1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DISCUSSÃO DE GÊNERO COM MULHERES DA CADEIA
PÚBLICA FEMININA DE RONDONÓPOLIS-MT: UMA
EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO “LEITURAS SEM
GRADES”
Elni Elisa Willms
Marcio Alessandro Neman do Nascimento
RESUMO: O texto tem o objetivo de narrar experiências do Projeto de Extensão “Leituras sem
grades”, coordenado por mim, Elni Elisa Willms, em 2016 e desenvolvido por treze professores,
além de 35 estudantes de diversos cursos da UFMT-CUR e algumas pessoas da comunidade
externa à universidade. A metodologia do projeto consiste em não combinar previamente o que
cada um levará para ler nas instituições visitadas – aposta-se na experiência de se expor ao
acaso, sem muito controle – além de oferecer escuta, ou seja, experimenta-se levar literatura
para pessoas que estão sob privação de liberdade e que têm pouco contato com essa modalidade
de produção cultural e em seguida inicia-se um processo de escuta suscitada pelas leituras. No
limite dessa comunicação traremos a narrativa de experiências na Cadeia Pública Feminina de
Rondonópolis e de como a leitura afetou tanto as pessoas que receberam nossos textos como
aqueles que executaram o projeto. Conclui-se que a literatura pode promover encontros potentes
para discussões de gênero e nos permite pensar a condição humana, contribuindo, dessa
maneira, como formação estética e itinerário de formação para além das experiências educativas
de sala de aula.
Palavras chaves: Leitura; Gênero; Literatura; Experiência
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita
sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos
sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e,
portanto, nos humaniza. Antônio Cândido, 2004, p. 188
A presunção aqui é que o ‘ser’ um gênero é um efeito. Judith p. Butler
Introdução
O objetivo desta comunicação oral é narrar algumas experiências vividas na
Cadeia Pública Feminina de Rondonópolis-MT, por meio do Projeto de Extensão
“Leituras sem grades”. O projeto foi desenvolvido em 2016 por um grupo de treze
professores da UFMT-CUR, dos cursos de Pedagogia, História, Psicologia e Letras
Inglês e Português da UFMT/Rondonópolis e teve como objetivo proporcionar
momentos de leitura e reflexão e possibilitar escuta para pessoas que estão
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institucionalizadas sob a condição de abrigamento ou privadas de liberdade em sistemas
prisionais. Somaram-se aos professores trinta e cinco discentes dos referidos cursos,
além de membros da comunidade externa que, sabendo do projeto, quiseram colaborar
com a proposta tanto quanto experienciar e compartilhar leituras em grupo com a
referida população destinatária. No limite deste texto vamos explorar apenas algumas
narrativas do Diário de Campo1 da experiência na Cadeia Pública Feminina de
Rondonópolis, instituição que abriga em regime de reclusão, mulheres que foram presas
pela polícia militar e/ou civil ou que estão cumprindo sentença judicial.
O contato com a leitura e as possibilidades que ela é capaz de suscitar ou
oferecer são entendidas aqui como possibilidade de experiência estética que contribuem
para a (in)(trans)formação humana das pessoas. Seguimos, a princípio, a perspectiva de
literatura de Todorov (2014, p.23), para o qual: “[...] hoje, se me pergunto porque amo a
literatura, a resposta que me vem espontaneamente a cabeça é: porque ela me ajuda a
viver [...] ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com as
experiências e me permite melhor compreendê-las”. Nesse sentido, “a literatura amplia
o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo”,
logo, pode ser uma experiência que pode nos colocar para além das grades, construir
outros mundos possíveis e firmar compromisso consigo e com o coletivo de leitores.
Em análise concomitante, a feminista Joan Scott (1998) aponta que a experiência
pode ser compreendida como uma metáfora da visibilidade documentada do mundo e,
até então escondida por discursos majoritários. Para a autora, “[...] Não são indivíduos
que têm experiência, mas sim sujeitos que são constituídos pela experiência” (SCOTT,
1998, p. 304).
As experiências abertas pelo campo da literatura
A leitura, ao mesmo tempo, e polifonicamente, permite que cada sujeito
problematize os questionamentos e as arbitrariedades biopsicossociais da vida,
convergindo sempre para análises cada vez mais complexas e rizomáticas.
1 Citaremos, neste texto, recortes do Diário de Campo construído coletivamente em 2016. O recorte será
identificado assim: DIÁRIO DE CAMPO, nome de quem fez a narrativa, data e paginação.
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Principalmente para as pessoas que se encontram reclusas ou abrigadas em instituições,
quase sempre fragilizadas, a presença de pessoas que façam a mediação de aspectos
sensíveis sobre o que nos faz humano, por meio da literatura, apresenta-se como uma
justificativa para a realização do projeto. Para Edgar Morin (2003), toda grande obra de
arte, inclusive a literatura, possibilita um pensamento profundo sobre a condição
humana, constituindo-se como uma possibilidade de escola de vida em seus múltiplos
sentidos. Por ser uma experiência de Projeto de Extensão Universitário, portanto, que se
realiza fora do âmbito da sala de aula, propicia aos executores - bolsistas de extensão,
discentes voluntários, professores e comunidade externa - uma potente experiência
como um itinerário de formação multifacetada para além da sala de aula. Tem-se
contato com pessoas que experimentam sofrimento psíquico intenso (mulheres sob
regime de reclusão), e diante desse panorama levar a literatura é uma forma de
contribuir para que esse tempo institucionalizado se torne um pouco menos penoso. Em
suma, é uma oportunidade para que os membros da equipe possam refletir sobre as
teorias e pesquisas que estudam em sala de aula e praticá-las no campo social. Além
disso, ainda que sumariamente, recuperamos a noção do “direito à literatura” de
Antonio Candido (2004), para dela fazer uso nos espaços institucionais em que, muitas
vezes, essa experiência de fruição da arte é negada ao sujeito. Muitas instituições de
privação de liberdade apenas anseiam em aplacar as emergências fisiológicas (mesmo
que precariamente).
A expressão “experiência” é tomada no sentido com o qual trabalha Jorge
Larrosa (2014). A etimologia desse vocábulo deriva do latim “experiri”, que significa
“provar”, “ter um encontro ou uma relação com algo”. O radical “periri” lembra
“periculum”, perigo, fazendo-nos lembrar a ideia de travessia, e também a ideia de
prova. Para Larrosa (2014, p. 26), “o sujeito da experiência tem algo desse ser
fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se
nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”. Ainda, segundo Heidegger
(apud LARROSA, 2014, p. 27), “fazer uma experiência com algo significa que algo nos
acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma [...]
podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro, ou no
transcurso do tempo”.
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A construção do Diário de Campo faz parte da metodologia do Projeto de
Extensão. Recomendávamos aos participantes que construíssem um Diário de Campo
em que cada um narrasse, do seu jeito, a experiência vivida2. Muitas vezes, saindo das
instituições tínhamos necessidade de escrever, ainda que um breve relato, no grupo do
WhatsApp dos participantes do projeto; era pungente a necessidade de simbolizar a
experiência, mesmo que em poucas palavras, um modo de dizer sobre as sensações e
sentimentos sobre as experiências que aconteciam em conexão com as mulheres
participantes e leitoras/apreciadoras de contos, poesias, mitos, letras de músicas,
histórias, “causos” e narrativas (orais). E é nesse contexto que se dá a articulação com o
ensino e a pesquisa, ou seja, por meio da construção do Diário de Campo das visitas,
faz-se uma narrativa das visitas e reflete-se sobre o que aconteceu, no sentido tratado
por Larrosa (2014): de que forma a leitura se relaciona com as atividades de ensino e
pesquisa que o aluno ou professor desenvolve, na graduação tanto sob o ponto de vista
teórico quanto prático; acontecimentos afirmativos da ação, a interação entre os
membros do projeto e as pessoas das instituições, desconfortos e dificuldades também
são narrados, pois a partir da reflexão sobre a experiência e outros acontecimentos pode-
se avaliar a ação, reajustando conforme as possibilidades e necessidades. Por isso é uma
proposta aberta, fazendo-se e refazendo-se a cada encontro, sempre tendo em vista as
necessidades que os executores percebem no contato com os participantes.
Breves aproximações aos estudos de gênero em diálogo com as narrativas do
Projeto de Extensão “Leituras sem grades”
No entanto, se dizemos da experiência, como narrar a si mesmo e narrar a
história de outras pessoas em um sistema prisional? O que dizer sobre o público
destinatário do Projeto de Extensão para com as mulheres que cumprem determinação
jurídica e devem permanecer em privação de liberdade em uma instituição prisional
municipal no Estado do Mato Grosso?
2 As pessoas citadas no texto e que participam do projeto autorizaram formalmente o uso de seus nomes
por extenso, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento, sob guarda da Profa. Dra. Elni
Elisa Willms, Coordenadora do Projeto.
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Na perspectiva filosófica foucaultiana, encontramos na obra Vigiar e Punir
(1987) a relação de poder entre o dispositivo disciplinar institucional do aprisionamento
e a criação de indivíduos assujeitados e sob efeito da vigilância contínua e incessável. O
regime disciplinar disposto no interior das prisões está agenciado em favor de corpos
dóceis, ou seja, “[...] que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (p. 118). A ideia de poder pulverizado e não localizável
trazido por Foucault também nos auxilia a analisar que as hierarquizações e relações de
poderes acontecem entre as próprias internas denominam de cultura “cadeeira”, ou seja,
normas e ações descritas entre as próprias mulheres em situação de privação de
liberdade que estabelecem os modos de estar dentro da instituição: “Aqui quem manda
são as mais velhas e experientes, elas ajudam e cuidam, mas também passam a regra do
que pode fazer ou não... se não fizer as coisas certinhos, powwww” (DIÁRIO DE
CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento, 04/08/2016, p. 24). No entanto, o sofrimento
vivenciado em conjunto também aponta para a construção de amizades “temporárias”
(uma vez que desinternadas, essas mulheres não mantêm contato ou sabem sobre o
“paradeiro” das amigas de cela; embora muitas relatam desejar que isso ocorresse: “Se
fez o bonde para outra cadeia, ou se vai viver a vida lá fora, nunca mais a gente
encontra... só encontra aquelas que voltam de novo, que são presa mesmo, né (fulana),
conta aí que você voltou (risos)” (DIÁRIO DE CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento,
04/08/2016, p. 24).
As temáticas que emergiam das leituras traziam reflexões, mas sobretudo, bem-
estar em pensar a vida para além das grades, como bem disse uma participante: “Os
encontros, o que a gente lê aqui dá um alívio em tudo que a gente vive, a cadeia é
pesada” (DIÁRIO DE CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento, 04/08/2016, p. 24).
Nesse mesmo lastro apareceram discussões sobre políticas solidárias de cuidado de si e
do outro, princípios de equidade de direitos e ajuda mútua, além de questões das
sensibilidades, da estigmatização de mulheres presas e da construção de outros modos
possíveis em ser/estar mulher. Sobre o encontro, indicamos a nota de diário de campo
sobre assuntos percorridos:
Um encontro muito potente. Entre grades é preciso saber lembrar e
também é preciso aprender a esquecer. Perfume, rua, gestos e música,
tudo nos lembra alguém, nos lembra a vida lá fora, nos lembra
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momentos de pessoas inesquecíveis, que nos lembram de nós mesmos
em outros contextos. Da suavidade de Rubem Alves, à tentativa de
(re)construção da vida após um coração esvaziar-se e voltar a bater de
Elisa Lucinda, ao cântico provocador de Karol Conka a roda de
conversa “chegou chegando” sem muita intimidação e bastante
curiosidade em saber quem é o outro. O Outro? Quem sou? Desejo de
liberdade; pai héroi; namorada que “pegou o bonde” e já foi; cotidiano
de uma prisão; mudança do significado das palavras, o “cadeiês”: boi é
vaso sanitário; jega é onde elas dormem, porque “cama, cama é só em
casa”, revelou-nos um dia a Dona C. Ah! As palavras, brincadeira
gostosa quando o outro muda o seu significante e compartilha em risos
suas outras leituras. Muitas e afetuosas lembranças do professor André
(“... que uma oração lembre seu querido pai e a vida lhe ofereça coisas
boas!” recomendou Dona C.) e lembranças de Maria que não era só
Maria, talvez fosse todas as Marias, “Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e
Nossa Senhora”, do poema de Elisa Lucinda, mas na lembrança
singular era Camila Maria. Bom! Muitas experiências para comentar e
não esquecer, pois Beatriz é uma renascida da alegria.
Nenhuma palavra, quase nada a dizer. Se digo? Não sei. Vou rir para
não chorar. Ou apenas rir. Ou apenas chorar. Ou vou rir e chorar. Não
sei. Saí com ideias confusas desse lugar. Medo não é tão medo. Alegria
não é tão alegria. Vazios existenciais? Algumas cadeiras dispostas em
círculo, algumas pessoas, uma sala... cheia de vazios, mas nesse campo
as palavras, aos poucos, produzem um outro lugar que já não é mais
vazio e também não é cheio. Onde mora a plenitude? As palavras já não
nos cabem e explodem em fluxos de desejo de falar de si. O que falar de
mim dentro dessas paredes de pouca existência? Mas quem sou eu para
qualificar esse lugar e essas pessoas como sendo “de pouca existência”?
Dizer que eu existo? Resolve? Sim! Eu existo. Conto-me, faço-me
ouvir, o outro conta-se e eu ouço, mesmo parecendo invisível para
muitos, existo. Eu ainda existo! Conta-se de uma mãe saudosa, de uma
filha que queria ter dito algo, confessa-se um sonho de ser advogada e o
anseio pela liberdade. “O que eu quero mesmo? O que eu quero mesmo
é LI BER DA DE!”, disse a C., sorrindo e com seu modo muito peculiar,
enfatizando a fala aqui e ali. O vermelho é intenso, é carmim e escarlate
o cabelo da menina Elni. Em um flash elas perceberam a mudança de
tom, a passagem do cereja para o amora. Ou talvez o sabor do morango
da história da Sherazade assim as tenha permitido. Bruna com B e seu
perfume misterioso, revelado: “Egeo, quem está usando Egeo aqui?”
Pergunta uma das mulheres com a sagacidade sensorial à flor das
narinas! Perfume que invoca e perfume que convoca: “Sabe, assim – e
faz o gesto como se estivesse borrifando perfume no pescoço, nos
braços, na cabeça – e sair pra rua?”. A mulher, pernas entrelaçadas e
sorriso de menina pela lembrança do perfume, naquele momento saiu
para a rua? E quase no mesmo instante ela diz para a leitora que exalava
Egeo: “Hey! Não vai falar?”. Rindo, resposta imediata: “Vou falar, mas
não vou cantar, quem sabe na próxima cantamos todas juntas...”. E
assim fez-se o encontro. Uma polifonia de vozes e silêncios. (DIÁRIO
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DE CAMPO, Márcio Alessando Neman do Nascimento, 04/08/2016, p.
22-23).
Como trazido nos dois recortes de diário de campo supracitados (sobre
materiais disparadores de problematizações e relato de experiência), observamos que as
temáticas sobre feminilidades, construção dos corpos, as relações homoeróticas ou
“lesbianidades sem classificação identitária”, desejo de autocuidado e até mesmo flerte
e admiração por coordenadores(as) dos encontros apontam para a discussões sobre o
terreno fértil das vidas cerceadas em suas potências e liberdade de expressão. Assim,
buscamos em Michel Foucault (2003; 2005) e Deleuze (2001) o conceito de dispositivo
de sexualidade, para problematizar o diagnóstico do cotidiano da vida carcerária e dos
afetos vivenciados nesse contexto institucional. Tal dispositivo engloba não somente a
ideia de discurso, mas um conjunto heterogêneo (enunciados jurídicos, religiosos,
científicos, morais) que determinam “verdades” sobre e das mulheres acerca de suas
práticas sociais no ambiente prisional e a vivência das sexualidades dentro dos muros
institucional. Para além da sexualidade e gênero, emergem questões históricas
dolorosas, assim percebida por uma bolsista do Projeto:
Sobre o encontro com a cadeia e com as meninas. Vejam, duas
coisas diferentes e importante destacar: Instituição-corpo. Como
cada qual mexe com a gente de maneira diferente... Enfim, uma
coisa a dizer sobre esse encontro: as algemas estão em um
armário. O que isso significa? Ainda não pensei a respeito, mas
não teve como meu olhar não ser atraído para dentro daquela
sala fria do ar condicionado.... as algemas antes expostas como o
algoz chicote da senzala estavam hoje em um armário. Talvez
isso me assuste mais do que conforte... Mas atraiu o meu olhar!
(DIÁRIO DE CAMPO, Camila Maria Santos de Pinto,
25/08/2016, p. 11).
Embora acreditemos que não exista uma vida idêntica às outras, é muito
recorrente discursos semelhantes das participantes sobre as questões das vivências na
construção da sexualidade e de gênero em ser/estar mulher. As práticas por qual essas
mulheres se compõem, perpassam por uma historicidade de práticas violentas por qual
grande parte das mulheres aprisionadas vivenciaram ao longo das diversas etapas e
contextos da vida social, tornando-as sujeitos violados em seus direitos e impondo a
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inserção de contextos e situações de vulnerabilidades tais como: violência intrafamiliar
na família de origem e de família constituída (relacionamento conjugal); violência e
exploração sexual; vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis; restrição
social; dificuldade de escolarização e diminuição de grau de empregabilidade, além de
respostas emocionais intensas de sofrimento (tentativa de suicídio, desenvolvimento de
transtorno de pânico e depressivo, entre outros.
A partir das atividades do projeto de “Leituras sem grades”, em que se
experimenta a leitura de contos, poesias, mitos, letras de músicas, histórias, “causos” e
relatos de vivências, além de ouvir o que vem delas, podemos problematizar a
construção e narrativa de vida dessas mulheres a partir da matriz de inteligibilidade
discutido por Judith Butler (2003), na obra Problemas de Gênero. A autora traz uma
problematização do poder sobre mulheres, na produção de estruturação binárias, as
estabilidades internas, linearidades e conformidades para determinar e localizar os
gêneros, as sexualidades, práticas e orientações sexuais, as corporalidades, os desejos,
os prazeres, entre outras categorias que também fazem parte da composição dos seres
humanos. A imposição do sistema sexo-gênero é apresentada constantemente nos
discursos e crenças trazidas por essas mulheres.
Trata-se de compreender que trabalhar com leitura, em suas diversas
modalidades, com mulheres, foco deste texto, envolve muitas questões que mobilizam
nosso pensamento, nossas atitudes pessoais e profissionais. É preciso posicionar-se
diante de assuntos que nos convocam, como narrado por uma estudante do curso de
Psicologia e voluntária no Projeto:
Para mim foi muito prazeroso participar dos encontros, sobretudo na
cadeia feminina e no socioeducativo. Aprendi demais com as mulheres
e com os meninos e pude confirmar meu desejo de trabalhar no sistema
prisional. Além disso, fica o aprendizado de que a leitura é sem grades,
sobretudo quando os textos dialogam com quem somos, fomos ou
vivemos. Como as músicas que nos desarmam, envolvem e tocam.
Aprendi que é preciso falar, mas mais importante é se permitir ouvir,
assim como precisamos aprender a lidar com o silêncio. Mas, o que
esses encontros me deixaram de mais valioso foram os
questionamentos: e se, com tudo pronto, eles resolverem não nos ouvir?
A gente vira a cara ou vira a mesa? Entra na dança, canta a música e se
bagunça junto? A gente se obriga a pensar também: a leitura não tem
grades, mas e para quem está preso? Ela liberta mesmo ou é só mais
uma forma de exclusão? E quanto às pessoas? O que sentimos por elas?
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Medo? Carinho? Pena? Preocupação? É necessário pensarmos sobre
essas questões e nos permitir sair do nosso lugar de conforto, para que
possamos nos incomodar, nos afetar, aprender e alegrarmo-nos com
essas experiências. Obrigada gente, pela parceria e pela partilha dessa
experiência enriquecedora. (DIÁRIO DE CAMPO, Bruna Padilha
Gonçalves, 19/12/2016, p. 22).
Cândido (2004) quando trata da literatura a vê como direito e lembra nosso
compromisso humano ao afirmar, como pressuposto, que “aquilo que consideramos
indispensável para nós, é também indispensável para o próximo” (p. 174). Pudemos
confirmar que a leitura pode abrir espaços de escuta para essas mulheres. Para todas as
pessoas, independente de localização espacial ou temporal, de gênero ou etnia. Essa é
uma das potências do Projeto “Leituras sem grades”. As experiências de algo que parece
simples, ou seja, levar leitura e oferecer escuta para mulheres que estão privadas de
liberdade, provocam uma série de reflexões e geram oportunidade para muitos
aprendizados. Mais do que respostas quisemos trazer o reverberar dos textos dos
participantes do projeto, alguns embebidos de subjetividade, talvez a mesma
subjetividade que não é possível experimentar num ambiente de aprisionamento de
corpos.
E a ansiedade, delas de voltarem para casa, de voltarem para seus lugares e ler
seus processos; as nossas, de ler mais, de trabalhar com a pintura, folhas,
guaches, lápis, canetas… técnicas? Sonhos? E emendamos uma dinâmica sobre
sonhos, os nossos, como eles se constituem, como eles se transformam pelas
pessoas ao nosso redor e como eles vão se fazendo e refazendo e se
transformando, talvez numa metamorfose ambulante ou não… já serão outros
sonhos, seriam os mesmos, são menores ou maiores do que o inicialmente
pensado, como que o outro interfere na gente, nos nossos sonhos, interferem
para o bem ou para o mal, o que fazemos quando retomamos as rédeas desse(s)
sonho(s) tão nossos...E a tinta, usar ou não usar, só uma quer usar a tinta e as
outras não… mas como continuar o sonho do outro, que começou com tinta?, e
todo mundo entra na roda para continuar, a sua maneira, a completar um sonho,
ou dar novas cores, novas possibilidades, novos olhares, novas leituras
compartilhadas que nos transformam. Aquele clima seco e árido, do centro
oeste; aquele clima seco e árido das relações interpessoais dentro das
instituições, nosso distanciamento em relação ao outro… e ali, naquelas horas
coloridas, que não invisibiliza as ansiedades, as penas, as punições (capela), as
raivas, os desejos, potencializa-nos ao humano (demasiado humano) que nem
sempre habita em nós, para resplandecer vislumbrosa, num tronco cortado,
interrompido, que permite, ainda assim, a beleza da rosa florir, colorizar e dar
(mais) vida a nossa vida. (DIÁRIO DE CAMPO, Merilin Baldan, 15/09/2016,
p. 13-14).
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As narrativas produzidas durante o projeto nos mostram a potência da
experiência entre os(as) participantes do projeto (sejam eles professores(as) estudantes e
mulheres aprisionadas), indicando empiricamente o processo peculiar das
problematizações das sexualidades e gêneros para além dos muros universitários. As
experiências narradas trouxeram a cada e a todos os encontros as provocações reflexivas
de maneiras plurais de estilos de vida, de possibilidades de escolhas e de um outro
(re)começar. A vida encarcerada não pode, portanto, ser determinada pelas questões que
levaram essas mulheres a infringir a lei, mas analisando cada situação a partir de
contextos sócio-históricos, políticos e culturais especificados para cada mulher; cada
mulher é uma história, e mesmo as história tendo similaridades, cada existência é única.
O dedo em riste moral e inquisidor se esfacela ao se ouvir relatos de vidas sofridas, mas
também em gargalhadas e solidariedades que brotavam de cada atividade de leitura
proposta.
A partir das teorizações trazidas para este trabalho e a implicação das incursões
por dentro da cadeia pública municipal feminina de um município de médio porte da
região sul do estado do Mato Grosso, rodas de conversas nas aulas do ensino
fundamental e médio, ou mesmo aquela chamada de “cantinho” para dizer do que
gosta/não gosta ou realizar um agradecimento pela oferta de empréstimos de livros
possibilitaram análises plurais sobre produções de subjetividades ora normatizadas e
assujeitadas, ora despontando como existências subversivas e resistentes a um sistema
capitalista. Os processos de estigmatização que propõem fixações identitárias dessas
mulheres (como presas ou ex-presas) nada contribui para uma proposta socioeducadora
plena e inclusiva. Ouvir um relato ou depoimento após a leitura de um poema nos fez
acreditar (cada vez mais) que não escutamos uma mulher, mas uma multidão de
mulheres em suas mais variadas interseccionalidades com marcadores sociais de
raça/etnia, classe social e econômica, geração (idade), corporalidades, territorialização,
entre outros.
Por fim, que as vidas dessas mulheres sejam como livros abertos cheio de
palavras e desejos a serem ditos e espalhados pelo mundo. Se a história está apresentada
de forma triste e tortuosa, que pelo menos as experiências com a leitura possam
encorajá-las a virar a página do passado e construir outras narrativas.
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TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 5.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2014.
Discussion of gender with women of the Female Public Jail of
Rondonópolis-MT: an experience of the project of extension "Lectures
without grades"
ABSTRACT: The text aims to narrate an experience of the Extension Project “Lectures without
grades”, coordinated by me, Elni Elisa Willms, in 2016 and developed by thirteen teachers,
besides 35 students of several courses Of the UFMT-CUR and some people from the
community outside the university. The project's methodology consists of not previously
combining what each one will take to read in the institutions visited - bets on the experience of
exposing itself to chance, without much control - in addition to offering listening, that is,
experimenting with bringing literature to people Who are under deprivation of liberty and who
have little contact with this mode of cultural production and then begin a process of listening
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elicited by the readings. In the limit of this communication we will bring the narrative of an
experience in the Rondonópolis Women's Public Jail and how the reading affected both the
people who received our texts and those who executed the project. It is concluded that the
literature can promote powerful encounters for gender discussions and allows us to think about
the human condition, thus contributing as aesthetic training and training itinerary beyond the
classroom educational experiences.
KEY WORDS: Reading; Gender; Literature; Experience