UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Escola de Design
Programa de Ps-Graduao em Design PPGD
INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS:
TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE
GLAUCO HONORIO TEIXEIRA
Belo Horizonte 2011
INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS:
TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE
GLAUCO HONORIO TEIXEIRA
Belo Horizonte 2011
GLAUCO HONORIO TEIXEIRA
INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS: TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do
Estado de Minas Gerais como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em
Design, na rea de concentrao em Design, Inovao e Sustentabilidade.
Orientador:
Prof. Jairo Jos Drummond Cmara Dr.
Co-orientadora:
Prof. Rita de Castro Engler Dr.
Belo Horizonte 2011
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde
que citada a fonte
Ficha Catalogrfica
T266i Teixeira, Glauco Honorio
Interiores residenciais contemporneos: transformaes na atuao dos profissionais em Belo Horizonte/ Glauco Honorio Teixeira. - - Belo Horizonte, 2011.
143 f. (enc.): il. Color. grafs. tabs. ; 31cm
Orientador: Jairo Jos Drummond Cmara Co-orientador: Rita de Castro Engler Dissertao (Mestrado) Universidades do Estado de Minas Gerais / Escola de Design / Mestrado em Design, 2011.
1. Decorao de interiores - Teses. 2. Arquitetura de Habitaes Sc. XXI. 3. Designers Belo Horizonte. I. Cmara, Jairo Jos Drummond. II. Engler, Rita de Castro. III. Universidade do Estado de Minas Gerais. IV. Ttulo.
CDU: 747
INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS: TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE
Autor: GLAUCO HONORIO TEIXEIRA
Esta dissertao foi julgada e aprovada em sua forma final para a obteno do ttulo de
Mestre em Design no Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 24 de novembro de 2011
__________________________________________ Prof Sebastiana Luiza Bragana Lana, PhD.
Coordenadora do PPGD
BANCA EXAMINADORA
Prof. Rita de Castro Engler, Dr. Co-orientadora
Universidade do Estado de Minas Gerais
Prof. Marcelina das Graas Almeida, Dr. Universidade do Estado de Minas Gerais
Prof. Tito Flvio Rodrigues de Aguiar, Dr. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
Prof. Carlos Alberto Miranda, Dr. Universidade do Estado de Minas Gerais
Suplente
AGRADECIMENTOS
Ao meu amigo e orientador, professor Jairo Jos Drummond Cmara, que
acreditou no nosso projeto de pesquisa e confiou na nossa capacidade de lev-lo a bom termo.
co-orientadora e incentivadora, Rita de Castro Engler. Por tudo. Por todas as
leituras, e principalmente pela imensa pacincia e o apoio nas horas de aperto.
Aos colegas do mestrado, em especial ao Srgio Luciano pela reviso e as ajudas
providenciais com os conceitos e teorias.
Maria Lcia Machado pela ajuda, apoio e sugestes preciosas.
A todos os profissionais que responderam pacientemente ao questionrio pelas
informaes gentilmente confiadas pesquisa.
Ao meu pai, pela enorme ajuda com a digitao do texto, e minha me por me
apoiar em todas as circunstncias em que precisei de apoio.
Ao Erico, pela ajuda com os grficos e planilhas.
E, por fim, mas mais importante, Claudinha e ao Nuno por estarem ao meu lado
me incentivando a ir sempre em frente.
Obrigado.
RESUMO
TEIXEIRA, Glauco H. Interiores residenciais contemporneos: transformaes na
atuao dos profissionais Belo Horizonte. 2011. 143 f. Dissertao (Mestrado) - Escola de
Design, Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2011.
Este trabalho busca identificar como as principais transformaes em curso dos ltimos dez
anos- de 2001 a 2010- influenciaram os projetos de interiores em Belo Horizonte. O sculo
XXI, depois de decorridos dez anos de seu incio, apresenta significativas transformaes que
tiveram origem no sculo anterior, mas que somente agora comeam a sedimentar. Essas
mudanas se deram no mbito da economia, agora globalizada; no social e as novas relaes
entre as divises de trabalho, produo e consumo; no tecnolgico onde a informtica e a rede
mundial de computadores criaram possibilidades de comunicao e troca de informaes
inimaginveis; e principalmente, no espao urbano inchado pelo translado da populao rural
para as cidades. Tudo isso se d com reflexos inevitveis no modo de vida dessa populao
urbana, acarretando mudanas no comportamento e no cotidiano das pessoas. Posto este
cenrio, buscou-se averiguar se essas transformaes causaram tambm mudanas no modo
de morar e, consequentemente, na configurao dos espaos residenciais contemporneos, do
ponto de vista do design de seus interiores. A partir do entendimento de que o design uma
traduo do contexto social, cultural e econmico em que est inserido, estudaram-se aqui as
transformaes ocorridas nesses mbitos como forma de melhor compreender as mudanas
por que passa o design de interiores residenciais, suas mais novas demandas e as novas
questes que trazem para a praxis projetual do profissional de interiores. A abordagem dessas
questes se deu em duas etapas, onde inicialmete se buscou estudar as principais
transformaes dos modos de vida ao longo do sculo XX e seus reflexos nos modos de
morar do sculo XXI. Em seguida se levantaram os dados estatsticos referentes a essas
transformaes nos modos de morar constantes nas estatsticas oficiais, complementados
pelos dados obtidos atravs de questionrios aplicados a profissionais de design de interiores
para que se possa, confrontando os dois conjuntos de informaes, determinar quais
transformaes se refletem na atuao dos profissionais de design e na configurao dos
espaos de moradia em Belo Horizonte no perodo estudado.
Palavras-chave: Interiores residenciais contemporneos. Modos de morar. Moradia no sculo XXI.
ABSTRACT
TEIXEIRA, Glauco H. Contemporary residential interiors: changes in the work of the
professionals in Belo Horizonte. 2011. 143 f. Dissertao (Mestrado) - Escola de Design,
Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2011.
This work means to identify how the changes happened in the last ten years- from 2001 to
2010- influenced the projects of interior design in Belo Horizonte. The twentieth-first century
displays significant changes that begun back in the past century, but are only getting settled
nowadays. Those changes happened in the fields of global economy; in the new social
relations in work, production and consumption habits; in technological improvements such as
the world wide web and informatics that enable new communication possibilities and
information exchanges never imagined before; and mainly, in the urban spaces crowded by
the great rural inhabitants migration. All these changes reflect unavoidably in the ways of
living of the urban inhabitant, bringing on changes in their behavior and routine. The present
work intends to investigate if those changes also changed the way people live inside their
houses and, consequently, in contemporary interior residential spaces. Since we understand
design as a consequence of social, cultural and economic circumstances, this works studies
the changes happened in that circumstances as a way of understanding changes in the interior
design, its new demands and the new project issues that emerge from them. The approach to
these issues was made in two stages, first studying the main changes in the ways of living
during the 20th
century and its consequences in dwelling in the 21st century. Afterwards, the
official statistics of the changes in the dwelling ways were researched and were completed
with the data from the questionnaire submitted to the professional interior design, in order to
appoint which of that changes are detected in the work of that professionals and in the design
of the interior spaces of the houses in Belo Horizonte in the studied period.
Key words: Contemporary interior design. Ways of living. Dwelling in the XXI century.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Interior burgus........................................................................................................................20
Figura 2 - Interior moderno......................................................................................................................20
Figura 3 - Mapa Crescente Frtil.............................................................................................................27
Figura 4 Casa Medieval.........................................................................................................................28
Figura 5 Fechadura de Joseph Bramah................................................................................................35
Figura 6 Privada a vlvula com vedao hidrulica de Joseph Bramah...............................................35
Figura 7 - Interior da exposio da casa modernista de Warchavchik.....................................................47
Figura 8 - Planta de Comisso Construtora da Nova Capital 1895......................................................98
Figura 9 - Casa tipo A ou B....................................................................................................................100
Figura 10 - Mapa do municpio de Belo Horizonte com rea projetada original em destaque...............103
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Participao percentual no PIB por setores 2003-2007.........................................................67
Tabela 2 Percentual pessoas ocupada por setor de atividades 2004/2009.........................................68
Tabela 3 Renda familiar por classes.....................................................................................................74
Tabela 4 Taxa de atividade das mulheres no Brasil e pases selecionados.........................................82
Tabela 5 Taxa geral de separaes e divrcios...................................................................................83
Tabela 6 Taxa de fecundidade 2009.....................................................................................................84
Tabela 7 Esperana de vida ao nascer 2009........................................................................................85
Tabela 8 Proporo de idosos no Brasil 1999/2009.............................................................................86
Tabela 9 Distribuio dos tipos de arranjos familiares..........................................................................87
Tabela 10 Percentual de tipos de arranjos familiares nos domiclios...................................................88
Tabela 11 Nmero mdio de pessoas por domiclio.............................................................................91
Tabela 12 Evoluo da populao de Belo Horizonte........................................................................102
Tabela 13 Percentual de mudanas na forma de trabalhar................................................................110
Tabela 14 Perfil dos clientes por faixa etria......................................................................................111
Tabela 15 Percentual grupos domsticos...........................................................................................112
Tabela 16 Percentual famlias por nmero de membros....................................................................113
Tabela 17 Percentual dos tipos de imveis........................................................................................114
Tabela 18 Percentual das principais alteraes nos espaos............................................................116
Tabela 19 Percentual caractersticas dos mveis...............................................................................118
Tabela 20 Percentual mdias e equipamentos....................................................................................120
Tabela 21 Percentual de aes para sustentabilidade.......................................................................122
LISTA DE ABREVIATURAS
ABD Associao Brasileira de Designers de Interiores
ABEP Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa
ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas
AMIDE Associao Mineira de Decoradores de Nvel Superior
ANATEL Agncia Nacional de Telecomunicaes
CAD Computer Aided Design
CD Compact Disc
DVD Digital Video Disc
ED Escola de Design
ESAP Escola Superior de Artes Plsticas
ESDI Escola Superior de Desenho Industrial
EUA Estados Unidos da Amrica
FUMA Fundao Mineira de Arte
HDF High Density Fiberboard
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
LCD Liquid Cristal Display
LED Light Emitting Diode
LP Long Playing
MASP Museu de Arte de So Paulo
MDF Medium Density Fiberboard
MIT Massachussets Institute of Technology
NICs- Newly Industrializing Countries
OPEP Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo
PBH Prefeitura de Belo Horizonte
PIB Produto Interno Bruto
SENAC Servio Nacional do Comrcio
UEMG Universidade do Estado de Minas Gerais
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UMA - Universidade Mineira de Arte
URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas
USP Universidade de So Paulo
SUMRIO
1 INTRODUO......................................................................................................................................11
1.1 Objetivos..................................................................................................................................13
1.2 Metodologia.............................................................................................................................14
1.3 Estrutura dos captulos............................................................................................................17
Captulo 2 - Referencial terico e contextual...........................................................................................18
2.1 Pressupostos tericos e conceituais.......................................................................................18
2.2 As primeiras transformaes: a era pr-industrial...................................................................26
2.3 As transformaes da era industrial........................................................................................30
Captulo 3 - As transformaes do sculo XX.........................................................................................40
3.1 A primeira metade do sculo XX.............................................................................................41
3.2 A segunda metade do sculo XX.............................................................................................48
3.3 As transformaes sociais e culturais......................................................................................54
3.4 A era ps-industrial..................................................................................................................65
Captulo 4 - O Contexto do sculo XXI....................................................................................................70
4.1 Os novos modos de produo.................................................................................................77
4.2 O design no contexto do sculo XXI........................................................................................79
4.3 As transformaes da famlia no sculo XXI...........................................................................81
4.4 As transformaes nos espaos residenciais..........................................................................89
4.5 Os espaos residenciais em Belo Horizonte...........................................................................97
Captulo 5 - Anlise dos dados..............................................................................................................104
5.1 O perfil do profissional...........................................................................................................106
5.2 Atualizao na formao profissional....................................................................................108
5.3 Mudanas na forma de trabalhar...........................................................................................109
5.4 Perfil dos clientes- faixa etria e faixa de renda....................................................................110
5.5 Perfil das famlias e grupos domsticos................................................................................112
5.6 Perfil dos imveis residenciais...............................................................................................114
5.7 Alteraes nos espaos.........................................................................................................115
5.8 A flexibilizao nos projetos...................................................................................................116
5.9 As mudanas nos mveis......................................................................................................117
5.10 As novas mdias e equipamentos........................................................................................119
5.11 Os novos materiais e tecnologias........................................................................................120
5.12 As aes para a acessibilidade...........................................................................................121
5.13 As aes para a sustentabilidade........................................................................................122
6 CONCLUSES..................................................................................................................................124
REFERNCIAS......................................................................................................................................129
APNDICE A - Modelo do questionrio.................................................................................................136
11
1 INTRODUO
A constatao de que o mundo contemporneo passa por uma srie de
transformaes importantes no nova e, desde a dcada de 1960, vem sendo tema de anlise
de diversos autores de campos variados do pensamento cientfico. Autores como Daniel Bell
(1919- 2011), Darcy Ribeiro (1922- 1997), Domenico de Masi, Eric Hobsbawm, Felix
Guattari (1930- 1992), Krishan Kumar, Zigmunt Bauman, Milton Santos (1926- 2001), Rafael
Cardoso, Roberto DaMatta e muitos outros, procuram identificar e avaliar os reflexos dessas
transformaes no planeta como um todo e no contexto brasileiro em particular. Kumar
(1997, p. 9) inicia sua obra dizendo: Ao longo do ltimo quarto de sculo, temos ouvido
persistentes afirmaes de que as sociedades do mundo ocidental ingressaram em uma nova
era de sua histria; e finaliza concluindo: Vivemos, de fato, em um mundo saturado de
informaes e comunicaes. A natureza do trabalho e a organizao industrial esto de fato
mudando com uma rapidez alucinante (KUMAR, 1997, p. 210). Apesar dessas anlises se
realizarem nas reas da sociologia, da antropologia e da histria, o campo de estudo do design
de interiores tem grande interesse em detectar a medida desse fenmeno de forma a conseguir
incorporar em sua prxis parmetros e requisitos cada vez mais em sintonia com a sociedade
brasileira contempornea e seu carter multicultural e multitnico.
Questes importantes se colocam nesse contexto complexo a todos os que se
dedicam prtica e ao ensino do design. E para que sejam equacionadas de maneira menos
equivocada, necessrio levar em conta toda essa complexidade nos campos social,
econmico, ambiental e tecnolgico. Em todos esses campos, novas demandas para o
exerccio do design esto surgindo a partir das transformaes que se iniciaram no final do
sculo XX, e agora se mostram mais sedimentadas e ento podem ser compreendidas e
analisadas no contexto adequado. So demandas de ordem social que dizem respeito
incluso da diversidade de novos grupos, minorias tnicas, etrias, religiosas e outras; h
tambm as demandas por acessibilidade para portadores de necessidades especiais, dos idosos
e crianas no ambiente urbano e no interior dos edifcios. Essas reflexes tambm devem
incluir a compreenso de como os diversos grupos dessa sociedade se comportam na sua
interao com os espaos. No caso dos grupos domsticos investigamos, alm da tradicional
famlia nuclear - pai, me e filhos-, que novos arranjos esto surgindo, em que proporo, e
como seus espaos so configurados.
12
No mbito das transformaes econmicas no Brasil, assistimos a uma transio
dos nossos modos de produo, em um curto espao de quatro dcadas, de uma sociedade
primordialmente agrcola- nos anos 1960- para uma sociedade ps-industrial consolidada no
final do sculo XX. O pas passou nesse intervalo por um processo de industrializao forada
que, associado globalizao, apresenta desdobramentos de ordem tecnolgica e ambiental
ainda em pleno andamento (MORAES, 2006, p. 102).
A forma como somos afetados pelos efeitos decorrentes de tantas e to rpidas
mudanas provocam a sensao de estarmos em descompasso com o nosso tempo, com a
velocidade do mundo contemporneo e com a tecnologia. A atividade profissional de
conceber, projetar e configurar espaos sempre foi muito influenciada pelas mudanas dos
modos de vida, das tecnologias e dos contextos polticos e econmicos. Como veremos, os
modos de morar so um reflexo da poca em que se vive. Quando se trata de ensino de projeto
de interiores, as maiores dvidas sempre se relacionam compreenso do contexto e da
complexidade decorrentes dessas transformaes.
Identificar que tipos de espao residencial melhor caracterizam os modos de vida
atuais e sempre foi de difcil resposta em qualquer contexto de anlise. As incertezas quanto
ao papel das novas tecnologias e seus usos, as questes ambientais e sociais cada dia mais
urgentes, os papis sociais cada vez mais indefinidos e a avalanche de informaes
desconexas que nos bombardeiam dia a dia, tudo isso torna muito complicada a tarefa de
pensar, propor e projetar espaos melhor identificados com o nosso contexto atual.
Desenvolvemos, ao longo dos tempos, uma relao com o espao que transcende uma mera
construo, organizao e utilizao, no raro assumindo uma dimenso simblica, afetiva e
at espiritual.
A pertinncia dessa pesquisa tem alicerces na relevncia que o espao construdo
assume em todas as nossas atividades, das mais cotidianas e ntimas s pblicas ou formais.
No mundo moderno, a experincia da vida humana se desenrola principalmente em espaos
interiores, como Pile (2005) afirma:
A maior parte do tempo, a maioria de ns vive dentro de uma casa, um apartamento
ou um cmodo. Ns dormimos, comemos, tomamos banho e gastamos o tempo livre
em casa- que significa dentro. [...] O design de interiores, seja profissional ou no,
um aspecto da vida ao qual impossvel escapar. (PILE, 2005, p. 10, traduo
nossa).
E, por entendermos ser a residncia o espao das aes mais ntimas e mais
essenciais nossa existncia, o design do interior residencial foi escolhido como objeto de
estudo dessa pesquisa. Ficou claro quando iniciamos os trabalhos que era preciso estabelecer
13
um conjunto bsico de conceitos e definies que pudessem servir de base para se estabelecer
um vocabulrio prprio da rea do design de interiores, uma vez que no h muitas
referncias nem muitos autores que se dediquem sistematicamente a refletir sobre o tema. Em
seguida, procuramos apontar as principais transformaes ocorridas ao longo da histria que
influenciaram as moradias e seus interiores, com mais nfase naquelas transformaes cujos
efeitos ainda se fazem sentir hoje em dia. Finalmente, pesquisamos junto aos profissionais de
interiores quais so as mudanas na forma de trabalhar, nos espaos, nas famlias, tecnologias
e mobilirio que mais tm influenciado os projetos dos interiores residenciais em Belo
Horizonte nesses primeiros dez do sculo XXI. Como essas questes sempre estiveram
presentes nas atividades profissionais e acadmicas dos designers de interiores, essa pesquisa
se prope a respond-las ou, ao menos, indicar caminhos para se encontrar algumas respostas
que sirvam para nortear o enfrentamento da prxis do projeto de interiores.
Dada a natureza mutvel dos espaos internos e, principalmente sua durabilidade
cada vez menor, percebemos que tentar definir que tipos de espaos esto predominando no
sculo XXI tarefa fora das possibilidades dessa pesquisa. Entretanto acreditamos que a
contribuio desse trabalho seja no sentido de iniciar uma discusso que se faz necessria h
muito tempo e, quem sabe estimular outras pesquisas na rea dos interiores residenciais e dos
modos de morar. Estamos convencidos de que [...] a existncia humana tem uma dimenso
espacial que parte da prpria experincia do homem no mundo, pois todas as aes humanas
ocorrem no espao. (MALARD, 2006, p. 25).
1.1 Objetivos
1.1.1 Objetivos gerais
Pesquisar como os profissionais do design de interiores, na primeira dcada do
sculo XXI, esto incorporando em seus projetos as transformaes provenientes das
mudanas nos modos de vida, nas tecnologias e nos comportamentos. Estudar a relao entre
as transformaes ocorridas no mbito social, econmico, tecnolgico, ambiental, e as novas
formas de morar e de configurar o espao interno das moradias pelos profissionais de Belo
Horizonte entre 2001 e 2011.
14
1.1.2 Objetivos especficos
Identificar quais as principais transformaes no contexto social, econmico,
tecnolgico e ambiental que tiveram implicaes nos modos de vida contemporneos.
Mostrar quais as principais conseqncias dessas transformaes nos espaos
interiores residenciais e nos modos de morar do sculo XXI.
Investigar se novas formas de organizao do espao residencial esto surgindo
no contexto dessas transformaes, e como atendem s necessidades dos novos grupos
domsticos emergentes na ltima dcada.
Verificar que inovaes tecnolgicas, que novos tipos de mobilirio, materiais,
equipamentos e mdias vm sendo incorporados aos projetos de espaos residenciais.
1.2 Metodologia
Esta pesquisa foi organizada em duas partes: primeiro uma reviso bibliogrfica e
em seguida a pesquisa de levantamento de dados sobre a atividade dos designers de interiores
em Belo Horizonte, atravs da aplicao de questionrios. A pesquisa bibliogrfica visou
determinar os conceitos, definies e termos ligados ao tema dos interiores residenciais,
habitao, modos de morar e seus significados; tambm entraram na reviso bibliogrfica o
levantamento das transformaes e mudanas nos fatores histricos, sociais, tecnolgicos,
econmicos e polticos que mais afetaram as moradias e seus interiores ao longo do tempo,
com mais nfase nos seus reflexos no sculo XX e XXI.
O levantamento de dados junto aos profissionais de design de interiores-
arquitetos e designers- foi executado atravs de questionrios aplicados com o objetivo de
identificar o perfil desses profissionais, as mudanas na sua forma de trabalhar, as
atualizaes profissionais efetuadas, o perfil dos seus clientes e de seus imveis, as
modificaes nos imveis mais freqentes, as demandas por espaos flexveis, os tipos de
mveis mais usados, os novos materiais e tecnologias, os equipamentos e mdias incorporados
aos interiores e as demandas por acessibilidade e sustentabilidade nos projetos, tudo isso no
intervalo dos dez primeiros anos do sculo XXI- entre 2001 e 2011.
Foram entrevistados dezesseis profissionais formados em curso superior e
atuantes no mercado de interiores e decorao de Belo Horizonte, de todos os nveis de
15
experincia profissional, dos mais experientes at aqueles com pouco tempo de formados. A
validade desse nmero aparentemente pequeno deve-se convico de que, no universo dos
profissionais em atividade, tem uma representatividade satisfatria para o objetivo dessa
pesquisa, pois so registrados na AMIDE1 600 profissionais em todo o Estado; na ABD
2 so
19 associados no Estado, sendo 17 deles em Belo Horizonte. A seleo dos profissionais
entrevistados se deu atravs de uma pequena lista inicial de trs profissionais que se
dispuseram a ser entrevistados pessoalmente e cada um deles indicou outros colegas de
profisso que julgavam dispostos a participar da pesquisa e responder os questionrios. Esses,
por sua vez, tambm indicaram outros colegas, at que atingimos o nmero de vinte e um
profissionais. Ento, vinte e um questionrios foram aplicados, dezoito enviados pela internet
e aqueles trs iniciais foram novamente submetidos ao questionrio com a nossa presena.
Desses, somente dezesseis foram respondidos a tempo de serem tabuladas suas respostas e
includas suas informaes no texto final.
O questionrio foi definido a partir da primeira entrevista onde propusemos a uma
profissional uma srie de questes que pretendamos abordar. Essa, por sua vez, muito
contribuiu sugerindo outras questes e o delineamento final das questes propostas
inicialmente. A entrevista foi registrada em vdeo para posterior checagem e reviso do seu
contedo, e dela nasceram as questes presentes no questionrio aplicado (ver apndice A).
1.2.1 Caracterizao da pesquisa
A pesquisa proposta aqui tem como caracterstica principal o seu recorte temporal:
os dez anos entre 2001 e 2011, seu campo: design de interiores, e seu objeto: os espaos de
morar em Belo Horizonte. Entende-se aqui que pesquisa [...] envolve um conjunto de aes
que permitem chegar a concluses que respondam s questes colocadas no incio do
processo (COELHO, 2008, p. 258). Assim optamos pelo seguinte conjunto de aes e
procedimentos, segundo os quais caracterizamos a pesquisa da seguinte maneira: pela
natureza, uma pesquisa aplicada, pois tem carter local; pela forma, uma pesquisa mista
com caractersticas primordialmente qualitativas, mas com vis quantitativo; e pelos
objetivos: uma pesquisa exploratria, se levamos em conta o pouco estudo anterior na rea
1 Associao Mineira de Decoradores de Nvel Superior- informaes disponveis em: .
Acesso em 21/09/2011. 2 Associao Brasileira de Designers de Interiores- informaes disponveis em . Acesso em
21/09/2011.
16
especfica. De acordo com os procedimentos: uma pesquisa bibliogrfica, e de levantamento
de dados (DIAS, 2010).
1.2.2 Procedimentos metodolgicos
Pesquisa, reviso bibliogrfica, fichamento, reproduo e anotaes dos ttulos,
artigos e publicaes relacionadas aos temas: metodologia de pesquisa, conceitos de design,
design enquanto atividade projetual, transformaes histricas, transformaes sociais e
culturais, transformaes tecnolgicas e econmicas, cultura e sociedade ps-industrial,
globalizao, sustentabilidade e design de interiores, cotidiano, modos de vida, modos de
morar, famlias e grupos domsticos, conceitos de espao, evoluo dos espaos interiores,
contextualizao e conceitos de espao.
1.2.3 Levantamento de dados
Pesquisas de dados estatsticos sobre demografia, grupos domsticos, domiclios,
economia e urbanizao, a partir dos Censos, Pesquisas e estatsticas oficiais efetuadas pelo
IBGE.
Entrevistas e questionrios com designers e arquitetos profissionais atuantes em
Belo Horizonte nos dez anos a partir de 2001, com objetivo de detectar as transformaes nos
seus modos de trabalhar e nos modos de configurar os espaos residenciais no perodo. O
questionrio foi estruturado conforme descrito anteriormente e contempla as questes mais
importantes para que se determine as principais transformaes na formao e atualizao do
profissional, no seu modo de trabalhar, no perfil dos seus clientes, no perfil dos imveis
residenciais submetidos sua interveno, nos materiais empregados, nas tecnologias e
mdias incorporadas aos projetos residenciais, no mobilirio e tambm no modo de abordar as
importantes questes da sustentabilidade e da acessibilidade nesses projetos.
Registro de dados: gravao das entrevistas e/ou filmagem. Anotaes.
Fichamento. Tabulao de dados em planilhas eletrnicas e gerao de grficos a partir desses
dados.
17
1.2.4 Anlise dos dados
Anlise dos dados obtidos, estudo dos grficos e planilhas, reflexes e concluses,
no contexto da anlise das transformaes que so objeto desse estudo e no mbito dos
espaos residenciais projetados por profissionais.
1.3 Estrutura dos captulos
A dissertao se desenvolve em seis captulos. Sendo o primeiro a Introduo, o
segundo o Referencial terico e contextual, o terceiro as Transformaes no sculo XX, o
quarto o Contexto do sculo XXI, o quinto a Anlise dos dados da pesquisa e o sexto a
Concluso.
Na introduo, resumimos o que a pesquisa, qual so sua pertinncia, seus
objetivos e a metodologia adotada.
No captulo 2, estabelecemos os conceitos e definies mais importantes do campo
do design de interiores e contextualizamos as principais transformaes ocorridas nos espaos
domsticos desde o advento da agricultura at o final do sculo XIX.
No captulo 3, nos dedicamos a contextualizar as principais transformaes
ocorridas no sculo XX e suas influncias nas moradias.
O captulo 4 trata do contexto do sculo XXI, indicando quais as transformaes
ocorridas nos seus dez primeiros anos que influenciam os interiores residenciais.
No captulo 5, fazemos a anlise dos dados obtidos no levantamento junto aos
profissionais da rea de interiores e no contexto estabelecido nos captulos anteriores.
Nas concluses, apresentamos como os objetivos foram alcanados e as reflexes
que induziram s concluses.
18
Captulo 2
REFERENCIAL TERICO E CONTEXTUAL
Para compreender como os interiores das residncias esto sendo configurados na
primeira dcada do sculo XX, preciso identificar as transformaes da tecnologia, da
economia, dos modos de vida, dos modos de produo e do cotidiano que mais influenciaram
na configurao dos espaos residenciais dos nossos dias. Sabemos que qualquer proposta de
reflexo a respeito do desenho e da produo dos espaos domsticos contemporneos deve
levar em considerao o contexto em que tais transformaes ocorreram no mbito da famlia
e seus novos arranjos- os novos grupos domsticos- e suas relaes com os padres
econmicos de produo e consumo, mas tambm com as inovaes tecnolgicas: novas
mdias, materiais e equipamentos introduzidos no espao residencial.
Antes de entrarmos na anlise das transformaes e seus contextos ao longo do
tempo, optamos por estabelecer os fundamentos conceituais necessrios para servir como base
para essa reflexo. Como forma de melhor organizarmos esse estudo, em primeiro lugar
buscamos definir a natureza do objeto de pesquisa: os interiores das habitaes, como so
produzidos no contexto da atividade profissional e suas peculiaridades prprias. Em segundo
lugar, procuramos colocar os principais conceitos e definies mais estreitamente associadas
atividade de produzir interiores e objetos e os seus significados dentro de suas relaes com o
homem/usurio/habitante e com a sociedade na qual so gerados esses espaos.
2.1 Pressupostos tericos e conceituais
Para a contextualizao do objeto dessa pesquisa partimos do seguinte
pressuposto: o design dos interiores dos edifcios tem uma natureza muito diversa do design
de produtos e do design grfico, porque seu produto so espaos ou ambientes. Esses sem
dvida apresentam uma diversidade muito maior de funes, formas, escalas, materiais e
informaes do que aqueles gerados pelo design de produto e grfico. Apesar de os espaos
inclurem produtos, objetos e elementos grficos em sua composio, sua natureza no
definida exclusivamente por eles, mas pela interao de todos os elementos entre si, com a
estrutura construda e, principalmente, com os usurios.
importante ressaltar que a natureza do objeto produzido no design de interiores
no criada somente pelo designer. Diferentemente do que ocorre no design de produto e no
19
grfico, o profissional de interiores trabalha sobre uma base anteriormente estabelecida pelo
arquiteto, pelos engenheiros e construtores que a projetaram e executaram. Assim o trabalho
do designer de interiores previamente delimitado por uma moldura configurada pela
arquitetura, e a natureza do espao arquitetnico parte intrnseca da configurao dos
espaos internos projetados pelo designer. Por isso que alguns dos conceitos e valores
relativos arquitetura podem ser aplicados tambm aos seus interiores, na sua relao ntima
com o edifcio. Pile (2005, p. 11, traduo nossa) chega mesmo a afirmar que [...] o design
de interiores est inextrincavelmente ligado arquitetura e s pode ser estudado dentro de um
contexto arquitetnico [...], pois os interiores so [...] parte integral das estruturas que os
contm [...]. Entretanto, sabemos que s vezes essa integrao no se d de forma harmnica.
No nosso entendimento, assim se d a relao entre o espao interno e a sua
arquitetura: esta o envoltrio composto de paredes, tetos, aberturas, estrutura, alicerces, etc.
que define e delimita o vazio interno que chamamos de interior onde efetivamente ocorrem as
aes humanas. a arquitetura que estabelece, com todos os seus componentes, a fronteira
entre o exterior e o interior, entre o lado de dentro, o privativo domnio do conhecido e da
proteo, em oposio ao lado de fora, que pblico, domnio do desconhecido, da exposio
e da ausncia de proteo. E, portanto a arquitetura estabelece a primeira conformao do seu
interior.
No campo do design, h que se distinguir o que objeto do que produto no
contexto da cultura contempornea. Produto o artefato que homem fabrica. E, conforme
ensina Maria Eugnia Dias de Oliveira (2004), o produto se torna objeto quando investido
da funo-signo, ou seja, quando passa a ser considerado como algo que comunica a funo
que exerce. Assim, o homem no s usurio do objeto, ele tambm se comunica atravs do
objeto. Dessa forma, a sociedade atual passou de uma sociedade de produo, de fabricao
de produtos, para uma sociedade que produz conceito, produz funes-signo. Roland Barthes
(2001, p. 44) afirma que a partir do momento em que existe sociedade, todo uso torna-se
signo daquele uso. O fato de existirem talheres em nossa sociedade indica o hbito de levar o
alimento boca com eles. Neste caso temos um exemplo de funo-signo, j que o objeto
funcional e ao mesmo tempo comunica a funo que desempenha. (OLIVEIRA, 2004).
Em O Sistema dos Objetos, Baudrillard (1973) se prope analisar as relaes do
homem com seus objetos do ponto de vista da semiologia3. Ele estabelece os conceitos de
estruturas do arranjo e estruturas da ambincia, tendo como base o interior residencial
3 Semiologia ou semitica (semeion= sinal) entendida como a teoria dos sinais, que pressupe que a cultura pode
ser estudada como comunicao. (OLIVEIRA, 2004).
20
tradicional burgus e os interiores modernos para ilustrar seus argumentos. Temos que fazer
aqui uma ressalva, uma vez que Baudrillard no v o interior moderno como produto do
design e atividade criativa, nem se prope a discutir o papel do designer nesse contexto,
conforme relata Deyan Sudjic (2010, p. 8). Entretanto ele mesmo reconhece que [...] desde
as imprecises de O sistema dos objetos, de Jean Baudrillard, poucos crticos submeteram o
design mesma anlise minuciosa (SUDJIC, 2010, p. 8).
Segundo Baudrillard, o arranjo diz respeito configurao ordenada dos objetos-
mobilirio- de forma a desempenhar uma funo- sala de jantar, quarto de dormir, etc.-, mas
tambm de forma a comunicar a estrutura hierrquica do grupo familiar, seus valores e suas
relaes pessoais. E a importncia desse conceito fica evidente quando ele afirma que [...] a
configurao do mobilirio uma imagem fiel das estruturas familiais e sociais de uma
poca (BAUDRILLARD, 1973, p. 21). Atravs da disposio dos mveis de uma casa
podemos saber sobre os valores, os gostos e a formao da cultura dos seus moradores.
Assim, os interiores modernos, mais flexveis e funcionais proporcionam uma grande
diversidade de usos no mesmo ambiente, e so a expresso da famlia e do homem modernos;
enquanto os interiores burgueses do sculo XIX refletiam os modos rgidos e hierarquizados
do homem daquela poca, quando cada funo ocorria em um espao destinado
especificamente a ela.
Figura 1: Interior burgus Figura 2: Interior moderno Fonte: http://www.englishheritageprints.com Acesso: 21/09/2011 Fonte: < http://www.guiasaude.org> Acesso: 21/09/2011
No sem razo que Le Corbusier, um dos cones da arquitetura moderna
considerava deplorvel o [...] hbito burgus de colecionar mveis- ele ridicularizava suas
casas como sendo labirintos de mveis (RYBCZYNKI, 2002, p. 196). Nessa mesma obra,
Rybczynski (2002) investiga as origens da idia de casa e do conceito de conforto, desde a
21
Idade Mdia at o sculo XX. Ele mostra que a ideia de casa e o conceito de conforto tiveram
significados diferentes em pocas diferentes, e que os arranjos dos interiores sempre
refletiram essas diferenas. Tambm os arranjos dos interiores medievais, renascentistas,
barrocos, rococs, dentre outros, cada um sua maneira, podem ser entendidos como uma
expresso da sociedade e da cultura na qual foram gerados. Desta forma, organizar e criar
arranjos para os objetos to importante dentro de uma cultura quanto criar os objetos.
O arranjo produz a ambincia. E a estrutura da ambincia definida como o uso da
cor, dos materiais, das formas e do gestual combinados na constituio dos espaos. Segundo
Baudrillard (1973, p. 37), o arranjo como tratamento do espao torna-se de resto tambm ele
elemento de ambincia. A estrutura do arranjo mostra a estrutura hierrquica, os valores e as
relaes de poder no seu contexto. A estrutura da ambincia, por sua vez, [...] revela os
aspectos do chamado estilo de vida [...], conforme a leitura que Malard (2006, p. 40) faz
desse conceito de Baudrillard. Enquanto estilo de vida, Baudrillard percebeu que a ambincia
dos interiores atuais virou objeto de consumo sujeito s variaes ditadas pela moda, como a
autora mostra nesse exemplo:
[...] nos ltimos cincoenta anos, o conceito de ambiente agradvel tem sido progressivamente ligado noo do que est em moda. No Brasil, por exemplo, essa
moda tem sido ditada pelas novelas de televiso. Percebe-se pouca diferena entre
os ambientes mostrados nas novelas e os showrooms das lojas de mveis. Isso quer dizer que, hoje em dia, a noo de um ambiente agradvel est ligada ao que est em moda para os ambientes interiores. (MALARD, 2006, p. 42)
O conceito de consumo definido por Baudrillard no se limita concepo do
consumo como uma conseqncia da nossa civilizao industrial ou ps-industrial, ou seja,
ele no se presta somente satisfao das necessidades. Na sua viso, o consumo [...] um
modo de atividade sistemtica e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema
cultural. [...] uma atividade de manipulao sistemtica de signos (BAUDRILLARD, 1973,
p. 206). E para ele um signo um elemento qualquer que recebe arbitrariamente um
significado determinado por conveno. Nesse conceito, os objetos perdem a sua coerncia
enquanto smbolos e tradicionais mediadores de situaes vividas para adquirir sentido
somente em relao a outros objetos-signos e em relao a quem os consome. Parece,
portanto, que [...] o que consumido nunca so os objetos e sim a prpria relao (idem,
ibidem p. 207), ou seja: hoje consumimos o significado que os objetos tm para ns e para os
outros e no o objeto em si. Chegamos ento ao ponto em que o autor critica a nossa relao
com o consumo ao afirmar que [...] os objetos no existem absolutamente com a finalidade
de serem possudos e usados, mas sim unicamente com a de serem produzidos e comprados.
22
(idem, ibidem, p. 172). Assim tambm se d com os interiores atuais mostrados na televiso,
nas revistas e nas mostras de decorao: na maioria das vezes no so feitos para serem
usados, mas para serem mostrados.
Retomando a idia de que o espao arquitetnico estabelece a delimitao entre o
interior e o exterior, o sagrado e o profano, abrigo e desabrigo, Malard ([2003b?], p. 4) define
a ambincia de um espao como [...] o conjunto de qualidades que fazem de um lugar um
domnio sagrado, e acrescenta que a ambincia se forma no processo de apropriao do
espao, [...] um processo sem fim de construir, arranjar, arrumar, modificar, cuidar e
embelezar os lugares. E nesse processo o homem se apropria dos espaos humanizando-os,
modificando-os para dot-los de sua prpria natureza. (Idem, ibidem, p.4).
Assim, humanizar um espao aqui entendido como o processo de apropriao em
que o espao passa a se adequar ao uso humano. Por outro lado, apropriao quer dizer
interao recproca usurio/espao, onde o usurio atua no sentido de moldar os lugares
segundo suas necessidades e desejos. Os lugares, em contrapartida, tornam-se receptivos
(MALARD, [2003b?], p. 4). Pode-se afirmar ento, a partir desses conceitos, que [...] as
pessoas e os grupos encontram sua identidade nos lugares em que vivem em razo dessa
influncia mtua entre usurio/espao (ibidem, P. 4), e esse processo se d por intermdio da
ambincia do espao. Como a ambincia depende dos valores estabelecidos pela cultura, ela
no depende de classe social ou econmica, j que se estabelece no mbito do desejo e
aparece no cotidiano das interaes usurio/espao. (Ibidem, p. 5).
Mas, Malard ([2003b?], p. 4) tambm identifica na ambincia aspectos de outra
ordem, diferentes dos aspectos subjetivos- a combinao de formas, materiais, cores e texturas
para compor o ambiente- os aspectos objetivos da ambincia so descritos como as
sensaes corpreas que se experimentam num lugar (idem, ibidem, p. 4), aqueles
determinados pelas condies de iluminao, trmicas, acsticas e das dimenses do lugar. A
diferena entre os dois aspectos reside no fato de que [...] os subjetivos so relacionados
cultura, enquanto os objetivos so inerentes condio humana (idem, ibidem, p. 4).
Entretanto, ambos afetam o comportamento dos usurios do espao. Portanto, as sensaes
fsicas- aspectos objetivos de uma ambincia- devem estar em conformidade com os
parmetros e necessidades biolgicas dos seus usurios para que os aspectos subjetivos
possam estabelecer as relaes afetivas que permitem a identificao das pessoas com seus
espaos. Um exemplo disso quando uma pessoa est sentindo muito frio ou muito calor em
um ambiente. Essa pessoa no se sentir vontade nem confortvel e, mesmo que o espao
seja muito atraente, a interao espao/usurio no vai se estabelecer a ponto de possibilitar a
23
apropriao daquele espao pelo o usurio. (Idem, ibidem, p. 4). Se o aspecto do conforto
trmico objetivo, ele pode ser mesurado, como diz Rybczynski (2002, p. 231), possvel se
medir em que temperaturas as pessoas sentem calor ou frio, para se determinar entre esses
extremos uma rea de conforto trmica para maioria das pessoas. Mas, o conforto tambm
uma experincia pessoal de satisfao e portanto subjetivo nesse aspecto.
O ser humano, nas suas interaes com o espao construdo, no tem no envoltrio
arquitetnico o lugar das suas aes, nesse contexto ele primordialmente objeto de
percepo visual e simblica. na sua interao com o interior do edifcio que se estabelecem
a maioria das relaes entre o sujeito e o espao. Ento o espao interno funciona como uma
interface4 que faz a mediao entre o usurio, a arquitetura e todos os seus sistemas,
instalaes e conexes, atravs das quais ele se relaciona com a habitao e nela desenvolve
suas aes. no interior que o homem mora, habita.
Precisamos aqui definir em que se constituem a experincia de morar e o objeto
onde essa experincia se d, ou seja, a casa. Podemos discernir que casa e lar so conceitos
diferentes, com origens distintas e que descrevem fenmenos bem diferentes. Entretanto,
casa, na nossa lngua, tanto pode ser o objeto que podemos comprar ou vender, como pode
indicar o lugar onde moramos- o lar. Muitos se referem ao lar como nossa casa ou l em
casa. Casa e lar se confundem na lngua portuguesa. Em ingls, as palavras home e house se
referem a lar e casa, e distinguem duas entidades muito diferentes. Todavia, o objeto casa
pode ser o lugar de uma experincia existencial, transformando-se a partir de ento na nossa
morada, no nosso lar. Bachelard (1978) descreve atravs de diversas imagens poticas o
significado que a casa tem para o homem, comparando ocupar uma casa e todos os seus
cantos com o ato de tomar conscincia de ns mesmos, no nosso ntimo. Para Bachelard:
A casa nosso canto no mundo. [...] a casa abriga o devaneio, a casa protege o
sonhador, as casa nos permite sonhar em paz. [...] Sem ela o homem seria um ser
disperso. Ela mantm o homem atravs das tempestades do cu e das tempestades da
vida. Ela corpo e alma. o primeiro mundo do ser humano. [...] em nossos
devaneios, a casa um grande bero. (BACHELARD, 1978, p. 200 e 201)
Por fim, descrevemos o conceito de habitabilidade, associado ao significado de
morar. Morar tomado como sinnimo de habitar significa no somente estar sob um abrigo,
mas principalmente [...] estar enraizado num lugar seguro e pertencer quele lugar
(MALARD, [2003?], p. 12). Pode-se perceber que nem todo edifcio que abriga (escritrio,
4 A interface [...] indica a possibilidade de adaptao, de interconexo, de comunicao (grifo do autor) entre
dois ou mais sistemas, equipamentos, unidades, etc. que, de alguma forma apresentam diferenas [...] (COELHO, 2008, p. 208).
24
fbrica, hotel) constitui uma moradia nesse sentido relatado acima, pois o abrigar se refere a
algo de carter temporrio, enquanto que morar de carter definitivo. V-se que ambos tm
diferentes significados nesse contexto. Quando nos hospedamos, de passagem, em um hotel,
ns no moramos nele, mas o habitamos durante nossa estada. Portanto, casa ou hotel, [...]
ambos so habitaes, pois servem como abrigos do homem na sua lida com o mundo. [...]
no importando quais sejam as suas finalidades funcionais (ibidem, p. 12). Assim, a
habitabilidade pode ser definida como o conjunto de caractersticas e qualidades que as
edificaes devem possuir para permitir que o morador experimente o morar de forma plena.
A forma como Michel de Certeau aborda o conceito de morar, dentro de suas
reflexes sobre o cotidiano, privilegia a idia de espaos privados como a casa da gente, o
espao domstico, [...] o territrio onde se desdobram e se repetem dia a dia os gestos
elementares das artes de fazer (DE CERTEAU; GIARD & MAYOL, 2003, p. 203). Ele
afirma que temos a necessidade de proteger o espao privado de olhares indiscretos, uma vez
que a moradia revela a personalidade do seu ocupante e [...] confessa sem disfarce o nvel de
renda e as ambies sociais (Idem, ibidem, p. 204). Essa abordagem mostra uma
proximidade com os conceitos desenvolvidos por Malard em relao ao tema, mas acrescenta
outros aspectos da moradia como um [...] lugar protegido, onde a presso do corpo social
sobre o corpo individual descartada, onde o plural dos estmulos filtrado [...] (Idem,
ibidem, p. 205). A nossa intolerncia com o barulho dos vizinhos, por exemplo, vem do
sentimento de invaso desse filtro protetor que experimentamos nas grandes cidades
contemporneas.
Outros aspectos do morar em De Certeau, Giard e Mayol (2003) podem ser
identificados com os conceitos de DaMatta (1986) quando naquela obra se afirma que [...]
nesse espao privado, via de regra, quase no se trabalha, a no ser o indispensvel: cuidar da
nutrio, do entretenimento e convivialidade [...] (DE CERTEAU, GIARD E MAYOL,
2003, p. 205). Mas, a virada do sculo XX para o XXI vem mostrar que o trabalho em casa,
que predominava antes da revoluo industrial inventar a fbrica como lugar primordial do
trabalho, pode voltar a ser incorporado ao programa das atividades e finalidades das casas
atuais, tornando-se mais uma das qualidades necessrias nova habitabilidade
contempornea.
Diversos autores vo elaborar o conceito de casa a partir dessa oposio entre
interior/exterior, ordem/caos, dentro/fora. O antroplogo Roberto DaMatta parte da dualidade
casa/rua, vida privada/vida pblica, tranqilidade/movimento para estabelecer o conceito de
casa no Brasil do ponto de vista das cincias sociais. Ele distingue casa de lar, sendo o lar o
25
lugar da identidade do grupo que ocupa a casa. A definio dessa identidade muitas vezes se
d [...] mesmo quando so residncias baratas ou casas de vila, construdas de modo idntico,
algo marca e revela sua identidade: [...] um pedao de azulejo estrategicamente colocado
prximo a uma janela, [...] flores e jardins; a cor de suas janelas e portas (DAMATTA, 1986,
p. 26). Nos anos 1980, DaMatta percebeu uma forte distino entre a casa como local das
relaes familiares, caseiras, tradicionais e ntimas, em oposio ao trabalho como atividade
que se dava fora da casa. O brasileiro no considerava o trabalho domstico como trabalho,
em casa no se trabalhava. No sculo XXI, novas definies esto surgindo no mundo das
relaes casa-rua, que parecem estabelecer novas relaes entre casa e trabalho, tpicas da
sociedade ps-industrial, j que no h mais um lugar especfico (fbrica) para o trabalho e as
modalidades de trabalho em casa mediado pelo computador, fax, internet e outras mdias
despontam como opes viveis e at desejveis no mbito do sistema produtivo atual.
Pode-se supor que os interiores residenciais esto a caminho de transformaes
que possibilitem sua apropriao para outros usos diferentes dos que prevaleciam no sculo
XX. A importncia da questo da moradia e suas possveis configuraes no sculo XXI
merecem uma maior reflexo e compreenso dos fenmenos em curso e suas conseqncias
para a casa como lugar do homem contemporneo, de seus sonhos, seus comportamentos e
aes. Entendemos que o espao parte essencial dessas aes e no somente o palco onde
elas ocorrem, pois o homem um ser espacial, suas aes se do no espao que ele habita. O
espao habitado transcende o espao geomtrico, de acordo com Bachelard (1978, p. 227), e
na relao do homem com o espao que esse estabelece seus verdadeiros limites e sua
verdadeira essncia: a natureza do espao vivido. Seu significado se encontra nas experincias
que esse espao proporciona, no na sua geometria ou na sua arquitetura.
Vimos que lidar com o espao de morar lidar ao mesmo tempo com formas,
dimenses, cores, texturas, materiais, arranjos, ambincias, percepes e emoes. Mesmo se
tratando dos interiores domsticos mais simples, estaremos sempre no territrio de
significados complexos, de requisitos essenciais existncia humana, de expectativas e
desejos, mesmo que impulsionados pela mdia e o consumo. Consideramos que nos dias
atuais a relao da nossa sociedade com a produo e o consumo, inclusive de espaos, passa
por importantes transformaes. Sos essas transformaes que vamos analisar em seguida,
suas origens e suas principais conseqncias para os espaos interiores.
26
2.2 As primeiras transformaes: a era pr-industrial
Quando o ser humano deixou de ser nmade e passou a se fixar em determinados
locais, por volta de 10.000 antes de Cristo, o desenvolvimento da agricultura fez com que
aqueles grupos no precisassem mais se deslocar atrs de alimentos. De fato, a domesticao
de plantas e animais foi uma mudana que pode ter demorado milnios, mas significou uma
transformao crucial, pois possibilitou o aparecimento das primeiras comunidades agrcolas,
aldeias e vilas que originaram as primeiras cidades. certo que [...] a civilizao, como a
conhecemos hoje, origina-se das comunidades agrcolas (WILLIAMS, 2009, p. 33).
Essa primeira evoluo tcnica importante marca o incio de uma nova sociedade e
de uma nova era: a era agrcola ou pr-industrial. Foi uma longa era, de quase seis mil anos,
caracterizada principalmente pelas atividades de caa, pastoreio, pelo trabalho agrcola e, no
seu final pela grande transformao mercantil. Bell (1999), ao descrever a era pr-industrial,
mostra o contraste de sua grande durao com a era industrial relativamente pequena que se
seguiu, destacando as limitadas condies de vida da poca:
Nos primeiros cinqenta e cinco dos ltimos cinqenta e sete sculos, a maior parte
da populao mundial vivia em geral de economias de subsistncia baseadas em
indstrias extrativistas- agropecuria, minerao, pesca e extrao de madeira. E
nesse grande perodo, o aumento da populao estava sujeito a surtos de doenas,
exausto dos solos e esgotamento dos recursos naturais. (BELL, 1999, p. xi,
traduo nossa).
Entre as descobertas e inovaes do incio da era pr-industrial, o uso seguro e
controlado do fogo, as primeiras tcnicas de construo de estruturas mais durveis e as
primeiras formas de escambo e trocas de bens e artefatos foram fundamentais para a evoluo
das moradias. Em seguida, a inveno da linguagem e da escrita, a inveno do calendrio
para as colheitas, entre outros, definiram os modos de vida da humanidade dali em diante.
Surgem as primeiras cidades conhecidas- Jeric, Damasco, Tebas, Beirute, Jerusalm- todas
localizadas na regio conhecida como Crescente Frtil5, onde, ao que tudo indica, a
agricultura surgiu. (PILE, 2005, p. 18; WILLIAMS, 2009, p. 34).
5 Uma rea que cobre cerca de 3000 km desde o vale do rio Jordo, ao norte do Mar Morto, at o Golfo Prsico-
ao longo dos vales dos rios Eufrates e Tigre. Ali o solo, o clima e a mdia de precipitao pluviomtrica, eram
apropriados para o cultivo. (WILLIAMS, 2009, p. 34). Ver figura 1, p. 18.
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Figura 3 - Mapa Crescente Frtil Fonte: Acesso em 21/09/2011
Depois das primeiras cidades, surgiram os grandes imprios antigos, os estados e
as naes; os transportes se expandiram com os veculos a roda e os navios de madeira;
moinhos de gua ou de vento foram construdos e aumentaram a produo de alimentos.
Gutemberg aperfeioou a impresso por tipos mveis, dando incio imprensa moderna e
difuso de idias por todo o mundo alfabetizado. Surgiram as primeiras universidades.
Enormes progressos se deram em quase todas as reas do conhecimento humano, inclusive a
expanso do mundo ento conhecido com o descobrimento do novo continente.
Em se tratando dos interiores residenciais e das atividades domsticas da era pr-
industrial, tantas evolues se deram no decorrer de perodo to longo, que seria difcil
enumer-las todas. Algumas foram to importantes que permaneceram at hoje incorporadas
nos modos como organizamos nossas casas. Alguns exemplos so os mveis como mesas e
cadeiras, poltronas e sofs, armrios e camas; tapetes e papis de parede; velas e lampies a
leo; lareiras, braseiros, foges e fornos, quase sempre usando madeira ou carvo como
combustvel; utenslios de cermica e porcelana; bacias e panelas de ferro, ao e cobre. Mas
quase tudo isso era luxo existente s nas moradias da minoria mais rica, enquanto que para a
maioria das pessoas, a casa no passava de uma edificao simples de um s cmodo
construdo com o material disponvel nas proximidades- madeira, pedra e tijolos de barro seco
ao sol. (WILLIAMS, 2009, passim).
Uma grande mudana seu deu no tamanho e na formao das famlias desde a
Idade Mdia, quando o grupo familiar era composto de empregados, criados, aprendizes,
28
amigos e afilhados, alm da famlia direta. Tal grupo chegava com freqncia a vinte e cinco
pessoas que dividiam no mximo dois compartimentos e no conheciam a privacidade. A casa
medieval era um lugar pblico. O trabalho e os negcios se misturavam s atividades
domsticas (RYBCZYNSKI, 2002, p. 41). Somente no sculo XVII, na Holanda, que essa
situao comea a mudar devido s condies econmicas e sociais peculiares do pas, que
possibilitaram o surgimento de uma classe mdia predominante e urbana. A famlia holandesa
normalmente j no contava com tantos integrantes, e na maioria das casas morava somente o
casal com seus filhos.
A moradia deixa de ser pblica e se transforma na casa de famlia particular,
passando a ser mais ntima. Essa mudana tem repercusso no s no espao fsico, mas
tambm na formao da nossa conscincia da casa como lugar dos sentimentos de
domesticidade, sossego e privacidade. (Idem, ibidem, p. 61 e 85). Essa trajetria tambm
confirmada por Tramontano (1993), que diz haver no sculo XVI uma noo de cl ainda
forte, que aos poucos vai sendo substitudo pelo grupo familiar mais restrito [...] que
resultar, s portas do sculo XX, na aceitao da famlia nuclear como o modelo de famlia
moderna (TRAMONTANO, 1993, p. 7). Este modelo predominou at o final do sculo XX,
e que tem na casa sua referncia de intimidade e privacidade, mas outros arranjos domsticos
vo surgir no limiar do sculo XXI.
Figura 4: Casa Medieval: moradia e trabalho Fonte: Acesso: 21/09/2011
29
Roger Chartier (2009) v esse processo que definiu uma nova forma privada de
viver como uma evoluo no linear e no regular ocorrida entre os sculos XVI e XVIII. Ele
identifica trs premissas bsicas para que essa privatizao se estabelecesse: [...] a busca de
um individualismo de costumes, separando o indivduo do coletivo; [...] a multiplicao dos
grupos de convivialidade [...]; por fim, a reduo da esfera do privado clula familiar
(CHARTIER, 2009, p. 398). Nesse contexto a famlia passou a ser o objeto quase exclusivo
dos investimentos afetivos e da intimidade. Mesmo no sendo linear e apresentando uma
grande complexidade, conflitos e contradies, essa trajetria acabou levando, no sculo XIX,
a um antagonismo entre o espao do trabalho e o espao domstico, dissociando de forma
permanente as condutas profissionais e pblicas dos comportamentos familiares. (Idem,
ibidem, p. 399). A casa, como abrigo dessa nova existncia privada, passa a ser a
concretizao espacial da conquista da soberania e da intimidade da famlia, assim Chartier
(2009) demonstra essa relao da casa com o novo modo de vida do homem moderno do
sculo XVI em diante:
Assim a famlia se torna a sede por excelncia do privado. Por um lado, identifica-
se com um espao prprio, distinto: o da habitao domstica. Para a maioria das
sociedades antigas, esta consiste numa casa que abriga os recm-casados, depois as
crianas resultantes da unio; todavia, mesmo onde persiste a coabitao de vrios
casais de uma s famlia, cada um possui um espao protegido que esconde sua
intimidade. Mesmo na cidade, na promiscuidade obrigatria dos imveis urbanos, o
quarto, o cmodo mobiliado ou o sto constituem frgeis refgios para o indivduo
sozinho, o casal ou a famlia estrita. (CHARTIER, 2009, p. 401)
No sculo XVII, inicia-se a Modernidade e, segundo Kumar (1997, p. 87), seus
marcos mais evidentes so a plvora, a imprensa e a bssola, mas tambm as obras de
Montaigne, Francis Bacon e Descartes com o seu Discurso do Mtodo de 1637. Apesar de
tantas importantes transformaes sociais, culturais e tcnicas, as casas do homem comum ou
da pequena burguesia pouco mudaram depois da transio da casa medieval pblica para a
casa de famlia particular. O trabalho deixa de ser feito em casa, e a economia progride com a
expanso comercial martima liderada pela Inglaterra que atinge todo o globo. Entretanto as
principais fontes de fora e energia da era pr-industrial ainda eram a trao humana ou
animal, a fora do vento e das guas. (WILLIAMS, 2009, passim). Essas limitadas fontes de
energia eram o grande gargalo da produo de bens e do crescimento econmico. At que
outra transformao nos modos de produo viesse revolucionar outra vez a forma como as
pessoas viviam, produziam e se organizavam em sociedade.
30
2.3 As transformaes da era industrial
A prxima transformao importante s foi ocorrer com o advento da
industrializao, por volta do final do sculo XVIII. o processo que Cardoso (2004) chama
de primeira Revoluo Industrial e assim a define: [...] uma srie de transformaes nos
meios de fabricao, to profundas e to decisivas que costuma ser conceituado como o
acontecimento econmico mais importante desde o desenvolvimento da agricultura
(CARDOSO, 2004, p. 18). Alguns autores, como Eric Hobsbawn (1996) e Nicolau Sevcenko
(1998) estabelecem seu incio por volta de 1780. Domenico De Masi (2000, p 12), delimita a
ocorrncia da fase que ele chama de sociedade industrial nos dois sculos entre meados do
sculo XVIII e a meados do XX, quando ento sucedida pela era denominada ps-industrial.
Hobsbawm (1996) d o nome de dupla revoluo- dual revolution- ao perodo
que vai de 1789 a 1848, quando eclodiram a Revoluo Francesa e a primeira revoluo
industrial, na Inglaterra. Esses dois eventos transformaram as sociedades nas quais se
originaram, e a partir delas, propagaram suas mudanas para todo o resto do mundo. Ele
considera que os fatos ocorridos nesse perodo ainda repercutem nos dias de hoje no mundo
todo e define assim sua importncia:
[...] constitui a maior transformao da histria humana desde os tempos remotos em
que o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado.
Esta revoluo transformou e continua a transformar o mundo inteiro.
(HOBSBAWM, 1996, p. 1, traduo nossa).
Conforme o autor, em determinado momento da dcada de 1780, a humanidade
superou os limites impostos produo de bens e servios pela sua estrutura social agrria,
sua cincia e sua tecnologia deficientes. Essa primeira fase industrial, baseada na nova fonte
de energia da mquina a vapor desenvolvida por James Watt em 1784, levou criao de um
sistema de fabricao mecanizado que produz em grandes quantidades e a um custo cada vez
mais baixo a ponto de no mais depender da demanda existente, mas de criar seu prprio
mercado (HOBSBAWM, 1996, p. 32). A mecanizao do sistema de produo o fator que
melhor define a industrializao e, [...] atravs de uma srie de inovaes tecnolgicas entre
o final do sculo XVIII e o incio do XIX foi permitindo o aumento constante da
produtividade (CARDOSO, 2004, p. 19). Desse modo, com custos cada vez menores, os
produtos se tornavam acessveis a uma grande parcela da populao que antes da mecanizao
31
no teriam como adquiri-los. um marco fundamental da sociedade industrial: pela primeira
vez a produo passa a gerar demanda em vez de apenas atender quela pr-existente.
A criao de novas demandas para uma enorme variedade de produtos um dos
sustentculos da sociedade de consumo do sculo XX como foi definida anteriormente por
Baudrillard. Entretanto, Rafael Cardoso (2004, p. 19) diz que no sculo XVIII em alguns
pases da Europa j existia [...] seno uma sociedade de consumo, pelo menos uma classe
consumidora numerosa, que detinha um forte poder de compra e j comeava a exigir bens de
consumo mais sofisticados. Alguns fabricantes, para incrementar a qualidade de seus
produtos, contratam artistas ou desenhistas para conceber o projeto do objeto e assim surgem
os primeiros designers, quando se d a separao entre a execuo e o projeto dentro da
produo na fbrica, ainda no sculo XVIII. (CARDOSO, op. cit., p. 21-23)
No perodo inicial da industrializao, apesar de todo o esforo de mecanizao,
diviso de tarefas e estandardizao, as mudanas que deram melhor resultado foram
mudanas derivadas da forma de se organizar o trabalho, a produo e a distribuio e no a
utilizao de novas mquinas. Isso quer dizer que foram mudanas mais sociais que
tecnolgicas. As idias de Adam Smith e Frederick W. Taylor de diviso de tarefas e
gerenciamento cientfico dos mtodos de trabalho tiveram impacto positivo na produo. Mas,
Rafael Cardoso afirma que o maior impacto foi causado pela transformao simultnea nos
meios de transporte e de comunicao que se seguiu [...] introduo das estradas de ferro,
da navegao a vapor, do telgrafo, da fotografia e de outras inovaes [...] alterou
inteiramente as perspectivas para a distribuio de mercadorias e de informaes [...]
(CARDOSO, op. cit., p. 35). At hoje sentimos as consequncias dessas transformaes
atravs do processo de globalizao que vem se instalando no mundo.
At a dcada de 1830 a indstria do algodo foi a maior responsvel pelo
formidvel crescimento econmico da Gr-Bretanha, onde gerou a construo de parques
industriais, mquinas, inovaes qumicas, mecanizao industrial, uma frota mercante, entre
outras atividades. Entretanto, esse progresso produziu tambm grandes problemas. Os mais
graves foram os problemas sociais com o surgimento da misria e o descontentamento, que
eclodiu na forma de revoltas dos trabalhadores das indstrias e dos contingentes de pobres das
cidades. Mas a indstria algodoeira britnica chega a um limite e se v estagnada por volta de
1830, com seus ndices de rentabilidade em declnio, queda de preos e das margens de lucro
(HOBSBAWM, 1996, passim). Ento, na segunda metade do sculo XIX, inicia-se a segunda
fase do desenvolvimento industrial: o surgimento de uma indstria bsica de bens de capital.
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A segunda etapa de revoluo industrial baseada na produo de ferro, ao e de
carvo mineral. O carvo foi a principal fonte de energia industrial do sculo XIX e tambm
um combustvel domstico essencial num pas que tinha poucas florestas para extrao de
madeira. Foi o crescimento de cidades como Londres que provocou um grande incremento na
minerao do carvo, em cuja extrao se fez uso, pela primeira vez das recentes mquinas a
vapor para bombeamento de gua e para rebocar vages no transporte dos minerais para fora
das minas. (WILLIAMS, 2009, p. 157; HOBSBAWN, 1996, p. 44). A inveno bsica que
iria transformar as indstrias de bens de capital e se tornaria o smbolo da segunda fase da
industrializao na Inglaterra era a ferrovia movida a carvo e vapor.
Segundo Williams (op. cit., p. 148), a primeira estrada de ferro- de Stockton a
Darlington- ligava uma mina de carvo ao litoral e foi inaugurada em 1825, na Inglaterra. Mas
a Estrada de Ferro Liverpool-Manchester foi a primeira ferrovia pblica inteiramente movida
a vapor, inaugurada em 1830. Ambas se provaram investimentos viveis e lucrativos e
desencadearam uma verdadeira [...] mania de ferrovia, quando em meados do sculo XIX
foram investidos 250 milhes de libras, 250 mil empregos foram criados, e rede britnica
chegou a 16 mil quilmetros (WILLIAMS, op. cit., p. 149). O fato de ser o nico meio de
transporte de longa distncia rpido e barato explica seu enorme sucesso em no s no Reino
Unido, mas em todo o mundo. A ferrovia foi a inovao da revoluo industrial que mais
mexeu com a imaginao das pessoas, Hobsbawm (1996, p. 45, traduo nossa) diz que ela
foi [...] o nico produto da industrializao do sculo XIX totalmente incorporado ao
vocabulrio imagtico da poesia erudita e popular. Em pleno sculo XIX nada se comparava
velocidade e fora de uma locomotiva- que podia chegar a 96 quilmetros por hora- e isso
explica a atrao exercida sobre as pessoas que viam no seu poder o smbolo de uma nova era
de triunfo do homem pela tecnologia (HOBSBAWM, loc. cit.). Nessa era em que as
distncias se encurtaram e a velocidade da vida nunca mais voltou a ser como antes,
percebemos tambm o incio de uma transformao nos comportamentos, no cotidiano da
vida domstica e nas conscincias. Isso pode ser exemplificado nas palavras de um grande
projetista de ferrovias do sculo XIX, Henry Booth: O que era devagar agora rpido; o que
era longe agora perto, e essa mudana em nossos conceitos impregna a sociedade como um
todo (WILLIAMS, op. cit., p. 149).
Pode-se compreender a evoluo da moradia atravs do estudo da evoluo
tcnica, social e cultural e, principalmente dos modos de vida das sociedades ocidentais, como
fazem Rybczynski (2002) e Tramontano (1993), uma vez que [...] s transformaes da
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sociedade correspondem- ao que parece- transformaes nos espaos de morar, para melhor
ou para pior, planejadas ou no (TRAMONTANO, 1993, p. 1). Os novos modos de vida
demandados pela indstria transformam radicalmente o cotidiano dos seus trabalhadores, a
maioria formada por camponeses ou pequenos artesos que no tinham as habilidades e
qualificaes necessrias, nem estavam habituados ao ritmo regular de trabalho dirio e
ininterrupto. Portanto todo operrio tinha que aprender a trabalhar da maneira adequada
indstria, e s podemos imaginar hoje o impacto que essa mudana deve ter causado na vida,
na famlia, na sade fsica e na mentalidade de um enorme contingente de pessoas e, mais
importante ainda, o impacto nas cidades e na sociedade como um todo (HOBSBAWM, 1996,
p. 50). Por tudo isso que se aplica o nome de revoluo a esse evento que explodiu- para
usar um termo de Hobsbawm- no mundo no final do sculo XVIII.
Entre as principais consequncias da revoluo industrial, Hobsbawm (op.cit., p.
169) cita o crescimento da populao, que impulsionou a economia e a o mesmo tempo foi
impulsionada por ela, pois criando mais empregos, produziu tambm mais consumidores.
Essa exploso demogrfica deu incio no sculo XIX ao fluxo constante e irreversvel de
migrao do campo para as cidades industrializadas, inchando-as. Outra importante mudana
decorrente da j mencionada revoluo dos transportes e das comunicaes, que
possibilitaram unir campo e cidade, regies pobres e ricas, a ponto de amenizar os problemas
de escassez de alimentos em pocas de quebra de safras e reduzir a fome e a mortalidade.
Todavia, a consequncia mais impressionante dessas transformaes para a
histria do mundo foi [...] estabelecer o domnio do globo por uns poucos regimes
ocidentais- especialmente pelos britnicos- que no tem paralelo na histria (HOBSBAWM,
op. cit., p. 3, traduo nossa). Esse domnio ocorreu devido necessidade das indstrias
britnicas de exportar os excedentes de sua produo, principalmente da indstria de tecidos
de algodo. Os mercados representados pelas colnias ultramarinas incrementaram muito
essas exportaes, quando as guerras napolenicas e os bloqueios econmicos interromperam
o comrcio da Inglaterra com os pases europeus. sia, frica e Amrica eram grandes
importadores, estabelecendo-se um monoplio da indstria britnica em relao aos pases
menos desenvolvidos dessas regies. Entre os maiores importadores de produtos ingleses se
destacavam a ndia e a Amrica Latina, principalmente depois de sua separao de Portugal e
Espanha, quando se tornou quase totalmente dependente economicamente da Gr-Bretanha
(HOBSBAWM, op. cit., passim). A diviso entre pases adiantados e subdesenvolvidos tem
origem nessa poca e, como diz o autor, [...] nenhum outro fato determinou a histria do
sculo XX de maneira mais forte (Idem, ibidem, p. 181, traduo nossa). Foi assim que
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nasceu a separao do globo entre o primeiro, o segundo e o terceiro mundo que predominou
at o final do sculo XX.
A etapa industrial foi de seminal importncia para o design como o entendemos
hoje, pois essa atividade surgiu como uma profisso a partir das possibilidades abertas pelos
avanos e pelas transformaes geradas pela industrializao dos modos de produo. A
profisso do designer de interiores- tambm chamado de decorador- surgiu no fim do sculo
XVIII, quando a arquitetura era considerada antes uma arte que um negcio e no haviam
ainda escolas de arquitetura na Inglaterra. Os arquitetos estavam mais empenhados em
resolver bem a aparncia dos edifcios do que seu bom funcionamento, e tambm davam mais
ateno ao seu exterior que ao interior. O arranjo do interior ficava geralmente a cargo do
dono da casa, que na maioria das vezes ficava sem saber o que fazer diante da quantidade e
variedade de objetos colocados disposio no mercado pelas indstrias. A ajuda era
fornecida pelo estofador, que era um comerciante de tecidos e coberturas de estofamentos,
mas passou a incluir em seus servios toda a decorao interna, sendo promovido ento a um
fornecedor de orientao especializada necessria ao dono da casa. Rybczynski (2002, p. 135)
assim descreve o surgimento da profisso, e acrescenta num tom de crtica:
Quando os arquitetos perceberam que haviam perdido o controle da arrumao da
casa, j era muito tarde. Os estofadores, ou os decoradores de interiores, como foram
chamados mais tarde, comearam a dominar o conforto domstico cada vez mais.
(RYBCZYNSKI, 2002, p. 136)
No final do sculo XVIII, especialmente na Inglaterra, os interiores [...]
comearam a ser vistos como um local para se realizar atividades humanas; no eram mais
simplesmente um espao bonito, mas estavam se tornando um lugar (RYBCZYNSKI, 2002,
p. 128). Isso quer dizer que estavam comeando a se humanizar, conforme o conceito de
Malard [ver captulo 2]. Ou seja, a noo de conforto da poca passou a incluir a utilidade
junto ao bem-estar fsico e ao encanto visual, atributos da ambincia. Mas antes do incio da
revoluo industrial, poucas coisas haviam mudado nos interiores das residncias, de acordo
com Rybczynski (2002). No havia ainda pias, nem gua encanada, usava-se uma tigela para
a gua; no havia banheiros nem saneamento, usava-se o urinol; no havia aquecimento, mas
lareiras ou fornos de porcelana; e iluminao desde a Idade Mdia era luz de velas. Dessa
forma, a casa do sculo XVIII ainda no tinha incorporado nenhuma inovao tecnolgica
importante. (Idem, ibidem p. 134).
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Entretanto, no final daquele sculo, com os avanos industriais, a tecnologia
domstica comeou a se desenvolver lentamente. Surge a primeira privada a vlvula com
vedao hidrulica, em 1778; a fechadura prova de arrombamento, do mesmo inventor da
privada, Joseph Bramah; o lampio Argand a leo, de 1783, melhora a qualidade da
iluminao; as lareiras passam por aperfeioamentos para reduzir a fumaa e irradiar mais
calor, em 1795; a iluminao a gs foi adotada tanto nos interiores quanto na de rua, na
dcada de 1800; sistemas para ventilao e renovao do ar; e at fornos e foges a gs so
desse perodo. Dentre essas mudanas, destaca-se a grande melhoria trazida pela iluminao a
gs, pois os interiores mais claros possibilitavam a leitura noite, o que resultou num
aumento nos nveis de instruo, alm um aumento da limpeza domstica e pessoal
(RYBCZYNSKI, op. cit., p. 132-150). A tecnologia comeou ento a invadir o espao
domstico e nunca mais parou.
Figuras 5 e 6: Fechadura e privada a vlvula com vedao hidrulica inventadas por Joseph Bramah por volta de 1778 Fonte: Acesso: 21/09/2011
Paralelamente a essas melhorias nos interiores, as tcnicas de construo tambm
passam por inovaes, mesmo que de forma lenta e pouco abrangente. Diversos edifcios
comuns como casas, lojas e pequenos prdios ainda so construdos com os mesmos
princpios, mesmos materiais e processos ao longo dos ltimos trs sculos ou mais. Ao
longo da histria, a indstria da construo tem sido, em geral, muito conservadora e a
construo do sculo XX mostrou no ser exceo (WILLIAMS, 2009, p. 239).
Mesmo assim a revoluo industrial trouxe importantes avanos em novos
materiais e novas tcnicas. O ferro fundido comea a ser usado primeiramente em pontes e
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ferrovias, por volta de 1780, e logo passa a ser adotado como estrutura para edifcios
industriais- fbricas e armazns- e estabelecimentos comerciais, associado a alvenarias nas
vedaes de pisos e paredes. Embora o ferro no seja combustvel, ele perde sua resistncia
mecnica quando aquecido a altas temperaturas, podendo entrar em colapso no caso de um
incndio. A alternativa que veio solucionar esse problema foi o aperfeioamento da produo
do ao laminado, que substituiu por completo o ferro fundido nas estruturas dos edifcios. A
mais famosa construo do mundo em ferro a torre Eiffel, de 1889, com seus trezentos
metros, e foi tambm provavelmente a ltima construo importante com esse material.
A partir de 1890 o ao passou a ser uma alternativa disponvel e foi amplamente
usado desde ento. (WILLIAMS, op. cit., p. 240). A primeira utilizao da estrutura de ao
em edificaes residenciais se deu em Chicago, nos Estados Unidos. A cidade foi destruda
por um grande incndio em 1871 e na sua reconstruo surge a oportunidade de se empregar
essa nova tcnica construtiva para construir edifcios de muitos pavimentos, pois a demanda
crescente por habitaes resultou na necessidade de se aproveitar ao mximo os terrenos
melhor localizados e mais valorizados. Depois da inveno do elevador, em 1854, a altura dos
edifcios em estrutura de ao aumentou cada vez mais. (TRAMONTANO, 1993, p. 34).
Outro material essencial para a indstria da construo civil surgido no sculo XIX
no bojo das inovaes da revoluo industrial o concreto armado. Os romanos da
antiguidade j conheciam e faziam uso de um tipo de concreto conhecido como pozolana, que
era obtido por uma mistura de cal e cinza vulcnica. O cimento, que semelhante pozolana
dos romanos, foi inventado na Inglaterra em 1824 e passou a ser muito empregado por
construtores e engenheiros devido ao seu baixo custo e facilidade de uso e manuseio, e
quando misturado a areia e cascalho pode ser moldado em formas de diversos formatos. O
concreto armado surge de uma tentativa de melhorar sua resistncia flexo, quando so
embutidas hastes de ferro no concreto. Esse sistema foi patenteado por Joseph Monier, na
Frana em 1867 (WILLIAMS, op. cit., p. 242). Desde ento o concreto armado foi
amplamente empregado na construo de casas, prdios de muitos pavimentos, pontes,
represas, silos. Segundo Marcelo Tramontano (1993, p. 35), a primeira edificao residencial
em concreto armado data de 1903, na Frana, da autoria de Auguste Perret, e consistia num
edifcio de apartamentos de sete andares em Paris. Sua estrutura independente das paredes
permitiu que o uso de divisrias leves e mveis para as vedaes deixasse a planta das
unidades completamente independentes umas das outras. Esse recurso ainda viria a ser uma
das premissas da arquitetura modernista do sculo XX.
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Como resultado das transformaes sociais da Revoluo Francesa e das
mudanas econmicas da revoluo industrial, a burguesia se estabelece como classe
predominante. Mesmo no sendo uma classe homognea, todos adotam um mesmo sistema de
valores e prticas sociais similares. Tramontano (1993, p. 10) afirma que a habitao burguesa
como uma grande vitrine do seu xito social, pois o lugar da famlia e seus valores. A casa
burguesa toma forma no sculo XIX e estabelece um padro que, de certa forma, usado at
hoje no sculo XXI. A principal caracterstica dessa conformao a [...] tripartio
burguesa da habitao: espaos sociais, ou representativos; espaos de servio, ou de rejeio
e espaos ntimos (TRAMONTANO, op. cit., p. 12). Os valores burgueses ficam claramente
expostos na forma como suas casas so divididas, com seus cmodos de mais prestgio- salas
e s vezes quartos- voltados para a fachada principal; os banheiros e cozinhas pequenos, mal
iluminados e ventilados e os quartos que devem ter sua privacidade resguardada a todo custo.
A cozinha da casa burguesa aos poucos vai sendo equipada com utenslios e
equipamentos com acabamento esmaltado, suas paredes passam a ser lisas e sem reentrncias,
cobertas com ladrilhos ou pintura brilhante impermevel,