UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
MAURCIO MARQUES SORTICA
ENSINAR SAUSSURE HOJE
DA HETEROGENEIDADE DO CORPUS AO ENSINO DE LINGUSTICA
Porto Alegre
2011
MAURCIO MARQUES SORTICA
ENSINAR SAUSSURE HOJE:
DA HETEROGENEIDADE DO CORPUS AO ENSINO DE LINGUSTICA
Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial para a obteno do ttulo de Licenciado em Letras pelo Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores
Porto Alegre
2011
A todos aqueles que me tornaram possvel este lugar de enunciao.
AGRADECIMENTOS
minha famlia que, mesmo se perguntando da utilidade da minha escolha, me proporcionou condies para conclu-la;
Paula, por tudo;
Ao meu orientador, professor Valdir Flores, por aceitar minha proposta de Trabalho de Concluso de Curso e por ainda consider-la um trabalho interessante. Pela competncia com que me orientou durante a realizao deste trabalho, fazendo disso um convite extraordinrio Lingustica. Por acreditar em mim, no meu trabalho e me dar esta oportunidade de trabalho conjunto;
professora Carmem Luci que, alm de saber me conduzir luz aps um perodo de escurido e desiluso lingustica, ocupou um lugar da transcendncia, encaminhando-me a um novo lugar de enunciao;
Aos companheiros do PAG: Lngua Portuguesa, por dividirem comigo momentos bons (e nem to bons assim!) e por me darem um espao de contribuio para o alcance de nossos objetivos, nesse grupo de singularidades to intersubjetivas;
Aos companheiros do Grupo de Estudos em Saussure e Benveniste, em especial, ao professor Valdir Flores, pelo convite para integrar tal grupo, e professora Luiza Surreaux, por muitas vezes entender o quo difcil conseguir olhar para fora do poo, principalmente quando se est no fundo dele;
E, por fim, aos linguistas do Instituto de Letras da UFRGS, por, com seus exemplos como docentes e pesquisadores, terem inspirado a mim para a necessidade de se fazer este trabalho.
Embrassant du regard ce demi-sicle coul, nous pouvons dire que Saussure a bien accompli sa destine. Par-del sa vie terrestre, ses ides rayonnent plus loin qu'il n'aurait pu l'imaginer, et cette destine posthume est devenue comme une seconde vie, qui se confond dsormais avec la ntre.
mile Benveniste
RESUMO
Este trabalho reflete sobre os princpios do ensino do Programa Lingustico de Ferdinand de Saussure, hoje sabidamente de natureza heterognea, para alunos ingressantes nos nveis superiores dos cursos de Letras e de Lingustica. Dessa maneira, procura apontar quais as implicaes dessa heterogeneidade, para o ensino de Lingustica, principalmente para a introduo ao pensamento saussuriano, buscando, alm disso, propor uma sugesto de plano de ensino que contemple os problemas e solues apresentados ao longo deste documento. Para que isso seja possvel, primeiramente, faz-se uma reviso dos conceitos de ensino e de aprendizagem dentro do campo da Lingusitca, destacando-se aquilo que esperado do aluno nele iniciante. Aps, retoma-se, em forma de inventrio, o corpus das obras e os apontamentos de Ferdinand de Saussure conhecidos at hoje para, a partir disso, cruzar os problemas imanentes de um corpus extenso e, por vezes, contraditrio queles resultantes das expectativas de um ensino de Lingustica. Por fim, apresenta-se a sugesto de um plano de ensino referente ao tpico signo lingustico, presente nos vrios aspectos das discusses saussurianas, no qual se apontam possveis solues para o ensino do programa saussuriano: a seleo, por parte do professor, de textos do corpus considerando primeiramente seu assunto, e no sua fonte, como muito tem-se feito at agora, considerando-se, primeiramente, aquilo que julga-se, neste trabalho, ser o bsico em Saussure.
Palavras-chave: Saussure - Lingustica Geral - Ensino Universitrio.
ABSTRACT
This paper reflects upon the heterogeneous Ferdinand de Saussures linguistic program, specifically regarding its teaching procedures to Linguistics101 courses. Thus, it points to the implications of the diversity of its corpus to Linguistics teaching, especially to the introduction of the de Saussures lines of thought. Furthermore, it purposes class plans which contemplate the issues and solutions imposed and presented throughout this document. In order to do so, a review of the main concepts regarding teaching and learning within the Linguistics field research is done, in which the expectations to what a freshmen is supposed to learn are highlighted. In sequence to that, an inventory of the known works and disperse notes of Ferdinand de Saussure is made, in order to relate the problems caused by a rather diverse and, sometimes, contradictory corpus to those imposed by the expectations of an already established Linguistics teaching procedure. Finally, as a conclusion point, a class plan that develops the teaching notion on the linguistic sign subject is presented. This planning also points out to possible solutions to de Saussures program teaching: a careful selection, by the professor, of texts that integrate the corpus. This selection, on the contrary movement made so far by Linguistics professors, must consider the subject discussed on the article, instead of its primary source. Furthermore, this selection must be made taking into consideration what is called the basics on Saussure, according to this paper.
Keywords: Saussure General Linguistics Higher Education
SUMRIO
DO CAMINHO TRILHADO E DAS DVIDAS.................................................................09
1 ...MAS O QUE ENSINAR LINGUSTICA MESMO?.................................................13 1.1 A REFLEXO DOCENTE DE CLAUDINE NORMAND...............................................14 1.2 O (QUASE) SILNCIO DAS INTRODUES DE LYONS...........................................17 1.3 A VOZ INTRODUTRIA DOS LINGUISTAS BRASILEIROS.....................................19 1.4 INTERMEZZO...................................................................................................................20 2 QUANTOS SAUSSURE, MEU DEUS?!............................................................................23 2.1 O ESTADO DA ARTE SAUSSURIANA..........................................................................24 2.1.1 Dos Trabalhos Pubicados em Vida...............................................................................24 2.1.2 Dos Cursos de Lingustica Geral..................................................................................25 2.1.3 Dos Escritos de Lingustica Geral.................................................................................32 2.1.4 Dos Anagramas e das Correspondncias.....................................................................35 2.2 DISSO TUDO, O QUE RELEVANTE PARA O ENSINO?..........................................36 3 UM PONTO DE VISTA (QUE CRIA O OBJETO).........................................................40 3.1 JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS .....................................................................................40 3.3 SELEO DE BIBLIOGRAFIA RELEVANTE...............................................................42 3.4 PROCEDIMENTOS DIDTICOS.....................................................................................43 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................46 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................48
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DO CAMINHO TRILHADO E DAS DVIDAS
Durante o tempo em que cursei o curso de graduo em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sempre notei, desde o primeiro semestre, um certo descaso (e,
por que no dizer, falta de conhecimento e de comprometimento!) com aquilo que, mais tarde,
eu viria a conceber como os conhecimentos ligados a uma Lingustica Geral, especialmente
queles que condiziam a um programa lingustico idealizado pelo intelectual genebrino
Ferdinand de Saussure. Essa incomodao, inicialmente pequena, foi crescendo, at culminar,
mesmo que de forma acadmcia, em reflexes (em forma de protesto!) condizentes a esse
campo do conhecimento este trabalho, esperado por ser o ponto de chegada daqueles que
terminam uma jornada acadmica, uma delas. No escrevo este ensaio, no entanto, com o
intuito de fazer crticas severas ao ensino da cincia que, ao meu ver, indispensvel
formao daqueles que esperam trabalhar com a linguagem e com as lnguas de forma
profissional, muito embora tais questionamentos sejam, em um momento ou outro,
necessrios. Meu objetivo, ao escrever esta monografia , muito mais, tentar provocar uma
reflexo sobre o ensino dessa Lingustica Geral nos cursos de graduao em Letras e, alm
disso, propor uma alternativa de ministr-la. .
Para fazer isso, entretanto, tenho de pensar em uma metodologia de trabalho que
comporte minha reflexo e que leve aqueles que futuramente leiam estas notas a acompanhar
meu persurso de pensamento. Assim, primeiramente, tenho de eleger aquilo que, afinal, em
Lingustica Geral, tratarei. E, para essa primeira questo, a resposta parece vir tona como
algo bvio: versarei sobre Ferdinand de Saussure o calcanhar de aquiles de todo (aspirante
a) linguista. Mas por que tratar do mestre genebrino, se, para muitos, discorrer sobre algum
que fundou a Lingustica moderna seria, com efeito, ultrapassado e sem valia? Poucos sabem,
porm, que tudo no se disse sobre o linguista e sua obra, como se tal empreendimento fosse
possvel. Ao contrrio, se consideramos as h pouco descobertas fontes manuscritas dos
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Cursos de Lingustica Geral ministrados na Universidade de Altos Estudos de Genebra, assim
como outros escritos em Lingustica Geral por muito tempo escondidos pela grafofobia de
Saussure, arrisco dizer que muito pouco se escreveu sobre Saussure e seu programa
lingustico. Alm disso, no podemos ignorar que foi o gesto da edio e publicao de seus
Cursos, em 1916, por seus colegas ligados aos estudos da linguagem, que possibilitou a
prpria fundao da Lingustica moderna, o que me traz mais um motivo para resgatar a
discusso a respeito do lingista genebrino.
Dessa maneira, permito-me uma pequena parada aqui para que possamos fazer um
singelo voo panormico sobre este problema: Ferdinand de Saussure e sua vasta obra.
Comecemos, ento, pelo clebre Curso de Lingustica Geral a fonte maior das controvrsias
em torno do programa do linguista genebrino. Publicado em 1916 e fruto da edio de Charles
Bally e Albert Sechehaye com a ajuda de Albert Riedlinger, essa obra pstuma, baseada no
contedo dos cursos que Saussure ministrara na Universidade de Genebra, j tem um comeo
controvertido haja vista sua edio apenas por um pequeno nmero de fontes, muitas delas
cadernos de alunos que sequer frequentaram todos os cursos. Aliado a isso, o pesquisador
Rudolf Engler (2006) nos mostra que alguns desentendimentos entre os prprios editores do
curso geraram uma maior modificao em seu contedo, o que acabou levando muitos
estudiosos a elaborarem edies crticas a partir da descoberta de outros escritos, esses, sim,
vindos diretamente da mo do mestre genebrino1. O Curso, ento, tal como concebido pelos
editores a partir das aulas de Saussure, mesmo com todos seus problemas de ordem gentica,
deu origem ao que hoje chamamos de Lingustica. Em paralelo a esses acontecimentos,
entretando, outras mobilizaes da obra saussuriana eram feitas, e outros objetos de sua
pesquisa eram descobertos.
Trs anos antes da publicao da edio de Bally e seus colegas, foram doados
Biblioteca de Genebra manuscritos provenientes do prprio punho de Saussure. Esses
documentos, alm de anotaes sobre as aulas que ele proferira na Universidade de Genebra,
pareciam constituir alguns esboos de um livro-ensaio sobre Lingustica Geral. Aps um hiato
de 45 anos, novos documentos foram encontrados no gabinete anexo moradia de Madame
de Saussure: mais anotaes de aula, esboos de artigos e ensaios crticos sobre leituras
referentes s linguas e Lingusitica. Aps o tempo equivalente a quase quatro dcadas desse
1 A ttulo de ilustrao, cito as edies crticas de Rudolf Engler (1967), que cotejam o texto editado nos CLG e o compara com as notas dos alunos que estiveram presentes nos Cursos de Lingustica Geral, bem como a algumas notas saussurianas que j haviam sido encontradas na poca. Sobre a histria da descoberta de tais notas e documentos outros de Saussure, ver prximo pargrafo.
11
ltimo achado, encontrou-se um ltimo lote de documentos que, juntando-se aos outros,
aproximam-se, segundo constataes de Izabel Vilela (s/d), extenso de 10.000 pginas.
Todas essas notas e documentos, depois de exaustiva anlise, acabaram revelando diferentes
reas de pesquisa empreendidas por Saussure, o que, alm de tornar seu corpus ainda maior,
divide-o em distintos campos de relevncia, tornando, assim, o trabalho do pesquisador do
programa saussuriano (ou, depois das descobertas, programas saussurianos) ainda mais
complexo2.
Assim, voltando de nosso panorama e com ainda mais problemas a tratar, delimito
aqui minha questo norteadora e principais incomodaes referentes ao ensino de Lingustica
Geral, especifiamente ao ensino das reflexes de Saussure: nestas folhas, tratarei da fundao
desse ramo da Lingustica e da importncia de seu ensino nos cursos de Letras. Mais do que
isso, lanarei minhas lentes sobre uma pergunta especfica que abrange seu ensino, sua
importncia e sua fundao por Ferdinand de Saussure, a saber: como possvel o ensino do
programa lingustico saussuriano nos cursos de graduao em Letras, uma vez que a obra tida
como fundadora da Lingustica Moderna, o Curso de Lingustica Geral, publicado e editado
pelos colegas catedrticos de Saussure, assim como toda a produo acadmica do linguista
genebrino, se encontra hoje esquecida por uns, vista por olhares tericos que distorcem a
leitura de seu texto por outros e considerada, por terceiros, como ultrapassada ou invlida,
dada a descoberta de escritos sobre Lingustica provenientes da mo do mestre? Pergunta essa
que, embora no nortei esta pesquisa, de carter fundamental para seu desenvolvimento.
Dessa maneira, de modo mais pontual e, agora sim, norteador do trabalho e dos postos de
vista aqui explicitados uma vez que o ponto de vista que cria o objeto, j apontaria
Saussure: como possvel a abordagem de tais reflexes, visto que a prpria obra do
linguista-mestre muito maior do que o Curso, percorrendo caminhos diversos, entre eles o
estudo de lendas, de anagramas, do indo-europeu, entre outros?
Para tentar responder a essas questes que coordenam e subordinam inmeras outras
em sua estrutura, dividirei este texto em trs grandes partes, seguidas de consideraes finais.
Na primeira dessas partes, tentarei responder, afinal, o que ensinar Lingustica, uma vez que,
se pretendo me aventurar no campo que concerne seu ensino, nada mais justo do que
arriscar uma resposta pergunta que aflige muitos linguistas quando se deparam com uma
sala de aula de alunos ainda no graduados e, fator de complicao, sequer iniciados na
2 Abordo essa diviso dos escritos em diferentes reas com mais detalhamento no segundo captulo deste trabalho, no qual tambm penso o que, de fato, aproveitvel desses diferentes programas para o ensino efetivo da lingustica saussuriana.
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cincia da lingua(gem). Nesse espao textual, reviso a literatura clssica em Lingustica e a
comparo com os manuais didticos atualmente impressos nessa rea, tendo em vista,
principalmente, o que esses textos antigos e atuais nos dizem sobre o ensino da cincia da
linguagem e das lnguas.
Em um segundo espao deste documento, esboo um estudo que leve em , o atual
estado da arte do corpus saussureano. Com base nessas reflexes, fao um comparativo ao
conhecimento mobilizado na primeira parte do trabalho, para, enfim, poder responder o que,
de fato, relevante em uma iniciao, em um convite Lingustica dentro do programa do
estudioso genebrino, encaminhando-me, por fim, terceira parte deste trabalho, que, em
forma de plano e de anotaes de aula, ilustrar um ponto referente reflexo lingustica de
Fernidand de Saussure, de maneira a retomar as reflexes feitas at ento.
Por fim, discuto qual , afinal, a melhor maneira se ela existe -, de ensinar
Lingustica aos alunos debutantes no mundo das Letras, e como essa possibilidade de
planejamento e ensino responde minha pergunta inicial: como introduzir um aluno novo ao
curso de Letras ao pensamento lingusitco, especialmente ao pensamento considerado
fundador da Lingustica Moderna, visto que o corpus do programa desse pensamento
extremamente heterogneo?. E buscando a resposta a esse dilema, que entre muitos outros
constituem as dvidas de um aspirante a linguista, que prossigo este texto.
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1 ...MAS O QUE ENSINAR LINGUSTICA MESMO?
Sem conhecer a fora das palavras, impossvel conhecer os homens. (Confcio) Sem conhecer a Lingustica, no h como conhecer a linguagem, no h como decifrar seus mistrios, no h como revelar sua epifania. (Jos Lus Fiorin)
Muitos de ns, questionadores oriundos dos cursos de Letras, temos certo cacoete
pragmaticista (ou seria pragmtico?) de tentarmos atribuir ou mesmo indagar uma
utilidade imediata e totalmente aplicvel ao chamado mundo real em relao quilo com que
nos deparamos nos bancos, muitas vezes empoeirados, da Universidade. No muito diferente
desses ns, este eu tambm se perguntava sobre a utilidade das inmeras disciplinas de
Lingustica destinadas formao de um futuro docente do ensino secundrio. Assim,
quando pensava nas palavras de Confcio e de Fiorin acima reproduzidas, me indagava
profundamente sobre os porqus e os comos do ensino da Lingustica a preocupao
com os comos sendo uma consequncia direta de uma preocupao exacerbada com os
porqus.
Se, na perspectiva dos porqus, entendermos que, sem conhecer a cincia da
linguagem e das lnguas, no teremos meios para conhecermos a linguagem, tampouco suas
sutilezas, como o linguista da Universidade de So Paulo nos aponta, estaremos logo falando
de uma necessidade de se conhecer os estudos lingusticos como meio de nos conhecermos
melhor como sujeitos, visto que, como nos ensina o intelectual francs mile Benveniste
(1956, p.286), na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito.
Assim, e segundo a lgica de Confcio, conhecendo a fora das palavras atravs da
Lingustica, seria possvel ao homem no apenas se conhecer melhor, mas tambm conhecer a
maneira como se consitui como sujeito, como eu fundamentado na realidade pela linguagem.
Mais do que isso: se pensarmos como Rodolfo Ilari (1983), veremos que o ensino da
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lingustica trata de propiciar ao futuro professor de Letras a oportunidade de analisar fatos da
lngua [...] com rigor e sem preconceitos (p. 15), alm de ampliar as perspectivas a partir
das quais a estrutura da lngua pode ser observada; multiplica[ndo] os horizontes do que se
pode considerar curiosidade legtima acerca da lngua e da competncia para comunicar (op.
cit., p.17). Isso, ento, nos d, entre outros motivos, um porqu slido relacionado ao
ensino de Lingustica. Mas isso no me suficiente.
Meu objetivo aqui pensar em um como. Dessa maneira, pensando nesses dois
problemas que ficam, interrogo as maneiras que devero ser utilizadas para que esse porqu
um tanto quanto utpico se concretize na realidade do ensino universitrio brasileiro, cujos
estudantes, para Possenti (2004, p.11),
no tm a menor familiaridade com as questes mais banais s quais se dedica a Lingustica, a despeito de longa experincia escolar com manifestaes variadas e relevantes de linguagem, e tambm de alguma experincia, frequentemente dolorosa e quase sempre intil, com gramticas (sempre e s as normativas).
Assim, alm de tratar do ensino da Lingustica em sentido estrito, o linguista
destinado ao ensino dessa disciplina nas universidades teria mais um problema a resolver:
pensar em maneiras de criar uma ruptura com essa (falta de) tradio no que tange aos
entendimentos de ordem lingustica mais bsica. Embora no pretenda tratar de forma
sitemtica desse segundo problema nestas reflexes que aqui apresento, levar em conta essa
realidade nos necessria para um pensamento agora, sim, sistemtico e detalhado -, das
formas de como a Lingustica pode ser trabalhado nas aulas dos cursos de Letras.
Dessarte, se desejamos pensar sobre como um professor pode ensinar Lingustica,
precisamos, de antemo, saber o que ensinar Lingustica. Com esse intuito, nada mais justo
do que fazer uma releitura de reflexes de professores da rea a respeito de sua prtica
docente e, mais do que isso, ir buscar em compndios tradicionalmente utilizados no ensino
universtrio da disciplina o que se espera que o aluno iniciante aprenda ao final de tal curso.
1.1 A REFLEXO DOCENTE DE CLAUDINE NORMAND
Professora de lingustica da Universidade de Paris X (Nanterre), fundadora e
coordenadora do Groupe de recherche en histoire de la linguistique3 (GRHIL), Claudine
Normand uma das mais importantes historiadoras da cincia da linguagem no mundo e,
3 Em portugus, Grupo de pesquisa em histria da lingustica.
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durante seu percurso acadmico, produziu vrios estudos que versam sobre questes
epistemolgicas desde o campo lingustico at o discurso pedaggico, a lngua, a Psicanlise e
a relao dessas ltimas. Mais do que isso, e sendo este um dos motivos pelos quais trago
seus pensamentos para me ajudar neste trajeto, Normand uma das maiores especialistas na
obra de Saussure, tendo publicado vrias obras sobre o mestre genebrino. Ademais, vale
sublinhar, trata-se de uma grande representante do pensamento lingustico contemporneo na
Frana, alm de ser uma das poucas pessoas da profisso da cincia das lnguas que reflete
explicitamente sobre seu ensino. Assim, posso dizer no estar diretamente interessado na
trajetria da professora e, sim, na maneira como o vasto caminho de estudos da linguagem
proporcionou-lhe reflexes sobre o ensino da cincia que se destina a esses estudos a
Lingustica. E nessas reflexes que mergulho quando da leitura de seu texto que reflete
sobre esse ensino4.
Dessa maneira, em sua reflexo como docente, Normand (2006, p. 198) questiona-se
sobre qual teoria escolher para o ensino em um nvel primeiro, perguntando-se, tambm,
sobre o interesse de se ensinar uma histria programtica da Lingustica o que, dentre outras
questes, permeia suas dvidas, principalmente da data de seus cursos de epistemologia da
Lingustica. Em relao a essa primeira questo, a pesquisadora sublinha o fato de que, em
um programa que v alm do bsico, indo em direo a teorias lingusticas diferentes, podero
surgir problemas terminolgicos que afetaro a leitura de textos tericos, ao que complementa
que tais problemas geralmente so causados por uma dificuldade terica5, o que nos leva a
pensar, primeiramente, sobre o programa escolhido em um curso introdutrio de Lingustica e
sobre os textos que lhe daro base6. No que tange segunda questo colocada por Normand
a do ensino da epistemologia -, -nos interessante ressaltar um aparato metodolgico utilizado
pela professora em suas aulas, que retomaremos nos captulos seguintes deste trabalho. Fala
ela (op. cit., p. 199) da ordem de
fazer os textos falarem sobre eles mesmos e sobre seu tempo, garantindo que, para esse efeito, seja necessrio se debruar sobre as passagens confusas, aquelas em que
4 Refiro-me, aqui, ao captulo Enseigner la linguistique? Oui, mais comment?, parte integrante da obra de Normand Allegro ma non troppo: invitation la linguistique, em que se apresenta uma narrativa do percurso e reflexes da professora sobre a lngua, a Lingustica e seu ensino. Para referncia completa da obra, ver Referncias bibliogrficas. 5 No original, em francs: [...] une difficult terminologique, il sagit gnralement dune difficult thorique. (NORMAND, 2006: 198). Todas as tradues apresentadas neste trabalho, salvo quando j publicadas em portugus, so de minha autoria e responsabilidade. 6 Voltarei a essa discusso nos captulos 2 e 3 deste trabalho, aprofundando-a. Por ora, basta saber que tais pensamentos esto na ordem do dia e que se configuram como uma dvida recorrente nos programas de ensino de Lingustica.
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alguma coisa dita, mas de uma forma subentendida ou apesar de, por fragmentos disjuntos, nos quais s vezes uma coisa tomada como se um elemento novo tentasse entrar sob os velhos termos inadequados7,
Essa necessidade, em conjunto com outros pensamentos de Normand (como aqueles
que apontam a necessidade de se interrogar os jarges de uma teoria dentro de seu escopo,
contrastando-os com seu uso no escopo de outras teorias lingusiticas8, assim como aqueles
que apontam a necessidade de mostrar a Lingustica em curso atravs de questes vivas,
elegendo-se, para tanto, as questes do sentido9) nos faz pensar que os o qus do ensino da
Lingustica, na reflexo de Claudine Normand, esto diretamente relacionados a seus comos,
uma vez que no existe prtica docente sem a prtica ela mesma. Assim, fica-nos difcil
separar uma definio sobre o que ensinar lingustica nos escritos da pesquisadora, sem que,
para isso, recorramos aos relatos de suas prticas docentes.
Malgrado tal constatao, sua reflexo ainda cara para o escopo deste trabalho, visto
que seus questionamentos fazem emergir tpicos importantes tanto para o linguista experiente
quanto para o estudante que debuta nos estudos da linguagem. Em relao a esse debute e a
uma certa introduo aos estudo dos artigos e dos textos de Lingustica, sempre levando em
conta a questo epistemolgica (especialmente dos CLG), Normand (op. cit., p. 211)
apresenta a ns aquilo que chama de trs questes fundamentais a seu estudo: i) a questo do
objeto; ii) a questo do mtodo; e iii) a questo do objetivo10, as quais, a meu ver, podem
servir de mtodo bastante eficiente em relao anlise de textos em Lingustica,
principalmente para aqueles alunos que se inciam nos caminhos dessa disciplina.
Indiretamente, isso nos leva a outra interrogao da autora, uma vez que a grande maioria dos
cursos de introduo Lingustica dada a partir de manuais da rea: o que restar do
discurso de X uma vez passado pelo escopo da leitura de Y e Z? O que se far desse saber
[dos textos originais] j digerido? Como lero e entendero os outros?11 (op. cit., p.220).
7 No original, em francs: [...] faire parler les textes sur eux-mmes et leur temps, assurant qua cet effet il faut sattaquer aux passages confus, ceux o quelque chose se dit mais en quelque sorte en-dessous ou malgr, par fragments disjoints, o parfois quelque chose coince comme si um lment nouveau sessayait entrer sous de vieux termes inadapts. (NORMAND, 2006: 199) 8 Observao referente a este trecho do texto original, em francs: [...] interroger les terme notionnels sur leur rles rciproques dans une mme thorie et par rapport leurs emplois dans dautres thories. (NORMAND, 2006: 204) 9 Observao referente a este tracho do texto original, em francs: Montrer la science en train de se faire loccasion de questions vives, autrement dit en vif dbat, telle tait la consigne de lappel doffres. Je proposai donc la quetion du sens (NORMAND, 2006: 205) 10 Observao referente a este tracho do texto original, em francs: Jessaie donc de dgager trois questions fondamentales qui me paraissaient les axes de ces textes: la question de lobjet [...] la question de la mthode [...] la question de lobjectif. (NORMAND, 2006: 211) 11 No original, em francs: Que reste-t-il du discours de X une fois pass par la grille de lecture de Y ou Z? Quen est-il du savoir ainsi digr? Comment lit-on, entend-on, les autres? (NORMAND, 2006: 220)
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Nesse sentido, faz-se interessante refletir sobre os manuais de lingustica que, tendo
corpora variados, repousaro sua apresentao muitas vezes limitadora em relao aos
textos originais -, em diferentes aspectos, dependendo de seu objetivo e concepo de ensino
de Lingustica e daquilo que um aluno iniciante nos cursos de Letras deve estar apto a saber
sobre a matria, uma vez que, como j esses manuais, como colocado acima, sero fruto de
um filtro de leitura de seus autores, sendo conveniente, na prtica de ensino de Lingustica,
contrastar esses discursos com aqueles dos textos nos quais tais manuais so baseados. Assim,
deixamos os pensamentos de Claudine Normand sobre a prtica do ensino de lingustica em
suspenso e nos direcionamos anlise de representantes desses prprios manuais, uma vez
que a partir deles que muitos dos alunos das Letras tm acesso aos conceitos bsicos da
cincia da linguagem.
1.2 O (QUASE) SILNCIO DAS INTRODUES DE LYONS
Tendo extensa produo nas reas relativas Semntica formal, Psicolingustica,
obra do pensador Noam Chomsky e sendo autor das introdues aos estudos lingusticos mais
famosas nos pases anglfonos, John Lyons professor de lingustica e dean12 da Faculdade
de Cincias Sociais da Universidade de Sussex, na Inglaterra, tendo lecionado nas
Universidades de Londres, Cambridge e Edimburgo, alm de outros pases europeus e norte-
americanos. Entretanto, mais uma vez, no a vida ou larga produo acadmica de Lyons
que me interessa neste trabalho; o que busco, para os fins deste ensaio, so direes ou
simples rastros , sobre o ensino ou a aprendizagem desse campo de estudos em suas
introdues aos estudos em Lingustica13, haja vista sua grande tradio nesse ramo. Faz-se
mister ressaltar, alm disso, a necessidade de se trazer a viso de um estudioso das lnguas
responsvel pelos primeiros e mais significativos compndios de estudos lingusticos em seu
tempo em pases de lngua inglesa outro lugar de grande produo no campo da Lingustica.
Assim, se trago Normand para nos apontar as questes sobre as quais se reflete no mundo
francfono, tambm invoco Lyons para poder pensar em um efeito de completude naquilo que
diz respeito ao pensamento lingustico no mundo anglfono.
12 Pessoa com autoridade significativa sobre uma unidade acadmica ou sobre uma rea especfica de estudos. Cargo de semelhante ou maior notoriedade acadmica a um diretor de uma faculdade. s vezes, traduz-se tal expresso como reitor, embora seu cargo se restrinja a uma faculdade e no a uma Universidade. 13 Nesse ponto, refiro-me especificamente a Introduction to theoretical linguistics e a Language and linguistics. Para referncia detalhada das obras, ver Referncias bibliogrficas.
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Em suas introdues mais famosas aos estudos lingusticos, o famoso semanticista
no parece definir em que consiste, de fato, ensinar Lingustica, fazendo com que suas
palavras, sobre esse aspecto, caiam no silncio. Entretanto, como todo silncio ato de
linguagem e, por conseguinte, significativo por excelncia, buscamos, em observaes feitas
nos prefcios de tais livros (LYONS, 1968; 1981), pistas que nos remetam a um plano
didtico maior, j que esses textos, minimamente, apresentam aquilo que se espera que um
aluno recm-chegado ao curso de Letras e de Lingustica consiga apre(e)nder em sua
tragetria inicial. Nesse sentido, Lyons (1968, p. ix), diz escrever um livro para prover uma
introduo s mais importantes tendncias dentro da teoria lingustica comtempornea14,
fazendo disso um livro introdutrio no sentido de que no pressupe nenhum treinamento
prvio em relao a seu assunto, mas que pressupe que o leitor [...] esteja preparado para
fazer certo esforo intelectual no que diz respeito ao uso de smbolos e formulas15. Vistas
por outro ngulo, essas afirmaes nos remetem no somente a uma delimitao daquilo que
deve ser apresentado ao estudante - o que continua na afirmao sobre a seleo do corpus
utilizado no manual: eu restringi seu escopo quilo que, por consenso, mais central teoria
lingustica: fontica e fonologia, gramtica e semntica16 (op. cit., p. ix-x) -, mas tambm a
um conjunto de expectativas em relao ao aprendizado do aluno.
Esses aspectos aparecem em outro livro introdutrio, escrito cerca de uma dcada
mais tarde, quando, mais uma vez, coloca-se a necessidade de se
apresentar aos alunos alguns dos conceitos tericos e das descobertas empricas mais importantes da lingustica moderna [...] adota[ndo] um nvel tcnico relativamente baixo, enfatizando as conexes entre a lingustica e muitas outras disciplinas acadmicas que, por seus prprios motivos de acordo com pontos de vista especficos, se interessam pelo estudo da lngua (LYONS, 1981: ix),
o que nos leva a considerar que ensinar Lingustica, em nveis iniciais de um curso de Letras,
seja apresentar aos alunos conceitos tericos bsicos relativos s descobertas e tendncias
recentes dentro do escopo das cincia da lingua(gem), no pressupondo deles um
conhecimento prvio do assunto, embora deles se espere um esforo intelectual, pois, para o
autor, parece importante que o indivduo receba a noo do que seja a Lingustica nos nveis
14 No original, em ingls: My purpose in writing this book has been to provide a relatively self-contained introduction to the most important trends in contemporary linguistic theory. (LYONS, 1968: ix) [grifos meus] 15 No original, em ingls: This is an introductory book in the sense that it does not presuppose any previous training in the subject, but it does assume that the reader [...] is prepared to make a certain intellectual effort with respect to the use of symbols and formulae. (LYONS, 1968: ix) 16 No original, em ingls: I have restricted its coverage[do livro] to what, by common consent, is most central to linguistic theory phonetics and phonology, grammar and semantics. (LYONS, 1968: ix-x)
19
mais avanados, embora no necessariamente mais tcnicos (op. cit., p. x). Esse ltimo
aspecto tambm explica a necessidade de ser ter um cuidado de escolher um material
representativo no s dos diferentes pontos de vista tericos, como tambm dos diferentes
nveis de exposio-, haja vista o intuito de se fazer com que o aluno iniciante nesses cursos
seja exposto s diferentes ramificaes do trabalho lingustico, o que tradicionalmente feito
em nveis mais avanados desses cursos.
Dessa forma, embora no se possam encontrar explicitamente, nos cursos
introdutrios de Lyons, definies sobre o que seja ensinar Lingustica, nota-se certa
preocupao, em seus prefcios, com aquilo que ser apresentado aos alunos (noes bsicas
e atuais) e com sua forma de apresentao (que no pressupe um estudo prvio do assunto),
o que, mesmo que indiretamente, contribui para a reflexo aqui proposta.
1.3 A VOZ INTRODUTRIA DOS LINGUISTAS BRASILEIROS
Percorrendo uma trilha similar aos trabalhos de Lyons, as introdues Lingustica
organizadas por professores de universidades brasileiras tambm sublinham a necessidade do
ensino daquilo que parece bsico a um aluno iniciante, isto , aquilo referente aos conceitos
bsicos e mais recorrentes na cincia da lingua(gem). Nesse sentido, retomo, nesta seo, tais
conceitos recorrentes, dando luz tambm quilo que trazido de novo nessas introdues.
Para os fins deste trabalho, porm, em vez de fazer uma anlise exaustiva de tais compndios,
detenho-me queles mais conhecidos nos ambientes universitrios brasileiros, uma vez que,
ao traz-los para o escopo deste trabalho, proponho pensar o ensino de Lingustica dentro de
um contexto referente s universidades brasileiras. So os livros: Introduo Lingustica I
(2004), organizado por Jos Luiz Fiorin e Introduo Lingustica: domnios e fronteiras
(2004), organizado por Fernanda Mussalin e Anna Christina Bentes.
Professoras de Lingustica, respectiviamente, das Universidades Federal de
Uberlndia (UFU) e Estadual de Campinas (UNICAMP), Mussalin e Bentes (2004) entendem
um curso de introduo Lingustica como algo que tem por objetivo
preparar o terreno conceitual para contatos posteriores com materiais que analisem o fenmeno da linguagem com maior grau de detalhe e aprofundamento, alm de tornar acessvel para leitores iniciantes ou no-especializados em Lingustica, as relevantes abordagens sobre o fennemo da linguagem (p. 15) [grifos meus].
20
Essa linha de raciocnio segue, a seu modo, a reflexo empreendida por Lyons (1968,
1981), analisada em seo anterior a esta, haja vista o destaque dado s questes de se co-
construir um conjunto de conceitos junto ao aluno, tendo em mente quais abordagens so ou
no relevantes para que esse constructo seja possvel. Dessa forma, -nos possvel notar que o
ensinar Lingustica, muito mais do que uma prescrio terico-metodolgica, est
intimamemente ligado a um conjunto de noes que o aluno iniciante deve saber, em
detrimento de uma definio positiva sobre o que esse ensinar.
No muito distante desse estado de arte, o professor de departamento de Lingustica
da Universidade de So Paulo (USP), Jos Luiz Fiorin, elenca diversos pontos relevantes de
estudo para o debutante na cincia da lingua(gem), defendendo que
um iniciante na Lingustica precisa saber o que a cincia da linguagem, saber que h outras formas de estudar as lnguas, que vo alm do prescritivismo que hoje invade os meios de comunicao, saber que a Lingustica pretende descrever e explicar os fenmenos lingusticos; conhecer como se processa a comunicao humana; perceber que as lnguas no so nomenclaturas, mas formas de caracterizar o mundo; conhecer os cinco principais objetos tericos criados nos sculos XIX e XX: a langue, a competncia, a variao, a mudana e o uso; aprender os rudimentos da anlise lingustica, em seus diferentes nveis [...]. Em suma, o que se pretende num curso de Introduo Lingustica que o aluno se aproprie de conceitos, para que possa operar, de maneira cientfica, com os fatos da lngua. O que se deseja que ele v alm do senso comum na observao dos fenmenos lingusticos e comece a ter uma posio investigativa diante da linguagem humana (2004:8) [grifos meus].
Nesse sentido, as propostas de Fiorin (op. cit.) alinham-se quelas de Lyons (1968,
1981), Mussalin e Bentes (2004) e a algumas das reflexes de Normand (2006),
considerando-se que no prope, explicitamente, o que ensinar Lingustica, mas faz uma
proposio de um plano de contedos que devem ser apropriados pelo ingressante nos cursos
de Letras e de Lingustica, explicitando, alm disso, que contedos significativos seriam
esses, o que no chega a ser revelado de forma to sistemtica nos outros pensamentos aqui
vistos. Assim, temos certo consenso no que tange ao que ensinar, e no sobre ao que
ensinar. Sobre esse ltimo aspecto, parece-nos, recai um silncio significativo por parte dos
linguistas citados.
1.4 INTERMEZZO
Se temos, neste meio-caminho, um consenso em relao ao que ensinar e isso, de
uma forma ou de outra, relaciona-se ao que o ensino de Lingustica, visto que tais
21
concepes se confundem e se embricam, -nos interessante revisar tais conceitos para que
possamos compar-los e, a partir disso, ver como aplicam-se, ou no, ao nosso propsito
primeiro - pensar como ensinar o programa lingustico de Ferdinand de Saussure, que,
sabidamente, permeado por uma grande heterogeneidade de fontes. Nesse sentido, proponho
um quadro-resumo (v. Tabela 1) para que tais visualizao e comparao fiquem mais claras.
Segue, portanto, o quadro:
TABELA 1
Quadro-resumo: Ensino de Lingustica o que e como ensinar
Linguista Obra Concepes sobre ensinar Lingustica
O que ensinar Como ensinar
FIORIN, J.L. Introduo Lingustica I Objetos Tericos
O que a cincia da linguagem; rudimentos da anlise lingustica, em seus diferentes nveis.
Proporciornar aos alunos a apropriao de conceitos bsicos na cincia da linguagem.
LYONS, J. Introduction to Theoretical Linguistics
Tendncias importantes dentro da teoria lingustica comtenpornea; teoria lingustica: fontica, fonologia, gramtica e semntica.
Language and Linguistics
Conceitos tericos e das descobertas empricas mais importantes da Lingustica morderna.
Escolher um material representativo no s dos diferentes pontos de vista tericos, como tambm dos diferentes nveis de exposio; adotar um nvel tcnico relativamente baixo.
NORMAND, C.17 Allegro ma non troppo: invitation la linguistique
Histria programtica da Lingustica; as questes do objeto, do mtodo e do objetivo dentro dos textos de anlise lingustica.
Interrogar os jarges de uma teoria dentro de seu escopo, contrastando-os com seu uso no escopo de outras teorias lingusticas; mostrar a Lingustica em curso atravs de questes vivas.
17 Embora as reflexes de Claudine Normand sejam apresentadas neste quadro como mais uma em meio a vrios pensamentos relativos ao ensino de Lingustica, necessria aqui uma nota: isso feito apenas como procedimento didtico, uma vez que, nos pensamentos que sero moblizados ao longo deste trabalho, vejo aquilo que a linguista coloca como uma questo de fundo. Dito de outro modo, a partir desse pensamento, que mais considerar os o qus, pensa no carter metodolgico construdo no ensino e a partir do ensino de Lingustica, que me coloco ao escrever este ensaio.
22
TABELA 1
Quadro-resumo: Ensino de Lingustica o que e como ensinar (Continuao)
Linguista Obra Concepes sobre ensinar Lingustica
O que ensinar Como ensinar
MUSSALIN, F.;
BENTES, A. C.
Introduo Lingustica 1: domnios e fronteiras
Preparar o terreno conceitual para contatos posteriores com materiais que analisem o fenmeno da linguagem com maior grau de detalhe e de aprofundamento; tornar acess-vel, para leitores iniciantes em Lingustica, as relevantes abordagens sobre o fennemo da linguagem.
Nota: os nomes dos linguistas e das obras relacionadas na tabela acima referem-se quelas citadas ao longo deste captulo.
Ao compararmos os tpicos acima, notamos uma recorrncia no que tange aos
contedos a serem ensinados, podendo-se, ento, pensar que ensinar Lingustica pelo menos
em um primeiro nvel -, trabalhar os conceitos bsicos dessa cincia, podendo, em
consequncia disso, proporcionar ao aluno iniciante a possibilidade de seguir fazendo anlises
nos diversos nveis lingusticos, em graus de dificuldade crescentes. Essa definio que pensa
em contedos, quando transpostos para o ensino do programa saussuriano, entretanto, traz-nos
um problema: se considerarmos que tal programa no acabado e se constitui de fontes
diversas e heterogneas, de contedo ora complementar, ora contraditrio, torna-se difcil
eleger aquilo que bsico no programa lingustico de Ferdinand de Saussure, para que, mais
tarde, se possam relacionar suas reflexes feitas em vrios nveis de anlise da lingua.
Assim, seria, no mnimo, inocente de minha parte propor um programa de ensino
sem visualizar, mesmo que de maneira panormica, o estado da arte de tal programa. Dessa
maneira, deixo, mais uma vez, minha questo visto tambm ser um questionador - de como
ensinar lingustica (j que essa definio parece substituir a do que ) em suspenso, para
pensar na obra de Ferdinand de Saussure e, em vista disso, em seu programa lingustico.
Dessa maneira, interrompo aqui este captulo e remeto a um prximo que, tendo em vista
aquilo que foi aqui discutido, analisa o estado atual do corpus saussuriano.
23
2 QUANTOS SAUSSURE, MEU DEUS?!
No difcil, ao lermos hoje alguma produo acadmica sobre Saussure, sua obra ou
sua vida, encontrarmos sua classificao em dois, trs ou mais personalidades, como se se
pudesse dividir o linguista suo em diversas partes, cada uma delas sendo responsvel por
uma obra ou por um conjunto de pensamentos elaborados pelo mestre. Nesse contexto, em
sua introduo a umas das principais obras contemporneas sobre a obra do linguista
genebrino - Compendre Saussure: daprs les manucrits18 (2009) -, Depecker apresenta um
espectro dual do mestre, propondo um Saussure comparativista e estruturalista, fruto de um
ato editorial, responsvel pelo CLG e por uma srie de dicotomias ditas responsveis por um
reducionismo das concepes de lngua e do objeto da Lingustica, que se contrasta a um
Saussure dos manuscritos, esse, sim, responsvel pelo desenvolvimento de pensamentos
revolucionrios para os estudos da linguagem.
Esse pensamento, por mais tradicional no campo dos estudos lingusticos que possa
ser os famigerados Saussures diurno e noturno -, nos aponta um retorno a uma concepo
positivista, dicotmica de cincia19, e ignora a unidade das obras do mestre linguista: a
preocupao com o objeto, a terminologia e o estudo da linguagem a partir de uma
perspectiva que considerasse as identidades analticas a partir de seu sentido no sistema
lingusitico, como bem nos apontam os pensadores Michel Arriv (2007), Franoise Gadet
(1986, 1987) e Claudine Normand (1970, 2007) em suas obras. Assim, pensar em um
Saussure divido, esquizofrnico e contraditrio dentre seus gostos e visadas cientficas ,
provavelmente, no considerar a ligao de uma vasta obra que mantm o princpio das
diferenas em todo seu escopo. Ou, pior ainda: pensar em um Saussure divido , mesmo que
18 Em portugus, Comprender Saussure depois dos manuscritos. 19 Visto no ser o objetivo deste trabalho detalhar a discusso sobre os pensamentos positivista e cientfico, recomendo ver Aranha e Martins (2003) e Simon Bouquet (2007) para abordagens mais geral e mais aprofundada do assunto, respectivamente.
24
distantemente, pensar apenas em dicotomias no existentes: tanto as do CLG quanto as da
obra do linguista suo.
Nesse sentido, chamo a ateno, neste percurso de escrita, para a necessidade de se
olhar a obra saussuriana como um todo antes de se pensar em seu ensino. Por um lado, fao
isso para que, dentro de uma obra to vasta, possamos pensar naquilo que , de fato, relevante
para um aluno inciante em um curso de Letras, haja vista a discusso empreendida no
primeiro captulo deste trabalho. Por outro, o fao para que o prprio professor (de
Lingustica), do qual se espera um conhecimento aprofundado sobre aquilo que trata em sala
de aula, no caia em lugares comuns j to discutidos, como tratar de um Saussurede duas
faces.
2.1 O ESTADO DA ARTE SAUSSURIANA
2.1.1 Dos Trabalhos Publicados em Vida
Assim como todo linguista de sua poca, Saussure teve grande produo no que diz
respeito a trabalhos em Lingustica comparativa, o que, mais tarde, viria a colocar em um
plano suspenso. Como nos coloca Mopurgo Davies (2006), todo trabalho publicado por
Saussure em vida foi a respeito de problemas relativos ao Indo-Europeu, encaixando-se na
tradio histrica e comparativa da Lingustica feita no sculo XIX. No entanto, como pode
ser visto, na sequncia deste trabalho, mais do que se enquadrar nos moldes da cincia
comparativa fundada pelo alemo Franz Bopp, Saussure foi alm dessa tradio, ao se mostrar
duvidoso sobre a natureza dessa cincia e de sua continuidade.
Dentro desses trabalhos, merecem nossa ateno dois dos mais significativos na
produo saussureana: o Mmoire sur le systme primitif des voyelles dans les langues indo-
europennes20, de 1878, e o De l'emploi du gnitif absolu en sanscrit21, de 1880. Ainda para
Mopurgo Davies (op. cit.), apesar de esses trabalhos tratarem, em princpio, de questes
relativas comparao de estados de lngua, h pouca dvida de que o trabalho comparativo
de Saussure dominado por conceitos de sistema, de elementos distintivos e de contraste22
(p.26). Mais do que isso, esses trabalhos de ordem complexa, trazem como um som ou
20 Em portugus, algo como Trabalho sobre o sistema primitivo das vogais nas lnguas indo-europeias. 21 Em portugus, Sobre o emprego do genitivo absoluto em Snscrito. 22 No original, em ingls, there is little doubt that the historical comparative work by Saussure is dominated by the concepts of system, of distinctive characters, of contrast.
25
conjunto de sons dados pela reconstruo das lnguas em estudo, afetando todo o sistema
fonolgico dessa lngua, assim como os contrastes, diferenas, hierarquias e funcionamento
morfofonolgico desse sistema tambm so afetados.
2.1.2 Do Curso23 de Lingustica Geral
Baseado nos cursos sobre Lingustica Geral proferidos por Saussure na Escola de
Altos Estudos de Genebra, de 1907 a 1911, o Curso de Lingustica Geral (doravante CLG)
constituem, conforme nos ensina Normand (2000, p.18), um texto de ideias, de reflexo
absolutamente original sobre a linguagem, a especificidade do objeto-lngua, as armadilhas da
evidncia e a trivialidade nas cincias humanas. Dessa maneira, essa que a obra mais
conhecida do linguista genebrino torna-se uma leitura indispensvel para todos aqueles que
aspiram a conhecer um pouco mais da Lingustica e do pensamento saussuriano. No entanto,
muitos crticos apontam essa obra como apcrifa e travestida de opinies que sequer eram
oriundas de Saussure, tomando-a como uma afronta ao pensamento crtico do mestre e como
um texto pertencente a seus editores, e no ao professor dos cursos da Universidade de
Genebra (cf. BOUQUET, 2007).
No pretendo, neste trabalho, entretanto, levantar bandeiras contra ou a favor do CLG
e de sua edio, visto no ser esse meu objetivo maior de pesquisa. Limito-me, aqui, a tratar
historicamente da (no) to conhecida histria da edio do Curso e a apresentar criticamente
seus contedos, refletindo, ento, sobre suas leituras e sobre as consequncias delas advindas,
uma vez que esse o texto mais utilizado em sala de aula de Lingustica para se pensar no
ensino do programa saussuriano.
2.1.2.1 Dos contedos do Curso e de sua edio
Comecemos, ento, a visualizar na histria da edio do Curso suas controvrsias. Em
artigo intitulado O fazer do Curso de Lingustica Geral24 (2006), o pesquisador Rudolf
Engler nos mostra como se deu, afinal, o trabalho de edio do Curso, analisando as cartas
trocadas entre seus editores, colegas de Saussure e Mme. de Saussure a respeito do grande
empreendimento que pretendiam fazer em homenagem ao mestre. Tal empreitada, aps 23 Para os fins deste trabalho, diferencio Curso de Cursos: o primeiro utilizado para se referir ao Curso de Lingustica Geral, livro produto da edio feita pelos colegas de Saussure; o segundo, para se referir ao conjunto de aulas dadas por Saussure na Universidade de Genebra. 24 No original, em ingls, The making of the Cours de linguistique gnrale.
26
discusso que durou cerca de trs anos (de 1913 a 1916), fez o editores chegar a acordos
relativos ordem de apresentao dos cursos uma mescla entre os contedos dos primeiro e
terceiro, para depois fazer a apresentao de princpios pertinentes ao segundo ciclo de
palestras dirigidas por Saussure -, assim como quais dos cadernos utilizar para reconstiruir as
ideias do colega acadmico, chegando, por fim, a discusses relativas ao contedo dos cursos
em si, de suas adies e supresses, conforme suas prprias concepes lingusticas, como
nos mostra o saussurista Simon Bouquet (2007, 2009).
Tomando, ento, essas controvrsias e questes historiogrficas como ponto
razoavelmente pacfico no que nos diz respeito relao ao Curso e, por conseguinte,
deixando tais discusses de lado, afinal, parafraseando Trabant (2005), no julgo ser
necessrio fazer aqui uma defesa de Saussure a seus admiradores mais ferrenhos, creio que
possamos partir para um dos pontos principais daquilo que trazido pelo CLG como
pensamento inovador sua poca: o papel desempenhado pelo linguista e pela Lingustica.
Flores (2009) aponta que, no CLG, essas reflexes concernem ao que o linguista deve fazer no
mbito geral da cincia lingusitica, assim como ilustram aquilo que de responsabilidade do
linguista saber para poder desempenhar bem seu papel. Alm disso, so explicitadas as
relaes que o linguista deve ter com seu mtodo e com seu objeto de anlise , sempre
considerando, para esses fins, a lngua como sistema.
Muito mais do que revolucionar o pensamento lingustico apontando, aquilo que se
espera do linguista e da Lingustica, o texto do CLG tambm se colocaram como avant-garde
ao estabelecer princpios gerais para o entendimento da linguagem, da Lingustica e da lngua.
So eles: a concepo da lngua no como mera nomenclatura, mas como sistema de unidades
correlacionadas entre si, (Saussure, 1916: 79 et seq.); as distines necessrias entre
linguagem, lngua e fala para a concepo de objetos distintos para a cincia em formao
(op. cit; pp. 15-32); as diferentes realidades temporais de estudo da lngua e suas correlaes
com o estudo lingustico (op. cit; pp. 94-114; 163 et seq.), entre outros aspectos que, para o
estudioso Jean-Claude Milner (2003), so claros, mas acabam desorientando aqueles que os
leem, haja vista a pouca trivialidade dos trabalhos empreendidos por Saussure25. Entre
outras coisas, esse efeito de trivialidade pode ter sido responsvel por leituras problemticas
que desconsideram a genialidade do trablho do linguista genebrino. Retornarei a esse assunto
mais adiante neste captulo.
25 Na traduo espanhola, Saussure es un autor lmpido, pero su limpidez desorienta. A esto se aade la aculturacin de la que se benefici cuyo precio es la aparencia de trivilalidad: el lector suele creer que se encuentra com algo muy conocido. Ahora bien, hay poca trivialidad en Saussure. (MILNER, 2008:19)
27
De volta aos princpios gerais, Saussure (1916) nos traz questes particulamente
importantes, no s para o escopo deste trabalho, mas tambm para o entendimento de todo
seu programa lingustico: suas concepes sobre o signo lingustico e, a partir disso, o
entendimento do sistema da lngua como um sistema de valores negativos. Nesse sentido, o
mestre nos explica que na lngua, no se pode isolar nem o som do pensamento, nem o
pensamento do som (op.cit., p. 157), o que nos leva dualidade do signo e,
consequentemente, dupla essncia da lngua, justamente por esses dois elementos [estarem]
intimamente unidos e se [referirem] um ao outro. (op. cit.. p. 98). Dessa maneira, so
associadas a essas concepes bsicas outras caractersticas do signo lingustico: a
arbitrariedade e a (i)mutabilidade. Essas ltimas, para Normand (2006, p.71), representam
praticamente a mesma propriedade fundamental da lngua, isto , a da existncia de um
sistema interno, constitudo de relaes imotivadas, que no pode ser mudado se no pelo
social, a massa falante. Dessarte, no sistema da lngua, essa coletividade necessria para
estabelecer valores cuja nica razo de ser reside no uso e no consenso geral (Saussure,
1916: 157), o que transpe a abstrao dos signos a abstraes de valores da lngua que
sempre se daro a partir de relaes e de diferenas dentro do sistema lingustico. Ou seja, o
princpio bsico da teoria saussuriana, o signo, tambm aquilo que lhe atribui a maior
complexidade a lngua, de um sistema de signos, passa a ser um sistema de valores, de
unidades observveis dentro do campo da linguagem, mas esse sistema no existe se no pela
presena de signos (aqui, j valores) que se relacionam entre si em um campo sintagmtico e
pela ausncia de outros que se relacionam a esses presentes por um campo virtual de
associaes.
Considerando a complexidade e a clareza excessiva de algumas partes do Curso,
retomando aquilo que nos coloca Milner (2008), vrias leituras foram feitas desses conceitos:
muitas refutando-os e tomando-os por invlidos, outras pensando sobre eles e tentando ir alm
de sua contribuio para os estudos da lngua e da linguagem. No entanto, o que mais ficou
desse texto tomado na histria de suas interpretaes (cf. Normand, 2000) foi uma leitura
positiva e reducionista dos princpios nele trazidos. E, devido a isso, antes de proseguir s
outras obras saussurianas, paro aqui e proponho uma pequena reflexo sobre alguns
problemas dessas leituras que at hoje so dadas como a leitura do Curso. Mais do que isso,
fao esta parada com vista a retomar uma das questes que movem este trabalho: pensar nas
consequncias que as leituras feitas do CLG podem trazer ao ensino do programa saussuriano
em ambientes acadmicos.
28
2.1.2.2 Possveis Razes e Consequncias da Leitura Positivista do CLG
Para comearmos a pensar sobre essa leitura que coloco como problemtica, -nos
interessante entender algumas das possveis causas que levaram a essa interpretao do Curso.
Em nos sendo inevitvel o comeo, vamos a um pequeno estudo historiogrfico sobre aquilo
que se veio considerar cincia lingustica.
Consideremos, primeiro, que aquilo que se chamava Lingustica at o comeo do
sculo XX era tomado por estudos de carter descritivo e comparativo entre estados de uma
determinada lngua, muitas vezes com o objetivo de se chegar a uma protolngua. De acordo
com o que aponta Robert Martin (2002, p.76), esses estudos, em sua grande maioria, eram
baseados em documentos escritos de uma lngua em uma determinada regio, o que j
conferia s pesquisas um carter baseado em uma norma gramatical historicizada (ibid., pp.
51 et seq.). Dessa maneira, tentava-se chegar a um lugar incerto uma lngua-me, a partir
de outros lugares tambm incertos estudos gramaticais-normativos, que no levavam em
conta o real uso da lngua26. Esses estudos, conforme o linguista francs mile Benveniste
(1963, p. 21), acabavam por resumir-se em uma gentica das lnguas que visava ao estudo da
evoluo de formas lingusticas isoladas. Esse isolamento dos objetos de estudo, por sua vez,
tornava essas pesquisas dispersas, muitas vezes, sem valor aos pensamentos cientficos
vigentes. Partindo disso, no fica difcil imaginar as razes pelas quais os primeiros esboos
de se trazer Lingustica e, principalmente, ao lingista, um esclarecimento sobre aquilo que
so e fazem27 tenham sofrido uma leitura estanque, resultante da filosofia cientfica que
comeava a se desenvolver nessa poca.
Alm do carter metodolgico (ou de sua completa ausncia!) envolvidos nos estudos
da lngua e da linguagem28, nessa poca, comeava tambm a desenvolver-se um plano scio-
26 Note-se que as eventuais crticas que fao metodologia de pesquisa adotada quela poca so feitas, principalmente, devido a uma viso contempornea que compartilho sobre o que vem a ser o fazer lingustico. Mais ainda, minhas observaes nesse sentido so bastante ferrenhas, visto que me insiro em uma escola de pesquisa da lngua que no consegue conceb-la disassociada daquele que a coloca em uso. Afinal, como nos ensina mile Benveniste (1958, p. 286), na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito [grifos meus]. 27 Quando coloco esboos de ser e fazer do linguista e da Lingustica, penso, ainda que indiretamente, na carta que Ferdinand de Saussure escreveu a seu colega Antoine Meillet, em 1894, afirmando estar muito discontente com a situao acadmica vigente e ressaltando a dificuldade de se escrever somente dez linhas que faam sentido quanto aos fatos da linguagem, alm da necessidade de se mostrar ao linguista o que ele faz, reduzindo cada operao sua categoria prevista; ao mesmo tempo [mostrando] a grande variedade de tudo que se pode, enfim, fazer em lingustica. [grifos meus] (Godel, SM, p.31 apud Normand, 2000, pp. 27-28). 28 Uso estudos da lngua e da linguagem pois, na poca em questo, no se tinham distintas as diferenas terico-metodolgicas de cada pesquisa.
29
filosfico29 que, conforme Aranha e Martins (2003, p.140), pregava a abolio de um plano
teolgico e metafsico que, preocupados com a explicao dos porqus das coisas por
entidades divinas ou por problemas abstratos, no pareciam solucionar os problemas do
pensamento cientificista vigente nos sculos XIX e XX. Por conseguinte, essa corrente de
pensamento desejava um estado de coisas positivo, isto , real, certo e tangvel, (ibid.,
p.140) e que se precocupasse apenas com o como as coisas eram ou deveriam ser feitas. Dessa
maneira, parece-nos ficar claro como um texto originado de cursos cujos objetivos
caracterizavam-se por um ensinar os objetos de estudo de uma cincia ainda em
desenvolvimento tenha sofrido uma leitura fortemente influenciada pelo pensamento
cientfico e filosfico de sua poca. Nas palavras do pesquisador Simon Bouquet (1997, p.
15), se a particularidade do Cours enunciar um projeto puramente cientfico [do que ,
afinal, a Lingustica e como faz-la], ele se inscreve, nesse sentido, no movimento geral de
positivao dos objetos de estudo humanos no movimento das cincias humanas da
poca qual pertence [adendo meu] 30.
A principal consequncia dessa leitura positivista do Curso de Lingustica Geral foi a
fundao de um pensamento cientfico dentro daquilo que era um campo difuso e, em sua
grande maioria, puramente metafsico. Entretanto, para que fosse possvel livrar-se dessa
abstrao necessria ao pensamento da linguagem, muitos dos axiomas do programa de
Ferdinand de Saussure foram interpretados de maneira extremamente dicotmica, o que uma
leitura mais atenta e no to pragmaticista de um pensamento inconcluso tomado por um
positivismo ultrapassado (Normand, 2000, p. 120) apontaria como falha. Dessarte, para
continuarmos nossa reflexo no que tange leitura das ditas dicotomias saussurianas, um dos
principais pontos de confronto quando falamos em leituras saussurianas, aprofundemo-nos
um pouco mais no texto do Curso.
2.1.2.3 As Dicotomias(?) Saussurianas
Principalmente difundidas dessa maneira pela leitura feita pelo programa funcionalista
bloomfieldiano (cf. Gadet, 1896), as ditas dicotomias saussurianas sempre apresentam no
dois (ao contrrio do que se prega), mas trs elementos interrelacionados. Para os fins deste 29 Refiro-me, aqui, Lei dos Trs Estados idealizada por Auguste Comte (1978-1857) com vistas a descrever a evoluo do pensamento cientfico da raa humana. 30 Mesmo no estando intimamente ligado ao escopo deste trabalho, digna de nota a minha adimirao erudio e aos trabalhos de Bouquet quanto aos textos saussurianos. Entretanto, afasto-me de sua posio que tenta colocar a positivao da leitura do Curso como culpa exclusiva do trabalho de seus editores, como parece ser feito em Introduo Leitura de Saussure (1997).
30
trabalho, abordarei apenas aquelas mais recorrentes s leituras do programa do mestre
genebrino, tentanto provar seu carater no-dicotmico e/ou excludente. So elas: lngua e fala,
significante e significado, sincronia e diacronia, sintagmatizao e associao.
A primeira dessas dicotomias aparece quando da limitao do objeto da Lingustica
que, segundo Saussure (1916, p. 13), deveria delimitar-se e definir-se a si prpria. Para
esses propsitos, no seria interessante que se lidasse com um objeto heterclito ou totalmente
heterogneo ao se conduzir as pesquisas da cincia das lnguas, visto que, como j se havia
notado na (falta de) carter metodolgico daquilo que at ento vinha sendo empreendido,
pesquisas que no tivessem um objeto definido ou que ainda lidassem com fatos que no
fossem estritamente da ordem da lngua levariam a concluses que se perderiam entre si
(ibid., p. 10). Visto, portanto, a necessidade de trazer Lingustica um objeto, o mestre suo,
em seu terceiro curso ministrado na Universidade de Genebra, delimitou a essa cincia
emergente o papel de estudar a lngua, que ao mesmo tempo, um produto social da
faculdade de linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social
para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos (ibid., p.17). Dessa forma, a
manifestao da fala seria o prprio exerccio dessa faculdade de linguagem nos indivduos,
sendo essa maneira, individual e, a priori, no interessante como um objeto de anlise da
Lingustica.
interessante notar, nessa passagem, que, primeiramente, o que Saussure busca
delimitar a Lingustica ao estudo da lngua e no da linguagem como um todo, sendo essa
ltima um cavaleiro de diferentes domnios (ibid., p.17) e uma representao daquilo que
vinha sendo feito em Lingustica at ento. Assim, se, de fato, buscssemos uma dicotomia
nessa passagem do Curso, teramos algo que oporia linguagem e lngua e no lngua e fala.
Entretanto, a prpria oposio entre linguagem e lngua extremamante passvel de
problematizao, visto que aquilo que nos trazido pelos editores dos Cursos mostra que a
lngua uma parte determidada e essencial dela [da linguagem] (ibid., p. 17, grifo meu),
no se configurando como algo parte da linguagem e, sim, como parte dela assim como a
fala (ibid., p. 21). Dessa maneira, -nos problemtico falar em uma dicotomia entre lngua e
linguagem ou entre lngua e fala, visto que essas duas esto sempre ligadas a um terreno
maior: o prprio campo da linguagem. Tambm seria estranho dizer (e corroborar com tantos
leitores ruins!) que h uma separao e, por conseguinte, uma excluso do campo da fala da
cincia lingustica. O que, de fato, ocorre um recorte distinto entre uma lingustica da lngua
e uma lingustica da fala, como nos explica o captulo homnimo do Curso de Lingustica
Geral (ibid., p.26). Mais do que isso, o que existe, nesse contexto, so pontos de vista
31
diferenciados sobre cada fenmeno, visto que seria ilusrio reunir, sob o mesmo ponto de
vista, a lngua e a fala. (ibid., p.28), j que a lngua, para Saussure, representa o sistema de
possibilidades de realizaes da faculdade de linguagem, sendo a fala, sua realizao
individual e concreta. Sendo assim, se bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de
vista, diramos que o ponto de vista que cria o objeto (ibid., p.15), nada parece mais
adequado que um recorte de tais campos da linguagem que, muito antes de serem excludentes,
so constitutivos e complementares.
Outra leitura dicotmica feita do programa saussuriano repousa sobre a questo do
signo lingustico: muitos especialistas dentro do campo das cincias da lingua leem as partes
constituintes do signo saussuriano, significante e significado, como partes isoladas e
excludentes. A primeira contradio a essa leitura encontra-se na prpria definio do signo
lingustico, classificado como coisa dupla, constituda da unio de dois termos (ibid., p. 79,
grifo meu), visto que as faces de uma virtualidade sonora e de um conceito varivel s se
daro quando colocados em uso no sistema da lngua como um sistema de valores de ordem
negativa (ibid., pp.133-134), unindo-se um ao outro, e no excluindo suas partes.
Relacionado intimamente questo do signo e das unidades de anlise da lngua,
encontra-se a proposta de Ferdinand de Saussure de que o sistema lingustico (plano virtual)
poderia ser analisado em dois axiomas: um eixo em que as unidades da lngua se colocariam
se maneira associativa, ou seja, em ausncia em relao aos outros elementos da lngua no
plano das virtualidades (ibid., p. 146), e de maneira sintagmtica, em presena junto aos
outros termos da lngua no discurso (ibid., p.144), de modo que cada elemento lingustico
estabelece relaes consigo e com outros nos dois planos da lngua. Dessa maneira, se vemos
a lngua funcionar sem problemas em nosso cotidiano31, no podemos dizer que os eixos do
sistema lingustico virtual funcionam separadamente. Caso contrrio, as pessoas apenas se
utilizariam de palavras isoladas ou de sequncias de unidades sem relao aparente entre si32.
Um pouco parte dessa ltima discusso, mas ainda presente no quadro saussuriano
de anlise lingustica, encontramos uma preferncia no Curso por uma anlise sincrnica dos
fatos de lngua, o que se justifica pelo fato de todo falante falar a partir de um estado dado de
lngua, no considerando sua evoluo ou variaes de ordem temporal (ibid., p. 117). Assim,
um estudo evolucionista da lngua (perspectiva diacrnica) no daria cabo do estudo da lngua
31 Um problema de funcionamento, nesse sentido, acarretado por uma leitura dos textos de Roman Jakobson, que, a partir dos planos associativos e sintagmtico saussurianos, prope questes relativas a afasias nos planos metafrico ou metonmico. 32 De novo, esse quadro sintomtico que se nota, ainda que de maneria geral, em pacientes afsicos.
32
tal como ela se apresenta33, objeto esse da cincia lingustica. Essa preferncia, entretanto,
mais do que considerada como uma diacronia, vista como uma excluso da lingustica
histrico-evolutiva por parte de vrios etimlogos e sociolinguistas de leitura desatenta. O
que, de fato, diz o Curso que h duas partes da Lingustica: uma sincrnica e uma
diacrnica, que trataro de objetos diferentes e se enquadraro em pontos de vista diferentes
(p.116). Assim como explicado acima, Saussure disse a respeito s prprias lingusticas da
lngua e da fala, no havendo, portanto, uma separao em dois termos distintos e
excludentes, e, sim, uma complementao dos pontos de vista estudados por cada um.
2.1.2.4 E agora? O que fazemos com isso?
Como a leitura positivista das reflexes colocadas por Saussure j teve vrias
consequncias, dentre elas, aquela que me permite estar escrevendo hoje estas reflexes - o
fundamento da Cincia Lingustica -, um possvel movimento de equao para os problemas
aqui levantados seria pensar o que poderia ser feito com essa quebra na leitura dicotmica
aqui evidenciada. Como nos coloca Claudine Normand (2000, p. 113 et seq.), o prprio Cours
constitui um texto tomado na histria de sua interpretao. Isso nos permite pensar que
talvez possa ser formada (ou resgatada) uma nova-velha leitura dos Cursos do mestre. Dessa
vez, no dicotmica e excludente e, sim, j que necessitamos de um mnimo de positivao
para podermos fazer sentido das coisas, trinitria, complementar e multidirecional, uma vez
que cada um dos elementos apresentados anteriormente, conforme nos ensina Flores (2009),
apoia-se em um terceiro para constituir-se: a lngua e a fala constituem-se na linguagem (e
vice-versa); o significante e o significado, no signo lingustico, e, por conseguinte, no valor; a
sincronia e a diacronia, em um estado de pancronia; os eixos sintagmticos e associativos, no
sistema lingustico.
2.1.3 Dos Escritos de Lingustica Geral
Vencida a batalha relativa leitura positivista do Curso, posso agora apresentar mais
uma histria da Lingustica saussuriana: a histria dos Escritos de Lingustica Geral e de
outros documentos provenientes da mo do linguista genebrino. Conforme nos conta Vilela
33 Desncessrio dizer aqui que, como sabemos, todo estudo diacrnico pressupe, minimamente, dois estudos sincrnicos para fins de comparao. Esse dado tambm se apresenta como outro motivo para a preferncia dos estudos estticos aos evolutivos.
33
(s/d), aps um hiato de 45 anos da edio e da publicao do CLG, novos documentos foram
encontrados no gabinete anexo moradia de Madame de Saussure: mais anotaes de aula,
esboos de artigos e ensaios crticos sobre leituras referentes s linguas e Lingusitica. Aps
o tempo equivalente a quase quatro dcadas desse ltimo achado, encontrou-se um ltimo lote
de documentos que, juntando-se aos outros, aproxima-se extenso de 10.000 pginas dentre
notas e documentos que, depois de exaustiva anlise, acabaram revelando diferentes reas de
pesquisa empreendidas por Saussure, o que alm de tornar seu corpus ainda maior, divide-o
em distintos campos de relevncia, tornando, assim, o trabalho do pesquisador do programa
saussureano ainda mais complexo.
a partir da descoberta de tais documentos que o corpus saussuriano comea a se
configurar como heterogneo: antes disso, o que se conhecia de Saussure era sua pesquisa
comparativa, que deu origem a suas dissertao e tese, o que era considerado um mundo
totalmente parte daquilo que deu origem Lingustica. Quando os inmeros documentos
vieram tona, entretanto, muito se comeou a descobrir das prprias pesquisas feitas por
Saussure, que se dedicava tambm a pesquisar as lendas germnicas e escandinavas, tudo isso
tomando por ponto de partida a semiologia que aparece no CLG. Disso, foram achados cerca
de dezoito cadernos com anotaes, alm de envelopes e anotaes perdidas. Ademais,
descobriram-se inmeros outros cadernos e notas a respeito de outros interesses de pesquisa
de Saussure. Entratanto, no que tange aos Escritos de Lingustica Geral (ELG), aqueles
manuscritos que tratam das questes trazidas nos Cursos, entre outros assuntos de escopo
estritamente lingustico, cabe tratarmos de trs tpicos fundamentais e que figuram algumas
das divises feitas na edio a que temos acesso hoje: a Dupla Essncia da Linguagem, as
notas preparatrias para os CLG e, por fim, os Outros Escritos de Lingustica Geral.
As notas que compem o acervo BPU 1996 Sobre a Dupla Essncia da Linguagem
tratam, basicamente, da articulao na lngua das questes de forma e sentido, o que vem a ter
consequncias diretas no trabalho do linguista, uma vez que, para Saussure (2002, p. 21),
errado (e impraticvel) opor a forma e o sentido. O que certo, em troca, opor a figura
vocal, de um lado, e a forma-sentido de outro. Essa afirmao, encontrada no prefcio dessas
notas sobre a linguagem, no apenas nos remetem noo semiolgica da lngua, conforme
nos colocado nos CLG, como tambm ao entendimento saussuriano de todo aspecto de
lingua(gem), o que deve ser considerado pelo linguista em sua anlise. A partir disso, so
colocadas em evidncia questes ligadas natureza do objeto em Lingustica (op.cit; pp. 23-
26) e a diferenas, semelhanas e negatividade da lngua e anlise lingustica. A partir
disso, configuram-se as noes de signo e de valor lingusticos, apoiados no pressuposto da
34
negatividade e oposio das relaes internas ao sistema da lngua34 (p. 60 et seq.), o que
tambm configura todo pensamento semiolgico desenvolvido nos ELG.
As Notas Preparatrias para os Cursos de Lingustica Geral, tambm integrantes do
acervo BPU 1996 e da Edio de Engler (1968 1974), assim como aquilo que colocado na
Dupla Essncia da Linguagem, reforam e aprofundam aquilo que encontramos nos CLG,
como a questo da lngua como sistema de valores. Escreve Saussure:
seja qual for sua natureza mais particular, a lngua, como os outros sistemas de signos, , antes de tudo, um sistema de valores, e isso que estabelece seu lugar no fenmeno. Com efeito, toda espcie de valor, mesmo usando elementos muito diferentes, s se baseia no meio social e na fora social. a coletividade que cria o valor, o que significa que ele no existe antes e fora dela, nem em seus elementos decompostos e nem nos indivduos. (op. cit.; p.250)
Nesse contexto, temos aquilo que se faz primordial nos CLG retomado pela prpria
mo do mestre, de maneira a no deixar dvidas para leituras totalmente discrepantes em
relao a seu programa.
Nos Outros Escritos de Lingusitca Geral, em especial nos Antigos Documentos
pertencentes ao acervo da Edio de Engler (1968 1974), no diferentemente do resto dos
ELG, encontramos mais notas e documentos que expressam a viso de Saussure sobre a
lngua e a Lingustica, sempre baseados em seu pensamento sistemtico sobre a lngua e seus
valores. interessante ressaltar, aqui, no entanto, dois conjuntos de documentos: as
conferncias na Universidade de Genebra (1891), que preveem toda a inquietao e as
proposies de Saussure a respeito da lngua a serem depois desenvolvidas nos CLG. Ainda,
h Notas para um livro de Lingustica Geral (1893-1894), nas quais podemos visualisar
alguns princpios colocados em suas aulas, como a questo do objeto, do ponto de vista, da
oposio dos grupos som-ideia (p. 173-174) etc.
Assim, grosso modo, podemos dizer que os textos presentes nos ELG, preveem e
aprofundam as discusses sobre a lngua, a fala, a Lingustica e o papel do linguista que, at a
metade do sculo XX, s eram conhecidos pela leitura (muitas vezes problemtica) dos CLG.
Se quisermos considerar seu uso em sala de aula, entretanto, teremos de tomar diversos
34 Para evitar a repetio exaustiva do sintagma negatividade e oposio no sistema lingustico, dorvante colocarei apenas negatividade, devendo-se entender aquilo que foi explicitado anteriormente. Alm de se tratar de uma questo esttica do texto, essa escolha se deve ao entendimento que se, por negatividade, entendemos, a partir do pensamento saussuriano, que um valor na lngua exatamente aquilo que o outro no , podemos entender que tambm estamos tratando de oposio e alternncia dentro do sistema da lngua, uma vez que por ser aquilo que o outro no , faz-se a necessidade da oposio de entidades lingusticas dentro de um sistema, o que resulta na alternncia de elementos em presena e em ausncia dento desse campo.
35
cuidados, visto que sua edio tomada de brancos, e seu contedo est longe de ser to
didtico quanto o dos Cursos. No entanto, possvel uma seleo de trechos que
compreendam questes de Lingustica Geral complementares quilo que colocado nos CLG.
2.1.4 Dos Anagramas, das Lendas e das Correspondncias
Entre o grande nmero de envelopes e de cadernos com anotaes encontrados durante
esses anos, conforme relatado acima, grande parte desses achados dizia respeito s pesquisas
de Saussure em relao aos mitos de fundao das sociedades germnicas e escandinavas,
como aqueles referentes saga dos Nibelungo e s lendas de Tristo e Isolda, entre outros.
Dessas pesquisas, encontraram-se cerca de dezoito cadernos e mais de duzentas folhas soltas
com anotaes a esse respeito. O que intressante notar, no entanto, que essas pesquisas,
assim como aquelas descobertas e publicadas por Starobinski, em 1971, referentes aos estudos
de Ferdinand de Saussure sobre textos de poetas gregos latinos, confirmam uma preocupao
com aspectos semiolgicos, assim como a demarcao de um objeto definido a essa outra
cincia estudada por Saussure (cf. Arriv, 2007).
Nesse sentido, quando o linguista suo estuda as combinaes fnicas responsveis
pela revelao das palavras-temas, ou seja, de anagramas existentes na poesia epopeica greco-
latina, nos possvel ver a preocupao de Saussure com empreendimentos literrios,
tentando, a seu modo, entender o vnculo indissolvel entre o literrio e o literal (Arriv,
2007, p. 178). Nesses estudos, o prprio termo anagrama empregado em sentido bem pouco
tradicional, aparecendo apenas como a transposio de sons de um verso potico para a
formao de nomes que revelassem palavras sob as palavras35 ou hipogramas, palavras-
tema, que poderiam revelar o nome de um deus ou heri mitolgico diludo foneticamente nos
versos dos poemas analisados.
No que diz respeito sua pesquisa sobre as lendas, outro aspecto do estudo literrio
feito por Saussure, h o tratamento daquilo que o linguista entende por smbolos intrnsicos
constituio literria. Nisso, o professor genebrino aponta mais um carter que seria exporado
por seu programa semiolgico, conforme podemos observar quando ele afirma que os
smbolos que compem as lendas esto submetidos s mesmas vicicitudes e s mesmas leis
que todas as outras sries de smbolos, por exemplo, os smbolos que so as palavras da
35 Para mais detalhes sobre esse emprendimento literrio de Saussure, remeta-se ao sexto captulo do texto de Michel Arriv (2007) ou pesquisa de Jean Starobinski (1971).
36
lngua. Todos eles fazem parte da semiologia (apud Arriv, 2007, p.101). Nesse sentido,
Saussure considera e aproxima usos da literatura a usos da lngua, considerando ambos como
objetos da semiologia, o que, de uma maneira ou outra, condiz com aquilo que colocado nos
CLG como uma das atribuies do linguista, que deve tambm examinar as relaes
recprocas entre a lngua literria e a lngua corrente (Saussure, 1916, p.30) e coloca suas
pesquisas, tanto lingusticas quanto literrias dentro de um projeto maior: o da Semiologia.
Por fim, quando tratamos do corpus saussuriano, no podemos deixar de considerar
sua correspondncia. Esse fato, que pode parecer estranho a princpio, muito ajudou os
chamados saussuristas a entender certos aspectos dos planos e nsias de Ferdinand de
Saussure em relao ao linguista e ao tratamento da Lingustica. Em especial, cito a carta do
mestre genebrino ap seu colega Antoine Meillet, visto que tal epstola muito fala daquilo que
pouco se diz sobre o professor. Coloca Saussure:
mas estou muito insatisfeito com tudo isso e com a dificuldade que h, em geral, de escrever somente dez linhas que possuam sentido quanto aos fatos da linguagem. Preocupado, sobretudo, desde h muito tempo, com a classificao lgica desses fatos, com as classificaes desses pontos de vista sobre os quais ns tratamos, mais e mais eu vejo a enormidade do trabalho que se faz necessrio para mostrar ao linguista o que ele faz, reduzindo cada operao sua categoria prevista; ao mesmo tempo, a grande variedade de tudo que se pode enfim fazer na lingustica. [...] Incessantemente, essa inpcia da terminologia corrente, a necessidade de reform-la e de mostrar dessa forma que tipo de objeto a lngua em geral vm arruinar meu prazer histrico, ainda que eu tenha o mais caro desejo de me ocupar exclusivamente da lngua em geral. (apud NORMAND, 2000: 27-28) [grifos meus]
Dessa maneira, no somente podemos considerar as razes pelas quais o mestre tem
tanta preocupao com o carter metodolgico dos estudos da lngua, como tambm nos
possvel entender o porqu de seu trabalho abordar tantos focos e, mesmo assim, manter uma
mnima unidade.
2.2 DISSO TUDO, O QUE RELEVANTE PARA O ENSINO?
Se considerarmos tudo o que foi apresentado at agora, poderemos notar que, como
coloquei antes, h uma unidade constitutiva nos trabalhos de Ferdinand de Saussure: a
preocupao com o objeto, a terminologia e o estudo da linguagem a partir de uma
perspectiva que considerasse as identidades analticas a partir de seu sentido no sistema
lingustico e com a Semiologia. Tudo isso, se me permitida a especulao analtica, se
encontra relacionado concepo negativa do sistema da lngua, que nos aparece mais
explicitada nos CLG e nos Escritos de Lingustica Geral, conforme coloco acima. Isso, no
37
entanto, no me faz negar o fato de que, devido sua complexidade e s suas maneiras de
expor as problemticas dos estudos empreendidos da lngua, o vasto corpus saussuriano seja
heterogneo. Ao contrrio, partindo dessa problemtica que me coloco neste trabalho: se
temos um corpus to heterclito no que tange abordagem e ao objeto de estudo dentro de
um campo de uso da lngua, como podemos ensinar o programa de Ferdinand de Saussure a
alunos recm ingressos nos cursos de Letras?
Para responder a essa pergunta, no entanto, necessrio retomarmos do primeiro
captulo deste trabalho aquilo que colocado como ponto pacfico entre as diversas
concepes entre como ensinar e o que ensinar em um nvel bsico em Lingustica: os
conceitos bsicos da cincia, instrumentalizando o aluno a reconhecer e a fazer anlises dos
diversos nveis da lngua em grau de dificuldade crescente. No entanto, essa questo nos
coloca outra, se considerarmos o objetivo deste ensaio. Perguntamo-nos: o que o bsico em
Saussure? Em se analisando o que se viu at agora de seu corpus, pode-se dizer que aquilo
que o bsico em Saussure aquilo que, em suas obras, trata de Lingustica Geral, uma vez
que essa linha de pensamento que ir percorrer seus trabalhos em todos os mbitos, s vezes
de forma mais explcita, s vezes, de forma mais sutil, aparecendo apenas em suas anlises.
Assim, faz-se aqui necessria outra parada, desta vez mais rpida, mas no menos
importante, para que se deixe claro aquilo que, para os fins deste ensaio, entendo por
Lingustica Geral. Em caminhada junto a Colombat, Fournier e Puech (2010) que, atravs de
uma pesquisa histrica sobre o tema da generalidade desse sintagma, colocam o fato desse
geral no [ser] um dado, mas uma construo (p. 215), penso, com os pesquisadores que,
mais do que isso, essa generalidade a reflexo de um projeto de constituio universal,
programtica e epistemolgica de um programa que d conta do geral das lnguas a partir de
vrias concepes do singular, das anlises de uma lngua. Retomando o clebre enunciado de
Saussure (1916, p.15), bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diramos
que o ponto de v