incorrigíveis.
I: Isto pode ou não ser verdade. Mas acreditar poder transformar algo
através da desfiguração da língua ou até da religião é, em seu farisaísmo, ainda
pior.
T: Sem dúvida. Mas não perca o fio da meada.
I: Bem, o que eu queria dizer é: justificar as normas morais significa
fundamentá-las face a qualquer integrante da comunidade moral. Mas não
podemos fazê-lo quando, para isto, precisamos nos referir a uma propriedade que
paira no ar como uma mera possibilidade. As normas só podem ser justificadas
para alguém em relação a seus interesses empíricos comuns, e este alguém precisa
saber que o mesmo vale para todos. Com isso, permanecemos com o princípio
instrumentalista que você rejeitou, desde as Retratações.
T: Rejeitei apenas porque ele não me parecia viável. Posso ter sido
precipitado. Pois, no fundo, eu sei: quando uma moral não pode ser justificada face
a qualquer pessoa em relação aos seus interesses normais, mas parte de
determinados pressupostos, nos quais ela tem que acreditar — sejam eles religiosos
ou metafísicos ou assim chamados transcendentais, ou mesmo nacionais, ou se
quiser, por exemplo, ecológicos —, então, perde-se todo o espírito de uma moral
moderna. Não podemos excluir que tais morais reapareçam também na
modernidade, como nas correntes fundamentalistas e até no facismo. Mas a
questão deve ser, então: supondo que nós não acreditamos em algo especial, nem
em algo considerado como próprio do ser humano, como a razão ―com maiúscula‖,
nem, muito menos, em propriedades com valores inerentes, por exemplo, a um
grupo, restaria ainda uma moral que nós, enquanto pessoas comuns, pudéssemos
querer. E como seria tal moral? Ela tem que ser única? Tão importante como a
delimitação face a conteúdos de crenças é a delimitação contra supostos conteúdos
determinados pela pesquisa biológica ou psicológica. Naturalmente todas as
pessoas (ou quase todas) têm uma disposição para a moral, mas isto significa que
elas têm a capacidade de aprender comportamentos morais apoiados por
sentimentos morais mútuos e por justificações morais recíprocas, e o que é assim
aprendido, pode ser muito diverso em relação ao conteúdo. Os sistemas morais
(para falar nestes termos) nos quais as pessoas se normatizam e,
consequentemente, se socializam são diferentes dos ―sistemas morais‖ de outras
espécies. Como não são dados de antemão, isto significa que eles só poderiam ser
3 Nota da tradução: No original ainda se acrescenta ―bem como a mudanças dos sufixos
para o feminino, e até a reformulação do Pai-Nosso‖, o que preferimos omitir para
preservar a fluidez do texto.
Diálogo em Letícia
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justificados, e aqui estou de acordo com você, ou bem com relação a propriedades
em que se acredita (pode-se dizer, da mesma maneira: relativamente a interesses
que se crêem superiores) ou com relação aos nossos interesses comuns. Supondo
que exista uma moral humana geral, então, este ―exista‖ não pode significar que
todas as pessoas a possuam, como um dado metafísico-transcendental ou
biológico-psicológico, mas que ela pode ser justificada frente a todas as pessoas.
Mas quando ela pode ser justificada frente a todas as pessoas sem recorrer a um
dado, portanto, a um sentido moral ou algo semelhante, isto só pode significar, tal
como você disse, justificá-la instrumentalmente. Você deveria mostrar agora como
isto é possível.
I: Você tem razão, eu tenho agora o onus probandi. Mas antes que eu
comece, deveríamos assegurar-nos da compreensão correta do conceito de
justificação moral, como você agora o utilizou, mais uma vez, tal como nas Três
Preleções, para que ele não possa nos escapar, tal como em seu último livro.
T: De acordo. Eu mesmo devo me surpreender de que, neste livro, eu
aponte o problema da justificação na moral como central, mas que não o tenha
esclarecido, a fundo, em parte alguma.
I: Se você entende assim, concordará também que eu preciso aqui extrair
algo mais. Se nós não tivermos esclarecido realmente este ponto, todo o resto será
construído sobre areia. Mais simples, talvez, seja que eu enuncie as teses e as
discuta caso a caso.
T: Faça isto. Quando eu não estiver de acordo, levantarei objeções.
I: Bom. Podemos, tal como você fez em seu livro, partir do lugar-comum
sociológico de que a moral de uma comunidade consiste naquelas regras que se
apóiam na coerção social. Aqui você fez, com razão, dois esclarecimentos (Lições
sobre Ética, p. 47. no original): em primeiro lugar, a coerção social não é apenas
algo externo, ela consiste em uma sanção interna que se constitui na referência
recíproca entre indignação e sentimento de culpa. Esta sanção interna constitui o
sentido específico do dever moral. Em segundo lugar, designamos como morais as
normas correspondentes, apenas quando elas são vistas como justificadas. Esta é,
então, a primeira tese: a pretensão de estar justificada é uma característica
definidora de tudo que diz respeito à moral. Quero deixar inicialmente em aberto se
esta característica serve para delimitar o moral e o convencional, tal como você fez.
De todo modo, pode-se esclarecer com esta característica como as normas morais
se distinguem das normas de um jogo, e a razão disto se mostrará importante para o
que se segue. As normas de um jogo não erguem a pretensão de estar justificadas
— não seria sequer compreensível o que isto devesse significar —, e isto se
relaciona com o fato de que as normas de um jogo não carecem de justificação (ver
Problemas da Ética, p. 75, na edição original). É surpreendente que, sendo a
pretensão de justificação característica de todas as normas morais, justamente hoje
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em dia, muito do que é escrito sobre a moral não leve esta característica sequer em
consideração. A ética do discurso constitui aqui uma honrosa exceção. — A
segunda tese diz respeito à questão sobre o que se quer dizer aqui com ―estar
justificado‖. Freqüentemente se diz: os enunciados morais possuem um caráter
assertivo e erguem com isto uma pretensão de justificação. Mas aqui caímos
imediatamente em uma grande confusão. Primeiro, o que são enunciados morais?
Enunciados valorativos, enunciados da forma ―fazer x é bom/ruim‖ ou enunciados
normativos, enunciados da forma ―x deve/não deveria ter feito‖, e são ambas as
formas de enunciados traduzíveis uma na outra? Os enunciados valorativos não
constituem uma variante em todas as línguas. Há, a propósito, enunciados
valorativos que, mesmo quando erguem uma pretensão objetiva (intersubjetiva),
não erguem pretensão de justificação, tal como os enunciados estéticos. E também
entre os enunciados normativos não é certo que eles, em geral, erguem uma
pretensão de justificação: as normas de um jogo são formuladas em enunciados
que possuem essa mesma forma, mas que não erguem tal pretensão de justificação.
T: Você quer dizer, então, que, a partir da forma linguística, nada pode ser
concluído acerca do que possa significar aqui ―justificado‖. Concordo em essência.
Talvez possa ajudar, esclarecer que o problema da justificação em enunciados
valorativos e normativos freqüentemente tem dois níveis. Quando é dito ―o que
você fez é ruim‖ (ou: ―não se deve agir assim‖), é inteiramente normal que tais
enunciados sejam encarados como asserções que podem ser justificadas em um
sentido totalmente normal, ainda que, em um sentido normal muito preciso, a
saber, dedutivamente (uma justificação indutiva não teria sentido). Isto quer dizer,
contudo, que os juízos normativos e valorativos concretos se fundam em normas
mais gerais, mas isto não pode se dar indefinidamente. De modo que a moral,
assim encarada, se basearia sempre em normas que, por sua vez, não seriam
passíveis de justificação ulterior.
I: Correto. Isto também quer dizer que elas, quando não são passíveis de
justificação ulterior, não podem mais erguer qualquer pretensão de justificação,
pelo menos, não no sentido de asserções. Mas ou não está correto o que sustentei
na primeira tese, isto é, que todas as normas morais erguem uma pretensão de
validade, ou, então, esta pretensão de ser justificado não se dá do mesmo modo
como nas asserções. Como resulta, ao menos da forma linguística, você pode
observar que, também com relação às normas de um jogo, empregamos palavras
como ―real‖ e ―verdadeiro‖, sem que, com isso, esteja implicada uma pretensão de
justificação. Analogamente se supõe, portanto, que, quando falamos daquelas
normas iniciais às quais você se referiu, como, por exemplo, ―é realmente o caso
que não se deve matar‖, o ―realmente‖ não remete a nenhuma exigência de
justificação. As palavras ―realmente‖ (wirklich) e ―verdadeiramente‖ (wahr) têm
aqui apenas o sentido de acentuar o que o enunciado enfatiza. Alguém pode, por
Diálogo em Letícia
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exemplo, duvidar se o pequeno ―roque‖ 4, no xadrez, é executado exatamente deste
modo, pode-se responder ―claro, é realmente assim‖, e isto quer dizer apenas que
essa é realmente a regra neste jogo. — Uma curiosa variante com relação a isto é a
concepção de Habermas: normas e asserções (Aussagen) são duas formas
lingüísticas distintas, mas ambas teriam uma pretensão de justificação: as
asserções, de serem verdadeiras, e as normas, de serem corretas, e ambas são
compreendidas analogamente e caem sob um conceito genérico unitário, que ele
designa como ―validade‖. Mas, como decorre do que acaba de ser dito, a palavra
―verdadeiro‖ (wahr), no caso da pretensão de justificação de asserções, não
desempenha papel algum. Sabemos muito bem, no entanto, o que significa
justificá-las, de modo que é correto dizer: compreender uma asserção significa
saber o que significa justificá-la. Não faz sentido dizer algo análogo sobre as
normas. Eu compreendo o que são as normas do jogo de xadrez, mas isto não
significa, em geral, que eu compreenda como elas devem ser justificadas: elas não
são para ser justificadas. As normas morais, ao contrário, erguem uma pretensão de
justificação, mas não são inteiramente compreensíveis, sem que se saiba como
devem ser justificadas. Habermas ateve-se aqui, portanto, meramente à intuição de
que as normas morais erguem uma pretensão de ser justificadas, mas, através da
analogia com as asserções, obstruiu a questão do que significa para as normas
estarem justificadas. A orientação pela mera forma linguística é aqui, em todo o
caso, perniciosa, quer elas sejam consideradas como asserções, quer sejam
colocadas em analogia com as asserções. Nas Três Preleções, você formulou
corretamente que uma norma é um imperativo generalizado, e um imperativo é
uma sentença (Sat), cujo sentido, em contraposição a uma sentença assertiva
(Aussagesaiz), não está preso à justificação. . . A idéia de que uma norma como tal
poderia ser justificada — assim como uma asserção como tal é justificada — é,
portanto, despropositada (p. 76 s., na edição original). Coloca-se, então, a questão:
se uma norma, enquanto tal, não é justificável, o que nela é, então, justificável, e o
que se quer dizer aí ―ser justificado‖, em determinados casos, a saber, no caso das
normas morais e não no das normas de um jogo? O rodeio que você realiza neste
ponto, nas Três Preleções, sobre o denominado predicado de justificação de
normas, faz sentido, mas não é obrigatório. O decisivo é que a justificação, quando
se está falando da pretensão de justificação de normas morais, deve ter o mesmo
sentido que quando se fala da necessidade de justificação que possuem, ao
contrário das normas de um jogo. Cito, mais uma vez, as Três Preleções: ―o
sentido de justificação é, portanto, não o de uma justificação de (um ente
lingüístico), mas de uma justificação para (um agir): a justificação é uma
justificação para entrar numa práxis intersubjetiva que é definida por um sistema
4 Nota da tradução: Lance do jogo de xadrez, a saber: a troca do rei pela torre.
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normativo‖ (p. 84, na edição original)5. Neste ponto, você havia reconhecido
corretamente que a justificação aqui tem o sentido da indicação de um motivo.
Usamos a palavra Grund (razão, motivo), tal como em inglês, espanhol etc.,
reason, razón etc., em duplo sentido: no sentido de razão para uma asserção ou no
sentido de motivo para um agir. Perguntamos, por exemplo, qual a razão para sua
viagem? Ou por que, por qual razão, você passeia diariamente? E, em resposta, é
nomeado o motivo. Sua tese, nas Três Preleções, era, então, a de que — e ela me
parece correta —, quando se fala em necessidade ou pretensão de justificação de
uma norma moral, não se tem em mente algo como uma razão para uma asserção,
mas uma razão no sentido de motivo. Aqui não se trata, contudo, de uma única
ação, mas do entrar6 (einzugehen) numa práxis intersubjetiva. Como se deve
entender isto? Em um jogo, é-se livre para tomar parte ou não, e, por causa disto, o
sistema normativo não exige nenhuma justificação. Uma moral é, em
contrapartida. uma práxis de vida, que implica uma restrição do âmbito da
liberdade, e, ainda mais, quando se pensa nas sanções dos sentimentos morais.
Aqui um motivo deve ser assinalado para o indivíduo, uma razão pela qual se
sugere que ele esteja voluntariamente disposto a entrar nesta práxis de possíveis
censuras mútuas. A expressão ‗fundamento‘ tem, portanto, em primeiro lugar, um
sentido prático e, em segundo, um sentido dirigido aos indivíduos: o entrar numa
práxis normativa exige, primeiramente, justificação, de cada um. Aí, então, estará
eventualmente justificado. Mas posto tratar-se de uma práxis recíproca e universal
no cerne de uma comunidade, esta se constitui exatamente como uma práxis que se
exprime, também por isto, em um imperativo geral, cada qual sabe que a questão
se coloca da mesma maneira para os demais. Não se pode entrar nesta práxis
isoladamente. De acordo com seu próprio significado, os sentimentos morais são
sentimentos comuns, e neles está expresso que não apenas eu, mas que nenhum
outro, deve transgredir as normas, e nisto consiste que a práxis normativa deva ser
igualmente justificada frente a todos, isto é, que todos devam ter um motivo
análogo para entrar na práxis. Portanto, o fato de que a justificação deva ser
compreendida, em primeiro lugar, individualmente, implica (dado que se trata de
uma práxis comum) que esta práxis deva poder ser justificada igualmente face a
todos. Daí resulta. então, a possibilidade de se dizer diretamente das normas que
elas são justificadas, mas esta maneira de falar é, agora, fixada de tal forma, que
exprime que todos têm igualmente um motivo para entrar no sistema normativo. —
Por favor, não me interrompa ainda. Preciso esclarecer os diferentes aspectos desta
5 No original, diz-se ―einer Aussage‖ (―uma asserção‖), ao invés de ―einem
spraclichen Gebilde‖ (―um âmbito da linguagem‖). 6 Nota da tradução: O autor utiliza a palavra ―eingehen‖, em seu sentido literal, isto é,
―entrar dentro‖ ou ―entrar em‖.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 15
definição, que ainda não é encontrada nas Três Preleções. Em primeiro lugar, a
formulação de que as normas são justificadas, soa linguisticamente como uma
aproximação ao modo de falar do justificado de uma asserção, mas isto é uma
aparência superficial. Tão logo se pergunte o que isto quer dizer, a elucidação do
que foi dito na definição é inevitável: que todos têm igualmente um motivo para
entrar nela. Que a norma é justificada é, então, apenas uma abreviação de que ela é
igualmente justificada face a todos. Em segundo lugar, uma norma precisa ser
realmente justificável frente a todos e, além disso, igualmente? Naturalmente
apenas quando ela deve ser moral. Partimos da definição de que as normas morais
erguem uma pretensão de justificação e o fato de que isto equivale a que tenham
que estar justificadas por igual frente a todos é algo que se segue de sua
necessidade de justificação frente a todos igualmente. Com isto, não está excluído
que, em uma comunidade, também existam normas que, frente àqueles que a elas
estão submetidos, não sejam vistas como demandando justificação. Neste caso, no
entanto, não se trata de normas morais, mas de normas de poder. Os concernidos
— em caso extremo: os escravos — são forçados a observá-las, e não há
naturalmente qualquer pretensão de justificação frente a eles, pois eles não são
integrantes da comunidade moral.
T: Bem, posso dizer alguma coisa agora? Quero, antes, tentar recapitular
os passos essenciais deste raciocínio, para estar certo de que o compreendi
corretamente. Você se coloca tanto contra aqueles que tomam o ―ser justificado‖
(Begründersein) de uma norma como algo imaginário ou secundário, como
também contra aqueles que simplesmente pressupõem que a justificação de normas
precisa ser entendida como — ou de modo análogo — a das asserções. Ao invés
disto, você parte primeiramente do fato universal de que ninguém aceita uma
norma que não considere justificada. Uma criança, por exemplo, pergunta aos pais:
por que vocês reagem desta maneira quando eu faço tal e tal coisa? Os pais lhe
fornecerão o motivo que eles, e todos os demais também, têm para reagir tão
negativamente à transgressão da norma e, se eles não podem fornecer uma razão
(Grund) pela qual se reage mutuamente assim, sentirão isto como uma deficiência.
A norma aparece, neste caso, como um resíduo tradicional e, no contexto atual,
irracional. Isto mostra, de uma vez por todas, que a demanda de justificação é um
fenômeno universal, e é também compreensível a partir de seu contraste com a
situação, muito distinta, do jogo, Desta exposição resulta, em segundo lugar, que o
que é justificado na moral não é, como nas asserções, a sentença linguística mesma
(ou o pensamento correspondente, como diria Frege), mas o ―ser justificado‖ é
primeiramente um ―ser justificado para x” (Begründetsein-für-x) e significa que x
tem um motivo para entrar nesta prática com seus correspondentes sentimentos, e
isto se dá, do mesmo modo; para todo x. Daí, você conclui, em terceiro lugar, que,
quando se fala simplesmente de um ―ser justificado‖ da norma, isto só pode
Coleção Filosofia - 133 16
significar que ela é justificada face a todos igualmente, no sentido do segundo
passo. Introduzir a palavra ―igualmente‖, já neste ponto, parece-me muito ousado.
Há muitos autores que dizem que os interesses de todos devem ser igualmente
considerados, mas isto é pensado como linha-diretriz para uma moral justa no
contexto moderno. Para você, ao contrário, a consideração ―a todos igualmente‖
aparece já no sentido do que, em geral, significa justificar uma norma em alguma
moral. E, no entanto, demasiado evidente que existem comunidades morais que
tomam por justificadas normas desiguais e direitos desiguais.
I: Sim, isto pode parecer, à primeira vista, problemático. Minha tese é a de
que a igualdade na moral tem sua origem já no conceito de justificação, e
deveríamos deixar para tratar mais tarde quais as conseqüências disto para a
igualdade e a desigualdade, no âmbito da justiça. É sempre arriscado criticar um
pensamento dizendo que ele tem, supostamente, conseqüências implausíveis.
Deixemos, por hora, de lado, a questão de se realmente teremos aqui dificuldades
com relação à justiça ou se será preciso fornecer uma base para se compreender
apropriadamente o conceito de justiça em sua dupla face: a da igualdade e a da
desigualdade. É inevitável introduzir a expressão ―para todos igualmente‖ já no
esclarecimento do sentido da justificação moral, porque, de outro modo, aqueles
que não tivessem motivo ou tivessem apenas um motivo fraco para entrar na
práxis, não seriam ou seriam apenas integrantes parciais da comunidade moral. Na
medida em que eles tivessem ao menos um motivo menor para entrar na práxis,
seriam obrigados a tomar parte na mesma, Devemos ver, mais tarde, que é
perfeitamente concebível que alguns membros da comunidade tenham menos
direitos, mas que o sistema normativo, como tal, seja visto por eles como tão
justificado para eles como para todos os demais. Pode haver razões reconhecidas
para que o sistema considerado por todos de igual forma justificado distribua
direitos desiguais.
T: Talvez seja decisivo fixar que o ―igualmente para todos‖ está
necessariamente contido no conceito de ―ser justificado‖, quaisquer que sejam os
resultados, quando se entende este conceito prática e individualmente, como você o
faz. O que você apontou como definição para o ser justificado de uma norma não é,
portanto, uma mera sugestão, mas se deriva analiticamente, pois agora só se pode
imaginar, sob este conceito, que a palavra esteja sendo empregada como
abreviação para estar igualmente justificado para todos.
I: Naturalmente é preciso deixar em aberto, acrescentou ele, a
possibilidade de que uma parte da comunidade considere que as normas não estão
justificadas frente a ela. Posto que o conceito de ―ser justificado para x‖ é o
conceito básico, é preciso que o conceito de ―ser justificado para alguns‖ tenha um
sentido tão correto quanto o de ―ser justificado para todos‖, mas, então, ficam de
fora da comunidade moral aqueles para os quais as normas não aparecem como
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 17
justificadas, ainda que eles continuem sendo integrantes, por exemplo, da
comunidade política. Por integrantes da ―comunidade moral‖ são entendidos todos
aqueles que (através dos sentimentos morais) tomam parte no sistema de
exigências recíprocas, e isto só é pensável, quando todos o vêem como igualmente
justificado para si e para todos. O fato de o ―ser justificado para x‖ ser o conceito
básico, reside simplesmente em que apenas os indivíduos possuem motivos. Tem-
se que entender que isto para o qual temos motivo é, neste caso, uma práxis mútua
e universal, tal que cada um que nela entre supõe que também todos os outros
possuam o mesmo motivo para nela entrar. Isso deixa em aberto quem são ―todos‖,
mas sem uma referência a uma totalidade não se pode falar de um motivo para
entrar numa práxis normativa, pois uma práxis normativa é uma práxis mútua de
uma totalidade (no menor dos casos de uma dupla), que se expressa em
imperativos universais, que por sua vez são mantidos por sentimentos, a cujo
sentido pertence ser sentimentos iguais para todos.
T: Mas este novo conceito de justificação ―justificar para x‖ é realmente
indispensável? No apêndice a minha crítica à teoria do discurso, nas minhas Lições
(p. 173-176, do original alemão), tentei mostrar que não apenas ele é dispensável,
mas que não possui sentido próprio. Pode-se reduzir ―N (uma norma) deixa-se
justificar frente a x‖ a ―N deixa-se justificar, e N diz respeito a x‖.
I: Lamento, mas tratava-se de um erro. Você disse que ―uma norma é
justificável frente a x‖ é análogo a ―uma asserção se deixa justificar frente a x‖.
Uma asserção (Aussage) é justificada, em si e por si, e quando a justificamos
frente a alguém, simplesmente se acrescenta algo (que a justificação dá-se no
diálogo com x). Mas uma norma não se deixa justificar em e por si; isto não tem
sentido algum. Você negligenciou que, nos enunciados — o enunciado que
expressa uma norma, e aquele no qual uma asserção se expressa —, a palavra
―justificar‖ possui um sentido completamente diferente. A primeira cláusula da
sua análise — ―a norma se deixa justificar‖ — é, portanto, sem sentido.
T: Tem razão. Isto nunca me teria ocorrido, se eu me mantivesse atento às
Três Preleções. O ―ser justificado para x‖ é, então, — para as normas, não para as
asserções não apenas irredutível, mas é o conceito básico para poder compreender,
em geral, o que se pensa com o ―ser justificado‖ de uma norma. Aceitando isto,
chego, neste ponto, a um estreito contato com a ética do discurso, posto que, em
conexão com o que você chama de definição do ―ser justificado‖ de uma norma,
poderíamos agora dizer: ―uma norma é justificada, quando todos podem, de uma
determinada maneira, concordar com ela‖.
I: Desta aproximação com a ética do discurso você estava totalmente
consciente, nas Três Preleções. A terceira preleção é intitulada ―Moral e
Comunicacão‖. Isto não altera em nada a sua crítica à maneira como Habermas e
Apel acreditam poder justificar a moral. Em primeiro lugar, recordo-lhe a sua
Coleção Filosofia - 133 18
observação anterior: não se trata aqui para nós de uma característica especial da
moral moderna (tampouco podemos ainda dizer que a norma é justificada,
quando ela é do interesse de todos igualmente; fica ainda em aberto qual seria o
elemento decisivo para o indivíduo, quanto ao seu motivo de entrar numa práxis
normativa. Em segundo lugar: a distinção face à ética do discurso é que, para a
ética do discurso, a concordância de todos — ou uma certa concordância — é
uma consequência que pertence ao Conceito de justificação em geral, quer seja,
então, de asserções ou normas, enquanto o que se conclui aqui é uma
conseqüência do que pertence especialmente ao conceito de ―ser justificado‖ de
uma moral. O modo como Habermas, partindo de sua idéia de que justificar
normas é algo análogo a justificar asserções, chega à tese que se assemelha à
minha, pode ser compreendido a partir da concepção, por você há muito
criticada, de uma teoria consensual geral da validade (―verdade‖ para asserções,
―correção‖ para normas). Assim, Habermas passa por cima da especificidade do
conceito de justificar frente a x. No entanto, é possível encontrar esta noção
também em outros autores, assim como por exemplo em T. Scanlon: o autor fala
de “justify to” (―justificar em relação a‖), em relação a uma pessoa, e desta
maneira chega — como Thomas Nagel — a uma teoria consensual da moral sem
levar em consideração (até onde vejo) a superestrutura racional da ética do
discurso7 e tampouco a teoria da ação, à qual fizemos alusão anteriormente, que
está na base deste conceito. Aliás, em nenhum destes autores o conceito de um
acordo geral qualificado está em conexão com a questão do que significa em
geral a justificação de normas morais, mas é uma resposta à questão de como as
normas devem ser justificadas em uma moral moderna.
T: Sim. A questão formal do que, em geral, está contido no conceito de
uma justificação de normas morais, está relacionada com a questão do que, em
geral, deve ser entendido como uma norma moral. Posto que você manifestamente
tomou de mim este princípio, não precisamos, neste ponto, temer qualquer
desentendimento. Mas seria, então, importante, que você, antes de passar à nossa
questão central — como pode ser justificada instrumentalmente a moral moderna
—, pudesse abordar de que modo o conceito de justificação, tal como você o
esclareceu, se adequa também às morais tradicionalistas (autoritárias), pois não é
por acaso que este conceito de justificação aparece em outros filósofos
contemporâneos precisamente para a justificação da moral moderna. Enquanto
meu conceito formal anterior de uma ―moral em geral‖ estava construído sobre um
conceito de bem e podia, por isto, ser mais facilmente aplicado às morais
7 T. Scanlon, ―Contractualism and utilitarianism‖, in: Sem/Williams, Utilitarianism
and Beyond, p. 113 ―justify to‖, p. 110 Teoria consensual; Th. Nagel, equality and
Partiality, p. 36.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 19
tradicionalistas, advirto que, com o seu conceito de ―uma moral em geral‖, se dá o
contrário: ele aplica-se mais facilmente à moral moderna do que às morais
tradicionalistas; já disse antes que não podia imaginar como se pudesse chegar a
morais com direitos desiguais, se o conceito de igualmente justificado pertencesse
a um conceito formal de moral.
I: Você verá que isto não acarreta problemas insolúveis. Aqui se vê que
você, mais uma vez, parece ter esquecido completamente suas Três Preleções,
quando diz que seu conceito formal de moral anterior implicava um conceito de
bem. Nas Três Preleções, não era este o caso, e eu tenho me limitado simplesmente
a elaborar a concepção lá apresentada.
Concordamos em encerrar por este dia e continuar no dia seguinte. Ambos
não tínhamos pressa alguma na continuação da nossa viagem e decidimos
continuar em Letícia tanto tempo quanto nosso diálogo exigisse. Havia, nas
redondezas, um hotel com ar condicionado.
20 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO II
Na manhã seguinte, encontramo-nos antes mesmo do nascer do sol. O
frescor da manhã deveria ser aproveitado.
I: Antes de chegar à questão principal, eu deveria mostrar como o conceito
de justificação age na moral tradicionalista. O que você entende por uma moral
tradicionalista é caracterizado precisamente por uma determinada forma de
justificação que — se a teoria que tracei ontem é correta — deve ser simplesmente
um caso da minha definição geral. Uma criança, por exemplo, pergunta ―por
quê?‖, isto é, o que todos possuem como motivo, e os pais lhe respondem. O traço
específico de uma justificação tradicionalista é a referência ao que ―todos‖ somos
ou de onde ―todos‖ viemos. Isto é uma ―verdade superior‖, tal como você
anteriormente o expressou, ou seja, pressupõe-se que se acredite nela e que não se
deva questionar mais além. Trata-se de algo com que ―todos‖ nos identificamos,
algo que constitui a nossa identidade social. Esta ―propriedade superior‖ remete a
uma autoridade que fixou para nós as normas morais válidas. Este sistema
normativo pode ser, então, tão iníquo quanto se queira. Apesar de atribuir direitos
de tipo e de extensão distintos, ele é o nosso sistema normativo comum, todos
acreditamos nele igualmente e reagimos com igual indignação quando ele é
usurpado, e isto porque todos possuímos igualmente a propriedade superior de
pertencer a esta comunidade moral. Posto que a justificação, para cada um, não
está baseada em seus interesses empíricos, mas em uma propriedade superior de
pertinência, não há contradição entre o fato de que o sistema normativo seja
igualmente justificado para todos e de que atribua, não obstante, diferentes papéis e
posições jurídicas a cada um. Examinando, por exemplo, o código indiano do
Manu1, que, com sua justificação do sistema de castas, é um sistema normativo
extremamente desigual (por isso Nietzsche se interessou tanto por ele), vê-se que é
da proveniência dos distintos membros de um único Deus que resultam as
diferentes castas dentro da hierarquia total. Para todos os crentes o sistema é
igualmente justificado; eles crêem, de igual modo, no mesmo, e isto implica que
eles se censuram mutuamente, se indignam uns frente aos outros etc., sempre que
alguém, do lugar do sistema ao qual pertence, infringe as regras. Toda
desigualdade moral no conteúdo dos direitos repousa sobre uma igualdade no
1 The Laws of Manu, publicado por W. Doninger e brian K. Smith, Penguin, 1991.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 21
conteúdo da crença, pois, caso contrário, ela não poderia ser moral e não teríamos
uma comunidade moral unitária.
T: Aparentemente sim, mas na Índia ocorreram as revoltas dos
intocáveis, respondi.
I: Sim. Isto significa, então, que a igualdade no âmbito da superestrutura
ideológica, se você quiser, não pode mais ser afirmada em detrimento dos
interesses empíricos. A distinção entre a moral autoritária e a moral autônoma
moderna deveria ser considerada apenas como um tipo ideal, e deixar em aberto o
quanto da moral moderna já não está também contido em toda a moral autoritária.
Na medida em que isto se dê, será potencialmente anulada a desigualdade dada
autoritariamente, e na qual, até então, se acreditava. Quando você pensa, por
exemplo, na discriminação das mulheres, é interessante ver quantos preconceitos
derivados da tradição autoritária permanecem contidos também em nossa moral,
moral esta que somente pode fundar-se em interesses iguais. Em todos os casos,
seja no sistema de castas, seja no problema das mulheres, que nos é familiar, se
pode pensar em uma continuidade entre os dois extremos: em um extremo, a
autoridade tradicional atua de modo tão convincente sobre a minoria prejudicada,
que esta, de modo algum, pensa em questionar o ―ser justificado‖ das normas
desiguais. Em outro extremo, impõe-se o ponto de vista da igualdade na
consideração dos interesses. Isto pode acontecer de diferentes modos, ou bem não
se colocando em questão a autoridade, mas apenas reinterpretando-a, ou bem
rejeitando-a. Não é a possibilidade de revolução dos prejudicados que é
surpreendente, mas sim como a desigualdade tem funcionado bem em uma moral
tradicionalista. Minha tese é simplesmente a de que isto é compreensível a partir da
uniformidade da crença como instância justificadora. Ontem você se surpreendeu
que eu visse a base de justificação em uma moral tradicionalista não-igualitária, de
tal modo que ela fosse válida igualmente para todos. Mas não é evidente que, se
isto não pudesse ser assim por meio da crença, os prejuízos que o sistema não-
igualitário implica não seriam voluntariamente aceitos?
T: É provável que isto seja realmente evidente, disse eu. Devemos poder
diferenciar, por exemplo, o caso em que as mulheres reconhecem como legítimo o
prejuízo de seus direitos, enquanto parte do sistema, porque elas acreditam na
autoridade, do caso em que elas o fazem coercitivamente, porque adotam um outro
padrão de justificação ou, ao menos, consideram-no de modo complementar. Sua
explicação possibilita não apenas constatar esta diferença, mas entendê-la. No
segundo caso, o sistema normativo é, para as mulheres, apenas um sistema
pretensamente moral ao qual elas eventualmente se submetem, porque não podem
se impor contra o que, com razão, consideram como um sistema de coerção. Até
onde, nas sociedades tradicionalistas, a consciência das mulheres — ou de outros
grupos prejudicados — oscila entre estas duas concepções, não necessita e não
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 22
pode ser decidido teoricamente, mas só pode ser esclarecido empiricamente e será,
em cada situação, historicamente distinto. Em todo caso, eu me declaro de acordo
no que diz respeito ao emprego do seu conceito de justificação nas comunidades
morais tradicionalistas. Passemos então à questão central da justificação em uma
moral moderna, que você declarou dever realizar-se instrumentalmente.
I: Sim. Quando você o formula de modo tão veemente, hesito diante do
termo ―instrumentalismo‖, pois, uma vez que atingimos o nível da moral,
precisamos, sem dúvida, distinguir os juízos e as ações morais das instrumentais. A
primeira tarefa consiste em provar se os níveis morais podem ser alcançados por
meio de reflexões puramente instrumentais, o que você negou em seu livro. O
provocativo rótulo ―instrumentalismo‖ tem o sentido de apontar a única direção
que resta, quando se admite a supressão de todos os atributos previamente dados e
de todos os elementos superiores na justificação da moral. Compreende-se aqui a
justificação da moral no sentido ontem elucidado de justificação para todos.
Enumero, mais uma vez, as possibilidades: em primeiro lugar, certamente, a
autoritária (ou ―tradicionalista‖); em segundo, a ―metafísica‖ dentro da qual incluo
também seu discurso acerca de uma propriedade superior ou de um conceito
pressuposto de bem (real ou possível). Ambas devem ser abandonadas, porque, na
justificação da moral, não pode ser aceita nenhuma cláusula do tipo: ―se você se
compreende assim‖ ou, dito de modo mais forte, não mais como possibilidade:
―porque você é assim e assado‖, com a qual é nomeada uma propriedade da qual
outros pudessem discordar. Em terceiro lugar, anula-se também qualquer recurso
biológico ou psicológico a propriedades supostamente inatas como altruísmo ou
compaixão. E isto, primeiro, porque elas não indicam normas morais — nosso
altruísmo não funciona como o das formigas. Um dever moral (nem externo nem
internamente coercitivo) implica sempre a liberdade de não agir de tal modo e
exige, por isto mesmo, um ―ser justificado‖. Em segundo lugar, e em conexão com
o ponto anterior, porque, mais uma vez, seriam mencionadas apenas propriedades
cuja existência pode ser contestada pelo interlocutor. — Em seu livro, e desde as
Retratações, você afirma que instrumentalmente não se chega a nenhuma moral. A
tese era que uma moral em sentido próprio, com sanções internas, e isto significa,
uma consciência moral (Gewissen) não pode ser introduzida contratualmente. Você
não definiu o contratualismo, mas pressupôs que isto significava, mais ou menos, o
mesmo que instrumentalismo, e você pensou o instrumentalismo como uma
maximização radical da utilidade (radikaler Nutzenmaximierer). A confusão aqui é
muito grande. Por instrumentalismo deve-se compreender um modo de pensar no
qual a pessoa age em consideração aos seus interesses. Poder-se-ia, então, com
Gauthier2, definir o maximizador radical da utilidade como aquele que —
2 David Gauthier, Morals by Agreement, Oxford, 1986, p.167.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 23
independente de se encontrar em um sistema moral ou não — escolherá, em caso
particular, sempre aquela opção da qual espera obter o maior proveito próprio. Há
também a outra possibilidade a ser considerada — e daí será constituída a
moralidade —, na qual alguém possui razões (Gründe) — justamente sobre a base
das normas morais justificadas instrumentalmente — para limitar, em seu próprio
caso, a maximização da utilidade. O contratualismo, ao contrário, não é nem um
nem outro, porque ele não se coloca, de maneira alguma, para o modo de pensar de
um indivíduo, mas sim para um sistema normativo recíproco ou para sua
justificação; um sistema para o qual a observância das regras, por todos, é
assegurada através da observância pessoal, como no caso da redução dos faróis no
tráfego noturno; neste caso, admite-se reciprocamente que qualquer pessoa, quando
puder evitar a sanção externa, agirá segundo o princípio da maximização ilimitada
da utilidade. Certamente outras definições também podem ser pensadas. Mas se
admitimos a definição fornecida acima, segue-se analiticamente que em um tal
sistema não pode haver nenhuma sanção interna e conseqüentemente nenhuma
consciência moral. Quando você argumenta, na página 75 (do original alemão) das
suas Lições, que não pode haver uma consciência moral para os contratualistas,
evidentemente você não pensa neste fato analítico, e isso fica claro, porque você
não tem em mente, de modo algum, o contratualismo, mas sim o modo de pensar
instrumentalista. Alcançamos aqui o ponto no qual há uma clara oposição entre
nós. Na minha concepção, a consciência moral pode ser introduzida
instrumentalmente, e, considero, então, o seu argumento como falso. Você escreve:
naturalmente o pensador instrumentalista desejaria também que os outros tivessem
uma consciência moral, mas é ―impossível‖ ter razões instrumentais para ter uma
consciência moral própria, então, ―seria irracional, no sentido da inteligência
egoísta, prescindir de eventuais vantagens, quando eu posso tê-las, sem punição
externa (ver também ―Die Hilflosigkeit...‖, Philosophische Aufsätze, p. 378). A
última frase mostra que você tem em mente o maximizador radical de utilidade.
Mas eu já disse que é problemático compreender o instrumentalismo
exclusivamente assim. O erro do seu argumento é a separação entre a consciência
moral para mim e para os demais. A questão é, antes: quero a consciência moral
para mim e para os outros, e querem os outros (todos os outros) o mesmo, da
mesma maneira? A questão acerca da moral em geral, ou ainda, de cada norma
moral é, por sua vez, se nós (todos) a queremos universalmente. A questão reza:
queremos uns dos outros, reciprocamente, que tenhamos uma consciência moral?
A esta questão um instrumentalista pode responder apenas positivamente: se
comparamos uma moral consciente (Gewissens,noral), isto é, uma moral com
sanções internas — que implica mútua confiança — com a moral contratualista, tal
como eu agora mesmo a apresentei, então, as vantagens saltam aos olhos.
Naturalmente queremos ser morais mutuamente, uns com os outros, não apenas em
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 24
virtude de sanções externas, mas da confiança. Mas isto significa precisamente que
queremos uns dos outros, reciprocamente, que tenhamos uma consciência moral
ou, mais uma vez, formulado de outro modo, que a sanção com base na qual se
ergue a normatividade das normas consista no conjunto dos sentimentos morais, e
não no medo de represálias, como no caso da redução dos faróis. Você acabou de
indicar como característica da moral instrumental que ela seria incapaz de se erguer
sobre sentimentos morais, e esta é também a razão por que você a designou como
quasi-moral.
T: Primeiramente, ainda não vejo com clareza o que você faz com a
consciência moral do indivíduo. Como pode bastar dizer que queremos
mutuamente uns dos outros que tenhamos uma? E, segundo: pode-se, então,
simplesmente tirar da manga os sentimentos morais? Para mim eles se erguem
sobre o conceito de bem, e era exatamente o conceito de bem de que você falou,
que pensei faltar na quasi-moral. Que eles se ergam sobre um conceito de bem,
se mostra quando nos orientamos pelas definições habituais. Deixe-me
relembrar: já para Aristóteles o afeto não era simplesmente um sentimento, mas
referia-se per definitionem a um conteúdo proposicional, no qual, no caso dos
afetos não-morais, aparece a expressão ―bom para‖ e, no dos morais, a expressão
―bom‖. Designamos, por exemplo, um determinado sentimento de P como temor,
quando ele se refere à expectativa de um acontecimento que seria para ele (P)
ruim; ou, por exemplo, P inveja R, isto é, tem um sentimento que se refere ao
fato de que R possui um bem que ele, por sua vez, gostaria de ter. Precisamos
destes conteúdos proposicionais distintos para poder identificar os afetos em
geral como sendo este e aquele; por exemplo, para poder identificá-los como
temor ou inveja. O mesmo ocorre justamente com os sentimentos morais, com a
diferença de que aqui, no conteúdo proposicional, aparecem as palavras ―bom‖ e
―ruim‖ não-qualificadas e não mais a expressão ―bom para mim‖. Quando vocês,
em castelhano, falam de indignación ou nós, em alemão, falamos de Einpõrung
ou de Entrüstung, está sempre pressuposto o juízo de que a ação à qual este
sentimento se refere é (simplesmente) ruim. Seguindo a exposição de Strawson
em ―Freedom and Resentment‖ (Proceedings of the British Academy 48 (1962),
p. 187, na Ed. original), faz sentido falar de um sentimento análogo que alguém
possui quando julga como moralmente ruim a ação de outro que o afeta. Tal
sentimento, Strawson designa pela expressão resentment e o mesmo é feito em
espanhol, mas, em alemão, a palavra Ressentiment, vinda do francês, conservou,
graças a Nietzsche, o sentido de indicar uma atitude geral de inveja dos
prejudicados, tornando-se, portanto, inapropriada. Por isto utilizei a palavra
Groll. Todas estas definições são naturalmente convenções das quais não se pode
esperar que expressem de modo exato o uso linguístico. Por fim, Strawson
designa-o como sentimento de culpa aquele sentimento que alguém possui frente
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 25
a uma ação sua, quando ela é tal que, se um outro a praticasse, frente a ela, o
indivíduo sentiria ressentimento ou indignação. O interessante nesta tríade
indignação-ressentimento-sentimento de culpa é que eles contêm a palavra
―ruim‖ no juízo sobre o qual se erguem, e esta é a razão pela qual eu defendi a
concepção de que os mesmos não podem ser compreendidos a partir de uma
quasi-moral, quer dizer, sem um conceito de bem.
I: Quero deixar de lado, por ora, o seu primeiro ponto, que diz respeito à
consciência moral, e ocupar-me primeiramente da sua tese de que ―não há
sentimentos morais sem um conceito de bem‖. Apesar de concordar com você
com relação à teoria geral dos afetos em Aristóteles, não estou tão certo de que
seja imprescindível incluir, na definição da tríade strawsoniana, a palavra ―ruim‖
não-qualificada. E isto está relacionado à seguinte dúvida: se o discurso acerca
do ―bom‖ é realmente tão imprescindível para a compreensão da moral, como
você afirma em seu livro. Também sobre este ponto você foi mais cuidadoso em
suas Três Preleções com os denominados diferentes ―predicados de justificação‖.
Mas deixo para mais tarde estas considerações e gostaria de me ater, tanto quanto
possível, à sua posição. Quero primeiramente admitir que seja correta, ao menos
hipoteticamente, a sua tese de que “não há sentimento moral sem um conceito de
bem‖. Isto me conduz, então, a um outro ponto fraco do seu livro. Não é fácil
reconhecer o que você compreende lá como ―bom‖: você escreve, certamente
com razão, que este uso aparentemente predicativo da palavra se refere, na
realidade, a um atributivo, apesar de afirmar (Lições sobre Ética, p. 56, no
original) que não se pode provar (eu acredito que se possa) que este ―bom‖ deva
ser entendido em analogia com ―um bom violinista, cozinheiro‖ etc.; o
substantivo não está colocado para uma determinada função ou atividade, mas
para a capacidade de ―alguém ser socialmente tratável, ser um ser cooperativo,
ou, em uma sociedade primitiva, corresponder aos padrões de filiação a esta
sociedade‖ (Lições sobre Ética, p. 57, no original). Em outro lugar, você fala da
capacidade de ser um ―membro da comunidade‖ ou, também, de ser uma ―boa
pessoa‖ (Philosophische Aufsätze, p. 319 ss.). Aqui se revela uma incerteza
quanto a qual destes diferentes substantivos seja propriamente decisivo, neste
caso. Além disto, é flagrante que você, no momento em que passa deste conceito
de bem para o sistema das normas morais, precisa dar um salto para o qual você
não tem apoio (Lições, p. 58 acima). Mas isto está relacionado às dúvidas,
anteriormente aludidas, sobre a imprescindibilidade do conceito de bem: terei
que voltar a isto mais tarde. O problema propriamente dito consiste para mim em
que, tal como ontem pensava, este conceito de bem é o sucessor do conceito de
―propriedade superior‖ das Retratações. É surpreendente que você faça com ele
exatamente o mesmo que fez com o conceito de consciência moral, a saber.
considerá-lo de dentro.
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 26
T: E você pensa que se possa ver a consciência moral de fora?
I: Sim, pode-se mesmo exigir, e é apenas isso que se pode fazer
intersubjetivamente. Exatamente como penso que, com relação à consciência
moral, a questão seja ―queremos mutuamente uns dos outros que tenhamos uma
consciência moral?‖, é coerente aproximar-se da questão do bem na tradição de
Hume e perguntar ―como queremos ser mutuamente uns com os outros?‖ ou, mais
estreitamente orientados por Hume: sobre quais condições aprovamos ou
desaprovamos uma ação, elogiamos ou censuramos uma pessoa?
Eu silenciei durante algum tempo e finalmente disse:
T: Certo. Parece-me claro. Eu me orientava, neste ponto, provavelmente
há muito tempo, por Kant, o qual, tal como Aristóteles, sempre viu o bem —
contraposto ou comparado ao agradável — como ponto de referência para a
própria ação. Isto é plausível, sobretudo, no âmbito dos imperativos hipotéticos: a
pessoa que persegue um fim se pergunta qual o melhor meio de alcançá-lo. Aqui a
intersubjetividade não desempenha papel algum, Mas, tão logo se emprega ―bom‖
atributivamente (―um bom ―X‖), a questão é, quando se deve eleger um ―X‖, este
―X‖ é preferível, e, quando ―X‖ representa uma capacidade humana, a questão se
coloca de fora, e, com isso, é introduzida, de fato, a intersubjetividade: alguém é
um bom cozinheiro ou é um cozinheiro melhor que ―b‖, quando ele é desejado ou
preferível como cozinheiro, e isto é, sem dúvida, aquilo a que você se refere como
um julgamento de fora.
I: Sim, justamente. E o que há de mais plausível do que aplicá-lo, do
mesmo modo, ao bom moral? De modo semelhante, Rawls definiu, no § 66 de
Uma Teoria da Justiça, ―uma pessoa (moralmente) boa, em contraposição a um
bom médico ou a um bom agricultor‖, como uma pessoa que possui a propriedade
que é racional se desejar para o outro independentemente de uma determinada
função. Rawls emprega a palavra ―desejar‖ em sentido fraco, provavelmente para
aproximar, o máximo possível, o discurso acerca de uma pessoa moralmente boa
ao de um ―bom médico‖ etc. Quando alguém não é, em geral, um bom ―X‖, nós o
criticamos: na moral, em contrapartida, empregamos as expressões mais fortes de
aprovação e desaprovação, de louvor e censura. E estas expressões mais fortes se
relacionam ao fato de que não apenas desejamos mutuamente uns dos outros que
sejam assim, mas que o exigimos. Enquanto falamos de desejar, querer, eleger,
falamos uns dos outros em terceira pessoa. Em contrapartida, tão logo o exigimos,
isto se torna um comportamento normativo na segunda pessoa do plural. Com isto,
apenas remeto-me a uma distinção que você também fez (Lições sobre Ética, p. 59.
no original), e que é essencial para a moral. Ninguém precisa ser médico,
cozinheiro ou violinista; isto diz respeito à sua liberdade. As normas morais, no
entanto, não são do tipo que se colocam, quando alguém deseja ser tal e tal, mas,
dentro de uma comunidade moral, colocamos esta exigência mutuamente de modo
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 27
categórico. Poder-se-ia dizer que a sanção é a exclusão (Exkommunikation) da
comunidade moral ou, de qualquer modo, a exclusão tendencial, e isto é
precisamente o que é expresso na indignação.
T: Você quer dizer que se deve definir os sentimentos morais em
relação a esta exclusão, ao invés de defini-los relativamente ao conceito de bem
ou, melhor dito, de mal?
I: Sim, no fundo, é o que acho. Mas isto já é uma antecipação. Não
gostaria de colocar o conceito de bem em questão. O que me interessa, em
primeiro lugar, é apenas que o discurso acerca de uma boa pessoa deve ser
compreendido a partir do julgamento recíproco. Tão logo se considere isto, não se
deveria mais poder duvidar de que possa introduzir o conceito instrumental de
bom, e isto quer dizer que o mesmo ocorre com os sentimentos morais, quando tais
sentimentos são tão estreitamente ligados a este conceito, como você o faz. Isto se
vê, por exemplo, na definição de Rawls que acabo de citar. Ele diz que é racional
querer isto mutuamente, e ―racional‖ quer dizer para ele: por interesse próprio. Isto
corresponde ao que chamei de concepção instrumentalista: é do interesse de cada
um querer mutuamente, uns dos outros, que sejamos tal e tal e, quando
fortalecemos isto da forma como pensei há pouco, segue-se a expressão forte: é do
interesse de cada um, em conjunto com todos os outros, exigir de todos ser de tal
modo. Posto que Rawls se movimenta apenas no contexto da moral moderna, ele
pode reclamar isto diretamente como uma definição da pessoa moralmente boa.
Posto que eu, tal como você, concebo tanto o conceito de moral como o de bem —
de boa pessoa —, de tal modo que ele sirva também às morais tradicionalistas, há
que se formular com maior grau de generalidade da seguinte forma: dentro de cada
comunidade moral, o conceito de bem corresponde àquilo que queremos (e
exigimos) ser em reciprocidade uns com os outros, independentemente de
determinadas funções. Destas exigências recíprocas podemos dizer, em conexão
com o que foi dito ontem, que devemos poder fundamentá-las reciprocamente no
sentido indicado, e isto acontece quer (na moral tradicionalista) em relação a uma
propriedade que se supõe, quer em relação aos interesses de cada um.
Naturalmente, discordando de você, eu não poderia, de antemão, querer dizer: uma
moral deve ser justificada instrumentalmente. É suficiente que ela possa ser
justificada instrumentalmente, e isto quer dizer, com certeza: quando é eliminada a
justificação tradicionalista, a instrumentalista é a única possível. (Ainda teremos
que restringir esta idéia, mais adiante, frente aos particularismos modernos.) — Eu
não penso naturalmente que, no discurso de justificação, a palavra
―instrumentalmente‖, ou ainda, apenas a palavra ―interesses‖, tenha que aparecer.
Imaginemos, por exemplo, o seguinte: uma criança pergunta aos pais ―por que
vocês reagem com indignação quando eu me masturbo?‖. Os pais não poderão
responder a isto se não recorrerem a uma autoridade. Esta proibição demonstra-se,
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Coleção Filosofia - 133 28
portanto, não-justificável. Mas isto significa que a moral em geral deixou de existir
para a criança? ―Você mesmo gostaria. contudo‖, os pais podem dizer, ―que
algumas proibições tenham validade universal, e que todos os outros também
queiram o mesmo. Esta proibição, então, justifica-se frente a todos‖. A
determinação particular destas proibições decorre deste discurso de justificação
recíproca. Elas não precisam ser retiradas de uma lista precedente de interesses.
Eu silenciei um momento. Como pude deixar passar um erro tão
simples e, ao mesmo tempo, com conseqüências tão fortes: negligenciar a
reciprocidade do conceito de bem?
T: Mas o que se passa, então, com os sentimentos morais? Se eles se
referem a um conceito de bem justificado instrumentalmente, aparecem como
inventados.
I: Quando você diz que eles aparecem ―como que inventados‖, o contrário
será que eles são naturais, e não creio que devamos conceder isso. Encontramo-
nos, sem dúvida, frente a um fato biológico dado de antemão: os seres humanos
são seres que possuem a capacidade de aprender normas morais e de se comportar
de acordo com as normas morais. Com isto, ainda não está implicado nenhum
conteúdo moral, mas a capacidade de integrar uma comunidade moral, quer dizer,
de se compreender, ao mesmo tempo, como sujeito e como destinatário de
exigências emocionais recíprocas. No que concerne ao caráter imperativo das
normas: indignação e rancor constituem, do lado do sujeito, a base que sustenta a
norma e o mesmo ocorre com o sentimento de culpa, do lado dos destinatários e,
como acabei de dizer, todos os sujeitos são igualmente destinatários. A
peculiaridade destes afetos é que quem os tem, tem consciência de que os outros
também deveriam tê-los; não se pode ter rancor ou estar indignado sem, ao mesmo
tempo, pensar que também o restante dos integrantes da comunidade moral tem
razões para estar indignado, e que alguém não pode se indignar diante de uma certa
ação, se não se sente culpado quando ele mesmo a pratica. Quando falta esta
capacidade de reagir a sentimentos compartilhados neste sentido, pode-se falar de
“lack of moral sense” (―falta de senso moral‖), mas isto não é, como você o expôs,
uma possibilidade em relação à qual se pode decidir, mas realmente uma falha
psicológica. Esta capacidade ou bem se possui ou bem ela nos falta; pode-se
decidir apenas com relação ao seu exercício ou ao deixar de praticá-la. E poderia
acontecer, em princípio, que ela não pudesse mais ser praticada, se não fossem
fornecidas as condições do tipo tradicionalista. Mas este não é o caso aqui, tal
como procurei mostrar anteriormente, posto que há uma justificação
instrumentalista perfeitamente natural, a saber, aquela que considera o interesse de
todos. Eu quero dizer, portanto: se nós não tivéssemos nascido com esta
Diálogo em Letícia
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capacidade, não poderíamos ser socializados em uma moral moderna, porque não
poderíamos ser socializados em moral alguma. Isto não outorga a esta capacidade
nenhum status supra-empírico.
T: Tudo bem, até aqui estou de acordo. E se esta explicação inatista
não agrada a alguém, podemos vê-la assim: nós já crescemos em uma moral
autoritária, porque a moral da primeira infância tem sempre feições autoritárias.
A moral autônoma não se constitui a partir de uma tabula rasa. De fato, apenas
aquilo que da moral precedente não resiste a uma justificação autônoma é
abandonado.
I: Eu concordo com você que isto é assim, mas não se deveria apresentar
este modo de ver sociológico como alternativa para um modo biológico, porque,
com isto, se daria a impressão de que a moral autoritária é uma base necessária
para o instrumentalismo, e que as razões morais surgem a partir daí. Poderíamos
compreendê-lo facilmente numa direção hegeliana: a moralidade (Sittlichkeit),
como base necessária para uma moral autônoma. Eu penso que a moral
instrumentalista é totalmente autárquica, e que, do mesmo modo, os sentimentos
morais não remetem a uma base tradicionalista. Você favoreceu esta maneira de
pensar ao apresentar o problema da moral moderna como se ele se colocasse
quando as morais tradicionalistas parecessem não-fundamentáveis. Como fato, isto
é correto, mas as coisas podem ser vistas também da maneira inversa: a moral
instrumentalista como aquela, em si, mais plausível, e que foi encoberta pelas
morais tradicionalistas. — Não deveríamos fazer aqui nenhuma concessão à
psicologia infantil, ou, neste caso, à psicanálise. A psicanálise deve tentar
esclarecer as formas prévias do sentimento de culpa, porque o sentimento de culpa
infantil desempenha um papel enorme no nosso inconsciente. Mas pensar que,
desta maneira, o sentimento de culpa pode-se tornar compreensível, no sentido
anteriormente definido em conexão com Strawson, seria uma genetic fallacy
(falácia genética). O esclarecimento destas formas prévias não é o esclarecimento
do fenômeno. O que é apontado, em estágios anteriores, como sentimento de culpa,
pode ser, por exemplo, o medo unilateral da punição. Este é, então, um outro
fenômeno que não o do sentimento de culpa, sentimento que alguém tem apenas
quando, na troca de papéis, sente indignação. Estes sentimentos, compartilhados de
maneira peculiar, pressupõem que se tenha consciência de se estar sob normas
comuns. ―Quando‖ e ―como‖ esta consciência se desenvolve é uma questão
empírica em aberto, do mesmo modo como ―quando‖ e ―como‖ as crianças
começam a contar. Ninguém iria, a partir daí, construir uma teoria dos números,
ainda que evidentemente tenhamos que possuir pressupostos biológicos para
aprender a contar. O mesmo vale para o falar em geral. Esta explicação biológica
indeterminada é inofensiva, porque não pressupõe nenhum conteúdo, mas se atém
apenas ao fato trivial de que um ser vivo, quando, em um determinado período do
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 30
seu desenvolvimento, aprende coisas como falar, contar ou as normas, deve possuir
capacidade para tal.
T: Sim, mas ainda não está claro para mim, como o princípio instrumental
torna compreensível a própria consciência moral. Ou, formulado de outro modo:
como de um maximizador radical de utilidade, que, de fato, pode querer que os
outros devam ser morais, pode surgir um maximizador de utilidade limitado, quer
dizer, uma pessoa moral?
I: Parece-me que a expressão ―uma pessoa moral‖ é demasiado imprecisa.
Você mesmo, em seu último livro, deu grande importância à distinção entre, em
primeiro lugar, querer ser integrante da comunidade moral e, em segundo, querer
agir de modo moralmente motivado. Você mesmo distinguiu justificação
(Begründung) e motivação (Motivation). Eu entendo, tal como expus ontem, a
própria justificação do sistema moral por recurso a motivos, de tal modo que o
sistema seja considerado como justificado, quando todos possuem igualmente um
motivo para entrar no mesmo. A justificação do sistema — e, portanto, das normas
— decorre desta consideração a todos, e desta se deve distinguir apenas a
motivação do indivíduo. Aqui o princípio instrumentalista nos leva a realizar ainda
uma outra diferenciação relativamente à sua questão, qual seja, a de se alguém está
motivado para entrar no sistema, isto é, para se compreender como integrante desta
comunidade moral. Neste ponto, surge a possibilidade de alguém se compreender
como ―franco-atirador‖ (Trittbrettfahrer) — ou, como dizem os anglo-saxões
como “free-rider”. O franco-atirador participa, de um certo modo, do sistema
moral, na medida em que quer obter exclusivamente as suas vantagens, e, de certo
modo, não o faz, na medida em que permanece sendo secretamente um radical
maximizador da utilidade. Ele só pode fazer isso, na medida em que finge
indignar-se ou ter rancor. Posto que o sentimento de culpa — portanto, a
consciência moral — e a indignação estão relacionados, o franco-atirador só pode
evitar o sentimento de culpa, na medida em que evita também a indignação, mas o
que ele não pode evitar, sem se excluir da comunidade moral (e, com isto, pôr a
perder as suas vantagens), é dizer que ele está indignado, que tem rancor,
sentimento de culpa, que aprova e desaprova. Agora posso esclarecer melhor o que
considero propriamente o erro do seu livro: você viu o maximizador radical da
utilidade como contratualista, ao invés de vê-lo como franco-atirador. Mas,
independentemente de ser o contratualismo um sistema e não uma atitude, é mais
racional ser franco-atirador do que contratualista. E isto corresponde também à
realidade. Aqueles que não possuem a consciência moral encontram-se
normalmente dentro do sistema moral, e não fora dele. Isto tem agora o seu custo,
isto é, o custo de ter que mentir. E isto significa, então, que, embora alguém seja
livre para ter ou não uma consciência moral, só não pode é tê-la apenas a fingindo
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que a tem, isto é: a questão não é como se constrói uma consciência moral, mas
como ela é destruída ou negada.
T: Mas, então, seria pensável uma comunidade moral que
consistisse apenas de franco-atiradores.
I: Bem, não é muito fácil distinguir entre uma comunidade de pessoas que
têm estes sentimentos e uma na qual todos os simulam. Mas isto não corresponde à
realidade? O ponto principal é distinguir esta questão da motivação da questão da
justificação. O que nós justificamos é o sistema moral, e este funciona, de fato,
apenas como uma comunidade moral na medida em que todos, ou a maioria,
exigem uns dos outros reciprocamente ser de tal modo, e eles podem exigir isto
apenas na medida em que exprimem sentimentos morais, e isto eles podem fazer
sem possuí-los.
T: Eu compreendo, e aí se distingue claramente para mim entre a questão
da justificação e a da motivação. A moral contém uma limitação da busca
incondicionada dos próprios interesses e, portanto, uma limitação da tendência
instrumentalista. Nós alcançamos esta limitação na medida em que a exigimos
uns dos outros reciprocamente e exigimos também uma atitude correspondente (a
consciência moral); cada um está instrumentalmente motivado para esta
exigência recíproca, e, com isso, é justificado o sistema que coloca esta exigência
para todos nós; mas o quanto o indivíduo segue esta exigência é uma segunda
questão. Segui-la significa dar às normas morais um peso, colocá-las acima do
próprio interesse. Para se estar motivado para isto devem ser fornecidas razões
(Gründe) — quer dizer, razões práticas —, que estejam justificadas no próprio
sistema, ou, melhor dito, na própria situação na qual o indivíduo se encontra
graças a este sistema de exigências recíprocas, e por qualquer motivo
independente dele, como sentido moral, altruísmo inato e coisas semelhantes.
I: Sim, eu penso assim. Já se mostrou um fundamento prático semelhante.
É cansativo ter que mentir todo o tempo. Mas eu sugeriria que nós adiássemos toda
esta temática da motivação moral para uma outra conversa, pois tocamos, com isto,
em um outro ponto delicado do seu livro. Parecia-lhe claro que você tratou esta
questão apenas de modo pontual e insatisfatório e, talvez, também de modo
contraditório. No momento, trata-se apenas de ver que, pelo fato de a moral
consistir em um sistema de exigências recíprocas, é possível uma justificação
instrumentalista, posto tratar-se de uma justificação que não é, como no
contratualismo, uma justificação da perspectiva do respectivo indivíduo (uma ação
―estratégica‖, como diz Habermas), mas de uma perspectiva comum. Para o
contratualismo, trata-se de justificar para cada indivíduo a própria práxis, sob a
pressuposição de que os outros ajam do mesmo modo, e isto você considerou, com
razão, insuficiente para uma moral. Mas, com isto, você não levou em conta a
possibilidade de que todos os indivíduos, instrumentalmente, - a partir de seu
Ernest Tugendhat
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próprio interesse - sejam motivados a entrar numa práxis comum. Dizer que ela é
justificada tem o sentido, de acordo com o conceito de justificação introduzido
ontem, de que ela é justificada para todos igualmente.
T: Em que exatamente deve consistir a distinção?
I: Para o contratualismo, não faz sentido falar de uma justificação tout
court das normas; em um sistema contratualista, cada um se pergunta se um
determinado modo de agir é justificado para ele, isto é, se é bom para ele,
pressupondo que os outros também ajam assim. Desta perspectiva, supõe-se que
cada um também se pergunte qual sistema, frente aos demais, é o melhor para ele,
e é, então, racional para ele. Caso tenha possibilidade de negociar com os outros,
escolher o melhor para si. Mas esta perspectiva não está mais disponível para os
instrumentalistas que escolheram a moral, porque se trata agora de entrar numa
práxis comum e, tão logo indagamos pelos fundamentos desta práxis, trata-se, na
verdade, não apenas dela ser justificada para mim — de ter um motivo para entrar
na mesma, de ser boa para mim — mas, ao mesmo tempo, de ser justificada
igualmente para todos. O discurso acerca de uma prúxis comum se relaciona a
exigências comuns recíprocas, que — enquanto exigências — se constituem sobre
sentimentos morais compartilhados. Pertence ao sentido de indignação, como já foi
mostrado, que ele seja compartilhado. Eu não posso, em geral, me indignar frente a
algo que não considere como uma violação das normas que estão igualmente
justificadas para todos os demais. O suposto ―estar justificado para todos os
demais‖ (Begründetsein-für-alle-anderen) — e isto é o que eu entendo como o ―ser
justificado‖ tout court — pertence ao sentido da indignação; o mesmo vale para o
elogio e a censura. Isto significa que, da perspectiva de cada integrante da
comunidade moral, a justificação unilateral é a base para seus sentimentos morais,
e a questão de qual melhoria unilateral do sistema normativo seria possível para o
indivíduo não pode mais, de modo algum, ser levantada.
T: Se tanta coisa está implicada na moral justificada de modo
instrumentalista, devemos, então, perguntar se o indivíduo ainda está motivado
por seus próprios interesses a entrar neste sistema ou se ele não preferirá a
opção contratualista.
I: Correto. Neste ponto a questão instrumentalista deve ser colocada na
perspectiva do indivíduo. Antes de entrar na comunidade — este ―antes‖ deve ser
naturalmente entendido de modo conceitual e não temporal —, deve estar certo de
que isto é o melhor para ele, mas, se isto é respondido afirmativamente, deverá se
ater às regras do sistema. Parece-me ser, então, bastante clara a resposta positiva a
esta questão: nós queremos, em geral, uns dos outros reciprocamente, que nós nos
compreendamos moralmente, e este passo é facilitado para o indivíduo, na medida
em que lhe resta a opção de se compreender como franco-atirador. O modo como,
então, se argumenta dentro do sistema, portanto, moralmente, é independente do
Diálogo em Letícia
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quanto os indivíduos se compreendam como franco- atiradores ou não, assim como
também é independente de quais observações e reflexões comparativas o indivíduo
possa ter frente ao sistema.
T: Vejo que você pode responder a um ponto que eu pensava ser uma
armadilha, e este ponto é a consideração a ―todos igualmente‖. Este é o lugar que
se poderia acreditar dificilmente integrável a um instrumentalismo. Parecia estar ao
alcance das mãos a objeção de que cada um, na verdade, pode ter razões
instrumentais para se considerar como integrante de uma comunidade moral. Mas
como ele chega a julgar moralmente as ações e as pessoas, isto é, não apenas a
partir de seus próprios interesses, mas de um ponto de vista imparcial, para o qual o
critério para julgar uma ação ou uma pessoa não está em ser bom ou ruim para ele,
mas precisamente em ser bom ou ruim? Para isto, deve-se passar a um segundo
nível de julgamento, Desde as Retratações, penso que este segundo nível não pode
ser assimilado sem uma propriedade especial. Poder-se-ia perguntar: ainda que seja
do interesse da pessoa pré-moral integrar uma comunidade moral, como chegar a
ser uma pessoa moral e não julgar mais as coisas a partir da sua perspectiva?
I: Como eu já disse, parece-me mais fácil deixar de lado a expressão
ambígua ―uma pessoa moral‖ e dizer simplesmente: integrante da comunidade
moral. Isto deve incluir também a possibilidade de ser um pretenso integrante da
comunidade moral. Se alguém é, em sentido estrito, uma pessoa moral, isto é, se,
em primeiro lugar, desenvolveu os sentimentos morais e, em segundo, também está
motivado para agir moralmente, permanece, agora, totalmente aberto. O decisivo é
que, tão logo seja alcançado o nível que você chamou há pouco de segundo, seja
com isso alcançado um nível de julgamento que, por um lado, é do interesse de
cada um alcançar (ou fazer como se o tivesse alcançado) e, por outro, tem seus
próprios critérios de julgamento: ―bom‖ e não mais ―bom para mim‖. Por isso falei
anteriormente das ―regras do sistema‖: estas são independentes, porque o critério
para algo ser bom consiste em corresponder a uma norma que seja igualmente
justificada para todos, O indivíduo não pode, pelo menos por princípio, distorcer
este critério para seus próprios interesses, porque, com isto, se perderia o núcleo do
juízo moral e dos sentimentos morais, a saber: ser um juízo comum, isto é,
sentimentos compartilhados.
T: Sim. Este segundo nível contém, pelo menos, um predicado que
pertence a este nível, a saber: ―justo‖ (gerecht). Esta palavra não tem a mesma
ambigüidade da palavra ―bom‖ (―bom‖ e ―bom para mim‖). É absurdo dizer ―justo
para ―X‖, pois, com esta palavra, designamos uma norma ou instituição ou
distribuição de bens que se aplica, por igual, a todos os concernidos. Com esta
palavra, não julgamos o efeito de um sistema de normas para um indivíduo, mas
este próprio sistema quanto ao efeito que, por seu sentido, ele tem sobre todos de
igual modo.
Ernest Tugendhat
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I: Eu também acho. Por isto, surge, em correlação com o julgamento de
algo como justo ou injusto, um novo emprego da palavra ―justificação‖. Dizer que
o sistema é justificado significa dizer que ele está justificado, motivado, igualmente
para todos. Pode- se dizer, do mesmo modo, que ele é igualmente justificado para
todos. Mas, com isto, constitui-se precisamente aquele segundo nível de
julgamento. Pode-se introduzir, por exemplo, razões a favor ou contra o fato de
uma determinada distribuição ser justa. Estas não são mais razões (Gründe) no
sentido de motivos (Motiven), mas são razões para asserções: aqui é justificado se
o predicado justo‖ pertence ou não a uma distribuição, uma norma etc., e este é
precisamente o predicado ao qual se chega quando se constitui o segundo nível. —
Para retornar à questão do instrumentalismo: quando algo é julgado como justo ou
injusto, não se argumenta mais instrumentalmente —, a não ser que se queira. Seria
enganoso designar como instrumental também um julgamento para o qual é
decisiva a igual consideração dos interesses de todos. Não vejo nenhuma
dificuldade no fato de que possa ser do interesse de cada indivíduo se associar a um
sistema que possua um ponto de vista de julgamento que não seja mais o do
indivíduo. A dificuldade que você viu aí vem do fato de que é muito natural pensar
que o indivíduo, quando se associa a este sistema, deva transformar sua motivação,
deva deixar de ser instrumentalmente orientado para si mesmo. Mas este não é
propriamente o caso. Ele aprende simplesmente uma nova forma de julgamento, e,
com isso, esta forma de julgamento é, de certo, colocada como determinante, e,
portanto, como motivadora da ação. Este segundo nível não pode ser adotado sem
que se diga que queremos que todos ajam assim para dizer e exigir isto, não é
preciso transformar a nossa própria motivação. Deveríamos discutir, em uma outra
conversa, o que pode motivar a transformar a própria motivação.
T: Certo. Eu também separei tais questões no meu livro. Mas o que a sua
visão traz de novo é que, até mesmo a motivação para se conceber como integrante
real — e não apenas aparente — da comunidade moral, é conceitualmente um
passo adiante. Eu digo ―conceitualmente‖, porque é naturalmente irrelevante se a
pessoa se compreende, antes, biológica e psicologicamente como franco-atirador e,
depois, como integrante efetivo da comunidade, ou o contrário. Neste meio tempo,
acumularam-se na minha cabeça outras questões em aberto.
I: Por favor.
T: Bem, uma é a da motivação, que acabamos de mencionar. Um segundo
ponto é que você declarou que também se poderia introduzir a moral sem o
conceito de bem (ver supra). Como você concebe isto? O terceiro ponto vincula-se
a sua afirmação de que um indivíduo não pode distorcer a moral em favor próprio,
pois, sem a consideração de todos igualmente, a moral cai por terra e, com ela, os
conceitos a ela imediatamente associados como o elogio e a censura e os
sentimentos morais. Por mais certo que isto possa ser, no que diz respeito aos
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 35
indivíduos, eu me pergunto se os grupos não podem distorcer a moral a seu favor,
O que impediria um determinado grupo de se definir como ―todos‖ e privar os
restantes, quer dizer, todos os que não correspondem a sua definição, de seus
direitos? Este problema coloca-se tão logo a palavra ―todos‖ se introduz de modo
tão indeterminado como você fez, não mais falando de todos os seres humanos.
I: Considero esta terceira questão fundamental. Eu introduzi
intencionalmente a palavra ―todos‖ de forma tão indeterminada. Em primeiro
lugar, não vejo em que medida — tão logo se passe por cima da moral moderna —
, a palavra ―todos‖ possa ser entendida como ―todos os seres humanos‖. Em
segundo, creio que nos encontramos aqui realmente diante de uma das
controvérsias morais decisivas do nosso tempo. Esta controvérsia seria
incompreensível se uma moral particularista já não estivesse em contradição com o
conceito de uma moral não mais tradicionalista. Para podermos passar a esta
questão, sugiro que, primeiramente, esclareçamos o conceito de justiça. Como foi
indicado agora mesmo, a palavra ―justo‖ parece ser aquela com a qual julgamos no
―segundo nível‖, como você o nomeou, quer dizer, no nível do próprio sistema
normativo. A justiça diz respeito à questão do sistema estar equilibrado entre os
indivíduos. A questão não é mais, portanto, se o sistema (ou também as normas
isoladas) tem valor para os indivíduos isolados, mas sim se o modo como um
indivíduo (ou vários) é considerado está em correlação com o modo como os
outros ou todos são considerados, isto é, se é igualmente justificado frente a todos.
Aqui se suprime o julgamento especificamente instrumental, a saber, a partir da
perspectiva de um indivíduo. Agora a questão é: o que significa o ―para todos
igualmente‖? Trata-se, por assim dizer, da lógica peculiar ao sistema normativo,
uma lógica que naturalmente não é para ser pensada como pairando suspensa no ar,
mas precisamente como o ―mecanismo‖ ao qual os indivíduos isolados se
entregaram por razões instrumentais.
T: É de se supor que só possamos compreender a questão sobre quem
pertence ao todo da comunidade moral — quem pode, quem deve pertencer —,
quando tivermos esclarecido aquela virtude que consiste na apropriada
consideração recíproca de todos, quer dizer, a justiça. Até que ponto uma
comunidade pode delimitar a extensão de quem são ―todos‖, poderia encontrar seu
limite nisto que você chamou a lógica do sistema.
I: Eu penso assim. No que diz respeito ao seu primeiro ponto, o da
motivação, sugiro analisá-lo somente mais tarde, não, porém, porque ele não seja
fundamental. Poderíamos tratar agora mesmo do seu terceiro ponto, referente ao
conceito de bem, como um apêndice, pois não creio que ele vá se estender.
T: De acordo.
I: Eu já destaquei acima a relevância que, nas Lições, você atribuiu ao
termo ―bom‖. Se não ficar suficientemente claro qual seja o substantivo
Ernest Tugendhat
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correspondente, talvez se acrescente ao conceito de moral uma indeterminação
desnecessária. Faria sentido naturalmente querer evitar que se fale de ―moralmente
bom‖, mas, com isto, cairia por terra a sua idéia de que se pode definir a ―moral‖
por recurso à palavra ―bom‖. Minha segunda objeção é que, no esclarecimento do
conceito de moral, não nos deveríamos apoiar em uma palavra que, porventura,
seja empregada deste modo em algumas línguas e culturas, mas em outras não, ou
apenas marginalmente. Até mesmo em uma língua tão próxima a nossa, como o
inglês, empregam-se para ―moral‖ e ―imoral‖, em primeiro lugar, as palavras
―certo‖ (right) e ―errado‖ (wrong).
T: Isto é correto no que diz respeito, ao menos, às ações e às normas
correspondentes, mas não, em contraposição, ao discurso fundamental acerca de
uma boa pessoa ou caráter. A propósito, você apontou, com razão, para o fato de
que o que eu disse nas Lições estava errado: que não se poderia provar que o
discurso atributivo acerca de uma boa pessoa fosse mais fundamental do que o
predicativo acerca de boas ações. Mas corrigi este erro, mais tarde, na interpretação
de Kant (p. 104 ss., na edição original). A prova consiste em que uma ação não é o
que primeiramente julgamos como moral, quando não se toma a intenção pela qual
ela ocorre. Por isto, já dizia Aristóteles, uma ação é boa/ruim, não quando ela
corresponde a tais e tais normas, mas quando ela é realizada por uma pessoa que
reúna as disposições correspondentes (Ética a Nicômaco, 1 105a, 28-33), e o
mesmo pensa Kant, ao dizer que bom é, em primeiro lugar, a boa vontade, isto é, o
bom caráter (Werke IV, p. 393).
I: Sim, com certeza. Este foi um pequeno erro, irrelevante para a sua
posição.
T: E você pensa que estamos agora diante de um erro dos mais graves?
I: É possível que não. Mas o que você disse agora mesmo lança uma luz
surpreendente sobre o uso da língua inglesa. Os ingleses empregam uma palavra
para uma ação ruim — errada‖ (wrong) — e outra, para o caráter ruim (“bad”).
Também em alemão se pode dizer que as ações são corretas ou incorretas, mas
quase nunca que o caráter o seja e, com certeza, nunca se pode dizer que o sejam
os seres humanos ou a sua vontade, A orientação pelo par de palavras ―correto‖ /
―incorreto‖ contém, portanto, um prejuízo enganoso por considerar a ação como o
portador primitivo do julgamento moral. Isto serve para o direito, mas não para a
moral. Mas isso não tem nada a ver com a sua perspectiva.
T: De qualquer modo, é interessante. Sempre me perguntei o que, em
alemão, se pensava quando se falava de correção, especialmente quando a
palavra, como em Habermas, não se refere apenas a ações, mas também a
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 37
normas3. Não é problemático que uma ação seja correta. Parece, em geral, querer
dizer — e não apenas em sentido moral, mas, por exemplo, também em jogos —,
que ela corresponde às normas a ela competentes. O que, em contrapartida, pode
significar dizer da norma que ela é correta/incorreta? Creio que isto só pode
significar que se é de opinião que a norma é justificada. Isto torna compreensível
por que não faria sentido falar em regras de xadrez corretas ou incorretas, mas
sim de normas morais corretas e incorretas. Pode-se, com base nisto, definir uma
ação moral correta como aquela que corresponde a uma norma moral justificada
(= correta). Mas se isto está certo, devemos, então, renunciar a este segundo
emprego da palavra ―correto‖ — a saber, ao uso relativo às próprias normas —
posto que ―correto‖, neste uso da linguagem, seria definido como ―justificado‖.
I: E não, talvez, o contrário; pois, então, o que deveria querer dizer
―correto‖? ―Correto‖ não é, portanto, na terminologia das Três Preleções, um
predicado de justificação. Isto deve significar que mostrar que uma norma é
justificada, não pode equivaler a mostrar que ela é correta (pois se passa o
contrário, como você acabou de dizer). Por outro lado, ―bom‖, nas suas Lições, não
tinha apenas a função de um predicado de justificação, mas a de ser o único. Minha
tese é que isto pode ter sentido, sem dúvida, mas de que não é obrigatório. Tem
sentido quando pressupomos que justificar uma moral significa justificar o modo
como queremos (―aprovamos‖) ser, reciprocamente, uns com os outros. Se,
contudo, o sentido essencial de justificação de uma moral consiste em que se possa
fundamentá-la frente a todos em uma comunidade moral, não é absolutamente
necessário que a justificação resulte assim. Apenas na moral tradicionalista parece
ser necessário que a justificação decorra de um predicado de justificação. O
predicado de justificação ―sagrado‖, por exemplo, está relacionado à propriedade
superior correspondente, com a qual se identificam os integrantes da comunidade
moral. Contudo, também se pode empregar, em outros casos, a palavra ―bom‖,
posto que tem sentido dizer que, em uma comunidade tradicionalista, todos querem
(aprovam) que todos se comportem de acordo com as normas tidas como sagradas.
Mas isto é, então, secundário. Como é na moral moderna? As normas são
justificadas de modo a se mostrar que é do interesse de todos igualmente que elas
sejam exigidas de todos. Aí não aparece a palavra ―bom‖. Eu posso remeter, em
comparação, a idéias correspondentes em Bernard Gert (The Moral Rales,
conclusão do cap. 5). Ele emprega a expressão “public advocacy”, aprovação
3 Ver também Gertrud Nummer-Winkler, ―Zur moralischen Sozialisation‖, Kölner
Zeitschr. F. Soziologie 44 (1992) 252-257. Nummer-Winkler refere a palvra ―correto‖
não a normas, mas a ações; ela a compreende, com isso, não em relação a uma norma,
mas em sentido absoluto: o agente moral faz ―o que é correto porque é correto‖ (p.265,
no original).
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 38
pública. Uma regra moral é considerada como justificada quando se pensa que se
pode, em geral, aprovar que todos a exijam de todos (e a exigência pode ser
entendida no sentido do sentimento moral; Gert fala mais, em geral, de sanções).
Quem aprova uma regra moral, neste sentido, pode contar com o assentimento
geral, quando pode pressupor que sua observação é igualmente do interesse de
todos. Mais uma vez, a palavra ―bom‖ não é empregada. Se a palavra ―bom‖ é
enfatizada. parece-me apenas que tem o sentido de que se supõe que todos
concordaram com uma regra proposta, porque ela corresponde a como cada um
deseja reciprocamente que o outro seja. Mas indicar isto como razão (―porquê‖),
não contribui para nada e é, além disto, demasiado fraco. Dizer que nós o
desejamos ou escolhemos ou recomendamos (e assim é empregada a palavra
―bom‖. na maior parte das vezes) é menos que dizer que o exigimos. Além disto, já
chamei atenção anteriormente para o mal-estar com o qual você fez a passagem do
conceito de bem ao de normas morais, nas Lições: ―e eu apenas gostaria de afirmar
que as normas morais de uma sociedade são precisamente aquelas que (...) definem
o que significa ser um bom ser cooperativo‖ (p. 58, na edição original). A
necessidade de apresentar um tal enunciado como um enunciado sintético
desaparece agora, de certo modo. Não precisamos mostrar que o seguir
determinadas normas constitui o que significa ser uma boa pessoa etc., mas que
aquelas normas nas quais consentimos — isto é, das quais exigimos consentimento
recíproco, são igualmente do interesse de todos, Estas são as normas morais (em
sentido não-tradicionalista). E isto oferece duas vantagens: em primeiro lugar, não
precisamos absolutamente responder à questão ―e quais são estas?‖, isto é, as
normas que preenchem o critério mencionado mostram-se as we go along
(―conforme prosseguimos‖). Em segundo lugar, podemos agora definir
inversamente: quando uma pessoa é de tal modo que corresponda a estas normas,
nós a chamamos moralmente boa. Digo propositadamente ―moralmente boa‖, pois
―bom‖ não é mais empregado como definição para ―moral‖. Ou melhor: ―bom‖
pode agora ser empregado deste modo, mas não precisa sê-lo. Se ele é empregado
assim, nada impede (tal como estava contido implicitamente na sua explicação)
que se possa falar de uma boa pessoa (por exemplo, admirável) também em um
outro sentido, extra-moral.
T: Entendo. Na medida em que você simplesmente não coloca o conceito
de bem de lado, mas define o conceito de moral independentemente dele e
constrói, em seguida, a partir desta definição de ―moral‖, o ―bom‖ especificamente
moral, podemos nos ater, como antes, à concepção de que tanto a aprovação e a
desaprovação (approve/disapprove), como também os sentimentos morais estão
relacionados ao ser bom e ruim.
I: Podemos, mas não precisamos. Posto que o ser bom ou ruim colocado
em questão remete, por sua vez, à moral, podemos deixar em aberto a questão se
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 39
não podemos falar do mesmo modo de aprovação, censura e dos sentimentos
morais, em outros idiomas, sem que estes procedimentos se refiram a ―bom/ruim‖.
Desaprovar o comportamento de alguém, por exemplo, significa que se quer dar a
entender que seu comportamento se choca contra aquelas normas de que todos
exigem o cumprimento reciprocamente, de maneira justificada. O mesmo vale para
o sentimento correspondente de indignação, Tanto no conteúdo proposicional deste
sentimento, quanto na explicação que você deu acima, a palavra ―bom‖ não
aparece, e quando esta aparece, seu sentido aponta, então, para a violação de
exigências reciprocamente justificadas. Supor. como você mencionou, que isto
deva significar que a ela subjaz uma exclusão tendencial, parece-me correto,
porque, caso contrário, não se compreenderia bem em que deve consistir o caráter
de exigência ou de sanção da censura e da indignação.
T: A aparentemente mansa e débil moral seria, então, um assunto
bastante sangrento, disse eu.
I: Não se pode, de forma alguma, falar em mansidão. Uma moral deixaria
de ser moral, se não nos déssemos conta de que se trata de exigências e, mais
precisamente, de exigências comuns, sustentadas pelo sentimento comum de
indignação. Uma exigência habitual ganha, nesta visão, um peso totalmente
diferente, na medida em que aqueles que a exprimem dizem que, por trás delas,
está a moral, isto é, o afeto negativo comum de toda a comunidade. Por causa
disto, os grandes crimes não são aqueles cometidos pelos solitários amorais, mas
aqueles que decorrem de uma compreensão comum da boa consciência moral e da
própria justiça, e esta é também a razão pela qual o sentimento de culpa pode se
converter num inferno.
T: Já foi muitas vezes dito que o bem (Gute) é o mal (Böse), como Hegel
faz, em sua Filosofia do Direito (§ 139). Que este problema não tenha
desempenhado quase nenhum papel na filosofia moral contemporânea relaciona-se
ao fato de que quase não se levou em conta a relevância constitutiva dos afetos
morais para a moral. A moral pertenceria, então, uma singular dialética: a moral,
em sentido próprio, seria apenas aquilo que se retirasse da moral superficial.
I: Kohlberg tinha algo assim em mente com a sua distinção entre a moral
convencional e a pós-convencional. Mas como devemos distinguir entre a moral
superficial e a moral em sentido próprio? Também aqui o conceito de justiça
poderia ser adequado.
T: Mas não exclusivamente. Aqueles que supõem ter a justiça do seu lado
são os que mais se enfurecem. Mas admito que aqui haveria uma outra razão para
nos determos no conceito de justiça. E, de uma vez por todas, deveríamos colocar,
como um próximo ponto na agenda, o tema que você mencionou há pouco: a
crueldade da moral.
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 40
I: Talvez, ainda que não sejamos, com certeza, as pessoas mais
indicadas para isto. Não somos nem psicólogos nem historiadores.
41 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO III
Depois da sesta, nós nos encontramos no ventilado saguão do hotel.
I: Queríamos abordar a questão da justiça. Mas esta, para nós, não pode
ser simplesmente um tema adicional, como, por exemplo, para Aristóteles, quando,
no livro VI da Ética a Nicômaco, trata desse tema. Para nós, aquilo a que se alude
com o termo ―justo‖ - como quer que ele seja entendido - é componente integrante
de uma moral: um indivíduo que possui razões (Gründe) instrumentais para entrar
na práxis de um moral entra numa práxis que está justificada do mesmo modo
(―igualmente‖) para outros. Esta circunstância implica que a práxis tem, por assim
dizer, tantas ―patas‖ quanto são os indivíduos. Cada indivíduo pode perguntar- se,
por sua parte, o que significa, para ele, esta práxis instrumental, mas, quando fala
sobre ela, ele não pode falar de algo que não tenha um valor igual para todos. O
que está sendo julgado, agora, por sua vez, é o modo como esta função é cumprida.
Não apenas existem regras que se referem a conteúdos que os indivíduos exigem
reciprocamente uns dos outros, mas também, fatalmente, de ―meta- regras‖, que se
referem ao ajuste das regras mencionadas antes, isto é, o equilíbrio das regras
quando são julgadas desde a perspectiva de cada indivíduo particular em
comparação com os demais. Se as regras se encontram em equilíbrio, são
designadas como justas, e, secundariamente, também é designada como justa a
conduta dos indivíduos, quando não infringem estas ―meta-regras‖. Uma coisa é
julgar o sistema - ou ainda uma norma particular - desde a perspectiva de uma
pessoa que está nele; outra, é o juízo desde a perspectiva do equilíbrio, isto é, desde
a perspectiva de todos igualmente. Mas a pessoa que entra no sistema por razões
instrumentais, quando quer se entender com outras sobre o bem do sistema, só
pode adotar a segunda perspectiva de juízo. É isto que o contratualismo ignora, e,
por esse motivo, não pode, em absoluto, alcançar o nível de uma moral. Por isso,
desde esta perspectiva de justiça, é válida a sua tese do contratualismo como uma
“quasi-moral”. No segundo nível do juízo, os indivíduos podem e devem por-se
de acordo — ou bem discutir — sobre o sistema ser ou não equilibrado. Daí resulta
um interesse pela verdade dos enunciados correspondentes (―se os deveres e os
direitos correlativos estão distribuídos assim, o sistema é bom, justo, equilibrado‖),
mesmo quando o indivíduo particular não se deixa determinar por este interesse,
em sua motivação particular. Deve-se esclarecer qual o critério de verdade de tais
enunciados, e em que sentido deve-se compreender, neste contexto, a expressão
―falar de razões contra ou a favor‖, Isto me leva ao segundo ponto, pelo qual
queríamos nos introduzir nesta problemática: você perguntou se há morais
particularistas na modernidade (e isto deve significar sempre: quando ela já não se
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 42
justifica de modo autoritário). Não se duvida de que elas, de fato, possam existir.
Mas pode-se mostrar que elas não correspondem aos critérios de justiça. E, então,
este resultado teria exatamente o peso que já tem, e nada mais. E pode-se imaginar
um grupo que admita isto, mas diga: o que nos importa?
T: Você fixou o itinerário de um modo com o qual estou, em princípio, de
acordo. Seu segundo ponto é tema para uma próxima conversa. Em primeiro lugar,
devemos tratar de esclarecimentos conceituais prévios. Concordo com você em
que não poderíamos, simplesmente, perguntar: ―o que é a justiça?‖, mas antes
devemos esclarecer a gênese da perspectiva de justiça, desde a estrutura de um
sistema moral. Mas o ponto que você enfatizou — ―equilíbrio‖, ―ajuste‖ — não
cobre tudo o que designa a palavra ―justiça‖. Permita-me algumas observações
históricas. Existe uma duradoura — e surpreendente — continuidade no uso da
palavra ―justo‖, dos gregos aos nossos dias, e os limites deste uso superam aquele
que você tinha em mente há pouco. É digno de nota que, em nossa tradição, o mais
antigo esclarecimento sobre o termo oriundo de Simônides, assimilado por Platão
no livro I da República (331), e que, mais tarde, foi transmitido segundo a fórmula
de Ulpiano, se ajusta perfeitamente a esse complexo uso: jus suum cuique tribuere;
em lugar de “ius”, Platão emprega “lo proshekon”, o ―adequado‖, ―merecido‖,
―apropriado‖. Há diversos contextos, na essência de uma moral, em que pode ser
dito que se atribui a alguém — ou a muitos — o adequado ou o merecido, e,
justamente, nesse contexto, empregamos as palavras ―justo‖ e ―injusto‖.
Considerarei, aqui, três. O primeiro é aquele ao qual você se referiu: pode-se
designá-lo como o contexto da justiça distributiva, mas proponho entender este
conceito em um sentido amplo: não se trata apenas da justa repartição de bens,
mas, antes, da justa repartição de direitos, isto é, do equilíbrio no cumprimento das
normas morais mesmas, em relação a distintos receptores, dos quais se pode dizer
que têm direitos correspondentes. Deixa-me esclarecer: ainda que os membros de
uma comunidade moral tenham, além disso, deveres face a outros seres que não
são integrantes da comunidade (deuses, animais), ou ainda, deveres face a si
mesmos, ou não, é um elemento constitutivo de toda comunidade moral que uma
grande parte dos deveres subsista entre seus integrantes. A estes deveres
correspondem direitos (exigências): se x tem um dever face a y, então y tem um
direito correspondente face a x; assim talvez possamos dizer de forma simplificada,
sem ter que considerar as ulteriores conotações do discurso acerca de direitos que
exercem esta reciprocidade em relação aos deveres, De acordo com a classe (casta
etc.) a que pertencem x e y, eles possuem distintos direitos e deveres recíprocos. O
igualitarismo, por conseguinte, no qual todos têm estes direitos e deveres
recíprocos, é um caso-limite. O que, no entanto, vale, em geral, é que, em toda
comunidade moral, há uma determinada repartição de deveres e direitos; eu a
denomino uma determinada “configuração”, que prescreve quem tem face a quem
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 43
quais direitos e quais deveres, e quem infringe esta configuração age de modo
injusto, independentemente do fato de infringir uma norma concreta. A vantagem
da fórmula de Ulpiano é que ela contempla este fenômeno sem decidir previamente
entre o igualitarismo ou o inigualitarismo. Neste sentido Vlastos pode dizer,
admitindo esta fórmula: é justo quem age de tal maneira que leve em consideração
os direitos de todos os concernidos; com isso, é pressuposto que os direitos
(exigências) estão assegurados, de algum modo, de modo igualitário ou não
(―Justice and Equality‖, in J. Waldron, Theories of Right, Oxford, 1984, p. 4lss.,
aqui p. 60s.). E esta a ―justiça distributiva‖ de Aristóteles? Não sei com certeza.
Por justiça distributiva, entendemos, usualmente, a repartição de bens e de
encargos e a distribuição de direitos ―especiais‖, mas o que eu acabo de descrever
concerne à configuração dos deveres e direitos já existentes. Em seu tratado sobre a
justiça, Aristóteles menciona, em primeiro lugar, um conceito de justiça segundo o
qual ―justo‖ é simplesmente que é moral (―virtuoso‖), mas, especialmente, em
relação aos outros (1129 b 26 ss.). Isto não corresponde, exatamente, ao que eu
disse aqui, porque Aristóteles não tem em mente nenhuma possível gradação dos
comportamentos normativos recíprocos, em geral. Independentemente de
Aristóteles, é, portanto, sem dúvida importante, ainda antes de ocupar-se da justiça
distributiva, referida aos bens e direitos especiais, voltar os olhos para uma justiça
que, por certo, também é distributiva, mas que diz respeito à configuração dos
deveres e direitos já existentes; ela não se origina, unicamente, quando há algo para
repartir. Isto permite destacar um importante conceito de igualitarismo, que diz
respeito a este primeiro nível e que é, inclusive, inteiramente independente do
igualitarismo, tal como se entende esta palavra na maior parte das vezes, a saber,
como a distribuição material dos bens. Bem, se isto está mais ou menos claro, é
preciso distinguir a justiça distributiva, em sentido corrente. Se não estiver claro,
quero indicar que pertence a toda moral, haja ou não algo a repartir. poder
considerar as normas e os direitos em si mesmos como gradativos ou não, e, por
outra parte, que é próprio, a toda moral, conter regras que indicam como repartir o
que é comum, Em ambos os casos, observa-se como tais significados de justiça,
como quer que sejam entendidos, se seguem do sentido de moral. A fórmula de
Ulpiano adapta-se a ambos os casos. Em ambos os casos, podemos também falar
especificamente de distribuição, de tal modo que podemos falar, em contraste com
a classificação de Aristóteles, de justiça distributiva a e b. É preciso, agora,
diferenciar ambas as formas de justiça distributiva — as que, apesar da distinção
que espero ter esclarecido, quero sintetizar num primeiro conceito de justiça — de
uma noção adicional de justiça, que concerne à decisão entre uma variedade de
exigências morais. Aqui se trata — pode-se pensar em um juiz durante uma disputa
da justiça civil, mas também duas pessoas podem discutir, entre si, neste sentido,
sobre o julgamento moral de uma situação —, tomar uma decisão ―adequada‖, em
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 44
que sejam respeitadas, igualmente, as distintas exigências. O terceiro âmbito está
necessariamente presente em toda moral. Ele se refere às reações dos membros da
comunidade frente a ações alheias elogiáveis ou censuráveis, a que pertence
também a justiça nas punições. Trata-se, mais uma vez, de que as reações sejam ou
não adequadas, apropriadas ou não. Também aqui falamos de ―justo‖ ou de
―injusto‖. Neste terceiro caso, não se pode mais falar, como fazem Ulpiano e
Vlastos, de ―direitos‖: não se pode dizer que quem agiu mal tem o direito ou a
pretensão de ser censurado, mas, em troca, que o merece (e que, se o merece, a
censura e castigo são justos). Além do mais, este terceiro caso, distingue-se dos
dois primeiros, porque a pessoa se comporta de maneira justa ou injusta não
relativamente a uma variedade de coisas, mas reage de maneira moralmente
adequada ou inadequada frente a algo que tem um valor ou um desvalor moral.
Não obstante, há uma semelhança de família tão extensa, que nos permite
empregar, igualmente, a fórmula de Ulpiano encontrada em Platão.
I: É, seguramente, útil ter em vista todo este panorama. A genialidade de
Aristóteles revela-se no fato de que ele, embora não mencione a definição geral
de Simônides, a tenha em conta nestes quatro âmbitos. Ele observa, ainda, uma
estreita relação entre o que você chamou de segundo e terceiro âmbitos, porque
os reúne sob o título de justiça corretiva. Concordo com você que,
conceitualmente, o primeiro âmbito, em si, subdivido, e o segundo, se
aproximam. Observa-se isto no fato de que, em ambos os casos, designamos o
agir de modo justo como imparcial. Neste termo não está ainda implícito que se
trata igualitariamente os concernidos, mas apenas no sentido de que não se atém
exclusivamente às regras dadas previamente, aos padrões da justiça,
―desconsiderando-se a pessoa‖. As preferências pessoais próprias são deixadas
de lado: por isso, as figuras que representam a justiça, nas catedrais medievais,
têm uma venda sobre os olhos. Este conceito convém igualmente ao primeiro e
ao segundo âmbitos. pois, em ambos os casos, trata-se de respeitar,
convenientemente, os direitos ou as exigências de todos os concernidos.
Possivelmente, pensou-se também no terceiro âmbito nas representações da
justiça — a favor disso depõe a balança que a figura tem na mão —, mas a
expressão ―imparcialidade‖ se adequa menos a este âmbito, embora, sem dúvida,
se refira também ao juiz criminal, por não se tratar aqui de uma pluralidade.
T: Em todo caso, parece haver regras dadas previamente — ―padrões de
justiça‖, como você disse — e são estas regras que determinam a conveniência da
atribuição, a imparcialidade. A expressão contrária à imparcialidade é
―arbitrariedade‖, num sentido determinado desta palavra: a pessoa simplesmente
age como quer, em lugar de ater-se à medida.
I: E esta medida é o que você designa, no primeiro âmbito, como modelo
ou também como configuração dos direitos e deveres. Embora seja, certamente,
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 45
correto ter em vista os outros âmbitos, devemos nos delimitar à justiça
distributiva, de que parti como de algo compreensível por si, sem atentar para o
fato de que se necessita de outras subdivisões deste primeiro conceito de justiça,
que você indicou, há pouco. O que quis dizer com ―ajuste‖ e ―equilíbrio‖, você
designa, de modo mais claro, como configuração dos direitos e deveres, para a
justiça distributiva (a). Esta primeira forma de justiça distributiva tem especial
significado para nossos propósitos: a distinção entre a moral universal e a
particular. Na discussão corrente sobre a justiça distributiva, o problema da
repartição de bens está em primeiro plano, a primeira questão é pouco
tematizada, porque, hoje, habitualmente, ela é respondida num sentido
igualitário. O fundamental, na fórmula de Simônides, é que não apenas abrange
os três ou quatro domínios, mas que ela pode ser compreendida em dois níveis, O
primeiro é aquele em que se pressupõe que a medida — o que também
denominamos padrões de justiça, ou o que você chama de configuração — está
definida, está dada, de antemão. E o segundo nível corresponde àquele onde se
pergunta sobre a justiça destes padrões. Pode-se, em principio, imaginar que falta
o primeiro nível e que a questão que se encerra na sentença de Simônides se
coloca, imediatamente, no segundo. Inversamente, parece-me inevitável que
quem fala desde o primeiro nível já tem em vista o segundo. Se alguém quiser
negá-lo – e isto, de fato, acontece com freqüência -, deve definir o sentido de
―justo‖ como ―assim como são prescritos os padrões de justiça‖, e, quando se
toma a definição geral de justiça, o caminho do segundo nível já está apartado. A
questão ―e estes padrões de justiça são, por sua parte, justos?‖ já não tem mais
sentido, quando ―justo‖ é definido desse modo. Mas isto significaria que os
próprios padrões de justiça tem apenas um sentido convencional, o que contradiz
o modo como falamos e pensamos. Não podemos dizer, então, ―esta ação é
justa‖, quando o próprio falante afirma que o critério, enquanto tal, se baseia
numa convenção. Assim, a palavra ―justo‖ deve ter um sentido que se situa
especificamente no segundo nível. É isto que os homens têm em vista, quando
discutem quais padrões de justiça são justos.
T : Você disse ―assim deve ser‖, mas todos os representantes da visão
particularista são de opinião de que, justamente, não existe este segundo nível. É
perfeitamente concebível falar de ―justo‖ de um modo que pressuponha uma base
que não existe. Toda a discussão sobre a justiça desde a Antiguidade sofre disso.
Não quero dizer que ninguém levou em consideração o segundo nível, mas que
nunca se disse, em geral, o que significa legitimar os enunciados neste segundo
nível. O que encontramos, de fato, é, por um lado, o igualitarismo: este é uma
resposta ao segundo nível, mas os adeptos desta opinião não diziam como eles a
justificavam, seus adversários sempre podiam, facilmente, invocar — ao menos
para a justiça distributiva (b) — que a repartição igualitária freqüentemente
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 46
aparece, intuitivamente, como injusta. A solução, desde Platão e Aristóteles, é
apenas: a repartição por igual àqueles que não estão igualmente habilitados é
injusta, e até em tempos recentes — ver o livro de David Milier, Social Justice,
(Oxford, 1976) — objeta-se aos adeptos do igualitarismo, como Rawls, as
conhecidas proposições ―segundo‖ (gern4/3): é justa uma repartição segundo as
necessidades, segundo o mérito, segundo direitos preexistentes, ou ainda, embora
esta versão platonica não seja mais encontrada em Nietzsche: segundo a virtude ou
a honra. No entanto, exatamente esta versão, - e apenas ela – é conveniente
também no caso em que não se trata da repartição de bens. A disputa foi
exclusivamente intuitiva, a tal ponto que os atuais igualitaristas apresentam, com
frequencia, sua posição como não-justificavel. Assim, por exemplo, Rawls, mas
também Vlastos. O caso de Vlastos é particularmente significativo, porque,
primeiro, ele se ocupa de conceitos e, em segundo lugar, refere-se à justiça
distributiva (a). Na primeira seção, ele começa coma tese de que para os gregos a
justiça simplesmente significava igualdade, uma tese altamente implausivel,
porque, se assim o fosse, não poderia haver disputas entre os igualitaristas e os não-
igualitaristas. É interessante que, como destaca Vlastos, platão e Aristóteles
apresentem seu não-igualitarismo de um modo que se serve da palavra
―igualdade‖: a repartição igualitária não é a verdadeira igualdade.
Nesse momento, ele me interrompeu.
I: Em lugar de apenas constatar que, quando se reparte igualmente
entre os desiguais, os que se consideram prejudicados por uma repartição por
igual, queixam-se de serem tratados injustamente, Vlastos deveria perguntar o
que significa esta igualdade não-igualitária.
T: Correto. Na primeira seção Aristoteles é apresentado como um
equilibrista, que procura resgatar a palavra ―igualdade‖ justamente para a
desigualdade, na tese da proporcionalidade. Avancemos. Na segunda seção, o
proprio Vlastos defende uma tese da igualdade no nivel dos direitos básicos, mas a
expõe, de tal maneira, que ela é simplesmente uma suposição que fazemos, e que,
por isso, não é justificavel, uma questão de crenças; alguem de um outro planeta
poderia acha-la inconcebivel. Naterceira seção, ele, finalmente, se apropria da tese
de Simônides e esclarece: ―as palavras ‗justo‘ e ‗injusto‘ não são propriedade
privada dos igualitaristas‖ Mas não se entende por que. ao invés de começar com
Simônides, ele inicia a primeira seção com a palavra ―igual‖.
I: Embora a sentença de Ulpiano seja empregada tanto pelo lado
conservador quanto pelo relativista, apenas posso repetir que ela mantém a
neutralidade tanto entre o igualitarismo e o não-igualitarismo quanto entre o
primeiro e o segundo nível. Nisto esta sua importância. Se não pudéssemos
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 47
começar com um sentido neutro de justiça, não seria possível discutir o que é
justo. E, então: o simples fato de que o igualitarismo exista mostra que há um
segundo nível. Mas, ao invés de simplesmente insistir na igualdade, como faz
Vlastos, no início de seu ensaio, devemos esclarecer qual o lugar da igualdade na
questão da justiça, uma circunstância que não é considerada, de imediato, na
formulação de Ulpiano. Devemos empreender, assim, algo de que sinto falta em
toda a tradição, a saber, ao invés de dar uma reposta dogmática ao segundo nível,
ou de, simplesmente, nomear instâncias opostas, perguntar como o segundo
nível, enquanto tal, é compreendido, isto é, esclarecer o que significa justificar
neste nível.
T: Você acha, então, que não temos antecessores nesta questão? Pode
ser, já que não conheço nenhum. Há pouco, você mesmo apresentou uma
proposta relevante. A sua proposta pode ser problemática, mas ainda assim é
uma sugestão para sairmos deste beco sem saída de teses e antíteses, Ela
consiste em que justificar uma moral significa justificá-la, igualmente, face a
todos. A referência à igualdade estaria implícita no conceito de justificação,
não, primeiramente, da justiça, mas da moral, em geral.
I: Correto. Minha reposta à questão sobre o que significa justificar os
padrões de justiça — no caso da justiça distributiva, a configuração, para usar a sua
expressão — diz: significa exatamente o mesmo que justificar quaisquer outras
normas, e, porque isto quer dizer justificar, igualmente, face a todos, na idéia do
―ser justificado‖ das normas morais está implicada uma referência à igualdade.
T: Poderia agora aparecer algum espertalhão, dizendo que esta teoria
da justificação de um sistema moral foi inventada, especialmente para
introduzir o igualitarismo.
I: Eu responderia a este espertalhão: em primeiro lugar é com isto apenas
dito o que aparece no conceito de igualdade em geral, isto é, que existe, de fato,
uma certa igualdade entre os integrantes da comunidade moral. Ela, contudo, não é
nenhum igualitarismo, nem em relação aos direitos básicos. Por isso, esta manhã,
no início de nossa conversa sobre a sua questão correspondente, procurei primeiro
mostrar-lhe que esta abordagem não exclui o inigualitarismo. Em segundo lugar,
perguntaria ao espertalhão como se pode compreender a justificação das normas
morais de outra maneira. Minha tese é a de que não há, em absoluto, outras opções.
T: Certo. Mas até o momento ainda não está claro como esta noção de
justificação concretamente repercute sobre o esclarecimento do conceito de justiça.
Permita-me responder ao espertalhão, de um outro lado, do qual abordei o
problema, em minhas Lições. Pode-se mostrar, na verdade, que a igualdade subjaz
também aos enunciados de proporcionalidade, que invocam os adversários do
igualitarismo. Tinha usado o exemplo da divisão de um bolo. Pode haver diversas
razões para que a divisão desigual do bolo pareça algo justo, mas o interessante é
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 48
que se não se pode acrescentar razões convincentes que apóiem a divisão desigual,
resta somente a distribuição por igual. Nem mesmo a tradição aristotélica discutiu
isto, o que quer dizer que a igualdade está no fundo do não igualitarismo. Ela
aparece em três lugares. O primeiro — e decisivo: se não é dada nenhuma razão
para uma divisão desigual, então ela é injusta e arbitrária. Em segundo lugar,
também é possível fornecer razões, por exemplo, para que as crianças que tenham
mais fome recebam mais alimento. Ninguém põe em dúvida que a classe assim
caracterizada deve ser tratada com igualdade, salvo se forem invocadas,
novamente, razões que justifiquem uma distribuição desigual, mas, em tal caso, é
preciso também, novamente, uma divisão igualitária dentro de cada subclasse, e
assim por diante. A igualdade se impõe, portanto, à divisão desigual, e esta última
não pode dela se libertar, enquanto erguer pretensão de justiça. Finalmente, o
terceiro: que razões são aquelas que falam a favor da repartição desigual? Quando
não é dada nenhuma razão para uma repartição desigual, deve-se repartir
igualmente, isto significa que as razões requeridas são para não repartir igualmente.
Deste modo, as razões para a divisão desigual se reportam, por seu sentido próprio,
à divisão igualitária. como seu ponto de partida. Mas, sem dúvida, é preciso não
superestimar o resultado desta reflexão. O resultado não é, por exemplo, o
igualitarismo, mas a tese que diz que se deve repartir simetricamente, quando não
há razões contrárias. Podemos chamar a isto de tese da simetria. Isto significa que o
onus probandi está do lado da divisão desigual. A simetria na repartição não é uma
possibilidade entre outras, mas é a inevitável situação inicial. Por isso, não apenas é
iníquo mas também absurdo exigir a justificação da igualdade, posto que tanto o
não-igualitarista como a parte contrária a reconhecem como ponto de partida. A
distinção entre o igualitarista e o não-igualitarista está em que o primeiro crê ter
boas razões para limitar a igualdade e o segundo, não. O que se considera como o
ônus da prova do igualitarista não consiste, então, em introduzir razões para a
igualdade, mas em refutar as razões para a desigualdade que o partido contrário
possa apresentar.
I: Aqui o espertalhão pode objetar que a tese da simetria, como você a
chama, não diz nada, porque sempre é possível apresentar argumentos contra
ela. Ele também pode perguntar se não equivale dizer que a tese da simetria é
valida, mas que existem razões para limitar a igualdade, ou que não diz nada, e
que simplesmente não existem tais razões. ´
T: Não. A segunda opinião não existe, pois não faz sentido
simplesmente dizer que estas razões existem, posto que as razões são razões
precisamente para a limitação da igualdade. E com isto pressupõe-se a tese da
simetria. Não é certo que a tese da simetria não tenha significado. por ser
sempre possível introduzir razões contrárias. As razões devem ser,
primeiramente, relevantes e, em segundo lugar, convincentes; devemos, sem
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 49
dúvida, esclarecer o que. exatamente, significa isto. Mas não é certo também
que a tese da simetria não tenha significado no sentido de ela ser analítica. Não
podemos invertê-la, tal como naturalmente invertemos um juízo analítico: se
algo é igual, então, não é desigual. Não podemos invertê-la, porque não tem
sentido dizer: a repartição deve ser desigual, se não há razões para uma divisão
simétrica, pois o que significa não haver nenhuma razão para uma repartição
igualitária, exceto que existem razões indiscutíveis para uma divisão desigual?
I: Creio que isto é correto até certo ponto. O que você introduziu para
justificar a tese da simetria consiste, simplesmente, em que ambas as partes —
tanto o não-igualitarista como o igualitarista — a reconhecem. Mas por que
eles o fazem?
T: Esta é uma boa pergunta. Em que se fundamenta a tese da simetria? A
explicação que dei, nas Lições, me parece insatisfatória. Lá, digo: ―a posição
excepcional da igualdade decorre de ser a regra de distribuição mais simples‖
(Lições sobre Ética, p. 374, no original). Isto soa particularmente pragmático, e
não, obrigatoriamente, normativo. A tese da simetria, no caso de que pareça
obrigatória, deve seguir-se analiticamente de um aspecto da moral, enquanto tal —
por conseguinte, de cada um dos sistemas morais.
I: Pergunta-se apenas de qual. E esta é justamente a minha tese, a saber,
que ela resulta de um sentido particular de justificação, que todo sistema moral
exige. Se poder justificar uma norma moral, ou um sistema de normas, significa
poder justificá-lo face a cada um, igualmente, ficaria esclarecida a igualdade que
aparece como ponto de partida da questão da justiça.
T: Bom, Mas preciso, mais uma vez, colocar em cena o espertalhão. Ele
pode levantar três questões. Primeira: por que o ―igualmente‖ da justificação é
obrigatório? Segunda: é possível mostrar que este ―igualmente‖ é o que conduz ao
―igual‖, que aparece na distribuição? Terceira: em que medida a justificação por
igual conduz, não simplesmente ao igualitarismo, mas à tese da simetria? A
particularidade da tese da simetria está em que ela não apenas reclama a igualdade,
mas que com a igualdade introduz ao mesmo tempo a desigualdade e coloca ambas
em uma relação adequada no tocante à questão do que corresponde a cada um.
I: Dou razão ao espertalhão ao dizer que a minha tese se sustenta apenas se
estas três questões são respondidas. Só posso responder à primeira, repetindo o que
já disse ontem. Quem quer colocar em questão o fato de que uma moral somente
pode ser considerada justificada se podemos justificá-la face a todos, igualmente,
deve perguntar-se se ela apenas pode ser considerada justificada, quando pode ser
justificada face a todos. Acho que este ―todos‖ é mais complicado que o
―igualmente‖, porque o ―todos‖ provavelmente pode ser restringido. Este é o
problema com o particularismo, de que devemos nos ocupar. No contexto atual,
posso desviar-me desta questão. dizendo simplesmente: face a todos os integrantes
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 50
da comunidade moral. E isto sucede, quando se considera que a expressão ―normas
justificadas‖ está construída sobre o ―estar justificado face a x‖. Uma norma que
não é justificável face a alguns membros da comunidade ou não o é por igual, não
é para eles uma norma moral, mas uma norma coercitiva. O conceito de equilíbrio,
que ganha importância concreta na questão da justiça, já se apresenta na questão da
justificação de normas morais, enquanto tais. A igualdade — ou, para usar suas
palavras, a simetria — não se apresenta na moral, porque existe uma tese que
reclame, por assim dizer, um padrão de super-justiça, que teria validade a priori,
mas porque ela é uma conseqüência necessária do modo como se compreende o
processo de justificação. Lembremo-nos de que o problema da justiça era de
segundo nível. No primeiro nível, que é relativo, a fórmula de Ulpiano pode ser
concebida de tal forma que aquilo que, em cada caso, é considerado justo, se
deduza a partir de proposições (dos padrões de justiça). No segundo nível, que é
absoluto e parece inevitável, se não queremos compreender a fórmula de Ulpiano
como uma convenção, falta um critério na tradição, posto que este sempre foi
representado da mesma maneira, isto é, como conclusão de uma proposição, e
assim é compreendido, no melhor dos casos, apenas o igualitarismo. A tese da
simetria, ao contrário, é, na verdade, um enunciado, mas expressa apenas o que
está implícito no processo de justificação, e este enunciado faz justiça a ambas as
partes. compreendendo-se como um critério geral, embora formal, para a justiça no
segundo nível, isto é, não mais num sentido relativo. Mas estou me antecipando
com isso. Passemos à segunda questão do espertalhão, que diz: admitindo que no
―ser justificado‖ das normas aparece o conceito de igualdade, subjaz esta igualdade
àquela que constitui a base de uma repartição justa? Continuemos com o exemplo
do bolo. Você constatou que, se não se pode mencionar nenhuma razão
convincente em contrário, apenas a repartição igualitária pode ser justa, e qualquer
outra deve parecer arbitrária. Mas por quê? Você disse que era uma boa pergunta.
Agora, temos uma resposta: porque, na explicação precedente, apenas esta
distribuição, por igual para todos, pode ser justificada. Qualquer outra repartição
deve parecer injustificável, da perspectiva das pessoas prejudicadas, se não pode
ser justificada, de modo convincente.
T: E como você incorpora à sua explicação a cláusula ―se não há nenhuma
razão convincente em contrário‖? esta era a terceira pergunta do espertalhão.
I: Creio que esta cláusula ganha um sentido apropriado apenas quando
partimos de minha explicação. O que pode significar, pois, que as razões devem ser
convincentes? Você mesmo disse que esta questão precisa de um esclarecimento
mais preciso. A explicação está contida na minha tese. Se é justa somente a
distribuição que pode ser justificada face a todos, então, também é justa a
distribuição desigual que pode ser justificada igualmente face a todos. Se isto está
correto, é preciso incluí-lo na formulação definitiva de sua tese da simetria. A tese
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 51
não pode simplesmente dizer: ―a repartição simétrica obrigatória, se não existem
razões em contrário‖ — estas formulações são intoleravelmente vagas —, mas
antes, ―a repartição simétrica é obrigatória, se não existem razões que possam ser
justificadas igualmente face a todos‖. Desta maneira, tanto a repartição igualitária
quanto a distribuição desigual obrigatória se seguem do sentido unitário do
conceito de justificação de normas.
T: Não estamos colocando a trave exageradamente alta para o não-
igualitarista?
I: Não pode ser de outro jeito. Com que justificativa nós a poríamos mais
baixo? Se fosse assim, sempre um grupo decidiria unilateralmente sobre a
distribuição desigual, e isto contradiz não apenas nossa intuição sobre a justiça.
mas também o sentido proposto de justificação. Neste ponto, são considerados os
distintos modos de justificação de uma moral autoritária e de uma moderna. Esta
manhã, eu assinalei que, em uma moral tradicionalista, são justificáveis quaisquer
tipos de desigualdades normativas, no sentido do ―igualmente para todos‖, Isto se
esclarece na medida em que a justificação de uma moral tradicionalista face a
qualquer um não se refere, primariamente, aos seus interesses, mas à propriedade
mais elevada que a cada um convém, isto é, na qual crê cada membro da
comunidade. A crença entra no lugar dos interesses. Da crença segue-se, então, que
é válida aquela configuração de direitos que estabeleceu a autoridade, à qual a
crença se remete. Se, em uma moral moderna, ao contrário, os direitos são
distribuídos de modo desigual, esta situação não pode se justificar mediante o
recurso a uma autoridade. Deve-se, agora, introduzir razões objetivas, e estas
devem ser de tal modo que, segundo a tese da simetria, sejam aceitáveis para todos,
igualmente. Mas o que significa ―razões objetivas‖? Obviamente, deve ser
justificado que um determinado fator descritivo seja a razão de uma repartição
normativa desigual. Por ora, isto soa difícil. As mulheres são descritivamente
diferentes dos homens, mas o que, nesta diferença descritiva, pode ser tomado
como base para uma repartição desigual dos direitos?
T Que as mulheres, por exemplo, em razão da carga de sua gravidez,
mereçam, como compensação, certos direitos adicionais relativamente ao
mercado de trabalho, isto também os homens podem compreender. E, portanto,
algo que se pode fundamentar face a todos.
I: ―Como compensação‖, você disse. Uma justificação objetiva é
compreensível. Por isso, também pode ser evidente para os afetados
negativamente pela distribuição desigual dos direitos. Mas quando se diz ―como
compensação, por uma carga especial‖, já é pressuposta uma equiparação, em
princípio, dos direitos de homens e mulheres. Se disséssemos, ao contrário, ―as
mulheres, apenas porque são mulheres, ou igualmente os homens, apenas porque
são homens, merecem, em princípio, mais direitos‖, se estabeleceria entre o
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 52
pressuposto descritivo e a conseqüência negativa uma relação cujo modo de
justificação não é evidente, em particular, face aos prejudicados por uma
semelhante regulamentação. Não esqueçamos que o partidário da desigualdade
tem o onus probandi. O mesmo vale para todas as outras distinções descritivas,
na medida em que devam ter, em princípio, alguma conseqüência normativa:
ascendência feudal, os brancos frente aos negros etc. parece que existem poucos
enunciados nos quais uma diferença descritiva possua uma conseqüência
normativa tal, que cumpra a exigência da tese da simetria, como, por exemplo, os
deficientes receberem uma bonificação (seu exemplo das mulheres deriva deste),
ou que é injusto recompensar igualmente pessoas que se esforçaram de modo
desigual. Existem outros enunciados deste tipo, tal como a recompensa segundo
o mérito, que suscitam maior controvérsia, Mas o que me importa é que todos
estes enunciados pressupõem a equiparação, entre todos, em princípio, isto é, um
igualitarismo nos direitos básicos. Não é evidente, em primeiro lugar, como a
equiparação, em princípio, pode ser posta em questão numa moral moderna, e,
em segundo lugar, esta equiparação é justamente o pressuposto necessário que
torna possível uma justificação da justiça das distribuições concretas desiguais.
T: Era exatamente isto que eu tinha em mente, a propósito de minha
diferenciação entre aquilo que denominei discriminação primária e secundária
(Lições, p. 375, 378 do original).
I: Correto. Você diz aí que a discriminação primária significa que se efetua
uma ―diferenciação valorativa prévia‖. Quanto ao conteúdo, isto equivale ao que
eu queria dizer; só que não procurei apreendê-lo mediante um princípio, um
enunciado, mas sim, intentei fazê-lo operacionalmente: uma discriminação
primária é aquela que não pode se justificar de modo não- autoritário, porque
colide com a tese da simetria. Talvez possamos dizer também: toda discriminação
primária se assemelha a um anjo que circulasse entre os homens, marcando,
arbitrariamente, com cruzes, uma parte deles. O anjo é, na realidade, a antipatia ou
o interesse de determinados grupos. Em sua perspectiva, estas diferenciações têm
um sentido muito claro, mas é um sentido que se revela arbitrário tão logo se tente
compreendê-lo do ponto de vista daqueles que foram privados dos seus direitos, ou
na perspectiva de um observador externo, ou seja, a partir da tese da simetria.
Quando alguém, por exemplo, é discriminado por causa da cor de sua pele, não se
trata, para este, de um mero prejuízo. mas de algo que lhe é incompreensível.
Enquanto outras distribuições normativas desiguais podem ser discutíveis, a
discriminação primária não é compreensível sequer como proposta: não se
compreende, exceto a partir desta perspectiva específica, que conexão objetiva
possam ter o pressuposto descritivo e a conseqüência normativa.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 53
T: O igualitarismo que se segue daqui é, como você disse, um
igualitarismo dos direitos básicos. É preciso, para isto, detalhar quais são os
direitos fundamentais?
I: Eu diria que por enquanto não. Pois, de acordo com a distinção que
acabamos de fazer, podemos designar como básicos todos aqueles direitos cuja
gradação não é justificável, senão de maneira tradicionalista. Os direitos básicos,
assim entendidos, não são, todavia, aqueles que chamamos direitos humanos, pois
não estão definidos em relação ao Estado, mas apenas dentro da comunidade
moral. O igualitarismo resultante disso significa, simplesmente, que o que você
denominou configuração, na justiça distributiva (a), deve ser simétrica. Com o
exemplo do bolo, nos lançamos, de certo modo, em outro nível, pois este exemplo
se refere à repartição de bens, isto é, ao que você chamou de justiça distributiva (b).
Mas no ponto em que estamos, ainda não foi completamente determinado se,
dentro da comunidade moral, em geral, é necessária uma repartição de bens. Pode-
se apenas dizer: se uma repartição de bens é conveniente — como, por exemplo, na
divisão de um bolo — exclui-se, em todo caso, uma justificação da distribuição
desigual, que equivale a uma discriminação primária (que, neste exemplo, seria:
que uma criança receba mais, porque é primogênita). Ao contrário, poderíamos
mencionar outras razões para uma distribuição desigual, porque, em primeiro lugar
— sobre a base da exclusão da discriminação primária — todos contam por igual e
porque, em segundo lugar, as circunstâncias particulares que estão em jogo devem
ser consideradas, na repartição dos bens. Em relação ao exemplo do bolo, falamos,
antes, da divisão igual e desigual, embora, no caso da justiça distributiva (a), não
convém repartir nada. Apenas se trata de considerar reciprocamente de modo igual
ou desigual os direitos e deveres. É certo que se pode também falar, nos direitos
básicos, de uma distribuição igual ou desigual justamente destes direitos, mas não
se considera, desde o princípio, aqueles pontos de vista da proporcionalidade, que
assinalam os não-igualitaristas — segundo a necessidade, o mérito etc. A
discriminação primária seria a única justificação pensável. Com isso, posso apenas
dizer: existe todo um âmbito da justiça distributiva — justamente aquele que você
assinalou como primeiro (―a‖) — no qual a única possibilidade de considerar a
desigualdade justificada é, por razões concretas, a discriminação primária.
T: A palavra ―igual‖ pode nos confundir em toda esta discussão. Você
falou, há pouco, da consideração igual em contraste com a repartição igualitária,
mas a expressão ―consideração igual‖ é, por si, ambígua. No exemplo do bolo,
uma criança, que, graças a uma repartição igualitária, visse ignoradas suas
exigências particulares, a consideraria desigual (isto é, que a trataram
injustamente). Mas, numa moral tradicionalista, uma pessoa tomaria por desigual
uma repartição igualitária, se se acreditasse merecedora de uma dignidade desigual.
Platão emprega, nas Leis (757a), a palavra ―igual‖ em relação ao direito em um
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 54
duplo sentido. Sempre onde uma divisão igualitária é considerada injusta,
quaisquer que sejam as razões, não se pode fazê-lo sem tomar uma repartição
igualitária por uma consideração desigual, isto é, como uma violação da (desta)
igualdade. O duplo emprego da palavra ―igual‖ não é também, em si e por si, um
truque reacionário, como Vlastos sugere (p. 41 ss., da edição original), mas uma
exigência. E Aristóteles esclareceu amplamente esta concepção correta de Platão,
ao dizer que quando aparecem fatores para uma divisão desigual, é justa a divisão
proporcional a tais fatores (no caso em que estes possam, em geral, ser
quantificados). Não há o que reprovar nesta concepção de que as pretensões de
repartição desigual devem ser consideradas proporcionalmente, bem como que este
é o pressuposto para que as pessoas sejam consideradas igualmente. A virada
reacionária aconteceria quando se introduzisse como um fator determinante para a
justiça da repartição desigual a dignidade desigual, isto é, algo que só pode ser
justificado na discriminação primária. A consideração igualitária. tal como Platão a
compreende, é consequência, simplesmente, da fórmula de Ulpiano: a
consideração desigual dos direitos de pessoas distintas significa que não se dá a
cada um o que merece. Ao contrário, segundo a fórmula de Ulpiano, a
discriminação primária é excluída e assim também aquilo que a exigência de uma
consideração igualitária deixa em aberto: que os direitos ou, em todo caso, os
direitos básicos podem ser desiguais. Com isto, a expressão ―consideração igual‖
não tem mais o sentido formal que Platão presume, segundo a fórmula de Ulpiano,
mas um sentido concreto, a saber que. contrariamente a Platão e Aristóteles, todos
têm a mesma ―dignidade‖, podemos dizer, o que significa que todos merecem o
mesmo respeito. Posto que a palavra ―dignidade‖ apresenta prerrogativas
particulares, a expressão ―dignidade igual‖, apesar de vaga, ou graças a ela, é
apropriada para que ninguém possa pretender direitos especiais. Somente agora a
consideração igual equivale ao respeito igual. A palavra ―respeito‖ tem muitos
significados, mas, em nosso contexto, podemos compeendê-la como o reconhecido
dos direitos dos outros, de tal modo que respeito igual signifique: reconhecer que
todos são considerados iguais em seus direitos, e a expressão objetivadora
―dignidade igual‖ deve afirmar o mesmo. Metaforicamente: se os homens
expressam mutuamente seu respeito por uma reverência, ninguém pode inclinar-se
para uns mais que para outros.
I: Correto. Mas isto não pode ficar apenas nas reverências. A questão é:
qual a conseqüência concreta de respeitarmos mutuamente, de maneira igual, uns
aos outros? Rejeitei, em princípio, a questão de uma enumeração dos direitos
básicos, mas somente porque esta não pode preceder o reconhecimento da
dignidade igual, isto é, que deve se seguir a ela. A tese da simetria deveria ser
novamente aplicada, após a exclusão da discriminação primária. A questão seria,
então: primeiramente, quais direitos concretos, quando a possibilidade de
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 55
discriminação primária está excluída, seria injusto, segundo a tese da simetria, não
conceder a todos igualmente? E, em segundo lugar, que direitos desiguais, quando
as pessoas se encontram em tais e tais relações (circunstâncias), seria injusto, no
sentido da tese da simetria, não reconhecer, quando a discriminação primária está
excluída? Esta segunda pergunta é aquela que você assinala, em seu livro, como a
questão da exigida discriminação secundária. As duas perguntas podem referir-se à
repartição dos bens, sendo que a segunda, apenas a ela. Nenhuma delas, nem
mesmo a primeira, pode ser tratada de modo abstrato, como procedemos antes, isto
é, sem entrar nas circunstâncias sociais particulares dadas. pois é claro que são
estas circunstâncias que devem ser consideradas quando se estabelece,
concretamente, quais direitos iguais devam existir, quando a dignidade igual não é
violada. Trata-se de circunstâncias que, sob determinadas condições, podem fazer
uma distribuição igualitária parecer injusta como uma violação à dignidade igual.
Gostaria apenas de assinalar que, na discriminação secundária, trata-se de diretos
— de direitos desiguais —, justamente onde estes direitos são diretos a uma
repartição desigual de bens. Quando é dito que uma distribuição é justa. se é
―igualmente do interesse de todos‖ (Habermas, consciência Moral e Agir
Comunicativo, p. 76 no original), parte-se, com justiça, de regras que todos têm de
poder de aceitar, por igual (op. cit., p. 73). A justiça, contudo, não pode, tomando
este conceito, referir-se diretamente aos interesses — ela também não consiste em
uma equiparação de interesses —, mas apenas a pretensões de direitos, que se
justificam em regras gerais, em que os interesses se comparam com os interesses,
de tal modo que a pretensão de dignidade igual é sustentada. Uma solução justa das
diferenças não pode partir de uma distribuição baseada em interesses iguais dos
afetados, porque não fica claro, em absoluto, o que significa isto. Ao contrário, ela
se refere sempre a uma comparação das pretensões de direitos respeitadas. em
geral, que, por sua vez, se determinam de acordo com as circunstâncias e das quais
se pressupõe que possam ser aprovadas por todos, segundo a tese da simetria.
Trata-se apenas de regras gerais, das quais se espera que possam ser justificadas
igualmente face a todos, mas nunca de uma equiparação concreta de interesses e,
por conseguinte, também das oposições que não se resolvem mediante a tese da
simetria, quando, num caso concreto, várias regras gerais (tais como a de merecer
uma bonificação, quando se é um necessitado, e a de merecer uma bonificação,
quando se tem uma pretensão de um direito prévio) entram em contradição umas
com as outras. Nenhuma tentativa de solucionar tais contradições, através de regras
gerais, pode ser justificada igualmente face a todos.
T: Mas o que eu quero dizer é que, embora o complexo de questões que
você assinala, isto é, a da legítima divisão desigual de bens, relacione-se
estreitamente com nossas considerações, e apenas agora deciframos as
conseqüências concretas do princípio do igualitarismo, se trata de uma temática
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 56
evidentemente ampla, que não pode ser resolvida num piscar de olhos. Não
devemos esquecer que não queremos abordar o tema da justiça, em si mesmo, mas
ganhar uma base sobre a qual possamos esclarecer as possíveis distinções, na
modernidade, entre uma compreensão universal da moral e uma particularista.
Alcançamos esta base, e seria interessante agora concluir a problemática da justiça,
se não formos desviarmos por questões mais básicas. Sugiro que nós nos
ocupemos desta problemática, quando nos encontrarmos, novamente, à noite, e
adiemos para uma outra vez a continuação da problemática da justiça.
57 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO IV
Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no bar do porto.
I: A maior parte dos filósofos que se ocupa da moral pergunta
simplesmente ―o que é a moral e como se comporta nela o indivíduo‖, como se o
único contraste interessante fosse o que se produz entre o interesse individual e o
moral. Justamente porque se considera o problema dessa maneira, ignora-se que há
modos distintos em que uma comunidade moral pode se compreender. Nesta noite
queremos esclarecer se podemos falar simplesmente de moral moderna ou se há
variantes distintas de uma compreensão moral moderna. (Sua expressão ―moral
moderna‖ não é muito feliz, em si mesma, porque sugere a idéia de que se trata da
moral ―na modernidade‖ enquanto que o que você quer dizer é: uma moral sem
justificação tradicionalista (autoritária)). Surgiu o rótulo ―particularismo‖. O
contrário seria ―universalismo‖. Isto parece pressupor que aquela moral moderna
produzida no contexto da tese da simetria e da exclusão da discriminação primária
é assinalada não apenas como igualitária, mas também como universalista.
T: O universalismo parece-me um simples corolário do igualitarismo.
Assim como aquele que, no interior da comunidade moral, quer afirmar uma
gradação nos direitos tem o onus probandi, também o tem aquele que deseja
restringir arbitrariamente a comunidade moral, e se limita, por exemplo, à
comunidade política ou a uma suposta comunidade ética. Não definimos, até agora,
o conceito de ―comunidade moral‖, mas parece claro que ele se estende tanto como
o sentido de suas normas. Tradicionalmente seria pensável que a autoridade
correspondente fixasse tanto limites para fora como gradações para dentro. Se a
autoridade é suprimida, a resposta mínima à pergunta sobre quem são todos
aqueles frente aos quais devemos poder justificar a regra de nossa conduta é:
sempre frente a todos os que podem exigir isso de nós. Por esta razão a
comunidade moral é aberta. A limitação da universalidade equivale a considerar
certos grupos ou, simplesmente, os estrangeiros, como pessoas total ou
parcialmente carentes de direitos, e isto exigiria uma decisão de poder que não é
justificável frente aos prejudicados. A discriminação ou ainda a não-admissão de
estrangeiros em um Estado não deve, na verdade, ser designada como
discriminação primária, porque é possível compreendê-la exclusivamente no
sentido de que não lhes correspondem, sem mais, certos direitos particulares que o
Estado outorga. Quando, frente aos estrangeiros, não podem valer nem mesmo os
deveres negativos, é lícito falar de uma discriminação primária. Talvez um país
tenha uma boa razão para se defender contra invasores. Mas há discriminação
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 58
primária quando se fala, como hoje, por exemplo, nos Estados Unidos ou em
Israel, que em uma guerra só conta o número das mortes próprias, e não as de
inimigos ou de cidadãos de países terceiros.
I: Mas quando esta discriminação primária é observada em todas as partes,
como hoje em dia, é necessário tornar compreensível, de algum modo, este não-
universalismo da moral. É fácil dizer que é imoral, porque o particularista se
considera a si mesmo, de certo modo, de maneira moral.
T: Esta é a expressão correta: ―de certo modo, moral‖. Ele tem uma
outra compreensão da moral. Mas, então, devemos ter cometido um erro em
alguma parte. Ou o igualitarismo não implica o universalismo, como acabo de
afirmar, ou algo não funciona na tese da simetria; ou também, retornando a
questão anterior, o conceito de justificação que você introduziu talvez admita
alternativas. A última possibilidade parece-me a mais provável, pois, por um
lado, a passagem deste conceito de justificação à tese da simetria, e desta ao
igualitarismo e ao universalismo, dá-se de modo mais ou menos contínuo, e,
por outro, sua definição do conceito de justificação tem o caráter de uma tese.
Por que não deve haver outras opiniões sobre o que significa justificar a moral,
que igualmente não se sustentaram em uma autoridade?
I: .Certamente há algumas outras, por exemplo, a kantiana, a
utilitarista, a schopenhaueriana. Talvez este seja o lugar em que se deve tornar
explícito o nosso pressuposto de que as normas morais, ao menos em seu
núcleo, têm um caráter recíproco, isto é, que normas morais sempre são
compreendidas se constituindo numa comunidade moral. Mas se trata, em todo
caso, de uma pressuposição sobre a qual não há nenhuma disputa com os
particularistas. Quando, contudo, a justificação das normas é pensada, em sua
essência, como algo essencialmente recíproco, e as normas são tais que se
constituem no sentimento comum de sanção da tríade strawsoniana, não se
pode compreender a justificação sem estes dois passos: ―justificar frente a x‖ e
que seja assim para todo x.
T: E por que insistir no ―igualmente para todos‖? Coloco esta pergunta,
novamente, porque devemos saber, com precisão, quais as alternativas.
I: Quais as alternativas: esta é uma lembrança oportuna. Não há, então,
nenhum ―dever‖ (Muss) absoluto. Ninguém pode querer dizer: existe a moral e nós
não podemos fazer nada. Posso esclarecer o ―igualmente para todos‖ do seguinte
modo: a alternativa se chama arbitrariedade, isto é, poder, coerção. Naturalmente
podemos fazer algo. Podemos escolher o caminho da arbitrariedade e do poder,
apenas não podemos misturá-los: direito e poder. O sentido da justificação é
mostrar que a regra não implica a arbitrariedade de um frente aos outros, e, por esta
razão, não se pode compreendê-la, de outro modo, que com a fórmula ―igualmente
frente a todos‖. Em sua enumeração das alternativas possíveis - que nós podemos
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 59
ter ignorado no curso de nossa discussão -‗ você ainda pode mencionar uma: não
apenas é possível que se possa compreender de outra maneira o conceito de
justificação, mas, antes, pode-se também abandonar a pressuposição com a qual eu
comecei e que você seguiu, isto é, de que compreendemos por normas morais as
normas recíprocas e universais sempre que estejam justificadas. Não podemos
querer pôr nossos adversários num xeque-mate conceitual. Não podemos querer
mostrar que não se pode ou deve pensar assim, mas que apenas podemos - com o
fim do esclarecimento mútuo - assinalar as implicações de sua posição e da nossa.
Tampouco a definição de normas morais com o acréscimo ―sempre que estejam
justificadas‖ pode ser entendida como algo que não admite contradição. Trata-se
apenas de uma definição.
T: Mas o que sobra quando suprimimos a cláusula ―sempre que‖?
Pode-se indicar ainda uma moral?
I: Nós nos baseamos no fato de que as normas morais são normas
sociais, que se sustentam - enquanto normas - na tríade strawsoniana. Você
estabelece, em seu livro, uma dicotomia, com convenções e costumes, de um
lado, e as normas morais, de outro, daí estas serem definidas como pretendendo
ser justificadas (Lições sobre Ética, p. 47, no original), Se falássemos agora de
dois conceitos de moral, tratar-se-ia, ou bem de uma mera variante idiomática, ou
bem de moral em sentido próprio.
T: Compreendo a sua estratégia. Você não considera o particularismo
como uma limitação do universalismo.
I: Correto. Isso não significa nada para mim. Ao tomá-lo como uma
limitação, não o compreendemos, mas apenas o condenamos a partir de um
conceito estreito de moral. É plausível considerar a limitação de ―todos‖, no
particularismo, como conseqüência de outra compreensão da noção de
justificação.
T: Um modo de justificação, e não simplesmente o abandono da
justificação‘? - Devo reconhecer que, ao diferenciar as regras morais das
convenções e costumes, como regras justificadas ou que necessitam de justificação,
deixei em aberto a questão de como entender a normatividade de tais convenções e
costumes. Pensa-se, por exemplo, nos hábitos de higiene e de vestuário, nos
costumes culinários e nas maneiras à mesa, que desempenham, provavelmente, um
papel mais importante que as regras morais na inserção de uma criança na
sociedade e na formação dos sentimentos de culpa e de vergonha. Não se pode
duvidar de que aqui a tríade strawsoniana está igualmente presente.
I: Não concordo. A indignação não pode ser representada aqui. E
podemos falar menos de sentimento de culpa do que de vergonha.
T: Mas como é compreendida aqui a indignação? Quem infringe os
costumes, infringe somente o decoro, e dado que todos - ou a maioria - partilham o
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 60
sentimento de decoro, está dada a base para que haja sentimentos morais
partilhados. Este sentimento de decoro tem, talvez, algo que demarca e delimita,
que se dá historicamente de cima para baixo frente às pessoas comuns, mas que,
hoje, se dá mais freqüentemente em sentido horizontal, na medida em que uma
determinada ―comunidade de nós‖ tem assegurada sua identidade.
I: Você disse corretamente: ―quem infringe os costumes, infringe
somente o decoro.‖ O que significa este ―sentimento de decoro‖? Pode-se,
talvez, dizer: é uma consciência normativa comum que se confirma
reciprocamente. Uma tal confirmação pode ser, então, aquilo que se entende
por justificação. O sentimento de decoro seria uma consciência normativa,
em que se considera como justificação a consciência de partilhar um ponto de
vista, isto é, que se põe no lugar da justificação. Se você quiser, uma
“quasijustificação”. Pode-se aqui traçar uma analogia entre a consciência
correspondente no âmbito teórico: ainda que ―justificar‖ possua, neste
âmbito, um sentido distinto: o mero assegurar-se mutuamente de que todos
crêem o mesmo pode substituir a justificação. ―Todos julgam assim, logo, é
assim‖. Assim se pode pensar tanto em relação a enunciados como com
referência a normas. Naturalmente o ―todos‖ nunca pode ser todos, mas a
maioria ou os que são relevantes. No domínio normativo, esta circunstância
tem como conseqüência a tendência a excluir da comunidade moral aqueles
que não querem ou não podem corresponder ao sentimento de decoro da
maioria, como, por exemplo, os homossexuais. Talvez esteja me
precipitando. Não acho que seja possível esclarecer a importância dos
costumes sem levar em conta que relação eles têm com aquelas normas que
se consideram justificadas, isto é, não há nenhum conceito unitário de
costume. No interior de uma moral tradicionalista, é razoável que os
costumes e as normas morais não estejam nitidamente separados, mas que
ambos estejam justificados na autoridade competente. Quando, contudo, se
suprimi a justificação tradicionalista, restam duas possibilidades. Ou
dizemos: há um conjunto de normas que se pode justificar de um novo modo,
isto é, tendo em vista o interesse; trata-se, então, de normas morais em
sentido próprio. Quando existem outras normas que se apoiam simplesmente
em um sentimento de decoro e que não são fundamentáveis, elas são
inofensivas, desde que não infrinjam as regras morais. Sua inofensividade
expressa-se no fato de que são designadas como convenções. Ou. então, posto
que as normas podem, agora, por recurso à autoridade, não ser justificadas,
em absoluto; o sentimento de decoro se transforma aí em uma instância
última. Isto quer dizer que não se distingue entre os costumes e a moral, e -
como vemos em Hegel, em quem a moral se dissolve na ―moralidade‖ - ainda
não existem normas que possam ser justificadas. Ambas concepções são
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Coleção Filosofia - 133 61
nitidamente contrapostas, porque, enquanto a primeira distingue entre os
costumes que têm consequências imorais dos costumes inofensivos - este é o
componente especificamente liberal da moral referida a uma justificação
recíproca -, não pode existir, para a concepção contrária, uma tal distinção, e
as minorias que pensam de modo diferente são excluídas da comunidade.
Entendo que, deste modo, chegamos a uma compreensão adequada da moral
particularista, porque agora vemos que, em primeiro lugar, ela não apenas
exclui os espectadores externos - aqueles que não pertencem à comunidade
política ou ética -- mas os integrantes da própria comunidade que não se
adequam ao sentimento de decoro sustentado pela maioria que fixa as
normas. Em segundo lugar, fica evidente que estas conseqüências concretas
são apenas o resultado de uma outra concepção de justificação, que, na
verdade, também pode ser articulada de tal maneira que as normas não
possam ser justificadas para além do sentimento de decoro compartilhado.
T: Muito bem. Então, estaria definida, até certo ponto, a posição contrária.
Não podemos ser tão ingênuos e dizer que pode haver apenas uma moral moderna,
como fiz em meu livro. Também as morais particularistas, que, concretamente,
podem ser variadas na medida em que se constituem como ―comunidades de nós‖,
com um sentimento compartilhado de decoro, são especificamente modernas, não
autoritárias. A discussão com elas teria algum êxito? Não podemos dizer que sejam
imorais, pois não podemos, por meio de uma definição, excluir outras idéias sobre
a moral. Há filósofos, na Alemanha em particular, que acham que uma tal moral,
na verdade, é uma moral, mas que não é racional. Em primeiro lugar, não sei em
que sentido de ―racional‖ eles entendem isto e, em segundo, ainda quando isso
fizesse sentido não seria preciso combater os particularistas. - Uma discussão
diferente com as morais deste tipo encontra-se em Richard Hare, em Freedom and
Reason (Oxford. 1963). no nono capítulo. O argumento que ele emprega, no
entanto, não parece muito convincente. Pode-se, inclusive, afirmar que o que se
revela implausível na concepção inteira de Hare é justamente sua controvérsia com
os assim chamados ―fanáticos‖. Hare convida os nazistas a dizerem se estariam a
favor do extermínio de judeus, se fossem eles mesmos judeus. Eu não vejo por que
os nazistas não poderiam simplesmente responder: ―certamente, não, mas, graças a
Deus, não sou judeu‖. Hare pressupõe simplesmente que o intercâmbio potencial
de papéis é inerente à essência da linguagem moral e crê que, desse modo, pode
derivar, analiticamente, sua versão utilitarista do kantismo. Se me perguntam ―você
também quereria esta norma, se o mundo inteiro fosse de outra maneira?‖ - e o
intercâmbio de papéis seria apenas uma variante disto -, não posso responder
afirmativamente. Hare isolou um único aspecto da linguagem moral para si, a
saber, que os mesmos dados são julgados moralmente do mesmo modo, e, em
conseqüência, exige simplesmente que devo poder aceitar, em todas as
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 62
circunstâncias irreais pensáveis, que se realize a norma considerada correta. Hare
não considera que normas morais sejam regras que se exigem mutuamente e que,
por conseguinte, têm de ser vistas como necessitando de uma justificação
recíproca, isto é, ele não considerou toda esta dimensão intersubjetiva que vale para
uma moral moderna tanto como para uma moral autoritária e também no interior
de uma moral moderna, para o particularista1. Na realidade o intercâmbio
imaginário de papéis não tem, na moral, a significação ubíqua, que Hare admite.
Mas, na medida em que, em geral, ele é empregado, é a conseqüência de uma
determinada compreensão do ―ser justificado‖ frente a todos. Não queremos,
contudo, supor correta esta determinada compreensão do ―ser justificado‖, mas
entender o que o particularista deve levar em conta em sua compreensão do ―ser
justificado‖ frente a todos, posto que não atenta nem contra a racionalidade, nem
tampouco contra a estrutura da linguagem moral.
I: O particularista também interromperia rapidamente seu diálogo com
Hare. E nós, o que faríamos?
T: Certamente é desagradável simular um diálogo com alguém ausente.
Mas tentemos. Estou disposto a representá-lo. Sugiro também que, a partir de
agora, falemos em alemão.
I: Está bem. Não imagino você como um nazista, mas talvez como um
sérvio ou croata ou como americano ou israelense na visão correspondente. Eu
e meu amigo aqui temos dificuldade em compreender como você o faz.
T: Como faço o quê‘?
I: Como você se sente em sua pele?
T: Eu acho que muito bem. What is your problem?(Qual é o problema?)
I: Certamente você ouviu nossa conversa. Será que eu interpretei
corretamente, que você também considera seu sistema normativo justificado?
T: Certamente, e não apenas eu. Nós somos uma comunidade. Hoje, na
modernidade, há ainda, entre nós, os que estão fora dos limites da comunidade, os
assim chamados liberais. Todo tipo de coisas possíveis deve ser permitido e
tolerado. Mas nós, os outros, temos um sentimento de pertinência. Queremos
permanecer entre nós. E isto quer dizer também dentro de nossos valores, isto é,
daqueles que consideramos reciprocamente justificados.
1 Ver a critica semelhante de Th. Nagel, ―The Foundations of Impartiality‖, in: D.
Seanor e N. Fotions (eds.), Hare and critics (Oxford 1988), 101-112: ―But a moral
judgment ought to have a connection with pratical reason not only for the person who
produces it but also for the persons to whom it is addressed. If it is supposed to be
correct, it ought to claim that others have a reason to obey it…‖ (p. 105). É digno de
nota que Hare, que ao final desta obra se ocupa meticulosamente de todas objeções
feitas pelos críticos, tenha deixado sem comentários estas considerações centrais, talvez
porque seu alcance lhe tenha escapado.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 63
I: Nossa pergunta é justamente qual a base desta justificação. Trata-se
de uma autoridade, uma igreja, por exemplo, ou são os interesses recíprocos
subjacentes às normas?
T: Certamente não os interesses. Isto seria um materialismo e um
individualismo crassos. Assim se dissolveria a comunidade. Uma autoridade pode
ser importante, mas não tem de sê-lo necessariamente. Assim dizia, por exemplo,
Martin Heidegger: ―o próprio líder e somente ele é a realidade atual e futura e sua
lei‖ 2. Mas o fato de que dado o caso se trate de um líder reconhecido é algo que,
por sua parte, repousa sobre um acordo do povo. Por essa razão, Heidegger afirma,
em outra passagem: ―pois a verdade é a manifestação do que torna um povo
seguro, luminoso e forte, em seu agir e saber‖ (p. 14). Naturalmente, você não deve
tomar ao literalmente este discurso pomposo. O importante é, como você mesmo
disse, o acordo mútuo entre os homens decentes de um povo. Assim se constitui
um valor. É preciso, evidentemente, compreender que isto também tem um valor
histórico. Outro povo terá outros valores.
I: Gostaria de retornar minha pergunta sobre a base da justificação. Se
você nos ouviu ontem, saberá que somos de opinião que o que normalmente se
chama moral tem uma base sobre a qual as normas aparecem como justificadas. Na
tradição, uma tal base era constituída por uma autoridade sagrada. Na
modernidade, é possível contrapô-la ao interesse próprio do indivíduo reconhecido
em reciprocidade. Em seu caso, ao contrário, parece desnecessária tal base, em
função da qual são testadas as opiniões morais.
T: Em última instância, isto é correto. Digo em última instância,
porque há versões do particularismo em que a tradição tem uma importância
próxima a de uma autoridade religiosa. Há formas intermediárias entre uma
moral simplesmente particularista e uma outra moral religiosa superior.
Ele sussurrou em espanhol:
I: Isto é uma indicação importante, você não acha? Isto revela que a
nossa dificuldade em relação à moral particularista coincide. em boa parte. com
o que nos cria problemas numa moral tradicionalista.
Continuei em alemão.
T: Também existem formas intermediárias entre a moral particularista e o
que eu gostaria de chamar de moral liberal. Isto significa que a maior parte das
concepções da moral particularista movimenta-se, dentro da moral liberal, como
2 G. Schneeberger, Ergänzungen zur einer Heidegger-Bibliographie, Berlim 1960, p. 11.
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Coleção Filosofia - 133 64
uma reação a ela. Assim têm origem muitas formas mistas. Mas se eu o entendi
bem, não devemos nos ocupar desta questão empírica. Queremos, antes, examinar,
de modo isolado, na medida do possível, os componentes particularistas.
I-: Correto. Você acaba de admitir que, em uma moral particularista.
não é dada nenhuma base de justificação. Isto significa, então, que uma tal
moral deve ser entendida, em última instância, como uma convenção?
T: Em última instância, sim. Na verdade, alguns particularistas se
oporiam a uma tal formulação. Eles diriam que a base de justificação é a
identidade comum. Mas isto equivale a dizer: somos precisamente quem
somos, e termos os pontos de vista que temos. Acho que a pergunta pela base
de uma moral determinada não tem sentido. Isto já era dito por Protágoras. A
moral é algo fundamentalmente relativo, e isto se evidencia no particularismo.
O caráter sagrado do religioso apenas o dissimulou.
I: Concordo com você em que não haja nenhuma base no sentido de
um princípio superior. Mas isto não conduz necessariamente a um relativismo,
porque a referência a uma base pode (creio, até mesmo que o deva) ser
operacionalizada dessa maneira: uma visão moral somente está justificada se
podemos fundamentá-la frente aos outros - isto é, frente a todos os outros. O
fato de que a moral possa ser entendida assim, é que, talvez, o deva, é algo que
aparece no conceito de justiça. Como convencionalista e relativista, você deve
dizer: justo é o que. dentro de uma determinada comunidade, corresponde a
suas concepções, isto é, a seus padrões de justiça (como dissemos há pouco).
Mas não se pode perguntar, por sua vez, se os padrões de justiça são justos?
T: Talvez eu deva fazer com que o seu oponente responda assim (porque
queremos supor que ele seja um interlocutor sério): podemos, mas não devemos.
I: Isto é suficiente. Quando você diz que podemos, é admitida uma
dimensão objetiva de justiça. E quando se procura esclarecer, como fizemos hoje à
tarde, em que ela consiste, descobre- se que ela está expressa na Lese da simetria,
que, por sua vez, se fundamenta no fato de que as regras morais devem ser
justificadas porque estão justificadas igualmente frente a todos. Você tem duas
opções: ou bem rejeita a tese da simetria, ou bem a reordena de tal modo que o
―todos‖ se reduza à totalidade limitada das pessoas decentes de sua comunidade.
T: Certamente escolho a segunda opção, mas não a compreendo como
uma reordenação, e sim como uma interpretação legítima.
I: Eu acho que você se meteu em dificuldades. O sentido da tese da
simetria é o de excluir a arbitrariedade, enquanto que você o interpreta de tal
modo que possa se adequar a ela uma determinada posição arbitrária.
T: O que lhe dá o direito de falar do sentido da tese da simetria, isto é,
de uma intenção que estaria, por assim dizer, por trás dela?
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 65
I: Quero logo voltar a isto. Mas vejamos a questão de outro ponto: o
seu. Deve haver, inversamente, uma razão pela qual o particularismo dirige
seus ataques a uma compreensão ilimitada de ―todos‖.
T: Certamente existe uma. Ela reside no instinto de conservação da
―comunidade de nós‖. A identidade desta comunidade se constitui nas normas
comuns (gemeisainen), e isto significa também: na disposição para rejeitar ou
combater o ―ser outro‖ do estrangeiro, ―para preservar o próprio modo de vida
existente‖, como disse Carl Schmitt (Der Begriff des Politischeii, 3. ed., Berum
1963, p. 27).
Neste momento, uma barata enorme caiu do teto e se agitou dentro do
meu copo de cerveja. Estremeci de nojo. O velho sorriu, pegou o copo, caminhou
até a porta do bar, lançou longe o líquido e deixou que o monstro se fosse.
I: Isto significa, contudo, que se trata de uma luta pela existência. A
justificação não é mais normativa. Você mesmo disse, há pouco, que os costumes
são, em última instância, convenções, que não são definidas por si mesmas -
porque não estão justificadas fora da aceitação recíproca - mas para a preservação
da comunidade. Assim compreendidas. as normas são funcionalizadas, isto é,
servem para a conservação do poder de um grupo. Isto quer dizer que o direito é
compreendido como direito dos mais fortes. Os nazistas o consideravam assim,
explicitamente, e, em todo particularismo, isto está implícito. O que, então, pode
caracterizar um sistema normativo face a um outro, que lhe é relativamente
semelhante, salvo o poder? Acho que Rousseau disse, com razão, que não tem
sentido falar de ―direito dos mais fortes‖, porque o direito (a justiça) é, por seu
sentido mesmo, um conceito oposto ao de poder. Se uma ―comunidade de nós‖ que
se compreende normativamente de tal ou tal maneira se impõe frente a outra,
porque tem os tanques mais fortes, ela não demonstra, com isso, ser mais justa.
T: Você tem razão. Concordo também que não tem sentido falar de
direito dos mais fortes. Comparando, entre si, comunidades normativas distintas,
somente podemos falar de sua força comparativa, isto é, de seu poder. Devo dar-
lhe razão nisso. É um mau uso do conceito designá-lo - como fizeram Nietzsche
e Hitler - como direito superior. Negamos, justamente, que os distintos sistemas
normativos possam ser comparados normativamente, e que o comparativo ―mais
justo‖ tenha sentido. Nós nos deparamos, de novo, com o termo ―arbitrário‖, ao
qual damos um sentido fraco, e você, forte. Para nós, quem viola as convenções
de justiça da comunidade age de modo arbitrário. Para você, age arbitrariamente
quem viola as normas que todos igualmente podem admitir. Não negamos que se
possa definir o termo ‗justo‖ neste segundo sentido, mas nós o consideramos
uma determinação aleatória.
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 66
I: Discordo e retorno a sua pergunta sobre se tenho direito de entender a
tese da simetria, de modo tal que seu sentido seja a exclusão da arbitrariedade.
Nesta explicação, só me incomoda uma coisa: falar de exclusão da arbitrariedade é
algo ainda mais indeterminado que a própria tese da simetria. Não obstante, esta
pode servir para esclarecê-la, e em um ponto isto é decisivo, porque a tese da
simetria não diz nada com respeito ao alcance de ―todos‖. Não esqueçamos que a
tese da simetria, se não for compreendida de modo tradicionalista, mas, igualitário,
contém duas partes. A primeiro afirma a equiparação de direitos, por princípio. Isto
implica, no contexto da atual discussão: quando o direito, e não o poder (o poder
dos mais fortes, a arbitrariedade), é o elemento relevante, vale o seguinte:
distribuição igual, direitos iguais. A segunda parte da tese da simetria limita a
primeira na medida em que admite a desigualdade, mas apenas se todos a aprovam.
O fato de que todos possam aprová-la não é, no entanto, condição para que a
desigualdade não possa ser considerada arbitrária, desde outra perspectiva. Se você
me pergunta como nós chegamos, em geral, à tese da simetria, vemos que sua
primeira parte é sempre uma base indubitável para falar de justiça, e que toda a tese
se apresenta como conseqüência do fato de que as normas morais devem ser
justificadas frente a todos igualmente. Se quiséssemos limitar, como você deve
fazer, a referência a todos, eliminaríamos a segunda parte da tese, a que exclui a
limitação da igualdade sem aprovação, e, neste sentido, o faríamos arbitrariamente,
posto que esta limitação não pode ser justificada de modo normativo. Não resta
dúvida de que a tese da simetria, se você a aprova da maneira como o faz, perde
seu sentido, ainda que, por necessidade, se conserve verbalmente.
T: Você pode ter razão. Vejo, por trás de sua explicação, que se tratava
de uma inconseqüência de minha parte. Se nego seu conceito de justificação,
rejeitar a tese da simetria que repousa sobre ele é apenas uma conseqüência.
Ainda considero como uma determinação arbitrária uma justificação que
exceda a confirmação mútua daqueles que têm a mesma opinião dentro de uma
comunidade.
I: Podemos formulá-la assim, mas isto não equivale a dizer que é arbitrário
aceitar o princípio da não-arbitrariedade, isto é. a moral entendida desse modo,
como justificável frente a qualquer um. Encontramo-nos, finalmente, na rocha em
que, como disse Wittgenstein, nossa pá entorta. Aceitar uma moral, neste sentido,
é, em última instância, uma opção, e você pode continuar aferrado a uma moral em
outro sentido: ―moral‖ representa simplesmente um sistema de normas sem
justificação, que se mantém mediante a indignação mutuamente confirmada dentro
da ―comunidade de nós‖. Está claro que não posso refutá-lo; seria insensato fazê-
lo, mas posso assinalar o inconveniente que você deve considerar. É melhor fazê-
lo, segundo penso, com ajuda da primeira parte da tese da simetria. Esta primeira
parte contém in nuce, por assim dizer, o que significa uma posição moral em nosso
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 67
sentido. A situação mais elementar é a de duas pessoas relacionadas entre si, uma
mais forte que a outra: pai e filho, marido e mulher, ou ainda duas pessoas
quaisquer, uma mais forte que a outra ou não. Nós nos deparamos, então, com a
questão: poder ou direito, arbitrariedade ou justiça, quer se trate de um bem
material ou da maneira como um se conduz frente ao outro, ou ainda, de quem
decide. Quando, neste ponto, nos atemos à tese da simetria, constatamos que, se
não se pode alegar razões especiais que convençam a ambos do contrário, rege a
igualdade. Isto pressupõe, naturalmente, que a relação pode ser justificada de
maneira recíproca. Se isso não acontece, o poder decide. Nossas duas pessoas
enfrentam, por conseguinte, a questão: querem ou não, mutuamente, que, em geral,
sua relação possa se justificar de modo recíproco? Por exemplo, o mais fraco quer
tomar algo e o mais forte o impede. O primeiro pode, então, fazer a pergunta que
Primo Levi formulou durante seu primeiro encontro com um guarda de Auschwitz:
―por quê?‖. E o segundo pode responder como o guarda: ―aqui não há porquê‖.
Isto é, o mais forte nega a dimensão do direito ao mais fraco ou ainda a outro forte.
Isto é o que se deve levar em conta. Trata-se da única instância que decide. em
último termo, se queremos ou não adotar uma posição moral em sentido estrito.
T: Talvez seja assim. Mas pense, por favor, que não somos pessoas
solitárias. Afirmamos o aspecto social e nos limitamos a ele. Somente neste
ponto, rejeitamos a questão do porquê.
O velho perdeu a compostura e começou a agitar o punho.
I: Exatamente como o guarda de Auschwitz. Você não é, certamente, uma
pessoa solitária, mas algo muito pior. Como indivíduos vocês são uns covardes,
Mas unidos, inflamando-se mutuamente, se convertem no que, ontem, chamava o
―mal‖. O que, erroneamente, se julgava como algo próprio do indivíduo.
T: Isso soa agora demasiado demagógico. Resta ainda a questão de por
que devo aceitar sua posição.
I: Parece-me que existem boas razões de tipo pragmático. Há muitas
minorias que se expandem de dentro para fora, tal como as fronteiras, em nosso
vertiginoso mundo em mudança. Qualquer um pode, com a mesma facilidade,
pertencer tanto aos excluídos como à maioria. Esta é, precisamente, a razão para
ser do interesse de todos aceitar uma moral que não apenas prescreva um conjunto
de regras materiais para o comportamento mútuo, mas que também proíba impor
restrições, tanto de dentro, como de fora, aos que pensam ou vivem de outra
maneira. Pense, por último, sobre o que é que o obriga a opor-se a uma tal moral:
uma ―consciência de nós‖, como você disse. Mas por que ela é considerada tão
significativa? Trata-se realmente de algo dado de antemão, uma ―realidade
existente‖, para nos reportar à citação de Carl Schmitt? Ou, por acaso, ela não é
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 68
uma substancialização. extremada pelo nacionalismo, de um sentimento de grupo.
que corresponde, de fato, a uma necessidade psicológica real, mas não nesta
absolutização, da qual o traçado de limites nítidos que você propõe é um elemento
constitutivo. Neste ponto não posso fazer outra coisa a não ser convidar a uma
reflexão psicológica e sócio-psicológica sobre os motivos que tornam possível esta
exacerbação. Tais motivos pretendem ser a razão para opor o próprio grupo aos
outros, de um modo tal que os membros do grupo legitimem a perseguição aos
demais e alguns possam expor-se a um comportamento semelhante por parte dos
outros, quando estes não se encontram na segura consciência do poder. Isto
significa que a arbitrariedade não se instaura apenas no momento em que os
membros de um grupo crêem que podem tratar aos estranhos e aos próprios
membros que pareçam estranhos do modo que querem. mas no modo da invenção
do grupo mesmo enquanto um ―dado prévio essencial‖.
T: Não sei muito bem o que devo responder, e parece-me que
podemos terminar a conversa com isto. Em todo caso, vou abandonar a
máscara de representante.
I: Bem. Resumamos, então. Primeiro, não teria sentido querer refutar, de
algum modo, uma moral particularista. Não se pode provar que é impossível a
existência de algo ubíquo. Segundo, o que se pode mostrar é que a moral
particularista, ou bem abandona completamente a exigência de justificação forte,
ou bem estipula de modo arbitrário até onde ela vai. Isto significa que o sentido da
moral se reduz à tríade strawsoniana, mas sem a exigência de justificação. Isto
implica que se passa do modo normativo ao fático, das questões de direito às de
poder. Em terceiro lugar, posto que se pode, enquanto observador, entender a
motivação para uma ―moral‖ semelhante, é possível, enquanto interlocutor de um
particularista, primeiro, fazê-lo pensar se não teria boas razões para adotar o ponto
de vista universalista e, segundo, perguntar-lhe se suas razões para aderir a uma
moral particularista são assim tão evidentes. –
69 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO V
A luz se apagou. Tratava-se, aparentemente, de um curto- circuito, e
percebemos que as baratas invadiam o local. Deixamos o bar e fomos dar uma
volta na rua que conduzia à fronteira brasileira, afastando-nos do vilarejo.
Ficamos algum tempo em silêncio.
T: O que me preocupa é a sua observação sobre isto que você chamou de
mal. O que ele representa? Deve-se dizer: uma inclinação a perseguir em grupo
os estranhos? Perseguir parece ser algo especificamente moral. Uma pessoa
egoísta pode violentar, explorar, torturar outras, mas não persegui-las. Isto não é
válido conceitualmente. Somente se pode perseguir em comum, isto é, perseguir
é possível apenas com relação a normas. Há, naturalmente, um sentido mais
pueril do termo, no qual um homem pode perseguir alguém como pode perseguir
um animal, não importando com que intenções. Naturalmente, não me refiro a
isto agora. Não disse ―perseguir‖ simplesmente no sentido de seguir alguém, mas
no sentido de exercer sobre ele alguma coerção. Você, na verdade, refere-se
apenas ao particularista. De acordo com o que você disse antes sobre a
indignação como tendência à exclusão, isso não se remete ao fato de que um
perseguir e um ―sentir-se perseguido‖ pertencem, enquanto tais, à tríade
strawsoniana. Aqueles que são perseguidos por quem reage com indignação são
considerados ―outro‖ por serem estranhos, ou, antes, por serem imorais? Há
ainda o caso em que alguém se enfurece contra si mesmo com um sentimento de
culpa. Tudo isto não é, por assim dizer, inumano? Não devemos também avançar
um passo? Você assinalou que, no particularismo, um elemento da moral se
sustenta sem o outro, isto é, a tríade de Strawson sem o ―ser justificado‖. Não é
plausível que a moral universalista se apresente. inversamente, como ―ser
justificado‖ sem a tríade strawsoniana, sem sanção?
Ele riu.
I : Alguns, sem dúvida, pensam assim. Também neste ponto se tem
encontrado resistência na literatura secundária, como se a sanção fosse uma
preferência pessoal sua e não uma necessidade conceitual. O que, então, é
justificado, senão exigências recíprocas? E como você pode pensar tais
exigências sem sanção?
T: Um amigo me disse, há pouco, que se pode compreender o conceito
de dever (Soilens) sem recorrer a uma sanção; quem age moralmente assim age
por evidência.
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 70
I: É preciso perguntar, no entanto, de que evidência se trata. Vimos,
anteriormente, que se trata da evidência de que determinadas exigências estão
justificadas igual mente para todos. Não nego que também se possa falar de um
―ser justificado‖ moral independentemente de exigências - isto é, justamente,
independentemente de um dever. Aquilo que se justificaria assim seria o que é
desejável para todos igualmente, e, neste sentido. que é bom que todos ajam deste
modo. Em conexão com o imperativo categórico kantiano, pode-se dizer que ele é
justificado frente a todos que, em geral, sigam tal e tal regra do agir, porque
somente assim se alcança um resultado desejável para todos. É por isso que a
exigimos uns dos outros de modo recíproco. Quando se procede assim, é
desnecessário recorrer a uma palavra como ―bom‖ - observe, no entanto, que com
isso não é reintroduzida aquela modificação de ―bom‖, que, hoje cedo, assinalei
como dispensável (―um homem bom‖). Aqui ―bom‖ se coloca para um fim que é
desejável para todos; este conceito remete a um componente consequencialista. -
Mais uma vez: ou bem ―é evidente‖ que obedecer à regra ―H‖ do agir conduz a um
resultado do interesse de todos (em geral, desejável, ―bom‖, neste sentido); isto
talvez tenha sido o que seu amigo disse. Ou então ―é evidente‖, que é justificável,
face a cada um, que exijamos, uns dos outros, agir segundo a regra ―H‖. No
primeiro caso, o caráter de dever ou de exigência seria acrescido posteriormente.
No segundo, consideramos justificado o próprio exigir. Ainda temos tempo e
devemos esclarecer se realmente existe uma regra, cuja observação é um meio para
alcançar um resultado que, em geral, é desejável, como, por exemplo, pagar
impostos. A sua inobservância, contudo, não causa indignação. Neste sentido,
concordaria com você - ou com seu amigo -, que se pode dar à palavra ―moral‖ um
sentido independente de dever. A palavra ―dever‖ (Soilen) é, por sua vez, ambígua.
Podemos compreender o seu sentido dessa maneira: assim é desejável para todos.
Mas eu também parti da idéia, bem como você, nas Lições, de que, na moral,
compreendemos o dever (Sollen) como ―ter que‖ (Müssen), como uma necessidade
prática, que certamente não é pensável sem a sanção. Podemos também considerar
―a moral‖ num sentido enfraquecido - não podemos de modo algum sucumbir a
um dogmatismo verbal -, mas este conceito estaria fora da comparação com a
moral tradicionalista ou particularista, das quais a tríade strawsoniana é sempre um
elemento constitutivo.
T: Tenho a impressão de que aqui você subestima algo. É alarmante
sua indicação de que existe uma norma moral tal como a proibição à sonegação
de impostos (talvez se possa falar, em geral, de corrupção) que inclui um
princípio construído sobre um conceito de bem - do desejável, em geral -, mas
que não corresponde ao nosso conceito anterior de bem e que. contudo, deve
esclarecer a proibição da ação, que não se pode compreender a partir da tríade
justificada de Strawson. A isso teremos que retornar mais tarde. - E o que
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 71
acontece, quando se fala da pureza do coração, ou, como Tolstoi, da bondade
do coração‘? Aqui igualmente não se aplica a tríade strawsoniana,
I: Admiro sua capacidade de saltar de um pensamento a outro, que nada
tem a ver com o anterior. Agir, por bondade do coração, com certeza, não tem
relação com agir por evidência, como quer que se compreenda este último. Com
estas palavras é mencionada uma atitude. que consiste em se comportar
moralmente de maneira perfeita, mas não por uma motivação moral, antes, por
amor aos homens ou, como se pensa desde Francisco de Assis, por amor a todas as
criaturas. Este ocupa, por assim dizer, o lugar do egoísmo, individual ou coletivo.
Podemos deixar em aberto se existe algo semelhante. A questão é se esta não é
uma construção conceitual da moral. A dificuldade de se representar isto de uma
maneira psicologicamente realista está em que quem é motivado dessa maneira se
encontra, concretamente, dentro do limite da moral, e o expande ao máximo, mas
não age pela moral, ou porque é moralmente obrigado a fazê-lo. Antes, - esta é a
idéia - ele age de maneira espontânea. Uma tal pessoa não pensa moralmente; aqui
também é suprimida, de fato, a tríade strawsoniana, bem como o ―ser orientado‖
(Orientiertsein) pelo ―ser justificado‖, com o qual se anula, na verdade, a justiça.
Se acaso existem, tais santos pertencem a um outro mundo, não falam a língua
moral, e não podemos entender o fenômeno moral a partir deles, ainda que
representem em sua conduta um ideal da moral (certamente desprovido de justiça).
Retornando à sua pergunta inicial, creio que a moral, em sentido próprio, é um
antídoto. Ela não é simplesmente um outro modo de conduta, como a dos santos ou
dos anjos no céu. Antes, ela se situa - enquanto exigência - contra a arbitrariedade
do comportamento egoísta, isto é, uma conduta humana que depende, por sua
parte, da força motriz dos seus impulsos, que devem ser dominados. Na minha
opinião, Freud viu isto corretamente. Como se pode pensar que um homem
renuncie a uma parte de suas forças pulsionais sem compensá-las em um novo
nível, por sua vez, de maneira impulsiva? Mas também quando isto não está
correto, é sempre válido: quem não se indigna, não pensa moralmente. Na
indignação está manifestamente contido um momento de ódio, e na medida em que
este ódio converge e se vincula com o dos outros, ao mesmo tempo, que reclama
para si o direito - a arrogância moral -, dá origem àquela disposição para a
perseguição de que você falava antes. - Como desintoxicar-se agora desta
tendência, que devemos reconhecer como real? Certamente não por uma definição
insólita da moral, mas tampouco pela idéia da santidade. Como, então, esta
tendência se adequaria à moral, em sentido comum? Acho que a mesma
intersubjetividade fortalece, por um lado, o ódio na comunidade e, por outro lado,
opõe-se à arrogância. Ou melhor: não a mesma intersubjetividade, posto que ela
aparece na moral em uma dupla função. De um lado, as reivindicações são, por seu
sentido mesmo, comuns, compartilhadas - isto é o que conduz para uma tendência
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 72
à exclusão -, de outro, estas reivindicações se colocam para todos e, por isso,
necessitam de justificação frente a todos (frente a cada indivíduo). Pode-se
esclarecer isso dessa maneira: o primeiro aspecto se coloca para todos, em
conjunto; o segundo, para cada um, individualmente: todos e cada um pertencem
ao conjunto naturalmente de modo lógico, mas não psicológico. O segundo aspecto
- a necessidade de justificação frente a cada indivíduo -, contrapõe-se ao primeiro
(a reivindicação coletiva) e o restringe. Pode-se dizer também que, na
reivindicação coletiva, já está contida uma pretensão do ―ser justificado‖, mas que
esta reivindicação passa facilmente ao largo da pretensão de ser justificado desde a
perspectiva de cada um, e, por isso, deve ser detida por este último se não quer ser
exposta à objeção de arbitrariedade. Pode-se pensar em dois passos. O primeiro foi
dado há pouco, com o particularista: as reivindicações coletivas devem ser
limitadas materialmente de tal modo que possam ser justificadas frente a todos, isto
é, frente a cada um. Com isso, é suprimido todo conteúdo moral que contradiz uma
moral universalista, igualitária e liberal. Elas não apenas se excluem, mas a moral
particularista - a moral das massas - se converte, por sua vez, em objeto primário
da indignação moral. Mas, como você observou, não podemos nem queremos
perder a indignação e a tendência nela implícita de exclusão, porque deixaria de ter
sentido, para nós, dizer que consideramos um determinado modo de conduta
imoral (inumano, como você disse antes).
T: Ou perderia seu sentido emocional?
I: Você pode dizer isso, mas não sei o que significa a palavra ―imoral‖,
quando você subtrai o componente emocional. Vejamos agora o segundo passo.
Aquela tensão entre estes dois movimentos contrapostos se repete no nível da
própria moral universalista. Também quem julga moralmente de modo
universalista se indigna; também ele se inclina para a arrogância. Este já era
justamente o seu problema. Este se torna inofensivo quando aquele que julga
moralmente se torna consciente de que seu juízo é emitido desde uma perspectiva.
Por exemplo, dois agrupamentos ou duas pessoas travam uma discussão moral.
Ambos se acham no nível universalista. Um está indignado com o outro, ou,
formulado de um modo mais fraco, um reprova o outro. Nós nos inclinamos,
primeiro, a absolutizar a nossa própria perspectiva e apenas podemos relativizá-la
graças à perspectiva do outro (suas objeções, sua indignação). A tolerância não é
algo que cai do céu ou de que dispomos em algum canto oculto, mas ela se
constitui unicamente numa disputa em que um e outro se indignam.
A esta altura, não estávamos muito distantes da fronteira e
detivemos o passo.
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 73
I: Deve ter sido uma noite como esta que levou Kant a pronunciar sua
célebre frase: ―Duas coisas preenchem o ânimo com admiração e respeito
sempre novos e crescentes, tanto mais freqüente e contínua é a reflexão sobre
elas: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim‖ (Werke IV, 161). O céu
estrelado se manteve firme: frente à intemporalidade da natureza - que vivencia
a irrupção de cada dia como se fosse o primeiro -, e a incomensurabilidade do
universo, fazendo com que deixemos de nos centrar em nossas preocupações
diárias e de nossa geração, familiarizando-nos com a morte. Mas há ainda ―em
nosso interior‖ algo que nos encha de ―admiração‖?
T: Apenas a moral. A capacidade para viver em uma comunidade
normativa é algo impressionante, mas também angustiante. Do mesmo modo
como se presta para limitar nossa crueldade, pode, contudo, multiplicá-la. ―Nós
sabemos, contudo‖, disse Brecht, em seu poema Aos Póstu, nos, ―que também
o ódio contra a vilania desfigura o rosto!‖.
I: Em todo o caso, Brecht parecia sustentar esta descrição rigorosa da
atitude moral, apenas porque a envolvia numa expectativa messiânica: ―Vocês, no
entanto‖, disse ele, no fim do poema, ―quando chegar o momento em que o
homem seja o auxílio do homem...― ―Quando chegar o momento‖: isto significa
que retornaremos ao paraíso - repleto de anjos, como você disse - da bondade do
coração. Perspectiva grotesca, você não acha? Na verdade, a nostalgia do paraíso é,
sem dúvida, algo compreensível. Vocês, judeus, nos meteram, com ela, em uma
boa enrascada. - E, contudo, a capacidade para viver em uma comunidade
normativa na qual se ingressa, espontaneamente, por assim dizer, implica algo que
acho espantoso: a idéia da simetria, da igualdade, não apenas nas esferas celestes,
mas aqui sobre a terra entre nós, os homens. O que sempre achei admirável é que a
perspectiva da simetria proceda necessariamente da comunidade normativa, e que
esta seja a única dimensão intersubjetiva em que isto acontece, As relações
sentimentais de amor e amizade não são, em si mesmas, simétricas - não se pode
confundir reciprocidade e simetria -, e, no entanto - e isto talvez seja o mais
importante -, a simetria é necessária. Em seu sentido, o amor pode ser mais forte ou
mais fraco. Quando duas pessoas se amam, o sentimento de uma é mais forte que o
da outra, e isto é, para ambas, intolerável. Que o amor seja - não digo perfeito -
tolerável, em geral, apenas quando simétrico, é evidentemente um ideal moral. Na
determinação da relação entre amor e moral se cometem dois erros: alguns
concebem a moral como uma extensão do amor. Idéia absurda quando se considera
que a moral é uma relação normativa, isto é, uma forma de reconhecimento que é
necessário diferenciar claramente do amor. Outros consideram a moral apenas em
contextos sociais que excluem o amor. A verdade, ao contrário, é que o amor
necessita da moral para não ser uma relação de poder. Posso ilustrar isto com uma
história inocente. Recentemente, perguntei a um grupo de estudantes de doze anos
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 74
se eles e seus irmãos se sentiam igualmente amados por seus pais. A reação foi
afirmativa, de modo unânime. Podia-se imediatamente perceber o temor que
produzia o pensamento contrário. Afirmam também, decididamente, que os pais
são perfeitamente justos em seu amor. Naturalmente, sabemos que isto não apenas
é impossível objetivamente, mas que tampouco é assim vivido subjetivamente
pelas crianças. Pode-se considerar a situação dos irmãos como um berço da moral.
Pela moral e, naturalmente, pelo interesse próprio, que conduz à moral, as crianças
exigem justiça, mesmo ali onde não se pode tê-la (na relação sentimental), e a
desejam tão ardentemente, que o desejo toma o lugar da realidade que o contradiz.
Naturalmente, os pais que refletem se esforçam por amar simetricamente, mas, sem
dúvida, eles não podem fazê-lo.
T: Por que não?
I: Porque, então, o sentimento perderia a espontaneidade, que é
inerente à sua essência. Aqui se mostra claramente que a idéia da simetria tem
uma outra proveniência. Também os cônjuges desejam que seu amor seja
equilibrado de modo recíproco, e, como no caso dos filhos, este desejo pode ser
realizado por razões de mera probabilidade - como no caso em que duas
pessoas têm, por acaso, a mesma altura -, mas com isso não podemos fazer
muito. Nossa emotividade é influenciada de modo limitado pelas exigências
morais. Acabei me desviando do tema, desculpe. Só quero dizer que a idéia da
simetria, que nós alcançamos, na interpessoalidade, por meio da moral apenas,
parece ser tão essencial para a idéia de uma convivência amistosa, que não
gostaríamos de pensar nem mesmo em nossas relações íntimas sem ela.
Contudo, esta não é algo que dependa apenas de nós.
Ele disse isso em voz baixa, e agora parecia cansado (não pude deixar
de me lembrar de seus dezesseis cães de outrora). Mas quando decidimos
voltar, parecia ter recobrado suas forças.
Depois de algum tempo, eu lhe falei.
T: A questão que deixamos em aberto, no bar, é, primeiro, o conceito
de costume (Sitten) e, segundo, como a justificação tradicionalista se distingue
da particularista, pois ambas aproximaram-se bastante.
I: Você está certo, com respeito ao costume. Ainda falta alguma coisa para
resolver, em especial, a maneira como se deve entendê-lo, em uma moral
universalista. Há pouco abordei o problema da moral particularista, a idéia da
moralidade, segundo a qual a regra moral é compreendida a partir dos costumes. É
plausível que, de acordo com o modo como se concebem as regras morais, também
os costumes sejam entendidos de modo diverso. Não é necessário pressupor um
conceito unitário; a expressão ―costumes‖, isto é, ―convenções‖, já indica uma
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 75
ambigüidade. Pode-se remeter aqui ao conceito de Wittgenstein de ―semelhança
familiar‖. Mas, por isto, não se deveria deixar de tentar estabelecer as distinções
conceituais necessárias. Em uma situação como esta, em que esta expressão é, em
parte, encoberta pela expressão da regra moral, constitui-se uma obrigação fazer as
ditas distinções. Pode-se definir as convenções ou os costumes, como você fez em
seu livro, dizendo que se trata de regras que de fato temos, mas que não estão
justificadas de nenhuma outra maneira.
T: Nas Lições (p. 47, do original alemão), formulei o seguinte
exemplo: ―como reagiriam aqui se eu entrasse nu?‖. À pergunta sobre por que
se produziu a indignação, se responderia simplesmente: ―porque este não é o
costume entre nós‖, e não ―porque isto é ruim‖.
I: Se as palavras ―bom/ruim‖, como procurei demonstrar, são plausíveis
para a compreensão da moral, mas não imprescindíveis, pode-se dizer, para
delimitar a noção, em lugar de ―não, porque é ruim‖, simplesmente ―não, por
qualquer outra razão, seja porque uma autoridade superior o tenha proibido, seja
porque pode prejudicar alguém‖. A plurivocidade, de que falava há pouco, se
depreende de nossa consideração da moral particularista, que tende a entender toda
regra moral do mesmo modo que os costumes assim definidos. É plausível que o
que chamamos costume se confunda com as regras morais, porque ambos são
considerados como justificados de uma mesma maneira, a saber, por recurso à
autoridade que formula a norma. A distinção, como você a formulou, dá- se
unicamente na moral universalista. E já conseqüência de um esclarecimento.
T: De um esclarecimento do conceito de justificação. Fica ainda em
aberto a pergunta sobre como podemos compreender o fato de que nos
indignemos contra a violação das regras morais, quando estas são consideradas
convencionais, isto é, quando se diferenciam nitidamente da moralidade.
I: Fica claro que os costumes deixariam de existir se sua violação não
desencadeasse uma reação de indignação. Como se pode distinguir esta
indignação da indignação moral, e como é possível, apesar disso, a univocidade
do conceito? Retorno aqui a distinção que você faz com respeito ao
cumprimento (Lições sobre Ética, p. 257, no original): de um lado, a ação
simbólica, de outro, o que ela representa. Esta distinção desaparece nas ações
imorais; nelas o que indigna é o próprio conteúdo. A diferença extingue-se no
interior da moral tradicionalista ou particularista. Aqui a indignação com
respeito aos costumes alcança a própria ação, porque ela pertence ao código da
mesma maneira que as ações prescritas pelas normas restantes. A moral
universalista neutraliza o valor moral próprio dos modos de conduta que não
ofendem a ninguém - exceto ao sentimento de decoro -, na medida em que
permite pôr em relevo seu caráter simbólico.
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 76
T: Até aqui, muito bem. A ação exigida convencionalmente não é
respeitada enquanto tal, quando ela é considerada convencional, mas
unicamente devido ao fato de que sua violação expressa uma falta de respeito,
seja com referência à sociedade, em geral, seja com relação a esta ou aquela
comunidade determinada. Mas devemos dizer, agora, que não respeitar a
sociedade é algo imoral, em sentido universalista?
I: Por que não? Se me hospedo em algum lugar e, conscientemente,
infrinjo os costumes locais, nisto se expressa uma desvalorização desta
comunidade. Existe um direito humano que exige respeitar cada comunidade
em sua identidade normativa, na medida em que ela não cause danos a ninguém
com suas normas: é um direito igual de ser respeitado em sua desigualdade.
T: E o que acontece quando os costumes, como ocorre de maneira
crescente, hoje em dia, não pertencem a um determinado grupo, mas são
universais?
I: Você está utilizando a palavra ―universal‖ em um outro sentido.
Quando falamos de uma moral universalista, não queremos dizer que ela esteja
universalmente estendida, mas que suas normas são normas frente a qualquer
um. Pode-se dizer também implicitamente que se espera o reconhecimento
normativo de todas estas normas. Mas quando existem normas, que por seu
sentido são particularistas, sua ampliação universal seria meramente um acaso
empírico que poderia ser modificado a qualquer momento.
Durante algum tempo, caminhamos em silêncio.
T: Algumas vezes, perguntam-me se ainda sou um filósofo analítico.
Nessas ocasiões, respondo que ainda não estou muito certo em que exatamente
consiste meu método na filosofia moral. Quando penso sobre o que dissemos
em nossa conversa, dou-me conta de que se trata. exclusivamente, de
esclarecimentos conceituais, isto é, de filosofia analítica. Trata-se, certamente,
de esclarecimentos terminológicos que perseguem a finalidade de facilitar,
mediante a compreensão de suas implicações, decisões morais fundamentais
tais como as que se apresentam entre o particularismo e o universalismo.
I: Correto. As posturas morais repousam sempre em distinções, que, na
verdade, podem ser efetuadas em virtude de uma consciência mais ou menos clara
sobre o que se deve decidir, e não de uma maneira simplesmente arbitrária. A
clareza é a única coisa que pode ser designada aqui como base racional. Em todo
caso, é claro, a decisão a favor de uma comunidade moral, definida de tal ou tal
modo, não é mais racional que a decisão contrária a ela. Trata-se de decisões e não
de um dado prévio, quer seja um a priori antropológico (ou ―transcendental‖) quer
algo dado empiricamente. Causa estranheza a psicologia da moral que acredita,
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 77
seguindo Kohlberg, poder contribuir na determinação da moral ―correta‖ colhendo
dados acerca das intuições morais. O próprio Kohlberg não o afirma diretamente;
seu problema era o desenvolvimento da intuição moral em crianças e jovens. Mas
nele, como em Piaget, encontramos a idéia de que o desenvolvimento pode
enunciar algo sobre a intuição ―correta‖. Quando se esclarece em que se funda a
intuição moral, isto não apenas é uma genetic fallacy (falácia genética), mas um
pensamento fantasioso. A suposição de que, na história humana, tal
desenvolvimento ocorreu seguindo as mesmas etapas, sugere, finalmente, a
concepção de que nossa espécie tem um aparato moral a sua disposição. Se
admitimos que efetivamente um tal aparato existe, como é possível que dele se siga
alguma coisa sobre sua ―correção‖? Ou, acaso, ―correção‖ quer apenas dizer que
está efetivamente disponível? Em nossa reflexão analítica sobre a moral, a
experiência desempenha o mesmo papel que tem, em geral, na filosofia da
linguagem. Os filósofos partem sempre de uma determinada suposição empírica,
por exemplo, que se pode distinguir tais ou tais tipos distintos de normas sociais,
ou tais e tais estruturas linguísticas. Nelas está contida sempre uma certa
ingenuidade empírica. Um etnólogo pode comprovar que existem outros tipos, ou
que, em alguma parte, existe algo como uma moral que não entra em nenhuma de
nossas diferenciações disponíveis, do mesmo modo como poderia mostrar que
existem outras estruturas linguísticas, além daquelas que constatamos
ingenuamente em nosso grupo linguístico. Podemo-nos sentar tranquilamente a
esperar por tais comprovações e teremos, então, que incorporá-las. Já a situação
hermenêutica é, antes, aquela em que nos encontramos. É certo que isto gera. como
conseqüência, um monstro conceitual: algo sumamente indiferenciado como nossa
expressão ―a‖ moral tradicionalista. Quanto mais distantes da nossa própria
concepção sejam as outras, tanto mais indeterminada será a nossa idéia sobre elas,
mas também será, na maioria dos casos, menos relevante. Trata-se de uma
debilidade inevitável da reflexão filosófica e, além do mais, passível de correção
quando a reconhecemos. Esclarecimentos conceituais podem sempre ser
empreendidos sob condições empíricas já dadas. Ninguém pode fazer tudo e, na
medida em que admitimos que nosso saber empírico é limitado, temos o direito de
nos concentrar no esclarecimento do que se encontra dentro dos limites de nosso
saber, ao invés de ampliar o nosso conhecimento. Mas agora me recordo que não
nos ocupamos da segunda questão que foi colocada, isto é, a que se refere à relação
da moral particularista e da universalista.
T: O problema consiste em estabelecer a distinção entre uma moral
moderna particularista e uma tradicionalista. Como foi mostrado, ambas se
correspondem por seu conteúdo. Elas se distinguem, contudo, porque a moral
particularista nega uma justificação que exceda a opinião normativa, enquanto
que a tradicionalista oferece uma justificação semelhante, embora estabelecida
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 78
pela autoridade na qual se crê. Se uma moral religiosa é injusta - no sentido de
nosso conceito mais forte de justiça -, isto é, se não é justificável com
referência aos interesses de todos os indivíduos igualmente, seu conteúdo pode
corresponder ao de uma moral particularista, mas, neste caso, ela se assegura
contra toda crítica, até onde vai a fé, mediante a justificação autoritária
sustentada pela própria fé. A moral particularista, ao contrário, sem uma
projeção transcendental semelhante, está exposta à objeção de arbitrariedade.
I: Sim. A moral particularista está, por esta razão, sempre aberta a uma
dinâmica peculiar. Porque não pode invocar algo superior, ela deve recorrer à
violência (ou a uma violência mais manifesta). e isto conduz a que sua injustiça
se torne ainda mais notória e que perca sua força de adesão. As morais
particularistas são efêmeras.
T: O que me preocupa é por que, então, achamos mais fácil nos
indignarmos contra uma moral particularista, enquanto que, ao contrário,
experimentamos um temor peculiar frente a uma moral fundamentalista, ainda
que esta seja igualmente injusta e mais dura. Se você tivesse conversado no
bar, não com um particularista moderno, mas com um crente, o diálogo seria
mais difícil. O particularista recusa a pergunta sobre como são justificados os
pontos de vista normativos de sua coletividade. O crente, ao contrário, a
responderia de maneira afirmativa, e só o que lhe poderíamos replicar é que
ele, de sua parte, não poderia convencer a outros; algo que, por exemplo, o
particularista não quer fazer. Não se poderia induzir um tal interlocutor a
admitir que sua posição é, em última instância, arbitrária. Ele continuamente se
remeteria a uma instância superior e. de lá, recusaria o recurso aos interesses,
tanto em sentido universalista como particularista. Assim se produz uma
relação triangular peculiar entre a justificação religiosa, a universalista e o
particularismo. Tanto o universalista quanto o particularista têm um discurso
comum, na medida em que nenhum deles reconhece uma instância superior. Ao
contrário, o particularista e o tradicionalista podem concordar materialmente.
Tanto o tradicionalista quanto o universalista falam de justificação e justiça em
um sentido forte, mas o compreendem de modo distinto.
I: Certamente. E aí se encontra a razão por que o diálogo com um
tradicionalista convicto acaba muito rapidamente, e aqui está também o motivo por
que, como você acaba de dizer, nos sentimos inibidos em nos indignarmos frente a
uma moral tradicionalista, ainda que seu conteúdo cause tanta indignação quanto o
do particularista. Nós nos sentimos como intrusos em um outro mundo. A
discussão entre um universalista e um tradicionalista desemboca, com facilidade,
na situação em que o segundo reprova o primeiro pela transgressão de seus
próprios princípios liberais, mas, assim que o faz, ele adota, a contragosto, uma de
nossas premissas. Para o universalista isto é problemático apenas na prática (pois,
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 79
onde está escrito que devemos poder convencer a quem se encapsula em sua
argumentação?) - um problema de peso, na verdade: como tratamos os homens que
têm crenças morais distintas? Um problema que não se apresenta ao particularista,
porque ele não considera seu próprio ponto de vista como fundado
normativamente. Erraríamos ao superestimar este limite com o qual o
universalismo é enfrentado na discussão. Seria particularmente errôneo caracterizar
o universalismo, como ocorre freqüentemente, como um provincialismo mais
amplo. Tem esta impressão quem considera o universalismo como um fenômeno
cultural especificamente ―ocidental‖, que se vincula imediatamente ao
cristianismo, isto é, a outra fé tradicionalista. Porque a moral moderna se
desenvolveu, primeiro, no âmbito cristão, não se segue que tenha determinadas
premissas Cristãs, ao contrário, indica que o cristianismo possui um núcleo
universalista relativamente forte. Além do que, o universalismo liberal procede
menos do cristianismo que das guerras religiosas que se desenrolaram por trás da
divisão do cristianismo. Mas isto remete, por sua vez, a uma vantagem que o
universalismo liberal apresenta frente a todos os outros tradicionalismos, do
mesmo modo como o fazia antes na Europa. Com isso retornamos à questão sobre
o caráter provinciano do universalismo. Do simples fato de que a discussão se
encontra em um beco sem saída, não se segue que o universalismo não possua algo
característico. Sua peculiaridade consiste em que, enquanto o particularismo assim
como o tradicionalismo estão encapsulados dentro de si mesmos, o universalismo
busca e tem que buscar o diálogo com as outras interpretações. e o liberalismo tem
algo a oferecer que todos os homens possam aceitar sem ter que renunciar a sua fé.
sob a condição de que estejam dispostos a não construir a moral sobre ela. A
concepção universalista é aquela que todos os homens podem admitir como justa,
se não colocam, na sua aceitação, nenhuma condição particular de fé. Designar isto
como um provincialismo ampliado se assemelha a caracterizar, tal como você
retrucou ao particularista, a recusa da arbitrariedade como mais uma opção
arbitrária. Chegar a um acordo em torno da justiça, em sentido intersubjetivo, isto
é, em torno da justiça que nem recorre a uma autoridade nem se reduz a padrões
supostamente não-fundamentáveis, é algo tão independente da cultura como falar
sobre lógica. A pergunta pedagógica sobre o modo como a dimensão da justiça
pode ser descoberta argumentativamente em culturas onde está oculta, é uma
questão que não pode ser respondida abstratamente, mas apenas em conexão com
as crenças culturais em questão. Quando discutimos, por exemplo, com um cristão,
podemos perguntar se, em sua opinião, é bom o que Deus ordena, ou se Deus
ordena o que é bom. Se ele admite o segundo, encontra-se no mesmo nível que
nós. Se não se conhecem as pressuposições correspondentes, não se pode dizer
antecipadamente se, nesta forma especial, a pergunta tem sentido também frente a
outros crentes. Mas parece um fato que, no mundo atual, cresce a necessidade de
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 80
pôr-se em acordo em torno da moral e dos direitos humanos, para além das
fronteiras da fé. Tal necessidade só pode ser satisfeita na base não específica do
universalismo, e não, como se pode observar, por exemplo, na atual discussão
intercultural sobre os direitos humanos, pondo em relação crenças culturalmente
específicas ―similares‖ e deixando, em conseqüência, todo o problema sem
resolução. É possível esclarecer que existe uma tal base cultural não específica, e
que ela é única.
Chegamos, então, ao nosso hotel.
T: Ainda nos resta, contudo, falar do problema da corrupção. Quase o
esqueci. Se, como você disse anteriormente, existem regras morais que não podem
ser integradas a nossa abordagem, nos encontraremos em uma situação ridícula.
Por isso, proponho ficarmos aqui e tomarmos uma caipirinha no bar do hotel.
I Obrigado. Aceito com gosto a caipirinha, e duas serão ainda melhor
que uma. Mas a corrupção é um problema muito sério, principalmente se você
acha que poderia colocar em questão toda a nossa abordagem. Mas não agora,
que já é tarde. Se você quiser, podemos adiar a nossa partida por algumas horas
e nos encontrarmos amanhã cedo.
81 Coleção Filosofia - 133
CAPÍTULO VI
Nós nos encontramos, na manhã seguinte, no saguão do hotel, e fomos
ao local do porto, em que, antes, o café fora servido.
T: Ocorre-me - disse eu, quando sentamos - que também adiamos a
questão da motivação moral que deveria se vincular à questão da corrupção.
Muitos julgam que o problema da corrupção reside essencialmente em uma
decadência generalizada da motivação moral.
I: Duvido que seja assim e acredito, antes, que se trate de um
descolamento que se considera importante para a moral. Que a corrupção,
contudo, tenha algo a ver com a motivação é algo de que certamente não se
duvida, Se você quiser, começaremos com uma compreensão do problema da
motivação em geral.
T: Muito bem. No meu livro, distingui duas questões da motivação
(Lições sobre Etica, p. 91, no original). A primeira é a mais comum: o que
motiva o indivíduo a proceder moralmente? A segunda é a mais fundamental, e
que comumente não é colocada: o que me motiva - e depois da sua explicação
de ontem cedo, parecia-me claro que sempre devemos formular esta pergunta
dessa maneira: o que motiva a mim e aos outros - a nos considerarmos como
integrantes de uma comunidade moral, isto é, como integrantes justamente
desta comunidade moral, ou seja, com este conjunto de regras morais?
I: Na verdade, você nem sempre distingue estas duas perguntas (Lições
sobre Ética, ver p. 207, no original). Acho que elas têm de ser claramente
separadas - embora a primeira não seja independente da segunda -, e que isto pode
ser importante justamente para o problema da corrupção. Se há razão (Grund) para
que o problema da corrupção seja percebido como um fenômeno moral marginal -
isto é, se não compreendemos a comunidade moral, em seu cerne. desta maneira) -,
então é evidente que isso tenha efeitos retroativos sobre a motivação do indivíduo.
Devemos nos entender, contudo, sobre a motivação singular enquanto tal, como
uma questão a que você chamou primeira. Embora você a tenha abordado em
outras partes do seu livro, ela, em princípio, é deixada em aberto, provocando
alguma confusão em seus leitores. Naturalmente, a pergunta pela motivação moral
é, em parte, psicológica: como e por qual razão um indivíduo pesa sua motivação
moral em relação aos seus outros interesses etc.? Mas ela é também, em princípio,
uma questão filosófica: justamente para uma abordagem instrumental, como eu a
defendi ontem de manhã. Coloca-se em questão se o indivíduo se considera,
apenas por razões instrumentais, como integrante da comunidade moral. Se ele se
compreende como tal, pode haver razões para. no plano que você chamou de
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 82
segundo, não apenas julgar que ―o agir corretamente é justificado desde a
perspectiva de todos, igualmente‖ -, não apenas julgar assim, mas também ter
motivos para proceder segundo este juízo, isto é, para concretamente seguir as
regras que este segundo nível prescreve, em lugar de seu interesse próprio? Para
isso deve haver um fundamento na essência de uma comunidade moral, caso
contrário seria incompreensível. A noção kantiana de uma motivação moral (―da
razão pura‖) é indiscutível. E uma questão psicológica — isto é: como alguém que,
primeiramente, reconhece a voz da moral, a pondera em relação aos seus outros
interesses. Mas a questão filosófica é: como se compreende, em geral, que a voz
moral possa ter um peso motivacional para nós? Ou, formulado de outra maneira: o
que nos motiva a ser maximizadores limitados da utilidade?
T: Correto. Este é o lugar em que se deve mostrar uma motivação não-
instrumental, sobre a base de uma introdução instrumental da moral. Você
respondeu a esta questão filosófica, ontem pela manhã, de maneira imprecisa,
ao assinalar a figura do franco-atirador. E a questão, então, é o que motiva
alguém a não ser um franco-atirador?
I: O franco-atirador, como eu o defini ontem pela manhã, - isto é, uma
pessoa que simplesmente simula tanto o sentimento de culpa como a
indignação -, é um exagero, uma figura irreal. Proponho prescindirmos dele e o
caracterizarmos como ele foi usualmente considerado na filosofia moral: como
Giges, na República de Platão, isto é, de tal modo que, sem se importar com
quais sejam seus sentimentos morais, procede como um maximizador máximo
de utilidade, quando acredita poder escapar sem ser reconhecido. Podemos
supor que todos nos indignamos quando acreditamos que alguém age
imoralmente e que o censuramos, quer o afeto seja forte ou fraco. Fica
implícito, então, que temos um sentimento negativo correspondente, forte ou
fraco, quando nós mesmos agimos dessa maneira. Se temos um sentimento
fraco, isto é, se, em conseqüência, apenas o assinalamos com um peso diminuto
em relação aos nossos outros interesses, nos tornamos franco-atiradores, isto é,
aquela figura patológica que não possui, de modo geral, este sentimento. A
pergunta pela motivação moral seria, então, a pergunta: o que nos motiva -
quando julgamos algo imoral - a não agir assim?
T: Se o compreendi bem, você quer assimilar, sem deixar margem para
dúvidas, o problema da motivação ao sentimento moral. Nisso está uma recusa da
concepção - já implícita nas palavras de meu amigo -, segundo a qual o motivo
(Motiv) é simplesmente a evidência. Algo assim pode ser imaginado, em teoria, da
seguinte maneira: alguém julga algo imoral - como infundado, em sentido moral -,
e a evidência da correção deste juízo pode já ser o motivo para agir assim.
I: Isto corresponde a uma noção tradicional, de que a moral contrapõe-
se ao imoral, como a razão (Vernunft), à sensibilidade (Sinnlichkeit). Uma
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 83
noção, que Hume, segundo penso, refutou definitivamente. Apenas os
sentimentos são motivos para o agir, e trata-se, no esclarecimento das
motivações morais, de identificar adequadamente o sentimento correspondente.
T: Certo. Não entendo como, nesta questão, se possa ser outra coisa
além de humano. Até Kant admite implicitamente a correção desta concepção,
posto que estava convencido de que a motivação moral, quando ela não pode
ser entendida como relativa a sentimentos, deve ser compreendida como algo
supra-sensível (ver Lições sobre Ética, p. 157 ss., no original).
I: O que, então, motiva um indivíduo a atribuir um peso à sua voz
moral, no repertório de suas motivações? A única crítica que faço à sua
exposição da resposta que Adam Smith dá a esta pergunta (Lições sobre Ética,
p. 310-314, no original) é que você deve percebê-la de maneira oposta. Em
minha opinião, contudo, Adam Smith pressupõe como um fato antropológico (e
o que se pode objetar contra isso?) que os homens, em primeiro lugar, são
amados, e, em segundo, também querem ser dignos de ser amados, mas que o
mesmo vale para o par ―ser apreciado‖ (Geschätztwerden) e ―ser digno de
apreço‖ (Schätzenswerten), que, por sua vez, é particularmente válido para os
casos morais correspondentes. Apenas o que causa dificuldades aqui é a
passagem crucial do ―querer ser apreciado‖ para o ―querer ser digno de
apreço‖, que, na verdade, Aristóteles também pressupõe como uma
autocompreensão (Ética a Nicômaco, 1095b, 26 - 30): aqueles a quem importa
a glória são igualmente afetados pela aprovação dos que são considerados aptos
a julgar, e isto pode apenas ter o sentido de receber a confirmação de que se é
bom. Como Aristóteles formulou, o ―ser bom‖ obtém imediatamente uma
posição independente face ao ―ser apreciado‖, e, por esta razão, o seu ―ser
fundado‖ (Fundiertsein) intersubjetivo cinde-se estruturalmente no ―ser
apreciado‖. O conceito de ―bem‖ paira. então, no ar. Somente se pode ir até
aqui. Mas a observação de Aristóteles de que não se trata de qualquer aplauso,
mas antes do aplauso das pessoas aptas para julgar - não de todos, mas dos
―bons‖ - inclui o essencial. Apreciar — ―ter por bom‖ (Fürguthalten) -, é
certamente algo distinto de ―achar agradável‖ (Angenehm-Finden), porque
inclui uma exigência objetiva. Esta é a razão por que, ainda que sejamos de fato
considerados como bons, podemos ter a consciência de não o sermos, e
inversamente - nos assuntos morais, como em todos os outros - e, portanto,
resulta aqui - pensemos inicialmente em um artista - a distinção entre
simplesmente querer agradar e querer fazer algo que corresponda à própria
exigência, e que significa, então, algo que também agradaria aos outros,
quando estes fossem competentes. Esta mesma distinção é produzida, agora, na
moral. Ontem indiquei a distinção de Kohlberg entre a moral convencional e a
moral autônoma. A consciência convencional procede da consciência
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 84
autônoma como o ―querer ser apreciado‖ procede do ―querer ser digno de
apreço‖, isto é, trata-se de uma autonomia no contexto do sentimento
intersubjetivo. Seria absurdo separar o sentimento particular e autônomo de
culpa, ou do menosprezo de si, da referência intersubjetiva à indignação e à
censura. A autonomia consiste em que o indivíduo não se deixa determinar pela
censura de fato, mas por aquilo que ele considera digno de censura. Quem, em
geral, é consciente, mesmo que ainda não tenha adquirido autonomia, já
efetuou uma primeira internalização, isto é, o que o motiva não é mais a
censura de fato, mas saber que a ação é censurável, ainda que, para uma tal
ação, os padrões convencionais sejam determinantes. E falamos de uma
consciência moral autônoma, em segundo lugar, quando o indivíduo chega a
ser independente também em seu juízo. Ainda neste caso, o sentimento de
culpa é correlato da indignação e do menosprezo intersubjetivos: sentir-se
culpado de maneira autônoma quer dizer considerar a própria ação como
indigna e desprezível, mesmo que ninguém mais se indigne além de nós
mesmos, não apenas porque os outros não o vêem, mas também porque se
considera que os outros não julgam corretamente.
T: O importante. disse eu, parece-me ser que, primeiro, é
psicologicamente evidente que, para um homem, o ―ser apreciado‖ pode se
tornar mais importante que seus interesses restantes, e, segundo, que o apreço e
o ―ser apreciado‖ se encontram em uma tensão entre um primeiro nível
superficial e uma dimensão mais profunda. Pelo jogo recíproco entre juízos e
sentimentos morais compartilhados, como vimos, ontem pela manhã, se
alcança o segundo nível do juízo, que, agora, por via do ―ser apreciado‖, se
converte em um segundo nível da motivação, e quase podemos falar de um
terceiro nível do juízo e da motivação, quando refletimos sobre a distinção
entre a moral autônoma e a moral convencional.
I: Talvez seja um terceiro nível da motivação, disse ele, mas dificilmente
um terceiro nível do juízo, posto que o segundo nível é precisamente o nível do
juízo, que, por si mesmo, remete ao que você chama de terceiro.
T: Não queremos discutir sobre os números. Mas se você pensar na
nossa discussão sobre o conceito de justiça, há no segundo nível da motivação -
e, portanto, no primeiro nível do juízo - uma maneira de justificar algo como
justo, isto é, no recurso à justiça convencional previamente dada, que se
distingue nitidamente daquela outra em que se pergunta se podemos justificar
intersubjetivamente frente a todos uma distribuição de direitos, e quem se situa
neste nível do juízo, se este resulta decisivo para a ação, também se coloca
motivacionalmente em um outro nível.
Diálogo em Letícia
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I: Tenho a impressão de que nos desviamos do tema. A pergunta inicial
era a seguinte: como podem adquirir peso para nós as dimensões da indignação
e da culpa?
T: Por que você diz que nos desviamos? Certamente não o fizemos
quando nos referimos aos conceitos de ―ser apreciado‖ e de ―querer ser digno
de apreço‖, de Adam Smith. Precisamos apenas substituir a expressão de
apreço pela de menosprezo, e esta, finalmente, pela de desprezo. Seguramente
estes conceitos negativos da moral são mais importantes que os positivos.
Quem segue sua consciência autônoma, pode não querer desprezar a si próprio.
Esta é a sua motivação. O conceito de menosprezo pertence de modo manifesto
ao conceito de indignação; só que agora já não podemos prescindir da palavra
―bom‖ (no sentido de ―bom caráter‖). Você, em troca. não tem nada a objetar.
Apenas não queria partir de uma construção sistemática. A indignação
corresponde, antes, ao sentimento de culpa; o menosprezo, à vergonha. A
resposta à questão de que você partiu parece ser, então, que a indignação do
outro - em meu terceiro nível, a possível indignação daqueles aptos a julgar -
afeta uma pessoa na medida em que ganha importância frente aos demais
interesses o não ser menosprezada e também o não se sentir menosprezada.
I: Bem formulado. Agora foi incorporado um segundo nível do juízo - e,
para o meu pesar, também um terceiro - que a introdução instrumentalista da moral
não colocava em questão. É esse segundo nível que torna compreensível uma
motivação não-instrumental, que decorre unicamente da dimensão - introduzida
instrumentalmente - do juízo normativo igualitário e que naturalmente, como você
acaba de fazer, pode ser assinalado como um ―interesse‖.
T: E agora eu queria muito saber por que, ontem à tarde, você disse (p.
104, do original alemão) ser pensável que o integrante de uma comunidade moral
possa experimentar o sentimento de culpa e a indignação - e isto quer dizer,
naturalmente, aprovar e censurar -, apenas com respeito a uma parte de suas
normas, e que não o façam, contudo, com relação a outra parte, que consideram
como igualmente justificada. Este é justamente o ponto a que você queria chegar,
quando disse, há pouco, que a motivação para considerar-se como membro de uma
comunidade moral - com um conjunto determinado de normas - tem um efeito
retroativo sobre o indivíduo, para que este esteja mais, menos ou até mesmo nada
motivado, para sentir culpa, quando viola determinadas regras.
I: Primeiramente, eu não queria formular aqui uma teoria de alto nível,
mas parti de um fenômeno empírico cujo esclarecimento me parecia necessário.
Sabidamente muitos homens que, no domínio interpessoal, pensam moralmente e
são moralmente motivados, no caso da sonegação de impostos, contudo, não
apenas não têm nenhum sentimento de culpa - apenas o temor de ser apanhados -‗
mas também não se indignam com os outros, quando sabem que estes agem assim.
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São pessoas que, em geral, consideram igualmente correto que os impostos sejam
pagos, mas que, no entanto, tomam uma infração neste domínio como ―delitos de
cavalheiros‖. Como se entende isto? A corrupção é algo semelhante, que pode, por
sua vez, adotar formas muito distintas. Sem dúvida, o comportamento frente a
ambos delitos é distinto, tanto nos países e sociedades modernos, como também
entre suas diferentes gerações.
T: Posso remeter, neste ponto, a um outro fenômeno, que igualmente se
refere ao comportamento corporativo relativamente a instâncias anônimas. Há
pouco, eu observava, em Berlim, que uma grande parte dos jovens locais que
viajam clandestinamente no metrô dificilmente considera isto como um delito
moral - mas apenas como uma questão prudencial: é mais barato pagar uma
multa que a tarifa regular do bilhete. Quando você conversa com um
representante desta geração, você descobre que quem pensa assim são pessoas
que entendem a moral autonomamente (e não moralistas convencionais) e que
possuem uma moral alta no domínio interpessoal. Alguém me disse duvidar até
mesmo de que uma moral reflexiva fosse, em geral, capaz de sobreviver neste
domínio anônimo, e que onde fosse realmente factível, seria melhor para a
conservação da moral que desmoralizássemos estes domínios anônimos e
simplesmente intensificássemos os controles externos.
I: Não quero tomar posição agora, mas somente dizer que nossa teoria
moral deveria ser estruturada de modo que pudesse dar conta de tais
fenômenos, tanto os da consideração mencionada sobre a imposição de
determinadas regras para o agir tidas como desejáveis apenas mediante sanções
externas - portanto, sua desmoralização - (Entmoralisierung), como da
mentalidade descrita antes, que entende um modo determinado de agir como
moral, mas que, contudo, não o vincula com a tríade strawsoniana, ou o faz de
um modo mais fraco do que com os desvios de outras normas morais.
T: Também são fenômenos deste tipo, que, ontem à tarde, o levaram a
falar de um duplo conceito de tomar como evidente?
I: Sim, e a reintroduzir um conceito de bem para todos, do qual, ontem
pela manhã, disse poder prescindir, e que se distingue do conceito de bem, que se
refere, em seu livro, ao bom caráter. Em função das idéias mencionadas antes,
devemos poder falar de modos de agir que são exigidos (no sentido forte da tríade
strawsoniana), isto é, de modos de agir que se consideram, em geral, desejáveis e,
neste sentido, ―bons‖. Ontem pela manhã, eu disse que não precisamos falar
propriamente de desejável, porque, normalmente, não apenas consideramos
desejável tudo o que é moral, como também o reclamamos. Por que, então,
devemos nos deter, particularmente, na forma mais fraca? Seu amigo, contudo,
disse (ou, pelo menos, assim o compreendi) que poderia haver também modos de
agir cuja realização fosse, em geral, desejável, mas que nós não o exigíamos
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 87
mutuamente (na verdade, ele não falaria assim). Pode-se, então, ―tomar como
evidente‖ que seria bom para todos agir de tal maneira, sem que isso fosse exigido
reciprocamente, e aqui (esta parecia ser a sua tese) estaria algo que poderia ser
considerado igualmente justificado frente a todos, sem ser sancionado. Quando
assimilo este conceito à palavra ―bom‖, naturalmente não me podem objetar a
introdução de um conceito obscuro, pois que este ―bom‖ estaria igualmente
referido àquele que, para que fosse desejável, seria preciso justificar igualmente
frente a todos, de modo semelhante a quando me referi a uma práxis normativa,
que se deve justificar a fim de poder ser aceita. Em ambos os casos, a palavra
―fundamento‖ (Grund) remete a motivo (Motive). O que me distingue do seu
amigo é apenas uma variação terminológica. Eu não diria que a realização destas
normas seja boa - pois, assim como empregamos a palavra, não são em absoluto
normas, se não são sancionadas -, mas sim a realização deste modo de agir
(Handlungsweise). Posso também dar um outro exemplo como o da sonegação de
impostos etc. Imagine um grupo humano que, sob condições externas, se encontra
em uma situação que o impeça de estabelecer até mesmo as relações morais
interpessoais mais simples, tais como não matar, manter promessas, não mentir etc.
É possível que isto aconteça aos meninos de rua em nossas cidades, exceto quando
se trata de relações estreitas de amizade. Aqui se pode dizer seguramente: seria
vantajoso (desejável) para todos que pudessem agir moralmente de modo
recíproco, mas (é o conhecido problema do prisioneiro) seria irracional agir desta
maneira se não existe uma base mínima de confiança, isto é, se não existe urna
certa possibilidade de que os demais também ajam assim. Nesse caso, não se
constitui, em geral, uma comunidade moral na qual os modos de agir desejáveis se
possam sustentar por meio de normas, isto é, mediante a tríade strawsoniana. Uma
tal possibilidade não se apresentou em nossas considerações, porque sempre nos
orientamos por uma criança que nasce e cresce em uma comunidade moral e que
pergunta somente pela justificação das normas nela contidas. Pode-se naturalmente
retroceder um passo e pensar a criança em um estado de natureza, em que se
perguntasse: que modo de agir, em geral, iria eu, e também todos os outros, querer,
se houvesse um determinado mecanismo que todos respeitassem mutuamente?
Uma tal criança construiria, primeiramente, uma moral referida a interesses, e
seria, então, plausível remeter-se aos mecanismos normativos da indignação e do
sentimento de culpa, antropologicamente disponíveis; mecanismos que
dificilmente poderiam ser postos em andamento sem um mínimo de sanções
externas. Quando se dispõe as questões em uma seqüência tão ordenada. deve-se
também distinguir a questão do ―ser desejado‖ (Erwünschtsein) do modo de agir (e
o correspondente ―ser justificado‖ para todos) da questão do ―ser desejável‖ (e o
correspondente ―ser justificado‖) da norma - da proibição moral. Passamos por
cima disto, porque nos subordinamos a um certo automatismo, pelo qual, em geral,
Ernest Tugendhat
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sempre que um modo de agir se evidencia como desejável, produzem-se
sentimentos correspondentes: aceitar o modo de agir como desejável em comum
significa exigi-lo reciprocamente. Este procedimento sintético tem como
conseqüência que o que deve ser justificado são sempre as normas. Mas há
situações em que se requer que se tome os dois, analiticamente, em separado. Uma
tal situação é aquela em que, na verdade, ainda não temos nenhuma ―ongoing
moral community‖ (―comunidade moral vigente‖), com seus sentimentos morais, e
parece-me que uma segunda situação deste tipo é aquela em que temos certamente
uma comunidade moral cujos integrantes reagem mutuamente com indignação,
ressentimento e sentimento de culpa face a um domínio essencial de um modo de
agir, cujo cumprimento é tido como desejável em geral, em que, contudo - por
razões ainda não totalmente esclarecidas -, não parece que os sentimentos morais a
alcancem efetivamente, isto significa: neles a motivação moral ou bem desaparece
ou bem se desenvolve deficientemente.
T: Então você não considera o problema da corrupção apenas a partir da
motivação diminuída do indivíduo, mas retrocedendo à correlação intersubjetiva
entre a motivação e a indignação. Antes de entrarmos nisso, permita-me resumir a
estrutura que você acaba de desenvolver. Você disse que podemos distinguir, em
geral, - e que o devemos fazer, em determinadas situações - dois passos na questão
moral. Em ambos os passos, trata-se de uma ―justificação‖ (Begründung) do modo
como você explicou este conceito em nossa primeira conversa anteontem. Mas, no
primeiro, somente poderia ser justificado que um determinado modo de agir é de
igual interesse para todos. o que, desde logo, não é em si algo normativo.
Poderíamos, então, dizer: trata-se de um determinado estado. No segundo passo,
apareceriam como justificadas aquelas normas nas quais os modos de agir que
provocam um tal estado se apresentam como exigidos emocionalmente. O
primeiro destes passos é o que sugere utilizar a palavra ―bom‖ em um certo
sentido, a saber, como ―desejável por todos igualmente‖. É este uso do termo que
mais se aproxima do meu emprego da palavra ―bom‖, nas Três Preleções, como
predicado de justificação. Mas eles não se correspondem totalmente. Lá, eu disse
que as normas podem ser consideradas justificadas. quando as consideramos como
boas, igualmente. para todos. Tal como você o formula, agora, podemos entender
por bom (por igualmente desejável para todos) o estado que estas normas devem
tornar possível. Trata-se de uma interpretação consequencialista, que, na realidade,
já se encontrava implicada na minha terminologia de então. São boas aquelas
normas - no sentido anterior -, que produzem o estado que é bom, no meu sentido
atual. Para poder chegar a compreender os problemas que você assinala, é
inevitável o conceito de bem que você põe em destaque (―estado que é desejável
igualmente para todos‖), enquanto que a correspondente aplicação às normas nele
se funda e é imprescindível. Em todo caso, o que temos que distinguir em ambos
Diálogo em Letícia
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conceitos de bem é a noção que aparece em minhas Lições e que se refere ao
caráter, isto é, à pessoa. Em nossa primeira conversa, você disse que isso era
conveniente, mas dispensável. Se admitimos que o conceito de bem que você
emprega agora é básico para todo este contexto, deve-se dizer: é moralmente boa a
pessoa que segue as normas em virtude de seu caráter, e elas são, por sua vez, boas,
porque produzem uma situação que é igualmente do interesse de todos. Você disse
que é indispensável partir de um conceito conseqüencialista de bem que, na
verdade, se distingue do utilitarista, porque o bem do estado a alcançar não é
intrínseco, mas, antes, está referido aos interesses de todos. igualmente ponderados.
Kant, no entanto, deve estar se revirando no túmulo.
Ele riu, e parecia ter recuperado esta manhã, seu bom humor de sempre.
I: Que se vire o quanto quiser. Mas, na verdade, isto não é necessário.
Primeiro, porque não se trata de um estado de todo o mundo que é comparado
como ―melhor‖ e ―pior‖. A questão é, em todo caso, apenas se um determinado
modo de agir conduz a um resultado desejado ou indesejado, e é difícil, em
realidade, ver como uma interpretação kantiana pode prescindir disto1. Em
segundo lugar, é precisamente uma reflexão como a que contém o imperativo
categórico kantiano a que poderia decidir sobre o ―ser desejado‖ ou o ―não ser
desejado‖ do resultado. Tomemos, como exemplo, a sonegação de impostos.
―Posso querer (assim reza a reflexão kantiana) que a máxima de minha ação
seja observada em geral?‖. ―Não‖, responde Kant, com um monossílabo.
―Não‖, diz a explicação mais detalhada, ―porque isso conduziria a um
resultado, em geral, indesejável‖.
T: Começo a compreender o que você está tramando. Parece claro que
você quer distinguir entre dois tipos de ação imoral que, graças ao critério
kantiano, se revelam, sem dúvida, como imorais: primeiro. uma ação na qual
alguém prejudica (ou não ajuda a outro) - Kant tinha em vista explicitamente
apenas a ação interpessoal -; segundo, o modo de agir que nós podemos chamar
cooperativo, cuja omissão não causa dano diretamente a ninguém, mas que, no
entanto, observado de maneira universal, conduziria a um resultado que seria
prejudicial a todos.
1 A exposição de Hruschka em torno da origem do imperativo categórico a partir do
que ele denomina ―princípio de universalização‖, e que tem uma base utilitarista, indica
que Kant devia estar consciente disto 9J. Hruschka, ―Die Konkurrenz Von Goldener
Regel und prinzip der Verallgemeinerung in der juristischen Diskussion des 17/18.
Jahrhunderts als geschichtliche Wurzel von Kants kategorischem Imperativ‖, Juristen-
Zeitung 42 (1987), 941-952, em especial 951.
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Coleção Filosofia - 133 90
I: Totalmente correto. Estruturalmente é importante ver aqui o que ambos
tipos de ação têm em comum e em que se distinguem. Também no primeiro tipo de
ação está em jogo um aspecto conseqüencialista, que, no entanto, difere do da ação
do segundo tipo. Aqui se faz necessária uma distinção efetuada por von Wright
(Norm and Action, Londres 1963, III 5) entre o ―resultado‖ (―Ergebnis‖) e a
―conseqüência‖ (―Consequence‖) de uma ação. Se a ―ação‖ é compreendida de
uma determinada maneira, como o faz von Wright, isto é, se as atividades que têm
um fim em si mesmas, tais como dar um passeio. são excluídas, toda ação consiste,
por razões lógicas, na produção de um estado de coisas, como, por exemplo, ―eu
abro a janela‖: produzo um estado de coisas, isto é, que a janela esteja aberta. A
produção deste estado de coisas pertence ―intrinsecamente‖ - como diz von Wright
- à ação assim compreendida. Ao fazer isso, talvez deixe, no entanto, entrar uma
corrente indesejável de ar frio e provoque um resfriado em minha mulher. Estas
são conseqüências causais de minha ação. Segundo von Wright, o que decide qual
o resultado e qual a conseqüência de minha ação é o propósito com o qual agi.
Quando abro a janela para matar minha mulher, ambos estados de coisas são
resultados de minha ação: uma delas eu quis como meio, a outra, como fim.
Quando. contudo, abro a janela, tendo podido saber que uma provável
conseqüência seria a morte de minha mulher, não tinha intenção de realizar este
último, mas agi de modo negligente. Retornemos agora ao imperativo categórico.
Kant tinha em vista essencialmente a própria ação, razão pela qual é designado
como não conseqüencialista. Mas as ações só podem ser consideradas juntamente
com, pelo menos, seus resultados intrínsecos, quando não também junto com suas
conseqüências previsíveis. Por isso é necessária a interpretação conseqüencialista
que formulei antes, inclusive para a ação interpessoal de prejudicar ou de não
ajudar. Quando me pergunto por que - como diz Kant - não posso querer que a
máxima de prejudicar alguém por capricho se torne uma regra universal, a resposta
é que tanto eu como todos os outros não consideramos como desejável o estado
geral em que todos podem causar danos a outro, a qualquer momento. Não
podemos, então, evitar esta pequena porção de juízo conseqüencialista sobre os
estados, nem nos casos prediletos de Kant; isto é evidente no caso do mandamento
de não agir negligentemente, isto é, de evitar conseqüências negativas não
previstas. Chegamos agora. contudo, à ação cooperativa. Em uma ação negligente,
pode-se prejudicar alguém sem intenção. A pessoa que prejudiquei por negligência
se indignará contra mim, se bem que o fará de modo diverso do caso em que eu a
prejudico intencionalmente (a regra violada, por mim, é outra): quando violei a
regra, existia, de um modo ou de outro, uma clara relação entre o meu querer e a
circunstância de que uma determinada pessoa tenha sido prejudicada. Na ação
cooperativa, ao contrário, temos uma outra situação: aqui o indesejável para uma
determinada pessoa não parece nunca ser o resultado intrínseco da ação, de modo
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que todos consideramos como indesejável a regra geral de agir desta maneira, pois,
se a observamos, algum de nós sempre será afetado negativamente. Indesejável é,
agora, a conseqüência da ação: é um estado de coisas que é igualmente indesejável
para todos e que resulta tanto mais indesejável, quanto maior seja o número dos
que agem assim. Um kantiano pode utilizar, nos dois casos - tanto o do prejuízo
interpessoal quanto o da ação cooperativa - o critério do imperativo categórico. Em
ambos, chega-se a um resultado análogo: todos querem que ninguém. Mas quando
se pergunta por que se quer isto, a razão é outra. A razão por que se responde
negativamente à questão contida no imperativo categórico é que, no caso da ação
interpessoal, ninguém quer ser afetado por uma tal ação; ao contrário, no caso da
ação cooperativa, referimo-nos a uma conseqüência indesejável em geral, quando
muitos agem dessa maneira - é indesejável cumulativamente, não
distributivamente. Esta é, então, a razão por que todos querem que ninguém o seja;
pois por que alguém deveria ter o direito a uma exceção que viola a tese da
igualdade? 2No primeiro tipo de ação imoral é o seu resultado próprio intrínseco
que aparece como distributivamente negativo; no segundo tipo, é, ao contrário, sua
ação à distância cumulativa.
T: Você está dizendo, agora, que esta distinção estrutural é o que torna
inteligível por que as contravenções às regras do segundo tipo não se vinculam
tão claramente à tríade strawsoniana, assim como, por que a substituição da
tríade, se pode chegar a sugerir coisas tais como sugere o meu clandestino
berlinense sobre desmoralizar as regras de segundo tipo, isto é, a tríade
strawsoniana pelas sanções externas?
I: Sim. E, há pouco, apareceu um indício do porquê isto é percebido desta
maneira, quando eu disse que, nas contravenções do segundo tipo. não há nenhum
indivíduo que seja afetado negativamente, isto é, ninguém que se indigne ou passe
a fazê-lo. Não é provável que. quando faço algo que não afeta a ninguém, o
sentimento de culpa ou bem desapareça de todo, ou, ao menos, se transforma
essencialmente? Não é possível imaginar deusas vingativas que perseguem o
clandestino ou o sonegador de impostos, ou ainda aqueles que se apropriam dos
fundos públicos sem prejudicar a ninguém, pois não há ninguém cujos direitos
possam representar. Nisto é possível compreender em que reside que tais
contravenções deixem aflorar apenas uma sombra de indignação e porque, em
conseqüência, estas ações dolosas são vistas como ―delitos de cavalheiros‖.
Consideramos o sentimento de culpa como uma resposta à indignação justificada.
mas certamente o inverso também é válido. Parece natural considerar a tríade
strawsoniana como uma unidade, de modo que, quando falta um elo, os outros
dois, se não desaparecem, pelo menos, transformam-se, Pode-se interpretar assim a
2 Ver Hruschka, op. Cit.; D. Lyons, Forms and Limits of utilitarianism, Oxford 1965.
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proposta do seu clandestino berlinense alegando que a moral do respeito
interpessoal limita o prejuízo; uma indignação a que não corresponde nenhum
ressentimento atua de modo despersonalizado.
T: Não sei se podemos realmente dizer que, no comportamento
cooperativo doloso, falta o ressentimento. Quando alguém, por exemplo,
trapaceia em um jogo, ele engana os outros, e estes se indignarão quando
descobrirem a trapaça, e. do mesmo modo, se ele não cumpre sua parte em um
empreendimento comunitário. Ele não prejudicou a ninguém, mas a todos, e
todos se indignam contra ele, individual e coletivamente.
I: Aí você está certo. É evidente que não é a existência do franco-
atirador, no âmbito cooperativo, que como tal origina o problema de sua
imoralidade, mas somente na medida em que se torna anônimo o que está
frente a ela. Este parece ser um problema específico de nosso tempo. Quando
aqueles a quem prejudicamos não mais podem ser percebidos como indivíduos,
pode-se dizer, na verdade, que quem infringe a regra prejudica a todos, mas se
pode igualmente dizer que ele não prejudica a ninguém, que contribui
simplesmente para um prejuízo global. Não é razoável que a indignação e o
sentimento de culpa não possam ser ampliados onde a contravenção não pode
mais vincular-se a pessoas individuais reconhecíveis?
T : Geneticamente? Estamos de acordo em que a tríade strawsoniana
parece ser geneticamente predeterminada. A constituição genética que Lemos,
contudo, é tal que permitiu a sobrevivência de comunidades menores.
I: Não sei se isto deve ser visto assim, pois, em um determinado
sentido, a capacidade de sentir-se culpado pode ser ampliada universalmente:
nada nos obriga a aceitar a referência ao grupo da moral de nossos
antepassados; ao contrário, vimos ontem que, quando satisfazemos, sem
restrições, a exigência de justificação que parece residir na norma moral, é
necessária sua ampliação universal.
T: Devemos, agora, distinguir entre duas questões. Primeiro, quem são
todos aqueles frente aos quais devemos justificar? E. segundo, qual o alcance
do poder de sentir-se culpado face às partes de uma coletividade cooperativa?
I: Isto mostra, contudo, que a referência à comunidade de caçadores e
coletores tem escassas conseqüências. Por que esta origem genética nos limita em
um sentido, mas não em outro? Minha reflexão anterior deve tornar compreensível,
antes de tudo, não apenas o fato por que, em uma parte da sociedade atual, estas
normas são tomadas seriamente de modo restrito, mas também por que, por outra
parte, elas se excluem, inclusive enquanto normas morais.
T: Você tem razão em dirigir a conversa para a questão da possibilidade.
Porque, na verdade, nos encontramos em uma época de mudanças, e justamente
em ambas direções. No caso do clandestino, a tendência se dirige para uma
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 93
desmoralização; no caso da corrupção, o faz na direção contrária. Mas ambas as
tendências parecem confirmar o que você disse. Por que não se deve desmoralizar
efetivamente, aí onde é possível, o modo anônimo de comportamento como o do
clandestino? A geração mais velha se inclina a dizer a esse respeito: regras são
regras e devem ser mantidas, e sabemos quão perigosa é esta atitude. A geração
mais jovem ou, de modo mais cuidadoso, alguns de seus representantes, quiseram
conceber a moral, até onde fosse possível, restrita ao respeito dos direitos dos
indivíduos, ou, conforme o caso, a estes mesmos. Por que. então, não dizer:
combater o modo de comportamento anônimo, até onde fosse possível, apenas
mediante sanções externas? Muitos concordariam com isto se fosse possível levá-
lo a cabo. Mas em vista da problemática da corrução está claro que não se pode
levá-lo. Quando se adverte que em um número cada vez maior de países a
população se torna consciente das devastadoras conseqüências da corrupção, é
compreensível o apelo ao fortalecimento do controle e das sanções externas. Mas
quando, além deste, apela-se para uma remoralização (Remoralisierung) deste tipo
de conduta ( Verhaltensweisen), coloca-se a pergunta sobre se isto não equivaleria
à tentativa de tornar funcional a tríade strawsoniana: a moral deve se sustentar não
porque cause repulsa aos homens uma tal conduta - neste caso, indignar-se-iam, e
com isso, estaria resolvido metade do problema - mas, primeiro, porque as
conseqüências prejudiciais são óbvias, e, em segundo lugar, porque as sanções
externas não são suficientes. Mas assim, funcionalmente, a moral não é de modo
algum praticável. Pensemos, por exemplo, nos grupos populacionais que se
conduziam essencialmente em termos de fidelidade a pequenos grupos, e que,
agora, devem ser honestos face a um Estado anônimo.
Ele pôs-se de pé, porque seu barco parecia estar pronto para zarpar, e
eu o acompanhei.
I: Acho muito conveniente sua expressão ―causar repulsa‖. Quem pensa
moralmente repugna-se com o que considera imoral, de um modo que chamamos
de indignação. Se, então, a honestidade pode ser considerada, também nos
contextos anônimos, como virtude moral, devemos esclarecer o que, do
comportamento contrario pode nos repugnar em um caso determinado. Algo nos
deve repugnar, não sendo suficiente que suas consequencias sejam indesejaveis. A
dificuldade, antes de falarmos de indignação, decorria da falta de um sujeito
potencialmente ressentido. Você estava certo em trazer. outra vez, o ressentimento
da parte enganada, e eu me importava apenas com o grande número. Poder-se-ia
dizer, contudo: apenas na medida em que o contraventor tem a consciência, não
apenas de prejudicar, mas de enganar aos outros, é pensável uma moralização
(Moralisierung) - ou remoralização - desta conduta. Há pouco assinalei que quem
Ernest Tugendhat
Coleção Filosofia - 133 94
age desonestamente infringe a tese da igualdade (Gleichheitssatz). Isto, e não o
prejuízo que ele gera. isto é, enganar outras pessoas, é o que pode parecer
repugnante, mas deve parecê-lo se realmente enganou a outro. Mas não é
compreensível, por si. que esta condição seja cumprida. Aqui nos deparamos com
uma reciprocidade que não existe no comportamento imoral interpessoal. Quando
prejudico a A ou B, um se ressente comigo e outro se indigna sem que, de sua
parte, tenham feito algo. Quando, pelo contrário, em um contexto cooperativo,
engano a A, B, C etc., é suposto que eles se atêm, por sua parte, à regra, pois, em
caso contrário, eu não teria infringido a tese da igualdade. Daí se pode
compreender com clareza como é possível que. face ao modo de agir de tipo
cooperativo, se imponha tão facilmente uma consciência de indulgência recíproca.
Se minha desonestidade não causa indignação, seria simplesmente uma besteira
não ir contra a regra: a conduta honesta não pode, em conseqüência, suscitar
nenhum sentimento de culpa, se tenho razões para admitir que a maioria age desse
modo. A moralidade autônoma tem aqui limites visíveis. Ninguém pode agir
moralmente neste âmbito - e isto é estruturalmente impossível -, quando não supõe
que a grande maioria age desse modo. Como fica a situação moral, quando,
inversamente, a grande maioria se atém moralmente a um modo de agir, porque
nele se oferece um resultado desejável, que um homem que reflete autonomamente
consideraria indesejável, como, por exemplo, quando os impostos destinam-se à
produção de armamentos? Quando uma tal pessoa sonega impostos, sobre a base
deste juízo da finalidade, se não o faz publicamente. então, engana igualmente a
todos. Isto é, ajo imoralmente - isto causa repulsa e indignação - se me sirvo, como
franco-atirador, das vantagens de um sistema e não cumpro minha própria parte,
isso significa: se engano os outros, o que, por sua vez, quer dizer que se supõe - no
meu sentimento de culpa, na indignação dos outros - que os outros cumprem a sua
parte. Com isto, esclarece-se por que julgamos distintamente tipos diferentes de
condutas desonestas semelhantes, primeiro, de acordo com o modo como se supõe
que outros agem e, segundo, conforme o grau de liberdade que a pessoa tem para
participar do sistema cooperativo. Quanto maior a liberdade, mais inequívoca é a
falta. A maior liberdade que temos é evidentemente a de participar em um jogo, ou
a de não fazê-lo. Não se apresenta aqui nenhuma finalidade concebida como boa.
Justamente porque somos livres para participar ou não nele, não somos livres para
violar dissimuladamente as regras. De um lado do espectro se encontra o pagador
de impostos; enquanto cidadão de um Estado ele não é livre para sair deste ―jogo‖,
em razão de seu outro juízo sobre a finalidade ou também independentemente dele.
Isto esclarece por que julgamos a sonegação de impostos como corrupção de
maneira mais indulgente. Um pequeno funcionário talvez seja dependente de seu
ofício; um político. não. Uma dificuldade que permanece como antes é a do grande
número. Sem sustentar-se em sanções externas não é possível alcançar o que é
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condição para a imoralidade desta conduta, isto é, que a maioria aja honestamente.
Mesmo quando é assim, a tentação de agir desse modo será maior na medida em
que permanece anônima. Podia-se querer inserir aqui uma consideração kantiana
— ―eu quero que todos: então, eu devo‖ -; dela não resulta, no entanto, nenhuma
força de impulso motivacional. Trata-se de um paralogismo. e, quando este se
apresenta isolado, não expressa nenhum juízo moral: nenhuma exigência
intersubjetiva, mas simplesmente um desejo.
Ele falou estas últimas palavras rapidamente, e estava agora prestes a
saltar para o barco, quando ocorreu-me que deixamos pendente (p. 81 ss.. do
original alemão) a ―discriminação secundária‖ - a pergunta sobre que tipo de
distribuição desigual é justa e que tipo é injusta.
T: Por Deus, gritei. Temos aqui uma grande lacuna. Deixe passar
mais este barco.
Eu o segurei firmemente.
I: Isto não, gritou ele. Solte-me! Certamente é uma grande lacuna, mas
onde elas não existem? Ou você quer dizer que teríamos conseguido solucionar
a problemática de hoje da corrupção? Você mesmo insistiu em adiar o
problema da discriminação secundária (acima, p. 82, da edição original). Um
princípio foi delineado (p. 74, do original alemão), mas parecia que sua
utilização levava a contradições (p. 82, da edição original): existem situações,
na verdade, que - pode-se dizer prima facie - contêm uma regra igualmente
evidente para todos com respeito à divisão proporcionalmente desigual, mas há
uma variedade destas situações, e todas se contradizem entre si. Seria
necessário, então, uma meta- perspectiva, mas como esta deve ser? Isto se
tornou mais evidente depois da variedade de pontos de vista sobre a justiça que
Elster reuniu em seu artigo ―Local Justice‖ 3. Você não pode estar afirmando
seriamente que podemos esclarecer isto até o próximo barco, ou o seguinte.
Voltou a tocar o apito do navio e ele se pôs em movimento. Ele me
abraçou, saltou para o barco e desapareceu.
3 European Journal of Sociology 31 (1990), p.117-140.
Ernest Tugendhat
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96- GUERIZOLI, Rodrigo
A metafísica no tractatus de primo princípio de Duns Escoto
97- TOMAZELI, Luiz Carlos
Entre o estado liberal e a democracia direta: a busca de um novo contrato
social
98- TEIXEIRA. Antônio M. R.
O topos ético da psicanálise
99 — COSTA, Alexandre
Thánatos: da possibilidade de um conceito de morte a partir do lógos
heraclítico
100— OLIVEIRA, Nythamar Femandes de
Tractatus ethico-politicus
101 — MACHADO. Jorge Antônio Torres
Filosofia e psicanálise: uni diálogo
102- GUERREIRO, Mano A. L.
Ceticismo ou senso comum?
103 — NA VIA, Ricardo
Verdade, racionalidade e relativismo em H. Putnamn
104- RAUBER, Jaime José
O problema da universalização em ética
105 — ANDRADE, Abraho Costa
Ricoeur e a formação do sujeito
106— CENCI, Angelo V. (Org.)
Temas sobre Kant
107 — TER REEGEN, Jan Gerard Joseph (Trad. e Introd.)
O livro das causas. Liber de causis
108— NEDEL. José
A teoria ético-política de John Rawls
109 — OLIVEIRA, Neiva Afonso
Rousseau e Rawls: contrato em duas vias
110— DE BONI, Luis Alberto
Filosofia medieval
111 — ULLMANN, Reinholdo Aloysio
A universidade medieval
112— DE BONI, Luis Alberto
A ciência e a organização dos saberes na Idade Média
113 — VALLS. Alvaro
Entre Sócrates e cristo
14— STEIN, Ernildo
Diferença e metafísica
Diálogo em Letícia
Coleção Filosofia - 133 97
115 — NAPOLI, Ricardo Bins di
Ética e compreensão do outro
116— ATTIE FILHO, Miguel
Os sentidos internos de Ibn Sina
117 — ALMEIDA, Custódio Luís Siva de; FLICKINGER, Hans-Georg;
ROHDEN, L.
Hermenêutica filosófïca: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer
118— PAVIANI. Jayme
Globalização e humanismo latino
119— RUEDELL. Aloísio
Da representação ao sentido
120— SOUZA, Ricardo Timm de
Sentido e alteridade
121 — SILVEIRA, Denis Coitinho
O sentido da justiça em Aristóteles
122— MÜLLER, Marcos José
Merleau-Ponty: acerca da expressão
123 — CUNHA, Mariana Palozzi Sérvulo da
O movimento da alma: a invenção por Agostinho do conceito de vontade
124 — SOUZA, José Zacarias de
Agostinho buscador inquieto da verdade
125 —LEITE JR., Pedro
O problema dos universais
126 — SCHÜTZ, Rosalvo
Religião e capitalismo
127 — CARVALHO, José Maurício de
História da filosofia e tradições culturais
128— MACEDO. Dion Davi
Do elogio à verdade: um estudo sobre a noção de Eros como intermediário no
Banquete de Platão
129 —SOUZA, Ricardo Timm & OLIVEIRA, Nythamar Fernande de
(Orgs.)
Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI
130 — SOUZA. José Antonio de Carmargo R.
O pensamento social em Santo Antônio
131 — GHISALBERTI, Alessandro
As raízes medievais do pensamento moderno
132— PAVIANI, Jayme
Filosofia e método em Platão