Edição 2015
cultura, diversidade e desenvolvimento
disciplina 14
Sociedade em rede, mídias digitais e novas configurações de diálogos
Elaboração e texto Eliane Costa
Sociedade em rede, mídias
digitais e novas confi gurações de
diálogos
Eliane Costa
Ao fi nal da disciplina, você deverá ser capaz de:
• Conceituar “cibercultura”.
• Caracterizar diferentes acepções de Sociedade em Rede.
• Caracterizar os princípios que orientam o crescimento das redes, a saber: “interconexão”, “comunidades virtuais” e “inteligência coletiva”.
• Discorrer sobre notórios autores da Sociedade em Rede, como Manuel Castells, Henry Jenkins e Pierre Lévy.
• Caracterizar as peculiaridades das linguagens desenvolvidas nesse contexto.
Objetivos
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Sociedade em rede
A cultura é dinâmica: ela é produto coletivo da vida humana, uma dimensão do processo
social em permanente mudança. Este texto procura refl etir sobre a cultura do século XXI,
fortemente marcada pela presença crescente das redes e das tecnologias digitais de
informação e comunicação em todas as atividades do nosso cotidiano.
Entrar na rede, estar sem rede, pedir a senha da rede, postar na rede, enviar um arquivo
pela rede, baixar da rede são hoje expressões de uso comum, não mais restritas aos
programadores ou especialistas em computação. Falar de rede, hoje, é falar da internet, a
rede mundial dos computadores. E, mais especifi camente, falar das chamadas redes sociais.
Mas é importante ter claro que as redes sociais não nasceram com a internet ou com a era
digital: elas sempre existiram. Elas são a essência da sociabilidade, historicamente envolvendo
interações entre pessoas, troca de mercadorias, bens materiais, informações ou mesmo de
bens simbólicos, em uma perspectiva mais cultural.
As redes sobre as quais falamos hoje seriam mais bem chamadas de redes sociotécnicas:
redes sociais intermediadas pelas técnicas do nosso tempo. A globalização contemporânea,
aditivada pelos avanços tecnológicos nas comunicações e nos transportes, trouxe a
possibilidade de se estabelecer sistemas de interação social em rede nos quais as trocas
econômicas e culturais passaram a se dar em escala planetária, extrapolando os limites
espaciais e temporais que até então conhecíamos.
O sociólogo catalão Manuel Castells publicou no fi nal dos anos 1990 a trilogia A era da
informação: economia, sociedade e cultura, cujo primeiro volume – A sociedade em rede – é
dedicado ao estudo da interferência das mudanças tecnológicas nas estruturas sociais e nos
diversos campos das relações humanas. Para Castells, integramos uma “sociedade em rede”:
Uma estrutura social construída em torno (mas não
determinada por) redes digitais de comunicação. Eu entendo
que o processo de formação e exercício das relações de
Sociedade em rede, mídias digitais e novas confi gurações de diálogos
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poder é decisivamente transformado por esse novo contexto
organizacional e tecnológico derivado da emergência das
redes de comunicação digital globais, as quais consistem no
fundamento do sistema simbólico-processual de nossa época.
Como sabemos, a comunicação seguiu, no século XX, o modelo de broadcast, no qual
um emissor único transmite suas mensagens para um grande número de receptores, como
acontece no rádio, nos jornais ou na televisão. Um modelo, portanto, em que “um” fala para
“muitos”. Na virada do milênio, no entanto, a popularização da internet, do correio eletrônico
e dos blogs propiciou a descentralização da emissão de mensagens, permitindo que “muitos”
passassem a falar para “muitos”. Isso certamente não é pouco!
Munidos dessas facilidades, seguidas pelos aparelhos celulares, que logo incorporaram
recursos para troca de mensagens, câmeras digitais, ferramentas e softwares digitais,
os leitores passivos da comunicação de massas passaram a poder emitir suas próprias
mensagens e conteúdos e fazê-los circular, confi gurando um universo de novas versões e
pontos de vista, outras vozes, cores e sotaques. Emergem dessa forma redes horizontais de
produção de informação, um poder de comunicação que até então estava concentrado nas
grandes corporações de mídia.
A essa disputa de narrativas, Castells dá o nome de “autocomunicação de massas”, uma forma
de comunicação que é específi ca da sociedade informacional, centrada na articulação de redes
horizontais. A capacidade de desenvolver formas de autocomunicação de massa e de construir
redes confi gura, para o autor, uma nova “capacidade dos atores sociais de confrontarem e,
eventualmente, mudarem as relações institucionalizadas de poder em uma sociedade”. Como
exemplo recente disso, podemos citar os registros em vídeo feitos em tempo real durante
as manifestações de junho de 2013, realizadas pelos próprios manifestantes, as quais foram
capazes de contestar versões ofi ciais até então consideradas acima de qualquer suspeita.
Cibercultura
Outro autor bastante referencial no campo de estudos aqui estudado é o fi lósofo francês
Pierre Lévy que, em 1997, lançou o livro Cibercultura, traduzido e publicado no Brasil dois anos
depois. Lévy chama de ciberespaço “o novo meio de comunicação que surge da interconexão
poder é decisivamente transformado por esse novo contexto poder é decisivamente transformado por esse novo contexto
organizacional e tecnológico derivado da emergência das organizacional e tecnológico derivado da emergência das
redes de comunicação digital globais, as quais consistem no redes de comunicação digital globais, as quais consistem no
fundamento do sistema simbólico-processual de nossa época.fundamento do sistema simbólico-processual de nossa época.
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mundial dos computadores”. Além da infraestrutura da comunicação digital, o autor inclui
no conceito de ciberespaço “o universo de informações que ele abriga, assim como os seres
humanos que navegam e alimentam esse universo”.
Na sequência, o autor defi ne também o conceito que dá nome ao livro: “Cibercultura é
o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e de valores que se desenvolvem a partir do crescimento do ciberespaço”. Ele se
refere, portanto, a algo que transcende em muito a infraestrutura tecnológica e material desse
contexto: ao abranger práticas, valores e atitudes, a cibercultura é, essencialmente, a própria
cultura do século XXI.
Lévy considera que a revolução tecnológica contemporânea é apenas uma das dimensões
de uma mutação antropológica de grande amplitude e que, “longe de ser uma subcultura dos
fanáticos pela rede, a cibercultura expressa uma mutação fundamental da própria essência
da cultura”. Mutação esta que está apenas começando. Seu ritmo é extremamente acelerado
e seus caminhos serão traçados pela sociedade, já que as técnicas não trazem consigo o uso
que delas será feito.
O pesquisador brasileiro André Lemos, da Universidade Federal da Bahia, vê na cibercultura
“a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas
tecnologias de base microeletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações
com a informática”, processo que tem suas origens nas décadas de 1960 e 1970. Além da
já mencionada liberação do polo de emissão de mensagens, que possibilita a emergência da
diversidade de vozes e discursos, em oposição à edição de mensagens da mídia de massa,
Lemos aponta outros dois princípios que regem o contexto da cibercultura: o da conectividade
generalizada (que provê sua infraestrutura tecnológica e confere ressonância e novos
horizontes de circulação a mensagens não hegemônicas) e o da reconfi guração de práticas,
modalidades midiáticas, espaços, sem a substituição de seus respectivos antecedentes.
A lei da conectividade generalizada tem suas raízes nos primeiros computadores pessoais,
que em seguida foram conectados em rede e mais adiante tornados móveis. Por meio das
redes sociotécnicas contemporâneas, passou a ser possível estar só, sem estar isolado.
A conectividade generalizada conecta gente com gente, gente com máquinas e máquinas com
máquinas, que passam a trocar informação e inclusive a tomar decisões de forma autônoma,
de acordo com programações previamente defi nidas.
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Michel Foucault considera que as transformações socioculturais geram novas necessidades
que, por sua vez, demandam avanços tecnológicos:
Mesmo que seja evidente que as técnicas têm infl uência
direta na formação de novos comportamentos e novas
culturas, é impossível admitir-se que esta mesma técnica
tenha se desenvolvido caso não estivessem já ocorrendo
transformações nos processos e estratégias das relações
humanas que apontassem nesta direção1.
Nesse sentido, pode-se pensar que a cibercultura não seria somente a cultura que
decorre do ciberespaço, mas uma dimensão da cultura contemporânea que teria encontrado
no ciberespaço um espaço privilegiado para sua manifestação, como blogs, chats, troca de
mensagens etc. Da mesma forma, este abriga coletivos mediados por computador, como
redes sociais e comunidades virtuais, bem como ações de militância política e ciberativismo.
O ciberespaço fornece, ainda, a infraestrutura para a prestação de serviços públicos e para o
exercício de cidadania, como o governo eletrônico, o voto on-line, assim como o orçamento
participativo e o imposto de renda.
A dinâmica da rede forja a sua própria cultura: observa-se, por exemplo, a progressiva
redução na distinção entre informação pessoal e pública, o que é ilustrado pelas práticas
correntes de publicação de conteúdos digitais pessoais em redes sociais, bem como pela
possibilidade de mecanismos de busca na internet trazerem resultados relacionados, tanto
ao computador local do internauta e a suas recentes interações na internet, quanto a fi ltros
pré-programados aplicados ao universo dos conteúdos disponíveis.
Redes telemáticas presentes no espaço urbano transformam cidades contemporâneas em
cibercidades, onde o cotidiano dos cidadãos, bem como os conceitos de espaço público e
privado, são redefi nidos a partir de novas possibilidades de trabalho e educação em rede,
acesso à informação, além de propiciarem debate, articulação e gestão participativa sobre
temas que afetam a comunidade.
1 Foucault, Michel.; Rabinow, Paul. The Foucault reader. 1984. O trecho citado foi traduzido e publicado no texto Quem tem medo da tecnologia?, de Heloisa Buarque de Hollanda. Disponível em: (http://www.pacc.ufrj.br/heloisa/medo.html). Acesso em: 12 mai 2010.
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O artigo de André Lemos – Olhares sobre a Cibercultura – disponível em http://www.facom.
ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/cibercultura.pdf, destaca, de maneira bastante didática,
quinze pontos essenciais da cibercultura, apresentando-os como um conjunto de problemas
que podem ajudar a compreender a nossa época. Vale a pena lê-lo!
Mutações culturais
As novidades tecnológicas não param de surgir, reconfi gurando, como já vimos, práticas e
valores, ou seja, suscitando mudanças culturais. As redes sem fi o (wi-fi ), associadas às redes
sociotécnicas como Facebook, Youtube, Instagram, ao lado de ferramentas de comunicação
como o Skype ou o WhatsApp, que agora passa também comunicação por voz gratuita pela
rede, revolucionaram as noções de espaço e tempo, permitindo nossa interação em tempo
real (ao vivo e a cores) com entes queridos fi sicamente distantes, a comunicação telefônica
internacional sem custo, a criação/fomento de comunidades de amigos, ao lado da troca
instantânea de mensagens, imagens e vídeos. Se Zygmunt Bauman, em seu livro A modernidade
líquida, achava que os telefones celulares tinham sido o “golpe de misericórdia nas relações
de tempo e espaço” – estamos “ali”, a postos, nesse longe-perto-aqui-e-agora... Mas ele não
imaginava o que estava por vir...
Embora o mundo tenha mudado radicalmente nas últimas décadas, estamos ainda
engatinhando na era das redes e das tecnologias digitais de informação e comunicação. Até
aqui, caminhamos menos no sentido dos viadutos e naves futuristas das fi cções científi cas
idealizadas no século XX, e mais no da apropriação cultural dessas tecnologias, cada vez
menos visíveis de tão (aparentemente) onipresentes e incorporadas ao nosso cotidiano.
Antigamente (mas não tanto assim), a última coisa a fazer antes de dormir era escovar os
dentes; agora, é preciso lembrar de botar o celular na tomada para tê-lo alerta durante todo
o dia seguinte, pronto, aliás, a fazer muito mais do que telefonar. Há algum tempo, o telefone
era pesado, preto e tinha na frente um disco de números. Ficava numa mesinha em algum
canto da sala, ao lado de um bloquinho e uma caneta. Nesse telefone residencial, fi xo e único,
se decidiam negócios e namoros, frequentemente com vasta audiência familiar, nem sempre
discreta e silenciosa.
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A vitrola, também chamada de eletrola, era item volumoso do mobiliário e fi cava também em
lugar de destaque na sala. Quando alguém botava um disco para rodar em seu prato, estava,
na verdade, escolhendo o que seria ouvido por todos naquele momento – e na sequência
predefi nida pela gravadora. Mover a agulha entre as músicas não era, absolutamente,
recomendado, pois isso podia “arranhar o LP”. E é claro que nem se pensava que um dia
poderíamos baixar, criar ou compartilhar playlists. Muito menos combinar músicas e batidas,
remixar etc.
Hoje, desde o momento em que abrimos os olhos, são muitas as interações com o mundo
digital: o despertador, o micro-ondas, as notícias, o bip da mensagem que chegou, a conferida
no relógio, os compromissos na agenda, chamar um táxi, o sinal que fechou, ver onde fi ca o
destino para organizar o trajeto, ouvir música, postar para os amigos a foto do fi lhote, saber
se vai chover, ver se o dinheiro entrou na conta, comprar ingresso para o cinema... (e quase já
é preciso recarregar o celular... a bateria já está no fi m e o dia ainda nem começou...).
É claro que essas transformações não representam, apenas, uma revolução tecnológica:
elas mudaram radicalmente a nossa vida, nossos hábitos, nossos jeitos de viver e fazer, nossos
valores. São, portanto, mudanças culturais.
Podemos aprender sobre quase tudo em tutoriais na rede feitos por pessoas que
simplesmente decidiram compartilhar gratuitamente o que sabem sobre alguma coisa;
anônimos criam vídeos feitos sem sair do quarto e juntam milhões de fãs, tornando-se
celebridades instantâneas; é possível visitar um museu ou fazer um curso on-line nas maiores
universidades estrangeiras sem ter passaporte.
Podemos nos sentir juntos jantando com alguém “via skype”, difundir uma causa, denunciar
uma injustiça, dar a nossa própria versão sobre um fato, acompanhar a atuação de quem
elegemos, resgatar (em cima da hora da palestra) os slides que esquecemos em casa, fazer
um trabalho em grupo, assistir o capítulo da novela que perdemos, mobilizar o fi nanciamento
coletivo de um empreendimento, ver o fi lme que escolhemos (na hora que escolhemos)...
Acesso, compartilhamento e colaboração se tornaram palavras de ordem no mundo
digital. Ampliaram-se as possibilidades de articulação, ao lado das novas fronteiras do acesso
ao conhecimento. Os sistemas de localização (GPS) revolucionaram as possibilidades de se
chegar a algum lugar ou o simples ato de chamar um táxi. As mídias locativas (dispositivos
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e sensores que reagem ao contexto local) permitem, por exemplo, que um consumidor que
tenha seus gostos e hábitos registrados em uma rede social possa receber em seu aparelho
celular com GPS um cupom digital de desconto ao passar diante de uma determinada loja.
Como aponta Gisele Beiguelman, artista digital e pesquisadora, as microtelas urbanas passam
a comportar-se como extensões conectadas do nosso corpo no espaço físico e inserem novos
riscos de invasão da privacidade e rastreamento.
A Wikipedia, por exemplo, hoje muito maior do que qualquer enciclopédia convencional, é a
maior prova da generosidade intelectual fomentada pelo contexto das redes sociotécnicas. Ela
concretiza o conceito de inteligência coletiva desenvolvido por Pierre Lévy sobre a constatação
de que ninguém sabe tudo e todos têm algo a contribuir. De acordo com o autor, não existe
uma inteligência individual: ela seria sempre fruto do que se aprendeu em experiências
e interações anteriores com outros indivíduos. A inteligência coletiva é, portanto, “uma
inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo
real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. Como esclarece Lévy, sua
base e objetivo são “o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto
de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas”. O compartilhamento desse conhecimento
coletivo faz toda a diferença.
Práticas colaborativas, interdisciplinaridade, trocas de conhecimentos e de serviços,
compartilhamento de recursos e novos modelos de negócios marcam os novos formatos de
projetos culturais e empreendimentos criativos.
Exclusão digital
Apesar da sensação de que “todo mundo tem internet”, de acordo com dados da Internet
World Stats (http://www.internetworldstats.com/stats.htm), entidade que monitora a difusão
da internet no mundo, somente 42,4% da população mundial têm acesso à rede (dados de
31/12/2014), correspondendo a 3,08 bilhões de pessoas conectadas, o que signifi ca que a
centralidade da internet em grande parte das áreas da atividade social, econômica e política
corresponde à marginalidade para quase 60% dos habitantes do planeta, que a ela não têm
acesso, ou têm acesso limitado por algum motivo.
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Essa desigualdade é mais gravemente percebida quando se leva em conta a disparidade
existente no percentual de pessoas conectadas em cada região, em acentuado contraste com
a parcela da população mundial que vive em cada uma delas: enquanto na América do Norte
o percentual da população conectada é de 86,9%, na África esse número cai para 27,5%,
passsando por 34,8% na Ásia (incluindo o Japão); 48,1% no Oriente Médio; 52,4% na América
Latina e Caribe2; 70,4% na Europa e 72,1% na Oceania/Austrália.
Quando se considera todos os internautas do mundo, 75% deles estão em 20 países (o Brasil
está em quinto lugar nesse ranking). Os 25% restantes estão distribuídos entre 178 países,
cada um com penetração de menos de 1% de sua população. Estados Unidos, Alemanha,
França, Reino Unido e Canadá têm, todos eles, mais de 80% de suas populações conectadas.
Esses números representam a chamada “divisão digital” ou “brecha digital” e traçam o mapa
da exclusão digital no mundo. Sobre esse quadro, Manuel Castells faz um alerta:
Por intermédio da tecnologia, redes de capital, de trabalho,
de informação e de mercados conectaram funções, pessoas e
locais valiosos ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que
desconectaram as populações e territórios desprovidos de valor
e interesse para a dinâmica do capitalismo global. Seguiram-se
exclusão social e não-pertinência econômica de segmentos de
sociedades, de áreas urbanas, de regiões e de países inteiros,
constituindo o que eu chamo de “o quarto mundo”.
Castells considera que a sociedade pode sufocar, incentivar ou priorizar caminhos para seu
desenvolvimento tecnológico, principalmente por intermédio do Estado:
Sem dúvida, a habilidade ou inabilidade de as sociedades
dominarem a tecnologia e, em especial, aquelas tecnologias
que são estrategicamente decisivas em cada período histórico,
2 A América Latina e Caribe têm 182,8 milhões de usuários conectados. A taxa de penetração em cada país (percentual da população conectada) é liderada pelo Chile, com 50,4%, seguido da Argentina, com 48,9%, Colômbia, com 47,6%, e Brasil, com 36,2%. A média de crescimento na América Latina e Caribe, de 2000 a 2009 é de 927,2%, sendo que o crescimento do Brasil no período foi de 1.340,6%.
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traça seu destino a ponto de podermos dizer que, embora
não determine a evolução histórica e a transformação
social, a tecnologia (ou sua falta) incorpora a capacidade de
transformação das sociedades, bem como os usos que as
sociedades, sempre em um processo confl ituoso, decidem dar
ao seu potencial tecnológico.
Nesse sentido, é muito importante ressaltar as primeiras políticas culturais voltadas ao
cenário das redes, lançadas em 2004 pelo Ministério da Cultura e representadas pelos Pontos
de Cultura, frente principal do Programa Cultura Viva. A concepção dos Pontos de Cultura
previa um aspecto singular, dotado de grande potência transformadora: a instalação de um
pequeno estúdio digital de produção audiovisual, com recursos mínimos de gravação de áudio
e vídeo e microcomputadores conectados à internet. Além da criação de uma teia, orgânica
e articulada, de Pontos, essa confi guração dava a cada unidade a possibilidade de gerar
conteúdos culturais em mídia digital (vídeos, fotos, sites, blogs), com narrativas produzidas
a partir de seus próprios pontos de vista, promovendo em consequência a já mencionada
diversidade na rede.
Mais que o download, ganhou espaço o upload, a possibilidade de produzir conteúdos
culturais em mídia digital (fotos, vídeos, textos, blogs, músicas, manifestações culturais de
todas as naturezas e linguagens etc.) e postá-los na rede, o que contribui para uma internet
com mais diversidade cultural, estética e linguística. A Convenção sobre a Proteção e Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais, elaborada pela Unesco, com grande participação do
Brasil em sua elaboração, preconiza a utilização das novas tecnologias “para incrementar o
compartilhamento de informações, aumentar a compreensão cultural e fomentar a diversidade
das expressões culturais”, registrando, ainda, o alerta sobre os riscos de desequilíbrio entre
países ricos e pobres.
Um case de cultura digital no que tange ao upload foi, nos últimos três anos, o fenômeno do
passinho. Jovens da periferia começaram a gravar com seus celulares os passos – mistura de
funk, break, frevo e samba – que criavam para se destacar nos bailes. Em seguida, corriam às lan
houses ou aos próprios computadores, para postá-los no YouTube, divulgando-os em seguida no
Facebook. Cada novo passinho é inventado a partir da combinação de outros já criados antes, em
uma constante recriação coletiva que remete ao remix e às colagens do funk.
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O passinho se transformou imediatamente em um fenômeno, com milhões de visualizações
na rede. Deu origem a inúmeras competições (“batalhas”) presenciais e virtuais envolvendo
diferentes comunidades e gerou um documentário de longa-metragem3. De acordo com Julio
Ludemir, idealizador, com Rafael Nike, das Batalhas do Passinho, o que começou como brincadeira
se transformou em uma forma de romper a invisibilidade social que afeta o jovem da favela:
O passinho é uma expressão estética genuína do moleque
da periferia que cresceu dentro da lan house, fuçando o mundo
do outro lado da tela, que, em princípio, não estaria disponível
para ele, mas que ele se apossou. Aprendeu inclusive a usar
o Youtube como ferramenta de divulgação. A Batalha leva
os meninos para o centro e rompe a lógica do tráfi co que
fazia com que eles não pudessem ir à comunidade vizinha.
A estratégia da Batalha é apostar na circulação na cidade,
numa cidade de todo mundo...4
O Brasil é considerado um fenômeno na assimilação das redes sociais e das tecnologias
digitais. Em uma de suas várias visitas de observação sobre a apropriação dos paradigmas
ciberculturais, no ano de 2007, John Perry Barlow, fundador da Electronic Frontier Foundation
(EFF), uma das mais importantes organizações dedicadas à defesa das liberdades civis no
mundo digital, registrou: “O Brasil é, naturalmente, uma sociedade em rede”.5
No mesmo ano, o sociólogo francês Michel Maff esoli, fundador, na Sorbonne, do prestigioso
Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano (CEAQ), vaticinava: “O Brasil é um laboratório vivo
da pós-modernidade”6.
3 O fi lme A batalha do passinho, dirigido por Emilio Domingos.4 http://uppsocial.org/2013/03/esta-dada-a-largada-para-a-batalha-do-passinho-2013/5 Entrevista de Barlow ao blog Ecologia Digital, em setembro de 2007 (http://ecodigital.blogspot.com.br/2008/02/john-barlow-explica-o-fenmeno-orkut-no.html).6 Entrevista de Maff esoli ao nominuto.com, em 9 de setembro de 2007 (http://nominuto.com/noticias/brasil/maff esoli-o-brasil-e-um-laboratorio-vivo-da-pos-modernidade/26972/).
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Tendências
No momento, a Internet das Coisas se apresenta como a grande tendência, ao lado do Big Data
e do Movimento Maker.
No campo da chamada Internet das Coisas, itens usados do dia a dia, como eletrodomésticos,
meios de transporte e até mesmo tênis, roupas e maçanetas, são conectados à rede e a outros
dispositivos, como computadores e smartphones, concretizando – e superando – o que Henry
Jenkins descreveu em seu livro A cultura da convergência.
Luminosidade, temperatura e umidade do ar ambiente, bem como a hora da irrigação do
jardim podem ser controladas automaticamente. Pulseiras com sensores se conectam a
aplicativos e contam as calorias perdidas nas atividades físicas e estabelecem metas diárias para
os exercícios. Roupas de bebê que fornecem pistas para seu choro a partir de sensores que
medem a temperatura, os batimentos cardíacos e até reconhecem os padrões de movimento da
criança, identifi cando, por exemplo, se ela está sofrendo de cólicas: alterações captadas disparam
alertas via SMS para o smartphone dos pais. Aparelhos domésticos podem detetar períodos fora
do pico para “puxar” energia da rede. Automóveis podem “reconhecer” seus donos por meio de
câmeras instaladas em seu interior e comandar a ação de acessórios ou ativar o GPS. Na melhor
das possibilidades, a Internet das Coisas pode auxiliar na solução de problemas como pegada de
carbono, transporte, energia, cidades inteligentes e segurança pública.
Com o crescimento exponencial do uso da internet em todo o mundo, acumulam-se os dados
fornecidos por esses usuários (nós!) em cadastramentos, no Google e em sistemas de GPS,
além das valiosas informações que compartilhamos diariamente nas redes sociais. É claro que
esse material vem se tornando uma valiosa fonte de informação e marketing, dando origem a
novas oportunidades de negócios (sem esquecer, no entanto, da contrapartida que nos afeta
diretamente: o risco à privacidade do cidadão). O chamado Big Data diz respeito a essas grandes
massas de dados de natureza variável e alto valor agregado, que existem em uma quantidade alta
demais para ser manipulada de formas convencionais, exigindo novas tecnologias e modelos de
negócio criados especialmente para lidar com essa avalanche.
Por fi m, o Movimento Maker é uma extensão da cultura do “faça-você-mesmo” (em inglês,
Do-It-Yourself, DIY). A chamada cultura maker tem em sua base a ideia de que pessoas comuns
podem construir, consertar, modifi car e fabricar os mais diversos tipos de objetos e projetos
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com suas próprias mãos. Com o acesso cada vez mais fácil e barato a ferramentas dos mais
variados tipos e com a grande quantidade de tutoriais e informações sobre tecnologia e
técnicas disponíveis na rede, o movimento vem se difundindo rapidamente. Da eletrônica à
reciclagem de roupas, da culinária à biotecnologia e à impressão 3D, das artes da marcenaria
à automação e à robótica, os laboratórios (makerspaces, labspaces, fablabs etc.) vêm reunindo
pessoas em todo o mundo, e também no Brasil, em torno de interdisciplinaridade, disposição
para solucionar problemas do cotidiano e desejo de transformação.
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Bibliografi a
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CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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(Disponível para download e compartilhamento em www.debaixoparacima.com.br.)
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LEMOS, André. Olhares sobre a cibercultura. Disponível em: http://www.facom.ufba.br/
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LEMOS, Ronaldo; VARON, Joana. Pontos de cultura e lanhouses: estruturas para inovação na
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LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998.
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