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As relações entre política indigenista e repressão política a indígenas em Minas Gerais durante a ditadura Juliana Ventura de Souza Fernandes VERSÃO PRELIMINAR NÃO CONCLUÍDA A partir dos anos 1960 vários veículos de imprensa e antropólogos passaram a denunciar as condições de tratamento dos índios e esquemas de favorecimento de grupos econômicos proeminentes. Foi assim que o Ministro do Interior, Albuquerque Lima, criou em 1967 em Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o SPI. Presida pelo Procurador Jader Figueiredo Correia, a Comissão de Inquérito do Ministério do Interior percorreu mais de 16000 quilômetros pelos recônditos do Brasil, visitando aproximadamente 130 Postos Indígenas e entrevistando dezenas de agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) 1 . Como resultado, a equipe produziu um extenso relatório de atividades, contendo inúmeras denúncias de corrupção financeira, relatos de apropriações ilegais de terras indígenas e informes sobre graves violações de direitos humanos praticadas contra diversas etnias. Dentre os crimes denunciados encontram-se assassinatos individuais e coletivos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, usurpação de trabalho indígena, apropriação e desvio de recursos provenientes de seu patrimônio e cárcere privado 2 . Na época, conforme sugere levantamento realizado em jornais, o Ministério do Interior realizou uma coletiva de imprensa para apresentar alguns dos resultados das investigações. Contudo, vários arquivos contendo documentos que serviram de base para o inquérito de Figueiredo foram, de forma criminosa, incendiados pelo Ministério da Agricultura, órgão que estava subordinado ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI) 3 . Acreditava-se que o relatório completo também teria sido perdido dessa maneira. O Relatório Figueiredo, conforme ficou conhecido estava desaparecido desde o final de 1968, quando Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais São Paulo 1 DAVES, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. 2 COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ et all. Povos Indígenas e Ditadura Militar. Subsídios à Comissão Nacional da Verdade, 2012. 3 Ibidem, p.9.

As relações entre política indigenista e repressão ... · do Índio, a FUNAI, ... Antropologia Social), ... organizacional do Serviço de Proteção aos Índios7

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As relações entre política indigenista e repressão política a indígenas em Minas

Gerais durante a ditadura

Juliana Ventura de Souza Fernandes

VERSÃO PRELIMINAR – NÃO CONCLUÍDA

A partir dos anos 1960 vários veículos de imprensa e antropólogos passaram a

denunciar as condições de tratamento dos índios e esquemas de favorecimento de

grupos econômicos proeminentes. Foi assim que o Ministro do Interior, Albuquerque

Lima, criou em 1967 em Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o SPI.

Presida pelo Procurador Jader Figueiredo Correia, a Comissão de Inquérito do

Ministério do Interior percorreu mais de 16000 quilômetros pelos recônditos do Brasil,

visitando aproximadamente 130 Postos Indígenas e entrevistando dezenas de agentes do

Serviço de Proteção ao Índio (SPI)1. Como resultado, a equipe produziu um extenso

relatório de atividades, contendo inúmeras denúncias de corrupção financeira, relatos de

apropriações ilegais de terras indígenas e informes sobre graves violações de direitos

humanos praticadas contra diversas etnias. Dentre os crimes denunciados encontram-se

assassinatos individuais e coletivos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo,

usurpação de trabalho indígena, apropriação e desvio de recursos provenientes de seu

patrimônio e cárcere privado2.

Na época, conforme sugere levantamento realizado em jornais, o Ministério do

Interior realizou uma coletiva de imprensa para apresentar alguns dos resultados das

investigações. Contudo, vários arquivos contendo documentos que serviram de base

para o inquérito de Figueiredo foram, de forma criminosa, incendiados pelo Ministério

da Agricultura, órgão que estava subordinado ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI)3.

Acreditava-se que o relatório completo também teria sido perdido dessa maneira. O

Relatório Figueiredo, conforme ficou conhecido – estava desaparecido desde o final de

1968, quando Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais – São Paulo

1 DAVES, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1978. 2 COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ et all. Povos Indígenas e Ditadura Militar. Subsídios à Comissão

Nacional da Verdade, 2012. 3 Ibidem, p.9.

e a jornalista Laura Capriglione encontraram parte expressiva dele em uma pesquisa ao

acervo do Museu do Índio em 2013.

A “Lista de Indiciados do Relatório Figueiredo” contém os nomes de doze

funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, conforme sugeriram as

investigações de Figueiredo, deveriam ser exonerados e processados. A lista continha o

nome do Major-Aviador Luis Vinhas Neves, Diretor do Serviço de Proteção ao Índio.

Neves havia sido nomeado por Castelo Branco e contra ele pesava, além da acusação da

prática de tortura, a denúncia de extermínio de duas aldeias Pataxós na Bahia, por meio

da inoculação do vírus da varíola4. Outros inúmeros funcionários foram denunciados

pela prática de tortura.

Frente ao contexto denunciado pelo Relatório Figueiredo, a Fundação Nacional

do Índio, a FUNAI, foi criada em 1967 com o propósito de substituir o Serviço de

Proteção aos Índios na tarefa de ofertar “assistência” e “proteção” às populações

indígenas. Sua implantação fez parte de uma estratégia que visava recuperar a imagem

do Estado brasileiro em relação ao problema do indígena, tendo-se em vista a

divulgação dos conflitos que envolviam a invasão de suas terras, os desvios de recursos

por funcionários do SPI e as denúncias de violências sofridas pelos indígenas5,

veiculadas pela imprensa nacional e internacional.

A mudança institucional não alterou, contudo, o estatuto jurídico do indígena,

que permaneceu considerado como “passível de tutela” e “relativamente incapaz”6,

padrão que se perpetuava desde o estabelecido no Código Civil de 1916. O modelo

desenvolvimentista assumido pelo regime ditatorial contribui, em alguma medida, para

esclarecer a continuidade de práticas e métodos de gestão adotados pelo SPI,

exemplificada pelo investimento inicial da FUNAI em reequipar antigos Postos

4 Ibidem, p. 12. 5 BIGIO, Elias dos Santos. A ação indigenista brasileira sob a influência militar e da Nova República

(1967-1990). Revistas de Estudos e Pesquisas – FUNAI, v. 4, n. 2, p. 13-93, 2007 e CORRÊA, José

Gabriel Silveira. Tutela & Desenvolvimento/Tutelando o Desenvolvimento: questões quanto à

administração do trabalho indígena na Fundação Nacional do Índio. 2008. 274f. Tese (Doutorado em

Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. 6 CORRÊA, José Gabriel Silveira. A proteção que faltava: o Reformatório Agrícola Indígena Krenak e a

administração estatal dos índios. Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v. 61, p. 129-146, 2003.

Indígenas (PI), órgãos de administração local ou regionalizados previstos pela estrutura

organizacional do Serviço de Proteção aos Índios7.

Dentre as propostas de trabalho apresentadas pela FUNAI no final da década de

1960, alguns Postos receberam destaque, com previsão de implantação de projetos

específicos, sobretudo para aqueles que serviriam como “suporte” às atividades estatais

de “ocupação” da Amazônia. Tratam-se aqui das áreas de execução das grandes obras

de infraestrutura, das rodovias, de ampliação da exploração mineração e da

agroindústria, sobretudo no Norte e Centro-Oeste do país.

O governo ditatorial buscando enfrentar os problemas econômicos existentes no

Brasil dos anos 1960 – principalmente a baixa capacidade de exportação do país e as

deficiências no sistema nacional de financiamento, que geravam efeitos negativos sobre

as finanças públicas e inflação, implantou uma série de reformas institucionais. Dentre

elas destacam-se, como discute Wilson Cano, “o amplo espectro de incentivos fiscais e

financeiros que passaram a ser concedidos às exportações e ao mercado de capitais”8.

Um dos setores mais beneficiados foi o agropecuário, com a implantação de um novo

sistema de crédito rural especialmente voltado para os setores exportadores

agroindustriais.

A equipe de Delfim Netto (1969-1974) deu prioridade à agricultura por vários

motivos. O primeiro deles referia-se ao elevado percentual que a alimentação

representava no custo de vida da população brasileira. O problema da inflação tenderia a

perdurar se a produção agrícola não acompanhasse minimamente a crescente demanda

gerada pelas rendas reais urbanas mais altas e pelo crescimento da população. Em

segundo lugar, dentro desse projeto, o Brasil precisava aumentar rapidamente suas

exportações e os produtos agrícolas seriam aqueles que mais facilmente poderiam ser

exportados em curto prazo. Por fim, o aumento da renda rural tenderia a conter o êxodo

para as cidades, cuja infraestrutura já estava sobrecarregada9.

7 CORRÊA, José Gabriel Silveira. Tutela & Desenvolvimento/Tutelando o Desenvolvimento: questões

quanto à administração do trabalho indígena na Fundação Nacional do Índio. 2008. 274f. Tese

(Doutorado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu

Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. 8 CANO, Wilson. Milagre Brasileiro: Antecedentes e Principais Consequências Econômicas. In 1964-

2004. 40 anos do Golpe; Ditadura Militar e Resistência no Brasil. 2004, Rio de Janeiro. Anais. Rio de

Janeiro, 7 Letras e FAPERJ, 2004. p. 226- 238. (p. 230). 9 SKIDMORE, Thomas. BRASIL: de Castelo e Tancredo (1964-1985). São Paulo: Paz e Terra, 1988.

A expansão da produção agrícola se vez no contexto da chamada modernização

conservadora a partir da transferência de contingentes populacionais de regiões rurais

pobres para o Centro-Oeste e parte da Amazônia10. A chegada desses novos colonos

esteve associada a conflitos com as populações indígenas locais, que resultaram na

expulsão dessas comunidades, em migrações forçadas e mortes11, como já observava em

1978 Shelton Davis em Vítimas do Milagre.

A política indigenista dialogou com essa perspectiva. Poderíamos lembrar, por

exemplo, que o primeiro curso de treinamento de técnicos em indigenismo realizado em

1970 pela FUNAI incluía conteúdos relativos à assimilação dos indígenas a dita cultura

nacional pela via da inserção no mercado de mão de obra rural ou na sua contenção

como campesinato. (Antonio Carlos de Souza Lima)

O uso do trabalho agrícola indígena e a implantação de ações de

“desenvolvimento econômico” foram bastante comuns, mesmo antes do período

ditatorial. Contudo, de acordo com João Pacheco de Oliveira, “a ideia de integração do

índio mediante a preservação de sua condição camponesa, que parece presente em

vários artigos do Estatuto do Índio é muito mais claramente realizada pela atuação da

FUNAI que pelo SPI” (1998). Essa foi uma das formas primordiais do exercício da

tutela indígena.

No caso de Minas Gerais, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), incapaz de

conter os conflitos fundiários entre indígenas e fazendeiros, já havia solicitado o auxílio

da Polícia Militar do estado, antes mesmo da criação da FUNAI, em meados da década

de 1960. Formalizado convênio entre os governos federal e estadual, um Destacamento

da Polícia foi instalado no interior do território indígena. Nos discursos oficiais, a

medida estaria associada à necessidade de “proteção” do indígena, uma vez que

“famintos” e “alcoolizados”, acabavam praticando assaltos e pilhagens nas fazendas da

10 CANO, Wilson. Milagre Brasileiro: Antecedentes e Principais Consequências Econômicas. In 1964-

2004. 40 anos do Golpe; Ditadura Militar e Resistência no Brasil. 2004, Rio de Janeiro. Anais. Rio de

Janeiro, 7 Letras e FAPERJ, 2004. p. 226- 238. (p. 233). 11 É o caso dos Xavantes,e Karajás, por exemplo, tal como analisado por Shelton Davis em Vítimas do

Milagre. DAVES, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1978.

região12. As primeiras atividades da PM mineira remontam ao ano de 1969 e tratam da

transferência de indígenas de diferentes etnias para o Posto Indígena Guido Maliere13

A atuação da AJMB, o órgão responsável pela administração dos Postos, agora

sob o comando da PM, buscou logo seu principal objetivo: por fim aos atritos entre

índios e não-índios nas áreas indígenas e seu entorno, que haviam se disseminado pela

década de 1960 com invasões e ataques. Para realizar esta espécie de (re)pacificação

(léxico que já vinha do repertório do SPI) a chefia da Ajudância passou a se ater a dois

eixos de ação: o controle das áreas e populações sob sua administração e o

desenvolvimento de atividades (econômicas), visando educar e manter os índios no

trabalho”14. (Aqui é interessante observar as tensões desse exercício tutelar entre ação

de cuidado e ao mesmo tempo pedagógica, que dialoga com tradições outras no trato do

indígena como missionárias).

O trabalho agrícola tinha como intuito garantir a educação/recuperação dos

indígenas que apresentavam o que se considerava “mau comportamento” (os índios

ditos ócio, alcoolismo) e também garantir a auto-suficiência dos postos indígenas

através da transformação dos tutelados em produtores agrícolas e dos postos em

unidades economicamente produtivas.

O exercício da tutela, que no caso de Minas Gerais foi realizado ao menos de

1967 a 1972 em estreita associação da FUNAI com a PM, pode ser definido como o

poder do Estado de circunscrever espaços e identificar e delimitar segmentos sociais

considerados desprovidos das capacidades plenas necessárias a dita vida cívica. Por esta

incapacidade relativa ou hipossuficiência, conforme o linguajar jurídico da época, esses

segmentos sociais foram considerados carentes de uma proteção especial e de uma

mediação ‘pedagógica’ que lhes compensasse a posição relativamente inferior em sua

inserção na comunidade política15.

Em suas atividades de “atração”, o poder tutelar criava postos indígenas com a

função de servirem de pontos de agregação (e porque não de segregação?), controlando

12 FREITAS, Ednaldo Bezerra. A Guarda Rural Indígena – GRIN: Aspectos da Militarização da Política

Indigenista no Brasil. In: Simpósio Nacional de História da ANPUH, XXVI, 2011, São Paulo. Anais

Eletrônicos do XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH. Disponível em:

http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011/TextoEdinaldoBF.pdf. 13 A ORDEM A SE PRESERVAR 14 IDEM. 15 SOUZA-LIMA, Antonio Carlos. O exercício da tutela sobre os povos indígenas: considerações para o

entendimento das políticas indigenistas no Brasil contemporâneo. Revista de Antropologia. 2012.

e limitando sua circulação. Ao mesmo tempo, incluía coletividades e terras numa rede

nacional de vigilância e controle a partir de um centro de poder. A denominação aqui

não nos parece fortuita. Posto faz referência ao sistema hierárquico e à ação militar.

Nesse sentido, é interessante observar que “em sociedades surgidas de conquistas (no

sentido da conquista do território), como a nossa, a relação entre o controle de recursos

(primordialmente a terra) nos territórios conquistados ou unificados e o status que esses

grupos sociais que estavam presentes assumirão nessa sociedade são sempre um questão

para o Estado. Lembramos de Foucault (Segurança, Território e População) que destaca

que a estratégia de segmentação, via hierarquização e classificação torna-se uma das

principais formas de exercício de controle do Estado, já que de uma lado circunscreve

populações e de outro as integra na nação.

O paradoxo da tutela aqui, conforme discute Antonio de Souza Lima é de pra

que as populações indígenas tenham acesso a algum direito ou proteção básica foi a

autenticação da sua incapacidade para se tornarem cidadãos, com a necessidade de uma

agência estatal capaz de governá-los para isso representando-os politicamente” (p.

802).

Já no início da atuação da PM, em um relatório endereçado à FUNAI, o Capitão

da Polícia Militar, Manoel Pinheiro, enviava notícias sobre os “bem-sucedidos” feitos

da vigilância policial nas aldeias e sugeria que se criasse uma Guarda Indígena

Nacional, custeada pela FUNAI e treinada pela PM. Iniciaram-se discussões envolvendo

o órgão indigenista, o Governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro e o Comandante da

Polícia Militar, Coronel José Ortiga. O sucesso dessas negociações conduziu à

organização da GRIN.

A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi formalmente criada pela Portaria nº. 231

da Presidência da FUNAI, em 25 de setembro de 1969, tendo como principal objetivo a

constituição de uma milícia destinada ao policiamento das áreas reservadas aos

indígenas. Possuía também entre seus propósitos a manutenção da ordem interna nas

aldeias, a repressão dos deslocamentos de indígenas, a imposição de trabalhos e a

denúncia de indígenas considerados infratores a destacamentos da polícia16.

Capitão Pinheiro passou cerca de seis meses percorrendo aldeias e alistando

índios. Como critérios de escolha dos componentes da Guarda, levou em consideração a

16 CORREA, 2003. Op. Cit.

“capacidade de liderança” do indígena, seus laços familiares e costumes apropriados,

como recusa ao uso de bebidas alcoólicas. Quanto à seleção das etnias, seu critério foi

priorizar áreas indígenas em que houvesse conflitos fundiários mais contundentes. Os

futuros guardas indígenas receberiam fardamentos, armas e salário mensal,

correspondente a um salário mínimo regional, despendido pela FUNAI17.

A solenidade de formatura da primeira turma da GRIN aconteceu no Batalhão

Voluntários da Pátria, no Bairro Prado, Belo Horizonte, em cinco de fevereiro de 1970.

Estiveram presentes autoridades estaduais e federais, como o Ministro do Interior,

General José Costa Cavalcanti, o Governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, o Vice-

Presidente do governo Castelo Branco, José Maria Alkmin, o Presidente da FUNAI,

José Queirós Campos, o Comandante da 4ª Divisão de Infantaria, General Gentil

Marcondes, Secretários de Governo e o Comandante da Polícia Militar, Coronel José

Ortiga18.

Todas essas autoridades presenciaram o desfile de 84 indígenas de diferentes

etnias que, uniformizados, demonstravam seus recentes aprendizados em técnicas de

imobilização e torturas, notadamente, o pau-de-arara. Enquanto isso, seu idealizador,

Capitão Manoel Pinheiro, esclarecia aos presentes que o principal propósito da Guarda

Rural Indígena seria introduzir “ordem” e “disciplina” entre os índios. Após sua

implantação, a GRIN passou a patrulhar as aldeias de forma sistemática e aqueles

indígenas considerados “perigosos” sofreriam detenção.

Na prática, já em junho de 1970, o jornal “O Estado de São Paulo” noticiava que

“a apuração de atos de espancamento, arbitrariedade e insubordinação cometidos pela

recém-criada Guarda Indígena” seria o primeiro problema enfrentado pelo general

Bandeira de Melo, que logo assumiria a presidência da FUNAI. Antropólogos (CIMI)

denunciavam a implantação de um sistema policialesco no meio indígena, que difundiu

amplamente métodos de espionagem e delações19. Entretanto, como aborda o trabalho

de José Gabriel Correa, a FUNAI chegou a considerar a estratégia um sucesso, já que

17 FREITAS, 2011. Op. Cit. 18 FOLHA DE SÃO PAULO. Como a ditadura ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena.

Ilustríssima. 11/11/2012. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2012/11/1182605-como-a-ditadura-ensinou-tecnicas-de-

tortura-a-guarda-rural-indigena.shtml 19 FREITAS, 2011. Op. Cit.

“estimulava o trabalho indígena, combatendo o ócio”20. A GRIN funcionaria até 1974,

tendo uma atuação decisiva para a implantação e manutenção de outro dispositivo da

política de repressão ao indígena: o Reformatório Agrícola Indígena Krenak.

O Reformatório Krenak, paradigma de programa de “recuperação” dos índios,

destinava-se, principalmente, aos indígenas que opunham resistência às ordens dos

administradores de aldeias ou que fossem considerados “desajustados socialmente”: os

que se envolviam em “desordens”, “ócio”, “vadiagem”, “embriaguez” e prática sexual

“inapropriada”. A tarefa da GRIN consistia principalmente em garantir que os indígenas

encarcerados seguissem a orientação do Reformatório: “fazer com que o índio visto e

tratado como problema viesse a se reeducar e ser um índio bom”21.

Enquanto a Guarda Rural Indígena foi composta por indígenas considerados de

“excepcional comportamento”, os indígenas avaliados como “delinquentes” foram

mantidos no Reformatório em regime de cárcere privado, sofrendo torturas e

confinamento em “solitária”, além de lhes serem impostas atividades agrícolas forçadas

realizadas sob forte controle da GRIN e da Polícia Militar. No Krenak, os indígenas

eram também impedidos de falar em sua própria língua e caso insistissem, recebiam

punições. Muitos não conheciam o português. Karajá, Maxakali, Pataxó, Xerente e os

próprios Krenak estão entre as etnias que tiveram membros presos no Reformatório

entre 1969-72 (94 pessoas).

A primeira vista, um recurso dessa magnitude de violência pode parecer uma

excepcionalidade nesse tipo de política tutelar aplicada às populações indígenas.

Porém, vale lembrar que o PIGM além de abrigar o Reformatório foi um dos pontos de

atração e aldeamento comumente utilizados em Minas Gerais durante a ditadura para

conter populações indígenas de diferentes etnias. Embora determinadas práticas

violentas, como a tortura, tenha se destinado aos índios propriamente presos, não se

pode dizer que práticas da disciplina militar e o trabalho agrícola forçado, por exemplo,

não fossem amplamente utilizados em relação a todos os aldeados. “Nos quase quatro

anos de funcionamento do reformatório concomitante ao do posto indígena, as duas

instituições que ‘deveriam’ respectivamente cuidar da reeducação dos índios

20 FREITAS, 2011. Op. Cit.

21 CORREA, 2003. Op. Cit.

delinquentes e prestar assistência a eles estiveram sob uma única orientação e

administração” (p. 129).

A questão em torno de que tipo de atividade era desenvolvido pela AJMB, se

policial ou assistencial, precisa ser complexificada. Apesar da execução das ações

tutelares terem estado a cargo de policiais militares e as tarefas incluirem atividades de

controle e vigilância, não se pode reduzir esta atuação a uma mera administração

policial dos índios. Documentos da época dão conta de que a polícia militar buscou

centrar e fundamentar sua ação em diretrizes e exemplos existentes na ação tutelar

estatal como um todo. O sargento da PM Antonio Vicente Segundo, por exemplo, que

foi chefe do PIGM e do reformatório, se interessou em participar do curso de técnico em

indigenismo da FUNAI em 1971. Ao mesmo tempo, a própria atividade tutelar

implicava ‘tarefas’ semelhantes a realizada pela polícia demonstrando a ambiguidade

presente na ação tutelar de proteger e punir indígenas – não apenas na sua dimensão

estatal, mas em todas as instituições que a exerceram.

A implantação da Guarda Rural Indígena trouxe um impacto relevante sobre a

organização social das comunidades indígenas localizadas em Minas Gerais, dados os

fluxos migratórios que incluíam povos do CO e NE. Poderíamos sugerir que a

implantação da Guarda significou uma espécie de substituição dos ritos tradicionais,

específicos entre si para cada uma delas, dessas comunidades pelos ritos militares,

marcados pela perspectiva de uma nova hierarquia e destinação de violência aos

“parentes” que provavelmente não teria lugar sem essa experiência intercultural, ao

menos não dessa forma22 (CITAR A NOTA).

No caso dos indígenas localizados no território mineiro no contexto da ditadura,

os parâmetros de autoridade se subverteram decisivamente. O corpo “sede” dessa

autoridade foi muitas vezes assumido por um elemento externo da comunidade – um

militar. Essa subversão esteve não apenas relacionada à suspensão da possibilidade de

que as práticas culturais indígenas fossem desenvolvidas no interior dos Postos, o que

caracteriza uma violência simbólica, mas especialmente ao emprego de uma violência

corporal sistemática, que violou gravemente direitos humanos fundamentais dos

22 Tal como Marshall Sahlins propôs para o caso da comunidade havaiana. Cf. SAHLINS, Marshall.

Metáforas Históricas e Realidades Míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (Conferência de 1981).

indígenas. O aspecto talvez mais significativo dessa experiência de violência se refere

ao fato dela ter sido aplicada, inúmeras vezes, por membros das próprias etnias.

A respeito dos impactos sociais e culturais da GRIN para as etnias indígenas,

Alceu Mariz, funcionário da FUNAI à época de sua implantação, declarou:

“Ele (Manoel Pinheiro) era da Polícia Militar, mas trouxe essa idéia (de criação

da Guarda Rural Indígena) para a FUNAI, no início da década de 1970 e

conseguiu implantar, por influências. Então a idéia era formar militares

indígenas. Foi uma experiência desastrosa, das mais infelizes porque subverteu

toda a ordem social do grupo, elementos que eram escolhidos por critérios que

nada tinham a ver com os critérios da organização social do grupo e já não

respeitavam ninguém, não respeitavam os líderes, ele mesmo se tornava um

líder, imbuído de autoridade. Evidentemente, isso trouxe violência, levou a uma

violência interna crescente.

[...] Tinha (prisão para índio). A área do Krenak, que tinha sido inclusive uma

doação da própria Polícia Militar, lá na região de Carmésia, a Fazenda Guarani,

virou prisão. Quando eu entrei na FUNAI, a Fazenda Guarani era uma área-

prisão, uma masmorra. Era horrível!”23.

Em depoimento ao Ministério Público Federal – Seção Minas Gerais, Sônia

Krenak, que se tornou cozinheira na Fazenda Guarani, relata:

“E: O capitão Pinheiro é que mandou vocês para a Guarani? Sônia: É. E os

Maxakalis também. Ele que “saiu” os índios [...]. E: Mas por que o capitão

Pinheiro fazia isso? Sônia: O Capitão Pinheiro fazia isso por causa dos

fazendeiros. Acho que ele ganhava dos fazendeiros. Os fazendeiros arranjava

advogado paga isso, pagava aquilo e ele ataca nós. Eles tinham tudo polícia!

Nós era pouco. Onde atacava morria um bocado [...]. Ali morreu Chico, morreu

um menino do (?). [...] E: E como era lá na Fazenda Guarani? Acho que os

índios achavam muito frio. Não tinha peixe, não tinha nada para comer. Era só

banana. Se eles trazia arroz nos comia. Se eles não trazia arroz, nos comia

banana. Nos passamos aperto. Tinha uma cadeião; você tá vendo a casa caída?

Tinha um cadeião. Se fugiu, sofria na mão deles. Era assim. Eles queriam fazer

coisa para judiar de índio. Quem saía fora, eles prendiam quem bebia”24.

Para que se evidencie o caráter não excepcional desse tipo de prática, retomo um

documento encontrado na Assessoria de Segurança e Informação, a ASI da FUNAI. Em

23 Depoimento de Alceu Cotia Mariz. 2002. Revista da FUNAI.

III. 24 Depoimento fornecido por Sônia Krenak ao Ministério Público de Minas Gerais. Inquérito Civil

Público nº 1.22.000.000929/2013-49. Ministério Público Federal. Procuradoria da República em Minas

Gerais.

06 de setembro de 1977, a ASI da FUNAI envia um Pedido de Busca ao seu

Departamento Geral de Operações. Trata-se de uma solicitação de informações a

respeito de conflitos de terra envolvendo Xacriabá e fazendeiros em Itacarambi, no

Norte de Minas. O documento questiona a veracidade de informações recebidas a

respeito desse conflito, com destaque para a afirmação “de que as pessoas que tem

tomado a iniciativa de defender os caboclos são taxados de comunistas e agitadores,

como era o caso do padre alemão Geraldo Nalbach”.

Como resposta ao chefe da ASI, solicita-se a “demarcação da reserva indígena

mesmo considerando que os remanescentes estão já bastante distanciados de suas

origens pré-colombianas” como forma de minimizar conflitos e se anexa uma carta-

relatório do antropólogo Romeu Sabará da Silva, que havia permanecido na área, para

Ney Land em dezembro de 1974. Romeu Sabará da Silva informa que “para o Delegado

de Segurança Pública parece ter-se tornado inconveniente a nossa participação porque a

equipe possui um espírito critico que rejeitava suas tentativas de manobrar conosco para

seus próprios fins”.

Silva também afirma que a CAUÊ, um grupo ligado à industrialização do

calcário, possui uma fazenda agro-pastorial, dentro da antiga área dos Xacriabá,

“montada dentro dos moldes das mais perfeitas e modernas empresas”. Além deste,

outros grupos importantes atuam na área, cujos nomes não podemos levantar, ligados à

criação de gado e outros ligados à exploração de madeira. Constituem eles atualmente,

afirma,problema mais sério que os pequenos posseiros devido ao poder econômico que

representam aliado a um poder político não menos expressivo envolvendo governo do

Estado, RURALMINAS, INCRA, SUDENE.

Ao fim, ele destaque que “em face da previsão de desencadeamento de violência

é que desaconselhamos utilizar a GRIN. (....) O delegado que muitas vezes condenou a

GRIN pensou nesta solução para a área”.

A partir desse relato é interessante observar a possível existência de articulações

envolvendo poder público e diferentes agências de Estado, com a anuência da Delegacia

de Segurança Pública. Nesse caso, embora os Xacriabá e seu território estivem sob

ameaça, foi aventada, se o antropólogo estiver correto, a possibilidade de que a GRIN

atuasse na resolução dos conflitos nos levando a pergunta “repressão para quem”?

Também não deixa de chamar atenção que embora o antropólogo rechace a mobilização

da GRIN nessa ação, o fato dele incluí-la em sua argumentação já nos fornece uma ideia

a respeito de seu lugar social e de alguma possibilidade de legitimação entre o meio

indigenista mais proprimamente dito.

Bem, para concluir, gostaríamos de destacar que a forma de exercício tutelar

durante a ditadura se fez em linhas de continuidade, que incluíam a rotulação

genericamente coletividades, adscrevendo-as a espaços e práticas distintos dos seus

originais e num novo trabalho de semiotização, como define Antonio de Souza Lima,

operado agora por um agência de governo voltada especificamente para o exercício

tutelar que reconhece e enquadra entre índios e não índios a partir de categorias

próprias ao Estado.

Precisamos considerar que a experiência de Minas Gerais em relação à tutela

indígena na ditadura não é sincronicamente particular quando pensamos nos projetos da

ditadura aplicados a outras áreas, e que diacronicamente também dialogo com outras

práticas de tutela indígena com outros aplicados principalmente no período republicano

(o que impõe complexidades a trabalho de um historiador preocupado com esse recorte

temporal).

Contudo, podemos formular a hipótese de que a experiência de Minas seja

emblemática no sentido de conferir à tutela indígena o caráter militar presente e

geralmente negligenciado na análise das sociedades contratualistas, como sugerido por

Foucault. Nesse sentido, a força militar não apenas territorializa, fixa em unidades

administrativas e impõe um controle centralizado a redes sociais mas também fixa

formas disciplinares particulares. Nesse sentido, o exercício de poder tutelar integra

elementos das sociedades de soberania quanto das disciplinares, difundido em

agências e na malha administrativa criando experiência limite como a GRIN e o

Reformatório.

Como projeto de Brasil, essas práticas discutidas, contribuíram uma forma de

integração das populações indígenas proposta a partir de sua redução a um

campesinato rural, monetarizando essas populações, destituindo suas especificidades

culturais e atribuindo a elas a genérica categoria de pobres/carentes de intervenção do

estado. Se essa prática foi recorrente anteiormente, a associação entre

desenvolvimentismo e ditadura lhe ofereceu contornos particulares, que contribuíram

para o lugar assujeitamento do indígena de mero destinatário de política pública

perpetuando e reatulizando cenários da violação de direitos humanos. Mas isso, no

entanto, não significativa dizer que as diferentes etnias indígenas não tenham resistido

ou resignificado de diferentes formas essas tentativas de imposição estatal.