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Getlio Vargas uma memria em disputa
Marieta de Moraes Ferreira*
Em 2004 comemoraram-se no Brasil os 50 anos do suicdio do presidente
Getlio Vargas evidentemente comemorar no tem aqui o sentido de celebrar, e
sim de trazer de volta lembrana. O interesse e a mobilizao provocados pela data
se expressaram em uma grande variedade de eventos, como seminrios, exposies,
debates, construo de memoriais, artigos em revistas especializadas, cadernos especiais
nos jornais, programas de televiso, rdio etc. No era a primeira vez que isso acontecia.
Na verdade, desde 1954 se pode constatar uma recorrncia de eventos relacionados
memria de Vargas. Uma palavra sobre o personagem se faz necessria, antes que
passemos a refletir sobre essa memria.
Getlio Vargas um personagem mpar na histria do Brasil. Nascido na cidade
de So Borja, no estado do Rio Grande do Sul, situado no extremo sul do pas, foi
deputado, ministro da Fazenda e presidente de seu estado antes de concorrer
presidncia da Repblica em 1930, como candidato de oposio. Derrotado nas
eleies, liderou o movimento revolucionrio deflagrado em 3 de outubro daquele ano,
que acabou vitorioso e o levou chefia do governo provisrio do pas. Quatro anos
depois, foi eleito indiretamente presidente constitucional. Em 1937, fechou o Congresso
e implantou uma ditadura que foi chamada de Estado Novo. No perodo ditatorial que
coincidiu em parte com os regimes de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar , deu
continuidade estruturao de um Estado nacionalista e intervencionista. Tornou-se
extremamente popular, foi chamado de pai dos pobres, mas em outubro de 1945, aps
15 anos de governo, foi deposto. Ainda assim, meses depois foi eleito senador e, ao
declarar seu apoio ao candidato do Partido Social Democrtico (PSD), general Eurico
Dutra, contribuiu para a vitria deste na eleio presidencial. Voltou ao poder em 1950,
agora eleito presidente na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e iniciou seu
segundo governo em 1951, sob forte oposio da UDN (Unio Democrtica Nacional).
* Doutora em Histria, professora do Departamento de Histria da UFRJ, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getlio Vargas (CPDOC/FGV).
FERREIRA, Marieta de Moraes. Getulio Vargas: uma memria em disputa. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006. 16f.
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Diante do acirramento dos conflitos polticos e da possibilidade de ser mais uma vez
deposto, ps fim prpria vida no dia 24 de agosto de 1954. Deixou uma carta-
testamento nao que causou grande comoo popular e, mesmo morto, foi o grande
eleitor no ano seguinte de Juscelino Kubitschek, eleito presidente com o apoio da
aliana PSD-PTB.
O fato de que desde 1954 a lembrana de Vargas tenha sido cultivada refora a
tese de que a memria tem sido uma das preocupaes culturais mais importantes das
sociedades contemporneas. Esse debruar-se constante sobre o passado recente conduz
produo de uma cultura da memria que se materializa de vrias maneiras, entre elas
as comemoraes. Eventos desse tipo, como vrios estudos tm demonstrado1, no so
porm incuos: expressam estratgias de controle do passado para poder comandar o
presente, e nesse sentido so marcos de mutaes sociais.
Nas prticas comemorativas de 2004 sem dvida houve uma inteno de discutir
o legado de Vargas. Afinal, a Era Vargas, com seu projeto nacionalista tendo o Estado
como eixo central, tornara-se uma matriz de referncia nas discusses de uma agenda
poltica e econmica para o pas. Mas que elementos foram agora ressaltados? A
primeira constatao que em 2004 as atenes se concentraram no segundo governo
(1951-1954). Foi uma poca de crescimento econmico, de implantao de polticas
industriais que estimularam a ampliao do mercado de trabalho, o que possibilitou
maior incluso social, tudo isso dentro da vigncia de normas democrticas. Nos dias de
hoje, compreensvel que esse cenrio provoque nostalgia naqueles que voltam o olhar
para a dcada de 1950. Integrar o pleno funcionamento da democracia com a retomada
do crescimento econmico e a diminuio das desigualdades sociais o grande desafio
colocado pela atualidade. Nota-se, assim, uma avaliao positiva nas falas veiculadas
sobre Vargas, ficando em plano secundrio as vozes que denunciam o legado autoritrio
e a histria de represso poltica de seu primeiro governo.
Nem sempre, porm, este foi o tom das comemoraes realizadas em torno de
Vargas. Nos 50 anos que se seguiram sua morte, tampouco o pas continuou o mesmo:
experincia democrtica iniciada em 1946, sucederam-se, a partir de 1964, 20 anos de
ditadura militar, at que em 1985 se iniciasse novo processo de construo da
democracia. Veremos a seguir como a memria de Vargas foi reelaborada em diferentes
1 Ver: NORA, Pierre. Entre a memria e a histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria, So Paulo, n. 10, dez. 1993, p.7-29; OLIVEIRA, Lcia Lippi. A Amrica hoje: comemorando o qu? Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, 1994, p.291-304; GILLIS, Jonh R. Commemorations: the politics of national identity. Princeton, Princeton University Press, 1994.
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conjunturas, apontando as especificidades de cada momento histrico, para, ao final,
analisarmos mais detidamente o boom de memria de 2004.
1964: a queda do imprio getuliano
Se recuarmos no tempo, iniciando nosso estudo em 1964, poderemos verificar
com clareza as distines entre as prticas comemorativas ligadas a Vargas. O ano de
1964 especialmente interessante como ponto de partida, j que foi ento que ocorreu o
golpe militar que ps fim ao sistema poltico inaugurado em 1946, no qual Vargas
exerceu um papel central prova disso que mesmo aps sua queda em 1945, e sua
morte em 1954, elegeu seus candidatos e continuou sendo uma referncia poltica
fundamental. No de espantar que a deposio em maro de 1964 de seu principal
herdeiro, o presidente Joo Goulart, e o afastamento da cena poltica de um grande
nmero de partidrios do PTB e do PSD tenham proporcionado uma conjuntura
negativa para o cultivo de sua memria. Os militares que tomaram o poder em 1964
apresentavam-se como aqueles que iriam pr fim Era Vargas. Vejamos portanto,
como, no ms de agosto, quando era comum a realizao de eventos que relembravam a
importncia de Vargas e o significado de sua morte, ocorreram tais comemoraes. Isto
: que elementos foram trazidos a pblico na passagem dos dez anos da morte de
Getlio Vargas.
A queda do imprio getuliano foi o ttulo de uma reportagem especial
publicada no Jornal do Brasil, um dos principais do pas, no domingo 23 de agosto de
1964. O conjunto dos textos que compunham a reportagem expressava certa
ambigidade. Ao mesmo tempo que o ttulo apontava para o fim de uma era, tambm
eram lembrados momentos de glria e a relevncia histrica do lder trabalhista. Trs
grandes matrias procuravam enfocar sob diferentes ngulos sua trajetria. A primeira
tratava exclusivamente dos aspectos pessoais, da infncia at a formao na Faculdade
de Direito e o incio da vida profissional como promotor. Ainda que de carter pouco
opinativo, o texto deixava entrever simpatia pelo personagem. Uma segunda matria
consistia em uma cronologia comentada dos principais fatos polticos que contaram com
a participao de Vargas, como a Revoluo de 1930, o golpe de 1937, a deposio em
1945 e a volta ao poder pelas urnas em 1950. Por fim, a matria intitulada Memrias
de agosto fazia uma retrospectiva dos principais fatos que antecederam o suicdio,
destacando o depoimento de Caf Filho (vice-presidente de Vargas e seu sucessor, cujo
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breve governo se aproximou da UDN), que apenas relembrava episdios vividos
naquele perodo, mas no enunciava qualquer julgamento, afirmando que um ex-
presidente no deve julgar um ex-presidente2. Talvez os ex-presidentes Kubitschek e
Goulart no pensassem da mesma forma, mas estavam no exlio e no foram ouvidos.
Um ponto que deve ser destacado nesse conjunto de matrias a preocupao de
apresentar um distanciamento diante do tema Vargas, expressa na ausncia de
avaliaes e de relaes com o tempo presente. Essa abordagem pode ser explicada
pelas prprias circunstncias polticas do momento. Se no era possvel deixar de
mencionar a importncia de Vargas na histria do pas na passagem dos dez anos de sua
morte, as possibilidades de expresso e de valorizao de sua herana eram muito
restritas, uma vez que seus principais herdeiros polticos estavam sendo alvo das
perseguies do regime militar.
1974: Vargas, o ditador
Se o golpe de 1964 foi visto por alguns como a segunda morte de Vargas,
tambm dessa vez a morte no significou a eliminao da herana. Mesmo que a
princpio o novo regime se opusesse a todas as referncias a ela, logo em seguida
delineou-se em seu interior um projeto autoritrio que inclua as idias de um Estado
centralizado e de um sindicalismo corporativista, e que assim se vinculava tradio
varguista. Como afirma o historiador Daniel Aaro Reis, eliminaram-se os principais
herdeiros da tradio nacional-estatista, mas foi necessrio assumir a herana, pelo
menos em parte, negociar com ela, em certa medida incorpor- la3 .
Assim, podemos nos perguntar como, em pleno regime militar, foi tratada a
memria de Vargas no vigsimo aniversrio do seu suicdio. Mais uma vez a partir da
imprensa4 verificamos que, mesmo em tempos de expresso poltica cerceada, a
memria de Vargas ainda se fez presente. Na Cmara dos Deputados, em Braslia, os
lderes dos novos partidos polticos criados pelo regime militar (a Arena, de apoio ao
governo, e o MDB, de oposio consentida) proferiram discursos em sua homenagem.
Naquele teatro oficial, o tom era de nfase ao desenvolvimento econmico. Mas houve
tambm algumas tmidas manifestaes fora daquele palco, isto , nas ruas do pas. No
2 Jornal do Brasil, 23/8/1964, Caderno B, p. 10 3 Ver, REIS, Daniel Aaro. O Estado sombra de Vargas. Nossa Histria, ano 1, n. 7, maio 2004, p.37. 4 Jornal do Brasil, 25/8/1974
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Rio de Janeiro, as homenagens se concentraram na praa da Cinelndia, em frente ao
busto do presidente. Flores foram deixadas ao p do monumento e duas mil cpias da
carta-testamento foram distribudas, muitas delas trazendo tambm os nomes de
candidatos ao Congresso Nacional. Os nomes no eram mencionados pelo jornal, mas
v-se como o uso poltico da memria de Vargas estava associado ao seu fim trgico: o
suicdio e a carta. Na capital do Rio Grande do Sul, o MDB homenageou Vargas com
uma missa e uma concentrao poltica diante do monumento carta-testamento.
Duas dcadas aps o suicdio de Vargas, no apenas contedos positivos foram
associados sua memria. Um artigo do jornalista Carlos Castello Branco, publicado
em Caderno Especial do mesmo Jornal do Brasil, um exemplo de que no havia uma
posio nica a seu respeito. O ttulo, A ditadura, j nos indica a posio do autor. A
censura praticada no Estado Novo, a ao repressora do governo diante das
manifestaes polticas, as prises efetuadas na poca so alguns aspectos rememorados
pelo jornalista, e a figura que emerge a partir da a de um Vargas ditador, odiado por
aqueles que defendiam a liberdade de expresso e a democracia. Para Castello Branco, a
ditadura de Vargas propiciava a corrupo sob todas as formas e se tornava ineficiente
como fator de mobilizao para o trabalho. (...) A ditadura por definio centralista,
mas no Brasil daqueles tempos, sem comunicaes, havia, alm de uma ditadura
estadual, ditaduras culturais5.
Na verdade, Carlos Castello Branco, que em muitos momentos fez crticas
ditadura militar implantada em 1964, parece se utilizar do combate ao autoritarismo do
Estado Novo para condenar as arbitrariedades do regime em vigor. O perodo era
especialmente crtico, pois representava o incio de uma transio poltica, com a
passagem do governo do general Mdici para o general Ernesto Geisel, quando foram
travados duros embates entre duas correntes do prprio regime militar de um lado, a
chamada linha dura, que defendia a continuidade dos militares no poder sem qualquer
possibilidade de liberalizao poltica e, de outro, a tendncia liderada por Geisel a uma
abertura poltica lenta e gradual.
Podemos dizer, portanto, que em 1974 ocorreram pelo menos trs modos de
apropriao da memria de Vargas: a do regime, que filtrava os contedos estatistas e
os usava a seu favor, a dos populares, fragmentada num culto carta-testamento, e a da
oposio, que utilizava a imagem ditatorial de Vargas para espelhar a realidade poltica
5 Jornal do Brasil, 25/8/1974, p. 4.
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do pas. Os espaos possveis de circulao de discursos sobre temas polticos eram
bastante restritos, e talvez este seja o aspecto mais relevante nessas comemoraes: a
ausncia de um debate aberto sobre o personagem histrico, bem como sobre o regime
poltico vigente no pas.
1983: uma comemorao diferente
A partir do final de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional n. 5, o mais
drstico da legislao de exceo editada pelo regime militar, os ventos da abertura
poltica comearam a soprar com mais fora. No ano seguinte foi decretada a anistia
poltica e a reforma partidria. Muitos exilados voltaram ao pas, e em 1982 houve
eleies diretas para governador. Foi nessa conjuntura que um outro tipo de
comemorao foi preparado em torno de Vargas: celebrou-se, em 1983, o centenrio de
seu nascimento. Diferentes eventos se realizaram, enquanto polticos e intelectuais
elaboravam diferentes discursos sobre o passado poltico do pas.
Uma grande exposio sobre a trajetria poltica de Vargas foi preparada pelo
Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil da Fundao
Getlio Vargas (CPDOC/FGV). A mostra estreou no Rio, percorreu o pas e fo i
amplamente divulgada na imprensa. Alm disso, pesquisadores do CPDOC publicaram
livros e artigos sobre a Era Vargas. Especificamente sobre o personagem Vargas, foi
publicado o livro de Paulo Brandi, Vargas: da vida para a histria.
Em outubro, estreou na cidade do Rio de Janeiro a pea Vargas, de dois
conhecidos autores de esquerda, Dias Gomes e Ferreira Gullar. O espetculo foi
financiado pelo governo do estado do Rio, com a intermediao direta do antroplogo e
educador Darcy Ribeiro, ento secretrio de Cultura. Mesmo com apoio oficial, a pea
que tinha por objetivo celebrar o centenrio de Vargas acabou gerando enorme
polmica. O governador Leonel Brizola importante herdeiro de Vargas exilado pelo
golpe militar, anistiado em 1979 e eleito em 1982 no ficou satisfeito com a verso
dos fatos apresentada e declarou publicamente: Passaram a tesoura na histria6. A
ausncia do personagem Joo Goulart na reconstituio dos fatos histricos foi a
principal crtica do governador. A imprensa noticiou a polmica, que acabou
arrefecendo quando vrias vozes saram em defesa da liberdade de expresso, algo que
6 O Globo, 5/10/1983.
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naquele momento parecia ser um trao comum mesmo queles que discordavam quanto
s verses da memria sobre a Era Vargas.
O fato de o pas estar vivendo um incio de abertura, com novas articulaes
polticas, possibilitou tambm a realizao de debates sobre a herana da Era Vargas.
Em Caderno Especial publicado pelo Jornal do Brasil (17/4/1983) especialistas
analisaram o papel histrico de Vargas e discutiram temas como o populismo, o
trabalhismo e o projeto econmico de seu governo. A discusso sobre a memria de
Vargas tornou-se, na verdade, uma via de acesso para discusses sobre a histria recente
do pas, a partir de comparaes entre os diferentes perodos histricos. A reestruturao
dos partidos polticos desencadeada em 1979 foi, por exemplo, discutida luz do
cenrio ps-1945, quando o pas viveu um retorno democracia. Se, conforme apontava
a cientista poltica Maria Celina DAraujo7 (1983), no ps-Estado Novo o getulismo e o
antigetulismo se impuseram como fatores determinantes do jogo poltico, no cenrio da
abertura dos anos 1980 no havia nenhum partido ou ncleo poltico declaradamente
antigetulista. Ao contrrio, o getulismo, e sobretudo o trabalhismo, passaram a ser
utilizados como trunfo eleitoral por vrios partidos. A explorao eleitoral voltava-se
para uma parte especfica da memria de Vargas, seu lado nacionalista e patritico, tal
qual exposto na carta-testamento.
Alm de artigos de pesquisadores acadmicos, os jornais publicaram biografias e
matrias de autores diversos que em geral ressaltavam a face positiva do passado
varguista. Um exemplo o texto assinado por Luiz Moreira (identificado como
advogado e piloto aposentado), que parece indicar os elementos mais importantes para
opinio pblica da poca. Em uma breve retrospectiva dos principais fatos da histria
recente do pas, o autor apontava Vargas como o principal lder poltico brasileiro e
silenciava sobre todo contedo que pudesse ser lido como reacionrio em sua trajetria.
A seguir, um trecho em que explicava qual seria o legado de Vargas: Apesar dos
crimes imputados a Vargas, o seu legado, graas viso nacionalista de um Brasil
independente, muito grande. Haja vista o avano industrial alcanado, a legislao
protecionista das nossas riquezas, como a eletricidade, minrios, petrleo, ferro e ao,
lcalis, transportes etc., no sentido de dotar o pas de estruturas e bases industriais
slidas. As reformas sociais, polticas, econmicas e culturais abrangendo todos os
7 DARAUJO, Maria Celina. O velho e o novo nos partidos, Caderno Especial, Jornal do Brasil, 17/04/1983.
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setores da vida nacional; a legislao e a previdncia social; as leis trabalhistas
atestam a memorvel contribuio progressista do ciclo Vargas8.
Nas comemoraes de 1983, deve-se portanto destacar o carter positivo que
emerge dos discursos sobre Vargas. Ainda que alguns artigos mencionassem a face
autoritria do lder, o foco no se fixava nessa questo. A memria incorporada dizia
respeito ao Vargas do segundo governo, democrtico e nacionalista, tanto assim que
os partidos procuravam assumir essa herana. E essa reafirmao de uma memria
positiva da Era Vargas iria ampliar-se com os avanos da abertura poltica. No ano
seguinte, quando entrou em questo a realizao de eleies diretas para presidente, a
comemorao dos 30 anos da morte de Vargas assumiria grande relevncia no cenrio
poltico.
1984: a Campanha das Diretas, as eleies presidenciais e a memria de Vargas
Segundo a legislao de exceo ainda em vigor no pas, a sucesso do general
Joo Figueiredo na presidncia, em 1985, seria definida por eleio indireta. Foi esse
princpio que um deputado da oposio, Dante de Oliveira, tentou derrubar, propondo
uma emenda que restabelecia a eleio direta do presidente da Repblica. No dia 10 de
abril de 1984, s vsperas da votao dessa emenda, realizou-se no Rio de Janeiro a
maior manifestao pblica a que o pas jamais havia assistido. Um milho de pessoas
foram s ruas no maior comcio da Campanha das Diretas, que mobilizou vrias capitais
do pas. No dia 25 de abril, contudo, a emenda foi rejeitada pelo Congresso Nacional. A
oposio decidiu concorrer eleio indireta e lanou a candidatura de Tancredo Neves,
que recebeu tambm o apoio dos descontentes do partido da situao. Tancredo Neves,
poltico conciliador, era governador do estado de Minas Gerais e ex-ministro de Vargas.
Agosto de 1984. Tancredo Neves, o candidato da Aliana Democrtica formada
pelo PMDB e pelos dissidentes do governo, e Leonel Brizola, do Partido Democrtico
Trabalhista (o PDT, herdeiro do antigo PTB), ao lado de outros lderes, organizam uma
caravana que vai a So Borja prestar homenagem a Vargas. Naquele 24 de agosto, a
memria de Vargas trazida cena com o intuito de permitir a construo das bases de
uma aliana entre PDT e PMDB. Os dois partidos se uniram para reverenciar a memria
8 Jornal do Brasil, 19/6/1983.
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de Vargas, mas a preocupao, sem sombra de dvida, dizia respeito mais ao futuro que
ao passado.
A imprensa cobriu o evento de So Borja e publicou os discursos dos
protagonistas, ou seja, daqueles que se apresentavam como herdeiros de Vargas.
Tancredo Neves afirmou na ocasio: Getlio realmente aquele divisor de guas,
aquele que havia dado mais que a sua vida, havia dado todo o seu esprito ao servio da
emancipao poltica, econmica e social do nosso povo. (...) feliz a ptria que pode
possuir homens pblicos da sua estatura; feliz a nao que pode se honrar de ter tido um
filho deste vulto e deste porte9 .
Brizola lanou a idia de que o 24 de agosto fosse cons iderado dali em diante o
Dia da Carta-testamento: Mais que a morte do presidente Getlio Vargas, a referida
data assinala o lanamento daquele grande manifesto, cujo impacto e posterior
influncia sobre os destinos do povo brasileiro so de uma profundidade que ainda no
estamos em condio de avaliar. Divulgar o pensamento conclusivo do maior estadista
deste sculo uma questo cvica que interessa ao conjunto da Nao, com vistas s
novas geraes10 .
A carta-testamento assumia assim a feio de um documento-monumento,11
em que era reafirmado o iderio do segundo governo Vargas. Ao enfatizar os ideais
nacionalistas e o trabalhismo, seus herdeiros faziam dela seu legado poltico.
A redemocratizao do pas, impulsionada pela Campanha das Diretas, no
transcorreu sem percalos. Tancredo Neves foi eleito presidente em janeiro de 1985,
mas morreu antes de tomar posse. No governo de seu sucessor, o vice Jos Sarney,
todas as atenes se voltaram para o combate inflao, que progredia em ritmo
alarmante.
1994: a Era Vargas acabou
Diferentemente da dcada de 1980, quando ocorreu uma grande valorizao do
legado de Vargas, no incio da dcada de 1990 podem-se detectar avaliaes de teor
mais crtico, expressas numa frase corrente na poca: A Era Vargas acabou. Essa
9 Jornal do Brasil, 25/8/1984. 10 Jornal do Brasil, 26/8/1984. 11 Jacques Le Goff, retomando idias de Paul Zumthor, afirma: o que transforma o documento em monumento: a sua utilizao pelo poder. Assim, a noo de documento-monumento busca dar conta das relaes sociais dos vestgios histricos. Para o autor, s a anlise do documento enquanto monumento permite memria coletiva recuper-lo e ao historiador us-lo cientificamente, isto , com pleno conhecimento de causa (Le Goff, 1996: 545).
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percepo ligava-se ao questionamento do modelo de desenvolvimento econmico
inaugurado por Vargas e crena de que a agenda de seu segundo governo se havia
tornado anacrnica. Em 1994, a abertura da economia, a privatizao das empresas
estatais, a reduo da ao do Estado e o compromisso com um programa de controle
das contas pblicas e de ajuste fiscal representavam, para alguns analistas, a terceira
morte de Vargas.
O artigo com este ttulo do cientista poltico Bolivar Lamounier12 um marco
dessa perspectiva. Nele o autor assinalava a necessidade de situar o momento presente e
marcar suas diferenas em relao conjuntura poltica do ciclo Vargas. Era preciso
ver que, j contando com novas instituies, com uma opinio pblica livre, com novos
meios de comunicao, o pas estava em uma nova fase da construo democrtica, na
qual desaparecia a preocupao com a tutela das foras armadas sobre o sistema
poltico. Em suas palavras, podia-se assim afirmar que o getulismo e o antigetulismo
virulentos feneceram. Outras crticas ao legado da Era Vargas foram expressas na
ocasio, como fez, por exemplo, um editorial do Jornal do Brasil13 que apontava o
corporativismo como uma herana negativa que se enredara na sociedade brasileira.
Nesse texto no se mencionavam outros contedos do perodo Vargas, como o
nacionalismo ou o estatismo.
Esse tipo de opinio, no entanto, no foi a nica veiculada pelo Jornal do Brasil.
Muitas matrias e artigos publicados no jornal por ocasio dos 40 anos do suicdio de
Vargas tinham um tom positivo em relao sua memria. Artigos de Oscar Niemeyer
e Darcy Ribeiro, por exemplo, eram absolutamente favorveis ao legado de Vargas.
Como exemplo de uma utilizao mais imediata da memria, pode-se mencionar
tambm a associao estabelecida pela economista Maria da Conceio Tavares entre
Lula, ento candidato presidncia na legenda do Partido dos Trabalhadores (PT), e o
trabalhismo de Vargas: segundo ela, Lula era o principal herdeiro do trabalhismo,
enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Fernando Henrique
Cardoso, o candidato que acabou por vencer as eleies de outubro, poderia se
comparar antiga UDN.
Outro tema discutido em vrios artigos foi a carta-testamento. O historiador Jos
Murilo de Carvalho14 retomou as informaes de Hlio Silva15 , que chamava a ateno
12 LAMOUNIER, Bolvar. A terceira morte de Getlio Vargas. Jornal do Brasil, 21/08/1994, p.11 13 Jornal do Brasil, Primeira Pgina, 25/8/1994. 14 Ver, Jornal do Brasil, 24/08/1994.
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para a existncia de duas cartas, uma carta-testamento e uma carta de despedida, e
reelaborou a idia, declarando que a bandeira da carta-testamento no teria a fora que
teve sem o pathos embutido na carta-despedida. A soma das duas mortes, a do homem
Getlio e a do presidente Vargas, que gravou na memria coletiva a presena de
Getlio Vargas. Para o autor, era a conjugao da morte de Vargas com o texto da
carta-testamento que tornava a memria de Vargas algo to relevante na memria
coletiva brasileira.
Como j foi dito, em 1984 a carta-testamento j se havia tornado um capital
simblico dos diferentes herdeiros de Vargas. Uma dcada depois, num momento em
que parecia prevalecer a proposta de desacreditar a herana da Era Vargas, o documento
ainda era uma fonte de mobilizao. Muitas vozes da oposio continuavam a apregoar
os valores positivos de um certo legado varguista. Na luta contra as privatizaes e no
debate sobre a reviso da legislao trabalhista, a memria de Getlio era acionada
atravs da carta-testamento para contestar os novos rumos tomados pelo pas.
Essa disputa de memrias iria assumir uma nova feio em 2004, por ocasio
dos 50 anos do suicdio. Desde o ano anterior o pas vivia como vive at hoje sob o
governo de Luiz Incio Lula da Silva, ex- lder operrio que iniciou sua carreira poltica
no final do regime militar fundando o PT e que jamais se declarou, ele prprio, herdeiro
de ningum.
2004: memria e mdia
Contrariando certas expectativas de que a figura do velho lder no mais
despertaria grande interesse, no ano de 2004 a memria de Vargas ressurgiu com grande
vigor. Em meio s numerosas e diferentes comemoraes ento promovidas,
impossvel negligenciar a atuao da mdia. Houve um verdadeiro boom de memria
sobre Vargas, e a mdia exerceu a um papel fundamental.
Os principais jornais do pas prepararam alentados cadernos especiais sobre
Vargas, que foram publicados no domingo anterior ao dia 24 de agosto. As revistas de
histria dirigidas ao grande pblico saram com fotos de Vargas estampadas nas capas.
A historiografia sobre a Era Vargas foi divulgada atravs dos artigos de jornalistas.
Alm de noticiar os eventos programados, as matrias publicadas na imprensa
15 SILVA, Hlio. Um tiro no corao. (1a ed. 1980). Porto Alegre, L&PM, 2004.
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expressaram a preocupao de reconstruir historicamente os principais eventos que
antecederam o suicdio. O ponto crucial da longa trajetria pblica de Vargas
continuava a ser o ato final e a carta-testamento.
O que todas essas manifestaes exprimiam parece ter sido sintetizado nas
palavras do editor da revista Histria Viva: Getlio Vargas, com seu legado e o
significado de suas realizaes, essencial para entender o Brasil atual e seus
dilemas16. Esse editorial indica um dos mveis que levaram a uma ampla discusso do
tema Vargas pela imprensa.
De fato, o legado de Vargas tornou-se alvo da discusso de polticos e
intelectuais. De acordo com alguns analistas, a vitria de Lula na eleio de 2002
recolocara em cena a possibilidade de retomada de alguns ideais relacionados ao
nacional-estatismo. Ainda que os autores no se posicionassem de maneira apaixonada
em prol de um legado varguista, houve uma busca do passado como instrumento de
reflexo sobre a atualidade. Cristovam Buarque 17, por exemplo, ministro da Educao
de Lula at janeiro de 2004, colocou em pauta o ano de 1954 como um marco histrico
a ser discutido. Em suas palavras, apesar da revoluo que significou a eleio de Lula
e o governo do PT, 2004 ainda no deixou claro o novo rumo que o pas precisa e
espera desde 1954. O ex-ministro no fazia uma defesa do projeto de Vargas, mas
colocava a necessidade de conhec- lo para criar um outro projeto nacional: Ainda
tempo de mudar, de reorientar o Brasil. Lembrar o passado em geral o melhor passo
para comear a construir o futuro. O futuro da continuao do mesmo, dos ltimos 50
anos, ou da construo do novo para o sculo 21.
A idia de construo do novo no era compartilhada por todos os setores do
governo. O Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), por exemplo, criou o
Projeto Getlio Vargas, que a partir de abril de 2004 realizou seminrios e outros
eventos, como documentrio, livro, exposio, show e memorial com a esttua de
Vargas. De acordo com o material de divulgao do projeto, pretende-se com essa
iniciativa contribuir para o fortalecimento da histria [de Vargas], a valorizao de seu
legado e, sobretudo, o resgate da memria de importantes conquistas para o cidado
brasileiro18. O economista Carlos Lessa19, ento presidente do BNDES, defendia a
16 Histria Viva, Especial sobre Getlio Vargas, n. 4, agosto de 2004 17 www.senado.gov.br/web/senador/cristovambuarque/artigos_compaixoes.asp, maro de 2004. 18 BNDES - Folder do seminrio Vargas e o Projeto de Desenvolvimento Nacional (19/04/2004) e da exposio Bota o retrato do velho outra vez . 19 LESSA, Carlos. Nacionalismo aps o furaco neoliberal. Folha de S. Paulo, 22/08/2004, Caderno Especial
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idia de que era necessrio retomar a agenda de Vargas em muitos pontos. O
nacionalismo de Vargas e suas polticas econmicas eram os principais itens da herana
varguista a serem defendidos, em oposio ao projeto neoliberal do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Nas palavras de Lessa, um presidente de alma seca achou
que devamos enterrar a Era Vargas. O que este presidente deixou de legado?. Lessa
postulava uma retomada dos princpios do segundo governo Vargas no momento atual,
concluindo: Enfim, com Vargas, nos vimos como nao. E assim que comeamos a
nos ver de novo (...) neste momento em que agenda recuperada de Vargas nos aponta
uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua poca e o
desenvolvimentismo nacional democrtico de Lula. No se pode afirmar que esta fosse
uma posio hegemnica no governo, porm no se deve negligenciar sua relevncia,
sobretudo se levarmos em considerao os objetos culturais engendrados a partir dela,
como exposies, documentrio e memorial.
Na verdade, foram poucas as vozes que procuraram divulgar uma memria
exclusivamente crtica de Vargas. Uma delas foi a do Instituto Liberal, que est na
oposio ao governo Lula. Cndido Prunes (2004), vice-presidente do Instituto,
defendeu a idia de que a rememorao de Vargas era um equvoco e de que o pas
cometia um erro ao esquecer a truculncia poltica da era Vargas. E afirmou ainda:
Neste ano em que se registram os 50 anos do suicdio de Getlio Vargas, deveria se
iniciar uma campanha pelo banimento do seu nome de todas as ruas, avenidas, praas e
locais pblicos. Foi ele um caudilho sanguinrio que deveria merecer o oprbrio, como
qualquer ditador. Ou ento, por uma questo de justia, comecemos homenagear os
militares linha dura de 1964. A memria de Vargas, nesse caso, foi utilizada para
questionar as crticas ao regime militar, amplamente difundidas pela esquerda brasileira.
Essa perspectiva, porm, no alcanou visibilidade na imprensa em 2004.
As vozes crticas em geral no expressaram um antigetulismo radical. Mesmo o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou em palestra no jornal O Globo que
suas declaraes ao tomar posse em 1994, relativas ao fim da Era Vargas, foram mal
interpretadas. Ao revisitar o episdio, declarou que nunca fora antigetulista e que a base
de sua crtica estava no fato de o modelo varguista ter-se tornado obsoleto nos novos
tempos. Assim, mesmo reiterando o anacronismo de um projeto varguista naquele
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momento, procurou no negar o legado histrico de Vargas e afirmou: Getlio no era
caudilho. Foi fruto das circunstncias, mas tinha capacidade ttica, malcia, viso20 .
Como entender essa emergncia de uma memria de Vargas, que na dcada
anterior parecia desvanecida? Como explicar esse boom de memria que se manifestou
na mdia? Vrios estudos, entre eles os de Huyssen21 , relatam que febres de
comemoraes, por motivos diversos, tambm tomaram conta da Europa e dos EUA,
revelando a existncia de uma obsesso pela memria nos dias atuais. Estaria ocorrendo
uma musealizao do mundo, ao mesmo tempo que a memria se torna uma mercadoria
em circulao nos meios de comunicao de massa.22 Poderamos nos perguntar o que a
abundncia de memria sobre Vargas em circulao na mdia em 2004 trouxe para a
sociedade brasileira. Que contornos podem ser percebidos nessa memria
midiatizada?
Uma primeira avaliao parece indicar que existe uma demanda por um projeto
nacional que propicie a volta do crescimento econmico e a diminuio das
desigualdades sociais no pas. A busca de referncias no passado recente poderia assim
se tornar uma via de acesso para uma discusso mais ampla sobre o Brasil. Contudo, o
boom de memria de 2004 no atendeu apenas a essa demanda social. Expressou
tambm os interesses da mdia, que possui uma dinmica especfica, relacionada s
prprias contingncias comerciais e s necessidades de criao de fatos novos.
O exame das comemoraes ligadas a um mesmo tema em conjunturas
diferentes, desde 1964 at a atualidade, pretende evidenciar a riqueza de uma
abordagem comparativa. Ao mesmo tempo, esse percurso aponta para um vasto campo
aberto s investigaes sobre as operaes de construo da memria coletiva e sobre a
relao entre a histria, a poltica e a mdia contempornea.
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