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Antnio Carlos Miguel
Artur Xexo
Joo Mximo
Luiz Antnio Giron
ORGANIZAO E PREFCIO
Ricardo Cravo Albin
BPMA A L M A D O B R A S I L
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OS 40 ANOSESSENCIAIS
DA MPB
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O livro MPB - A Alma do Brasil, editado pelo Instituto Cravo Albin
uma publicao singular. Destaca a efervescncia cultural que precedeu
as ltimas quatro dcadas da Msica Popular Brasileira, direcionando o
olhar para a importncia das razes que consolidaram o movimento.
A Financiadora de Estudos e Projetos FINEP, empresa vinculada ao Mi-nistrio da Cincia e Tecnologia, h mais de 40 anos dedica-se a apoiar
estudos e promover a inovao no Pas em todos os segmentos. Preocu-
pada tambm com a preservao e disseminao da cultura brasileira,
apoia esta iniciativa como reconhecimento da importncia do patamar
que a MPB conquistou no Brasil e no mundo.
Luis Manuel Rebelo FernandesPresidente da FINEP
(Financiadora de Estudos e Projetos)
A publicao ressalta no apenas estes ltimos 40 anos, perodo que coincide com a prpria exis-
tncia da FINEP, mas a ampla introduo de Ricardo Cravo Albin traa o nascimento dos gneros e
compositores, desde as primeiras manifestaes de miscigenao, de transculturao, e de evoluo
que fundamentaram nosso swing, numa caminhada potica pelas casas das tias, pela poca de ouro
do rdio, marcada no apenas pelo choro como tambm pelo jongo.
Os textos de Antnio Carlos Miguel, Artur Xexo, Joo Mximo e Luiz Antnio Giron contextualizam
as quatro dcadas e iluminam a trajetria que levaria pujana da msica brasileira do sculo XX,
marcado pelo desabrochar da Bossa Nova, movimento que acabou por conquistar o mundo.
O livro no basta ser lido. Trata-se de um testemunho crucial para o entendimento da histria do
Brasil contada em tons e semitons que marcaram a cultura brasileira. Por isso deve ser apreciado e
preservado. Como um patrimnio. E no h patrimnio maior do que o sentido de identidade e per-
tencimento que nos proporcionado pela cultura nacional.
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FENMENOCULTURAL
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Dos fenmenos culturais que marcaram a histria do Brasil no sculo
XX, a msica e o futebol se integraram to intensamente formao docarter do brasileiro que hoje difcil conceber nossa identidade sem
levar em conta esses dois produtos de enorme valor agregado: nos-
sos craques e a MPB. Se estamos deixando de lado o velho complexo
de vira-latas, diagnosticado por Nelson Rodrigues, parcialmente em
virtude das conquistas esportivas futebolsticas e, sobretudo, pela cons-
tituio desse imenso e riqussimo patrimnio de nossa cultura que amsica popular. A MPB se tornou, mesmo, um gnero musical que, em
sua grande variedade de ritmos, vertentes e misturas, a marca registra-
da do povo que a gerou, um povo que no resistiu a misturar gentica
e, culturalmente, o velho e o novo mundo, tendo como resultado uma
msica que no cessa de maravilhar o planeta. Dos EUA ao Japo, a MPB
continua a ser sinnimo de boa msica: assim como somos finos na bola,
Ruy Garcia MarquesDiretor Presidente da Faperj
(Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)
somos craques em criao musical.
Temos, assim, o dever no apenas de preservar a histria dessa msica, mas de investigar com maior
afinco a sua complexa constituio ao longo das dcadas do sculo XX. Muitas histrias precisam
ser contadas, fatos esclarecidos, para que possamos entender a profundidade de seu enraizamento
na cultura. H bastante tempo, o pesquisador e musiclogo Ricardo Cravo Albin vem se dedicando a
nos mostrar algumas das muitas pginas dessa histria. A presente edio prova disso: alm de ri-
camente ilustrada, ela traz, nas preciosas contribuies de Antonio Carlos Miguel, Artur Xexo, Joo
Mximo e Luiz Antnio Giron, um excelente panorama dos vrios movimentos da MPB.
A FAPERJ, que tem entre suas metas o apoio investigao e divulgao de nossa cultura, se sente
honrada em ter podido contribuir para mais esse belo produto do Instituto Cultural Cravo Albin. Es-
peramos que, na esteira desse livro, muitos outros possam vir luz, ampliando o nosso conhecimento
sobre aquilo que no apenas faz parte de nossa alma, mas que, principalmente, no deixa nunca de
nos encantar.
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...Porque o tempo,
o tempo no pra...
Cazuza
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BPMA A L M A D O B R A S I L
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AGRADECIMENTOS 271PARCEIROS DO ICCA 273
O SOM DA MPB NESSES 40 ANOS
Dos anos 60 a 70 277Dos anos 80 a 2000 281
CD1 - Msicas, Intrpretes e Compositores 284CD2 - Msicas, Intrpretes e Compositores 286
Verso em Ingls / English Version
PREAMBLE FOR THE LAST 40 YEARSTHAT MADE MPB SHINE 210
FROM FESTIVALS TO THE RETURNOF SAMBA 233
STARS SHINE, ROCK COMES OUT 240
MUSIC BEYOND (AND DESPITE)
MARKETING 248
THE TURNING OF THE IMPASSE 258
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PREMBULO PARA OS LTIMOS 40 ANOSQUE FIZERAM RELUZIR A MPB
por Ricardo Cravo Albin
uma longa e quase sempre bela histria a da msica popular do Brasil.
Este livro perfila dcada a dcada os ltimos quarenta anos da nossa
MPB nas vises pessoais de quatro crticos e jornalistas muito atentos,
sensveis seduo que ela pode provocar ao longo de cada decnio.
No toa, Joo Mximo, Artur Xexo, Antnio Carlos Miguel e Luiz Antnio Giron foram convidados
a garimpar seus conhecimentos crtico-evocativos e agreg-los a essa tentativa de desfiar mais umavez a histria de uma paixo nacional.
Quatro lustros situados entre 1967 e 2007 que acompanham a experincia bem sucedida dos 40
anos da FINEP. Instituio de pesquisa que comeou a investir entre 1967-68 com uma originalidade:
injetar recursos no primeiro grande sonho do disco independente neste pas, o do produtor Marcos
Pereira. Meu amigo Marcos Pereira pensou grande, agiu grande, gravou grande.
A este livro logo se somou como parceiro a FAPERJ, que vem acompanhando o Instituto desde o seu
comeo e a quem o ICCA deve no apenas o incentivo acadmico como a solidariedade pontual no trata-
mento de seus multiplos acervos. Finalmente e graas ao assentimento geral dos parceiros a Funda-
o Alexandre de Gusmo (MRE) agregou-se a este livro, fazendo-o reluzir com os textos em ingls.
Espero que possa ser de alguma utilidade a introduo aos quatro belos
textos que o leitor ter a seguir. At porque como costumo repetir
com persistncia nesses ltimos 45 anos de atuao na historiografia da
MPB nenhuma histria nasce do nada. Tudo se intercomunica com os
canais do tempo, fortificando as razes que permitem as sequncias.
E consequncias.Banda de Pifanos de Caruar
A Bandinha Vai Tocar1980 - Marcus Pereira
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A meu ver, a histria da msica popular brasileira nasce no exato momento
em que, numa senzala negra qualquer, os ndios comeam a acompanhar
as mesmas palmas dos negros cativos e os colonizadores brancos se dei-
xam penetrar pela magia do cantarolar das negras de formas curvilneas.Esse amlgama, maturado sensual e lentamente por mais de quatro scu-
los, daria uma resultante definida h mais de cem anos, quando criado,
no Rio, o choro e quando surgem o maxixe, o frevo e o samba, alm do
frevo no Recife.
Da para c, esses ltimos cento e tantos anos, abertos tanto pela Abolioda Escravatura (1888) quanto pela Proclamao da Repblica (1889), assis-
tiram consolidao de uma revoluo cultural que nos redimiu: a dram-
Uma Msica Mulata
UMA INTRODUO
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tica ascenso da civilizao mulata no Brasil. E com ela, a consolidao de
sua filha primognita, a mais querida e a mais abrangente, a MPB.
A extraordinria capacitao brasileira de incorporar, de deglutir, de ru-minar as mais vrias culturas - a meu ver, a contribuio mais original do
Brasil para a histria das civilizaes - vai encontrar, justamente no nosso
cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador e estimulante.
Devo observar que as msicas populares de outros pases como Alema-
nha, Frana, Portugal, Espanha, Rssia, Itlia, toda a Escandinvia e tantosoutros ( exceo dos Estados Unidos, onde o jazz se desenvolveu com
vigor diferenciado) so muitssimo mais discretas e - a sim - avaliadas
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em modesto patamar cultural. Por qu? Porque a elas faltam as labaredas
rejuvenescedoras tanto da miscigenao, quanto as de um pas jovem.
No ser apenas por incorporar a palavra popular que a MPB pode exibir,
com tamanho luxo, sua melhor e mais nobre configurao: a interface da
solidariedade que ela prope. E - mais que isso - que ela vem realizando
ao longo deste ltimo sculo.
Mas, diro alguns, no haver exagero da parte de exegetas apaixonados
em atribuir a um conjunto de canes e artistas do povo tal nvel de
importncia scio-cultural ? Sim, at poderia haver, se a esse conjunto
que hoje tem o simptico apelido de MPB faltasse um dado revitalizador
chamado miscigenao.
Pois sempre til lembrar-se que nossa msica popular fruto direto - e
indissocivel - do encontro inter-racial que culminou no pas mulato que
somos ns.
Um dos maiores brasileiros que conheci, o folclorista Lus da Cmara
Cascudo, me definiu com cortante exatido os riscos das smulas, oumesmo das abreviaes de uma longa histria: como uma fotografia
de uma mulher bonita, sempre falta alguma coisa que deveria ser mos-
trada com mais detalhes, abelhudagem e apetncias. O sbio de Natal
(RN) estava coberto de razo. por isso que quero, desde logo, advertir
o leitor de que este prembulo da msica popular brasileira necessa-
riamente incompleto nos seus detalhes e nos seus atalhos. Nem poderiamesmo deixar de ser, considerando tanto a diversidade quanto a riqueza
de seus personagens e at mesmo a veemncia orgnica com que ela
chegou a ser o que hoje.
Se os atalhos, contudo, so necessariamente incompletos, as vias princi-
pais seguem a linha geral da convenincia e da coerncia de uma histriacontada por quatro jornalistas de primeira linha e que so ntimos da ma-
tria especfica deste livro, a desenvolvida nessas quatro ltimas dcadas.
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Quero deixar tambm claro nesta minha introduo que muitos no-
mes de compositores, intrpretes e msicos - at da minha estima e res-peito pessoais - no foram citados neste texto, especialmente na opulenta
dcada de ouro, os anos 30. Se fosse registrar todos os que queria, esta
leitura seria a de um enfadonho listo de nomes, a no mais acabar. Por
isso mesmo, ousei resumir todas as dcadas que antecedem a atualidade
de quatro lustros em apenas alguns dos compositores fundamentais.
Os compositores so citados preferencialmente porque a eles defiro
uma importncia decisiva na histria da MPB. Considero-os como a mas-
sa do bolo que a msica popular, ficando seus intrpretes (cantores e
msicos) como o fermento e cobertura que lhe do a beleza e a tornam
desejvel aos paladares. E a - que me perdoem os recalcitrantes - a esco-
lha deles todos mesmo pessoal.
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O nascimento dos primeiros indcios da msica popular brasileira se deu
h mais de duzentos anos, com artistas cujos nomes a histria esque-
ceu. Um dos mais remotos registros individuais de canto popular do
grande poeta satrico Gregrio de Matos Guerra, o Boca do lnferno, que
conquistava, j velhote, escravas do Recncavo Baiano, cantando versos
frascrios ao som de uma viola de arame. Cinquenta anos depois, pelo
final do sculo XVIII, outro tocador de viola, o poeta carioca Domingos
Caldas Barbosa, deixou o Rio e foi para Portugal, cantando na corte canti-
gas de estrutura portuguesa, mas j perpassadas de uma ternura tal que
se pressupe ser um sintoma de forma musical brasileira.
Apenas na segunda metade do sculo XIX a histria da msica popular
brasileira fixaria os primeiros grandes nomes daqueles que iriam formar
as bases do que hoje considerada a msica popular brasileira. mui-
to importante ressaltar, desde logo, que nossa msica popular constitui
uma criao contempornea ao aparecimento das cidades. Deve-se deixar
claro que msica popular s pode existir ou florescer quando h povo. E
o que se ouviu no Brasil colonial? Nos trs primeiros sculos de coloni-
zao houve tipos definidos de formas musicais, os cantos para as danas
rituais dos ndios e os batuques dos escravos, a maioria dos quais tambm
ritual. Ambos fundamentalmente base de percusso: tambores.
atabaques, tantares. palmas, apitos. Paralelamente, existiam as cantigas
Da Modinha e do Lundu ao Samba
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dos europeus colonizadores que tinham bero nos burgos medievais dos
sculos XII a XIV. Fora desse tipo de msica, o hinrio religioso catlico
dos padres. Ainda a registrar os toques e as fanfarras militares dos exr-
citos portugueses aqui sediados.
Para que se chegasse a uma msica reconhecvel como brasileira tornou-
se necessrio que a mistura desses elementos todos configurasse uma
resultante. E isso se deu a partir do comeo do sculo, quando as popu-
laes dos burgos se somaram em cidades, das quais logo despontaram
Salvador, Recife e Rio de Janeiro, todas com forte influncia negra. Essas
populaes, unidas em cidades, demandavam novas formas de lazer, ou
uma produo cultural. E essa produo se fez representar no campo da
msica popular pelos gneros iniciais de lundu e de modinha. O lundu
basicamente negro no seu ritmo cadenciado - ostentava a simplicidade
do povo nos seus versos quando era cantado, comentando na maioria das
vezes a vida cotidiana das ruas. J a modinha basicamente branca na sua
forma de cano europeia exibia versos empolados para cantar o amor
s musas marmreas, quase sempre inatingveis. Dentro desse quadro e
poca comeam a aparecer os primeiros vultos a serem aqui registrados.
Um dos primeirssimos pode ser considerado Xisto Bahia (Bahia, 1841
- Caxambu, 1894), que retomou a tradio de Domingos Caldas Barbosa,
Debret BatuquesColeo da revista Carioquice
RugendasSerenadeviola dmore, 1835Acervo Museu da Imagem edo Som
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cujas modinhas irnicas, levadas corte portuguesa no sculo XVIII, se
haviam transformado em rias pesadonas quando D. Joo VI aportou no
Rio, h duzentos anos, em 1808, transferindo sua corte para o Brasil,
a partir do terremoto poltico provocado por Napoleo Bonaparte na
Europa. Mulato, filho de um oficial veterano das lutas da Independncia,Xisto apareceu numa poca em que os poetas romnticos comearam a
escrever versos para serem musicados no apenas por msicos de escola,
mas por simples tocadores de violo (um dos que mais escreveram foi o
poeta Raymundo Rebello, cujas msicas logo ganharam os violes anni-
mos das ruas). Xisto, violonista, compositor e ator, comeou sua carreira
em Salvador atuando para a nascente classe mdia. No Rio, logo depois,chegou a ser coautor de Artur Azevedo e foi aplaudido pessoalmente pelo
imperador. Com o fim do Imprio, Xisto entrou em desgraa e morreu
Centro do Rio de Janeiro(dcadas de 10 e 20)
Acervo Museu da Imagem e do Som
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pobre e abandonado. Tragdias, as da pobreza e do esquecimento, que
cairiam como maldio sobre a grande maioria dos vultos da msica dopovo a partir da. Naquela segunda metade do sculo XIX, a msica
ouvida pelas elites eram, em geral, as peras, as operetas e a msica
leve de salo. Os negros ou os brancos amestiados das camadas baixas
executavam e ouviam, via de regra, os estribilhos acompanhados por sons
de palmas e violas. A tmida classe mdia - que comeou a se incorporar
no Segundo Imprio apegava-se apenas aos gneros europeus, ou seja,msica leve dos sales das elites: a polca, chegada ao Brasil em 1844, a
valsa e ainda a shottish, a quadrilha, a mazurca.
Dentro desse cenrio eis que aparece um raio de luz e de inveno, o
mulatoJoaquim da Silva Callado, criador do primeiro grupo instru-
mental de carter carioca e popular no Brasil: o choro. A palavra inicial-mente indicava apenas uma reunio de msicos e s depois o nome do
gnero musical. Era a msica do gnio e da criatividade brasileiros. O
novo gnero, uma msica estimulante, solta e buliosa, era quase sem-
pre executada base de modulaes e de melodias to trabalhadas que
Regional* Carioca JacarpaguaFoto Augusto Malta - 1911
Acervo Museu da Imageme do Som
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exigiam de seus executantes competncia e talento. A tal ponto que
os editores nem quiseram mais editar Callado, que chegaria, contudo,a ser condecorado pelo imperador com a Ordem da Rosa (1879), mor-
rendo logo depois vitimado por uma das muitas epidemias que gras-
savam no Rio de cem anos atrs, insalubre e sem esgotos sanitrios.
Mas lindo como nunca, segundo todos os testemunhos dos viajantes
que nele aportavam. E sempre louvado pelos cronistas e poetas que
aqui nasceram.
A partir de Callado surge toda uma gerao de chores: Pedro Galdino,
Paulino Sacramento, Pedro S Pereira e Candinho so alguns das dezenas
de timos msicos que tocavam pelas ruas do Rio da belle poque. O
teatro de revista cujo corao estava na praa Tiradentes, no Rio era o
grande centro consumidor e tambm irradiador da msica popular desdeas ltimas dcadas do sculo XIX.
Dentre todos os pioneiros, duas chamas individuais logo se destacam dos
demais: Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Francisca Edwiges deLima Neves Gonzaga (Rio, 1847 - Rio, 1935), filha de famlia ilustre,
sendo seu pai marechal do imperador, casou-se por promessa paterna
com um oficial da marinha mercante. O marido obrigou-a a vender o
piano e a viajar quase reclusa no camarote do seu navio. Conta-se que,
no porto de Salvador, Chiquinha trouxe um violo para bordo. O marido-
capito, com quem ela j vivia s turras, caiu na ingenuidade de dar aChiquinha um ultimato insensato: O violo ou eu! Entre o marido e o
violo, ela optou sem pestanejar pelo segundo. Era a dcada de 1870 e, j
no Rio, Chiquinha comeou a ensinar violo, a compor e a tornar-se
maestrina. Sua primeira composio, a polca Atraente (1877), deu inicio
a centenas de msicas em que todos os gneros foram experimentados.
Em 1885 nossa altiva Francisca derrubou mais um preconceito: compsa primeira partitura para a opereta popular A corte na roa e se imps
como maestrina. De 1877 at pouco antes de sua morte, a primeira grande
AbreAlas,
Queeuqueropassar(2X)
EusoudaLira,
Noposson
egar(2X)...
Chiquinha Gonzaga - Abre Alas
Chiquinha Gonzaga, 1902Coleo Instituto Cravo Albin
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autora do Brasil comps 77 peas teatrais de onde saram joias como o
tango Corta jaca e a modinha Lua branca.
Pioneira em todos os sentidos, inclusive ao quebrar os costumes machis-
tas de sua poca, a maestrina Chiquinha Gonzaga foi figura essencial
MPB: escreveu quase duas mil composies e eletrizou o carnaval da vi-
rada do sculo XX compondo Abre Alas, a primeira marcha de carnaval,
a pedido do cordo carnavalesco Rosa de Ouro.
Chiquinha ainda teve coragem e tempo para abraar as causas mais no-
bres de sua poca, como o abolicionismo, saindo muitas vezes de porta
em porta para recolher donativos. A revolucionria Francisca tambm
deitou modas, desenhou seus prprios vestidos, fumou charutos, tornou-
se notcia, caiu na maledicncia popular. Mas fez de sua vida um ato depioneirismo e ousadia at hoje insuperveis.
Foi ainda a fundadora, em 1917, da Sociedade Brasileira de Autores Te-
atrais (SBAT) e morreu no Rio com 89 anos, cercada por uma aura de
mito, um cone tanto da transgresso social quanto da consolidao da
msica popular.
De to grande importncia quanto Chiquinha - e talvez at maior sob uma
tica estritamente musical Ernesto Jlio Nazareth (Rio, 1863 - Rio,
1934) era filho de modesta famlia da pequena classe mdia. Aluno apli-cado de piano, lanou o primeiro tango brasileiro, Brejeiro, que no fundo
era quase o choro. E assim se iniciou uma carreira que o transformaria no
compositor mais original do Brasil, no dizer de Mrio de Andrade: po-
pular e erudito ao mesmo tempo. Nazareth, contudo, desprezava msica
popular, mas era obrigado a toc-la em lugares plebeus, como antessalas de
cinema - onde, alis, era ouvido por gente do porte de Darius Milhaud, quenele se inspirou para compor algumas de suas peas. Rui Barbosa, outro
personagem famosssimo, sempre ia ouvi-lo no cinema Odeon.
Elemelembratanto,tanto
Deoutroencantodeumpassado
Queera
lindo,eratriste,erabom
Igualzinhoaochorinhoch
amadoOdeon...
ErnestoNazareth-Odeon
LetradeVinciusdeMoraes
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Ernesto NazarethColeo Instituto Cravo Albin
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O indiscutvel Mrio de Andrade teve razo em elevar Ernesto Naza-
reth ao raro pdio de compositor erudito e popular ao mesmo tempo.Ele foi mesmo imbatvel na teimosia de nunca querer abastardar sua
arte e seu piano.
Amargurado, surdo e tendo que tocar quase na rua para sobreviver,
Nazareth acabou louco e morreu em Jacarepagu ao fugir de um hosp-
cio. Muitas de suas msicas e choros se incorporaram ao cancioneiro doschores e lhe deram carter, como Apanhei-te, cavaquinho e Odeon,
dois clssicos do repertrio chorstico.
Outro pioneiro importante,Anacleto Augusto de Medeiros (Ilha dePaquet, Rio, 1866 - Rio, 1907) entraria para a histria da cultura popular
como o mestre fundador da Banda do Corpo de Bombeiros. Florescendo
numa poca em que a msica do povo comeava a ser arrumada, foi ele
um msico inovador porque responsvel pela definio ou escola harm-
nica da msica popular, at ento inexistente.
Outro dos grandes personagens da histria dos pioneiros, o compositore flautista Patpio Silva (ltaocara, RJ, 1881 - Santa Catarina, 1907)
assombraria a primeira dcada deste sculo. Ele veio a ser um fantstico
Patapio Catullo
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virtuose da flauta. Alis, no s foi o primeiro msico brasileiro a trans-
por para flauta peas escritas para outros instrumentos, mas tambm um
dos primeiros solistas a gravar discos no Brasil. Patpio morreria no auge
do sucesso, com apenas 28 anos de idade, em meio a uma excurso
a Florianpolis.
Dentro dessa linha dos primeiros compositores populares, vale registrar
ainda um outro nome: Catullo da Paixo Cearense (So Luis, MA, 1866
- Rio, l 946), que, j aos 1O anos, iria morar com sua famlia no interior
do Cear, de onde possivelmente aferiria os elementos bsicos para sua
futura obra sertaneja e tambm de onde acabaria por tirar o nome arts-
tico. Catullo chegou ao Rio com 17 anos e, frequentando uma repblicade estudantes no ento longnquo bairro de Copacabana (um local ermo
para se veranear, segundo Joo do Rio), vem a se interessar pela msica.
Sua pea inicial, a modinha Ao luar (feita aos 18 anos), deu incio a
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Copacabana
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uma das mais bem sucedidas carreiras da MPB, na qual se ressalta um
fato muitssimo comum aos compositores do povo: ter sido sempre auto-
didata. Seu prestgio se consolidaria nos primeiros anos do sculo, com o
advento das gravaes mecnicas. Pelos velhos discos da Casa Edison, na
voz do cantor Mrio, o prestgio de Catullo agora belamente biografado
por Haroldo Costa em 2009 no pararia de crescer. Para que se tenha
uma ideia da influncia do poeta, foi ele o primeiro a introduzir o violo
- instrumento ento considerado maldito - no antigo Instituto Nacional
de Msica, em audio (1908) corajosamente promovida pelo maestroAlberto Nepomuceno.
A mais clebre composio de Catullo, Luar do serto (1910, gravada
pelo Mrio para a Casa Edison), usualmente considerada um quase
hino nacional dos coraes brasileiros. A pea trouxe a glria definitiva
a seu autor e tambm um grave desgosto, como chegou a confiden-ciar ao pianista Mrio Cabral: a acirrada disputa (que terminou em
rumorosa questo judicial) com o violonista Joo Pernambuco, que se
Quincas Laranjeiras,Catullo da Paixo
Cearense e Dr Parreiras,1919
Vassouras - Rio de Janeiro
No h, gente, oh no
Luar como este do serto...
Catullo - Luar do Serto
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considerou desde logo o autor da msica, fato veementemente con-
testado por Catullo. Alis, Joo Pernambuco (Jatob, PE, 1883 - Rio,
1947) foi no s extraordinrio msico, mas tambm autor de obras
interessantssimas, entre as quais se destacava um clssico do choro, o
Sons de carrilho.
Enquanto Catullo era o grande sucesso na capital federal do pas, umRio ainda acanhado e que dava os primeiros passos para se modernizar
como grande cidade (quando o Rio se limpava da morrinha imperial, no
dizer de Carlos Drummond de Andrade), apareceu em 1912 um menino
de calas curtas tocando flauta melhor que gente grande. Esse menino
virtuoso viria a ser o herdeiro de toda a tradio musical inaugurada e
cultivada por Nazareth, Chiquinha, Callado, Patpio e Catullo, e tam-bm seria pelo menos ao meu ver o estruturador e o patriarca de
toda msica que viria depois dele:Alfredo da Rocha Viana Filho, o
Pixinguinha (Rio, 23 de abril de 1897 - Rio, 17 de fevereiro de 1973).
Crescendo num ambiente de msica e msicos da baixa classe mdia,
o menino Alfredo era chamado pela av africana de Pizindin (menino
bom). J aos 12 anos esgotaria os conhecimentos musicais que lhe mi-nistrara o maestro Csar Leito.
Quanto sua carreira de compositor (quase mil composies, todas elas
irretocveis, se bem que muitas inditas at hoje), vale registrar que
as duas primeiras seriam gravadas pelo prprio (1917) para a casa Fau-
lhaber: o choro Sofres porque queres e a valsa Rosa. Esta ltima seimortalizaria quando gravada por Orlando Silva (1937). Sucesso ainda
maior obteve com o lado A do mesmo 78 RPM de Orlando: o choro-cano
Carinhoso, escrito quase vinte anos antes com o nome de Carinhos.
Acusado de ser jazzificado pelo crtico Cruz Cordeiro que me confiden-
ciaria no Museu da Imagem e do Som (em 1967) o seu arrependimento
sobre tal observao , Pixinguinha guardou-o at 1937, quando, a pedidoda atriz Heloisa Helena, Braguinha nele colocou a letra que o levaria para
o pdio das dez canes mais estimadas no Brasil.
Meucorao,noseiporque
Batefelizquandotev
Eosmeusolhosficamsorrindo
Epelasruasvoteseguindo
Masmesmoassim
Fogesdemim... Pix
inguinha
-Carinhoso
Pixinguinha
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Ele criou ainda inmeros conjuntos musicais, entre os quais se desta-
cou o conjunto Os Oito Batutas, o primeiro a excursionar fora do Brasil
(Paris, 1922), levando na bagagem o choro, o samba e o maxixe, todos
eles temperados com o melhor da alma brasileira mulata e travessa. O
maestro Alfredo Viana foi tambm o primeiro msico brasileiro, j consa-
grado como flautista, compositor e chefe de orquestra, a fazer arrojados
arranjos orquestrais para as marchinhas e sambas de carnaval em pleno
comeo da poca de ouro da MPB (dcada de 1930).
A partir dos ltimos anos do sculo XIX, as principais cidades brasileiras
assistiram ao despertar da conscincia das populaes mais pobres na so-
ciedade. At 1888 (Lei urea) os escravos eram inferiorizados e no po-
diam manifestar sua veia musical, a no ser em grupos fechados. J como
trabalhadores livres da era republicana, comearam a disputar lugar nasociedade, o que, no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente
participao nos festejos carnavalescos. Estes festejos eram at ento
transformados pela classe mdia numa imitao do carnaval europeu,
com os prstitos, as batalhas de flores e, anteriormente, as quase sempre
brutais brincadeiras do entrudo.
A populao mestia, j mais integrada na estrutura econmica da cidade,
como os empregados das fbricas e os pequenos burocratas, organizaram-se em sociedades recreativas, inicialmente chamadas cordes carnavales-
cos e, posteriormente, blocos carnavalescos. Em 1893 foram criados no
Carnaval no RioFoto Augusto Malta, 1911
Acervo Museu da Imagem e do Som
Carnaval no RioFoto Guilherme Santos, 1911
Acervo Museu da Imagem e do Som
Carnaval no RioFoto Augusto Malta, 1932
Acervo Museu da Imagem e do Som
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Rio de Janeiro os ranchos, que passaram a sair no carnaval produzindo
um tipo de msica orquestral que geraria um dos gneros musicais mais
amorveis da MPB: as marchas-ranchos. O fundador do primeiro rancho, o
baiano Hilrio Jovino Ferreira, lhe deu o nome de Rancho Rei de Ouro.
A populao carioca mais pobre, especialmente a que descendia dos gue-
tos da escravido e que habitava os cortios negros pauprrimos da zona
da Cidade Nova e da Central do Brasil a Praa Onze antiga era dela o
corao, nas mesmas imediaes onde hoje est o Sambdromo Darcy
Ribeiro continuava a exercitar-se nos batuques e nas rodas de pernada
e de capoeira. Eram na maioria os baianos e seus descendentes, que
vieram da Bahia com o fim da guerra de Canudos, direito que ganharam
por lutarem nas tropas contrrias a Antnio Conselheiro. Alm dos ne-
gros alforriados por lutarem na Guerra do Paraguai.
Pois bem, essa parte da populao no saa no carnaval de forma organizada,
mas em blocos desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre
em grandes brigas de capoeira e em terrveis cenas de sangue, segundo
o cronista Joo do Rio. Alis, atento s evolues urbansticas do Rio,
o cronista fez um paralelo curioso entre a Praa Onze dos ex-escravos e a
avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada em 1902 e que ele consi-derava um trao de separao entre o Brasil passado e o novo: A avenida
chique / Eu sou a Central / Da elegncia o tique / Dou Capital.
Centro do RioColeo Instituto Cravo Albin
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Da msica base de percusso e de palmas, produzida por esses negros
com o nome de batucada, iria nascer o gnero popular mais representativo
da msica brasileira. O samba, palavra de origem africana (Angola e Con-
go), provavelmente corruptela da palavra semba, pode ser sinnimo de
umbigada, ou seja, o encontro lascivo dos umbigos do homem e da mulher
na dana do batuque antigo. Ou tambm pode significar tristeza, melan-
colia (quem sabe da terra africana natal, assim como o blues nos Estados
Unidos). Alis, a palavra samba foi grafada pela primeira vez (3/2/1838)
por frei Miguel do Sacramento Lopes Gama na revista pernambucana Ca-
rapuzeiro: definia ento mais um tipo de dana negra, de senzala.
Alm dessas rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas
nas ruas e praas das imediaes, ficaram clebres os festejos nas casas
das at hoje celebradas tias baianas (Tia Ciata, a mulata Hilria Batista
de Almeida, foi dentre todas a mais festejada). Eram elas, em geral, se-
nhoras gordas e grandes quituteiras, que davam festas para comemorar
as datas importantes do calendrio do candombl. Os festejos duravam,
duravam e duravam. Alguns s acabavam uma semana depois. Eram os
pagodes, que ocorriam nas casas das tias, como eram carinhosamente
apelidadas. E se realizavam em dois tempos, segundo me informaram no
MIS no s Donga e Joo da Baiana, mas tambm Pixinguinha e Heitor
dos Prazeres, todos frequentadores e exceo de Pixinga filhos
de me-de-santo. No fundo da casa, a devoo aos orixs, com toda a
preservao do ritual das datas do candombl. Acabadas as obrigaes,
CandomblLan, 1990
Tia Ciata(autor no identificado)
Joo da Baiana(autor no identificado)
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a batucada tinha lugar, mas j em outros cmodos, geralmente nas salas
da frente dos cortios decadentes ou dos sobrades abandonados pela
burguesia, ento em busca de novos bairros da moda, como Botafogo,
Laranjeiras e Humait.
A partir das casas das tias baianas se registram no s o nascimento do
samba, mas tambm os primeiros nomes da sua histria. O mais velho
deles foi o mestio Jos Luiz de Moraes (Rio, 1883 - Rio, 1961), apeli-
dado de Caninha porque, quando molecote, vendia roletes de cana na Es-
trada de Ferro Central do Brasil. Caninha aprendeu a msica dos negros,
a batucada, nos redutos da Praa Onze, nas casas das tias e nas festas
da Penha. Alis, muitos anos mais tarde, por volta de 1932, quando a
populao que descendia dos escravos foi obrigada a morar em casebres
no alto dos morros cariocas, Caninha comps um samba que atestava
as origens da MPB: Samba de morro / No samba, batucada / L na
cidade / A escola diferente. A propsito, os primeiros moradores dosmorros cariocas foram os descendentes dos baianos, vindos da guerra de
Canudos e que deram comunidade o nome de favela, hoje substantivo
abrangente, sinnimo das habitaes de comunidades carentes.
Outro pioneiro que criou o samba a partir da batucada foiJoo da Baiana
(Rio, 1887 - Rio, 1974). Filho da baiana Prisciliana dos Santos Amaro, a
Tia Prisciliana, Joo o inesquecvel e doce tio Joo como ns o cham-
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vamos sobreviveu quase miseravelmente at morrer na dcada de
1970. Joo Machado Guedes foi o responsvel pela introduo do pan-
deiro no choro e do prato de cozinha como instrumento de percusso:
um magnfico momento de criatividade do povo.
Ainda nessa fase heroica de nascimento do samba, assinalo o nome de
Heitor dos Prazeres. Nascido em plena Praa Onze (1898), onde tam-
bm morreria (1966), Heitor comeou sua carreira de sambista como
tocador de cavaquinho. Ritmista e compositor nos pagodes das tias Ciata
e Prisciliana era conhecido pelo apelido de Mano Lino Heitor en-veredou pela poca de ouro da msica popular brasileira, a partir dos
anos 30, com poucos mas estupendos sambas como Vou te abandonar;
Mulher de malandro e a marcha Pierr apaixonado (1936, parceria com
Noel Rosa). Alis, nesse mesmo ano se iniciaria como pintor primitivo,
condio em que se consagraria nacional e internacionalmente. A ponto
de certa vez seus quadros, mostrados em Londres, terem suscitado dajovem rainha Elizabeth II a pergunta consagradora: Quem e de onde
Tela e foto de
Heitor dos PrazeresColeo Instituto Cravo Albin
...Um Pierr apaixonadoQue vivia s cantando
Por causa de uma Colombina,Acabou chorando, acabou chorando...
Heitor dos Prazeres / Noel Rosa - Pierr Apaixonado
Heitor dos Prazeres
Heitor dos Prazeres e Sua Gente
1957 - Sinter
Coleo Instituto Cravo Albin
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vem este pintor extraordinrio? Heitor, que seria premiado na primeira
Bienal de So Paulo, passou boa parte da vida como contnuo do antigo
Ministrio da Educao e Cultura, emprego vitalcio que lhe fora conse-
guido pelo poeta Carlos Drummond, seu confesso admirador.
O compositor Heitor dos Prazeres foi tambm o reponsvel pelo apareci-
mento da Escola de Samba da Portela, ao lado de Paulo Portela. Mas isso
j ao comecinho dos anos 30.
O samba s veio a ser registrado com esse nome quando o quarto
desses pioneiros, Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (Rio,
1899 - Rio, 1974), filho de Tia Amlia mas tambm frequentador dos
folguedos de Tia Ciata, gravou uma msica adaptada por ele e pelo
cronista carnavalesco do Jornal do Brasil, Mauro de Almeida, o Peru
dos Ps Frios, baseada em motivo popular que ambos intitularam Pelo
telefone. Esse fato aparentemente banal teria a maior repercusso
tanto para a histria do samba (apesar de Pelo telefone ser formalmente
mais para maxixe do que para o samba) como para a definio do comeo
da profissionalizao da MPB. E por qu? Porque isso se deu em janeiro
de 1917, e a primeira providncia do Donga foi registrar msica e letrana Biblioteca Nacional.
O que equivalia a tirar patente da msica.Trocando em midos: significava
que uma msica popular estava atingindo o estgio importante de produto
comercial capaz de ser vendido e de gerar lucros. Pelo Telefone, gravado
em janeiro de 1917 pela Banda Odeon e logo depois pelo Baiano, da CasaEdison, deu a Donga as glrias da posteridade, como o primeiro samba
gravado. Trouxe-lhe tambm um grande aborrecimento ao final da vida: a
polmica mantida com Almirante, que insistia na tese de a msica ter sido
uma criao coletiva. Como conheci muito bem ambos os contendores
- quando no MIS - e deles ouvi detalhados relatos sobre o assunto, quero
deixar registrada a minha impresso pessoal sobre esse fato histrico.Donga comprovou ao longo de uma vida de honradez pessoal e depois de
ter realizado dezenas de composies que no carecia de qualquer mu-
Donga
Coleo Instituto Cravo Albin
O chefe da folia
Pelo telefonemanda me avisarQue com alegriaNo se questionepara se brincar...
Donga / M. de AlmeidaPelo Telefone
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leta para ingressar na histria da MPB. Almirante no seu impiedoso rigor
histrico, e concordo que o rigor histrico tem mesmo que ser impiedoso
, no se deu conta de que a simples assinatura de Donga, correndo Bi-
blioteca Nacional para registr-la, antes de uma fraude, s poderia ser uma
declarao de posse da msica, ao menos do seu esprito, da sua metade
(que seja), do seu arranjo final. E isso j era o bastante naqueles tempos
de pioneirismo e de quase nenhum profissionalismo. tica, compostura
e talento? A Donga jamais faltaram, tanto quanto o conheci. E se v l!
ele tivesse se apropriado de alguns motes de inspirao coletiva na casa
de Tia Ciata, teria feito muito bem. Afinal, as notas musicais so apenas
sete, e o ouvido do compositor popular sempre foi e ser uma antena ligada
a tudo o que o cerca, de vida e de emoo.
A Consolidao do Samba
Apesar de Donga ter corrido Biblioteca Nacional para registrar o samba
inaugural, sinalizando com isso que o novo gnero musical poderia ser
um produto capaz de dar lucro e prestgio ao seu autor, no seria ele
quem capitalizaria o samba em torno de seu nome. Isso veio a aconte-cer no comeo da dcada de 1920 com um outro personagem muito
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interessante:Jos Barbosa da Silva, na histria do samba imortalizado
como Sinh (Rio, 1888 - Rio, 1930). Nascido em pleno centro carioca
(rua Riachuelo), desde adolescente Sinh frequentou as rodas de bomia
da cidade. Prova disso so os seus primeiros colegas de farras nos anos
iniciais do sculo XX, Joo da Baiana e Jos Luiz Moraes, o Caninha, com
os quais viu nascer o samba nos pagodes das famosas tias, nas sesses de
batucada na Praa Onze e na festa da Penha. Sinh conheceu o sucesso
entre 1920 e 1930, ano em que morreu prematuramente - vitimado por
uma hemoptise, a bordo da barca cantareira que vinha da ilha do Gover-
nador para o Cais Pharoux, plena baa de Guanabara. Mas esses dez anos
de carreira foram mais do que suficientes para que Sinh ingressasse na
histria do cancioneiro popular como o primeiro sambista profissional.
Ningum mais competente para divulgar suas prprias msicas que o
espertssimo Sinh. Razo por que foi considerado o Rei do Samba nos
anos 20. Tambm, por isso mesmo, o primeiro sambista carioca a elevar
o recm-nascido gnero musical fama e ao prestgio intelectual.
Alis, a popularidade do Sinh atingiu nveis to altos que a simples
cognominao de Rei do Samba exibia, com opulncia, o enorme pres-
tgio de que gozava. Esse prestgio era muito forado pelo compositor,
vaidoso e pernstico, apesar de ingnuo. Sinh - com fama consolidada apartir de P de anjo, gravado por Francisco Alves, em 1919 comeou
Vista da Ilha do Governador
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a compor para as revistas musicais dos muitos teatros da Praa Tiraden-tes, grande centro comunicador e divulgador da msica popular antes
do advento da era do rdio, ao comeo dos 30.
Nessa poca, o grande sucesso emergente em teatro era Vicente Celesti-
no, no incio da carreira especializado em operetas. Registrem-se ainda os
nomes de Cndido das Neves (o ndio, filho do palhao Eduardo das Nevese autor de joias como ltima estrofe, Lgrimas e Noite cheia de estre-
las) e Zequinha de Abreu (paulista de Santa Rita de Passa Quatro), autor
de pelo menos um clssico no mundo inteiro, o choro Tico-tico no fub).Sinh
Foto Arte Magazine, 1929
Coleo Almirante
Museu da Imagem e do Som
Aracy Cortes, 1930Coleo CEDOC/Funarte
O Tico-Tico tT outra vez aquiO Tico-Tico t comendo meu fubO Tico-Tico tem, tem que se alimentarQue v comer umas minhocas no pomar...
Zequinha de Abreu - Tico-Tico no Fub
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Voltando a Sinh: no auge do sucesso (a partir de 1925), ele comeou afrequentar casas de intelectuais como lvaro Moreyra, transformando-se
no primeiro sambista publicamente reverenciado por figuras proeminentes
como Jos do Patrocnio, filho. Vaidoso das ilustres admiraes, fez sambas
dedicados a inmeras personalidades, como Eugnia Moreira e o ento jovem
jornalista Roberto Marinho. Apesar de ter sempre contra si a pecha de pla-
giador de sambas alheios. Alis, o maior escndalo da carreira de Sinh foi oGosto que me enrosco, reivindicado por Heitor dos Prazeres, logo depois,
inclusive, de ter o mesmo Heitor questionado a autoria do Ora vejam s.
O fato gerou uma das mais acesas polmicas da MPB. Data da, ou seja,
do momento em que Heitor dos Prazeres procurou Sinh para cobrar seus
direitos de autor, uma das mais famosas frases da histria da MPB, atesta-
do singular da ingenuidade, malcia e at malandragem dos compositoresdo povo: Samba como passarinho que voa, de quem pegar primeiro.
Ao que Heitor retrucou no s chamando o desafeto de Sinh dos meus
sambas, mas tambm compondo duas peas contra Sinh, cujos ttulos so
realmente conclusivos: Olha ele, cuidado e Rei dos meus sambas.
Dois anos antes de sua morte surgiria o maior de todos os sucessos deSinh, o Jura, gravado simultaneamente por Aracy Cortes, a maior estrela
Mrio Reis e Francisco AlvesAses do Samba1993 - Revivendo
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Ismael Silva1973
Coleo Instituto Cravo Albin
Francisco AlvesRei da voz em todas as pocas
Revivendo
Coleo Instituto Cravo Albin
do teatro musicado dos anos 20 e 30, e por um jovem cantor da alta
sociedade carioca, Mrio Reis, lanado na msica por Sinh, de quem
era aluno de violo. Pertencendo mais exclusiva sociedade carioca da
poca, Mrio faria histria na msica popular como o mais original cantor
do comeo da poca de ouro, os anos 30.
A sedutora mulata Aracy Cortes seria a grande sensao da MPB nos anos
20, despertando paixes nas plateias dos teatros de revista da Praa Tira-
dentes (Rio) ao cantar Jura (Sinh) e Ai, ioi (H. Vogeler, L. Peixoto),
com graa insupervel, falsetes geniais e olhos maliciosos que, ao pisca-
rem no palco, incendiavam as plateias.
Se Sinh foi o primeiro compositor a profissionalizar o samba, ele s viria
a ser definitivamente estruturado em sua forma como hoje conhecido
por um grupo que habitava o Estcio de S, bairro de baixa classe m-
dia carioca na segunda metade da dcada de 1920. Esse grupo de compo-
sitores, bomios e malandros, que hibernavam de dia e floresciam noite
nos botequins Caf Apoio e Do Compadre, tinha por lder o compositor
lsmael Silva. O grupo do Estcio entraria para a histria da MPB como
consolidador do ritmo e da malcia do samba urbano carioca, at ento
muito influenciado pelo maxixe em sua estrutura formal, do que nos do
testemunho clarssimo Pelo telefone e quase todas as obras de Sinh.
lsmael Silva (Niteri, RJ, 1905 - Rio, 1978) aos cinco anos de idade j
era morador do sop do morro de So Carlos, no Estcio de S. Ali de-
senvolveria a sua extraordinria musicalidade em rodas de sambistas emalandros locais, dentre os quais Alcebades Barcelos e Armando Maral
(autores de Agora Cinza), Rubem Barcelos (irmo de Bide), Baiaco,
Brancura, Mano Edgar do Estcio e o primeiro grande parceiro de lsmael,
Nilton Bastos, morto prematuramente logo depois (1931).
O compositor lsmael desabrochou para o sucesso quando Francisco Alves
ento j considerado a grande sensao do disco e do rdio que ento
nascia procurou-o e lhe props gravar com exclusividade todos os sambas.
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CartolaCaricatura - Lan, 1975
CartolaVerde que Te Quero Rosa1977 - RCA-Victor
Coleo Instituto Cravo Albin
Com uma condio: a de que seu nome tambm entrasse na parceria.
lsmael aceitou, no sem antes exigir do Chico Viola a incluso do seu
parceiro de verdade, Nilton Bastos. Desse trio torto nasceram pginas
antolgicas, a principal das quais seria o primeiro e maior sucesso de
lsmael Silva, Se voc jurar, gravado pela dupla Mrio Reis e Chico
Alves, arrebatadora em graa e originalidade.
lsmael Silva, a quem deve ser atribuda a responsabilidade histrica de
ter sido um dos estruturadores do samba urbano carioca tal como viria a
ser conhecido e apreciado nos anos subsequentes, tem ainda o crdito
de ter sido o fundador da primeira escola de samba, a Deixa Falar (1928),
que ele organizou junto com Rubem Barcelos, Bide, Baiaco, Brancura,
Mano Edgar e Nilton Bastos, introdutor do surdo dentro da escola. A
escola que sairia apenas nos carnavais de 1929, 1930 e 1931 tinha
tanto na forma quanto na timidez de seu nmero de desfilantes a estru-
tura dos blocos carnavalescos.
A importncia do compositor Ismael Silva precisa ser melhor reavaliada.
Ismael , pois, sambista de fundamentos, porque, insisto, foi o consolida-
dor do ritmo do samba, bem como o fundador da Deixa Falar, a primeira
escola de samba (1928).
As escolas de samba, na verdade, s se expandiriam para valer com a
criao das duas outras que se seguiram Deixa Falar: a Mangueira, de
Cartola e a Portela, de Paulo da Portela e de Heitor dos Prazeres, quando
vieram a tomar a forma definitiva e quando passaram a aglutinar sambistasrelevantes ao seu redor.
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Esse elenco dos cantores do rdio todo um captulo de pura seduo:
o seresteiro Slvio Caldas; o meterico mas genial sambista Lus Barbosa;
o ex-alfaiate Carlos Galhardo, que se consagraria como cantor romntico
apesar de iniciar-se com Boas festas, de Assis Valente (1933); o hoje
esquecido Patrcio Teixeira, grande sucesso de poca (citado at comopersonagem da MPB em Quatro estaes, de Lamartine Babo, 1933);
o iluminado Orlando Silva, que a partir de 1936 acendeu a mais forte luz
que a MPB j ter conhecido at hoje, pelo menos na poca de apogeu
do seu canto (1936 - 1945); as cantoras Marlia Batista e Aracy de Almei-
da, sempre disputando a preferncia de Noel; o casal 20 que foi Odete
Amaral e Ciro Monteiro (dois estilistas notveis a partir do final dos anos30, mas de discreto prestgio junto ao grande pblico); e ainda as irms
Batista (Linda e Dircinha, ambas tambm muito queridas, especialmente
no final dos anos 30 e nas duas dcadas seguintes). E tantos e tantos
outros que acabaram injustamente esquecidos.
Exatamente no ano zero da poca de ouro, 1930, apareceu o primeiro
sucesso de um jovem mineiro de Ub que viria a ser o compositor mais
famoso do Brasil durante pelo menos trs dcadas: Ary Evangelista
Barroso (Ub, MG 1903 - Rio, 1964). Ary chegou ao Rio (1921) e foi
logo ser pianista, profisso que exercia por amor e por sobrevivncia.
Contratado para musicar pea de teatro na Praa Tiradentes, iniciou-se
Ary BarrosoAry Barroso com Silvio Caldas1953 - Long Play Rdio
Coleo Instituto Cravo Albin
Locutor Celso Guimares(Arquivo Rdio Nacional)
Elenco do Rdio-Teatro)(Arquivo Rdio Nacional)
Carmem MirandaAcervo Museu da Imagem e do Som
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como compositor quando escreveu toda a partitura para a pea Brasil do
amor (1929), onde estrearia Slvio Caldas, cantando o samba Faceira.
O samba, por sinal, s foi gravado em 1931, registro que marca a estreia
do grande cantor carioca em gravaes, assinalando o incio de uma das
mais bem-sucedidas carreiras do Brasil, no s porque Caldas soube
escolher e definir repertrio como poucos, mas igualmente pela conteno
e natural elegncia em interpretar qualquer gnero musical.
O compositor mineiro Ary Barroso foi tambm pianista, locutor e ferre-
nho defensor da integridade dos ritmos brasileiros. autor de Aquarela
do Brasil, a mais gravada msica brasileira no mundo. E que teria como
concorrente posterior apenas a Garota de Ipanema.
Com Aquarela Ary iniciaria uma nova fase, a do samba-exaltao, que
servia como luva s intenes nacionalistas do Estado Novo de Get-
lio, ento namoriscando os pases do Eixo. Ary, alis, chegou a trabalhar
nos Estados Unidos e a ser apontado para um Oscar da Academia de
Hollywood. Ao voltar dos estdios da Disney faria de tudo no Brasil:desde radialista famoso (de programas de futebol e de calouros) at ve-
reador municipal (foi seu o projeto para construir-se o Maracan). Ainda
pianista, chefe de orquestra, bomio inveterado nos anos 50 e defensor
intransigente da autenticidade da MPB, Mestre Ary lutou contra os ritmos
estrangeiros e sua crescente influncia. Morreu dormindo no carnaval
de 1964, mas sua fama sobrevive atravs das mais de mil gravaes exis-
tentes da Aquarela do Brasil em todo o mundo.
Carmen MirandaEm Suas Inesquecveis Criaes
1955 - RCA-Victor
Coleo Instituto Cravo Albin
Carlos Galhardo1972 - Selo Imperial
Coleo Instituto Cravo Albin
Aracy de AlmeidaSucessos de Aracy de Almeida
1956 - Continental
Coleo Instituto Cravo Albin
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O segundo dos grandes compositores da poca de ouro foi Noel Rosa.
Como Ary, Noel vinha da classe mdia. Isso pode demonstrar que o rdio
e a gravao eltrica eram os veculos cada vez mais promissores de
profissionalizao, de prestgio e de reconhecimento populares. Noel
de Medeiros Rosa (Rio, 1910 - Rio, 1937) veio ao mundo no corao de
Vila Isabel. Alis, o dia em que nasceu o marcou, a ferro e fogo, com um
trauma que o estigmatizaria: o defeito fsico no queixo, ocasionado pelo
afundamento do maxilar inferior no momento do parto.
No comeo de 1929, o ainda adolescente Noel formou com os colegas da
rua Teodoro da Silva, na Vila, o Bando dos Tangars, de que participaram
Braguinha (outro compositor que faria longa e bela histria), alm do
cantor Almirante. Sua primeira composio, a embolada Minha viola
(1929) feita na esteira da influncia do fluxo de msica nordestina
trazida por Catullo e depois pelos Turunas da Mauriceia, de Augusto
Calheiros e Luperce Miranda passaria em brancas nuvens. O que no
ocorreu com o samba Com que roupa (1931), que, gravado pelo prprio
Noel, refletia uma pgina da vida do compositor. Como, de resto, quase
todas as suas composies, que remetem sempre aos amores e fugaz
experincia existencial do poeta.
A partir do primeiro sucesso no carnaval de 1931, Noel faria nesse mes-
mo ano para mais de vinte msicas, algumas delas clssicos como Trs
apitos, Cordiais saudaes e Gago apaixonado. J ento seu estilo
estava cristalizado: Noel cantava o simples das coisas e dos fatos cotidianos.
Ele foi o poeta dos versos escorreitos e despojados de preciosismo, o cro-
nista de poca mais preciso e enxuto, que traria para o comeo dos anos30 a simplicidade e o bom gosto to revolucionrios para a poca como
a Semana de Arte Moderna em 1922. Alis, se analisarmos bem, Noel
trouxe para suas letras muita coisa dos cnones modernistas de 22,
especialmente ao comentar o cotidiano e na liberdade dos versos. No
ano seguinte (1932) fez msicas com dois parceiros importantes: dez
sambas com lsmael Silva e pelo menos outros tantos com o musicista
paulista Oswaldo Gogliano, o Vadico, com quem comps obra-primas
Noel RosaNoel Rosa
1951 - ContinentalCapa Di CavalcantiColeo Instituto Cravo Albin
AlmiranteAlmirante1968 - Fontana
Coleo Instituto Cravo Albin
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como Feitio de corao, Conversa de botequim, Dama de cabar
e, especialmente, o Feitio da Vila. Um hino do bairro onde nasceu e
morreu. Que, alis, acabou inserido na clebre polmica musical mantida
com o sambista Wilson Baptista.
A pesquisadores mais argutos como Joo Mximo e Alusio Didier, seus
bigrafos no poderia mesmo passar despercebido que a vida de Noel
foi quase toda registrada em seus sambas. Difcil encontrar-se uma m-
sica que no tenha uma histria especfica. E suas inmeras msicas que
falam de amor comprovam que Noel foi apaixonado por muitas mulheres.
A mais famosa delas Noel conheceu numa noite de So Joo, no Cabar
Apoio, antiga Lapa, a bailarina Ceci, uma campista de 16 anos que o poeta
amou at morrer. Para Ceci, Noel fez Pra que mentir, O maior castigo
que te dou, Dama de cabar, Silncio de um minuto, Ilustre visita.
Ou ainda o pstumo As pastorinhas.
Ningum mais sedutor do que o carioca Noel Rosa tanto pela qualidade
potica de sua obra quanto pelo fato de ter vivido intensamente como poeta.
De que sua morte por tuberculose aos 27 anos eloquente testemunho.
Noel Rosa, 1934Acervo Museu da Imagem e do Som
Lamartine Babo, 1961Coleo Revista Carioquice
O i t i t bli d N l t i i i
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O ano seguinte ao aparecimento pblico de Noel traria os primeiros su-
cessos de um outro compositor extraordinrio: Lamartine de Azeredo
Babo (Rio, 1904 - Rio, 1963), o adorvel Lal, como era chamado pela
gerao do Caf Nice.
O Caf Nice, o mais famoso da histria da MPB, ficava na antiga Galeria
Cruzeiro onde hoje est o Edifcio Regina Feigl, ponto central da Ave-
nida Rio Branco. Ali os bomios, compositores, msicos e intrpretes ti-
nham o seu ponto de encontro preferido no Rio. Por incrvel que parea,
tomavam-se um ou dois cafezinhos durante horas. Bebidas alcolicas, to
a gosto da turma da msica, quase no se serviam por l. Uma estratgia
tambm de esperteza: Lamartine e Alberto Ribeiro me disseram que era
por isso mesmo que o pessoal ia, ou seja, porque todos podiam conversar
de cara limpssima: armavam-se parcerias, escolhiam-se intrpretes e se
negociavam msicas antes da bebedeira infalvel, que viria logo depois.
Mas em outros bares...
Criador das melhores marchinhas dos carnavais dos anos 30, Lamartine
Babo, o adorvel Lal, foi compositor e tambm autor de valsas e canes.
Lamartine a meu ver talvez tenha sido o mais completo e o mais
visceralmente carioca dos compositores populares que desabrocharam
na poca de ouro. O fato que Lal dedicou-se, desde adolescente, a
cultivar e observar o canto do povo e da cidade. Resultado: veio a trans-
formar-se no maior compositor do canto coletivo, que exatamente o
entoado no carnaval. Lamartine por paradoxal que parea comeoua vida artstica fazendo hinos religiosos e ouvindo operetas europeias.
Redescobriria e recriaria a alma das ruas, produzindo o mais sensacional
dentre todos os repertrios carnavalescos, ao longo de suas quatro dca-
das de apogeu.
O primeiro sucesso foi com O teu cabelo no nega (carnaval de 1932).Que tambm gerou uma polmica com os irmos Valena, autores
Oteucabe
lononegamulata
Porquesmulatanacor...
Mascomoacornopegam
ulata
Mulataeu
querooteuamor
Lamar
tineBaboeIrmosValena-O
TeuC
abeloNoNega
Caf Nice (Atual Edifcio Central
- Av. Rio Branco) -
onde o bonde fazia a volta.
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pernambucanos de frevos que reivindicaram em juzo e ganharam o
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pernambucanos de frevos que reivindicaram em juzo, e ganharam, o
direito de assinar a msica. At porque a primeira parte toda deles.
Dentre os tantos xitos carnavalescos do Lal podem-se citar maravilhas
como: Aeiou, Linda morena, Marchinha do grande galo, A tua vida
um segredo, Moleque indigesto ou Ride palhao.
Alis, Lamartine inovou todo o arcabouo literrio da MPB com um sen-
timento de non-sense insupervel, autor do surreal e do absurdo, o que
talvez seja a sua contribuio esttica mais importante para a cultura
musical do pas. Na marchinha Histria do Brasil, ele se sai com essas
prolas, um verdadeiro painel surrealista premonitoriamente tropicalis-
ta: Quem foi que inventou o Brasil / Foi seu Cabral / No dia 22 de abril
/ Dois meses depois do carnaval. Lamartine conclui essa obra-prima da
poesia popular do absurdo assim: Depois Ceci amou Peri / Peri beijou
Ceci / Ao som do Guarani / Do Guarani ao guaran I Surgiu a feijoada e
depois o parati. Mais lonesco ou Dali, impossvel.
Lamartine, radialista famoso que integrou o Trio do Osso no famosssimo
programa radiofnico Trem da Alegria, foi um compositor completo. Mes-
mo com o maravilhoso repertrio carnavalesco, comps para o chamado
perodo de meio de ano um grande nmero de msicas em que quase todos
os gneros musicais foram experimentados. Valsas como Eu sonhei que
Joo Roberto KellyRio d Samba
1976 - Coronado/EMI-Odeon
Coleo Instituto Cravo Albin
Tristeza,porfa
vorvaiembora
Minhaalmaquechora
Estvendoom
eufim...
Niltinh
oTristeza/HaroldoLobo-Triste
za
tu estavas to linda S ns dois no salo e uma valsa e Alma dos
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tu estavas to linda , S ns dois no salo e uma valsa e Alma dos
violinos, alm de canes, como No rancho fundo e Serra da Boa Es-
perana, esto sempre guardadas nos coraes brasileiros e na garganta
de qualquer seresteiro que se preze.
Lamartine teria seguidores nas dcadas subsequentes, como Haroldo
Lobo (Al-la-, parceria com outra grandssima figura de letrista, o cari-
caturista Antnio Nssara, Emilia, O passarinho do relgio, Pra seu
governo e o pstumo Tristeza, com Miltinho) ou Joo Roberto Kelly,
autor de peas conhecidssimas no perodo final das marchinhas carnava-
lescas (anos 60 e 70) como Cabeleira do Zez, Mulata Bossa-Nova,
Rancho da Praa Onze, antes do advento do sucesso pblico da msica
das escolas de samba.
Tambm herdeiros do talento de reis do carnaval como Lal ou Braguinha
(Carlos Alberto Braga), o Joo de Barro, autor fundamental de mais de 500
composies entre as quais Touradas em Madri, Gato na tuba, Yes,ns temos bananas, Balanc, Chiquita Bacana, Vai com jeito, alm
de Carinhoso e Copacabana), figuras expressivas a serem aqui relem-
bradas sero sempre Jota Jnior, parceiro de Braguinha em 20 composi-
es e autor de xitos como Confeti e Favela amarela, ou Lus Antnio,
compositor de talento quase sempre voltado para os problemas sociais,
autor de Lata dgua e Sapato de pobre (ambas com J. Jnior), ouBarraco, dignas de qualquer antologia do melhor samba carnavalesco.
Olha a cabeleira do ZezSer que ele | Ser que ele Ser que ele bossa nova | Ser que ele Maom
Parece que transviado | Mas isso eu no sei se ele ... Joo Roberto Kelly e Roberto Faissal - Cabeleira do Zez
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O ano de 1933 traz para a cena artstica o primeiro sucesso do quarto dos
cinco compositores que iluminaram a poca de ouro com cinco grandes
bagagens musicais, quer qualitativa, quer quantitativamente.Ataulfo Alvesde Souza (Mirai, Zona da Mata, MG, 1909 - Rio, 1968) era filho de la-
vradores muito pobres, que mal tiveram condies de lhe dar a educao
primria. Por isso, o rapazola chegou ao Rio para tentar a vida (1927) e
foi morar no Estcio dos malandros sambistas. Ali Ataulfo exerceria as
mais modestas profisses, desde office-boy at prtico de farmcia. Mas
a msica popular era ainda mais forte que os mltiplos trabalhos em quese metia. Logo, logo, Ataulfo comeou a participar das noites de samba e
de bomia do j afamado grupo de sambistas do Estcio. Assim comeou
como compositor, consolidando seu prestgio nas trs dcadas seguintes
como autor de uma das grandes obras solitrias da msica popular brasi-
leira. Por que solitria? Porque toda ela guarda uma impecvel e elegante
unidade estrutural, no apenas na chancela meldica (qualquer observa-dor mais atento capaz de reconhecer uma melodia ataulfiana), mas tam-
bm, o que um fato igualmente singular, na parte potico-literria. Ou
seja, Ataulfo Alves colocou melodias usualmente tristes a servio de le-
tras no mais das vezes melanclicas, saudosas, romanticamente dodas.
Eu diria que a ancestralidade negra de Ataulfo lhe conferiu todo o banzo,o semba de suas melodias. O prprio temperamento retrado e minei-
Altaulfo AlvesAtaulfo Alves e suas Pastoras
1959 - Sinter
Coleo Instituto Cravo Albin
Helena de LimaAtaukpho por Helena de Lima
e Adelton Alves - 1969Acervo Museu da Imagem e do Som
ro, a pobreza dos pais e de sua infncia e ainda, talvez, suas primeiras
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, p p , , p
decepes amorosas como ele certa vez me confidenciou lhe tero
dado a tristeza das letras, em que no mais das vezes existem preciososachados poticos. Se bem que tivesse aparecido com Tempo perdido
em 1933, registrado por Carmen Miranda, o ano de 1940 foi mesmo
o marco decisivo na vida e carreira do mestre Ataulfo. Isso porque ele
estreia tambm como cantor condio em que atuaria at sua morte
com um samba Leva meu samba, mais tarde transformado num
dos clssicos do compositor: Leva meu samba / Meu mensageiro, este
recado / Para o meu amor primeiro.
Logo depois de registrar sua voz em disco, Ataulfo comporia a obra-prima
Ai que saudades da Amlia, em parceria com o poeta e letrista Mrio
Lago, outra grande figura, misto de poeta, ator e autor de teatro e rdio.
Os versos foram inspirados a Mrio por uma empregada de Aracy de
Almeida chamada Amlia. Mas, segundo Ataulfo me testemunhou em
depoimento para o Museu da Imagem e do Som, acabaria por cortar
muita coisa dos versos do parceiro. O que originou uma briga entre am-
bos, logo tornada sem efeito, at pelo sucesso que fez o samba. Alis, h
outro fato curioso sobre Amlia: ele mostrou a msica a vrios cantores
da poca, que se recusaram a grav-la. Todos a consideraram um samba
desinteressante e menor. Foi por isso que ele se arriscou mais uma
vez como cantor, registrando Amlia em disco, acompanhado por sua
Academia de Samba, mais tarde o conhecidssimo grupo Ataulfo Alves e
suas Pastoras.
A partir de ento a carreira de Ataulfo manteve-se acesa, exibindo-se
sempre com suas pastoras em shows, rdios, boates e teatros e compondo
maravilhas como Atire a primeira pedra, Fim de comdia, Errei, sim,
Vai na paz de Deus, Entre ns tudo acabado, Pois (revitalizando
o samba em 1954, poca de crise em que samba no tinha vez), Mulata
assanhada (um raio de sol em sua tristeza que lanava o cantor Miltinho
Mario LagoLetrista de escol, parceiro
de Ataufo e Custdio (entre tantos),
tambm radialista e ator.
Coleo Instituto Cravo Albin
em 1960) e Na cadncia do samba, quando profeticamente Ataulfo dizia:
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Quero morrer / Numa batucada de bamba / Na cadncia bonita do samba
/ O meu nome / Ningum vai jogar na lama / Diz o dito popular / Morre ohomem / E fica a fama. E ficou mesmo a fama, apesar de hoje injustamente
esmaecida, quando mestre Ataulfo morreu sem ningum esperar, vitimado
por uma lcera de duodeno que ele considerava de estimao.
Apenas no penltimo ano da dcada de ouro chega para o cancioneiro do
povo o quinto daqueles que eu costumo considerar, embora temeraria-mente, reconheo, como os cinco grandes compositores dos opulentos
anos 30: Dorival Caymmi. Caymmi nasceu em Salvador (1914) e aos 24
anos decidiu tentar a sorte no Rio. A bordo de um Ita do Norte, chegou
ao Rio em abril de 1938. Apadrinhado por Assis Valente o primeiro
compositor baiano de sucesso no Rio e por Lamartine Babo, o jovem
violonista e cantor estreou como free-lancer na Rdio Nacional, de ondesairia contratado pela Rdio Tupi. A cantaria uma msica que depois
daria muito o que falar: um samba brejeiro, inspirado estilstica e litera-
riamente em peas anteriores de Ary Barroso, chamado O que que a
baiana tem.
O sucesso de Caymmi se esboou quando o cineasta Wallace Downeyapostou nele para substituir, de um dia para o outro, o quadro em que
Carmen Miranda filmaria cantando Na baixa do sapateiro, de Ary, que
havia se desentendido com Downey e retirara sua msica do filme. Dessa
maneira, O que que a baiana tem entrou em Banana-da-terra (1939),
mais um dos famosos abacaxis feitos para serem exibidos antes do car-
naval. Alis, os musicais dos anos 30 e 40 eram chamados de abacaxis como, nos anos 50, de chanchadas porque tinham no tnue enredo
apenas o pretexto para exibir um grande nmero de quadros musicais
com os intrpretes mais famosos do carnaval de cada ano. Desse modo,
dois coelhos eram acertados com uma s cajadada: divulgavam-se as m-
sicas e se exibiam os donos das vozes para todo o pas. Da tela para o
registro fonogrfico foi um pulo: em fevereiro de 1939, Caymmi gravariaa msica e estrearia pela Odeon, tocando violo e cantando em dupla
Dorival Caymmi, 1956Coleo Instituto Cravo Albin
com Carmen Miranda, a rainha absoluta da poca de ouro. O Senhor do
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Bonfim o protegia...
Ningum mais baiano na arte da vida do que Dorival Caymmi. No
toa sua obra excepcional elaborada lentamente, gota a gota, palavra
a palavra.
curioso notar-se na obra de Caymmi uma fidelidade s suas razes,
isto , ao povo da Bahia e magia de sua cidade natal. Caymmi talvezseja o maior menestrel que uma cidade brasileira jamais teve. Pode-se
afirmar que os mistrios e belezas da Bahia se popularizaram pelo canto
de Caymmi. Foram dezenas de peas que divulgaram sempre e sempre
sua cidade: Samba da minha terra torna clssica a expresso: Quem
no gosta de samba / Bom sujeito no / ruim da cabea / Ou doente
do p. Em 365 Igrejas, ele cita um aspecto urbanstico importante deSalvador, as slidas igrejas coloniais, um dos tesouros mais valiosos da
arte brasileira. Em Dois de Fevereiro e Meu Senhor dos Navegantes
refere-se a um outro ponto alto de sedimentao cultural da Bahia: os
festejos populares em que o sincretismo religioso de origem africano-
portuguesa uma constante. Em Coqueiros de ltapo e Lagoa do Abaet
insiste nos conjuntos paisagsticos da cidade de Salvador, partindo delespara cantar as lendas do povo da Bahia, to frtil de imaginao.
Desses retratos da Bahia, em que Caymmi recria diversos ngulos desua cidade - no poderia faltar a culinria. Ele mesmo, cozinheiro curioso e
conhecedor da arte e dos segredos da comida tpica baiana, fez o samba
Vatap, nico na histria da msica popular a descrever com originali-
dade e bom gosto como se deve proceder para o preparo de um vatap,
o principal dos pratos tpicos da culinria afro-baiana. Esse amor to de-
votado sua terra, contudo, revitaliza-se com exatido no samba Vocj foi Bahia, que a meu ver valeu mais para a Bahia do que todas as
Quem no gosta de samba | Bom sujeito no ruim da cabea |Ou doente do p... Dorival Caymmi
Dorival CaymmiCanes Praieiras1954 - Odeon
Coleo Instituto Cravo Albin
Dorival CaymmiEu Vou pra Maracangalha1957 - Odeon
Coleo Instituto Cravo Albin
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campanhas publicitrias sofisticadas e carssimas. Que, alis, lhe pagou
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Polmica Musical: Definies Estticas
com a praa Dorival Caymmi e uma casa. Convenhamos: muito pouco.
Esse Caymmi to arraigado Bahia atingiria o melhor de sua obra nas
chamadas canes praieiras. Baseadas na paisagem humana e fsica das
praias da Bahia, so muitssimo inspiradas nas cantigas do povo, cantigas
folclricas transmitidas oralmente de gerao a gerao. Caymmi nelas se
embebeu para juntar uma das mais belas colees de canes sobre o mar
de que este pas, ou qualquer outro, tem notcia. Canes como Noitede temporal, doce morrer no mar, A jangada voltou s, Quem
vem pra beira do mar, O vento, O canoeiro e especialmente O
mar (a primeira delas, 1938) constituem um conjunto capaz de engran-
decer e honrar qualquer msica. De qualquer pas do mundo.
No gostaria de encerrar a breve citao poca de ouro sem me referir
a uma clebre polmica musical talvez a mais famosa dentro de todas
as mantidas dentro da MPB. E certamente uma sntese preciosa de defini-
o scio-cultural da ambincia de msica ao comeo da poca de ouro.Um tratado sociolgico, feito por puro acaso, em forma de samba. E com
ela eu me detenho num compositor chamado Wilson Baptista. O outro
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participante da polmica foi Noel Rosa, aqui j homenageado.
Wilson comeou a vida muito cedo na baixa bomia do Rio, onde aos 18
anos j aparecia como sambista nos cabars da Lapa antiga e nas zonas
de meretrcio. Ele retomaria no s estilstica mas tambm socialmente
a obra de lsmael Silva. Devo reconhecer que ao comeo dos anos 30 os
compositores de classe mdia tomaram quase que de assalto o ambiente
artstico, relegando os sambistas analfabetos de condio scio-culturalmais baixa a um plano inferior. Por isso mesmo no estarei longe da
verdade se afirmar que Wilson influenciou sambistas do seu nvel social
como Geraldo Pereira, Paulo da Portela, Gordurinha, Z da Zilda, Raul
Marques, Bucy Moreira, Rubem Soares e at mesmo compositores como
Roberto Martins, Marino Pinto, Pedro Caetano e Claudionor Cruz, estes
j um pouco mais sofisticados na ambincia social.
O sestroso compositor fluminense (natural de Campos)Wilson Baptistafreqentou as rodas mais quentes da bomia da poca, do morro da
Mangueira ao Mangue (prostituio carioca), da Lapa ao Estcio.
Semianalfabeto e vindo das camadas mais pobres da sociedade de ento,
comeou a pontificar nos lugares onde lsmael, Nilton Bastos, Baiaco,
Bide, Brancura ou Alvaiade eram os reis: a bomia e a malandragem doEstcio de S e da Lapa antiga, tanto uma quanto outra seu habitat e sua
Arcos da Lapa (em primeiro plano)Rio Antigo - 1905
Coleo Instituto Cravo Albin
Noel Rosa x Wilson BatistaPolmica
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escola de vida e samba. Ele mesmo me contou no ano em que morreu
que bem no comecinho da carreira s vivia da msica e da devoo das
empregadas domsticas do bairro, que o sustentavam com almoos e
jantares subtrados das casas dos patres.
Por isso tudo bem fcil entender que o primeiro sucesso de Wilson
Baptista como compositor faria a apologia da malandragem no melhor
estilo de lsmael e do seu O que ser de mim (Se eu precisar um dia /
De ir pro batente / No sei o que ser / Pois vivo na malandragem / E vida
melhor na h...), Pois bem, a msica de Wilson chamou-se Leno no
pescoo, cujos versos traavam um exato retrato do malandro carioca dadcada de 1930. Teve tanto sucesso na gravao de Slvio Caldas (1933)
1956 - Odeon
Coleo Instituto Cravo Albin
que Noel Rosa, ento j muito respeitado e com inmeros sambas gravados,
resolveu contestar essa exaltao malandragem
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resolveu contestar essa exaltao malandragem.
O samba do Wilson traava o seguinte perfil dele mesmo: Meu chapu
de lado / Tamanco arrastando / Leno no pescoo / Navalha no bolso / Eu
passo gingando/ Provoco desafio / Eu tenho orgulho de ser vadio. A que
Noel retrucou com Rapaz folgado: Deixa de arrastar o teu tamanco /
Pois tamanco nunca foi sandlia / Tira do pescoo o leno branco / Bota
sapato e gravata l Joga fora esta navalha que te atrapalha... A saborosae muito definidora polmica Wilson e Noel se manteria acesa. Wilson
saiu-se com a rplica Mocinho da Vila, em que confirmava a apologia
do malandro e atacava Noel diretamente: Voc, que mocinho da Vila
/ Fala muito em violo, barraco e outros fricotes mais / E se no quiser
perder o nome / Cuide do seu microfone / E deixa quem malandro em
paz / Injusto o seu comentrio / Fala de malandro quem otrio.
Para responder a Wilson, Noel lanou uma trplica imorredoura para
a MPB, Palpite infeliz, em que afirmava conclusivamente: Quem
voc que no sabe o que diz / Meu Deus do cu que palpite infeliz.
Wlson Batista, naquela poca pouco mais que um malandro frajola de
vinte anos, voltou carga com um samba custico e muito deseleganteintitulado Frankstein da Vila. Nele atacava Noel com grosseria: Boa
impresso nunca se tem / Quando se encontra um certo algum / Que
at parece um Frankstein / Mas como diz o refro / Por uma cara feia /
Perde-se um bom corao.
Quando a polmica atingiu o ponto em que Wilson ridicularizava a feiurade Noel, o compositor da Vila no quis mais prosseguir. Respondeu indi-
retamente com um samba lrico, a obra-prima Feitio da Vila: Quem
nasce l na Vila / nem sequer vacila / ao abraar o samba... Wilson Batis-
ta voltou, contudo, carga com mais uma msica em que falava mal de
Vila Isabel e das vantagens cantadas em Feitio da Vila. Em Conversa
fiada, a ironia era direta: conversa fiada / Dizer que na Vila tem feitio/ Eu fui ver pra crer / E no vi nada disso. Noel calou-se de vez, mas
Quemnasce
lnaVila/nemsequervacila/aoabraar
osamba...
NoelRo
saeVadico-FeitiodaVila
Wilson ainda insistiria com Terra de cego: Perca essa mania de bamba
/ Todos sabem qual / O teu diploma de samba / s o abafa da Vila bem
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/ Todos sabem qual / O teu diploma de samba / s o abafa da Vila, bem
sei / Mas em terra de cego / Quem tem um olho rei.
Apesar de tentar resumir os compositores da poca de ouro em cinco
vultos, no poderia deixar de registrar outros nomes que so igualmente
muito importantes. O primeiro deles o de Herivelto Martins, que es-treou a partir de 1935 com as atividades mltiplas de compositor, cantor
e arregimentador de conjuntos, o mais famoso dos quais foi o Trio de
Ouro. Neste conjunto lanou Dalva de Oliveira, sua mulher at 1949,
quando o casamento acabou rumorosamente, gerando uma polmica p-
blica e tambm musical. Herivelto autor de algumas obras-primas do
nosso cancioneiro, especialmente Ave Maria no morro e Caminhemos,ambas de repercusso internacional, alm de Praa Onze, Que rei sou
eu, Isaura, A Lapa e Minueto, clssicos de carnaval.
O compositor fluminense Herivelto Martins foi at produtor executivo
de Orson Welles c no Rio em 1942, quando o astro americano rodou o
fime nunca acabado Its all true.
Outro compositor relevante nos anos 30, praticamente esquecido hoje,foi Joubert de Carvalho, autor de obra modesta em tamanho, mas de
Trio de OuroTrio de Ouro e Seus Sucessos
1959 - RCA-Victor
Coleo Instituto Cravo Albin
Herivelto Martins
Um Compositor em doistempos - Jubileu de Prata deHerivelto Martins
1957 - Copacabana
Coleo Instituto Cravo Albin
Dalva de OliveiraRancho da Praa Onze
1965 - Odeon
Coleo Instituto Cravo Albin
enorme repercusso no canto dos anos 30 e 40, a comear pela marcha
Ta (que lanou Carmen Miranda para o sucesso em 1930) ou pela
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Ta (que lanou Carmen Miranda para o sucesso em 1930) ou pela
cano Maring (que daria nome a uma cidade no Paran) e a terminarpela srie de valsas e canes registradas por todos os melhores intrpretes
dos anos 30-40, como Orlando, Slvio, Galhardo e Chico Alves.
Cumpre ainda traar breve perfil de Jos deAssis Valente, um cronista
carioca de mo-cheia apesar de ter nascido na Bahia e que foi autor de reper-
cusso dentro e fora da poca de ouro. Suas msicas so gravadas at hoje:Brasil pandeiro (1943), Boneca de pano (1953), Boas festas (1933,
seu sucesso inicial). Alm dos maravilhosos sambas-crnicas, a maioria dos
quais imortalizada entre 1936 e 1940 por sua grande intrprete, Carmen
Miranda: Uva de caminho, Recenseamento, E o mundo no se aca-
bou, Camisa listrada. Ou mesmo a joia rara Fez bobagem, que Aracy de
Almeida gravou num dos registros mais inspirados (1943) de sua excepcio-nal carreira de intrprete. Assis se suicidou num banco da Praa Paris (Rio),
j pobre e esquecido, quando s se falava da Bossa Nova naquele final dos
anos 50. Apesar de baiano por nascimento, ningum foi mais carioca do que
Assis Valente no esprito para fazer de suas msicas crnicas do Rio.
Outro perfil indispensvel na poca de ouro atendia pelo nome de
Custdio Mesquita. O sedutor pianista e maestro Custdio Mesquita
Pinheiro foi autor de obra pequena mas sofisticada, que teve grandes
intrpretes como as irms Carmen e Aurora Miranda, Orlando Silva e
Silvio Cadas. Se a lua contasse marca a estreia de Aurora, enquanto
canes como Os rios correm pro mar, Mulher, Me Maria ou Algodo
assinalam um dos pontos mais altos do intrprete Slvio Caldas em disco.
E o clssico Saia do caminho (em parceria com Evaldo Rui, seu letrista
na maioria das outras canes) j recebeu dezenas de regravaes, a partir
do disco original de Aracy de Almeida.
No h como no se aceitar o fato de que o Rio, na condio de capitalfederal, foi o epicentro da poca de ouro. Mas outros compositores, se
Vestiuuma
camisalistrada
esaiupora|
Emvezdetom
archcom
torradaeleb
ebeuparati|Levavaumcanivetenocintoeumpandeiro
namo|E
sorriaquandoopovodizia:so
ssegaleo,sossegaleo...
AssisValente-CamisaListrada
bem que tivessem obtido repercusso nacional atravs do Rio, nunca
deixaram de morar em seus estados de origem. Trs deles resumem toda
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deixaram de morar em seus estados de origem. Trs deles resumem toda
essa gente da MPB que sempre manteve o p isto , a residncia emsuas cidades natais: Capiba no Recife, Lupicnio Rodrigues em Porto Ale-
gre e Waldemar Henrique em Belm do Par. Capiba (Loureno da Fon-
seca Barbosa) autor de dezenas de frevos e canes que no chegaram
a sair dos carnavais de Recfe-Olinda. Mas h peas que, via Rio, se imor-
talizaram no cancioneiro popular (Maria Bethania, Valsa verde, Cais
do porto). Como seu conterrneo Nelson Ferreira nos frevos de rua,Capiba o compositor oficial dos mais belos frevos-canes e de muitos
maracatus, os trs gneros musicais mais conhecidos de Pernambuco,
dotados de grande dinamismo, beleza e arrebatadora energia.
Compositor singularssimo de sambas-canes que mergulham fundo no
bas-fond e nos cabars, o gacho Lupicnio Rodrigues o poeta dabomia e das prostitutas. Lupe construiria uma obra solitria, cuja per-
sonalidade de chancela autoral me faz lembrar Ataulfo Alves. Lupicnio
estreou para o reconhecimento pblico do pas com o samba Se acaso
voc chegasse (1938, com Felisberto Martins), responsvel pelo lana-
mento do sambista Ciro Monteiro (1938), um dos melhores sambistas
de todos os tempos (na minha opinio pessoal, o melhor), e tambm
Elza Soares em 1959. Logo depois, contudo, sua obra tomaria a marca
CapibaCarnaval Capiba III.
Frevo alegria da gente
1974 - Passarela LPColeo Instituto Cravo Albin
Lupicnio RodriguesMestres da MPB
1994 - Continental
Coleo Instituto Cravo Albin
registrada que a consagrou: sambas-canes narrando a vida dos cabars
e de suas trgicas mulheres, embrulhadas numa tnica potica de versos
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g , p
originalssimos (Maria Rosa, Cadeira vazia, Nervos de ao, Vinganae tantos mais).
Waldemar Henrique (Belm, 1905 - Belm, 1996) foi o mais retrado e
sofisticado dos trs. Msico, pianista e maestro, o tmido Waldemar cons-
truiria o melhor de sua obra com canes semicamersticas sobre as lendas
dos ndios da Amaznia (Tambataj, Curupira, Boi-bumb, Foi boto,sinh). Embora o que pelo menos curioso tivesse comeado no
Rio com o samba-exaltao Meu Brasil (gravao de Chico Alves), em
plena dcada de 1930. Mais tarde, em 1958, seria o primeiro compositor
a musicar (uma msica-tema) o clebre poema Morte e Vida Severina, de
Joo Cabral de Melo Neto, depois todo retrabalhado por Chico Buarque de
Holanda. Raro e belo exemplo de potencialidade musical e do povo amaz-nico nos anos 30, Waldemar Henrique foi maestro, pianista e poeta.
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A partir do comecinho dos anos 1940, o Brasil e a msica do povo so-
freriam os reflexos da guerra mundial, que fazia mergulhar a Europa no
inferno. Como no poderia deixar de ser, a msica popular se ressentiu
em qualidade e em quantidade. As emissoras de rdio estavam mais ocu-
padas em transmitir todos os lances do desenvolvimento da guerra do
que em apresentar novas msicas ou intrpretes. E os compositores noencontravam, no clima de consternao em que vivia o povo, os elemen-
tos de alegria e descontrao para faz-lo cantar.
Exatamente em 1945, como que a saudar o fim do conflito, surge uma
figura de rara importncia dentro do cancioneiro. Ele sustentaria o rit-
mo e as origens brasileiras pelos anos de crise para a MPB que o fim daguerra indiretamente traria: a avalanche de msicas norte-americanas
ou as importadas pelos Estados Unidos e despejadas em todo o mundo,
sobretudo no Brasil.
O fenmeno, alis, de compreenso muito clara: os Estados Unidos
saram da Segunda Grande Guerra como pas vitorioso e em fase de ex-panso mundial, propulsionada pela exportao internacional em massa
O Ps-guerra: A Solaridade do Baioe a Lunaridade do Samba-Cano
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de seu poderoso parque industrializado, atrs do qual vinha a indstria
da diverso. A indstria do lazer representava a consolidao cultural
norte-americana no mundo: os filmes, os discos e a msica popular,
com todos os seus modismos, ainda mais sedutores pelas engenhosas
campanhas de marketing com que eram promovidos, remetendo-os
quase sempre juventude.
A figura excepcional a que me refiro, e que teve decisiva partici-
pao dentro da afirmao de uma cultura nacional mais ligada s fontes
do Brasil, foi Luiz Gonzaga. Em 1945, j no Rio e iniciando-se na vidaartstica, tornou-se amigo do jovem advogado e poeta cearense Humberto
Teixeira. Ambos chegariam a uma concluso importantssima a respeito de
um ritmo nordestino praticamente desconhecido, o baio, que j havia
sido experimentado pelo cearense Lauro Maia, mas sem maiores reper-
cusses. Os dois concordaram em lan-lo nacionalmente, j que, segun-
do Gonzaga, o baio era o mais urbanizvel dentre todos os ritmos donordeste. O Brasil, ento, foi surpreendido por algo novo, cheirando ao
perfume da raiz e do cho brasileiros.
Graas fora telrica e veemncia vocal de Luiz Gonzaga, o
baio no somente se manteria nos anos 50