UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS FACULDADE DE HISTRIA
TRABALHO MONOGRFICO DE CONCLUSO DO CURSO DE BACHARELADO DE HISTRIA DA UFRJ
ESCOLA DE HERIS Os cursos de formao dos tcnicos de indigenismo da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) de 1970
at 1985
Aluna: LUIZA SALDANHA Orientador: Professor Doutor ANTONIO CARLOS DE SOUZA LIMA
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Segundo semestre de 1996.
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ndice:
Agradecimentos......................................................................................3
Introduo..............................................................................................6
Captulo1. O curso de tcnico de indigenismo e seus objetivos................21
Captulo 2. Porque ser um indigenista.......................................... ...........35
captulo 3. A percepo do curso...........................................................46
captulo 4. A FUNAI..............................................................................61
Captulo 5. Heris Isolados ............................................................... 76
Concluso.............................................................................................112
Anexo 1. Roteiro de entrevistas..............................................................115
Anexo 2. Quadro dos entrevistados........................................................119
Fontes consultadas.................................................................................126
Bibliografia............................................................................................126
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AGRADECIMENTOS:
Talvez eu esteja errada em comear a monografia escrevendo os
agradecimentos, fao isto, talvez, pela falta de coragem de comear a
escrever a primeira pgina de um trabalho, que sei, vai me absorver
intensamente, mas acho que mais do que isso uma forma de dizer que
antes de mais nada tudo que ser escrito nas prximas pginas tem muito a
ver com estas pessoas de quem estarei falando aqui.
Quero ainda dizer que o que aqui escrevo fruto da necessidade que
sinto de fazer jus a todo apoio que recebi durante o processo de elaborao
do trabalho, e, muito pelo contrrio, no pretende cumprir formalidades
implcitas, mas sim a desejos explcitos de fazer reconhecida toda a
colaborao que tive.
Queria agradecer primeiramente a uma pessoa que me ajudou muito
durante a minha formao enquanto pessoa e enquanto estudante, Luiza
muito obrigada.
Ao Luiz que foi fundamental para que meus horizontes fossem
ampliados, obrigada por ter me ajudado a ver o mundo de uma outra forma.
Agradeo ainda a v Idalina que me ofereceu muito carinho e infra-
estrutura para botar em prtica muitos dos meus projetos. De quebra ainda
agradeo a Helena, minha prima, que acompanhou de perto todas as minhas
angstias e os meus impasses.
Gostaria ainda de falar dos meus irmos, e por que no? Que sempre me
deram muita fora e acreditaram na minha capacidade.
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Um grande beijo para o Marcelo, meu marido, que sempre me deu
muito apoio e estabilidade para que eu pudesse com tranquilidade
desenvolver este trabalho.
Queria falar de algumas pessoas que me deram muita fora, mesmo que
talvez sem nem saber: a Gergia pelo apoio burocrtico, a Ana Maria pelo
estmulo, a Patrcia pelos toques e a galera do IFCS pelo companheirismo.
No posso esquecer de algum que veio acompanhando passo a passo
este trabalho, no s por obrigao, j que o orientador desta monografia,
mas por gostar do que faz. Antonio Carlos te agradeo pela pacincia, pelas
dicas, pela paixo contaminante que tem pela pesquisa, por ter me aturado
como bolsista durante trs anos e por ter me presenteado com a
possibilidade de realizar esta pesquisa.
Algumas pessoas foram to indispensveis que sem elas esse trabalho
no teria se realizado, estou falando daqueles que muito gentilmente
concederam as entrevistas que em grande parte serviram de base para a
realizao desta monografia. Gostaria ainda de agradecer especialmente a
Ana Lang e ao Xar que me hospedaram e me deixaram a vontade em uma
cidade que me pareceu to fria.
***
Agora depois de j ter escrito grande parte deste trabalho
ele me parece superficial diante de todo material coletado, mas
gostaria de deixar claro que independente dos resultados, ele no foi
fcil e exigiu que eu transformasse muita coisa na minha forma de
pensar e ser. Ele abriu portas para mim antes cerradas, me
possibilitando enfrentar minha falta de disciplina e concentrao.
Devo agradecer a possibilidade de exercitar a arte da investigao
histrica a UFRJ e ao CNPq, duas instituies sem as quais este trabalho
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enfrentaria muito mais dificuldades. Por fim, devo destacar que foi graas a
recursos da FINEP, atravs do Projeto de Pesquisa em Antropologia
Social, do qual Antonio Carlos de Souza Lima integrante, dentro do
(PPGAS/MUSEU NACIONAL), e de seu projeto integrado de pesquisas ao
CNPq A Administrao Pblica e os Povos Indgenas no Brasil: A
Fundao Nacional do ndio (FUNAI), de 1968 a 1992, ao qual), ao esta
monografia se filia e por meio do qual a documentao utilizada foi
majoritariamente levantada, que pude viajar e entrevistar os informantes
deste trabalho e contar com material para pesquisa.
Valeu Galera!!!
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INTRODUO
Comeo a introduo desta monografia dizendo que finalmente
me encontro pronta a expor publicamente as reflexes que durante cerca
de um ano e seis meses fizeram parte de meu dia-a-dia. Talvez esta no seja
a forma mais indicada de comear a escrever um trabalho destinado
avaliao de concluso do curso de bacharelado em Histria da UFRJ.
Sinto-me porm vontade de o fazer assim, por saber que no sendo neste
espao talvez no tenha outra oportunidade de expor certas nuances deste
primeiro ensaio de pesquisa. Posso ento iniciar por a. Durante todo o curso
de histria rondou sobre mim e alguns dos meus colegas a sombra da
fatdica monografia. Assumir que este processo doloroso talvez no seja a
melhor maneira de comear um dilogo com aqueles que sero os meus
avaliadores, afinal, antes de mais nada aqui cabe ressaltar o papel
burocrtico que tem esta monografia, sem a qual afinal eu no poderia
nem pensar em pleitear o ttulo de graduada em histria.
Gostaria de mencionar algumas das dificuldades encontradas
durante o percurso deste trabalho e que dizem respeito no s a mim como
prpria forma como se tem dado o ensino na nossa faculdade. Antes de
faz-lo, porm, gostaria de esclarecer que sem ter um tom politiqueiro isto
muito mais um desabafo. Bom, vamos ao que interessa. Entendo que o
trabalho cientfico se constitui antes de tudo em um grande plenrio onde
so colocadas as mais diversas contribuies a respeito de um determinado
assunto. Sendo desta forma creio que atravs do debate destas idias que
se pode aparar as arestas e corrigir supostos desvios. Como aluna do curso
de histria no entanto fui treinada a concordar, ou no, com contribuies
consagradas da historiografia. O que estou querendo dizer que a reflexo
crtica se limitou a um julgamento do que se tinha produzido pelos
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HISTORIADORES.1 Portanto a ns, alunos, e futuros historiadores, foi
reservado pouco espao para a iniciao na pesquisa. Digo isto, claro,
considerando que no apenas por meio do incentivo financeiro que se deve
estimular a aproximao da produo cientfica. Os laboratrios cumprem
um papel importante na instituio, mas limitar este mergulho queles que
esto vinculados a uma pesquisa especfica tem trazido grande perda ao
conjunto dos alunos da faculdade. atravs do que oficialmente oferecido
que deveria haver a propagao de uma formao voltada para a pesquisa,
os cursos oferecidos nas mais diversas reas deveriam possibilitar ao aluno
iniciar experimentaes no sentido de aproxim-lo do que o ofcio maior
do historiador.
Hoje estando diante da necessidade de produzir, e criar algo
que de certa forma seja particular, me sinto limitada e tendo exercitado
pouco a reflexo terica e a pesquisa emprica imprescindvel produo de
uma monografia. Junta-se a estas questes a minha prpria limitao de
levar a cabo de forma mais eficaz a confeco deste trabalho. O que de certa
forma estou tentando esclarecer que os pecados deste trabalho se devem
essencialmente a estes dois fatores: o primeiro, que diz respeito minha
formao; e o segundo, que diz respeito ao meu desenvolvimento pessoal.
Por estes motivos peo aos meus juzes licena para aqui
expor o que foi resultado de um trabalho intenso, que teve seus momentos
de altos e baixos, mas que sobretudo sobreviveu a todas as dificuldades
enfrentadas durante este percurso to doloroso e ao mesmo tempo
1 Para complementar o sentido desta reflexo gostaria de citar Bourdieu quando fala acerca da desmistificao do investigador: (...) entre as vrias atitudes que eu desejaria poder incultar, se acha a de ser capaz de apreender a pesquisa como uma actividade racional -e no como uma espcie de busca mstica, de que se fala com nfase para se sentir confiante- mas que tem tambm o efeito de aumentar o temor ou a angstia: esta postura realista -o que no quer dizer cnica- est orintada para a maximizao do rendimento dos investimentos e para o melhor aproveitamento possvel dos recursos, a comear pelo tempo de que dispe. Sei que esta maneira de viver o trabalho cientfico tem qualquer coisa de decepcionante e faz correr o risco de pertubar a imagem que de si prprios muitos investigadores desejam conservar. Mas talvez a melhor e a nica maneira de se evitar decepes muito mais graves -como a do investigador que cai do pedestal, aps bastante anos de automistificao, durante os quais despendeu mais energia a tentar conformar-se com a idia exagerada que faz da pesquisa, isto , de si mesmo como investigador, do que a exercer muito simplismente o seu ofcio. Bourdieu 1989:18.
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satisfatrio. Claro, sinto-me satisfeita por perceber que de alguma forma, se
esta no for uma contribuio relevante para a comunidade cientfica, pelo
menos o foi para que a minha formao se tornasse mais completa e para
que, atravs do exerccio de pesquisa, eu tenha me aproximado do que tem
sido reservado a uma pequena parcela da populao, ou seja, pensar e
refletir sobre um problema de forma organizada e tendo uma finalidade
especfica. Posso dizer at que dentro destas circunstncias eu at tive
sorte por durante trs anos ter feito parte do projeto de pesquisa A
Administrao Pblica e os Povos Indgenas no Brasil: A Fundao
Nacional do ndio (FUNAI), de 1968 a 1992, sob a orientao do Professor
Doutor Antonio Carlos de Souza Lima, resultado do qual, entre outros,
temos a elaborao deste trabalho monogrfico.
Talvez aqui tenha de certa forma esbarrado no que foi o tema
desta pesquisa, digo isto porque a questo da qual me aproximei trata da
formao oferecida pela FUNAI aos candidatos a tcnico de indigenismo.2
O trabalho a ser desenvolvido visa estudar, numa perspectiva
histrica, a administrao pblica indigenista brasileira, analisando a
formao de um segmento burocrtico administrativo especfico: os
chamados tcnicos indigenistas da FUNAI. Num primeiro momento antes
mesmo de ter claro qual seria exatamente o objeto de pesquisa foi iniciado
um estudo relativo a matrias de jornal acerca do que tem sido veiculado a
respeito da administrao pblica com relao s comunidades indgenas3.
Este trabalho nos colocou diretamente em contato com os chamados
indigenistas, que em sua maioria faziam ou j tinham feito parte do quadro
de funcionrios da FUNAI. A partir desta aproximao abriu-se a
2Comunico neste momento que passarei a escrever na primeira pessoa do plural por considerar que este trabalho fruto no s da minha pesquisa como tambm do que vem sendo feito neste sentido. 3Atravs deste trabalho foi possvel perceber que a FUNAI aparece na imprensa, de uma forma geral, como uma instituio desarticulda, que no consegue implementar seus planos de ao (quando os tem), que sempre est atrasada para a resoluo de quase todos os problemas, que no se faz presente nos problemas que se encontram em localidades de pequeno porte, que mexe com verbas altas controlando um territrio bastante extenso e que, por isso mesmo, plenamente corruptvel.
10
possibilidade de aprofundar a questo tendo agora como foco principal a
formao especfica recebida pelos indigenistas da FUNAI.
Foi com este intuito que nos aproximamos da documentao
existente sobre os cursos de tcnico de indigenismo oferecidos pela FUNAI
no perodo que vai de 1970 at 1985. Esta documentao, que diz respeito
aos dez cursos realizados com o intuito de capacitar funcionrios para
exercer principalmente a funo de chefe de posto, encontrava-se
reproduzida em sua maioria, aos cuidados de Antonio Carlos de Souza
Lima, orientador desta monografia, no Museu Nacional. Estes documentos
foram fornecidos pela FUNAI/Braslia no ano de 1994. Posteriormente, em
meados de 1995, tivemos oportunidade de complementar este material
atravs de uma consulta biblioteca da FUNAI em Braslia. De uma forma
geral pudemos perceber que o material se encontrava bastante desordenado
e que no houve uma preocupao em preservar de forma mais enftica a
documentao acerca do curso, o que houve foi um agrupamento por curso
do material que sobrou. Neste acervo encontramos documentos referentes
s seguintes temticas: documentos administrativos - encaminhamento de
documentos, prestao de contas, convocao de fiscais para a realizao
das provas etc; material terico - textos e apostilas utilizados no curso;
provas do concurso para seleo de alunos para o curso; avaliao interna;
provas; relatrios de estgio; programas dos cursos; edital para concurso etc.
Este material, apesar das lacunas, contribuiu de forma decisiva para que
pudssemos dar suporte as idias trabalhadas aqui nesta monografia.
Quando comeamos a pesquisar sobre este tema no tnhamos
noo de quanto rico e empolgante seria ter contato com este universo. As
possibilidades de trabalho estavam limitadas inexistncia de uma
bibliografia especfica sobre o assunto no Brasil. Partimos ento para a
leitura de obras que versam sobre poltica indigenista. Aqui destacaremos
11
apenas aquelas que esto mais estritamente vinculadas ao desenvolvimento
da monografia.
Aos Feitichistas Ordem e Progresso, dissertao de mestrado
de Antonio Carlos de Souza Lima4, que realiza um estudo da constituio do
espao a que chama campo indigenista a partir de uma anlise do SPILTN
(Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais)
em 1910, para tanto, parte da crtica da viso oficial deste processo. Verso
esta, que quase sempre acaba por ser reproduzida, mesmo por aqueles que se
colocam como opositores aos que se dizem herdeiros de Rondon.
Nesta dissertao o autor procura, tambm, relacionar os
condicionantes de uma formao escolar especfica com certas tomadas de
posio intelectuais e polticas5, para analisar o personagem Cndido M. S.
Rondon. Em um trabalho posterior O Santo e o Soldado6o autor parte para
a realizao de um estudo a respeito da trajetria social (no mais como uma
temtica especfica) de Cndido Mariano da Silva Rondon em relao ao
texto escrito por Esther de Viveiros intitulado Rondon conta sua vida,
publicado em 19587. O trabalho realizado por Lima procurou, antes de mais
nada, aprofundar a anlise da Mitologia construda em torno de Rondon
pensando o que significa especificamente o texto de Esther de Viveiros.
Defendeu durante seu trabalho que a obra se trata de uma hagiografia:
Rondon conta sua vida relata a existncia do que um santo na viso do
positivismo ortodoxo, algum que seguiu exemplarmente o dogma bsico da
religio da humanidade -o amor por princpio, a ordem por base, o
progresso por fim. Algum que venerando a mulher, serviu a humanidade
ao servir sobretudo ptria (intermedirio necessrio entre o indivduo e o
ser supremo) sendo um elo entre os dois estabelecido pela famlia ...8
4Lima, 1985. 5Lima, 1990:1. 6Lima , 1990. 7VIiveiros, esther de. 1985 - Rondon conta sua vida. RJ, livraria So Jos. 8Lima, 1990:4.
12
Com a leitura de A Marcha para o Oeste9dos irmos Villas-
Boas, que relata a experincia da expedio Roncador-Xingu10 na forma de
um dirio, pudemos ter contato com uma construo que coloca o trabalho
com comunidades indgenas como algo que est ligado a uma opo de vida.
Este trabalho, no tem uma preocupao especial com a pesquisa e procura
traar, em linhas gerais, o significado e o sentido do que se chamou
Marcha para o Oeste. Esta leitura nos permitiu tomar contato com o
universo herico de homens que dizem agir por humanismo e tem no bom
senso seu principal guia. Interessante notar que durante a narrativa no
mencionada nenhuma dificuldade pessoal, deslize ou dvida. A forma
narrativa colabora para que a expedio seja vista como algo que vai alm
do trabalho formal, passa a ser uma aventura, uma saga, que tem como
tarefa fazer com que a nao exista.
A tese de mestrado de Maria Lcia Pires Menezes Parque
indgena do Xingu: A contrao de um territrio Estatal11 aborda a mesma
temtica procurando entender como se deu a apropriao do espao do atual
Parque Indgena do Xingu pelo Estado -por meio de seus aparelhos e atravs
da administrao- como forma de territorializao de poder, e como a
prtica indigenista colaborou para este processo. Este trabalho traz uma
abordagem que percebe os ndios como os maiores excludos do processo,
ao mesmo tempo que aparecem como suposto foco principal.
No seu livro Os ndios e Civilizao12 Darcy Ribeiro relata
(es)histrias de abnegao e sofrimento de uns poucos indivduos
excepcionais, contra as oligarquias locais. As intempries polticas, a
escassez de recursos movida por perseguies, as florestas inspitas e os 9Villas Boas, Cludio & Orlando, 1994. 10(...) a Expedio Roncador -Xingu (ERX) oficializada pela protaria n- 77, de 3 de junho de 1943. O ato oficial previa um roteiro, cujo ponto de partida era a cidade de Leoplodina, sobre o rio Araguaia em Goias (...) a marcha atravessaria a Serra do Roncador, procurando o lugar mais adequado para fundar um ncleo de povoao e construir um campo de pouso. (...) A fixao dos objetivos da expedio era presidida por consideraes que incluam: a criao de vias de comunicao com o Amazonas; explorar e povoar o macio central do pas nas regies das cabeceiras do Xingu (...) Menezes, 1990:6. 11Menezes, 1990.
13
prprios ndios, muitas vezes em estado de guerra, estes foram alguns dos
obstculos que tiveram a enfrentar. Este grupo, ainda que dotado de uma
ideologia equivocada segundo a viso de Darcy Ribeiro, conseguiria
enormes feitos.13
um pouco sobre estas (es)histrias de abnegao que vamos
falar em nossa monografia, tendo em conta porm que trabalharemos com
uma anlise crtica desta viso herica do processo de contato com as
comunidades indgenas. O iderio que permeia a construo acerca do que
seria o indigenista estar permeando o desenvolvimento desta monografia.
A nossa noo do que seja indigenismo vai estar pautada na
formulao ainda provisria que considera indigenismo como: (...) o
conjunto de idias (e leis, i.e., aquelas elevadas qualidade de metas a
serem atingidas em termos prticos) relativas insero de povos indgenas
em sociedades subsumidas a Estados nacionais, com nfase especial na
formulao de mtodos para o tratamento das populaes nativas, operados ,
em especial, segundo uma definio do que seja ndio. A expresso poltica
indigenista designaria as medidas prticas formuladas por distintos poderes
estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indgenas.14
Foi tendo em conta estas questes e nos baseando na idia de
que atravs da identificao da formao destes tcnicos de indigenismo
poderamos contribuir para o debate ainda incipiente acerca da ao
articulada em defesa dos povos indgenas que nos propomos a estudar o que
se delineava para ns como sendo nosso objeto. Pretendamos demonstrar
como pessoas de diferentes origens sociais e de diferentes graus de
conhecimento sobre os trabalhos realizados pela FUNAI, tornaram-se, a
partir da formao oferecida pelo curso, tcnicos de indigenismo tendo certo
grau de recorrncia no discurso e nas prticas. Como a partir da formao
12Ribeiro, 1979. 13Lima, 1995. 14Lima, 1995:14-15.
14
recebida, o grupo de tcnicos de indigenismo passa a ter motivos ideais,
considerando-se a formao recebida, para assumir determinado papel sendo
enquadrado em um modelo, baseado no senso comum do que deveria ser um
bom indigenista. A partir do contato com a questo a transformao ocorrida
representada de maneira basicamente uniforme e segue um padro que
se configura no perfil geral do bom tcnico de indigenismo. E finalmente
que a FUNAI, na inteno de formar um agente que tenha uma ao
planificada e coordenada cria o que denominamos heri isolado, que no se
percebe como representante da poltica geral da instituio e passa a ter uma
atuao individual considerada por ele como salvacionista.
O que objetivamos com este trabalho acima de tudo
identificar o processo de constituio de identidades scio-funcionais.
Caracterizar a categoria de tcnicos em indigenismo de modo a retraar sua
auto-representao enquanto tal. Perceber como se deu, atravs da
documentao referente aos cursos de formao de indigenistas da FUNAI,
o uso de contedos antropolgicos nestes cursos, bem como a mudana
desse sistema de formao ao longo do tempo. Ainda seria nosso objetivo
analisar como e porque se d a composio deste grupo procurando delinear
suas caractersticas bsicas.
Para trilhar este caminho nos apoiamos em duas frentes
distintas de documentos. A primeira que j mencionamos, diz respeito
fonte escrita oficial da FUNAI, compulsamos os documentos encontrados
respeito do curso e realizamos uma leitura crtica, seguida da classificao e
anlise deste material. Juntou-se a estes documentos um outro tipo de
evidncia: histrias de vida construdas por meio de entrevistas realizadas
com 12 tcnicos de indigenismo que freqentaram o curso da FUNAI e
posteriormente foram enquadrados em alguma atividade na Fundao. Estas
entrevistas nos ofereceram a possibilidade de trabalhar com uma perspectiva
mais ampla. Para realizao destas entrevistas elaboramos um roteiro (anexo
15
1) que nos permitiu posteriormente traar comparaes entre as diversas
verses. Dos entrevistados dez so residentes no Distrito Federal, um do
Par e um de Gois. No houve uma seleo prvia dos entrevistados, o
nico critrio adotado foi a participao em um dos cursos de formao em
tcnico de indigenismo. As entrevistas foram realizadas no ms de julho de
1995 uma em Goinia e as outras em Braslia, onde pudemos desenvolver
uma parte essencial do trabalho para a realizao da presente monografia.
A histria oral seria, portanto, o cerne da nossa metodologia de
trabalho, considerando-a como inevitavelmente social e tendo condies de
responder aos anseios da pesquisa. A importncia deste trabalho, entre
outras coisas, o de trazer tona um discurso que se diferencia do oficial
revelando um histria subterrnea como parte integrante de uma cultura
muitas vezes relegada. De uma forma geral, a histria de vida (memria
individual) aparece como parte reveladora e indissocivel da histria social.
Entendemos que a histria de vida estaria necessariamente apoiada em uma
memria social, pois toda histria de vida faz parte de uma histria mais
geral15. Mesmo a nvel individual o trabalho da memria indissocivel da
organizao social mais ampla.
Para ns foi de estrema importncia a realizao destas
entrevistas, em primeiro lugar porque ampliou nosso horizonte em termos
das possibilidades de construo histrica, e segundo porque tornou possvel
um mergulho ainda mais profundo no objeto em questo. Esta tcnica nos
permitiu tambm estar lidando de forma latente com uma idia que por
muitas vezes fica apenas no discurso: a histria feita por homens, pela
viso de mundo construda, que antes de mais nada fruto do processo pelo
qual eles passaram enquanto agentes histricos.
O fato que a oposio evidncia oral baseia-se muito mais
em sentimentos do que em princpios. Os historiadores da gerao antiga,
15Halbwachs, 1990:53
16
que detm as ctedras e as chaves do cofre, ficam instintivamente
apreensivos com o advento de um novo mtodo. Isso implica que no
dominam mais todas as tcnicas de sua profisso. Da os comentrios
despropositados a respeito de jovenzinhos perambulando pelas ruas com
um gravador na mo, e a preocupao com detalhes insignificantes para
justificar seu ceticismo: geralmente, uma (note bem) reminiscncia da
impreciso da sua memria ou da de alguma outra pessoa. Alm disso,
existe - e no somente entre os estudiosos mais velhos - um medo da
experincia social da entrevista, da necessidade de sair do gabinete e de
falar com gente comum. Mas o tempo abrandar a maioria destes
sentimentos: o antigo ser substitudo; e um nmero cada vez maior
desejar conhecer pessoalmente a experincia social e intelectual positiva
da Histria Oral.16
Para ns a histria oral serviu antes de mais nada como
facilitador, no sentido de possibilitar a nossa insero em um grupo e a
partir deste contato possibilitar uma anlise deste universo: A abordagem
de histria de vida representa tambm o melhor caminho para se chegar
mais perto da experincia vivida do ator - sua ideologia e sua prxis -,
possibilitando a compreenso dos significados implcitos de suas aes, isto
, permitindo que se esclaream as determinaes inconscientes da vida
social17
Pode ser que os prprios tcnicos de indigenismo que venham a
ter oportunidade de ler esta monografia no se reconheam nas concluses a
que chegamos, assim como na anlise feita. Por isso gostaria de deixar
claras as limitaes deste trabalho que no pretende ser conclusivo, estando
explcita a necessidade de um prosseguimento das pesquisas nesta direo.
Aqui apenas pretendemos dar conta de determinados aspectos relacionados
ao curso e ao grupo de tcnico de indigenismo.
16Thompson, 1992:103 17Camargo, 1984:16
17
Ainda se faz necessrio salientar que todo tipo de observao
feita parte de uma anlise global da documentao recolhida, portanto, no
nos prendemos a casos especficos, principalmente com relao aos
entrevistados. Gostaramos tambm de afirmar que optamos por no tratar
os entrevistados pelo nome exatamente para no individualizar a questo,
procurando torn-la ampla, sem no entanto despersonificar, por ser esta uma
das grandes vantagens de se trabalhar com a histria oral, onde se constri
um trabalho pautado na vivncia de cada entrevistado, tornando mais latente
a noo de que qualquer homem um agente histrico e tem um certo grau
de contribuio relativo a dar para a construo de uma leitura histrica da
vivncia humana.
O tema trabalhado nos deu possibilidade de ter uma experincia
singular, a de pesquisar um assunto que no est distante historicamente de
nossos dias. Confessamos que isto trouxe dificuldades no esperadas.
Primeiro, porque no encontramos trabalhos cientficos que abordassem a
questo, nosso estudo bibliogrfico, como j foi dito, ficou limitado a
publicaes que enfocassem de forma ampla a poltica indigenista. Segundo,
porque no nos embrenhamos s em um debate historiogrfico, mas tambm
em um problema que est sendo vivido e em torno dele se colocam
diferentes pontos de vista. Neste sentido, temos nossa frente o desafio de
trabalhar com uma questo que ter a crtica no s da academia, mas
tambm dos prprios atores deste processo. Esta experincia deixou a nu a
necessidade, que nem sempre explcita no curso de histria, de um
compromisso com o que dito. Por favor no interpretem mal, estamos
apenas querendo dizer que como os mortos no ressurgem para reclamar as
suas opinies, geralmente ficamos mais vontade para fazer valer o nosso
ponto de vista.
Sabemos que a histria do tempo presente, mais do que
qualquer outra, por natureza uma histria inacabada: uma histria em
18
constante movimento, refletindo as comoes que se desenrolam diante de
ns e sendo portanto objeto de uma renovao sem fim. Alis, a histria por
si mesma no pode terminar (...)18
claro no pretendo dar conta de uma realidade que com
certeza foi e muito mais complexa do o que pudemos perceber, por isso,
acrescentamos a importncia de se olhar este trabalho como apenas uma das
possveis interpretaes acerca do que foi o curso de tcnico de indigenismo
da FUNAI.
Como instrumental de anlise das fontes utilizamos
principalmente a perspectiva da representao teatral, trabalhada por
Goffman em A representao do eu na vida cotidiana19, onde se presume
que na vida real quando o indivduo se apresenta diante de outros procura
controlar a impresso que estes recebem da sua atuao, assim como
importante que acreditem que o personagem que se apresenta possui os
atributos que aparenta ter.
A inteno seria ter elementos para estudar a FUNAI, enquanto
estabelecimento social, do ponto de vista da manipulao da impresso,
onde um determinado grupo de atores, os tcnicos de indigenismo, procura
apresentar uma dada definio da situao, tendo por base o princpio de
que qualquer indivduo que possua certas caractersticas sociais tem o
direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira
adequada.
Portanto, procuraremos estudar a formao deste grupo de
modo a retraar sua auto-representao tendo em conta que quando um
indivduo se apresenta diante de outros tem muitos motivos para controlar a
impresso que estes recebem da situao.
Entendemos grupo social como uma determinada articulao
que mantm uma forma de interao esperada entre si e tem como objetivo 18Bdarida, 1999:229. 19Goffman, 1975.
19
atingir metas e resolver problemas comuns. Esta forma de organizao seria
fruto portanto no s de uma necessidade prtica no sentido de atender a
interesses prprios como tambm de uma opo moral.
Apenas pelo fato deste corpo de funcionrios ser composto por
pessoas que primeiro fizeram um concurso e depois um curso j justificaria
um estudo com enfoque na forma e tipo de grupo resultante deste processo.
Acrescente-se a isto uma questo bastante relevante que diz respeito ao
monoplio de formao exercido pela FUNAI, j que a instituio no
considera outros meios de formao que no o seu prprio. Isto fica
explcito quando deparamos com uma outra situao: quando temos um
concurso para professor de histria do municpio temos que ter uma
formao prvia em histria conferida por uma das tantas faculdades
espalhadas pelo pas. O curso de indigenismo por sua vez tem como nico
pr-requisito a concluso do 2- grau e no exige nenhuma formao anterior
especfica, nem faz uma anlise curricular, ela simplesmente exige uma
formao tida como universal. A partir da temos duas questes: primeiro,
o no reconhecimento/no existncia de um outro tipo de formao.
Formalmente no existe este tipo de requisito para ser tcnico de
indigenismo, ela durante muito tempo veio se dando a partir de uma
vivncia prtica, de um contato com uma determinada realidade e com a
possibilidade, ditada por diversas especificidades, de ter contato com a rede
informal de atores envolvidos com a questo. O curso tem um carter
especial por trazer no seu bojo a possibilidade de qualificao, colocao
profissional e realizao pessoal. Ou seja, em apenas quatro meses estas
pessoas fazem um concurso, freqentam um curso e participam de um
estgio, a partir da tm uma qualificao especial: a de indigenistas.
Este trabalho de pesquisa se justifica tambm pela necessidade
de conhecimento da administrao pblica no Brasil, em especial no tocante
a um aparelho de abrangncia nacional que manipula, pelo seu papel de
20
tutor legal, recursos vultuosos e largas pores de terra sob a posse
indgena.
A pesquisa tanto mais importante pela possibilidade de
contribuir para o estudo da camada especfica, que a partir da formao
oferecida pela FUNAI, teve como responsabilidade colocar em prtica a
poltica indigenista da instituio, quando esta existia, enfrentando inmeras
contradies e dificuldades por estar em uma situao especial: a de
mediadores em um conflito, ora velado, ora aberto, entre as comunidades
indgenas e a sociedade brasileira.
Duas ltimas justificativas podem ser colocadas: primeiro,
porque pretende ser uma anlise cientfica sobre uma questo que vem at
hoje se desenrolando tendo por base o bom senso; e, segundo, por ser um
problema atual de bastante relevncia, considerando-se que no h uma
poltica governamental estabelecida no sentido de qualificar funcionrios
para atuarem diretamente nas aldeias indgenas.
CAPTULO 1
O CURSO DE TCNICO DE INDIGENISMO E SEUS
OBJETIVOS
21
22
Os cursos de tcnico de indigenismo comearam a ser
organizados em 1970, pouco tempo depois da extino do Servio de
Proteo ao ndio (SPI) 20 e em seguida a criao da nova instituio que
estaria encarregada de tratar do problema indgena, Fundao Nacional do
ndio (FUNAI). Este curso, que a princpio piloto, ou seja, estava sujeito a
mudanas, pretendia formar funcionrios para atender a uma necessidade
que no era nova, mas que porm se perpetuava h muito tempo sem ser
resolvida, ou seja, a relao direta entre instituies governamentais e os
povos nativos. Esperava-se atravs do curso superar os entraves colocados
por uma atuao que at ento tinha se pautado em um voluntarismo, tendo
por base uma ao paternalista ou autoritria com relao aos ndios.
A situao em que se encontrava o trabalho direto com as
comunidades indgenas era a de uma falta de planejamento que orientasse a
atuao dos chefes de postos. Mais do que isso: considerava-se esse pessoal
desqualificado para exercer as funes para as quais haviam sido
designados, o que podemos verificar na seguinte citao:
O nosso chefe de PI elemento em geral recrutado na
regio, compromissado com a estrutura da sociedade envolvente e de nvel
cultural igual ao das frentes pioneiras. Numa chefia de PI, com o mnimo
de instrumentos, condies materiais e apoio, esse elemento entra em
estado de hibernao. Alm de transformar-se num parasita para a
comunidade, le se torna vulnervel a influncias estranhas ao trabalho
indigenista. Qualquer elemento que chegue melhor aparelhado (como os
missionrios, pesquisadores, etc.) assume de imediato a liderana. Vale a
20 O SPI, ainda como SPILTN, desde 1910 vinha sendo a instituio responsvel pela tutela dos povos indigenas; em 1967 este servio foi extinto e criou-se ento a FUNAI (Fundao Nacional do ndio)
23
pena ressaltar, que o silvcola muito sensvel a todo aparatus, e formas
que traduzam prestgio.21
Analisando esta citao para ns fica claro o pano de fundo da
inteno de certos grupos da FUNAI em criar o curso de tcnico de
indigenismo, ou seja, ocupar um espao que at ento estava vulnervel
penetrao de idias no comprometidas com a viso da instituio a cerca
de como deveria ser o trabalho com as comunidades indgenas. Esta falta
de ideologia daqueles que trabalhavam junto as comunidades indgenas no
fazia mais do que refletir a falta de uma linha clara de atuao da prpria
instituio, que no tinha tal viso codificada. Mais do que isso fica claro
tambm a necessidade declarada de exercer o seu papel plenamente,
ocupando de forma efetiva o espao poltico e fsico para qual o rgo havia
sido criado. Portanto, atravs do curso pretendia-se mais do que apenas
formar novos agentes para ocupar uma determinada funo: pretendia-se
tornar-se a FUNAI efetivamente tutora das comunidades indgenas,
justificando de forma prtica a sua criao.
Diante desta situao, e pretendendo criar novas bases de
atuao, a instituio toma para si a responsabilidade de selecionar,
capacitar e dar orientao para os novos agentes estatais que iriam estar em
contato direto com as populaes indgenas, para tanto decide organizar um
curso que atendesse a essa demanda.
O curso parte assim de uma crtica atuao que vinha se tendo
com relao s comunidades indgenas mais especificamente atuao dos
chefes de posto, que era o funcionrio incumbido de estar em contato
permanente com as comunidades indgenas, morando com estas
comunidades e prestando o atendimento necessrio e, mais do que isso,
sendo l um representante da instituio governamental incumbida da tutela
dos povos indgenas. Assim como, da necessidade de ocupar a unidade base
21Ramalho, Edson. 1969, p6.
24
da instituio afim de salvaguardar a integridade do rgo e da poltica
indigenista governamental.
A criao do curso neste sentido procura se justificar pela
necessidade de acabar com o empirismo e o paternalismo, a ausncia de uma
atuao planejada, considerados entraves para o desenvolvimento. Partindo
da necessidade de reestruturar sua unidade base, a chefia de posto indgena
-tida como ponto de estrangulamento da estrutura administrativa da poca -
o curso visava capacitar recursos humanos nas tcnicas de Desenvolvimento
Comunitrio. Nesta parte das instrues gerais do curso de 1978 temos um
exemplo disto:
A atividade do Tcnico em Indigenismo, deve ser exercida
visando, principalmente, a ascenso do indgena junto sociedade
envolvente, capacitando-o a gerir seus prprios bens e interesses,
respeitando-se suas lideranas e as diferentes normas culturais dos
diversos grupos.
A orientao aos indgenas baseia-se na Antropologia
Aplicada, que, atualmente constitui uma das mais importantes metas da
FUNAI.22
A tentativa, portanto, girava em torno da busca de racionalizar
o trabalho e torn-lo compatvel com o desenvolvimento econmico
pretendido. Desejava-se regulamentar uma atuao, criar um corpo de
funcionrios que estivesse altura da funo, capacitar pessoal para uma
atuao de forma planificada, que, pretendia-se, fosse regida por uma nova
tica, um princpio que levasse em conta a especificidade de cada
comunidade, atendendo a uma orientao centralizada e transformasse uma
realidade confusa em algo articulado. A partir do curso pretendia-se no s
22Documento sem ttulo do Departamento de Planejamento Comunitrio. 1978, p3.
25
formar novos agentes mas, mais do que isso, tornar vivel um projeto mais
amplo que passava por um novo tipo de relacionamento com as
comunidades indgenas. O mtodo anterior, tido como simplrio, estaria
desta forma superado.
` Segundo a avaliao de um dos entrevistados o processo se deu
da seguinte forma:
(...) ns entramos numa poca que era um regime militar
aonde a palavra era desenvolvimento, desenvolver, fazer grandes projetos
agropecurios, aquela coisa. Eles tinham essa coisa dentro da FUNAI, que
era uma coisa tambm geral do Brasil, o milagre, o desenvolvimento e a
gente foi formado para isso, (...). Uma das matrias mais fortes do curso
era o tal desenvolvimento comunitrio, quer dizer como que a gente ia
pegar uma comunidade que propenamente primitiva e transforma-la em
produtora de alimentos, de gros, criadores de gado e tal (...).
(entrevistado B)
Ao todo foram realizados 10 cursos entre 1970 e 1985, e no
houve um intervalo uniforme entre eles. Como critrios para que se
freqentasse o curso tinha-se como norma bsica a escolaridade mnima de
2 grau e a aprovao em um concurso pblico realizado especificamente para cada curso. Alm destes candidatos tambm freqentavam o curso
funcionrios da FUNAI alocados na funo de chefe de posto mas que no
tinham a qualificao especfica para o cargo, estes funcionrios eram
escolhidos pelo administrao local e, aps terem feito um exame
psicotcnico, eram encaminhados para Braslia, onde assistiriam as aulas.
O concurso de seleo era realizado a nvel nacional,
constavam dele provas que nos cursos de 1970 a 1981 foram de portugus,
matemtica, histria e geografia. As provas por serem de mltipla escolha
26
limitavam a possibilidade de percepo do candidato, no oferecendo meios
para uma avaliao aprofundada de um possvel desenvolvimento mais
elaborado.
Especificamente no ltimo curso que foi realizado em 1985,
houve uma alterao na forma de avaliao, dando-se maior nfase
redao com tema sobre a problemtica indgena. Neste sentido, percebesse
uma preocupao que passa, no s pela educao formal, mas tambm por
um aprofundamento em direo a identificao da formao moral e social
do candidato, alm desta redao tambm havia uma prova de
conhecimentos gerais.
Cabe ressaltar que o curso de 1985 teve determinadas
especificidade que sero posteriormente desenvolvidas. Aqui nos deteremos
ao que foi norma bsica da maioria dos cursos. Para ns, por hora, basta ter
claro que o concurso obedecia s normas formais de seleo, no sentido de
avaliar a educao formal, isto , o curriculum oficial das escolas. Alm
desta avaliao tambm eram realizados os testes psicotcnicos, que atravs
de provas individuais, pretendiam traar o perfil do candidato, procurando
perceber se este se encaixava nos padres estabelecidos como normais.
Tambm constava da seleo a realizao de uma entrevista que ao nosso
ver tinha como objetivo bsico um conhecimento mais aprofundado do
candidato procurando perceber quais suas aspiraes ao se candidatar a uma
funo que acarretaria tantas transformaes no seu modo de vida e exigiria
dele uma dedicao profissional extrema.
Ultrapassada esta etapa o candidato se deslocava para Braslia
onde ento receberia a formao para atuar como tcnico de indigenismo da
FUNAI, podendo exercer as mais diferentes funes, que na maioria das
vezes se limitava de chefe de posto. Neste momento o aluno era avaliado
especificamente em cada uma das matria oferecidas e tendo recebido grau
de aprovao suficiente em todas era ento encaminhado para o estgio.
27
A) OS CURSOS
Os cursos, at 1981, seguem, em linhas gerais, o mesmo
padro, tendo nas matrias Antropologia Aplicada, sade Desenvolvimento
Comunitrio o seu principal eixo. Visavam transformar as comunidades
indgenas em produtoras agrcolas e pecurias, resguardando alguns de seus
traos culturais e garantindo sua integridade fsica. A justificativa dos
cursos, assim como, as matrias oferecidas sofrem pequenas alteraes de
um curso para outro e no justificam uma anlise retida de cada um deles,
alm do que, isso acarretaria um desvio do fio condutor da monografia e
principalmente por no ser imprescindvel ao tipo de abordagem pretendida.
Portanto, optamos por englobar estes nove cursos em um nico bloco.
De um modo geral os cursos foram estruturados com o intuito
de formar um tcnico indigenista completo, no sentido de que este
funcionrio deveria estar preparado para atender a toda gama de
necessidades surgidas no exerccio da chefia de posto. Neste sentido o curso
tinha uma estrutura que pretendia oferecer uma formao ampla, tornando o
aluno apto a enfrentar problemas relacionados aos mais diversos campos de
atuao. Eram oferecidas matrias que atendiam tanto a uma formao mais
terica, quanto matrias que enfocavam questes mais prticas. Em um
curto espao de tempo, apenas dois meses, o aluno recebia noes de
etnologia, operao de rdio, saneamento bsico, primeiros socorros,
burocracia interna da FUNAI etc. Atravs do quadro que apresentamos
abaixo pretendemos dar um panorama do que constitua, de um modo geral,
o cursos:
28
DISCIPLINAS CARGA HORRIA
1) Antropologia Aplicada - 45 horas - 30 aulas
2)Desenvolvimento Comunitrio - 39 horas - 26 aulas
3) Legislao - 06 horas - 4 aulas
4)Introduo Adm. Geral - 12 horas - 8 aulas
5) Telecomunicaes - 09 horas - 8 aulas
6) Educao - 09 horas - 6 aulas
7) Palestras - 05 horas - 3 palestras
8) Sade - 42 horas - 28 aulas
( Programa Referente ao curso de 1975.)
Cada uma destas disciplinas tinha um contedo bastante
diversificado sendo o de antropologia aplicada, por exemplo, o seguinte: a
antropologia aplicada e a compresso das culturas indgenas; o ndio
brasileiro em perspectiva histrica e geogrfica; a diversidade lingstica;
ecologia e explorao do meio-ambiente; sistemas de relaes sociais;
organizao poltica; sistemas de crena e conhecimento; contato intertribal;
o impacto da civilizao e a ao indigenista. Pretendia-se com toda esta
gama de informaes fazer com que a pessoa preparada pelo curso fosse
capaz de, mesmo estando isolada, sem qualquer tipo de apoio oferecido pela
FUNAI, atender a demanda de um trabalho que era multifacetrio. O aluno
alm de lidar com uma srie de informaes, supostamente novas, tomava
contato com uma forma de pensar a questo indgena. Recebia no s uma
preparao prtica como tambm um aparato ideolgico que tinha como
finalidade dar sustentao s atividades subseqentes e munir moralmente o
29
aluno para enfrentar uma srie de adversidades a que estaria sujeito. Neste
momento pretendia-se contagi-lo com a idia da necessidade de um
sacrifcio pessoal em prol da questo indgena. Alm disso eram delimitadas
as regras de participao da instituio e de um procedimento moral tido
como correto.
Este curso ainda fazia parte da seleo e o candidato que no
correspondesse s exigncias formais era desligado do processo. Para
proceder esta avaliao o aluno era submetido a provas especficas de cada
disciplina. Em termos pedaggicos o princpio do curso era regido pela idia
bsica de que o tcnico teria que ser incentivado a exercer uma liderana
democrtica, por isso pretendia-se no tolhe-lo com exigncias autoritrias,
o objetivo maior era ensinar o aluno a aprender. Como se fosse haver
oportunidade de continuar os estudos era oferecida ao aluno uma srie de
referncias bibliogrficas.
Alm das aulas expositivas, conferidas por professores
convidados pela instituio ou por funcionrios da FUNAI, o curso ainda
contava com o recurso da utilizao de textos que em sua maioria eram
bsicos, oferecendo apenas um suporte s idias desenvolvidas em sala.
Eram tambm distribudas apostilas que objetivavam uma explicitao
simplificada de questes relativas s doenas, obras sanitrias etc.
O curso de 1985 sofre algumas modificaes com relao aos
demais. A prova de seleo, como j foi dito anteriormente, passava a dar
mais nfase aos conhecimentos tidos como no formais, fruto disto as
provas centravam-se em conhecimentos gerais e o aluno teria que fazer uma
redao com um tema preestabelecido que possibilitasse que fosse feita uma
avaliao de fundo ideolgico a respeito do posicionamento do candidato
sobre as questes indgenas. Questes relativas ao aspecto prtico foram
menos enfatizadas e as questes relativas a um entendimento da situao
indgena, bem como, a valorizao da sensibilidade prpria do aluno para
30
entender e respeitar as culturas indgenas, foram privilegiadas. Pretendia-se
com isso fornecer ao aluno um embasamento que o capacitasse para assumir
um posto de forma autnoma tendo condies prprias de discernimento e
adaptao em situaes cotidianas e extremas. Este curso trazia tambm em
linhas gerais uma nova perspectiva para o que deveria ser a funo do chefe
de posto, quando em seu folheto explicativo dizia:
Em linhas gerais caber ao indigenista a coordenao dos
trabalhos assistncias desenvolvidos na rea indgena e o assessoramento
da comunidade no seu contato com a sociedade envolvente. Eventualmente
poder vir a exercer atividades de coordenao especficas, ligadas as
reas de educao, sade ou outras, dependendo sobretudo de sua
formao e aptido.23
Neste sentido h uma mudana formal do eixo do curso que
deixava de dar nfase a uma transformao necessria das comunidades
indgenas em produtoras. O que se pretendia era tirar o foco do chefe de
posto, que passaria a atender a uma demanda ditada pelas comunidades,
sendo assim um assessor que pudesse oferecer sustentao as decises das
comunidades.
interessante tambm notar como os cursos aparecem como
mais um expoente da briga interna entre os diversos grupos da FUNAI.
Especificamente no curso de 85 ocorre uma crise interna na FUNAI que
atribuda a uma tentativa de um destes grupos em, a partir do curso de
indigenismo, formar os novos indigenistas de acordo com a viso deste
grupo. A partir da se instaura uma crise que, entre outras coisas, fez com os
aprovados neste curso tivessem dificuldades em serem efetivamente
contratados pela instituio. Notamos aqui um outro aspecto relativo ao
curso e as transformaes que nele foram ocorrendo ao longo de sua
23FUNAI e Ministrio do Interior. Folheto explicativo do curso de 1985.
31
existncia: a possibilidade de a partir desta formao inicial, onde os alunos
ainda no tem uma concepo formada do que seja o trabalho indigenista,
forjar adeptos de uma determinada forma de pensar a FUNAI e problemtica
indgena.
B) O ESTGIO
O estgio, que durava cerca de 2 meses, tinha como objetivo
complementar a formao recebida na parte terica do curso, o aluno era
ento deslocado para um posto indgena escolhido pela FUNAI. Estando l,
a princpio, o aluno encontraria um chefe de posto que iria orient-lo neste
perodo. Nesta ocasio ele teria a possibilidade de conhecer e praticar as
mais diversas atividades do chefe de um posto indgena. Fruto disto, o
estagirio tinha que redigir um relatrio sobre esta experincia, obedecendo
determinados pontos preestabelecidos, para sua observao.
Estes pontos davam conta de um levantamento, que talvez nem
a prpria FUNAI tivesse, e pretendia diagnosticar a situao geral do posto
respondendo, em geral, aos seguintes aspectos:
1 Terras: localizao, rea e aspecto jurdico;
2- Comunicao: externa e interna;
3- Aspectos Naturais: clima, topografia, hidrografia, vegetao e fauna.
4- Sede
5- Benfeitorias
6- Pessoal: encarregado e auxiliares (professores)
7-Atividades administrativas: (saneamento bsico, obras, melhorias e
conservao) gua, lixo, fossa e habitao
8- Populao da rea
32
9- Atividades: escolar, coleta e caa, lavoura, criao, artesanato, regime
de trabalho e contato com a civilizao.
(Planejamento de relatrio do curso realizado em 1973, que durou de 1/11/73 at
31/12/73)
Enfim, o estagirio era incumbido de traar em pormenores o
quadro da regio, assim como da comunidade e da atuao da FUNAI.
Analisando os pontos centrais que norteavam este relatrio percebemos que
a FUNAI, que como j foi dito anteriormente, tinha sido criada h pouco
tempo, procurava atravs do relatrio esquadrinhar a realidade dos postos. O
candidato para tanto no recebia nenhum preparo metodolgico especifico
para proceder estas observaes. Consideramos provvel a possibilidade de
que a escolha de posto atendesse antes a uma necessidade de averiguao da
realidade do local, do que, de um possvel exemplo a ser seguido.
interessante notar que este foi um critrio de avaliao de todos os cursos e
que os aspectos a serem codificados eram os mesmos.
No queremos dizer com isso, no entanto, que o aluno, ao
observar os pontos estabelecidos, no pudesse extrapolar o que havia sido
dado como orientao bsica no curso terico, o que talvez o possibilitasse a
atentar para determinados pontos bsicos de um posto, mas consideramos
que este no era o objetivo central do pr-estabelecimento de determinados
aspectos a serem observados.
Vale enfatizar que o estgio, a princpio, era o momento de
primeiro contato do aluno com os indgenas e com a nova atividade que por
eles seria desenvolvida. Na prpria data do estgio realizado no curso de
1973 temos clara a pretenso de se testar o desprendimento do candidato de
relaes sociais prprias da sua cultura, o aluno iria passar o Natal e o Ano
33
Novo entre os ndios, no como se estivesse de frias, mas sim, tendo
dimenso de qual seria o tipo de sacrifcio exigido durante sua atuao como
chefe de posto.
O objetivo de se fazer um estgio neste caso atende ao que
normalmente se tem como princpio: dar uma complementao prtica a
uma formao terica anterior. Tendo isto como base e acrescentando que
especificamente neste caso tratamos de um conhecimento disperso que no
conta com uma formulao, anterior e precisa, do que seria uma prtica
ideal, gostaramos de acrescentar que o estgio para este curso tem uma
caracterstica mpar, qual seja, a de colocar o aluno em contato com o chefe
de posto que estaria atuando no local do estgio, segundo suas prprias
convices, para que a partir deste contato tivesse possibilidade de,
confrontando os conhecimentos tericos do curso com esta prtica,
desenvolver uma percepo prpria do que seria um possvel trabalho com
as comunidades indgenas.
Este pequeno painel de como eram realizados os
cursos atende necessidade de se ter em conta a estrutura filosfica bsica
que serviu de alicerce para a formao de uma mentalidade tpica do tcnico
de indigenismo, claro que a isso juntaram-se outros fatores, mas
gostaramos de deixar claro o papel que teve este primeiro contato formal
com a questo indgena para os alunos do curso. Enfim este momento
aparece como uma forma de rito de iniciao, onde so delineados dois
aspectos fundamentais: a insero do candidato em um corpo de
funcionrios especfico e a definio dos parmetros de um perfil ideal para
o tcnico de indigenismo.
34
CAPTULO 2
PORQUE SER UM INDIGENISTA
35
necessrio comear este captulo procurando explicar a sua
importncia para o restante do trabalho a ser desenvolvido. Um primeiro
aspecto que gostaramos de destacar que a partir da motivao inicial
para se fazer o curso que o candidato vai comear a travar um contato com a
instituio, ou seja, o tnus do princpio desta relao estar pautado neste
primeiro modo de ver a possibilidade de trabalhar na FUNAI. Em segundo
temos a conseqente comparao entre os diversos fatores de motivao
estabelecendo a partir da um dos elementos do perfil deste grupo de
homens. O terceiro aspecto que gostaramos de destacar que a partir deste
ponto teremos como estabelecer possveis diferenas entre a concepo
inicial do que seria este trabalho em seu significado mais imediato e o
discurso assumido a posteriori que j traz a carga da formao assim como
os anos de prtica dentro da FUNAI.
Antes de falarmos propriamente da motivao para se fazer o
concurso vamos fazer um breve parnteses para procurarmos perceber as
origens destas pessoas que so distintas e que num determinado momento
parecem trilhar numa mesma direo. J na localizao geogrfica temos
uma diversidade enorme principalmente por se tratar de um concurso a nvel
nacional, quanto ao nvel de formao a variao vai do segundo grau
tcnico ao mestrado passando por graduaes em: jornalismo, economia,
arquitetura e engenharia. Alm destes aspectos j mencionados temos
tambm a grande diferena de atividades desenvolvidas na poca do curso
que tambm eram bastante distintas: segurana, jornalista, professor,
pesquisador, desempregado etc. claro que esta disparidade a nvel de
formao e informao cria uma grande controvrsia: ao mesmo tempo que
gera uma situao difcil de contornar no sentido de procurar diminuir a
heterogeneidade da turma afim de que houvesse um caminhar conjunto,
cria-se tambm uma situao bastante favorvel no sentido de possibilitar
36
uma troca de experincias bastante construtiva. Estes fatores vo depender
sobretudo da forma como o curso era encaminhado, mas avaliamos que, de
um modo geral, e principalmente por ser esta turma acrescida de
funcionrios que j vinham desempenhando o papel de chefes de posto,
alm da exiguidade de tempo em que o curso era realizado, o curso tinha um
desenrolar nem sempre satisfatrio para toda a turma.
Como exemplo disto destacamos o depoimento de um dos
entrevistados que ressalta esta dificuldade. Ele j vinha exercendo a
atividade de chefe de posto h cerca de 5 anos e por ter apenas a formao
de tcnico agrcola, considerada insuficiente, foi convocado a fazer o curso.
Por estar enfrentando problemas jurdicos na sua rea de atuao com
relao a disputas de terra e por j ter uma gama de informaes que
permitia refletir sobre o que estava sendo colocado, ele, junto com outros
alunos-funcionrios, monopolizavam as discusses procurando solues
para problemas que estavam em pauta no trabalho que vinha sendo
desenvolvido:
(...) j que 50% das vagas foram reservadas para
funcionrios, foi excelente porque tinha muitas pessoas que a gente j ...
Foi uma oportunidade de rever amigos que a gente j conhecia, foi uma
oportunidade, talvez uma oportunidade impar, porque ns tivemos
oportunidade de trocar informaes, porque nesse curso, j que 50% das
vagas eram para funcionrios da FUNAI. Ento l voc tinha por exemplo
de Roraima, como tinha de Amap, So Paulo, Mato Grosso do Sul,
Rondnia, ento aquele pessoal que j era funcionrio voc ... A gente
sempre ficava ali, o relacionamento foi timo, foi excelente, principalmente
a convivncia que foi boa, mas principalmente essa oportunidade de trocar
experincia. E eu acho que foi ainda melhor para aqueles 50% que estavam
entrando na FUNAI porque, alm das aulas que eram ministradas no curso
37
para preparao do curso, eles tiveram tambm oportunidade de conviver
com pessoas que j estavam na rea, que j tinham uma experincia.
(entrevistado J)
Aqui temos dois problemas que vo perpassar no s o curso
como as atividades posteriores dos chefes de posto: a prpria forma do
curso com a dificuldade decorrente disto e a no continuidade de um
trabalho de formao/informao realizado depois desta formao inicial.
A informao anterior ao curso do que seria indigenismo passa
por graus diferentes. Metade dos entrevistados no tinha uma opinio
formada sobre o assunto. O que tinha ouvido falar vinha de jornais e
revistas. De uma forma geral eram indiferentes questo indgena. Alguns
deles justificam sua ligao com a questo indgena como uma coisa
intuitiva como por exemplo neste primeiro caso:
... via filmes de ndios e alguma coisa dentro de mim me
chamava a ateno para o ndio, no sei o que era, acho que o ndio
muito descriminado pela sociedade, eu tambm fui como menino, como
pobre e falei: um dia se eu tivesse oportunidade de trabalhar com um povo
para compensar aquilo que eu passei, que ningum pode me ajudar, a veio
a oportunidade, deu certo e eu fui luta, fui ajudar os caras...
(entrevistado H)
E neste outro:
... quando era Hippie usava roupas de ndio e meu apelido
era estrela vermelha, sempre brinquei de ndio tinha uma ligao astral
com ndio. Mas no sabia se existia ndio, como era, porque no tinha
notcias como hoje sobre a questo. (entrevistado M)
38
Apenas um dos entrevistados tinha uma certa averso aos povos
indgenas por ter tido familiares trucidados por ndios da regio do Gurupi
no Par. Superou esta dificuldade de relacionamento com as comunidades
indgenas quando comeou a freqentar a escola e em uma visita ao Museu
Geldi, quando passou a entender que eles eram produto de um processo
histrico. Os cinco restantes j tinham tido algum contato com a questo
antes de entrarem para a FUNAI. Estes, principalmente por se considerarem
aventureiros e preocupados com as questes sociais, procuraram pelos mais
diferentes meios tomar contato com um mundo diferente, onde se vivia no
mato e se tinha outra perspectiva de uma vida em sociedade.
De uma forma geral antes do curso os entrevistados no tinham
uma militncia poltica organizada. Somente dois deles j tinham
participado de agremiaes estudantis no curso universitrio, e apenas um
deles prosseguiu na militncia tendo sido ativista de dois partidos polticos
de esquerda.
A forma como estas pessoas ficaram sabendo do concurso
demonstra a casualidade com que se deu este primeiro contato com a
instituio. A grande maioria dos entrevistados ficou sabendo, quase
que por acaso, atravs de amigos, anncios em jornais, cartazes etc. Apenas
trs dos entrevistados demonstraram j ter um interesse anterior em atuar
especificamente como tcnico de indigenismo da FUNAI, buscando desta
forma efetivar profissionalmente a experincia anterior que j tinham com
relao as comunidades indgenas.
A noo do que seria a atividade a ser desenvolvida tambm se
restringia a um grupo menor que j tinha tido algum tipo de aproximao
com a instituio ou com pessoas que atuavam nela.
As motivaes para se fazer o curso de tcnico de indigenismo,
dentre os entrevistados, so bastante variveis. Giraram em torno de
39
questes que vo de uma falta de motivao geral para com qualquer outra
atividade, atrao pelo salrio que era considerado bom ou uma forma de
institucionalizar uma experincia anterior de trabalho.
Podemos neste sentido dividir em subgrupos os entrevistados
tendo em conta o foco da motivao para se fazer o concurso para tcnico de
indigenismo.
Num primeiro momento falaremos daquele grupo que se
mostrou majoritrio entre os entrevistados que teve como sua principal
motivao a questo salarial. Neste grupo encontramos pessoas que estavam
desmotivadas profissionalmente ou que no tinham uma colocao
profissional definida. Para estas pessoas o contato inicial com a questo
passou por uma necessidade prtica de busca de uma remunerao decente e
fixa. Isto fica claro quando analisando os depoimentos encontramos
referncias explcitas ao ganho que possivelmente se teria, um dos tcnicos
de indigenismo diz:
... Eu ia ganhar oito vezes mais do que eu ganhava em
Braslia. (entrevistado H)
Aliada a esta remunerao, considerada como atraente, temos a
baixa necessidade de gastos na atividade a ser desempenhada j que em uma
aldeia indgena muito pouco se gastava, a economia conseguida
possibilitava a realizao de uma poupana que em outras condies no
seria possvel. Alm disto temos um aspecto de no menor importncia que
diz respeito estabilidade no emprego, j que se tratava de um cargo
pblico conquistado atravs de concurso, que certamente traria tambm
outras vantagens.
Dentre os entrevistados temos um outro grupo com
caractersticas bem demarcadas. Estas pessoas j tinham de alguma forma
40
tido contato com a questo indgena e mais do que isso, em graus diferentes,
j tinham trabalhado concretamente com comunidades indgenas. Neste
grupo encontramos exemplos interessantes como o caso do entrevistado
que j vinha trabalhando com os irmos Villas-Boas h cerca de quatro
anos. Este trabalho, que era no era remunerado, vinha se desenvolvendo de
forma continua e serviu como experincia prtica de trabalho:
Eu tomei contato (com a questo indgena) atravs dos
Villas-Boas, o Orlando e Claudio Villas-Boas, eles eram, na poca em que
eu era muito jovem, eram os sertanistas mais famosos que tinha dentro do
Brasil. Eu tinha uma tendncia muito grande, chegava em poca de frias,
essas coisas, todo mundo gosta de baile, e meu negcio era ir tentar pescar,
ir caar, eu gostava de mato. (...) De forma que atravs do Orlando, que em
1961 mais ou menos, um ano depois da criao do parque, quando a pela
primeira vez eu fui ao parque do Xingu, tomei contato com a realidade
indgena. E a eu passei muitos anos auxiliando o Orlando (...).
(entrevistado E)
O entrevistado considerava o curso irrelevante para sua
formao, pensava e continuou pensando aps o curso, que ele nada
acrescentaria na sua formao. Neste caso, e no de mais dois entrevistados,
temos a situao que chamamos de ratificadora, porque estas pessoas
procuraram atravs do concurso apenas profissionalizar a atividade que j
vinham desenvolvendo. O concurso aparece assim como possibilitador de
insero efetiva na instituio responsvel pela guarda dos povos indgenas.
Aqui, voltamos a abordar uma questo que foi levantada no captulo 1 e que
diz respeito ao objetivo da FUNAI de tornar efetiva a sua atuao
monopolizadora da ao tutelar. Para colocar em ao tal tarefa, consegue
captar uma mo-de-obra que j vinha atuando de forma dispersa, ou seja,
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sem uma orientao/controle direto do rgo que, afinal de contas, deveria
ser o responsvel por este trabalho. Neste caso, podemos enquadrar tambm
a reciclagem dos j funcionrios da FUNAI (SPI) -utilizo a palavra
reciclagem entre aspas porque na verdade estes funcionrios nunca foram
efetivamente preparados para ocuparem a funo de Chefe de Posto, e nem
to pouco participaram de um plano especifico de reciclagem, eles apenas
fizeram parte do curso dirigido para uma turma de iniciantes que tinham
feito um concurso para assumir o cargo de chefe de posto.
Para os entrevistados que j tinham uma prtica anterior, no
institucional, o curso aparece como a forma, mesmo no sendo a ideal, de
continuar uma atividade de forma auto-sustentada. O concurso traz a
possibilidade de continuar a desenvolver o trabalho que j vinha sendo
realizado s que contando agora com uma infra-estrutura, mesmo que fosse
mnima.
Um outro aspecto mencionado, foi a ligao deste trabalho com
questes sociais, consideramos este um aspecto que revela alguns aspectos
fundamentais deste grupo, que tem uma conotao mais existencial. Num
primeiro plano aparece a forte conotao relacionada ao fator aventura.
Temos a uma marca bastante aguada do perfil do tcnico de indigenismo:
a busca por uma realizao profissional que estivesse aliada ao desejo de
trabalhar com algo diferente, que fugisse dos padres convencionais de
emprego e que oferecesse a possibilidade de realizao de um trabalho que,
em uma poca em que o pas se encontrava submetido a um regime
ditatorial, pudesse ser transformador, o que conferia tambm um aspecto
poltico/social a esta atuao. Aliado a estes fatores, temos tambm como
forte motivao a falta de perspectiva de outra colocao profissional.
Temos entrevistados que mesmo tendo uma qualificao especfica no se
identificavam com a funo que vinham desempenhando ou iriam
desempenhar. Existia at mesmo uma dificuldade em se encaixar na
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sociedade da qual faziam parte. Como exemplo disto destacamos o
depoimento seguinte:
Eu tinha uma conscincia poltica, eu tinha uma vontade de
fazer alguma coisa e me sentia totalmente perdido, totalmente fora do
esquema ... talvez tenha sido isto, uma maneira de sair fora, de tentar
alguma coisa nova, que me desse um novo horizonte.... (entrevistado D)
Tendo apresentado os subgrupos divididos de acordo com a
motivao preponderante para se procurar o concurso como forma de
colocao profissional podemos agora partir para uma anlise que procure
generalizar o que serviu de alavanca para o primeiro passo em direo a esta
profisso que exigiria tantas transformaes na forma de viver destas
pessoas.
claro todos estes fatores de motivao no aparecem isolados
uns dos outros. Neste sentido, podemos procurar delinear algumas
generalizaes. Primeiro: notamos a ntida procura de um emprego, aqui
independente do subgrupo temos reafirmada a necessidade de, seja por
salrio, por identificao ou falta de perspectiva, atravs deste concurso,
buscar uma colocao profissional. Mas o que nem todos consideraram de
imediato que este no era um concurso qualquer, a aprovao nele
desencadeava uma srie de mudanas no s na forma de vida, que agora
estaria vinculada a uma outra sociedade, a uma outra forma de viver, como
tambm na forma de pensar e conceber certas questes que antes passavam
desapercebidas. A questo indgena requeria um engajamento que a
princpio nem todos tinham se dado conta de que seria necessrio.
somente com o curso que alguns dos entrevistados vo
perceber o significado do trabalho que por eles iria ser realizado. Muitos
deles nem ao menos sabiam o que significava ser tcnico de indigenismo,
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por isso tiveram no curso o seu primeiro contato com este novo universo,
com esta nova forma de encarar as comunidades indgenas, e por isso
atribuem ao curso grande parte da sua formao.
Independente do tipo de motivao que levou estas pessoas a se
interessarem por um anncio de jornal ou um cartaz que dizia Jovem a
FUNAI precisa de voc, temos que considerar tambm o que de mais
estimulante trazia o concurso, ou seja, a conferncia de uma certa dignidade
para estas pessoas que ou estavam desestimuladas pessoalmente, ou
profissionalmente. Afinal o concurso no iria oferecer apenas uma
colocao profissional, mais um cargo a ser ocupado, mais um burocrata
que ficaria encastelado entre os seus papeis. Este concurso trazia com ele
um novo ttulo o de indigenista, algum que estaria legalmente apto a atuar
tendo por base um conhecimento que iria ser adquirido atravs de um curso
terico e prtico com autoridades no assunto. A partir dali ele teria uma
nova colocao, um novo status. Ele estaria finalmente encaixado, mas ao
mesmo tempo estaria desencaixado por continuar ou comear a lidar com
uma questo que vinha na contramo de tudo que era julgado convencional.
Estaria unindo a possibilidade de trabalhar com algo transformador dentro
do que poderamos chamar de seguro. A FUNAI apesar de no ser o
considerado ideal ainda era o que poderia oferecer suporte material e
ideolgico para que aquelas pessoas estivessem atuando com a questo
indgena. A sede de aventura, de mudana, de vontade de transformar estaria
assegurada por aquela instituio, mesmo que apenas de forma terica, j
que nem sempre a realidade se dava desta forma. Mas necessrio que fique
claro que o que contava era mais o fato de estar dentro, de fazer parte, de ser
integrante, enfim de estar inserido em um grupo, do que propriamente o fato
de tudo dar certo, ou ocorrer da forma ideal.
Este idealismo que j estaria presente em alguns e que por
outros foi adquirido no curso ou com o passar do tempo, aparece nas
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motivaes mesmo que camuflado por tantos outros aspectos de forma
bastante latente, seja na vontade de viver de forma aventureira, na vontade
de encontrar um caminho diferente para viver em sociedade.
Neste captulo que ainda encaramos de forma introdutria, ou
seja, ele esta apenas criando base de sustentao para o que ser o cerne da
monografia procuramos apenas deixar claro o que foi o incio da experincia
destas pessoas para que elas viessem a vivenciar todo este processo que
atualmente nosso foco de pesquisa. Para ns era essencial passar por estes
preliminares para que o restante do trabalho tenha um sentido mais amplo e
que possa se aprofundar nas questes centrais com mais tranqilidade. Aos
que ainda vo nos acompanhar prometemos ser mais instigantes.
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CAPTULO 3
A PERCEPO DO CURSO
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Trabalharemos neste captulo o que consideramos o mago
desta monografia. Vemos as coisas desta forma por aqui pretendermos
desenvolver as questes relativas ao curso em si, trabalhando aspectos que
antes ficaram sombreados pelas temticas j desenvolvidas. Para explorar
todos os meandros possveis vamos proceder a diviso entre os
entrevistados: num primeiro momento vamos analisar os entrevistados que
tiveram uma viso mais crtica do curso e num segundo momento vamos
tratar daqueles que de uma forma geral acharam o curso vlido, conferindo a
ele uma importncia fundamental.
Antes de iniciar necessrio esclarecer que este captulo ser
desenvolvido basicamente tendo nas entrevistas o seu principal ponto de
anlise. Isto se deve a algumas questes que j foram devidamente
exploradas na introduo deste trabalho, mas que aqui retomamos para que
no decorrer da argumentao no haja dvida a respeito da opo feita.
Para analisar como se deram os cursos contvamos com duas fontes, a
documentao interna da FUNAI relativa aos cursos que foi mais
amplamente explorada no primeiro captulo e as entrevistas realizadas com
os indigenistas. Aqui neste captulo trabalharemos mais especificamente
com as entrevistas, a partir delas pretendemos desenvolver toda a anlise
relativa viso que os entrevistados tiveram do processo de realizao do
curso bem como da repercusso deste nas suas prprias vidas, na prtica a
ser desenvolvida j como empregados da FUNAI, e na formao ideolgica
adquirida ou complementada a partir daquele momento.
Os entrevistados, exceto dois deles, consideraram o curso bom.
Estes dois candidatos no consideraram a experincia do curso relevante
principalmente por serem pessoas que j tinham uma vivncia anterior com
relao questo indgena. Um deles trabalhou durante quatro anos com os
irmos Villas-Boas tendo neste tempo a oportunidade de ter um amplo
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contato com as comunidades indgenas e considerava essa experincia como
suficiente para que sua prtica nas comunidades fosse satisfatria:
(...) Eu estava bem, eu tava onde eu queria, fazia o que eu
queria. Eu ia para o Xingu, subia rio, descia, no ganhava nada , mas
tambm no gastava nada. Nem pensava em gastar dinheiro ou qualquer
coisa. Dinheiro era uma coisa que no passava pela cabea e ... a veio o 1
curso, comeou a aparecer o 1 curso de indigenismo. A o Orlando falou
para mim Vai, vai fazer. A eu falei no, no vou. Que curso de
indigenismo vai me dar maior prtica do que a que eu tenho aqui? E
continuei trabalhando (...). A ele falou voc tem que fazer e tal, etc. E
por insistncia dele eu fui fazer.(...) Era simplesmente a prpria
argumentao do Orlando para mim. Porque para mim eu no pensava, eu
no era noivo, no era casado, era um homem livre. E ele chegava e me
falava: Rapaz voc precisa ter um recurso regular. Ento eu me recordo
que um dos poucos dinheiros que ele me dava era para comprar cigarro, eu
fumava, e ele falava vai comprar cigarro pra ns a chegava l comprava
cigarro, a gente almoava, eu ia embora para casa almoar, coisas assim.
Uma vez ou outra quando sobrava dinheiro ele me dava alguma coisa eu
assinava um recibo. (entrevistado E)
O outro entrevistado teve uma experincia anterior como
funcionrio do SPI tendo ampla convivncia com a questo j que seu pai
havia feito parte da expedio Roncador-Xingu. Esta experincia lhe valeu
de base para esta atuao futura e lhe conferiu certa autoridade em meio aos
demais tcnicos de indigenismo.
Para eles o curso no acrescentou nada, as matrias no
trouxeram contedos novos, assim como toda a parte terica do curso. O
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curso apenas cumpre o papel proforme de validar uma experincia anterior
de modo a possibilitar a sua entrada na instituio.
Para os candidatos que j tinham estas informaes o concurso
foi a maneira encontrada para continuar realizando este tipo de trabalho s
que agora tendo a remunerao e a estabilidade como base, nem sempre
slida, para prosseguir com a atuao. interessante notar que estes
entrevistados j no curso despontam como lideranas que vo se afirmar no
decorrer do seu histrico dentro da FUNAI. Para eles o curso serve mais
como forma de penetrar em uma estrutura fechada, que possibilitava ter
contato com uma ampla camada de antigos e futuros funcionrios da
instituio e a partir dali fazer um trabalho que procurasse, atravs de uma
atuao articulada em um grupo j existente ou criado, transformar
determinados procedimentos tidos como problemticos. Aqui identificamos
um outro fator que caracterizava os cursos de indigenismo: ele possibilitava
que se travassem contatos e novos recrutamentos para esta ou aquela
posio. O que o curso trazia em si era um momento, que no fosse por
ocasio do concurso era bastante incomum na FUNAI, de conjuno entre
novos e antigos quadros da instituio, em que o que estava em pauta era a
questo indgena sendo discutida nos seus mais diversos aspectos. fruto
disto que muitas vezes o feitio virou contra o feiticeiro j que nem
sempre a proposta oficial era a que acabava predominando na formao
dos novos funcionrios. Por ser a nica atividade que congregava tantos
indigenistas e futuros indigenistas ela tambm se tornava um momento de
disputa de espao entre os diferentes grupos, um exemplo claro disto estaria
na realizao do curso de 1985, que foi planejado e organizado com o
intuito de deixar explcita uma crtica forma como a questo vinha sendo
encaminhada dentro da FUNAI. As pessoas formadas por este curso
posteriormente tiveram dificuldades de serem contratadas, sendo necessria
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uma luta em torno do direito que eles tinham de serem efetivados como
funcionrios da instituio.
(...) Eu acho que esse curso que a gente fez ele, acho que j,
pelo menos na minha cabea, eu acho que a formao no para esse tipo
de prtica que a FUNAI vem propondo at agora, essa prtica do
clientelismo, de uma forma de manipulao total dos ndios. Eu acho que
esse curso seria para comear a repensar, pelo menos foi o que passou,
comear a repensar essas relaes, tanto que eu acho que eu no consigo
me enxergar executando esse tipo de trabalho, fazendo esse tipo de
trabalho, se for para mim executar esse tipo de trabalho jamais eu estaria,
eu no estaria na FUNAI, porque a no tem sentido, porque voc
perpetuar um sistema que no tem como funcionar, no sentido de que os
ndios possam realmente ter um objetivo mais claro, enquanto mudana,
enquanto proposta de dinamismo at cultural na vida deles.(...) Eu acho que
esse curso me deu embasamento para pensar essa questo com uma nova
sensibilidade com outra sensibilidade, ampliando os horizontes e tendo
idia de uma outra possibilidade, eu acho que esse curso foi muito
importante para isso, que ele no formou para fazer isso da continuar
executando aqueles mesmos tipos de trabalho. (entrevistado I)
Para os que no tinham contato com a questo indigenista, o
curso aparece como um momento de iniciao, que gera uma simpatia pela
questo indgena e que confere uma nova qualificao ao indivduo:
(...) Ele me deu possibilidade de ver realmente conceitos de
antropologia, conceitos de lingstica, conceitos da questo histrica do
ndio, ele me deu essa possibilidade, dever conceitos com pessoas realmente
qualificadas passando essas coisas, de lingistica de toda essa questo, A
Berta Ribeiro, voc ter uma aula com a Berta Ribeiro sobre cultura
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material, isso uma coisa fantstica no meu ver, que realmente voc tem
um aprendizado muito grande com essas pessoas. (entrevistado I)
(...) Eu adoro o curso de indigenismo, foi o que eu mais
aprendi, aprendi mais no curso de indigenismo nesses meses poucos do que
o que eu fiz na universidade, do que eu fiz na minha vida eu acho que eu
aprendi mais no curso de indigenismo (...) (entrevistado M)
(...) Me despertou essa simpatia pela questo indgena, por
aquele tipo de situao, no curso mesmo eu comecei a, digamos, a ver com
bons olhos, a ter uma certa afinidade com a coisa . Ento eu destaco isso.
(entrevistado G)
Para os que tinham algum contato anterior com a questo
indgena, o curso serve para complementar, conferir e formalizar um
conhecimento que at ento era desorganizado principalmente por ser fruto
de uma atuao voluntarista.
Eu gostei demais do curso, eu adorei o curso, eu lembro que
eu gostei porque teve noes de antropologia e lingistica, que para mim
foi uma revelao, como era importante esse negcio, eu fiquei
impressionada com as aulas de lingistica, me abriu um mundo.(...) Eu
acho que como curso, como conceitos bsicos ele nos deu conceitos
excelentes de antropologia, uma informao histrica bem boa, uma base
bem boa de formao histrica para gente poder se situar e ento... de
antropologia, lingistica e histria foi muito legal (entrevistado E)
O meu curso de indigenismo foi excelente, foi uma das
melhores coisas que eu fiz na minha vida, porque ele me preparou para...
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antes eu no tinha noo de medicina preventiva, curativa, no tinha, eu
tinha aquilo porque eu tava no mato, apliquei, aprendi a aplicar injeo
porque tava l convivendo, aquela coisa toda... as informaes por exemplo
da legislao, a legislao fundamental que um servidor da FUNAI,
principalmente um chefe de posto, tenha pleno conhecimento do Estatuto do
ndio, e eu como tcnico agrcola entrei para a FUNAI no tinha nenhuma
preparao para isso. Ento eu acho que esses ensinamentos, essas.... o
curso em si ele muito abrangente, noes de antropologia... Eu no
entendia nada, eu tinha ido, fui, gostei, me identifiquei, comecei a trabalhar
e fui aprendendo ali com os ndios (...). (entrevistado J)
.
As turmas dos cursos, como j dissemos, eram bastante
heterogneas, com diversidade de formao, de vivncia (urbana ou rural) e
principalmente de experincia com relao ao trabalho com os ndios. A
mdia de idade era em torno de 20 a 28 anos. No seguinte depoimento temos
apresentada uma das vrias vises sobre as turmas e que se prope a fazer
uma diviso da turma em grupos:
(...) eu poderia dizer que ns tnhamos os seguintes grupos:
aquelas pessoas que nasceram e se criaram na cidade que s ouvia falar do
ndio pela televiso, pelo cinema, ento era uma oportunidade que tinha de
conhecer ndio, ver essa outra coisa desconhecida, ele mais romntico, ele
desperta maior ateno, esse era um grupo. O outro grupo era aquele
grupo que gostaria de estudar, de continuar os estudos mas o mercado de
trabalho na cidade... e tambm a famlia no tinha, ento ele queria
(amealhar) alguns materiais, alguns bens materiais para que depois ele
continuasse a estudar. Existia um outro grupo, isso a minha viso, o meu
entendimento, de que sempre, mesmo que a famlia tivesse determinadas
posses e tudo, mas ele no tinha aquela liberdade, a famlia impe
restries, principalmente quando uma famlia estruturada e que tem bom
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