Revista Mundo Antigo Ano V, V. 5, N 11 Dezembro 2016 ISSN 2238-8788
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Domus ecclesiae como marker space:
um lugar de culto entre a liturgia judaica e o batismo cristo
Rodrigo Hiplito1
Fabiana Pedroni2
Submeitido em 07/2016
Aceitor em 08/2016
RESUMO:
O presente artigo traz uma explanao sobre a transio entre espao de serventia puramente prtica para
o espao que representa e representado na atividade humana. A estrutura fsica e simblica da domus
ecclesiae de Dura Europos (Sria, 240 d.C) tomada como objeto para se observar a transformao de um
espao de assembleia comunitria em um ambiente de instituio religiosa. A distino entre shelter space
e marker space ser empregada para entendimento da trajetria do domstico para o pblico, tendo o
sacramento do batismo como principal foco de adaptao estrutural no edifcio do cristianismo primitivo.
Palavras-chave: domus ecclesiae, batistrio, shelter space, marker space
ABSTRACT:
This paper presents an explanation of the transition from the space of purely practical use for the space
that represents and its represented in human activity. The physical and symbolic structure of the domus
ecclesiae of Dura Europos (Sria, 240 AD) is taken as an object in order to observe the transformation
from a space for community assembly to an environment of religious institution. The distinction between
shelter space and marker space will be used for understanding the trajectory of the domestic to the
public, with the sacrament of baptism as the main focus of structural adjustment in the building of early
Christianity.
Keywords: domus ecclesiae, baptistery, shelter space, marker space
1 Mestre em Teoria, Histria e Crtica da Arte (PPGA-UFES) e professor assistente do Departamento de
Teoria da Arte e Msica da Universidade Federal do Esprito Santo; Membro do Laboratrio de Pesquisa
em Teoria da Arte e Processos (LabArtes) e redator do site notamanuscrita.com. e-mail:
2 Mestre em Histria Social pela Universidade de So Paulo e professora de metodologia de ensino de
Histria e da Arte na Faculdade Europeia de Vitria. Membro do Laboratrio de Teoria e Histria da
Imagem e da Msica Medievais (LATHIMM) e redatora do notamanuscrita.com. e-mail:
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Quando o abrigo seguro, a tempestade boa. Henri Bosco
Para Michel de Certeau, h uma distino bsica entre lugar e espao. A ideia de
lugar seria definida com referncia posio de elementos relacionados. Lugar diria
respeito coisa que est a e pode ser localizada, que possui localizao. Em
complemento a essa concepo, a ideia de espao surge como resultado da atividade
sobre o lugar. Agir sobre o lugar determina a construo do espao (CERTEAU, 1998,
p. 201-202).
O homem constri espacialidade atravs de suas aes sobre lugares. possvel
transitar de um lugar para outro, isto , estabelecer trajetrias entre localizaes. J o
estabelecimento de atividades sobre dado lugar conferiria significado para tal
localizao. Um conjunto de aes que permite a identificao de uma localidade como
lugar do homem traz baila o sentido de habitar.3 Os ecos da palavra hbito
reproduzem os valores dos rituais quotidianos.
Empreender uma rotina no espao, isto , fazer uso do que foi construdo, agrega
sentidos para a estrutura formal da construo. Atravs da atividade humana, os espaos
apresentam-se como construes sociais complexas. Sob esse prisma, a definio do
espao no estaria restrita a ocupao ativa de um lugar, mas sim se estenderia para a
variedade de significados possveis pelos modos de ao sobre o lugar. Diante de tal
expanso para o abstrato, as representaes espaciais adentram o domnio do simblico.
O interesse do presente texto est no entendimento do papel do espao simblico
no desenvolvimento da instituio social, atravs das marcas de seu uso ritual. Na
anlise da domus ecclesiae de Dura Europos (Sria) sero observadas as modificaes
ocorridas num espao domiciliar da antiguidade para sua transformao em templo
cristo. Dado o emaranhamento entre as ritualsticas dos judeus e dos primeiros
cristos4 a insero do sacramento do batismo
5 ser tomada como ponto mais relevante
das modificaes estruturais realizadas para a efetivao da domus ecclesiae. 6
3 O carter ontolgico de habitar se manifestaria no sentimento de pertencimento. Essa pertena se
daria pelo modo do homem de estar no mundo entre as coisas, no ato de dar-lhes significados a partir de
uma ordinria familiaridade. (TEIXEIRA, 2006, p. 39). 4 Considera-se, para fins prticos, o perodo do sculo I ao III como prprio do desenvolvimento do
cristianismo dito primitivo. Tal perodo se encerraria com a converso de Constantino em 313. De todo
modo, durante esse desenvolvimento no se deve esquecer que a primeira comunidade crist era
totalmente judaica. (HORTAL, 1996, p. 3). 5 Os textos do novo testamento no trazem propriamente qualquer descrio dos ritos de batismo no
perodo apostlico. Desse modo, alguns detalhes a respeito da passagem dos iniciados para a comunho
no sacramento da eucaristia devem ser observados (KALMBACH, 2002, p. 21), principalmente quando
se considera a influncia que tal passagem poderia exercer sobre as transformaes fsicas dos edifcios
destinados ao culto. 6 A etimologia da palavra igreja razoavelmente controversa. No portugus a palavra aparentemente
deriva do grego ekklesia, palavra traduzida normalmente por assembleia, mas que possua o significado
mais profundo de convocao para o exterior. A domus ecclesiae eram, assim, os locais de aceitao da
convocao para fora de algo. No ingls a palavra church aparentemente deriva do grego Kyrios, palavra
traduzida normalmente por Senhor, ou Deus, como reproduo de Yahweh. No ingls primitivo a
palavra church encontrada como cirice, proveniente do grego Kyriakus, expresso cuja traduo
aproximada diz aquilo que pertence ao Senhor. Dentro desse conjunto a frase Kyriakon doma diria a
casa que pertence ao Senhor. Em ambas as etimologias, nota-se a importncia da indicao da casa como
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Domus, traduo latina do (diamons) grego, chega at ns como casa,
no sentido de edificao para moradia. A palavra grega uma variao do verbo
(diamon, ficar) e expressa a deciso do homem em permanecer, fixar-se de
algum modo. Tal deciso, de estabelecer-se, poderamos relacionar com o
entendimento de Certeau a respeito da construo do espao pela atividade humana. No
entanto, para os gregos, o sentido de espao ainda mais fragmentado. Ressaltam-se
trs palavras gregas para dizer espao: (choros),7 que seria o espao que uma
coisa ocupa, ou, onde algo , (topos), que a localizao de uma coisa no espao,
sua posio, e (kenon), o espao vazio, o vcuo que surge ao se retirar o on do
mundo. 8
A atividade humana aquilo que impede que o espao construdo recaia na
condio de Kenon. Ao decidir ficar, isto , estabelecer-se em dado lugar, o homem
deve criar as condies de sua permanncia, tanto com as estruturas formais
(edificao), quanto com os sentidos de uso dessas estruturas (hbitos).9 Sob tal
enfoque, o domus se apresenta como o lugar do hbito humano, ou seja, habitar
estar no domus (BOLLNOW, 1969, p. 119). Ao dizer domus ecclesiae, expressa-se uma
condio mais complexa, na qual o hbito aparece como elemento agregador. A
inteno da assembleia , ento, colocada como motivo chave para a realizao da
espacialidade vivida pelo grupo. O espao resultante da inteno de assembleia surge
como uma potncia de construo de uma realidade social complexa.10
Tal concepo
de espao abrangente e abstrata e corrobora no desenvolvimento de uma espcie de
representao alegrica. A identificao dessa espcie de representao de ideias
fundamental para a compreenso do aparecimento das primeiras produes visuais
prprias da cristandade.
A expanso da f e das doutrinas crists estava alicerada, em seu incio,
basicamente no empenho oral de seus seguidores. As converses e a manuteno do
sentido dos ensinamentos religiosos cristos dependiam da comunicao direta dos
apstolos e primeiros missionrios com as populaes pags. Um importante auxiliar
nessa comunicao era a linguagem escrita.11
As cartas enviadas pelos apstolos s
lugar catalisador das atividades de culto. Apesar das muitas dvidas sobre os sentidos das palavras nas
tradues dos textos bblicos para o grego, importante lembrar que, a exceo de Paulo e Lucas, os
autores dos textos do Novo Testamento no possuam conhecimento aprofundado do idioma grego, ao
menos no alm de sua vivncia comum. (ROBINSON, 2012, ix). 7 No confundir com (chorus), a voz relativa expresso dionisaca e comunal (JUNIOR, 2006-
2007). a comunho de vozes, j o espao central. 8 Lugar seria realmente distinto do vazio, pois este se identifica com a impossibilidade da pura extenso
sem corpo. (ARISTTELES, 2011, p. 98). 9 Para Heidegger o habitar estaria ligado ao sentido de innam, deter-se em. De modo mais
aprofundando, a expresso na, diz do ter uma relao de habitao, familiaridade com, tenho o costume
de... (PROENA, 2011, p. 13). 10
Milton Santos considera a noo de intencionalidade no apenas para reviso da teoria do
conhecimento, mas tambm para entendimento da produo de coisas considerada como resultado da
relao do homem com o mundo. Exatamente pela capacidade de agir sobre os demais objetos,
significando-os e sendo afetado por esses significados, isto , por no ser mais um objeto dentre os
demais, o homem poderia ser definido por sua intencionalidade. (SANTOS, 2006, p. 59). 11
A narrativa dos atos de Cristo pelos apstolos e evangelistas tendia a se fixar na memria pela
repetio. Nos primeiros anos aps a morte de Cristo a oralidade supriu as necessidades missionrias, j
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comunidades de novos convertidos alcanam relevncia suficiente para comporm parte
das Bblia crist e definirem procedimentos litrgicos. 12
A datao do aparecimento das representaes visuais no cristianismo primitivo
no encontra exatido, mas, remontaria aproximadamente ao sculo II (EUSBIO,
2005, p. 11). O uso da potncia comunicativa das linguagens visuais dificilmente
poderia ser ignorado quando se considera que a converso dos povos pagos era
atividade sublinhada na agenda missionria. No entanto, a aceitao da incluso de
contedos visuais na comunicao crist deve considerar tanto a interdio, por parte da
cultura judaica, das representaes figurativas relacionadas ao divino,13
quanto fora
da produo artstica no universo greco-latino e a necessidade de discrio dos cristos
frente a possveis perseguies. 14
A tradio judaica de oposio ao paganismo inevitavelmente deixava rastros
nos princpios doutrinrios cristos. Ainda assim, para a rpida expanso da nova f,
mostrou-se necessria a adoo das representaes figurativas. Inserida numa sociedade
habituada visualidade das construes greco-latinas, o sucesso das converses crists
estaria submetido, de incio, a possibilidade de reconhecimento de ideias atravs de
imagens figurativas.
Contudo, essa tolerncia concretizou-se com fortes restries: foi
suprimido o naturalismo e o realismo das representaes figurativas,
sendo revelado seu significado alegrico. As imagens foram exauridas
da sua dimenso corporal, pois no se destinavam a ser objeto de
idolatria, caracterstica do paganismo. Desenvolveu-se assim uma
linguagem de cariz simblico, uma expresso plstica na qual se
procura sintetizar uma ideia, atravs da qual se codificam os
princpios e ideais cristos (EUSBIO, 2005, p. 10).
O uso da figurao com forte cunho alegrico aponta para a necessidade de
demonstrao de um espao abstrato prprio da vivncia da f crist: um cdigo.
Tanto a produo de imagens quanto a edificao das estruturas fsicas necessrias para
o culto cristo esto aliceradas na representao de algo que no seja exatamente a
imagem nem a estrutura erigida. A dimenso simblica do monumento est ligada a
concepo abrangente de espao, no apenas como produto do social, mas tambm
aps a morte da primeira gerao de discpulos, foi inevitvel recorrer a fixao dessas narrativas na
escrita. (MENDES, 2011, p. 11). 12
O papel de Paulo poderia ainda ser ressaltado dentro das determinaes da ordem crist em seu incio.
Quando se considera que treze dos vinte e sete escritos formadores do Novo Testamento so creditados a
Paulo e em grande parte dos Atos dos Apstolos ele protagonista, sua marca j estaria reconhecida.
(RAMOS et AL, 2012, p. 7). 13
O nvel de interdio para a criao de cones dentro da tradio judaica remonta ao sculo VI a.C, com
o chamado movimento deuteronomista. Esse movimento constituiu uma verdadeira reforma religosa,
pautada numa interpretao mais profunda da torah. A viso religiosa dos deuteronomistas acabou por se
espalhar por vrios livros do antigo testamento. No por coincidncia, h o livro chamado Deuteronmio.
A partir do movimento deuteronomista torna-se forte no mundo judaico o entendimento do Deus como
palavra, no como apario imagtica. (MARTINS, 2010, p. 302). 14
De fato, durante os trs primeiros sculos de nossa era os cristos sofreram perseguies espordicas
durante o domnio do Imprio Romano. No sculo I foram 6 anos de perseguio, no sculo II, 86 anos,
no sculo foram 24 e no sculo IV 13 anos de perseguio at a assinatura do dito de Milo
(GIORDANI, 1985, p. 331).
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como produtor de sentidos comuns nas aes de um grupo de pessoas. Na domus
ecclesiae, observa-se o monumento que rene, simultaneamente, o espao que
representa uma situao (abrigo, proteo) e o espao que representado, tanto pelos
ornamentos (pinturas) quanto pelos procedimentos de culto (liturgia crist).
Shelter Space e Marker Space
Ao falar da transio das comunidades para as instituies sociais, Ahmet nc
Gney usa os conceitos de shelter e marker. Com vistas para a distino entre lugar e
espao, esboada no incio deste texto, podemos encontrar definies diretas dos
conceitos usados por Gney. De modo simplificado, shelter space diria respeito ao
ambiente purificado dos contedos no-espaciais, um ambiente encontrado ou
construdo apenas para servir como abrigo. Assim, qualquer espao escolhido ou erigido
pelo usurio por motivaes puramente prticas estaria enquadrado na categoria de
shelter space.
Marker space seria exatamente o oposto de shelter space. Seria, ento, o
ambiente sobrecarregado de elementos no-espaciais (abstratos), erigidos ou escolhidos
no apenas por motivaes prticas, mas tambm por determinaes de gosto, de valor
moral ou de responsabilidade social.
Monumentos podem oferecer o exemplo perfeito de marker space, por
causa de seu programa arquitectnico e significados nele embutidos.
Como tal, um edifcio pode tornar-se um marker space sem considerar
sua escala volumtrica ou qualidade visvel. 15
Para Gney, as duas categorias de espao, shelter space e marker space, so
fruto de duas construes sociais diversas. Shelter space seria o resultado da sociedade
como comunidade, enquanto o marker space formado pela sociedade como
instituio. O autor constri as categorias de instituio e comunidade como dois
opostos, isto , as caractersticas mais marcantes na definio de uma comunidade
encontrariam seu exato antagonismo nas bases de determinao de uma instituio.
Tratar-se-iam de formas de ocorrncia da reunio de grupos de pessoas em dado espao.
Tais formas de ocorrncia, apesar de sua oposio, seriam geradas uma a partir da outra.
Assim, uma instituio poderia passar a apresentar condies comunitrias, embora o
mais recorrente seja o caminho no qual uma comunidade se institucionaliza.
Se as caractersticas mais significativas do modelo de sociedade comunitria so
a participao voluntria e a contribuio de seus integrantes para a manuteno do seu
sistema, a instituio estipula compromissos e frequncia de atividades obrigatrias para
que sua organizao tenha continuidade. Se na comunidade o voluntariado ressalta o
valor do amador e do rotineiro, na instituio a responsabilidade do cumprimento de um
15
Monuments can offer the perfect example for marker space because of their architectural program
and meanings embedded in them. As such, a building may become a marker space without considering its
volumetric scale or aspectual quality. (GNEY, 2012, p. 4-5)
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papel no conjunto acarreta o profissionalismo e o registro de processos (GNEY, 2012,
p. 64).
De uma categoria social para outra, a transformao mais profunda talvez esteja
ao nvel da intencionalidade. Dentro do sentido de comunidade, a reunio dos
indivduos a soluo de uma questo externa, isto , a equivalncia entre as
necessidades dos indivduos o im que os mantm em assembleia. Exemplos desses
ims so a busca por segurana, a produo de alimento, a caa, a reproduo e tambm
a retificao de uma ideia de mundo, como no caso da crena espiritual. J no interior
de uma organizao social baseada na obrigatoriedade e na legislao, o interesse
primeiro desloca-se para a continuidade do modo de vida e o esforo maior est na
observncia das normas prescritas pelas autoridades profissionais reconhecidas. Desse
modo, uma comunidade bem sucedida tende a alcanar o registro de processos e o
profissionalismo e assim caminhar para a institucionalizao. In an institution,
amateurs should leave the stage to the professionals and watch the rest of the show
from their seats, silent and respectful. (Idem, p. 65).
No caso dos primeiros cristos, a comunidade que se reunia para a retificao de
uma crena e proteo dos ataques de seus opositores seguiu em direo a sua
institucionalizao com a observncia de uma liturgia especfica, a constituio de uma
histria sagrada (bblia) e a oficializao como religio pelo Estado.16
Um movimento
oposto pode ser visto, imediatamente, na instituio judaica, a qual gerou a comunidade
crist.
O espao resultante da atividade de um grupo normatizado diferente daquele
gerado pelas aes voluntrias de uma comunidade. Nesse sentido, dentro das
manifestaes dos primeiros cristos, interessados em sua proteo e na retificao de
suas ideias, haveria uma busca pela constituio de uma liturgia distinta daquela
praticada pelo judasmo, mas que no dessacralizasse sua histria sacramentada. O
shelter space do cristianismo primitivo agregaria normas do judasmo e exigiria
adaptaes com a insero de valores e sacramentos para construir um marker space.
Essas so, certamente, conotaes ideais de espao. Dificilmente encontraramos
um espao plenamente shelter ou marker. De todo modo, a casa surge como um
exemplo forte de espao protegido e afastado das determinaes sociais. Teoricamente,
no interior da casa, as regras vigentes no so as do Estado, mas sim as da famlia. A
casa, em ltima anlise, uma construo que simboliza a famlia. A verdadeira casa,
para ser plenamente habitada, exigiria a familiaridade com o ambiente de proteo
(BOLLNOW, 1969, p. 142). Essa representao comunitria da casa estaria ligada ao
sentido de abrigo, proteo e confiana.17
Nesse sentido, a casa, o domus, seria o local
prprio do habitar comunitrio e, por conseguinte, prprio para as atividades da
assembleia crist primitiva.
16
Com o dito de Milo, promulgado por Constantino em 313, os cristo ganharam liberdade de culto, de
modo que, apenas a partir de tal data consideram-se as edificaes destinadas a celebrao da eucaristia
(baslicas paleocrists). 17
Bachelard faz referncia sensao infantil da vontade de resguardar sua felicidade (1989, p. 243), mas
tambm ao mais primitivo, ao mais simples, e talvez por isso objetivo, ato de procurar abrigo, nas casas
de animais (1989, p. 276).
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O uso do espao da domus ecclesiae o exemplo escolhido neste estudo para
explorar a passagem de shelter para marker, pois os primeiros cristos se encontravam
no interior de duas construes sociais entendidas como instituio: o judasmo e o
Imprio Romano. Dentro de tal quadro, as prticas dos cristos primitivos so
consideradas como comunitrias, pois no se aliceram ainda sobre bases seguras. As
prticas da comunidade seriam ento preservadas pela prpria manuteno voluntria
dos rituais, no atravs das determinaes de um profissional. No entanto, no se deve
pousar os olhos sobre a estrutura de uma dessas casas de assembleia sem antes realizar
uma breve reviso da sinagoga judaica.
Aparentemente, a relao entre os cristos guiados pelos apstolos e
missionrios, nos trs primeiros sculos aps a morte de Jesus, sofreram uma separao
quanto uso da sinagoga judaica. Os cristos seguidores da pregao de Thiago
mantiveram obedincia lei judaica, o respeito a sua simbologia, a cerimnia e suas
autoridades. J os seguidores de Paulo, aceitavam certa relativizao das prticas
litrgicas realizadas no interior da sinagoga (BROWN, 1986, p. 30). A separao entre
sinagoga e igreja a separao entre dois universos vizinhos, mas que em dado
momento tornaram-se mesmo opostos, o cristianismo e o judasmo. Embora os
primeiros convertidos, provenientes da instituio judaica, fizessem suas oraes e
leituras no interior das sinagogas e reservassem a experincia dos sacramentos para a
domus ecclesiae (PLAZAOLA, 1999, p. 7), o encontro com um espao mais completo
tornava-se urgente. Tal espao no deveria apenas significar um ambiente de fuga e
segurana para os novos sacramentos (eucaristia e batismo), mas tambm possibilitar as
experincias de orao e leitura realizadas na sinagoga judaica. Quais resqucios da
estrutura da construo litrgica da sinagoga podem ser observados na adaptao do
local de culto da igreja primitiva?
Levantars o Tabernculo segundo o modelo que te foi mostrado no monte (Bblia
hebraica, xodo, 26:30)
A histria do povo judeu indica uma experincia religiosa profundamente
marcada pelas constantes mudanas entre o abrigo e o exlio (PAUL, 1983, p. 169). A
sinagoga no dispensa esse sentido, pelo contrrio, mantm a conotao de smbolo de
um templo maior, da morada de Deus.18
O que constitui a possibilidade de sinagoga a
existncia do miniam,19
no o edifcio propriamente dito (GOMES, 2011, p. 18). De
fato, como todo o templo, constituda de uma srie de elementos que simbolizam
acontecimentos e objetos originais. O Primeiro Templo de Jerusalm, por exemplo,
simboliza o Tabernculo de Moiss, erigido no deserto durante a fuga dos hebreus do
Egito, no sculo XVI a.C. Esse primeiro templo, construdo durante o reinado de
18
Em ltima anlise, a sinagoga remete ao Tabernculo, construo orientada por Moiss como
representao da prpria casa de Deus no paraso. (GOMES, 2012, p. 10). 19
O minian o quorum, de 10 homens adultos, para as cerimnias judaicas. Em qualquer local onde o
miniun se rena possvel que haja celebrao, j o oposto, mesmo que haja o edifcio paramentado, sem
o miniun no possvel a realizao da cerimnia.
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Salomo, no sculo X a.C., haveria de ser destrudo pelos babilnicos em 538 a.C, ao
que se seguiu sua substituio pelo segundo Templo de Jerusalm, o qual encontraria
seu fim em 70 a.C. 20
O Templo, espelho do Tabernculo, era fundamental no calendrio de atividades
religiosas dos judeus e sua extino trazia a necessidade de novo espelhamento. A
estrutura das sinagogas, apesar de muitas variaes possveis, obedeceria s prticas
realizadas no interior do Templo de Jerusalm.
Para entendimento dos programas internos das sinagogas, sua continuidade e
influencia sobre o espao litrgico cristo, no seria possvel definir um s perodo de
observao, dadas as especificidades de cada construo. Dos mais antigos registros
arqueolgicos ligados ao culto judaico, a sinagoga de Massada, Israel, data de 66 a 74
a.C. Provavelmente por ser contempornea do segundo Templo de Jerusalm, a
sinagoga de Massada apresenta extrema simplicidade em suas instalaes. A construo
composta apenas por um salo de reunies cercado por quatro fileiras de bancos e um
cmodo fechado ao norte (Idem, p. 47). O salo seria apenas suficiente para a
acomodao do bimah 21
e dos bancos. O cmodo em separado provavelmente seria
usado para acomodao da Torah. 22
J no sculo I, a sinagoga de Ostia23
apresenta um conjunto bem mais variado.
Com uma estrutura que mede aproximadamente 37x26 metros, essa sinagoga possua
tambm uma localizao urbana mais relevante.24
Por ser posterior a dispora,25
o
espao de culto deveria permitir a identificao com os rituais possveis no Templo de
Jerusalm. Com uma entrada ladeada por colunas, um vestbulo de acesso com fonte e
poo, o conjunto de Ostia apresenta, alm do santurio, onde se encontravam a bimah e
20
Para detalhes sobre as dataes e a importncia do exlio para o povo judeu Cf. PARSONS, 2010. 21
Bimah o nome da mesa usada para sustentar os rolos da Torah durante sua leitura. Este um
importante elemento para a determinao da arquitetura de uma sinagoga. Sua localizao costuma
marcar o eixo central da edificao, pois deve ser vista por toda a audincia. Por essa mesma razo
frente sua disposio sob uma claraboia, brecha de luz ou entre pilares. De modo geral, a bimah ser
posicionada em oposio a arca da torah, mas possvel observar uma evidente distino entre os
edifcios sefaraditas, de origem ibrica, e os asquenazitas, do leste europeu. No caso dos primeiros, a
bimah disposta no lado oposto do salo em que se encontra a arca, j para os segundos a bimah deve
ocupar o centro do prdio para marcar o eixo leste-oeste de orientao da sinagoga. (GOMES, 2012, p.
32). 22
A Torah constituda pelo Pentateuco cristo, do Gnesis ao Deuteronmio. Sua leitura constitui parte
fundamental do ritual judaico, pois guarda a lei transmitida por Deus a Moiss. A importncia da torah
tamanha ao ponto de, por vezes tronar-se uma expresso que referencia toda a tradio judaica. 23
Durante as vastas escavaes realizadas na cidade de Ostia na dcada de 1960 foram encontradas as
primeiras indicaes da sinagoga, datadas do sculo IV. Prospeces no terreno puderam localizar uma
edificao anterior, abaixo da mais recente, datada do sculo I. (HOFFMANN, 1962, p. 422) Essa datao
colocaria a sinagoga de Ostia como o mais antigo templo judeu encontrado na Europa. 24
A sinagoga de Ostia localizava-se fora dos domnios da cidade propriamente dita. relevante sua
proximidade com o porto de Ostia, considerado um dos grandes empreendimentos porturios romanos
(BLOT, 2003, p. 136) e com a Via Severiana, importante rota romana que cruzava de Ostia a Terracina,
tal proximidade ressalta interesses diplomticos e comerciais dos judeus na construo de seus locais de
culto (RAMOS, et al, 2012, p. 76). 25
A segunda grande dispora do povo judeu ocorre aps o ano de 70 d.C. com a destruio de Jerusalm
pelo exrcito romano. Nessa invaso dos romanos ocorre a queda do Segundo Templo de Jerusalm, o
que torna essa data a determinao da disperso definitiva dos judeus at o estabelecimento do estado de
Israel, j no sculo XX.
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a Ctedra de Moiss,26
uma srie de cmodos de tamanhos variados. Esses cmodos
comportavam uma mikveh,27
uma cozinha com forno e um provvel triclinium.28
Ao sul
das colunas tipo propylaeum se encontraria uma bimah com uma grande aedicula, onde
provavelmente se conservaria a torah (GOMES, 2011, p 60).
A aedicula, ou equivalente, aparece como um elemento central nas sinagogas,
pois simboliza a Arca da Aliana do Antigo Testamento.29
Guardar a torah preservar
as tbuas da lei judaica, atitude que simboliza a manuteno da ordem de Deus confiada
a Moiss. Por essa razo, a arca da torah deveria permanecer no Santo dos Santos,30
com entrada permitida apenas ao sacerdote reconhecido. Como smbolo da Arca da
Aliana, a lei judaica permaneceria velada e imersa no ar sagrado da queima de sete
velas a menorah.
A posio da arca da torah orientaria a sinagoga na direo de Jerusalm, como
espelhamento do ltimo templo, destrudo no sculo I a.C. Mas, a determinao da
organizao interna do edifcio dependeria da posio escolhida para a bimah. A
plataforma de leitura se encontraria, provavelmente, no lado oposto a arca da torah ou
ao centro do santurio. Seu posicionamento deveria facilitar a ateno da audincia para
a leitura dos rolos da torah, realizada pelo rabino.31
Ainda assim, os servios religiosos
poderiam abrir mo da presena de um rabino, mantendo-se a exigncia do miniam e a
presena do chazan.32
Em todo o caso, a arca e a leitura da torah deveriam ser
realizadas voltadas na direo de Jerusalm. Disso conclui-se que nenhuma sinagoga
se referia a si mesma [...] que o fulcro ltimo do culto sinagogal era o Santo dos Santos
(LIMA, 2012, p. 23).
No caso da domus ecclesiae de Dura Europos, deve-se considerar tanto o
contexto de perseguio romana quanto os fatos de ser uma construo imersa num
ambiente mitrasta33
e adaptada por judeus cristos. Nascente em meio perseguio34
e
26
Assento reservado para o oficiante ou para as maiores autoridades. O nome dado referncia a
passagem Ento falou Jesus multido, e aos seus discpulos, dizendo: Na cadeira de Moiss esto
assentados os escribas e fariseus (Mt 23.1,2). 27
O mikveh um espao preparado para o ritual de imerso judaico, e tambm o nome do prprio ritual.
A ocorrncia da imerso poderia se dar tanto em relao a purificao aps o perodo menstrual, quanto
na converso ou mesmo semanalmente antes do shabbat. 28
O triclinium era uma espcie de sala de jantar comum em construes dos romanos. O nome referencia
os trs sofs dispostos no centro da sala, ao redor de uma mesa quadrada. A identificao de um
triclinium numa sinagoga indicaria a aderncia, por parte dos judeus de Ostia, de costumes romanos. 29
Arca onde se guardavam as tbuas dos mandamentos revelados Moiss. 30
Espao do Tabernculo em que repousava a Arca da Aliana. Esse espao era reservado para a entrada
do Sumo Sacerdote durante o ritual de sacrifcio anual do cordeiro sem maculo, o Yom Kippur. Seria essa
a nica ocasio em que se falava diretamente com Deus. 31
Diferentemente da figura do padre para os cristos, o rabino no um representante de Deus, mas sim
um estudioso da lei que possui autoridade para conduzir celebraes e organizar o dia a dia da
congregao. 32
possvel que se realizem celebraes sem a presena de um rabino, no entanto, a ausncia do chazan
poderia impedir o andamento litrgico, pois a figura que guia a congregao. Como conhecedor da
torah e da lngua hebraica o chazan canta as oraes e recita as bnos. 33
O mitrasmo foi antecedido na Prsia pelo zoroastrismo e, de certo modo, o cristianismo se enquadraria
nessa linha. Ocorre que o imperador Constantino estaria a procura de uma religio nacional e ideia de
importar Mitra do mundo indiano no lhe seria to adequada quanto a aceitao dos cristos. (Cf.
AFONSO, 2012).
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a oposio mitrasta, a ligao com a lei judaica deveria surgir como um peso menor e
mesmo favorvel manuteno de uma nova crena.
A casa, construda em 230 e reformada dez anos depois para servir ao culto
cristo, permanecer em uso at a incurso sassnica, por volta de 260. As escavaes
ocorridas na dcada de 1930 fizeram emergir uma cidade em razovel estado de
preservao, 35
provavelmente por ter sido abandonada aps 260. Na mesma avenida em
que se encontra a casa-igreja podem ser observadas mais duas construes religiosas,
uma sinagoga e um mithraeum. 36
As trs construes passaram por processos similares durante meados do sculo
II, com a adaptao de um edifcio residencial para um edifcio prprio para o culto
religioso. Essa curiosa demanda de religies variadas, que aponta para certa harmonia
entre os cultos a Mithra, Yahweh e Jesus, parece ter ocorrido j nos momentos finais da
cidade de Dura, pouco antes da invaso sassnica. 37
No caso da residncia crist, possvel observar uma tpica estrutura residencial
de Dura anterior adaptao para o culto (Figura 01). Com 20m a leste, 19m a oeste,
22,5m ao sul e 18m de parede ao norte, a residncia possua no mnimo oito cmodos e
um ptio aberto para ventilao.
34
A perseguio aos cristos deu origem a Disciplina do Arcano, exigindo a representao simblica dos
mistrios da religio. De certo modo o simbolismo cristo surge na arte paleocrist, ou catacumbria. 35
A cidade de Dura passa por escavaes organizadas pela Universidade de Yale desde 1933. Atualmente
boa parte do contedo pictrico e arqueolgico mvel encontra-se no Museu de Damasco e nos arquivos
de Yale. Parte das informaes aqui utilizadas foram observadas dos contedos disponibilizados pela
Universidade de Yale atravs do endereo 36
Para informaes mais detalhadas sobre as datas e outros edifcios presentes em Dura-Europos, cf.
GNEY, 2012, p. 111 e < http://media.artgallery.yale.edu/duraeuropos/dura.html>. 37
Durante as escavaes de 1933 foram encontrados papiros e pergaminhos, inclusive no interior da
domus ecclesiae. Os papiros encontrados fora dos portes de Palmira, ao fazerem referncia a variao
cultural e religiosa de Dura, confirmam o que se observa pela riqueza de detalhes da decorao do
mithraeum e da casa-igreja. Os pergaminhos da casa crist, com passagens em hebraico, apresentam a
mais antiga orao eucarstica do mundo cristo. Isso demonstra a observao, j nos primeiros
momentos da expanso crist, de uma determinao mais rgida com relao aos sacramentos do batismo
e da eucaristia. (GNEY, 2012, p. 122).
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Figura 01. Plano da domus ecclesiae de Dura Europos pr-reforma. Fonte:
No lado sul observa-se uma entrada para o vestbulo (8), diretamente conectado
com o ptio central (1), no qual duas colunas com reboco de gesso separam o ptio
propriamente dito, do acesso a outros pontos da residncia atravs de escadas (2),
provavelmente uma rea de subsolo. Para a direita do ptio encontram-se escadas de
acesso a um possvel pavimento superior (7) e no lado oposto, alguns degraus levam
para a sala de jantar (4A) tpica das residncias de Duros, com bancos de gesso e um
braseiro. Tal sala de jantar ligava-se com uma dispensa (3) e a com as dependncias de
mulheres (4B e 5). (GNEY, 2012, p. 112).
O exterior dessa residncia permaneceu quase intocado na adaptao ocorrida
em 240. No interior, as principais mudanas se deram nas reas do Ptio, na dispensa,
na sala de jantar e nas reas mais protegidas do edifcio. O ptio interno teria recebido
nova pavimentao e bancos em formato de L, alm de nova cobertura de gesso sobre as
decoraes no-crists. A sala de jantar e o cmodo imediatamente conectado tornaram-
se um nico grande salo (12x5m), que serviria para as reunies da assembleia,
considerando a plataforma instalada na parede leste. A sala 3, antigo armazm da
famlia, mantida com a separao de uma parede da sala da assembleia, seu uso,
provavelmente, estaria relacionado guarda dos artefatos utilizados nos cultos.
A maior alterao do edifcio ocorreu entre a sala 5 e a sala 6, com a
implantao de um prtico. Tal alterao apontaria para um maior movimento nessa
rea da casa. Ocorre que o cmodo 6 foi transformado num batistrio (Figura 02). Na
parede oeste da sala foi instalada uma piscina de aproximadamente 1m de profundidade.
O batistrio foi ornado com colunas e pilastras pintadas para terem aparncia de
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mrmore, bancos por toda a parede leste e um extenso conjunto de pinturas nas
paredes.38
Figura 02. Plano da domus ecclesiae de Dura-Europos ps-reforma. Observa-se que, tanto o espao
determinado anteriormente para o cmodo 2 torna-se um prtico de acesso a escadas para um subsolo.
Mais um conjunto de escadas a direta do ptio ascenderiam ao ambiente domiciliar da famlia a qual
pertencia a casa. Fonte: GNEY, 2012, p. 169.
A sala imediatamente ligada ao novo batistrio serviria como local de ensino dos
novos convertidos e tambm para audincia dos no iniciados. Ocorre que na igreja
crist primitiva os recm-convertidos eram limitados em alguns passos da cerimnia, de
modo que sua entrada no espao de culto deveria ser apenas parcial. Diante dessa
espcie de restrio tornou-se necessrio adaptar o peristilo das residncias a serem
utilizadas como locais de culto, para que pudessem receber os fiis recm-convertidos,
isto , os catecmenos. As adaptaes visavam manter a separao espacial sem impedir
que a cerimnia fosse ouvida pelo grupo (GNEY, 2012, p. 112).
Na descrio de Krautheimer, haveria bancos na entrada e bancadas correriam
pelas paredes dessa recepo. A sala de culto comportaria uma assembleia de cinquenta
a sessenta pessoas e a sala de catecmenos aproximadamente trinta indivduos,
desconfortavelmente (KRAUTHEIMER, 1986, p. 27). No espao de culto da domus
ecclesiae de Dura Europos, encontra-se ainda uma plataforma a leste do lado mais
extenso do cmodo (12m de comprimento).
38
As pinturas da casa seriam: Bom Pastor, Ado e Eva, as santas mulheres no tmulo, a cura do
paraltico, Jesus andando sobre as guas, cinco mulheres em procisso, Davi e Golias e a Samaritana.
(LIMA, p. 26-27)
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Mas, o batistrio que encontramos o maior empenho ornamental. Na parede
oeste do cmodo em que foi instalado o local para imerso batismal, por detrs da
abside, foram trabalhadas pinturas com a imagem de Ado e Eva, na parte inferior, e do
Bom Pastor, na parte superior (Figuras 3 e 4). Esses afrescos esto localizados na rea
de maior relevncia do batistrio. Eis a representao da nova vida atravs do batismo.
A morte, ou a expulso de Ado e Eva do paraso est abaixo do Bom Pastor, quem guia
o rebanho de volta ao caminho justo e seguro. O pecado original, sob os ps do Bom
Pastor, simboliza o modo mais eficiente de apaziguar o mal: a morte pelo abandono do
mundo e a ressurreio pelo batismo em Cristo.39
Num hemisfrio h paraso terrestre,
noutro, o paraso celestial. A vida carnal, de pecado, representada por Ado e Eva, e a
vida espiritual, santificada, representada pela obedincia ao Bom Pastor.
Na parede norte do batistrio, duas pinturas surgem em razovel estado de
conservao. Ao alto, observa-se a representao de dois milagres de Jesus. O afresco a
esquerda mostra a cura do paraltico e imediatamente a direta, Jesus e Pedro caminham
sobre as guas.40
Na parte baixa da mesma parede uma procisso composta por Maria e
provavelmente mais trs mulheres dirige-se ao sepulcro de Cristo com tochas acesas
(Figuras 5 e 6). De um lado, o milagre de Cristo, que sobrepuja a natureza, de outro sua
morte como humano, a qual aponta para uma passagem que a assembleia reunida
somente poderia atingir com o batismo. Essa mais uma espcie de representao
bastante adequada ao espao de batismo. O rito do batismo encontra-se envolto na
possibilidade de vencer a natureza pecaminosa do humano. Mesmo o Cristo, abandona
o corpo humano ao sofrimento (e lembrado na procisso de Maria). Assim como
Cristo, os catecmenos deveriam deixar o carnal para a morte e ascender condio de
justificado pelo sacrifcio.
Na parede sul da mesma sala, se localizaria ainda as representaes de Davi e
Golias41
(Figura 07). Para Doig (2008, p. 14), a figura do Rei Davi na entrada do
batistrio est ligada ao sentido de luta do cristianismo primitivo. Lutar e sobrepujar o
inimigo de Deus uma das tarefas aceitas pelo fiel iniciado atravs do rito do batismo.
O batismo surge, assim, tambm como uma preparao para luta. o rito que se
assemelha uno recebida por Davi, do profeta Samuel, antes do combate.
De modo geral, a casa-igreja obedece a separaes para o culto muito prximas
daquelas necessrias a uma sinagoga. No entanto, seu tratamento com relao a itens
sagrados para o Velho Testamento, como a sala de assembleia, aparentemente
informal e sem a adeso de ornamentos (GNEY, 2012, p. 113-114). Ainda, apesar de
falarmos em comunidade crist primitiva, observa-se que as adaptaes do espao
domstico obedeceram a princpios de hierarquia e inicializao. Tais princpios
colocariam a responsabilidade sobre a domus ecclesiae na figura de iniciados, isto ,
profissionais. Certamente, nesse caso, no se trata da relao judaica entre o rabino, o
chazan e a audincia, posto localizar-se o sacramento do batismo como motivo mais
39
Sobre a interpretao dessas figuras Cf. DOIG, 2008, p. 17. 40
Essa seria mais antiga representao visual do apstolo Pedro. 41
Este no seria um assunto costumeiro da arte paleocrist, e pela datao, no se encontra no mesmo
perodo outra representao de tal passagem bblica. (GNEY, 2012, p. 116).
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fortemente observvel das adaptaes do ambiente domstico na domus ecclesiae de
Dura-Europos (Figura 8).
Figura 03. Afrescos representando o Bom Pastor (parte superior da imagem) e Ado e Eva (parte inferior
da imagem). Esse afresco encontrava-se ao fundo da abside ornamentada do batistrio da domus ecclesiae
de Dura-Europos. Fonte: < http://media.artgallery.yale.edu/duraeuropos/dura.html>
Figura 04. Desenho para recomposio de afrescos do batistrio referentes figura 03. possvel
observar mais adequadamente a figura do jovem pastor com o cordeiro sobre os ombros a guiar o rebanho
direita. Ado e Eva surgem em detalhe logo abaixo esquerda. Fonte:
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A importncia da construo de um batistrio cristo em Dura-Europos estaria,
primeiramente, relacionada possvel atmosfera da cidade. Como lembra Gney (2012,
p. 121-122), erigir um espao especifico para o batismo, anexado a dependncias de
ensino e catequese, significava, no mnimo, que havia expectativas na comunidade
crist de Dura-Europos em relao ao crescimento da congregao. Alm disso, o
batistrio surge como a adaptao mais complexa e evidente na casa-igreja de Dura-
Europos. O empenho na construo desse ambiente demonstra uma espcie de
organizao da comunidade crist que j estaria fortemente voltada para o crescimento
institucional.
Figura 05. Afrescos da parede norte do batistrio. Na parte baixa surgem os restos da figura de Maria na
procisso para o sepulcro de Cristo. Na parte superior h a representao de dois milagres (caminhar
sobre as guas e a cura do paraltico). Fonte: < http://media.artgallery.yale.edu/duraeuropos/dura.html>
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Figura 06. Ilustrao para recomposio da cena mostrada na figura 05. Nota-se que a cena do milagre de
cura est dividida em duas, numa parte o paraltico surge deitado com Jesus a erguer a mo logo a cima,
noutra surge de p frente da cama. A procisso de Maria para o sepulcro de cristo aparece na ilustrao
com outras duas figuras femininas. Haveria ainda, na mesma passagem, espao para outra figura feminina
(Luc 24,10). Fonte: < http://media.artgallery.yale.edu/duraeuropos/dura.html>
Figura 07. Desenho para recomposio do afresco com representao de Davi matando o gigante Golias.
O afresco, do qual restaram poucos fragmentos, pode, ainda assim, ser corretamente relacionado
passagem indicada em razo das inscries dos nomes de Davi e Golias, ainda legveis. Fonte:
O protagonismo do batismo na domus ecclesiae de Dura-Europos significativo
para a passagem do espao tpico de uma comunidade (shelter) para aquele resultante de
uma instituio (marker). O batistrio a estrutura mais ricamente trabalhada na
adaptao da casa e dialoga diretamente com as pinturas. O contedo pictural da casa
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comunica a distino do mundo carnal para o espiritual. Para que Cristo surgisse
puramente em esprito, foi necessrio o abandono da condio humana. J o homem,
apenas poderia seguir tal caminho atravs da f, o que traz o milagre do caminhar sobre
as guas. Curiosamente, a presena atpica de David nas paredes da sala de culto aponta
para uma relao bastante prxima com a ordem judaica. 42
Figura 08. Isometria da domus ecclesiae de Dura-Europos. Observa-se a incluso de paredes no
registradas nas escavaes, como algumas das separaes do ptio central. A porta que separava a
assembleia do espao dos catecmenos talvez nofosse to estreita. Os prticos voltados para o ptio
central so idealizaes. Ainda assim, a lgica das movimentaes rituais no interior da casa pode ser
corretamente observada. Tanto na separao dos catecmenos do culto quanto na existncia de uma porta
de sada em direo assembleia para os recm batizados. Fonte:
42
Gney (2012, p. 116), indica a raridade da representao dessa passagem bblica nas construes crists
primitivas. Uma das muitas razes pode referir-se a substituio do Rei-Pastor. Davi foi o fundador de
Jerusalm e sua ligao com Jesus marcada por passagens bblicas nas quais h a indicao de que o Rei
dos Judeus retornar a Jerusalm para reinar a partir do trono de Davi. Jesus passaria, ento, a ocupar o
posto de Rei-Pastor.
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O batismo, entre os primeiros cristos, um estranho rito inicitico, pois no
estipula ordem alm da aceitao (Cf. KALMBACH, 2002). Esse passo, ainda assim,
fundamental para a proliferao do sacramento da eucaristia, possvel apenas para
batizados e iniciados na f crist. A passagem da necessidade de um abrigo, que
permitisse a efetuao do batismo e da catequese, para um espao marcado pela
autoridade que sagra o po e o vinho, a passagem do cristianismo do estado
comunitrio para o institucional. Desse modo, a domus ecclesiae de Dura Europos um
espao que representa tal transio, foi um abrigo fortemente marcado por uma nascente
instituio com o simblico na base de sua comunicao.
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