Narração – Tema Livre
Lara estava irada. Sua cólera emanava por todo o ambiente, tornando-o nocivo.
O medo de perguntar a causa de tanta ira me impedia até de ter um simples contato
visual com ela. Que curioso sentir medo da irmã mais nova. Respirei fundo e engoli
seco.
- O que houve? – Minha voz trêmula parecia inaudível.
- Eu odeio, ODEIO, quando eu ligo para o celular de uma pessoa inúmeras
vezes, ela não atende a ligação e me manda uma mensagem: “Oi, você me ligou?” –
Lara explicava a situação com fúria nos olhos – Ora, se há uma ligação perdida minha,
óbvio que eu liguei!
Fiquei encarando Lara, incrédula. Como um motivo tão banal poderia despertar
tanta raiva em uma pessoa? O fato era inacreditável de tão extraordinário. Mas guerras
já começaram por menos. Decidi deixar Lara, e toda sua fúria, isolada no quarto e saí de
casa para um passeio no parque.
O fim de tarde úmido era convidativo para um passeio descontraído e sem
preocupações. Peguei-me pensando em Lara e suas raivas, e, oh, como ela se chateava
por coisas tão simples! Sua energia para odiar pessoas que não atendem ligações e
mandam mensagens poderia ser convertida em energia para terminar aqueles inúmeros
trabalhos de fim de semestre que ela tanto reclamava. Trabalhos de fim de semestre. A
frase ecoava na minha cabeça. Não havia terminado o protótipo do relógio para a aula
de Tridimensional. Era o trabalho que custava minhas férias.
O medo e ansiedade tomaram conta de mim. Havia esquecido completamente
minhas responsabilidades. Negligenciei minhas prioridades. Ficaria sem viajar por um
erro meu? Decidi que não. O prazo final do trabalho era o dia seguinte. Como pude ser
irresponsável a esse ponto? Faltavam alguns materiais para terminar o trabalho. Liguei
para minha mãe para implorar que ela comprasse tudo o que eu precisaria e trouxesse
assim que voltasse do trabalho. Ela não atendeu. Liguei de novo, na vã esperança de que
se ela não atendeu na primeira, com certeza iria atender na segunda. De novo, não
atendeu. Liguei três, quatro, cinco vezes. De repente, me vi com um registro de 23
chamadas realizadas e nenhuma com êxito. O que raios aquele mulher poderia estar
fazendo? Uma ligação de sua filha não era suficiente para parar todos os afazeres e
dedicar atenção à sua primogênita? A raiva substituía a ansiedade e me consumia. Pelos
deuses, por que essa mulher tem celular se não atende as ligações? Meu celular faz um
som de notificação. Nova mensagem.
- Oi querida, você me ligou? – Minha mãe perguntou na mensagem.
- Tem ligação minha perdida no seu celular? – Respondi, de forma ríspida.
- Tem... – Mamãe respondeu.
- Então eu liguei.
A frustração por não ter sido prioridade na lista de ligações de minha mãe me
deixou desanimada e furiosa. Lembrei-me da Lara e seu surto por não ter sido atendida
por sabe lá Deus quem ela estava ligando. Lembrei-me também do fato de ter achado
bobagem minha irmã mais nova ter se chateado por tão pouco. De repente, não era tão
pouco assim. Talvez guerras não tenham começado exatamente por tão menos.