1
UNESP ndash UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
CAMPUS DE MARIacuteLIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS
ldquoJUacuteLIO DE MESQUITA FILHOrdquo
GREICE FERREIRA DA SILVA
O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GEcircNEROS DISCURSIVOS NA EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
Mariacutelia ndash SP
2013
2
GREICE FERREIRA DA SILVA
O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GEcircNEROS DISCURSIVOS NA EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
Tese apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em
Educaccedilatildeo da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias da
Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita
Filhordquo Campus de Mariacutelia na Aacuterea de concentraccedilatildeo
Ensino na Educaccedilatildeo Brasileira ndash Abordagens
Pedagoacutegicas do Ensino de Linguagens para a
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Educaccedilatildeo
Orientador Dagoberto Buim Arena
Mariacutelia
2013
3
Silva Greice Ferreira da
S586l O leitor e o re-criador de gecircneros discursivos
na Educaccedilatildeo Infantil Greice Ferreira da Silva ndash Mariacutelia
2013
315 f 30 cm
Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) ndash Faculdade de
Filosofia e Ciecircncias Universidade Estadual Paulista 2013
Bibliografia f 253-262
Orientador Dagoberto Buim Arena
1 Leitura (Ensino elementar) 2 Escrita 3 Educaccedilatildeo
de crianccedilas 4 Crianccedilas - Escrita 5 Crianccedilas - Linguagem
I Autor II Tiacutetulo
CDD 3726
4
GREICE FERREIRA DA SILVA
O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GEcircNEROS DISCURSIVOS NA EDUCACcedilAtildeO
INFANTIL
Tese apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em
Educaccedilatildeo da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias da
Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita
Filhordquo Campus de Mariacutelia na Aacuterea de concentraccedilatildeo
Ensino na Educaccedilatildeo Brasileira ndash Abordagens
Pedagoacutegicas do Ensino de Linguagens para a
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Educaccedilatildeo
Orientador Dagoberto Buim Arena
Aprovaccedilatildeo Mariacutelia ______ de ________________ de ______
Membros componentes da banca examinadora
Dr Dagoberto Buim Arena (UNESP ndash Mariacutelia-SP) __________________________________
Dra Claacuteudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto ndash (UNIMEP ndash Piracicaba-SP)__________
Dr Irineu Aliprando Viotto Filho (UNESP ndash Presidente Prudente-SP) ___________________
Dra Stela Miller (UNESP ndash Mariacutelia-SP) __________________________________________
Dra Suely Amaral Mello (UNESP ndash Mariacutelia-SP) ___________________________________
Suplentes
Dra Cyntia Graziela Guizelim Simotildees Girotto ndash (UNESP ndash Mariacutelia - SP)
Dra Nanci Laacutezara de Barros Amancio ndash (UFMT ndash Rondonoacutepolis ndash MT)
Dra Renata Junqueira de Souza ndash (UNESP ndash Presidente Prudente ndash SP)
5
A todas as crianccedilas
(SCHULZ 2012 p D4)
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo
A Deus por tudo
A minha matildee Ivelin Tabachini Ferreira que sempre esteve presente com seu apoio
valorizando minhas conquistas Com sua luta e perseveranccedila me deu as condiccedilotildees para alcanccedilar
meus proacuteprios sonhos
Aos meus irmatildeos amados Melrian Ferreira da Silva Simotildees e Kelson Tabachini Ferreira que
nos momentos de alegria compartilharam dos meus sorrisos e nos momentos de desacircnimo me
ajudaram a continuar
Ao meu orientador Prof Dr Dagoberto Buim Arena que me acolheu como sua orientanda
por duas vezes Obrigada por acreditar em mim e por incansavelmente investir na minha
formaccedilatildeo Agradeccedilo sua atitude responsiva que em todas as situaccedilotildees potencializaram a minha
atuaccedilatildeo docente e acadecircmica Agradeccedilo sua orientaccedilatildeo generosa sua presenccedila sincera intensa e
sensiacutevel e por ser exemplo de educador de trabalho e de competecircncia ldquoQuando eu crescer quero
ser como vocecircrdquo
Agraves crianccedilas que criaram em mim a necessidade de compreender o meu objeto de estudo e por
reiterarem diariamente que aprender eacute uma das melhores coisas que existe
Agrave Profordf Drordf Stela Miller por todas as contribuiccedilotildees valiosas natildeo somente na minha
trajetoacuteria como pesquisadora mas tambeacutem como docente Obrigada por seu olhar criterioso e
cuidadoso com o trabalho de pesquisa A vocecirc dedico meu respeito e gratidatildeo
Ao Profordm Dr Irineu Aliprando Viotto Filho pelas saacutebias palavras e por contribuir de maneira
valorosa com esta tese
Agrave Profordf Drordf Suely Amaral Mello a quem tenho imensa admiraccedilatildeo Obrigada pela confianccedila
de sempre Agradeccedilo por potencializar meus estudos e por me instigar a buscar uma educaccedilatildeo
humanizadora para as nossas crianccedilas
Agrave Profordf Claacuteudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto por fazer parte da banca de defesa e
por sua disponibilidade em ajudar
7
Especialmente agraves professoras Drordf Cyntia Graziela Guizelim Simotildees Girotto Drordf Nanci
Laacutezara de Barros Amacircncio e Drordf Renata Junqueira de Souza pela leitura atenta e pelo apoio
oferecido
A Meire Alice Tonini pelo incentivo apoio e amizade acompanhando com entusiasmo cada
etapa desta tese e agradeccedilo tambeacutem a equipe da escola em que foi realizada a pesquisa
As minhas amigas Adriana Frabetti e Cristiane Maria Martini que me fortalecem sempre com
sua amizade fraterna
A minha querida Flaacutevia Cristina de Oliveira Murbach de Barros pela parceria pelas
reflexotildees e pelo presente da sua amizade iniciada no doutorado
A Silvana Paulino de Souza que com sua generosidade e sabedoria me sustentou em um
momento difiacutecil da caminhada Jamais me esquecerei do seu gesto humanizado que me trouxe
tanto alento
Ao meu amigo querido Alexandro Henrique Paixatildeo que mesmo distante eacute sempre presente
Obrigada por ser essencialmente vocecirc
A Eliana Maria D Romera de Souza pessoa querida presenccedila inestimaacutevel que zela pelos
meus avanccedilos Obrigada por me ajudar a entender tantas coisas
Obrigada a todos que participam da minha vida e da minha formaccedilatildeo e aqueles que direta ou
indiretamente contribuiacuteram para este trabalho
8
Soacute me torno consciente de mim soacute me torno eu mesmo
me revelando para outrem atraveacutes de outrem e com a
ajuda de outrem Os atos mais importantes constitutivos
da consciecircncia de si se determinam por uma relaccedilatildeo
com outra consciecircncia (a um tu) A ruptura o
isolamento o fechamento em si eacute a razatildeo fundamental
da perda de si [] O ser mesmo do homem eacute uma
comunicaccedilatildeo profunda Ser significa comunicar Ser
significa ser para outrem e atraveacutes dele para si O
homem natildeo possui territoacuterio interior soberano ele estaacute
inteiramente e sempre numa fronteira olhando para si
ele olha nos olhos de outrem ou atraveacutes dos olhos de
outrem Eu natildeo posso prescindir de outrem natildeo posso
tornar-me eu mesmo sem outrem eu devo me encontrar
em outrem encontrando outrem em mim (no reflexo na
percepccedilatildeo muacutetua) [] (BAKHTIN 1987 p 287)
9
RESUMO
Esta tese relata a pesquisa que apresenta como objetivo geral analisar como ocorre o processo de
apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita das crianccedilas de cinco e seis anos por meio dos gecircneros
discursivos no contexto das teacutecnicas Freinet e como objetivos especiacuteficos 1) Analisar como o
ensino dos gecircneros discursivos ndash carta relatos de vida notiacutecia de jornal ndash interfere na
aprendizagem da leitura e da escrita das crianccedilas de cinco e seis anos 2) Discutir quais relaccedilotildees
as crianccedilas de cinco e seis anos estabelecem com os elementos dos gecircneros discursivos ndash
conteuacutedo temaacutetico estilo e construccedilatildeo composicional ndash e de que forma estas relaccedilotildees atuam no
processo de formaccedilatildeo do leitor e do re-criador de textos 3) Identificar condutas proacuteprias de leitor
e de re-criador de textos (orais e escritos) como parte do processo de apropriaccedilatildeo da leitura e da
escrita 4) Investigar como o trabalho pedagoacutegico com os diferentes gecircneros discursivos pode
contribuir para a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita pelas crianccedilas de cinco e seis anos A
pesquisa ancorou-se nos pressupostos teoacutericos de Bakhtin em diaacutelogo com a Teoria Histoacuterico-
Cultural com a Pedagogia Freinet e estudiosos do tema abordado O trabalho de investigaccedilatildeo
corresponde a uma pesquisa-accedilatildeo com duraccedilatildeo de sete meses compreendidos entre maio e
dezembro de 2010 Participaram 20 crianccedilas com idade de cinco e seis anos de uma turma de
Infantil II de uma escola puacuteblica municipal de Educaccedilatildeo Infantil da cidade de Mariacutelia ndash SP
quatro professoras das crianccedilas dos anos anteriores agrave pesquisa e a professora-pesquisadora Foi
realizado um trabalho pedagoacutegico intencionalmente organizado com enfoque em trecircs gecircneros
discursivos carta relato de vida e notiacutecia de jornal Como instrumento para geraccedilatildeo e coleta de
dados fez-se uso de entrevistas observaccedilotildees e das teacutecnicas Freinet como a correspondecircncia
interescolar o livro da vida o jornal da turma a roda da conversa a aula passeio Os
instrumentos de anaacutelise foram a anaacutelise microgeneacutetica e anaacutelise do discurso na perspectiva
enunciativa discursiva de Bakhtin Os resultados da investigaccedilatildeo indicaram a reconceitualizaccedilatildeo
do ser leitor e do ser re-criador de textos na Educaccedilatildeo Infantil A crianccedila eacute concebida como
sujeito de suas aprendizagens em que atua de forma interativa os gecircneros discursivos a forma
como satildeo apresentados e as mediaccedilotildees estabelecidas no seu ensino contribuem para o processo de
apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da leitura e da escrita pelas crianccedilas pequenas se ocorrerem de forma
dialoacutegica e dinacircmica Aponta-se tambeacutem que as relaccedilotildees com os elementos dos gecircneros
discursivos interferem no processo de formaccedilatildeo leitora e escritora e com essas condiccedilotildees o
trabalho pedagoacutegico orientado pela codificaccedilatildeo e decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos para o ensino
do ato de escrever e do ato de ler pode ser descartado
Palavras-chave Leitura escrita gecircnero discursivo Teacutecnicas Freinet Educaccedilatildeo Infantil
10
ABSTRACT
This thesis reports research that presents as general objective analyze how occurs the process
of appropriation of reading and writing for children five and six years by means of discursive
genres in the context of Freinet techniques and as specific objectives 1) Analyze how
teaching of discursive genres - letter life stories newspaper article - interferes with the
learning of reading and writing for children five and six years 2) Discuss which relations
children of five and six years to establish the elements of discursives genres - thematic
content style and compositional construction - and how these relations act in the process of
formation of the reader and the re-creator of texts 3) Identify behaviors own reader and re-
creator of texts (oral and written) as part of the appropriation process of reading and writing
4) Investigate how the pedagogical work with different discursives genres can contribute to the
appropriation of reading and writing for children five and six years The research was
anchored on the theoretical principles of Bakhtin in dialogue with the Historical-Cultural
Theory with Freinet Pedagogy and studious of the boarded subject The research corresponds
to an research-action with duration of seven months understood between May and December
of 2010 Participants were 20 children aged five and six years a class of Child II a municipal
public school kindergarten in Mariacutelia - SP four teachers of children in the years preceding the
survey and the teacher-researcher It was performed a pedagogical work intentionally
organized focusing on three genres letter life report and newspaper article As a tool for the
generation and collection of data was made use of interviews observations and techniques
such as matching interscholastic Freinet the book of life the newspaper of the class the wheel
of the conversation class ride The analysis tools were microgenetic analysis and discourse
analysis in the perspective of discursive enunciation Bakhtin The research results indicated
the reconceptualization of being a reader and being re-creator of texts in Early Childhood
Education A child is conceived as the subject of their learning in which it operates
interactively the discursives genres the way they are presented and mediations established in
their teaching contribute to the process of appropriation and objectification of reading and
writing by young children if occur in a dynamic and dialogical It is pointed out that relations
with elements of discursive genres interfere in the formation reader and writer and with these
conditions pedagogical work guided by the encoding and decoding of graphic signs for
teaching of writing and the act of reading can be discarded
Keywords Reading writing discursives genres Freinet techniques Childhood Education
11
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos docentes 57
Quadro 2 Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos docentes quanto agrave formaccedilatildeo58
Quadro 3 Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos crianccedilas59
12
LISTA DE FOTOS
Foto 1 Situaccedilatildeo de leitura de carta ndash 190310 ndash Capiacutetulo IV154
Foto 2 Situaccedilatildeo de leitura de carta ndash 160510 ndash Capiacutetulo IV157
Foto 3 Situaccedilatildeo de leitura de carta ndash 010610 ndash Capiacutetulo IV160
Foto 4 Situaccedilatildeo de leitura de notiacutecia de jornal ndash 140910 ndash Capiacutetulo IV176
Foto 5 Situaccedilatildeo de leitura de notiacutecia de jornal ndash 250910 ndash Capiacutetulo IV183
Foto 6 Situaccedilatildeo de escrita de carta ndash 221110 ndash Capiacutetulo V204
Foto 7 Situaccedilatildeo de escrita de relato de vida ndash 040610 ndash Capiacutetulo V227
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Desenho de C1 e observaccedilotildees escritas ndash Capiacutetulo IV169
Figura 2 Carta escrita por C13 em 290910 ndash Capiacutetulo V210
Figura 3 Carta escrita por C13 em 021210 ndash Capiacutetulo V214
14
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO15
CAPIacuteTULO I ndash A PESQUISA E A CRIANCcedilA CAMINHOS DA METODOLOGIA23
11 A concretude da pesquisa23
12 A pesquisa com crianccedilas32
13 Metodologia de pesquisa a pesquisa-accedilatildeo36
131 Geraccedilatildeo coleta e anaacutelise dos dados39
14 Metodologia do trabalho docente e o ensino dos gecircneros discursivos49
15 Crianccedilas e adultos os sujeitos da pesquisa55
CAPIacuteTULO II ndash CONCEITOS DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM DA LEITURA E
DA ESCRITA NA EDUCACcedilAtildeO INFANTIL DOS PROFESSORES E DAS
CRIANCcedilAS62
21 A crianccedila pequena a cultura escrita e os gecircneros discursivos ler e escrever na Educaccedilatildeo
Infantil63
22 A atividade na leitura e na escrita68
23 Aspectos da teoria bakhtiniana para se pensar o ensino da liacutengua70
24 Os que eacute aprender a ler e a escrever na Educaccedilatildeo Infantil Os conceitos das
professoras75
241 O ensino do ato de ler e de escrever93
242 O ensino da liacutengua materna97
243 As praacuteticas de leitura e de escrita o gecircnero literaacuterio101
CAPIacuteTULO III ndash A LEITURA E A ESCRITA NA ESCOLA DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL
O QUE PENSAM AS CRIANCcedilAS109
31 Os conceitos das crianccedilas no iniacutecio da pesquisa110
32 Os conceitos das crianccedilas no final da pesquisa132
CAPIacuteTULO IV ndash O ENSINO DA LEITURA E OS GEcircNEROS DISCURSIVOS146
41 A crianccedila e seu estatuto de leitor146
15
42 A leitura do gecircnero discursivo carta152
43 A leitura do gecircnero discursivo relatos de vida164
44 A leitura do gecircnero discursivo notiacutecia de jornal173
CAPIacuteTULO V ndash O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA E OS GEcircNEROS
DISCURSIVOS188
51 A crianccedila e seu estatuto de criador de textos189
52 A escrita do gecircnero discursivo carta191
521 Evoluccedilatildeo na escrita do gecircnero discursivo carta212
53 A escrita do gecircnero discursivo relatos de vida216
54 A escrita do gecircnero discursivo notiacutecia de jornal230
CONCLUSAtildeO242
REFEREcircNCIAS253
APEcircNDICES
APEcircNDICE A ndash Termo de consentimento livre e esclarecido do professor participante263
APEcircNDICE B ndash Termo de consentimento livre e esclarecido da crianccedila participante265
APEcircNDICE C ndash Roteiro para entrevista semi-estruturada do professor267
APEcircNDICE D ndash Roteiro para entrevista semi-estruturada da crianccedila268
APEcircNDICE E ndash Transcriccedilatildeo das informaccedilotildees coletadas por meio das entrevistas semi-
estruturadas das professoras269
APEcircNDICE F ndash Transcriccedilatildeo das informaccedilotildees coletadas por meio das entrevistas semi-
estruturadas das crianccedilas (Iniacutecio da pesquisa)280
APEcircNDICE G ndash Transcriccedilatildeo das informaccedilotildees coletadas por meio das entrevistas semi-
estruturadas das crianccedilas (Final da pesquisa)309
ANEXOS
ANEXO A ndash Quadro de normas utilizadas na transcriccedilatildeo das entrevistas315
16
INTRODUCcedilAtildeO
Se escrever eacute entendido como o ato de construir sentidos pelo discurso o ato de
ler tambeacutem seria de construir sentido Essa funccedilatildeo transformadora da liacutengua
obriga a didaacutetica da leitura a elaborar novas condutas metodoloacutegicas para
atender a esse novo leitor e agraves funccedilotildees redescobertas do ato de ler (ARENA
2010b p 243)
Satildeo bastante conhecidas e debatidas as praacuteticas mais comuns do ensino da leitura e da
escrita nas creches e preacute-escolas brasileiras Subsiste entre os professores a ideia de que ler e
escrever satildeo habilidades para o domiacutenio das quais os treinos de escrita ndash as coacutepias exerciacutecios de
coordenaccedilatildeo motora de discriminaccedilatildeo visual e auditiva a repeticcedilatildeo dos nomes das letras e das
siacutelabas ndash seriam suficientes (BISSOLI 2009)
A despeito das pesquisas e de iniciativas que se contrapotildeem a essas praacuteticas haacute
profissionais que insistem em limitar a formaccedilatildeo de leitores e de re-criadores1 de textos ainda na
Educaccedilatildeo Infantil ao proporem exerciacutecios de escrita enfadonhos e desvinculados da realidade da
vida e dos interesses infantis Esse fato causa um distanciamento para a crianccedila perceber a liacutengua
em seu funcionamento de estabelecer relaccedilotildees com ela e por meio dela e de ser capaz de usaacute-la
nos mais diversos contextos da sua realizaccedilatildeo concreta nas diferentes formas de comunicaccedilatildeo
verbal que o sistema em uso permite realizar Diante disso o ensino da escrita nem sempre tem
calcado o seu objeto como linguagem escrita o que consequentemente faz com que o foco
recaia nos aspectos formais do sistema linguiacutestico
Essas consideraccedilotildees trazem outro problema Sob o pretexto de evitar uma possiacutevel
desmotivadora experiecircncia com textos cuja compreensatildeo estaria supostamente para aleacutem das
possibilidades das crianccedilas pequenas evidenciando um conceito de crianccedila de educaccedilatildeo de
ensino e de aprendizagem empobrecidos continuam a ser apresentados a elas textos
simplificados artificiais cartilhescos seguidos por exerciacutecios que natildeo permitem que a crianccedila se
1 Neste trabalho optei por utilizar a expressatildeo re-criador de gecircneros discursivos por entender que a crianccedila ao re-
criar gecircneros discursivos cria-os e recria-os a partir do que jaacute foi criado e apropriado da cultura humana Entende-se
que o ato de escrever que envolve a imaginaccedilatildeo a criatividade estaacute diretamente relacionado ao processo de
apropriaccedilatildeo da cultura humana e das experiecircncias que a crianccedila participa A opccedilatildeo pelo uso dessa expressatildeo tambeacutem
se justifica pela tentativa de estar em consonacircncia com os pressupostos teoacutericos assumidos neste trabalho Pensar em
re-criador de gecircneros discursivos eacute entender que o tatildeo absolutamente novo eacute tatildeo inconcebiacutevel como o absolutamente
mesmo (BAKHTIN 1992 2003) Nessa perspectiva compreende-se a liacutengua como algo vivo em movimento que
se daacute nas relaccedilotildees sociais na interaccedilatildeo com o outro como criaccedilatildeo da histoacuteria e da cultura humanas que se renovam
e se reconstroem
17
insira e participe da cultura escrita pela principal via a do significado e do sentido (LEONTIEV
1978)
Formar leitores e re-criadores de textos na Educaccedilatildeo Infantil eis o desafio que esta
pesquisa se propotildee a refletir tendo como fundamentaccedilatildeo teoacuterica as contribuiccedilotildees de Vygotsky2 e
dos estudiosos da Teoria Histoacuterico-Cultural de Bakhtin e pesquisadores das concepccedilotildees
bakhtinianas e da Pedagogia Freinet
Essa pesquisa tem origem em minhas inquietaccedilotildees diante desses apontamentos acerca do
ensino da leitura e da escrita e da minha experiecircncia docente Durante dez anos como professora
dos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede particular de ensino e atualmente haacute oito anos
como professora na Educaccedilatildeo Infantil na rede puacuteblica municipal sempre me intrigou o ensino da
leitura e da escrita com ecircnfase na codificaccedilatildeo e decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos apartado da
produccedilatildeo de sentido e da praacutetica cultural histoacuterica e social Esse quadro me instigava a buscar
outros encaminhamentos que pudessem contribuir para a reversatildeo dessa situaccedilatildeo
Ao ingressar no trabalho na Educaccedilatildeo Infantil me deparei com a incumbecircncia de
alfabetizar as crianccedilas para que pudessem ingressar no Ensino Fundamental dominando a leitura
e a escrita para que natildeo encontrassem dificuldades nas aprendizagens nesse segmento e nos
demais Havia uma crenccedila por parte dos pais e dos professores de que quanto mais cedo as
crianccedilas se alfabetizassem melhores condiccedilotildees de sucesso na vida elas teriam e isso era
considerado sinocircnimo de maior competecircncia dos professores que se empenhavam a todo custo
para fazecirc-lo Essas premissas natildeo se coadunavam com o que eu constatava diante da minha
praacutetica porque as crianccedilas natildeo se interessavam de modo geral pelas tarefas que se detinham ao
ensino do ler e do escrever nessas condiccedilotildees
Diante dessa situaccedilatildeo e de outras experiecircncias vividas no magisteacuterio busquei dedicar-me
ao estudo de uma teoria que alicerccedilasse o meu fazer pedagoacutegico Na necessidade de romper com
a dicotomia teoria-praacutetica gradativamente pude ir me apropriando de conhecimentos sobre a
crianccedila como ela aprende em cada idade sobre a leitura sobre a escrita e como a crianccedila se
apropria dessa praacutetica cultural
2 Nas diversas obras do autor russo e naquelas que tecircm seus pressupostos como objeto a grafia de seu nome aparece
de maneira diferenciada Vigotskii Vigotski Vygotsky Vygotski Optei neste trabalho pela grafia Vygotsky
Entretanto para ser fiel agraves indicaccedilotildees presentes nas referecircncias bibliograacuteficas das quais utilizo no caso de citaccedilotildees
diretas ou indiretas manterei a grafia presente nos originais
18
O aprofundamento dessa temaacutetica de forma mais sistemaacutetica principiou-se com a pesquisa
de mestrado3 que se preocupou em estudar como as crianccedilas iniciam o processo de apropriaccedilatildeo
da leitura por meio do gecircnero discursivo histoacuteria em quadrinhos Neste estudo constatei que as
crianccedilas tinham uma experiecircncia de leitura focada na decifraccedilatildeo dos sinais graacuteficos vinculada ao
ensino da leitura a que foram submetidas nos primeiros anos da Educaccedilatildeo Infantil A escolha do
uso do gecircnero discursivo histoacuteria em quadrinhos se deu devido ao fato de a maioria dos sujeitos
da pesquisa desconhecer o gecircnero e demonstrar interesse na ocasiatildeo de um contato inicial com
ele Essa situaccedilatildeo foi modificada quando pensei propor situaccedilotildees reais de leitura que ocorreram
dentro de um contexto dialoacutegico e intencional em que as relaccedilotildees travadas pelas crianccedilas
descartaram a possibilidade de conceber e viver a leitura desde a pequena infacircncia de forma
simulada e teacutecnica Essas constataccedilotildees permitiram perceber que desde a Educaccedilatildeo Infantil
A padronizaccedilatildeo dos comportamentos independentemente da natureza do objeto
ou da finalidade da accedilatildeo praticada constroacutei obstaacuteculos para o aprendiz porque
ele eacute levado a enfrentar todos os objetos e todas as finalidades com as mesmas
ferramentas Ao usar ferramentas inadequadas e colocar em accedilatildeo
comportamentos inadequados em sua relaccedilatildeo com o objeto o aprendiz ndash
independentemente de sua idade e niacutevel de escolaridade ndash seraacute sempre
considerado como quem natildeo sabe ler este ou aquele objeto mas pode ser
considerado como leitor se utilizar adequadamente as ferramentas necessaacuterias
para ler um material especiacutefico Relativiza-se desse modo o conceito de leitor
porque este passa a natildeo ter existecircncia uacutenica e isolada mas vincula-se ao objeto
de sua accedilatildeo (ARENA 2003 p 57)
Com a pesquisa do mestrado foi possiacutevel reconceitualizar o ser leitor na Educaccedilatildeo Infantil
assumindo o conceito de leitura como compreensatildeo produccedilatildeo de sentido como praacutetica cultural
histoacuterica e social (ARENA 2010b) Foi possiacutevel constatar ainda que as crianccedilas natildeo conhecem
diferentes gecircneros discursivos Em geral predomina a leitura dos contos de fadas por natildeo serem
apresentados a elas outros gecircneros de forma mais intencional
Com essas consideraccedilotildees esta pesquisa de doutorado propotildee a ampliaccedilatildeo e
aprofundamento da discussatildeo iniciada no mestrado ao trazer agrave tona a investigaccedilatildeo do processo
de inserccedilatildeo da crianccedila pequena na cultura escrita A hipoacutetese que norteia esse trabalho eacute a de que
3 SILVA Greice Ferreira da Formaccedilatildeo de leitores na Educaccedilatildeo Infantil contribuiccedilotildees das histoacuterias em quadrinhos
2009 237f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Educaccedilatildeo) Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Universidade Estadual Paulista
Mariacutelia 2009
19
as crianccedilas aprendem a liacutengua desde a Educaccedilatildeo Infantil por meio dos gecircneros ndash uma vez que a
liacutengua se manifesta pelos gecircneros ndash quando o professor introduz o ensino dos gecircneros na escola
como instrumento de humanizaccedilatildeo como forma de apropriaccedilatildeo da cultura humana Dessa forma
a relevacircncia desta pesquisa reside no fato de propor uma alternativa de trabalho na Educaccedilatildeo
Infantil que envolva a leitura e a escrita que efetivamente contribua para a formaccedilatildeo leitora e re-
criadora de textos das crianccedilas inserindo-as na cultura escrita
Esta pesquisa apresenta como objetivo geral analisar como ocorre o processo de
apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita das crianccedilas de cinco anos por meio dos gecircneros discursivos no
contexto das teacutecnicas Freinet e como objetivos especiacuteficos 1) Analisar como o ensino dos
gecircneros discursivos ndash carta relatos de vida notiacutecia de jornal ndash interfere na aprendizagem da
leitura e da escrita das crianccedilas de cinco e seis anos 2) Discutir quais relaccedilotildees as crianccedilas de
cinco e seis anos estabelecem com os elementos dos gecircneros discursivos ndash conteuacutedo temaacutetico
estilo e construccedilatildeo composicional ndash e de que forma estas relaccedilotildees atuam no processo de formaccedilatildeo
do leitor e do re-criador de textos 3) Identificar condutas proacuteprias de leitor e de re-criador de
textos (orais e escritos) como parte do processo de apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita 4)
Investigar como o trabalho pedagoacutegico com os diferentes gecircneros discursivos pode contribuir
para a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita pelas crianccedilas de cinco e seis anos
Para tanto dediquei-me ao estudo dos gecircneros discursivos na perspectiva bakhtiniana para
poder planejar as situaccedilotildees de leitura e de re-criaccedilatildeo de textos Fiz um estudo sobre as
especificidades de cada um dos gecircneros discursivos a ser abordado no trabalho pedagoacutegico ndash
carta relatos de vida notiacutecia de jornal ndash aprofundando os conhecimentos que caracterizam cada
gecircnero Ao tratar sobre os gecircneros discursivos na escola desde a Educaccedilatildeo Infantil considero que
Natildeo daacute para higienizar essa perspectiva com o trabalho com a linguagem Natildeo
daacute para deixar a vida de lado Se isso acontecer perdemos a possibilidade de
pensar em ldquogecircneros do discursordquo porque natildeo teremos mais a linguagem
funcionando como ldquocorreias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a
histoacuteria da linguagemrdquo (BAKHTIN 2003 p 268) Natildeo eacute porque estamos na
escola que vamos inventar um trabalho com a linguagem que dispense natildeo
refletir ldquode modo mais imediato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que
transcorrem na vida socialrdquo (idem p268) A escola das nuvens lugar de
formaccedilatildeo de um natildeo-lugar tem que ser destruiacuteda e ceder lugar a uma escola
onde cabe a vida (GRUPO DE ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO DISCURSO
2010 p47)
20
De acordo com estas afirmaccedilotildees os autores ao partilharem as ideias de Bakhtin
esclarecem
E a vida estaacute sempre em movimento se instabiliza pode ser olhada de acircngulos
diferentes se renova constantemente apresenta sentidos atualizados Assim
tambeacutem a linguagem vive esse jogo de ser a mesma e ser diferente ao mesmo
tempo ela joga com as forccedilas centriacutefugas e com as forccedilas centriacutepetas vida e
liacutengua se constituem nos acontecimentos (GRUPO DE ESTUDOS DOS
GEcircNEROS DO DISCURSO 2010 p47)
Por concordar com os pressupostos apresentados eacute que assumo neste trabalho de pesquisa
o conceito de linguagem de leitura de escrita de gecircnero na perspectiva bakhtiniana Para Rojo
(2005 p 185) na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (ISD) a ldquo[] teoria dos gecircneros
do discurso ndash centra-se sobretudo no estudo das situaccedilotildees de produccedilatildeo dos enunciados ou textos
em seus aspectos soacutecio-histoacutericos [] e [a] teoria dos gecircneros de textos ndash na descriccedilatildeo da
materialidade textualrdquo O quadro do ISD (SHNEUWLY E DOLZ 2004 BRONCKART 1997
1999) propotildee uma teoria textual na qual os textos mobilizam gecircneros em outras palavras essa
teoria aborda gecircneros textuais Bakhtin (2003) revela uma teoria discursiva em que os gecircneros
mobilizam textos e desse modo aborda gecircneros discursivos Sobral (2006 p 119) propotildee uma
diferenciaccedilatildeo para gecircnero do discurso e gecircnero textual o primeiro seriam ldquoformas de inserccedilatildeo do
discurso em lugares soacutecio-histoacutericosrdquo e o segundo ldquoformas especiacuteficas de materializaccedilatildeo dessa
inserccedilatildeo sem que haja uma correlaccedilatildeo necessaacuteria entre um dado tipo de textualizaccedilatildeo e um dado
gecircnerordquo Assim
O gecircnero mobiliza mediante o discurso formas textuais mas natildeo eacute mobilizado
por elas que satildeo apenas seu aspecto material um sine qua non necessaacuterio mas
natildeo suficiente para a compreensatildeo e anaacutelise do texto com os olhos do gecircnero O
discurso eacute o espaccedilo em que satildeo mobilizadas as textualidades de acordo com o
gecircnero a que pertence o discurso (SOBRAL 2009 p 130 grifos do autor)
Dessa maneira os gecircneros discursivos satildeo entendidos como praacuteticas sociais relativamente
estaacuteveis de instauraccedilatildeo de eventos de sentido realizando-se pelos discursos Para Sobral (2006)
o gecircnero textual recobriria aspectos da significaccedilatildeo ou seja aspectos relacionados ao sistema da
liacutengua e de composiccedilatildeo da estrutura textual mas natildeo abrangeria nem aspectos relacionados ao
sentido ligados ao sistema de uso da liacutengua nem da estrutura arquitetocircnica dos textos O
21
conceito de gecircnero de Bakhtin abarca os aspectos textuais discursivos e geneacutericos de maneira
integrada e vincula o texto ao gecircnero (SOBRAL 2010) Texto discurso e gecircnero satildeo conceitos
que estatildeo constitutiva e inseparavelmente ligados na teoria de gecircnero bakhtiniana Pelos motivos
expostos assumo neste trabalho o conceito de gecircnero discursivo Esclareccedilo ainda que na
entrevista com as professoras utilizo o termo ldquotipos de textosrdquo porque em entrevista piloto as
professoras desconheciam o termo gecircneros do discurso e este termo foi gerador de duacutevidas
Devido a esse fato e na tentativa de aproximar ao conceito de gecircnero discursivo optei adotar
somente nas entrevistas essa nomenclatura
A pedagogia Freinet e suas teacutecnicas tambeacutem foram alvo de estudos ainda mais
consistentes para que aliados agrave teoria Histoacuterico-Cultural e a teoria bakhtiniana pudessem
contribuir para a efetivaccedilatildeo de uma praacutetica pedagoacutegica promotora de aprendizagens
Nesta pesquisa as teacutecnicas Freinet satildeo compreendidas como um caminho para praacuteticas que
possibilitem a apropriaccedilatildeo da cultura pela crianccedila por seu uso social ou seja para aquilo para o
qual cada objeto da cultura foi criado e eacute utilizado socialmente Desta maneira satildeo vistas como
uma proposta alternativa para o trabalho na Educaccedilatildeo Infantil que natildeo antecipa o processo de
escolarizaccedilatildeo nem entrega ao espontaneiacutesmo o desenvolvimento das crianccedilas
O uso das teacutecnicas Freinet permite que a crianccedila vivencie o papel das praacuteticas sociais e
participe da vida na escola porque a apropriaccedilatildeo da cultura se estabelece com o desenvolvimento
de cada teacutecnica e as propostas tecircm maior possibilidade de se tornarem atividade (LEONTIEV
1988) por envolverem a crianccedila nesse fazer porque os motivos que a levam a agir coincidem
com o resultado previsto para sua accedilatildeo e por essa razatildeo pode produzir sentido positivo aquilo
que realiza Com as teacutecnicas Freinet natildeo haacute necessidade de se criar situaccedilotildees para ensinar a
leitura ou a escrita porque elas satildeo utilizadas para o registro de vivecircncias das crianccedilas o que
garante sua apropriaccedilatildeo pelo proacuteprio uso que a sociedade faz desses objetos culturais
Desse modo este trabalho de pesquisa eacute organizado em cinco capiacutetulos No capiacutetulo I ldquoA
pesquisa e a crianccedila caminhos da metodologiardquo apresento os pressupostos teoacuterico-metodoloacutegicos
desta investigaccedilatildeo ao tratar da pesquisa e sua concretude a aparecircncia e a essecircncia fenomecircnicas e
a superaccedilatildeo da psedoconcreticidade no processo investigativo Busco discutir a pesquisa com
crianccedilas e suas implicaccedilotildees na educaccedilatildeo e apresento a metodologia adotada ndash a pesquisa-accedilatildeo ndash e
a metodologia do trabalho docente para o ensino dos gecircneros discursivos Ao tratar da
metodologia da investigaccedilatildeo adotada descrevo tambeacutem a metodologia de coleta e de anaacutelise de
22
dados Apresento ainda a caracterizaccedilatildeo dos sujeitos participantes da referida pesquisa no
momento histoacuterico e cultural em que se deu a coleta dos dados
No capiacutetulo II ldquoConceitos de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita na Educaccedilatildeo
Infantil dos professores e das crianccedilasrdquo apresento o aporte teoacuterico dos conceitos basilares e
fundamentais para este trabalho concernentes ao ensino e agrave aprendizagem desenvolvimento
humano cultura escrita atividade gecircnero do discurso dialogismo Realizo uma anaacutelise dos
dados coletados nas entrevistas os conceitos de leitura e de escrita de gecircneros discursivos de
ensino e de aprendizagem das professoras participantes da pesquisa e como eles influenciam os
conceitos ainda em elaboraccedilatildeo pelas crianccedilas Essa anaacutelise eacute ancorada na concepccedilatildeo de
linguagem de liacutengua e de gecircnero discursivo de Bakhtin e na concepccedilatildeo de crianccedila de ensino e
de aprendizagem de leitura e de escrita de Vygotsky e de outros estudiosos da Teoria Histoacuterico-
Cultural
No capiacutetulo III ldquoA leitura e a escrita na escola de Educaccedilatildeo Infantil o que pensam as
crianccedilas pequenasrdquo busco analisar e compreender por meio dos discursos das crianccedilas os
conceitos que elas elaboram sobre a leitura a escrita e os gecircneros discursivos e de que forma os
conceitos das professoras que direcionam as suas praacuteticas interferem nos conceitos e nas
aprendizagens dos sujeitos da pesquisa
No capiacutetulo IV ldquoO ensino da leitura e os gecircneros discursivosrdquo discuto o que eacute ser leitor na
Educaccedilatildeo Infantil como esse trabalho pode ocorrer dentro de um processo dialoacutegico e o conceito
de leitura que norteia essa discussatildeo Em seguida apresento situaccedilotildees de leitura com as crianccedilas
em trecircs momentos o primeiro no trabalho pedagoacutegico com o gecircnero discursivo carta por meio
da correspondecircncia interescolar o segundo com o gecircnero discursivo relato de vida por meio do
livro da vida e terceiro com notiacutecia por meio do jornal escolar
O capiacutetulo V ldquoO ensino da linguagem escrita e os gecircneros discursivosrdquo destina-se agrave
reflexatildeo sobre o que eacute ser re-criador de textos na Educaccedilatildeo Infantil Para tanto trago o conceito
de texto e discuto a diferenccedila entre criar textos e fazer redaccedilotildees Realizo ainda neste capiacutetulo a
apresentaccedilatildeo e anaacutelise de situaccedilotildees de re-criaccedilatildeo de textos em trecircs momentos no trabalho
pedagoacutegico como foi proposto no capiacutetulo IV o primeiro no trabalho pedagoacutegico com o gecircnero
discursivo carta por meio da correspondecircncia interescolar o segundo com o gecircnero discursivo
relato de vida por meio do livro da vida e terceiro com notiacutecia por meio do jornal escolar
23
Devo esclarecer que nos capiacutetulos IV e V nas situaccedilotildees de leitura e de escrita dos gecircneros
discursivos que explicitam o trabalho pedagoacutegico denotando a minha accedilatildeo direta com as crianccedilas
num processo interativo os diaacutelogos apresentados seratildeo escritos em primeira pessoa por ser eu
mesma a professora e a pesquisadora
Ao finalizar a apresentaccedilatildeo dos aportes teoacutericos articulados com a anaacutelise e a discussatildeo
dos dados resultantes da pesquisa elaboro a conclusatildeo desta tese de doutorado com a intenccedilatildeo de
explicar o percurso de sua elaboraccedilatildeo e de apontar alguns caminhos que possam contribuir
possivelmente com o processo de formaccedilatildeo do leitor e do re-criador de textos na Educaccedilatildeo
Infantil a sua inserccedilatildeo e participaccedilatildeo ativa na cultura escrita
24
CAPIacuteTULO I
A PESQUISA E A CRIANCcedilA CAMINHOS DA METODOLOGIA
A destruiccedilatildeo da psedoconcreticidade eacute o processo de criaccedilatildeo da realidade
concreta e a visatildeo da realidade da sua concreticidade (KOSIK 1976 p 19)
A ciecircncia se dedica a desvendar o mundo que nos cerca na tentativa de tornar expliacutecito o
conteuacutedo dos fenocircmenos e compreender a realidade ldquoO homem cria em suas relaccedilotildees um
mundo cujos fenocircmenos compotildeem e constituem a esfera do cotidiano do imediato do evidente e
da aparecircnciardquo (ARENA 2010a) Superar a psedoconcreticidade eacute ultrapassar a aparecircncia em
busca do entendimento da realidade concreta da criaccedilatildeo dessa realidade concreta
Baseado nessas afirmaccedilotildees este capiacutetulo se dedica em apresentar os pressupostos teoacuterico-
metodoloacutegicos desta investigaccedilatildeo ao tratar da pesquisa e sua concretude a aparecircncia e a essecircncia
fenomecircnicas e a superaccedilatildeo da psedoconcreticidade no processo investigativo Nesse contexto
busca discutir a pesquisa com crianccedilas e suas implicaccedilotildees na educaccedilatildeo e apresenta a metodologia
adotada ndash a pesquisa-accedilatildeo ndash e a metodologia do trabalho docente para o ensino dos gecircneros
discursivos Em seguida caracteriza os sujeitos participantes da referida pesquisa no momento
histoacuterico e cultural em que se deu a coleta dos dados
11 A concretude da pesquisa
Este trabalho parte do pressuposto de que a crianccedila desde a Educaccedilatildeo Infantil aprende a
liacutengua por meio dos gecircneros discursivos ndash uma vez que a liacutengua se manifesta pelos gecircneros ndash
quando o professor introduz o ensino dos gecircneros na escola como instrumento de humanizaccedilatildeo
como forma de apropriaccedilatildeo da cultura humana
Essa investigaccedilatildeo objetiva compreender a pesquisa como um espaccedilo de constituiccedilatildeo do
sujeito como uma atividade da praacutexis humana (SILVA 2009) Entender a pesquisa como
elemento essencial na formaccedilatildeo do sujeito possibilita o desenvolvimento de aspectos
relacionados agrave construccedilatildeo do conhecimento e da emancipaccedilatildeo do homem (SILVA 2009)
25
Compreender a formaccedilatildeo do sujeito eacute compreender o processo de tornar-se humano Para
Vygotsky ndash psicoacutelogo russo e principal representante da Teoria Histoacuterico-Cultural ndash o homem
natildeo nasce humano mas aprende a ser humano agrave medida que atua sobre a realidade e se apropria
da cultura humana e a transforma Entende-se por cultura humana o conjunto da produccedilatildeo do
homem e da natureza que existe fora desse homem objetivamente independente dele Eacute por meio
da relaccedilatildeo com os objetos socialmente criados e com os outros homens presentes e passados ndash e
que deixam a marca de sua atividade nos objetos da cultura historicamente produzidos ndash que o
homem se humaniza (MELLO 1999) O homem se diferencia dos outros animais natildeo apenas
pela sua histoacuteria peculiar no processo de evoluccedilatildeo bioloacutegica mas principalmente porque ao
mesmo tempo em que produz a sua proacutepria histoacuteria eacute produzido por ela ldquoSer homem eacute decorrente
de todo um processo de formaccedilatildeo ocorrido num ambiente denominado culturardquo (SILVA 2009 p
158) O processo de hominizaccedilatildeo eacute resultado de uma passagem agrave vida organizada na base do
trabalho atividade criadora produtiva fundamental que faz do ser humano um ser diferente dos
animais ldquoO homem eacute o uacutenico animal que age intencionalmente em busca de satisfazer suas
necessidades e de transformaccedilatildeordquo (SILVA 2009) Ao fazer isso com a accedilatildeo transformadora
consciente se daacute a criaccedilatildeo de si mesmo uma vez que ao modificar a natureza modifica a si de tal
modo que se torna humano no processo dialeacutetico homem-natureza (SILVA 2009)
Leontiev (1978) fundamentado nos estudos de Marx e Engels afirma que
O desenvolvimento do homem da sua vida exige evidentemente uma interacccedilatildeo
constante do homem como meio natural uma troca de substacircncias entre eles
Esta interacccedilatildeo executa o processo de adaptaccedilatildeo do homem agrave natureza Todavia
o homem adaptar-se agrave natureza circundante natildeo eacute senatildeo produzir os meios da
sua proacuteprias existecircncia Graccedilas a isto o homem diferentemente do animal
mediatiza regula e controla este processo pela sua actividade ele proacuteprio
desempenha em face da natureza o papel de uma potecircncia natural
(LEONTIEV 1978 p 173)
Sobre esses pressupostos Marx e Engels (2006 p 44 ndash 45 grifos dos autores) esclarecem
que
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciecircncia pela religiatildeo ou por
tudo o que se queira No entanto eles proacuteprios comeccedilam a se distinguir dos
animais logo que comeccedilam a produzir seus meios de existecircncia e esse salto eacute
condicionado por sua constituiccedilatildeo corporal Ao produzirem seus meios de
existecircncia os homens produzem indiretamente sua proacutepria vida material
26
E ainda
A forma pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende sobretudo
da natureza dos meios de vida jaacute encontrados e que eles precisam reproduzir
Natildeo se deve poreacutem considerar tal modo de produccedilatildeo de um uacutenico ponto de
vista ou seja a reproduccedilatildeo da existecircncia fiacutesica dos indiviacuteduos Trata-se muito
mais de uma forma determinada de atividade dos indiviacuteduos de uma forma
determinada de manifestar sua vida um modo de vida determinado Da mesma
maneira como os indiviacuteduos manifestam sua vida assim satildeo eles O que eles satildeo
coincide portanto com sua produccedilatildeo tanto com o que produzem como com o
modo como produzem O que os indiviacuteduos satildeo por conseguinte depende das
condiccedilotildees materiais de sua produccedilatildeo
Ao considerar essas afirmaccedilotildees compreende-se que a primeira atitude histoacuterica dos
homens em relaccedilatildeo aos animais natildeo eacute necessariamente o fato de pensar mas o de produzir seus
meios de sobrevivecircncia e ao produzir seus meios de existecircncia coletivamente desenvolve
linguagem pensamento sentimento consciecircncia Essa eacute uma concepccedilatildeo materialista da
existecircncia humana e esta concepccedilatildeo ndash de como o homem produz a sua existecircncia material ndash
compreende natildeo o indiviacuteduo isolado mas em sociedade onde a sua produccedilatildeo individual eacute
determinada socialmente Desse modo ldquonatildeo eacute o indiviacuteduo natural como produto da natureza
mas o indiviacuteduo social como um resultado histoacuterico natildeo o indiviacuteduo ideal mas o real como uma
particularidade histoacutericardquo (BITENCOURT GAMA sd p 4) Essa materialidade histoacuterica diz
respeito agrave forma de organizaccedilatildeo dos homens em sociedade atraveacutes da histoacuteria ou seja refere-se
agraves relaccedilotildees sociais construiacutedas pela humanidade durante vaacuterios seacuteculos de sua existecircncia Para o
pensamento marxista esta materialidade histoacuterica pode ser compreendida a partir das anaacutelises da
categoria considerada central o trabalho
Aliados aos conceitos expostos Vygostki (1995) e Leontiev (1978) explicitam que a
atividade humana eacute uma mediadora da relaccedilatildeo entre o homem e a natureza e por meio dessa
relaccedilatildeo o homem cria novas atividades em funccedilatildeo de novas necessidades que satildeo criadas Os
conhecimentos adquiridos durante o desenvolvimento das faculdades e propriedades humanas
acumularam-se e transmitiram-se de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e essas aquisiccedilotildees devem
necessariamente ser fixadas (LEONTIEV 1978) Esta nova forma de acumulaccedilatildeo da experiecircncia
filogecircnica ndash entendendo-se por desenvolvimento filogeneacutetico a evoluccedilatildeo da espeacutecie humana no
decorrer da histoacuteria dos homens ndash pode aparecer no homem na medida em que a atividade
27
especificamente humana tem caraacuteter produtivo Essa atividade eacute o trabalho (LEONTIEV 1978)
O trabalho realizando o processo de produccedilatildeo sob duas formas material e intelectual imprime-
se no seu produto
Pode-se dizer que as aptidotildees e outros caracteres especificamente humanos natildeo se
transmitem pela hereditariedade bioloacutegica mas adquirem-se no decorrer da vida em outras
palavras no desenvolvimento ontogeneacutetico que caracteriza o desenvolvimento do indiviacuteduo a
partir do seu nascimento por um processo de apropriaccedilatildeo da cultura criada pelas geraccedilotildees
precedentes Para se apropriar dos objetos ou dos fenocircmenos que satildeo produtos do
desenvolvimento histoacuterico eacute necessaacuterio desenvolver em relaccedilatildeo a eles uma atividade que
reproduza pela sua forma os traccedilos essenciais da atividade cristalizada acumulada no objeto
(LEONTIEV 1978) caracterizando o processo de apropriaccedilatildeo como aquele que cria novas
aptidotildees novas funccedilotildees psiacutequicas
De acordo com o exposto a pesquisa pode ser entendida como uma atividade humana
uma atividade criadora em que o homem produz conhecimento ao mesmo tempo em que eacute
produzido por ele A produccedilatildeo de conhecimento eacute resultado da relaccedilatildeo sujeito e objeto e ambos
se formam neste processo na medida em que se encontram com o objetivo de desvelar o real
Assim sendo a tentativa de explicar o real eacute a busca pela superaccedilatildeo da pseudoconcreticidade
(KOSIK 1976) Essa expressatildeo designa
O complexo dos fenocircmenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera
comum da vida humana que com a sua regularidade imediatismo e evidecircncia
penetram na consciecircncia dos indiviacuteduos agentes assumindo um aspecto
independente e natural (KOSIK 1976 p 11)
Para Kosik (1976 p 9) ldquoa dialeacutetica trata da ldquocoisa em sirdquo Mas a ldquocoisa em sirdquo natildeo se
manifesta imediatamente ao homemrdquo O homem cria o mundo das relaccedilotildees cotidianas que
compotildeem a esfera do aparente do imediato (ARENA 2010a) Esse pressuposto remete a uma
abordagem do real que natildeo o atinge plenamente que se esgota na aparecircncia entendendo por
ldquorealrdquo a forma pela qual o mundo se apresenta Nesse sentido a realidade se reduz agraves suas formas
fenomecircnicas agrave aparecircncia das coisas
O mundo real (ou a totalidade concreta) encontra-se oculto pelo mundo da
pseudoconcreticidade precisando ser descortinado para que se possa ter uma aproximaccedilatildeo com o
real Essas aproximaccedilotildees satildeo sucessivas e permanentes como um ir e vir em relaccedilatildeo ao fenocircmeno
28
analisado ou seja eacute necessaacuterio realizar um detoacuteur (KOSIK 1976 p9) Quanto a essa questatildeo
Kosik afirma que
A atitude primordial e imediata do homem em face da realidade natildeo eacute a de um
sujeito cognoscente de uma mente pensante que examina a realidade
especulativamente poreacutem a de um ser que age objetiva e praticamente de um
indiviacuteduo histoacuterico que exerce a sua atividade praacutetica no trato com a natureza e
com os outros homens tendo em vista a consecuccedilatildeo dos proacuteprios fins e
interesses dentro de um determinado conjunto de relaccedilotildees sociais Portanto a
realidade natildeo se apresenta aos homens agrave primeira vista sob o aspecto de um
objeto que cumpre intuir analisar e compreender teoricamente cujo poacutelo oposto
e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente que existe fora
do mundo e apartado do mundo apresenta-se como o campo em que se exercita
a sua atividade praacutetico-sensiacutevel sobre cujo fundamento surgiraacute a imediata
intuiccedilatildeo praacutetica da realidade (KOSIK 1976 p 10)
Para Kosik (1976) a manifestaccedilatildeo do fenocircmeno ndash pseudo-essecircncia ndash necessita ser
ultrapassada para que se chegue agrave verdadeira essecircncia que pode ser alcanccedilada pelo movimento
dialeacutetico Isto natildeo se manifesta com um conceito de verdade plenamente alcanccedilaacutevel mas com
sucessivas aproximaccedilotildees em sua busca Para o autor (1976 p 19) ldquoa destruiccedilatildeo da
pseudoconcreticidade significa que a verdade natildeo eacute nem inatingiacutevel nem alcanccedilaacutevel de uma vez
para sempre mas que ela se faz logo se desenvolve e se realizardquo Assim pode-se dizer que a
maior aproximaccedilatildeo com a verdade depende do conhecimento sobre esse fenocircmeno que estaacute
relacionado agrave construccedilatildeo histoacuterica do sujeito influenciada por muacuteltiplas relaccedilotildees sociais e com a
proacutepria construccedilatildeo do conhecimento
Kosik (1976) afirma que eacute necessaacuterio utilizar-se da consciecircncia de maneira dialeacutetica uma
vez que ldquoconsciecircncia eacute reflexo e ao mesmo tempo projeccedilatildeo registra e constroacutei toma nota e
planeja reflete e antecipa eacute ao mesmo tempo receptiva e ativardquo (1976 p 26) Tem como
pressuposto uma visatildeo dialeacutetica de mundo pelas pessoas considerada ampliada A partir do
conhecimento do velho eacute possiacutevel alcanccedilar tal visatildeo e atingir um conhecimento novo em que a
histoacuteria eacute o ponto de partida para atingir este conhecimento e desse modo se alcanccedilar a
totalidade concreta Esta totalidade concreta pode ser atingida ao obter-se o conhecimento da
concreticidade do real sempre acrescentando fatos novos dialeticamente Esta realidade eacute um
todo dialeacutetico que natildeo compreende a realidade total mas uma teoria da realidade em que o
conhecimento humano eacute permanentemente acumulado e processado no qual a concretizaccedilatildeo se
29
realiza das unidades para o todo e do todo para as unidades Nesse movimento todo princiacutepio eacute
abstrato e relativo Com relaccedilatildeo a isso vale ressaltar que
O meacutetodo da ascensatildeo do abstrato ao concreto eacute o meacutetodo do pensamento em
outras palavras eacute um movimento que atua nos conceitos no elemento da
abstraccedilatildeo A ascensatildeo do abstrato ao concreto natildeo eacute uma passagem de um plano
(sensiacutevel) para outro plano (racional) eacute um movimento no pensamento e do
pensamento Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto
tem de mover-se no seu proacuteprio elemento isto eacute no plano abstrato que eacute
negaccedilatildeo da imediatidade da evidecircncia e da concreticidade sensiacutevel A ascensatildeo
do abstrato ao concreto eacute um movimento para o qual todo iniacutecio eacute abstrato e cuja
dialeacutetica consiste na superaccedilatildeo dessa abstratividade O progresso da
abstratividade agrave concreticidade eacute por conseguinte em geral da parte para o todo
e do todo para a parte do fenocircmeno para a essecircncia e da essecircncia para o
fenocircmeno da totalidade para a contradiccedilatildeo e da contradiccedilatildeo para a totalidade do
objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto (KOSIK 1976 p 30)
Isto posto entende-se que para conhecer uma realidade desvendar sua essecircncia perceber
suas leis de movimento e funcionamento o pesquisador faz uso da sua capacidade de abstraccedilatildeo e
este recurso agrave abstraccedilatildeo eacute que torna possiacutevel ao pensamento ao pensamento humano decompor o
todo uma vez que o real tal como se apresenta num primeiro momento tem um aspecto uno
direto Faz-se necessaacuterio decompocirc-lo identificar suas unidades fundamentais apontar o que eacute
secundaacuterio para que num segundo momento compreendida a sua coerecircncia interna ele seja
novamente reconstituiacutedo em outros moldes em outro todo Como afirma Kosik (1976 p 14) []
ldquosem decomposiccedilatildeo natildeo haacute conhecimentordquo e explicita ainda que [] ldquoo conceito e a abstraccedilatildeo
em uma concepccedilatildeo dialeacutetica tem o significado de meacutetodo que decompotildee o todo para poder
reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa e portanto a coisardquo Em outras palavras pode-se
afirmar que a mente humana precisa fazer uma anaacutelise do objeto e separaacute-lo em partes porque o
real natildeo se daacute a conhecer de forma direta em todo o seu ser Por esse motivo haacute a necessidade de
se recorrer agrave abstraccedilatildeo como um dos movimentos essenciais agrave formulaccedilatildeo do conceito mas que
natildeo eacute este o momento final do conhecimento
Para Kosik (1976) o processo de conhecimento parte do concreto imediato da aparecircncia
das coisas passa pela abstraccedilatildeo (analisando e seccionando o todo) e chega novamente ao
concreto agora compreendido e recomposto em sua real ordem interna Como Kosik explicita
Da vital caoacutetica imediata representaccedilatildeo do todo o pensamento chega aos
conceitos agraves abstratas determinaccedilotildees conceituais mediante cuja formaccedilatildeo se
30
opera o retorno ao ponto de partida desta vez poreacutem natildeo mais como ao vivo
mas incompreendido todo da percepccedilatildeo imediata mas ao conceito do todo
ricamente articulado e compreendido (KOSIK 1976 p 29)
Isto posto Pires (1997) revela que para se compreender o fenocircmeno haacute a necessidade
loacutegica de descobrir nos fenocircmenos a categoria mais simples (o empiacuterico) para chegar agrave categoria
siacutentese de muacuteltiplas determinaccedilotildees (concreto pensado) Quanto mais abstraccedilotildees (teoria) se puder
pensar sobre a categoria simples empiacuterica mais proacuteximo se estaacute da compreensatildeo da realidade
O sujeito nessa perspectiva eacute um ser social que se torna produtivo por meio do
desenvolvimento de suas atividades pelas quais conhece o mundo e se relaciona dialeticamente
com ele Por tal razatildeo eacute necessaacuterio conhecer a realidade social do sujeito o contexto em que estaacute
inserido e em que se datildeo as relaccedilotildees que estabelece para uma maior compreensatildeo do todo Ao
conhecer a realidade do sujeito historicamente construiacutedo aproxima-se da compreensatildeo do todo e
afasta-se da pseudoconcreticidade ateacute a sua superaccedilatildeo sai-se da aparecircncia do fenocircmeno para se
chegar a sua verdadeira objetividade (KOSIK 1976)
Em consonacircncia com essa afirmaccedilatildeo Silva (2009) esclarece que o problema do
conhecimento estaacute representado no marxismo na relaccedilatildeo dialeacutetica sujeito e objeto ldquoO princiacutepio
da interaccedilatildeo existente entre os eixos da relaccedilatildeo cognitiva eacute produzido no enquadramento da
praacutetica social do sujeito que captura e dialoga com o objeto na e pela sua atividaderdquo (SILVA
2009 p 13) e acrescenta que o conhecimento diz respeito primeiro agrave historicidade do sujeito e do
objeto Nesse sentido a dialeacutetica surge como uma tentativa de superaccedilatildeo da dicotomia da
separaccedilatildeo entre o sujeito e o objeto
Com base nesses pressupostos pode-se dizer que o que se tenta fazer no percurso da
pesquisa eacute explicar o concreto e para isto eacute necessaacuterio transpor pela abstraccedilatildeo o concreto-dado
para o pensamento produzindo assim o concreto-pensado que eacute na realidade o concreto dado
transposto para a mente humana Feita essa transposiccedilatildeo eacute preciso voltar novamente do concreto-
pensado para o concreto-dado uma vez que ambos devem estar em iacutentima relaccedilatildeo pois do
contraacuterio a pesquisa natildeo teria sentido na medida em que natildeo conseguiria explicar a realidade
ldquofim uacuteltimo de qualquer pesquisa compromissada e livrerdquo (SILVA 2009 p 13)
A pesquisa encontra no cotidiano na praacutetica o seu iniacutecio seu ponto de partida No
entanto eacute necessaacuterio que por meio desse ponto de partida desenvolvam-se determinaccedilotildees e
mediaccedilotildees para que possam ser revelados os nexos constitutivos do objeto de estudo para que os
31
sujeitos possam por meio da unidade pensamento-reflexatildeo transformar a realidade e a si
mesmos A dialeacutetica pressupotildee que as interpretaccedilotildees feitas relativas ao mundo devem ser
encaradas como passiacuteveis de modificaccedilotildees e reconstruccedilotildees porque a interpretaccedilatildeo praacutetica de
transformar o mundo em que vivemos desencadeia ao mesmo tempo um processo de
transformaccedilatildeo social em um mundo de constantes e permanentes transformaccedilotildees Este processo eacute
o da autocriacutetica e da criacutetica agrave realidade social
Neste processo investigativo ora apresentado se busca compreender o fenocircmeno
educativo ao descobrir suas mais simples manifestaccedilotildees para que ao analisaacute-las e elaborar
abstraccedilotildees sobre elas possa se aproximar cada vez mais da compreensatildeo do fenocircmeno
observado
Quanto agrave dialeacutetica Kosik (1976 p 33) afirma que eacute ldquoo meacutetodo da reproduccedilatildeo espiritual e
intelectual da realidade eacute o meacutetodo do desenvolvimento e da explicitaccedilatildeo dos fenocircmenos
culturais partindo da atividade praacutetica objetiva do homem histoacutericordquo Nesta vertente existe uma
unicidade entre teoria e praacutetica em outras palavras entre o conhecimento e a accedilatildeo ldquoEacute na unidade
articuladora entre a ideia e a accedilatildeo ou entre a teoria e a praacutetica que se efetiva a historicidade
humana concretizada no movimento de constituiccedilatildeo da realidade socialrdquo (ABRANTES
MARTINS 2007 p 315) Assim
A construccedilatildeo praacutexica do conhecimento nos remete portanto agrave realidade
histoacuterica a se conhecer visto que os indiviacuteduos se desenvolvem em relaccedilotildees de
apropriaccedilatildeo da histoacuteria contida nos objetos produzidos pelo homem e nas
relaccedilotildees estabelecidas entre eles na base de tais produccedilotildees Mas para uma efetiva
compreensatildeo da dimensatildeo praacutexica do homem outro preceito deve ser levado em
conta qual seja a unidade inicial existente entre sujeito e objeto do
conhecimento (ABRANTES MARTINS 2007 p 315)
Kosik (1976 p 30) esclarece que ldquoo processo do abstrato ao concreto como meacutetodo
materialista da realidade eacute a dialeacutetica da totalidade concreta na qual se reproduz idealmente a
realidade em todos os seus planos e dimensotildeesrdquo Por essa razatildeo para o pensamento dialeacutetico haacute
duas formas e dois graus de conhecimento da realidade e por conseguinte duas qualidades da
praacutexis humana (KOSIK 197 p13) Uma delas estaacute relacionada ao fato de que ldquoo conhecimento
da realidade histoacuterica eacute um processo de apropriaccedilatildeo teoacutericardquo eacute criacutetica porque implica interpretar e
avaliar os fatos empiacutericos procurando superar as primeiras impressotildees as representaccedilotildees
fenomecircnicas e chegar ao cerne de suas leis fundamentais Feito pelo pesquisador o trabalho de
32
apropriaccedilatildeo organizaccedilatildeo e exposiccedilatildeo dos fatos o resultado seraacute o conhecimento objetivo desses
fatos o ldquoconcreto-pensadordquo ldquoAssim eacute que do processo dialeacutetico de conhecimento da realidade
que a transforma no plano do conhecimento e no plano histoacuterico-social resulta uma praacutexis criacutetica
revolucionaacuteria da humanidaderdquo (BITENCOURT GAMA sd p 7)
O outro conhecimento eacute o do senso comum dado pela imediaticidade resultado da
atividade praacutetico-sensiacutevel dentro de um determinado conjunto de relaccedilotildees sociais e eacute esse
conjunto dos fenocircmenos marcado pela regularidade imediatismo e evidecircncia que constitui o
mundo da pseudoconcreticidade Com isso
A praacutexis que adveacutem deste eacute a praacutexis fragmentaacuteria dos indiviacuteduos baseada na
divisatildeo do trabalho na divisatildeo da sociedade em classes e na hierarquia de
posiccedilotildees sociais que sobre ela se ergue e neste contexto eacute historicamente
determinada e unilateral eacute a praacutexis fetichizada dos homens (KOSIK 1976 p
14 ndash 15)
Eacute nessa praacutexis fetichizada dos homens que se daacute o mundo da pseudoconcreticidade e
Kosik (1976 p 11) define o mundo da pseudoconcreticidade como ldquoum claro-escuro de verdade
e enganordquo e explicita que seu elemento proacuteprio eacute o duplo sentido ou seja o fenocircmeno indica a
essecircncia mas tambeacutem a esconde Esclarece ainda que embora a essecircncia se manifeste no
fenocircmeno isso acontece ldquosoacute de modo inadequado parcial ou apenas sob certos acircngulos e
aspectosrdquo (KOSIK 1976 p 11)
Eacute na tentativa de superar a pseudoconcreticidade que o processo de pesquisa deve ocorrer
A tentativa de ultrapassar o aparente em busca da essecircncia no esforccedilo de tentar compreender essa
realidade e poder tambeacutem transformaacute-la Dessa forma pode-se dizer que o caminho do
conhecimento humano eacute uma trajetoacuteria construiacuteda na busca da realidade no rompimento da
pseudoconcreticidade que nunca se esgota totalmente Pelo fato do homem atuar no mundo ndash nele
realizar sua praacutexis ndash a realidade que se desvenda ao conhecer humano nunca estaacute pronta e
acabada natildeo existindo independentemente do homem (BREITBACH 1988 p 121) Nas
palavras de Kosik (1976 p 19) ldquo[] o mundo da realidade eacute o mundo da realizaccedilatildeo da verdade eacute
o mundo em que a verdade natildeo eacute dada e predestinada natildeo estaacute pronta e acabada impressa de
forma imutaacutevel na consciecircncia humana eacute o mundo em que a verdade deveacutemrdquo
Nessa perspectiva o item a seguir aborda a pesquisa com crianccedilas e as suas implicaccedilotildees
na educaccedilatildeo e destaca o conceito de crianccedila e de infacircncia nos quais esse trabalho se apoia Isto se
33
justifica por se tratar de uma pesquisa com e sobre as crianccedilas e que traz em seu cerne formas de
se pensar o trabalho pedagoacutegico de formaccedilatildeo leitora e escritora com crianccedilas na Educaccedilatildeo
Infantil
12 A pesquisa com crianccedilas
A crianccedila e a infacircncia tem sido alvo de muitas pesquisas em diferentes aacutereas do
conhecimento (ARIEgraveS 1978 FARIA 2009 LEONTIEV 1988 MELLO 2007 SARMENTO E
PINTO 1997 VYGOTSKI 1995 entre outros) A presente pesquisa elege como tema o
processo de inserccedilatildeo da crianccedila pequena na cultura escrita e o uso dos gecircneros discursivos na
Educaccedilatildeo Infantil uma vez que objetiva pensar em praacuteticas de leitura e de escrita nesse momento
da escolaridade de modo que a crianccedila estabeleccedila relaccedilotildees com o escrito interaja com ele e pense
nos diferentes modos de usar o escrito Objetiva tambeacutem desenvolver praacuteticas de leitura e de
escrita em que as crianccedilas natildeo sendo ainda convencionalmente alfabetizadas pensem sobre a
liacutengua e sobre o seu funcionamento de forma dialoacutegica e dinacircmica
A atitude adotada na pesquisa com as crianccedilas e apresentada neste capiacutetulo eacute a tentativa de
ir aleacutem das aparecircncias do fenocircmeno para aproximar-se da sua essecircncia (KOSIK 1976) dado que
essecircncia e aparecircncia satildeo produzidas pelo mesmo complexo social (MARX 1974)
Assim essa pesquisa se propotildee a pensar as crianccedilas natildeo como sujeitos passivos e
descontextualizados em que somente satildeo percebidas para se estabelecer comparaccedilotildees formando
um conjunto de ldquonegativo que nada nos diz das peculiaridades positivas que diferenciam a
crianccedila do adultordquo (VYGOSTKI 1995 apud MARTINS FILHO 2009 p 82) mas ao contraacuterio
procura entender a crianccedila como sujeito ativo em todo o processo de elaboraccedilatildeo reflexatildeo anaacutelise
e de possiacuteveis transformaccedilotildees Nesse contexto o processo investigativo pretende conhecer as
crianccedilas e suas formas especiacuteficas de se relacionar com o mundo dos instrumentos culturais
objetivos ndash materiais ndash como a leitura a escrita o uso dos objetos humanos ou subjetivos ndash
imateriais ndash como as relaccedilotildees as interaccedilotildees as conceitualizaccedilotildees e os parceiros mais experientes
Isto posto revela uma possibilidade de descartar praacuteticas de pesquisa colonizadoras e
adultocecircntricas em que satildeo evidenciadas as disparidades de poder entre adultos e crianccedilas e se
considera a alteridade da infacircncia e os diferentes aspectos que a distinguem do outro - adulto
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Nessa perspectiva haacute a necessidade de ultrapassar o discurso esmagador legitimado
historicamente pela razatildeo adultocecircntrica e que ateacute recentemente alimentou as ciecircncias humanas
Em outras palavras eacute pensar na possibilidade de ouvir as crianccedilas de percebecirc-las e de reconhececirc-
las como ldquoatores competentes para falar de si proacutepriosrdquo (BARBOSA MARTINS FILHO sd p
4) Desse modo busca-se uma competecircncia cada vez maior no que se refere agrave comunicaccedilatildeo entre
adultos e crianccedilas principalmente no que diz respeito aos procedimentos teoacuterico-metodoloacutegicos
utilizados em pesquisas
Sobre essa questatildeo Barbosa e Martins Filho (sd p 3) esclarecem que ao contextualizar
historicamente as teorias de metodologias de pesquisas com crianccedilas percebe-se que elas nunca
foram consultadas olhadas ouvidas e muito menos consideradas Segundo Qvortrup (1999) as
crianccedilas nunca foram estudadas por seu proacuteprio meacuterito na histoacuteria da humanidade Para a ciecircncia
teria que prevalecer a racionalidade adultocecircntrica a qual descarta de certa forma as
manifestaccedilotildees das crianccedilas Nesse contexto o que seria indicado pelas crianccedilas natildeo teria
cientificidade ldquoSe hoje podemos criticar as metodologias tradicionais de pesquisas comsobre
crianccedilas muito ainda temos que construir e avanccedilar para garantir a cientificidade do
protagonismo infantilrdquo (MARTINS FILHO BARBOSAnsd p 3) Nesse vieacutes eacute preciso
encontrar uma metodologia que ajude o pesquisador a natildeo projetar o seu olhar sobre as crianccedilas e
colher delas somente aquilo que eacute reflexo dos seus proacuteprios preconceitos e representaccedilotildees Aleacutem
disso haacute ainda o fato de que as metodologias tradicionais em ciecircncias humanas e sociais
acabaram por reproduzir os mesmos criteacuterios e princiacutepios a partir dos consagrados pelas ciecircncias
ldquoexatasrdquo (SARMENTO E PINTO 1997 apud MARTINS FILHO BARBOSA sd p 3)
Ao reconhecer a participaccedilatildeo ativa das crianccedilas no processo de pesquisa reconhecem-se
tambeacutem os padrotildees eacuteticos que envolvem essa participaccedilatildeo Em outras palavras promover a
participaccedilatildeo das crianccedilas nos processos que dizem respeito a elas natildeo pressupotildee responsabilizaacute-
las por decisotildees pertinentes a esses processos (SARMENTO E PINTO 1997)
Problematizar a dimensatildeo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita no tempo da
infacircncia da crianccedila pequena requer discutir o conceito de crianccedila e de infacircncia assumidos nesta
pesquisa Isso exige pensar na crianccedila concreta ndash historicamente situada ndash ldquocom sua proacutepria
biografia carregada de significados e sentidos proacuteprios do tempo e do espaccedilo em que vive das
relaccedilotildees que trava das expectativas a que eacute submetidardquo (BISSOLI 2005 p 60 ndash 61)
35
A crianccedila de hoje com suas expectativas necessidades e maneiras de perceber e atuar no
mundo natildeo eacute a mesma crianccedila de geraccedilotildees anteriores As novas geraccedilotildees satildeo constituiacutedas por se
apropriarem do legado deixado pelas geraccedilotildees anteriores Isso significa que as conquistas
humanas historicamente acumuladas satildeo a base sobre a qual as crianccedilas se humanizam As
crianccedilas se apropriam da cultura existente e produz como sujeitos novas manifestaccedilotildees de
humanidade Nessa vertente Mello (2007 p 88) afirma que
Esse conceito ndash de que o ser humano aprende a ser o que eacute como inteligecircncia ou
personalidade e de que a cultura e as relaccedilotildees com os outros seres humanos
constituem a fonte do desenvolvimento da consciecircncia ndash revoluciona a
compreensatildeo do processo de conhecimento que tiacutenhamos ateacute agora Com a
Teoria Histoacuterico-Cultural aprendemos a perceber que cada crianccedila aprende a ser
um humano O que a natureza lhe provecirc no nascimento eacute condiccedilatildeo necessaacuteria
mas natildeo basta para mover seu desenvolvimento Eacute preciso se apropriar da
experiecircncia humana criada e acumulada ao longo da histoacuteria da sociedade
Apenas na relaccedilatildeo social com parceiros mais experientes as novas geraccedilotildees
internalizam e se apropriam das funccedilotildees psiacutequicas tipicamente humanas ndash da
fala do pensamento do controle sobre a proacutepria vontade da imaginaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica da consciecircncia ndash e formam e desenvolvem sua inteligecircncia e
sua personalidade
Nesse enfoque a crianccedila eacute forte competente e capaz de aprender Eacute capaz de estabelecer
relaccedilotildees de interagir de atuar de criar e de recriar de ser sujeito de suas aprendizagens de
internalizar conhecimentos e atribuir sentido a eles por meio das relaccedilotildees sociais de que participa
e do lugar que ocupa nessas relaccedilotildees e no mundo (LEONTIEV 1988) Desse modo a infacircncia eacute
o momento em que a crianccedila entra na cultura humana e se apropria dela
Mas a infacircncia tal como se pensa nos dias atuais eacute uma conquista recente dos uacuteltimos
duzentos anos da histoacuteria (AgraveRIES 1978 MELLO 2007) A ideia de infacircncia natildeo existiu sempre
e da mesma maneira Essa ideia aparece com a sociedade capitalista urbano-industrial na medida
em que modificam a inserccedilatildeo e o papel da crianccedila na comunidade Na sociedade feudal a crianccedila
exercia um papel produtivo direto ndash um papel ldquode adultordquo ndash assim que ultrapassava o periacuteodo de
alta mortalidade Na sociedade burguesa a crianccedila passa a ser algueacutem que precisa ser cuidada
escolarizada e preparada para uma atuaccedilatildeo futura Este conceito de infacircncia eacute determinado
historicamente pela modificaccedilatildeo nas formas de organizaccedilatildeo da sociedade (KRAMER 1982 p
18) A historicidade da infacircncia implica diferenccedilas fundamentais entre as crianccedilas que vivem em
sociedades diversas considerando que satildeo as condiccedilotildees de vida e educaccedilatildeo (LEONTIEV 1978)
36
de cada espaccedilo e tempo os elementos responsaacuteveis pelo decurso do desenvolvimento das
capacidades humanas (MUKHINA 1996) A concepccedilatildeo de infacircncia quer significar que as
crianccedilas ldquohabitam datildeo cor vida e movimento aos processos de sociabilidades e que pela
interaccedilatildeo com a coletividade modificam as rotinas sociaisrdquo Isto implica afirmar que as crianccedilas
natildeo satildeo apenas consumidoras de culturas mas tambeacutem re-produtoras ativas sendo que o ato de
produzir cultura natildeo eacute neutro e nem natural mas eacute criado nas e pelas relaccedilotildees que satildeo
estabelecidas socialmente (MARTINS FILHO 2011)
A crianccedila eacute um sujeito social e por tal razatildeo na pesquisa a relaccedilatildeo entre adulto e crianccedila
natildeo pode ser uma relaccedilatildeo de submissatildeo mas de mediaccedilatildeo interaccedilatildeo e negociaccedilatildeo Para negociar
eacute preciso construir formas de comunicaccedilatildeo e participaccedilatildeo com para e das crianccedilas (MARTINS
FILHO BARBOSA sd p 5)
As pesquisas acabam muitas vezes subestimando e subutilizando as informaccedilotildees captadas
pelas vozes das crianccedilas ou em contraposiccedilatildeo a isso acabam superestimando as crianccedilas o que
de certo modo eacute isolaacute-las do contexto real No que se refere agrave participaccedilatildeo dos adultos e das
crianccedilas nas pesquisas busca-se uma consonacircncia nessa relaccedilatildeo porque se a crianccedila eacute ativa nesse
processo o adulto natildeo seraacute passivo e o contraacuterio tambeacutem ocorre o que ajuda a identificar a
posiccedilatildeo dos sujeitos nas investigaccedilotildees (MARTINS FILHO BARBOSA sd p 6) Essa
consonacircncia na relaccedilatildeo entre adulto e crianccedila no processo de pesquisa permite sair do
autoritarismo ou do espontaneiacutesmo muitas vezes presentes nas relaccedilotildees pedagoacutegicas e nas
pesquisas
Essas proposiccedilotildees se direcionam para a necessidade de se buscar na pesquisa com as
crianccedilas um processo dialoacutegico O ser humano a crianccedila deve entrar em contato com os
fenocircmenos do mundo circundante por meio de outros homens ou seja num processo de
comunicaccedilatildeo com eles Pela sua funccedilatildeo esse processo eacute portanto um processo de educaccedilatildeo e
produccedilatildeo cultural (VYGOTSKI 1995) Ao assumir essa posiccedilatildeo pretende-se romper nesse
trabalho de investigaccedilatildeo com a ideia de infacircncia como objeto de constante regulaccedilatildeo e controle
sendo necessaacuterio por isso conhecer as especificidades dessa etapa da vida Desta forma
perceber as crianccedilas nas relaccedilotildees que elas travam com o professor com o conhecimento e com
elas mesmas eacute o que orientou todo o processo da pesquisa ora apresentada
Pode-se dizer que a crianccedila eacute sujeito social produto e produtora da sua proacutepria histoacuteria
vivida e construiacuteda nas relaccedilotildees com os adultos a sua volta (VYGOTSKI 1995) Nesta
37
investigaccedilatildeo considera-se a crianccedila como um sujeito potencial competente para falar e informar
aos outros sobre si mesma Pretende-se assim estabelecer uma relaccedilatildeo dialoacutegica na tentativa de
compreender a crianccedila e as relaccedilotildees que estabelece com o conhecimento no processo de inserccedilatildeo
na cultura escrita
O conceito de crianccedila sob o olhar da Teoria Histoacuterico-Cultural na qual essa pesquisa se
fundamenta e o estudo e a discussatildeo sobre o processo de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da leitura e
escrita da crianccedila desde a educaccedilatildeo infantil ndash foco desse trabalho ndash natildeo pretende deflagrar uma
ideia de que eacute possiacutevel e desejaacutevel acelerar o desenvolvimento psiacutequico da crianccedila em detrimento
do encurtamento da infacircncia e submetendo-a a uma escolarizaccedilatildeo precoce (ZAPHOROacuteZETS
1987 MELLO 2007) Ao contraacuterio pretende compreender a crianccedila em suas relaccedilotildees com o
mundo respeitando as especificidades do seu desenvolvimento e poder contribuir com outras
formas de se pensar o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita com as crianccedilas na pequena
infacircncia
Envolver as crianccedilas mais diretamente nas pesquisas pode resgataacute-las do silecircncio e da
exclusatildeo e do fato de serem representadas implicitamente como objetos passivos (ALDERSON
apud MICHELLI 2005)
Segundo Sarmento (1997) os estudos da infacircncia mesmo quando se concede agraves crianccedilas
o estatuto de atores sociais tecircm geralmente negligenciado a auscultaccedilatildeo das vozes e
subestimado a capacidade de atribuiccedilatildeo de sentido agraves suas accedilotildees e seus contextos Por essa razatildeo
eacute que se pode afirmar que a participaccedilatildeo das crianccedilas nas pesquisas natildeo se limita aos aspectos
exclusivamente da recolha de suas vozes mas de querer compreender as suas expectativas e
representaccedilotildees de mundo Essa recolha de vozes refere-se aos olhares expressotildees gestos falas
atitudes experiecircncias e opiniotildees das crianccedilas que devem ultrapassar as formas de registros
utilizados na pesquisa tentando compreendecirc-los em sua essecircncia
13 Metodologia de pesquisa a pesquisa ndash accedilatildeo
Para Vygotsky e para Bakhtin noacutes nos tornamos noacutes mesmos por meio das relaccedilotildees que
estabelecemos com o outro Noacutes existimos enquanto tal porque o outro nos completa e nos
orienta Nessa perspectiva Bakhtin (1992) permite pensar que uma situaccedilatildeo de pesquisa eacute sempre
um encontro entre sujeitos um diaacutelogo no qual pesquisador e pesquisado se re-significam Desse
38
modo a pesquisa passa da descriccedilatildeo e compreensatildeo do que o outro apresenta para um encontro
maior que vai aleacutem (FREITAS 2002) O pesquisador eacute aquele que vai ao encontro do outro que
interage com o outro de forma ativa colocando-se em seu lugar para perceber o que ele percebe
mas que volta em seguida ao seu proacuteprio lugar Ao fazer isso teraacute uma real compreensatildeo do
outro promovendo uma resposta agravequilo que foi visto dito e natildeo dito E essa resposta implica
ajudar o outro a avanccedilar a sair do lugar (FREITAS 2002)
Posto isto a pesquisa assume o compromisso de tentar compreender ativamente a
realidade de forma que possibilite transformaccedilotildees em seus participantes Por tal razatildeo a
metodologia adotada na realizaccedilatildeo desta pesquisa eacute caracterizada como uma pesquisa-accedilatildeo A
pesquisa-accedilatildeo eacute um tipo de pesquisa participante engajada que procura unir a pesquisa agrave accedilatildeo ou
praacutetica em outras palavras busca desenvolver o conhecimento e a compreensatildeo como parte da
praacutetica Este tipo de pesquisa surgiu da necessidade de superar a lacuna entre teoria e praacutetica
(ENGELS 2000 p 182)
Nessa perspectiva pode-se definir a pesquisa-accedilatildeo como ldquoum tipo de pesquisa social com
base empiacuterica que eacute concebida e realizada em estreita associaccedilatildeo com uma accedilatildeo ou com uma
resoluccedilatildeo de um problema coletivordquo (THIOLLENT 2003 p14) Para tanto os pesquisadores e
participantes representativos da situaccedilatildeo ou do problema se encontram envolvidos de forma
cooperativa ou participativa A pesquisa-accedilatildeo criacutetica considera a voz do sujeito sua perspectiva
seu sentido mas natildeo meramente para registro e uma interpretaccedilatildeo posterior do pesquisador ldquoA
voz do sujeito faraacute parte da tessitura da metodologia da investigaccedilatildeordquo (FRANCO 2005 p 486)
Desse modo a metodologia natildeo se faz por meio das etapas de um meacutetodo mas se organiza pelas
situaccedilotildees relevantes que emergem no processo Com base nessas afirmaccedilotildees reconhece-se o
caraacuteter formativo dessa modalidade de pesquisa uma vez que o sujeito deve tomar consciecircncia
das transformaccedilotildees que ocorrem em si proacuteprio e no processo Eacute tambeacutem nesse sentido que este
tipo de pesquisa assume o caraacuteter emancipatoacuterio pois mediante a participaccedilatildeo consciente ldquoos
sujeitos da pesquisa passam a ter a oportunidade de se libertar de mitos e preconceitos que
organizam suas defesas agrave mudanccedila e reorganizam a sua autoconcepccedilatildeo de sujeitos histoacutericosrdquo
(FRANCO 2005 p 486)
Os pressupostos epistemoloacutegicos da pesquisa-accedilatildeo caminham na direccedilatildeo de uma
perspectiva dialeacutetica e consideram como fundamentais a priorizaccedilatildeo da dialeacutetica da realidade
social da historicidade dos fenocircmenos da praacutexis das contradiccedilotildees das relaccedilotildees com a
39
totalidade da accedilatildeo dos sujeitos sobre suas circunstacircncias (FRANCO 2005 p 490) Neste caso a
praacutexis deve ser concebida como mediaccedilatildeo baacutesica na construccedilatildeo do conhecimento uma vez que
por meio dela se veicula teoria e praacutetica pensar e agir pesquisar e formar Nestas condiccedilotildees natildeo
haacute como separar sujeito que conhece do objeto a ser conhecido e o conhecimento natildeo se limita agrave
mera descriccedilatildeo mas parte do observaacutevel (aparecircncia) e o ultrapassa na tentativa de compreendecirc-lo
e explicaacute-lo (essecircncia) em busca da destruiccedilatildeo da pseudoconcreticidade (KOSIK 1976) Por esse
motivo a interpretaccedilatildeo dos dados soacute pode ocorrer num contexto determinado e concreto e o saber
produzido eacute necessariamente transformador dos sujeitos e das circunstacircncias (FRANCO 2005 p
490)
Esses pressupostos se coadunam com a concepccedilatildeo de pesquisa apresentada neste trabalho
como um processo de formaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo do sujeito e por tal razatildeo opto pela pesquisa-
accedilatildeo para a realizaccedilatildeo desta pesquisa
A escolha por esse tipo de pesquisa tambeacutem se justifica diante das minhas experiecircncias
como professora na Educaccedilatildeo Infantil e por perceber nesse segmento da educaccedilatildeo praacuteticas que
denotam uma preocupaccedilatildeo com a alfabetizaccedilatildeo precoce das crianccedilas apoiada na codificaccedilatildeo e
decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos Tais praacuteticas descartam a possibilidade de iniciar o processo de
inserccedilatildeo da crianccedila na cultura escrita nessa etapa da vida levando em consideraccedilatildeo as
especificidades do desenvolvimento humano e garantindo vivecircncias que possam contribuir para
que as crianccedilas se tornem leitoras e re-criadoras de textos Outro elemento relevante se daacute pelo
fato de que haacute a predominacircncia de alguns poucos gecircneros discursivos ndash em geral contos
narrativos ndash no trabalho pedagoacutegico com as crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil limitando por vezes as
possibilidades no ensino da liacutengua Este fato pode ser constatado durante a minha pesquisa de
mestrado quando as crianccedilas participantes da pesquisa demonstraram desconhecer alguns
gecircneros discursivos como as histoacuterias em quadrinhos ndash gecircnero discursivo utilizado na realizaccedilatildeo
da pesquisa com o intuito de investigar como ocorre a formaccedilatildeo leitora das crianccedilas na Educaccedilatildeo
Infantil
131 Geraccedilatildeo coleta e anaacutelise dos dados
Neste trabalho que ora apresento realizei atividades proacuteprias da pesquisa-accedilatildeo e como
pesquisadora e sujeito desta pesquisa provoquei o aparecimento de dados por meio de accedilotildees
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planejadas intencionalmente com o objetivo de criar necessidades de leitura e de escrita nas
crianccedilas participantes da pesquisa Para gerar os dados foi realizado um trabalho pedagoacutegico
intencionalmente planejado no contexto das teacutecnicas Freinet as quais abarcam diferentes gecircneros
discursivos Eacute necessaacuterio ressaltar que na pesquisa as teacutecnicas Freinet natildeo foram realizadas
integralmente mas foram adaptadas uma vez que a turma de alunos faz parte de uma estrutura
global maior ndash uma unidade escolar ndash que natildeo apresenta como proposta de trabalho a Pedagogia
Freinet Essa perspectiva de trabalho com as teacutecnicas da Pedagogia Freinet faz parte da minha
praacutetica pedagoacutegica como professora e dos estudos desse autor como pesquisadora da infacircncia e
dos processos de ensino e de aprendizagem da liacutengua Todo o processo de geraccedilatildeo dos dados
relacionados ao trabalho pedagoacutegico com as teacutecnicas Freinet seraacute abordado detalhadamente no
item 14 deste capiacutetulo em que seraacute exposta a metodologia do trabalho docente
Inicialmente para compreender a situaccedilatildeo em que se encontram os sujeitos verifiquei
como o ensino da leitura e da escrita e dos gecircneros discursivos foram abordados com as crianccedilas
participantes desde que ingressaram na unidade escolar de Educaccedilatildeo Infantil As crianccedilas fazem
parte de uma turma de Infantil II que corresponde ao uacuteltimo ano da Educaccedilatildeo Infantil no
municiacutepio de Mariacutelia ndash SP Para tanto tive contato direto com os sujeitos na turma em que
ministrava aulas e fiz as primeiras observaccedilotildees em situaccedilotildees de leitura e de escrita Realizei um
levantamento e estudo da bibliografia referente ao problema da pesquisa ndash estado da arte ndash e
iniciei a etapa da coleta de dados
Para a coleta de dados utilizei a entrevista com as professoras e com as crianccedilas e a
observaccedilatildeo Entrevistei as quatro professoras dessa turma de Infantil II (crianccedilas entre cinco e
seis anos) dos anos anteriores ao ano da realizaccedilatildeo da pesquisa desde quando as ingressaram na
unidade escolar portanto as professoras dessa mesma turma no Berccedilaacuterio (quando os sujeitos
tinham entre 1 ano seis meses a dois anos) Maternal I (quando os sujeitos tinham entre dois e trecircs
anos) Maternal II (quando os sujeitos tinham entre trecircs e quatro anos) e Infantil I (quando os
sujeitos tinham entre quatro e cinco anos) A entrevista com as professoras objetivou verificar
seus conceitos de leitura e escrita seus conceitos sobre a inserccedilatildeo da crianccedila pequena na cultura
escrita e sobre o trabalho com os gecircneros discursivos na Educaccedilatildeo Infantil e tentar perceber
como essas praacuteticas influenciaram a formaccedilatildeo leitora e re-criadora de textos das crianccedilas por
meio dos gecircneros discursivos
41
Prestei as devidas informaccedilotildees agraves professoras participantes quanto aos objetivos da
pesquisa o livre arbiacutetrio para participar ou natildeo ao uso dos dados coletados e o acesso aos
resultados Esse mesmo procedimento de esclarecimento de participaccedilatildeo de consentimento livre e
esclarecido foi feito com pais eou responsaacuteveis dos sujeitos crianccedilas
Duas das professoras foram entrevistadas no periacuteodo contraacuterio ao seu periacuteodo de trabalho
na proacutepria escola para que natildeo houvesse nenhum prejuiacutezo com relaccedilatildeo agraves suas aulas ou
comprometimento quanto ao trabalho com seus alunos E as outras duas professoras foram
entrevistadas numa tarde apoacutes o teacutermino de uma reuniatildeo pedagoacutegica da escola Nesse dia de
reuniatildeo pedagoacutegica realizada em toda rede municipal da cidade de Mariacutelia ndash SP somente a
direccedilatildeo coordenaccedilatildeo professores e funcionaacuterios comparecem agrave unidade escolar natildeo havendo
aula para as crianccedilas e assim as entrevistas se realizaram sem intercorrecircncias em salas de aulas
desocupadas nas ocasiotildees dadas mas houve ruiacutedos de fundo em alguns momentos
Com o objetivo de compreender mais detalhadamente o processo de inserccedilatildeo da crianccedila
pequena na cultura escrita e de compreender como a crianccedila se apropria da leitura e da escrita por
meio dos gecircneros discursivos realizei entrevistas com as crianccedilas em dois momentos do trabalho
pedagoacutegico no iniacutecio da pesquisa no mecircs de maio de 2010 e no final do ano letivo no mecircs de
dezembro de 2010 momento do teacutermino do trabalho pedagoacutegico com as crianccedilas concernente agrave
leitura e escrita dos gecircneros discursivos abordados nesta pesquisa ndash carta relatos de vida por
meio do livro da vida e a notiacutecia de jornal Ao entrevistar as crianccedilas verifiquei quais as ideias e
conceitos sobre leitura e escrita possuiacuteam como lidavam com a leitura e a escrita de que forma a
leitura e a escrita eram usadas em diferentes situaccedilotildees na escola quais os gecircneros discursivos que
conheciam e as informaccedilotildees que tinham sobre eles A decisatildeo de entrevistar as crianccedilas em dois
momentos foi com o objetivo de coletar o maacuteximo de informaccedilotildees e de analisar e avaliar as
variaccedilotildees das respostas em diferentes situaccedilotildees Com esse procedimento buscou-se perceber a
evoluccedilatildeo intelectual das crianccedilas e o ensaio conceitual de leitura e de escrita que apresentaram
em duas situaccedilotildees histoacutericas que denotariam possiacuteveis evoluccedilotildees nos conceitos de leitura e de
escrita
Ao considerar as falas das crianccedilas fundamentais nesse processo de pesquisa propus-me a
ouvi-las e a estabelecer com elas uma relaccedilatildeo dialoacutegica pois ldquotomar o discurso da crianccedila como
uma ldquocoisa em sirdquo independente das condiccedilotildees socioculturais que o determinam eacute objetificaacute-lo
42
como uma ldquocoisardquo eacute destituiacute-lo de sua dimensatildeo dialoacutegica isto eacute de interaccedilatildeo com o outro pela
linguagemrdquo (JOBIM E SOUZA CASTRO 2008 p 77)
Por se tratar de uma pesquisa que pretende colaborar com as aprendizagens das crianccedilas
com as suas apropriaccedilotildees e objetivaccedilotildees da liacutengua materna desde a Educaccedilatildeo Infantil e ainda de
se constituir como um elemento de reelaboraccedilatildeo da minha proacutepria praacutetica eacute que o uso da
entrevista se justifica uma vez que esse instrumento de pesquisa possibilita entrar em contato
com as falas das crianccedilas e com o pensamento infantil A entrevista acontece entre duas ou mais
pessoas no caso o entrevistado e o entrevistador numa situaccedilatildeo de interaccedilatildeo verbal e tem como
objetivo a muacutetua compreensatildeo mas uma compreensatildeo ativa que para Bakhtin (1992) eacute
responsiva pois jaacute conteacutem em si mesma o geacutermen de uma resposta Segundo Bakhtin (1992) o
enunciado eacute a unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva estritamente delimitada pela alternacircncia
dos sujeitos falantes e a compreensatildeo desse enunciado vivo eacute sempre acompanhada de uma
atitude responsiva porque ldquotoda compreensatildeo eacute prenhe de resposta de uma forma ou de outra
forccedilosamente a produz o ouvinte torna-se locutorrdquo (BAKHTIN 1992 p 290) Somente esse tipo
de compreensatildeo ativa eacute que permite a apreensatildeo dos sentidos dos enunciados Todo enunciado se
elabora para ir ao encontro da resposta do ouvinte O que constitui um enunciado eacute o fato dele
dirigir-se para algueacutem e de estar voltado para o seu destinataacuterio ldquoNa situaccedilatildeo de entrevista
compreender ativamente o enunciado de outrem significa orientar-se para o outrordquo (FREITAS
2007 p 35)
Cada um de noacutes ocupa um lugar e deste lugar revelamos o nosso modo de ver o outro e o
mundo eacute o que Bakhtin chama de exotopia em outras palavras ldquoeacute a posiccedilatildeo espaccedilo-temporal
uacutenica que ocupamos em relaccedilatildeo aos outros durante a nossa existecircnciardquo (CASTRO 2001 p 65) o
que faz com que o nosso olhar sobre o outro natildeo coincida com o olhar que ele tem de si mesmo eacute
o excedente de visatildeo (BAKHTIN 1992 p 45)
Esse conceito de exotopia a volta ao seu lugar eacute necessaacuterio ao pesquisador pois se isso
natildeo acontece corre-se o risco de se deter somente no aspecto da identificaccedilatildeo (aparecircncia) Ao
voltar para o seu lugar eacute que o entrevistador tem condiccedilotildees ldquode dar forma e acabamento ao que
ouviu e completaacute-lo com o que eacute transcendente agrave sua consciecircnciardquo (FREITAS 2007 p 35) e
todos esses valores que completam a imagem do outro satildeo extraiacutedos do excedente de sua visatildeo
Deste lugar fora do outro portanto exotoacutepico eacute que o entrevistador pode ir construindo suas
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reacuteplicas que quanto mais numerosas forem indicam uma compreensatildeo mais real e profunda
(BAKHTIN 1992 p 132)
Diante do exposto considera-se a entrevista dentro de uma concepccedilatildeo dialoacutegica pois ela
estabelece uma relaccedilatildeo de sentido entre os enunciados na comunicaccedilatildeo verbal e essa relaccedilatildeo
dialoacutegica eacute marcada por uma relaccedilatildeo de sentido cujos elementos constitutivos soacute podem ser
enunciados completos por traacutes dos quais estaacute um sujeito real ldquoNessa perspectiva a entrevista se
constitui numa relaccedilatildeo entre sujeitos na qual se pesquisa com sujeitos as suas experiecircncias
sociais e culturais compartilhadas com as outras pessoas de seu ambienterdquo (FREITAS 2007 p
36) Desse modo tanto pesquisador como pesquisado se tornam parceiros de uma experiecircncia
dialoacutegica conseguindo se transportarem da linguagem interna de sua percepccedilatildeo para a sua
expressividade externa encontrando-se num processo de muacutetua compreensatildeo No entanto os
sentidos que satildeo criados nessa interlocuccedilatildeo dependem da situaccedilatildeo experenciada dos horizontes
espaciais ocupados pelo pesquisador e pelo entrevistado Expliquei agraves crianccedilas o que eacute uma
entrevista o motivo pelo qual eu iria fazecirc-la e como seria realizada Esclareci que seria gravada
em aacuteudio que poderiam responder da forma como desejassem e que ao final poderiam ouvir a
gravaccedilatildeo das nossas falas
Isto posto sobre a situaccedilatildeo de entrevista pode-se sublinhar que eacute um
momento em que se daacute a construccedilatildeo de uma interlocuccedilatildeo reveladora de vaacuterios
sentidos que emergem da proacutepria situaccedilatildeo especiacutefica de diaacutelogo e que delimitam
uma parte dos aspectos presentes na experiecircncia cotidiana dos interlocutores
com o tema tratado Assim a proacutepria anaacutelise deste material discursivo se
constitui em um modo de interlocuccedilatildeo que longe de buscar interpretaccedilotildees
absolutas a partir dos fragmentos selecionados procura desvelar os sentidos
possiacuteveis surgidos nestes encontros entre adulto e crianccedila e assim ampliar e
diversificar os modos de compreensatildeo de um determinado fenocircmeno cultural
(JOBIM E SOUZA CAMERINI MORAIS 2005 p 141)
Nesta pesquisa fiz a entrevista com 20 crianccedilas com idades entre cinco e seis anos
pertencentes a uma turma de Infantil II da Educaccedilatildeo Infantil que frequentou a escola em periacuteodo
parcial da tarde do ano de 2010 Na primeira realizada no iniacutecio do trabalho pedagoacutegico com os
gecircneros discursivos entrevistei as crianccedilas em uma sala ocupada pela auxiliar de direccedilatildeo da
escola que natildeo fazia uso naquela ocasiatildeo com ruiacutedos da parte externa desse ambiente A
segunda realizada no final do processo ocorreu em dois ambientes distintos devido agrave
indisponibilidade de local para esse fim Tal indisponibilidade ocorre devido ao fato de as
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crianccedilas frequentarem a escola nessa ocasiatildeo no periacuteodo da manhatilde durante trecircs dos cinco dias
da semana para participarem dos ensaios da formatura da rede municipal de ensino desta cidade
Os dois ambientes utilizados na segunda entrevista foram o salatildeo ndash local em que as crianccedilas
brincam realizam atividades relacionadas agrave danccedila assistem a viacutedeos e onde aquelas que
frequentam a escola em periacuteodo integral descansam ou dormem depois do almoccedilo ateacute o iniacutecio das
aulas no periacuteodo da tarde ndash e o caramanchatildeo sala de aula na parte externa da escola
Utilizei a entrevista semi-estruturada que se caracteriza por apresentar um roteiro
previamente elaborado mas que possui certa flexibilidade em sua aplicaccedilatildeo Esse tipo de
entrevista foca em um assunto sobre o qual se elabora um roteiro com perguntas principais
complementadas por outras questotildees inerentes agraves circunstacircncias momentacircneas agrave entrevista
(MANZINI 19901991 p 154) Para o autor esse tipo de entrevista pode fazer emergir
informaccedilotildees de forma mais livre e as respostas natildeo estatildeo condicionadas a uma padronizaccedilatildeo de
alternativas (MANZINI 19901991 p 154) Esse roteiro de questotildees eacute resultado das informaccedilotildees
inicias coletadas sobre o fenocircmeno social que se pretende investigar dos objetivos da pesquisa
dos sujeitos participantes e da teoria em que o pesquisador se apoia
A transcriccedilatildeo das falas das entrevistas ocorre em dois momentos distintos O primeiro
momento eacute quando o entrevistador registrou a fala do entrevistado exatamente da forma como foi
coletada como ela se apresenta com seus modos de dizer dos sujeitos ou seja da forma literal
O momento posterior eacute quando as falas do entrevistado satildeo escritas de acordo com as regras
ortograacuteficas e gramaticais da Liacutengua Portuguesa escrita Ressalta-se que neste trabalho com o
objetivo de garantir maior inteligibilidade as entrevistas foram transcritas considerando as
correccedilotildees necessaacuterias e descritas anteriormente sem contudo alterar o seu sentido Utilizei para a
transcriccedilatildeo dos dados obtidos por meio das entrevistas as normas propostas por Luiz Antocircnio
Marcushi (1986 apud URNABO e PRETI 1988) Tais normas se encontram no ANEXO A
Outro instrumento que utilizei na geraccedilatildeo de dados foi a observaccedilatildeo Este instrumento eacute
uma estrateacutegia metodoloacutegica em que o pesquisador se insere na vida do grupo social em estudo
se constituindo em um ldquoencontro de muitas vozesrdquo (FREITAS 2007 p 33) pois ldquoao se observar
um evento depara-se com diferentes discursos verbais gestuais e expressivos Satildeo discursos que
refletem e refratam a realidade da qual fazem parte construindo uma verdadeira tessitura da vida
socialrdquo (FREITAS 2007 p 33) Na observaccedilatildeo participante os pesquisadores tornam-se um
Outro que observa e eacute tambeacutem observado Desse modo pesquisados e pesquisadores
45
gradativamente estabelecem relaccedilotildees o que favorece as outras relaccedilotildees e o desenvolvimento de
uma participaccedilatildeo sensiacutevel agraves produccedilotildees das crianccedilas (MARTINS FILHO BARBOSA 2011 p
99) A observaccedilatildeo participante tambeacutem possibilita ldquoo acesso dos adultos ao que as crianccedilas
pensam fazem sabem falam e de como vivem esmiuccedilando suas peculiaridades e as
particularidadesrdquo (MARTINS FILHO BARBOSA 2011 p 100)
Por ser pesquisadora e professora da turma de crianccedilas em que ocorreu essa investigaccedilatildeo
a observaccedilatildeo foi um instrumento utilizado em todo contexto da pesquisa com as crianccedilas e no
desenvolvimento do trabalho pedagoacutegico para o ensino dos gecircneros discursivos Na observaccedilatildeo
participante busca-se uma compreensatildeo marcada pela perspectiva da totalidade construiacuteda no
encontro dos diferentes enunciados produzidos entre pesquisador e pesquisado Segundo Bakhtin
(2003) a accedilatildeo fiacutesica do homem precisa ser compreendida como um ato mas um ato que natildeo pode
ser compreendido fora de sua expressatildeo siacutegnica que eacute por noacutes recriada Esclarece que
Noacutes natildeo perguntamos agrave natureza e ela natildeo nos responde Colocamos as
perguntas para noacutes mesmos e de certo modo organizamos a observaccedilatildeo ou a
experiecircncia para obtermos a resposta Quando estudamos o homem procuramos
e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu
significado (BAKHTIN 2003 p 319)
Nesse sentido a observaccedilatildeo participante eacute caracterizada por sua dimensatildeo de alteridade
uma vez que o pesquisador ao participar do evento observado constitui-se parte dele mas ao
mesmo tempo manteacutem uma posiccedilatildeo exotoacutepica que lhe possibilita o encontro com o outro ldquoE eacute
este encontro que ele procura descrever no seu texto no qual revela outros textos e contextosrdquo
(FREITAS 2007 p 32) A situaccedilatildeo de campo pode ser entendida como ldquouma esfera social de
circulaccedilatildeo de discursos e os textos que dela emergem como um lugar especiacutefico de produccedilatildeo do
conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridaderdquo (FREITAS 2007 p 32) Ao
considerar essa afirmaccedilatildeo entende-se que a observaccedilatildeo natildeo pode se prender em apenas descrever
os eventos mas procurar as suas possiacuteveis relaccedilotildees integrando o individual com o social Ao
fazer o relato das observaccedilotildees o pesquisador natildeo o faz somente a partir do seu olhar mas
reproduzindo vozes dos outros participantes da situaccedilatildeo investigada captando os sentidos
construiacutedos nessas interlocuccedilotildees O texto ndash relato das observaccedilotildees ndash traz a voz do pesquisador
regendo as outras vozes participantes Nessa dimensatildeo eacute possiacutevel considerar a observaccedilatildeo numa
perspectiva discursiva dialoacutegica e polifocircnica
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Diante disso este instrumento metodoloacutegico foi utilizado por se revelar adequado para
descrever a relaccedilatildeo das crianccedilas com a leitura e com a escrita de carta livro da vida e jornal a
interaccedilatildeo das crianccedilas nas situaccedilotildees de leitura e de escrita desses gecircneros discursivos e a atitude
leitora e produtora de textos delas Os registros escritos dos dados coletados por meio das
observaccedilotildees foram feitos em um caderno de anotaccedilotildees Nos primeiros dias fiz as anotaccedilotildees fora
do ambiente de pesquisa Aos poucos passei a efetuar os registros na presenccedila dos sujeitos na
tentativa de conseguir captar detalhadamente as situaccedilotildees observadas de leitura e de escrita Esse
procedimento provocou de iniacutecio o interesse das crianccedilas que buscavam explicaccedilotildees para as
constantes anotaccedilotildees que eu realizava em diferentes ambientes da escola Expus para elas que as
anotaccedilotildees eram importantes porque me ajudavam a lembrar o que havia acontecido com relaccedilatildeo
aos trabalhos realizados as conversas na roda e em outros ambientes Esse caderno de anotaccedilotildees
eacute de uso pessoal e os apontamentos feitos foram organizados cotidianamente destacando as
interlocuccedilotildees entre os sujeitos suas falas gestos expressotildees e situaccedilotildees que denotavam atitude
leitora e re-criadora de textos orais e escritos e as relaccedilotildees estabelecidas com os gecircneros
discursivos
Com o objetivo de investigar como ocorre o processo de apropriaccedilatildeo da leitura e da
escrita das crianccedilas de cinco e seis anos na Educaccedilatildeo Infantil e de que forma o trabalho
pedagoacutegico intencionalmente planejado pode interferir nesse processo utilizei outros recursos
audiovisuais como o gravador de aacuteudio a cacircmera fotograacutefica e a cacircmera filmadora O uso destes
recursos tem como finalidade coletar indiacutecios que possam identificar atitudes falas expressotildees
que denotem um leitor e um re-criador de textos em formaccedilatildeo
A fotografia eacute um recurso metodoloacutegico que permite a aproximaccedilatildeo da realidade social
histoacuterica e cultural do grupo fotografado Esse recurso ldquoreconstroacutei o proacuteprio olhar do investigador
apresentando-se como outras possibilidades de escrita ndash outros textos ndash da realidade analisadardquo
(MARTINS FILHO 2011 p 98) O uso da fotografia nesse trabalho se justifica por tentar
perceber quais atitudes corporais revelam atitudes mentais relacionadas agrave leitura e agrave escrita
A filmagem eacute uma forma de obter dados o mais proacuteximo possiacutevel ao movimento das
crianccedilas uma vez que a imagem filmada e a sua transcriccedilatildeo simultaneamente articulam entre si
a possibilidade de captar com maior amplitude e expressatildeo o que natildeo eacute perceptiacutevel agrave primeira
vista (MARTINS FILHO 2011 p 99) Desse modo a cada cena assistida e revista percebem-se
novas significaccedilotildees e novas relaccedilotildees
47
Quanto agrave utilizaccedilatildeo desses recursos Jobim e Souza (2007 p 91) afirma que o uso da
videogravaccedilatildeo em pesquisa acadecircmica aleacutem de ser um rico instrumento de coleta de dados
operacionaliza a condiccedilatildeo na qual pesquisador e sujeitos envolvidos poderatildeo construir
conhecimentos sobre as praacuteticas sociais e as representaccedilotildees que ocorrem nas interaccedilotildees com o
cotidiano expressas na linguagem audiovisual
Feita a coleta de dados foram definidos os nuacutecleos temaacuteticos ou categorias (PADILHA
2006 PADILHA JOLY 2009) em consonacircncia com os objetivos da pesquisa que
possibilitassem identificar e analisar indiacutecios denotativos do processo de apropriaccedilatildeo e
objetivaccedilatildeo da leitura e da escrita pelas crianccedilas pequenas por meio dos gecircneros discursivos as
relaccedilotildees que estabelecem com os elementos dos gecircneros discursivos como carta histoacuterias de vida
(livro da vida) e notiacutecia de jornal e a interferecircncia do trabalho pedagoacutegico intencionalmente
planejado nesse processo de apropriaccedilatildeo Desse modo a escolha dos nuacutecleos temaacuteticos nunca eacute
aleatoacuteria pois qualquer opccedilatildeo eacute ideoloacutegica uma vez que ldquoreflete e refrata uma outra realidade
que lhe eacute exterior Tudo que eacute ideoloacutegico possui significado e remete a algo situado fora de si
mesmordquo (BAKHTIN 1992 p 31) Os nuacutecleos temaacuteticos foram definidos com o objetivo de
garantir maior organizaccedilatildeo dos dados e apresentaccedilatildeo da anaacutelise destes e assim poder mergulhar
nas reaccedilotildees nas falas nos silecircncios e atitudes das crianccedilas que expressam as relaccedilotildees
estabelecidas por elas Para tanto assumo como referecircncia teoacuterica os estudos de Padilha (2006) e
Padilha e Joly (2009) estudiosas de Bakhtin e Vygotsky teoacutericos em que este trabalho se
fundamenta
Foram definidos para a anaacutelise dos dados quatro nuacutecleos temaacuteticos divididos em
subnuacutecleos a saber
Conceitos de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita na Educaccedilatildeo infantil dos
professores e das crianccedilas ndash A crianccedila pequena a cultura escrita e os gecircneros discursivos ler e
escrever na Educaccedilatildeo Infantil A atividade na leitura e na escrita Aspectos da teoria bakhtiniana
para se pensar o ensino da liacutengua O que eacute aprender a ler e a escrever na Educaccedilatildeo Infantil Os
conceitos das professoras O ensino do ato de ler e de escrever O ensino da liacutengua materna As
praacuteticas de leitura e de escrita o gecircnero literaacuterio
A leitura e a escrita na escola de Educaccedilatildeo Infantil o que pensam as crianccedilas ndash Os conceitos
das crianccedilas no iniacutecio da pesquisa Os conceitos das crianccedilas no final da pesquisa
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O ensino da leitura e os gecircneros discursivos ndash A crianccedila e o seu estatuto de leitor A leitura do
gecircnero discursivo carta A leitura do gecircnero discursivo relatos de vida A leitura do gecircnero
discursivo notiacutecia de jornal
O ensino da linguagem escrita e os gecircneros discursivos ndash A crianccedila e o seu estatuto de re-
criador de textos A escrita do gecircnero discursivo carta A escrita do gecircnero discursivo relatos de
vida A escrita do gecircnero discursivo notiacutecia de jornal
Para a anaacutelise dos dados detive-me ao foco da pesquisa e busquei as ocorrecircncias uacutenicas
os pequenos indiacutecios coletados que se revelavam nas interaccedilotildees e que muitas vezes poderiam
denotar aparente irrelevacircncia mas que se constituem em indiacutecios carregados de significados e
sentidos Ocorrecircncias singulares das crianccedilas nas relaccedilotildees com os gecircneros discursivos em
situaccedilotildees de leitura e de escrita e detalhes na mediaccedilatildeo da professora com as crianccedilas no ensino
do ato de ler e do ato de escrever Por esta razatildeo optei pela abordagem microgeneacutetica que
segundo Goacutees (2000) pode ser caracterizada como uma abordagem
[] orientada para as minuacutecias detalhes e ocorrecircncias residuais como indiacutecios
pistas signos de aspectos relevantes de um processo em curso que elege
episoacutedios tiacutepicos ou atiacutepicos (natildeo apenas situaccedilotildees prototiacutepicas) que permitem
interpretar o fenocircmeno de interesse que eacute centrada na intersubjetividade e o
funcionamento enunciativo-discursivo dos sujeitos e que se guia por uma visatildeo
indicial e interpretativo-conjetural (GOacuteES 2000 p 21)
A anaacutelise microgeneacutetica refere-se a uma forma de construccedilatildeo de dados muito utilizada na
psicologia que tem sido estendida aos estudos na aacuterea da educaccedilatildeo Encontra sua fundamentaccedilatildeo
teoacuterica nos princiacutepios da Teoria Histoacuterico-Cultural sobre o desenvolvimento da mente humana
Ao explicitar sobre essa metodologia de anaacutelise Goacutees (2003) ressalta o significado da sua
terminologia ao esclarecer que natildeo eacute micro por serem os eventos de curta duraccedilatildeo mas por ser
orientada para as minuacutecias indiciais eacute geneacutetica por buscar a gecircnese dos acontecimentos por ser
histoacuterica por relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura Arena (2007) aponta
que a abordagem microgeneacutetica como procedimento metodoloacutegico em pesquisas voltadas para o
ensino da leitura e da escrita ainda eacute recente na pesquisa acadecircmica bem como em trabalhos
voltados para a formaccedilatildeo docente
As situaccedilotildees concretas de leitura e de escrita dos gecircneros discursivos carta relato de vida
por meio do livro da vida e notiacutecia de jornal vivenciadas pelas crianccedilas as relaccedilotildees que elas
49
travaram com esses gecircneros as mediaccedilotildees feitas pela professora e pelas outras crianccedilas
possibilitaram o uso da anaacutelise microgeneacutetica para orientar e direcionar a atenccedilatildeo para os detalhes
das accedilotildees e interaccedilotildees com o entorno em que ocorreu a pesquisa
Outro procedimento metodoloacutegico utilizado foi a anaacutelise do discurso na perspectiva-
enunciativa discursiva de Bakhtin Para aleacutem da anaacutelise da linguagem os estudos de Bakhtin e
seu ciacuterculo fornecem a base para refletir sobre as vozes infantis seus pensamentos e ideias seus
valores suas visotildees de mundo e para perceber os outros com os quais convivem e que se fazem
presentes em seus discursos (ALESSI 2011) Estes estudos permitem pensar sobre as crianccedilas e
as relaccedilotildees estabelecidas com seus pares e com os adultos Em uma perspectiva dialoacutegica de
linguagem e que considera o homem como ser de linguagem a concepccedilatildeo discursiva enunciativa
de Bakhtin enfatiza a importacircncia da alteridade na constituiccedilatildeo dos sujeitos ou seja a interaccedilatildeo
permanente com o outro contribui para a formaccedilatildeo da consciecircncia do homem (ALESSI 2011)
Desse modo baseio-me no pressuposto de que cada enunciado precisa ser analisado
considerando o contexto em que ele ocorre em outras palavras a situaccedilatildeo histoacuterica e social e
seus interlocutores e tambeacutem os discursos anteriores que contribuiacuteram para a constituiccedilatildeo do
sujeito fatores que tornam este enunciado uacutenico (ALESSI 2011) Nessa direccedilatildeo eacute preciso
ressaltar que
[] A verdadeira substacircncia da liacutengua natildeo eacute constituiacuteda por um sistema abstrato
de formas linguumliacutesticas nem pela enunciaccedilatildeo monoloacutegica isolada nem pelo ato
psicofisioloacutegico de sua produccedilatildeo mas pelo fenocircmeno social da interaccedilatildeo verbal
realizada atraveacutes da enunciaccedilatildeo ou das enunciaccedilotildees A interaccedilatildeo verbal constitui
assim a realidade fundamental da liacutengua (BAKHTIN 1992 p 123 grifos do
autor)
Diante do exposto buscou-se incorporar neste trabalho a anaacutelise do discurso na
perspectiva enunciativa discursiva de Bakhtin na tentativa de compreender as vozes das crianccedilas
seus enunciados suas falas os diaacutelogos travados e os silecircncios que tambeacutem podem revelar
elementos dessa dinacircmica social Essa opccedilatildeo pela orientaccedilatildeo enunciativa discursiva bakhtiniana
se deu porque as falas das crianccedilas satildeo entendidas aqui como uma atitude responsiva satildeo
enunciados que sempre vatildeo ao encontro do enunciado do outro e por esse motivo enfoca a
relaccedilatildeo dialoacutegica relaciona interaccedilatildeo discurso e alteridade (BAKHTIN 1992) e coincide assim
com os objetivos da pesquisa
50
Proponho-me tambeacutem a fazer a anaacutelise dos materiais escritos produzidos durante a
pesquisa em dois momentos o primeiro em que me apresento como professora e escriba das
produccedilotildees orais dos sujeitos e num segundo momento os textos produzidos e escritos por eles
proacuteprios
14 Metodologia do trabalho docente e o ensino dos gecircneros discursivos
[] soacute faremos educaccedilatildeo se deixarmos que cada crianccedila realize a sua proacutepria
experiecircncia e adquira os mecanismos em estreita ligaccedilatildeo com a elaboraccedilatildeo do
seu pensamento de outro modo ela desperdiccedila em puro detrimento da sua
formaccedilatildeo de homem as horas mais preciosas da sua existecircncia E forja o
instrumento da sua escravizaccedilatildeo (FREINET 1977 p 77)
A afirmaccedilatildeo de Freinet ressalta o papel do professor e de seu trabalho pedagoacutegico com as
crianccedilas num processo que considera a educaccedilatildeo como humanizaccedilatildeo (VYGOSTKI 1995
MELLO 1997) e que por isso caminha na contramatildeo de um ensino mecacircnico e impositivo que
desconsidera a crianccedila como sujeito de suas aprendizagens
Desse modo apresento neste item a metodologia de ensino da leitura e da escrita por meio
dos gecircneros discursivos carta relato de vida e notiacutecia de jornal com as crianccedilas Como
pesquisadora e professora da turma esclareccedilo que a minha proacutepria praacutetica docente foi elaborada
com o objetivo de inserir as crianccedilas na cultura escrita mediando situaccedilotildees para que pudessem
estabelecer relaccedilotildees com o escrito e vivenciar os diferentes modos de pensar o escrito de forma
dialoacutegica dentro de um processo interativo
Cada etapa do trabalho realizado as atividades e as situaccedilotildees de leitura e de escrita
propostas foram intencionalmente planejadas para e com as crianccedilas e por meio das falas
atitudes expressotildees gestos que elas apresentavam passei a experimentar e a validar os
procedimentos que orientavam o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita por meio dos
gecircneros discursivos mencionados anteriormente tendo em vista o envolvimento interesse e o
desenvolvimento delas Nessa perspectiva Freinet afirma que ldquose o ensino natildeo interessa ao aluno
eacute porque lhe eacute de alguma maneira inacessiacutevel Eacute lamentaacutevel qualquer meacutetodo que pretenda fazer
beber o cavalo que natildeo estaacute com sederdquo (1985 p16 apud ELIAS 1997 p 38)
O trabalho pedagoacutegico ora apresentado foi realizado no contexto das teacutecnicas da
Pedagogia Freinet com diferentes gecircneros discursivos A escolha por realizar um trabalho
51
baseado no contexto dessa pedagogia se justifica pelo fato de a minha praacutetica pedagoacutegica como
professora das crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil compactuar com os princiacutepios que a norteiam
dentre eles ensino cooperativo que privilegia a expressatildeo humana e a crianccedila como ser capaz e
ativo em seu processo de apropriaccedilatildeo da cultura Aleacutem disso eacute possiacutevel estabelecer aproximaccedilotildees
com as ideias de Vygotsky e de Bakhtin teoacutericos nos quais esse trabalho se fundamenta O uso
das teacutecnicas Freinet tambeacutem se justifica devido ao fato de que por meio delas se ampliam as
fontes de investigaccedilatildeo que as crianccedilas utilizam na escola (SAMPAIO 1994) fazem parte de um
legado cultural e buscam a objetivaccedilatildeo da crianccedila por meio das muacuteltiplas linguagens
Para a Teoria Histoacuterico-Cultural o processo de comunicaccedilatildeo eacute o elemento crucial no
processo de apropriaccedilatildeo da cultura A comunicaccedilatildeo gera uma accedilatildeo que gera comunicaccedilatildeo que
gera outra accedilatildeo que estabelece uma relaccedilatildeo material com o objeto De acordo com Leontiev
(1978 p 273)
A comunicaccedilatildeo quer esta se efectue sob a sua forma exterior inicial de
actividade em comum quer sob a forma de comunicaccedilatildeo verbal ou mesmo
apenas mental eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria e especiacutefica do desenvolvimento do
homem na sociedade
Essas ideacuteias se coadunam com as de Freinet e de Bakhtin
Para Freinet a comunicaccedilatildeo eacute uma necessidade da crianccedila e eacute essa compreensatildeo que
justifica a livre expressatildeo como princiacutepio vertebrador na estruturaccedilatildeo de suas teacutecnicas de ensino
Essa comunicaccedilatildeo que se concretiza por meio de diferentes linguagens tem na expressatildeo verbal
seu elemento central A livre expressatildeo segundo Freinet eacute ldquoa proacutepria manifestaccedilatildeo da vidardquo
(FREINET 1979 p 12)
Para Bakhtin (1992) a linguagem eacute interaccedilatildeo social cujo objetivo eacute a comunicaccedilatildeo entre
falanteouvinte entre um eu e um tu comunicaccedilatildeo que requer a atitude responsiva do outro e
isso pressupotildee um princiacutepio geral a reger toda palavra o de que linguagem eacute diaacutelogo
(BAKHTIN 1992) Toda palavra eacute por natureza dialoacutegica porque sempre pressupotildee o outro - o
outro como destinataacuterio e a quem estaacute voltada toda a locuccedilatildeo o outro como discurso ou discursos
(BRANDAtildeO 2005)
Diante dos apontamentos proferidos pode-se dizer que tanto para a Teoria Histoacuterico-
Cultural como para Freinet e para Bakhtin a comunicaccedilatildeo eacute a forma privilegiada da objetivaccedilatildeo
humana e que por sua vez eacute o que impulsiona o processo de humanizaccedilatildeo As teacutecnicas de ensino
52
elaboradas por Freinet natildeo se constituem em um conjunto de teacutecnicas riacutegidas e ortodoxas e natildeo
podem ser compreendidas como um conjunto de regras isoladas mas serem compreendidas em
sua totalidade As teacutecnicas Freinet se baseiam na livre expressatildeo na cooperaccedilatildeo no trabalho e na
autonomia Eacute necessaacuterio enfatizar que a partir do tateamento experimental da vivecircncia a crianccedila
elabora as suas experiecircncias que satildeo uacutenicas individuais e dessa forma as experiecircncias satildeo
construiacutedas e natildeo copiadas promovendo o desenvolvimento da inteligecircncia
O trabalho pedagoacutegico proposto para essa pesquisa ocorreu no contexto das teacutecnicas
Freinet ndash correspondecircncia interescolar livro da vida e jornal da turma ndash porque os textos das
crianccedilas na Pedagogia Freinet tecircm sempre um destinataacuterio real ndash um ldquooutrordquo ndash satildeo produzidos e
lidos para atender a uma necessidade satildeo carregados de funcionalidade e manifestam um desejo
de expressatildeo e por tal razatildeo os gecircneros estatildeo neles presentes Segundo Freinet (apud FREINET
1978 p 60 grifos do autor) ldquoquanto agrave qualidade dos textos e sobretudo do trabalho essa eacute e
seraacute incomparaacutevel porque os nossos impressos foram vividos e sentidos logo completamente
compreendidosrdquo Entende-se assim que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita por meio
dos gecircneros discursivos no contexto das teacutecnicas Freinet materializam o ldquooutrordquo trazem a clareza
do outro para a crianccedila e permitem que a crianccedila estabeleccedila relaccedilotildees intensas e dialoacutegicas com o
escrito
Esta pesquisa parte do pressuposto de que a crianccedila aprende a ler a escrever a falar ou
seja aprende a liacutengua por meio dos gecircneros discursivos e que a escola desde a pequena infacircncia eacute
ldquotomada como autecircntico lugar de comunicaccedilatildeo e as situaccedilotildees escolares como ocasiotildees de
produccedilatildeorecepccedilatildeo de textos Os alunos encontram-se assim em muacuteltiplas situaccedilotildees em que ela eacute
mesmo necessaacuteriardquo (DOLZ SCHNEUWLY 1999 p 8) Posto isto o proacuteprio funcionamento da
escola pode ser transformado de tal modo que as ocasiotildees de re-criaccedilatildeo de textos e de leitura se
ampliam na classe entre as crianccedilas entre classes de uma mesma escola entre escolas diferentes
produzindo forccedilosamente ldquogecircneros novos uma forma toda nova de comunicaccedilatildeo que produz as
formas linguumliacutesticas que a possibilitamrdquo (DOLZ SCHNEUWLY 1999 p 8 grifos dos autores)
Nesse sentido pode-se dizer que
Freinet eacute sem duacutevida quem foi mais longe nesta via que encara com seriedade a
escola como autecircntico lugar de produccedilatildeo e utilizaccedilatildeo de textos Pensar-se-aacute aqui
particularmente no texto livre na conferecircncia na correspondecircncia escolar no
jornal de classe nos romances coletivos nos poemas individuais (DOLZ
SCHNEUWLY 1999 p 8 ndash 9)
53
Definido o contexto em que se deu a pesquisa e definidos quais gecircneros seriam abordados
no trabalho pedagoacutegico fiz um levantamento bibliograacutefico sobre a obra de Freinet e sobre os
gecircneros discursivos escolhidos ndash carta relatos de vida e notiacutecia de jornal Dediquei-me ao estudo
dos gecircneros discursivos e me apropriei deles compreendendo o seu conteuacutedo temaacutetico estilo e
construccedilatildeo composicional (BAKHTIN 2003) o que me possibilitou organizar e planejar formas
adequadas e necessaacuterias de realizar o trabalho pedagoacutegico voltado para o ensino e a
aprendizagem da leitura e da escrita e buscar em cada gecircnero discursivo os aspectos essenciais
que possam envolver as crianccedilas criando nelas o interesse e o desejo de ler e de escrever
A preocupaccedilatildeo em planejar com intencionalidade as situaccedilotildees de leitura e de escrita
envolveu a necessidade de organizar os tempos e os espaccedilos destinados a esse fim para que
desde cedo as crianccedilas percebam que existem determinados materiais determinados modos e
determinados lugares de ler e para que percebam a leitura como uma praacutetica cultural e a escrita
como um instrumento cultural Espaccedilos tempos e materiais organizados intencionalmente
propiciam oportunidades propulsoras de um desenvolvimento amplo da crianccedila e do sentido de
infacircncia que decorre dessas experiecircncias e das produccedilotildees infantis que revelam a sua cultura
(FARIA DEMARTINI PRADO 2002) Assim busquei assumir um dos preceitos tatildeo
defendidos por Freinet ldquonatildeo deve haver separaccedilatildeo entre as aprendizagens do meio escolar e da
realidaderdquo (ELIAS 1997 p 74)
Num segundo momento iniciei o trabalho com as crianccedilas introduzindo os gecircneros
discursivos carta relato de vida por meio do livro da vida e num terceiro momento a notiacutecia de
jornal por meio do jornal da turma A introduccedilatildeo de cada um desses gecircneros teve seu iniacutecio na
roda da conversa que tambeacutem eacute uma teacutecnica Freinet realizada diariamente na turma A roda da
conversa eacute um momento em que todo o grupo ndash crianccedilas e professora ndash apresentam novidades
planejam o que faratildeo no dia negociam situaccedilotildees resolvem problemas discutem assuntos
diversificados sobre o que vivem sobre o que vecircem sobre o que sentem comentam sobre os
estudos e pesquisas contam curiosidades planejam avaliam e redirecionam o trabalho Por essas
razotildees a roda confere a todos os participantes do grupo e especialmente agraves crianccedilas o direito de
falarem e de serem ouvidos por todo o coletivo dando a palavra a cada um dos membros Essa
teacutecnica que acontece em dois momentos da aula ndash no iniacutecio e no final ndash corresponde a uma forma
de estabelecer uma relaccedilatildeo de respeito entre as pessoas do grupo e cria o desejo de expressatildeo nas
crianccedilas
54
O gecircnero discursivo carta foi iniciado quando durante a roda da conversa inicial no mecircs
de abril de 2010 ndash ano da realizaccedilatildeo da coleta de dados ndash a coordenadora da escola em que se deu
a pesquisa entregou agraves crianccedilas uma carta de uma turma de Infantil II de uma escola municipal
de Educaccedilatildeo Infantil da zona sul da mesma cidade A correspondecircncia interescolar com uma
professora dessa unidade escolar da zona sul da cidade jaacute ocorria havia trecircs anos na ocasiatildeo da
pesquisa mas as crianccedilas sujeitos da pesquisa participavam pela primeira vez de um trabalho
envolvendo esse gecircnero discursivo Para a realizaccedilatildeo da pesquisa foi mantida correspondecircncia
com uma turma de crianccedilas de infantil II da zona sul dessa mesma cidade ndash crianccedilas com idades
de cinco anos ndash como explicitado anteriormente e com uma turma de crianccedilas com idades de
quatro e cinco anos da cidade de Campinas ndash SP Ambas as professoras das turmas
correspondentes apresentavam em suas praacuteticas concordacircncia com as ideias da Pedagogia
Freinet
As cartas recebidas antes de serem lidas por mim na condiccedilatildeo de professora eram
abertas e exploradas pelas crianccedilas que as observavam buscavam indiacutecios para fazerem a leitura
levantavam hipoacuteteses sobre o que estava escrito comparavam nomes analisavam os desenhos e
proferiam inuacutemeras perguntas a respeito Essas perguntas eram sempre conversadas na tentativa
de perceber e de entender o que estava por traacutes desses questionamentos e levar as crianccedilas a
buscar relaccedilotildees com o escrito Sempre da chegada de uma carta eu deixava as crianccedilas
manusearem-na livremente Em seguida eu fazia a leitura das cartas e era discutido passo a
passo como seriam produzidas a cartas respostas Nesse processo de re-criaccedilatildeo de gecircneros
discursivos eram discutidas as ideias a serem escritas e a forma como seriam escritas
O livro da vida eacute um compilado de registros escritos dos acontecimentos mais
significativos da turma Refere-se agrave vida das crianccedilas e da professora e nele satildeo anotadas as
vivecircncias do grupo Satildeo as crianccedilas que dizem o que deve ser escrito no livro da vida e esses
registros foram feitos por mim porque as crianccedilas natildeo eram no iniacutecio do trabalho
convencionalmente alfabetizadas Aleacutem da escrita do texto o livro da vida eacute composto por fotos
desenhos e colagens sempre relacionados ao registro escrito Expliquei para as crianccedilas na roda
da conversa tambeacutem no mecircs de abril de 2010 o que eacute o livro da vida como eacute feito o motivo pelo
qual eacute feito e as re-criaccedilotildees de textos orais foram escritas mantendo o mais fidedignamente os
relatos das crianccedilas Os textos re-criados no livro da vida eram em grande parte coletivos ndash
quando se referiam agraves vivecircncias do grupo ndash ou individuais ndash quando eram assuntos pessoais os
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quais as proacuteprias crianccedilas solicitavam o registro O livro da vida natildeo foi escrito diariamente mas
seguia uma regularidade de cerca de trecircs vezes por semana e os textos eram lidos depois de re-
criados pelas crianccedilas pelos seus pais e familiares membros da escola e pelos correspondentes
quando ocorria anualmente o encontro entre as turmas
O jornal da turma eacute um jornal produzido e editado cooperativamente pelas crianccedilas Eacute
constituiacutedo de falas curiosidades e opiniotildees das crianccedilas sobre suas vivecircncias e descobertas As
informaccedilotildees trazidas pelas crianccedilas e discutidas principalmente na roda da conversa satildeo
transformadas em notiacutecias do jornal do grupo No trabalho com o jornal primeiramente eu
apresentei na hora da leitura um jornal da cidade com uma reportagem em que eu fazia parte do
artigo A hora da leitura eacute um momento diaacuterio em que leio ou conto uma histoacuteria poesia faacutebula
histoacuteria em quadrinhos dentre outros gecircneros discursivos e utilizo uma cadeira pequena para me
posicionar e as crianccedilas se sentam proacuteximas a mim para poderem visualizar as ilustraccedilotildees ou
fotos e acompanhar a leitura Terminada a leitura e de ouvir as impressotildees sobre o artigo lido dei
agraves crianccedilas vaacuterios outros exemplares do jornal da cidade e do Jornal Estado de Satildeo Paulo
(Estadatildeo) e as observei nos primeiros contatos com esse suporte textual e com esse gecircnero
discursivo Registrei as falas as accedilotildees as impressotildees e com esses indiacutecios fiz a leitura de uma
notiacutecia de jornal para as crianccedilas cerca de trecircs vezes por semana para que pudessem se
familiarizar com esse gecircnero discursivo Selecionei antecipadamente as reportagens artigos e
manchetes que seriam lidas considerando as idades e interesses
Paralelamente a isso propus que elaboraacutessemos o jornal da turma e todas as notiacutecias que
compunham o jornal foram trazidas e selecionadas na roda da conversa Para a produccedilatildeo do
jornal utilizei um computador pessoal (notebook) porque a escola natildeo dispunha de um
computador para uso das crianccedilas na sala de aula Inicialmente eu digitei no computador os textos
que eram re-criados oralmente pelas crianccedilas e elas participavam de cada etapa da re-criaccedilatildeo e
acompanhavam o registro Em seguida ilustravam os textos re-criados e nesse processo ensinei-
as a utilizar o computador e com o tempo passaram a fazer o registro dos textos diretamente
nesse recurso com pouca ajuda da minha parte Sampaio (1994 p 77) ressalta que o Instituto
Cooperativo da Escola Moderna (ICEM) fundado por Freinet
() considera que o emprego do computador na escola natildeo tem somente um
sentido pedagoacutegico tem tambeacutem um sentido ideoloacutegico pois estamos num
mundo que dispotildee de uma tecnologia que avanccedila a passos largos sendo
56
indispensaacutevel que a escola forneccedila os recursos necessaacuterios para enfrentar essa
avalanche de novas descobertas Natildeo se eacute livre quando se eacute ignorante (grifos da
autora)
Para a divulgaccedilatildeo e veiculaccedilatildeo do jornal da turma os textos foram impressos na
impressora da escola e fotocopiados para que cada crianccedila tivesse o seu exemplar levado para
suas casas e lido por seus familiares que emitiam suas opiniotildees e foi tambeacutem enviado para os
correspondentes No trabalho com cada gecircnero discursivo busquei perceber indiacutecios que
denotam possiacuteveis modificaccedilotildees na conduta leitora e produtora de textos das crianccedilas as relaccedilotildees
que estabelecem com os elementos especiacuteficos de cada gecircnero ndash o conteuacutedo temaacutetico a
construccedilatildeo composicional e o estilo (BAKHTIN 2003) ndash e como lidam com esses elementos
nesse processo inicial de apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita
A praacutetica docente exposta eacute resultado de uma relaccedilatildeo direta e dialoacutegica com os sujeitos da
pesquisa o que promoveu o redirecionamento em cada etapa do trabalho em busca de um ensino
colaborativo em que as crianccedilas atuassem como sujeitos desse processo
15 Crianccedilas e adultos os sujeitos da pesquisa
As crianccedilas se interessam pela vida do seu meio pelas flutuaccedilotildees da natureza e
dos trabalhos e que gostariam de estudar principalmente aquilo que lhes diz
respeito (FREINET 1969 p 133-134)
Essa afirmaccedilatildeo de Freinet remete ao pressuposto de que a crianccedila eacute desde pequena capaz
de estabelecer relaccedilotildees com o mundo que a cerca se apropriar dos significados e atribuir sentidos
a ele (VIGOTSKII 1988 MELLO 2007) Com base nestas consideraccedilotildees o processo de ensino
com a crianccedila deve ser provocador de suas aprendizagens e do seu desenvolvimento e estar
intimamente relacionado com suas experiecircncias com o seu desejo de expressatildeo seu desejo de
conhecer uma educaccedilatildeo e um ensino desenvolventes (DAVIDOV 1988)
Diante disso proponho-me a apresentar a caracterizaccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa
elementos fundamentais para a concretizaccedilatildeo deste trabalho Embora seja uma pesquisa com
crianccedilas investiguei por meio da entrevista as quatro professoras que trabalharam com elas desde
o ingresso na referida escola abrangendo assim as professoras das turmas do Berccedilaacuterio Maternal
I Maternal II e Infantil I para compreender como os conceitos de leitura e de escrita dessas
57
professoras e suas praacuteticas docentes interferiram no processo de apropriaccedilatildeo e de objetivaccedilatildeo da
leitura e da escrita das crianccedilas participantes da pesquisa
De acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para preservar a
identidade dos sujeitos as professoras seratildeo denominadas por PB (Professora do Berccedilaacuterio) PM I
(Professora do Maternal I) PM II (Professora do Maternal II) e PI I (Professora do Infantil I)
58
Quadro 1 ndash Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos docentes
Professoras Tempo de
Magisteacuterio
(anos)
Tempo de
serviccedilo na
instituiccedilatildeo em
que foi
realizada a
pesquisa
(anos)
Turma em
que lecionou
nos uacuteltimos
quatro anos
(idade dos
alunos)
Experiecircncia
docente em
diferentes
segmentos da
educaccedilatildeo
PB
15 anos
13 anos
Berccedilaacuterio (entre
1 ano e seis
meses 2 anos) e
Maternal I
(entre 2 e 3
anos)
Somente na
Educaccedilatildeo
Infantil
PM I
15 anos
13 anos
Maternal I
(entre 2 e 3
anos) e
Maternal II
(entre 3 e 4
anos)
Somente na
Educaccedilatildeo
Infantil
PM II
5 anos e 6
meses
5 anos e 6
meses
Maternal II
(entre 3 e 4
anos) e
Maternal I
(entre 2 e 3
anos)
Somente na
Educaccedilatildeo
Infantil
PI I
22 anos e 6
meses
5 anos e 6
meses
Preacute III (entre 5
e 6 anos) e
Infantil I (4
anos)
No Ensino
Fundamental
de 1ordm ao 5ordm ano
durante 22
anos e 6 meses
59
Quadro 2 ndash Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos docentes quanto agrave formaccedilatildeo
Professoras Magisteacuterio
(CEFAM)
Pedagogia
(Instituiccedilatildeo
Puacuteblica)
Pedagogia
(Instituiccedilatildeo
Particular)
Especializaccedilatildeo
ou Poacutes-
Graduaccedilatildeo
PB
X
X
PM I
X
X
PM II
X
X
Psicopedagogia
PI I
X
X
Ao realizar uma anaacutelise dos quadros verifica-se que somente uma das professoras possui
menos de 10 anos de magisteacuterio e iniciou sua carreira docente na instituiccedilatildeo em que foi realizada
a pesquisa Verifica-se tambeacutem que durante quatro anos os quatro anos em que as crianccedilas
percorreram do Berccedilaacuterio ao Infantil I as professoras natildeo apresentaram alteraccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves
turmas em que lecionaram permanecendo relativamente com turmas da mesma etapa de crianccedilas
da mesma idade no miacutenimo por dois anos Todas dedicaram a maior parte do tempo dos seus
serviccedilos no magisteacuterio na referida unidade escolar e somente PI I tem a maior parte de sua
experiecircncia docente no Ensino Fundamental de 1ordm ao 5ordm ano em que atuou durante muitos anos
como professora alfabetizadora dos anos iniciais
Com relaccedilatildeo agrave formaccedilatildeo profissional todas cursaram o Magisteacuterio (CEFAM ndash Centro
Especiacutefico de Formaccedilatildeo e Aperfeiccediloamento do Magisteacuterio) se graduaram em Pedagogia (Curso
Superior completo) realizada em universidade puacuteblica e somente PM II tinha especializaccedilatildeo lato
sensu em Psicopedagogia
Esta pesquisa foi realizada com 20 crianccedilas de uma turma de Infantil II da Educaccedilatildeo
Infantil ndash uacuteltima turma antes de ingressarem no Ensino Fundamental ndash de uma escola puacuteblica
municipal da cidade de Mariacutelia ndash SP que frequentavam a escola em periacuteodo parcial sendo o
periacuteodo da tarde A escola por se tratar de uma EMEI Creche (Escola Municipal de Educaccedilatildeo
Infantil e Creche) tambeacutem atende a crianccedilas no periacuteodo integral As crianccedilas seratildeo denominadas
por C1 C2 C3 e assim sucessivamente na intenccedilatildeo de resguardar as identidades sem contudo
lhes negar a autoria da sua participaccedilatildeo
60
Quadro 3 ndash Caracterizaccedilatildeo dos sujeitos crianccedilas
Crianccedilas
Idades
Turma em que ingressou
na unidade escolar da
referida pesquisa
C1 5 anos Berccedilaacuterio
C2 5 anos Berccedilaacuterio
C3 5 anos Berccedilaacuterio
C4 5 anos Berccedilaacuterio
C5 6 anos Berccedilaacuterio
C6 5 anos Berccedilaacuterio
C7 5 anos Berccedilaacuterio
C8 5 anos Berccedilaacuterio
C9 5 anos Berccedilaacuterio
C10 5 anos Maternal I
C11 6 anos Berccedilaacuterio
C12 5 anos Berccedilaacuterio
C13 6 anos Berccedilaacuterio
C14 5 anos Infantil II
C15 5 anos Berccedilaacuterio
C16 5 anos Berccedilaacuterio
C17 5 anos Maternal I
C18 5 anos Infantil II
C19 5 anos Infantil II
C20 6 anos Infantil II
Por meio da anaacutelise do quadro da caracterizaccedilatildeo dos sujeitos verifica-se que das vinte
crianccedilas participantes apenas quatro delas completaram seis anos ainda na Educaccedilatildeo Infantil
Isso ocorreu devido ao fato de que na ocasiatildeo do remanejamento das turmas para atender a
implantaccedilatildeo da lei que institui o Ensino Fundamental de nove anos ndash e portanto as crianccedilas
61
passaram a ingressar nesse segmento com cinco anos e seis meses ndash elas permaneceram na
Educaccedilatildeo Infantil por opccedilatildeo dos pais e por completarem seis anos no segundo semestre do ano de
realizaccedilatildeo da pesquisa Desse modo a turma era formada predominantemente de crianccedilas com
cinco anos
A maioria ndash quatorze delas ndash encontra-se na instituiccedilatildeo escolar em que ocorreu a pesquisa
desde o Berccedilaacuterio (quando tinham entre 1 ano e seis meses e dois anos) duas crianccedilas ingressaram
a partir do Maternal I (quando tinham entre dois e trecircs anos) e quatro delas comeccedilaram na turma
Infantil II (quando tinham entre cinco e seis anos) no ano da realizaccedilatildeo da pesquisa Essas
uacuteltimas vieram transferidas de outras unidades da proacutepria cidade sendo que duas delas
frequentaram outras escolas desde o Maternal I e outras duas crianccedilas desde o Maternal II
(quando tinham entre trecircs e quatro anos)
A maior parte das crianccedilas residia no proacuteprio bairro em que se localizava a escola ou em
bairros bem proacuteximos e uma minoria delas em uma favela ndash apenas duas delas ndash situada nos
arredores Noventa e cinco por cento dos pais natildeo completaram o segundo grau na sua
escolarizaccedilatildeo possuiacuteam baixa renda ndash cerca de um ou dois salaacuterios miacutenimos ndash e a maioria exercia
trabalhos de serviccedilos gerais (diaristas mecacircnicos pintores eletricistas pedreiros distribuidor de
gaacutes de cozinha) eram funcionaacuterios em casas comerciais ou em faacutebricas Somente dois deles
possuiacuteam o ensino superior completo
Neste trabalho atuei como pesquisadora e professora da turma Desempenhei minhas
funccedilotildees no magisteacuterio durante dez anos em uma escola da rede particular de ensino e na ocasiatildeo
da pesquisa fazia cerca de cinco anos e meio que eu havia iniciado minhas funccedilotildees como
professora na rede puacuteblica municipal na aacuterea da Educaccedilatildeo Infantil
O trabalho realizado direcionado ao ensino da leitura e da escrita por meio dos gecircneros
discursivos carta relatos de vida e notiacutecia de jornal com as crianccedilas ocorreu entre os meses de
maio e dezembro do ano de 2010
Vale esclarecer que me proponho a apresentar este trabalho com o entrelaccedilamento da
anaacutelise dos dados e o aporte teoacuterico adotado nesta pesquisa concomitantemente sem a costumeira
divisatildeo em duas partes capiacutetulos destinados agrave discussatildeo mais teoacuterica e capiacutetulo de anaacutelise dos
dados destinado mais agraves questotildees praacuteticas empiacutericas Farei a apresentaccedilatildeo e anaacutelise dos dados
simultaneamente agrave discussatildeo e ao aprofundamento teoacuterico assumido nessa pesquisa apoiado na
Teoria Histoacuterico-Cultural defendida por Vygotsky e seus colaboradores pela concepccedilatildeo de
62
linguagem e gecircnero discursivo de Bakhtin e pelos estudiosos da leitura e da escrita Essa proposta
ocorre na tentativa de ser coerente com a concepccedilatildeo de pesquisa apresentada no iniacutecio deste
capiacutetulo na busca de superaccedilatildeo da dicotomizaccedilatildeo entre teoria e praacutetica na minha docecircncia e na
pesquisa apresentada
63
CAPIacuteTULO II
CONCEITOS DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA NA
EDUCACcedilAtildeO INFANTIL DOS PROFESSORES E DAS CRIANCcedilAS
Para o estudo da liacutengua o princiacutepio tradicional estaacute em evitar que a crianccedila
redija antes de ter adquirido um suficiente domiacutenio pelo estudo racional das
regras gramaticais e sintaacutecticas Receia-se que os maus haacutebitos das primeiras
tentativas se gravam definitivamente em regras de vida e que a crianccedila natildeo saiba
seguir em frente Soacute deve pois comeccedilar a escrever palavras quando tiver
aprendido primeiro a traccedilar os seus exerciacutecios caligraacuteficos e a seguir a desenhar
as letras natildeo deve empregar as palavras para exprimir o seu proacuteprio pensamento
antes de lhes conhecer o sentido formal e a ortografia Natildeo deve arriscar-se no
paraacutegrafo e menos ainda no texto antes de ter penetrado nas essenciais regras
sintaacutecticas Tais satildeo as prescriccedilotildees oficiais reflexo das concepccedilotildees ainda
dominantes na pedagogia Eacute uma concepccedilatildeo (FREINET 1977 p 69)
Ao considerar estas afirmaccedilotildees de Freinet quanto ao ensino e a aprendizagem da liacutengua
escrita numa perspectiva tradicional e na eacutepoca em que foram proferidas pode-se dizer que
algumas dessas praacuteticas ainda satildeo reproduzidas desde a Educaccedilatildeo Infantil Um ensino pautado na
identificaccedilatildeo e no traccedilados das letras ou ainda na compreensatildeo das regras gramaticais
ortograacuteficas e sintaacuteticas desvinculadas de um contexto e de um fazer que natildeo condizem com a
necessidade de expressatildeo dos sujeitos aprendentes eacute uma das concepccedilotildees de ensino e de
aprendizagem da liacutengua vigente em nossa sociedade e que simula a aprendizagem da liacutengua
Eacute na contramatildeo dessa concepccedilatildeo de ensino e de aprendizagem da liacutengua escrita que este
trabalho se apresenta e se propotildee a compreender como as crianccedilas de cinco e seis anos se
apropriam e objetivam a leitura e a escrita por meio dos gecircneros discursivos num processo
dialoacutegico e dinacircmico em que essa apropriaccedilatildeo se constitui como uma forma de humanizaccedilatildeo
Para tanto nesse capiacutetulo seratildeo abordados por meio da anaacutelise dos dados coletados nas
entrevistas os conceitos de leitura e de escrita de gecircneros discursivos de ensino e de
aprendizagem das professoras participantes da pesquisa e como eles influenciam os conceitos
ainda em elaboraccedilatildeo pelas crianccedilas
Tal anaacutelise seraacute fundamentada na concepccedilatildeo de linguagem de liacutengua e de gecircnero
discursivo de Bakhtin e na concepccedilatildeo de crianccedila de ensino e de aprendizagem de leitura e de
escrita de Vygotsky e de outros estudiosos da Teoria Histoacuterico-Cultural
64
21 A crianccedila pequena a cultura escrita e os gecircneros discursivos ler e escrever na
Educaccedilatildeo Infantil
Vivemos em uma sociedade que se organiza fundamentalmente por meio de praacuteticas
escritas em uma sociedade letrada motivo por que ler e escrever satildeo condiccedilotildees necessaacuterias para
se participar dessa sociedade (BERNARDIN 2003 BRITTO 2003 2005) Durante muito
tempo acreditou-se que conhecer o coacutedigo escrito era suficiente para fazer introduzir a crianccedila na
cultura escrita mas estudos e pesquisas na aacuterea da educaccedilatildeo e da linguiacutestica revelam que apenas
conhecer o coacutedigo escrito natildeo eacute suficiente para se fazer uso da liacutengua escrita nas diferentes
situaccedilotildees cotidianas e introduzir-se nessa cultura escrita
Diante disso depreende-se que a escrita e a leitura fazem parte da vida da crianccedila desde
muito cedo antes que ela comece a frequentar a escola Vigostkii (1988 p 109) ressalta que ldquoa
aprendizagem da crianccedila comeccedila muito antes da aprendizagem escolar A aprendizagem escolar
nunca parte do zero Toda aprendizagem da crianccedila na escola tem uma preacute-histoacuteriardquo Assim as
relaccedilotildees que a crianccedila pequena vai estabelecer com o escrito por meio das vivecircncias de situaccedilotildees
de leitura e de escrita mediadas pelo Outro seratildeo cruciais nesse processo de apropriaccedilatildeo da
liacutengua
A grande preocupaccedilatildeo da escola e em geral dos professores eacute formar leitores e produtores
de textos Tal preocupaccedilatildeo eacute compreensiacutevel desde a Educaccedilatildeo Infantil porque a escrita eacute um
instrumento que permite a participaccedilatildeo das pessoas na cultura letrada e proporciona-lhes o acesso
natildeo somente agraves informaccedilotildees que facilitam o seu dia a dia mas tambeacutem ao conjunto do
conhecimento registrado ao longo da histoacuteria que pode ser usado por elas para melhorar suas
vidas em qualquer lugar em que estejam (MILLER MELLO 2008 p 4)
Mas o que eacute formar o leitor e o re-criador de textos na Educaccedilatildeo Infantil Como isso
acontece na escola da pequena infacircncia4 Esta pesquisa busca responder estas perguntas na
medida em que tenta compreender como a crianccedila pode participar ativamente da cultura escrita
desde a Educaccedilatildeo Infantil e estabelecer relaccedilotildees intensas com essa cultura Esse argumento natildeo
se coaduna com a escolarizaccedilatildeo precoce da crianccedila mas sugere pensar em formas de se garantir a
ela as vivecircncias necessaacuterias e adequadas na escola de Educaccedilatildeo Infantil a interaccedilatildeo dinacircmica
com a liacutengua em seu funcionamento e o diaacutelogo com o escrito Antecipar a escolarizaccedilatildeo da
4 Por pequena infacircncia refiro-me agraves crianccedilas de 0 a 6 anos que compotildeem a Educaccedilatildeo Infantil
65
crianccedila em detrimento de vivecircncias adequadas e necessaacuterias eacute abreviar a infacircncia e desconsiderar
a crianccedila e as especificidades do aprender e do seu desenvolvimento
Para Vigotskii (1988 p110) ldquoaprendizagem e desenvolvimento natildeo entram em contato
pela primeira vez na idade escolar mas estatildeo ligados entre si desde os primeiros dias de vida da
crianccedilardquo A aceleraccedilatildeo da escolarizaccedilatildeo (ZAPHOROacuteZETS 1987 MELLO 1999) e a
preocupaccedilatildeo em alfabetizar as crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil ndash com ecircnfase no domiacutenio do coacutedigo
linguiacutestico sem fazer o uso social da leitura e da escrita para o cotidiano ndash faz perpetuar
procedimentos de educaccedilatildeo tecnicista (BRITTO 2005) abrevia a infacircncia e influencia todo o
desenvolvimento da inteligecircncia e da personalidade da crianccedila (MUKHINA 1996 MELLO
1999) Dessa maneira o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita natildeo a envolvem porque
satildeo destituiacutedos de sentido para ela e na maioria das vezes natildeo se tornam atividades no sentido
defendido por Leontiev (1988)
A antecipaccedilatildeo da escolarizaccedilatildeo eacute sustentada pela ideia de quanto mais cedo a crianccedila for
introduzida de forma sistemaacutetica nas praacuteticas da escrita quanto mais cedo assumir o estatuto de
aluno maiores seratildeo suas possibilidades de sucesso na escola na vida e no progresso tecnoloacutegico
do paiacutes Isso decorre da pressatildeo dos pais mas principalmente da formaccedilatildeo dos professores que
trabalham com a Educaccedilatildeo Infantil (MELLO 2005)
Com a escolarizaccedilatildeo precoce da crianccedila o tempo que seria ocupado com brincadeiras
faz-de-conta jogos conversa em grupo ndash em que as crianccedilas contam suas novidades comentam
experiecircncias e conferem significados agraves situaccedilotildees vividas ndash daacute lugar a exerciacutecios de escrita agrave
repeticcedilatildeo e agrave oralizaccedilatildeo de letras siacutelabas e palavras Desse modo as atividades de expressatildeo
como o desenho a pintura a brincadeira de faz-de-conta a modelagem a danccedila a muacutesica a
construccedilatildeo a poesia a proacutepria fala satildeo comumente vistas na escola como improdutivas e
desnecessaacuterias mas na verdade satildeo fundamentais para a formaccedilatildeo da identidade da inteligecircncia
e da personalidade da crianccedila e sobretudo constituem as bases para a aquisiccedilatildeo da escrita como
um instrumento cultural complexo (MELLO 2005)
66
De acordo com estas afirmaccedilotildees entende-se que a linguagem escrita se constitui como
linha acessoacuteria e natildeo como linha central do desenvolvimento da crianccedila de cinco e seis anos
Sobre isso Vygotski (1996 p 262 grifos do autor traduccedilatildeo nossa)5 explica
() em cada etapa de idade encontramos sempre uma nova forma central como
uma espeacutecie de guia para todo o processo do desenvolvimento que caracteriza a
reorganizaccedilatildeo de toda a personalidade da crianccedila sobre uma base nova Em
torno da nova formaccedilatildeo central ou baacutesica da idade dada se situam e se agrupam
as restantes novas formaccedilotildees parciais relacionadas com facetas isoladas da
personalidade da crianccedila assim como os processos de desenvolvimento
relacionados com as novas formaccedilotildees de idades anteriores Chamaremos de
linhas centrais de desenvolvimento da idade dada aos processos de
desenvolvimento que se relacionam de maneira mais ou menos imediata com a
nova formaccedilatildeo principal enquanto que todos os demais processos parciais
assim como as mudanccedilas que se produzem em cada idade receberatildeo o nome de
linhas acessoacuterias de desenvolvimento
O autor esclarece ainda que os processos que satildeo linhas centrais em uma idade se
convertem em linhas acessoacuterias de desenvolvimento na idade seguinte e vice-versa ou seja as
linhas acessoacuterias de desenvolvimento de uma idade passam a ser principais em outra porque
ldquomodifica seu significado e seu peso especiacutefico na estrutura geral do desenvolvimento muda sua
relaccedilatildeo com a nova formaccedilatildeo central Na passagem de uma etapa de idade a outra se reconstroacutei
toda sua estrutura Cada idade possui sua proacutepria estrutura especiacutefica uacutenica e irrepetiacutevelrdquo
(VYGOTSKI 1996 p 262)6
Desse modo o tiacutetulo do capiacutetulo ora apresentado eacute pertinente porque a antecipaccedilatildeo da
escolarizaccedilatildeo confere agrave crianccedila uma condiccedilatildeo de aluno na Educaccedilatildeo Infantil e natildeo de crianccedila que
aprende Ela acaba por perder o seu estatuto de crianccedila para assumir o estatuto de aluno Ao tratar
5 Trecho original da citaccedilatildeo (Vygotski 1996 p 262 grifos do autor) () em cada etapa de edad encontramos
siempre una nueva formacioacuten central como una especie de guiacutea para todo el proceso del desarrollo que caracteriza la
reorganizacioacuten de toda la personalidad del nintildeo sobre una base nueva En torno a la nueva formacioacuten central o baacutesica
de la edad dada se situacutean y agrupan las restantes nuevas formaciones parciales relacionadas con facetas aisladas de la
personalidad del nintildeo asiacute como los procesos de desarrollo relacionados com las nuevas formaciones de edades
anteriores Llamaremos liacuteneas centrales de desarrollo de la edad dada a los procesos del desarrollo que se
relacionam de manera maacutes o menos inmediata com la nueva formacioacuten principal mientras que todos los demaacutes
procesos parciales asiacute como los cacircmbios que se producem en dicha edad recibiraacuten el nombre de liacuteneas accesorias de
desarrollo 6 Trecho original da citaccedilatildeo (Vygotski 1996 p 262) () se modifica su significado y peso especiacutefico en la
estructura general del desarrollo cambia su relacioacuten com la nueva formacioacuten central En el paso de una etapa de edad
a outra se reconstruye toda su estructura Cada edad posee su propia estructura especiacutefica uacutenica e irrepetible
67
essa questatildeo natildeo se admite com isso um espontaneiacutesmo no processo de ensino e de
aprendizagem porque para que as aprendizagens aconteccedilam haacute sempre o adulto e o professor
que ensina e que desempenha essa funccedilatildeo haacute a orientaccedilatildeo do professor que planeja
intencionalmente seu trabalho pedagoacutegico e que medeia esse processo O que estaacute em jogo nesta
afirmaccedilatildeo eacute o fato de as praacuteticas pedagoacutegicas vivenciadas pelas crianccedilas pequenas serem
escolarizadas do Ensino Fundamental e repassadas agrave Educaccedilatildeo Infantil natildeo condizentes com os
interesses e necessidades das crianccedilas nesse periacuteodo da vida e negando as especificidades do
aprender e da sua atividade principal de cada idade (LEONTIEV 1988)
Estudos da sociologia da infacircncia afirmam que durante muito tempo a sociologia se
ocupou do aluno e natildeo da crianccedila Reconhecer a crianccedila como tal eacute percebecirc-la como sujeito
ativo competente participativo inteiro (VYGOTSKYI 1995) como ldquoseres soacutecio-histoacutericos-
geograacuteficos (estatildeo presentes em um tempo e um espaccedilo)rdquo (JUIZ DE FORA 2008 p 23) e assim
produtores e influenciadores da cultura e da sociedade Essa crianccedila ativa sujeito de suas
aprendizagens eacute capaz de opinar sobre o seu proacuteprio processo de fazer escolhas de estabelecer
relaccedilotildees de atribuir significados e de produzir sentidos Satildeo seres brincantes e coletivos que se
singularizam na vivecircncia com seus pares e com sujeitos que os cercam (JUIZ DE FORA 2008)
Ao abordar sobre o processo de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da leitura e da escrita pela
crianccedila eacute preciso apresentar a concepccedilatildeo de cultura escrita que fundamenta este trabalho
Cultura escrita eacute de todos os termos o mais amplo e que procura caracterizar
um modo de organizaccedilatildeo social cuja base eacute a escrita ndash algo que natildeo se modificou
em essecircncia mesmo com o advento das novas tecnologias resultantes do modo
de fazer ciecircncia e da organizaccedilatildeo do sistema produtivo que se constituiacuteram na
sociedade ocidental [] Cultura escrita implica valores conhecimentos modos
de comportamento que natildeo se limitam ao uso objetivo do escrito Entre os
toacutepicos proacuteprios de investigaccedilatildeo e de intervenccedilatildeo nessa aacuterea estariam a relaccedilatildeo
da escrita com o desenvolvimento a inter-relaccedilatildeo escritaoralidade as demandas
por habilidades cognitivas e o modo de produccedilatildeo atual (BRITTO 2005 p 15)
Diante desses pressupostos Britto (2005) afirma ainda que
Aiacute estaacute um desafio difiacutecil inserir a crianccedila no mundo da escrita eacute mais que
alfabetizaacute-la se entendermos por alfabetizaccedilatildeo apenas o domiacutenio do coacutedigo ou
eacute iniciar a alfabetizaccedilatildeo se compreendermos por alfabetizaccedilatildeo a inclusatildeo em um
universo cultural complexo em que a escrita aparece como mediadora de valores
68
e de formas de conhecimento Nessa loacutegica o processo de letramento
(alfabetizaccedilatildeo) comeccedila antes do ensino fundamental e natildeo se interrompe sequer
com terminalidade da escolaridade regular Letramento (ou alfabetizaccedilatildeo) nesse
sentido significa viver no mundo da escrita dominar os discursos da escrita ter
condiccedilotildees de operar com os modos de pensar e produzir da cultura escrita
(BRITTO 2005 p 17)
Ferreira (2005) concordando com as ideacuteias apresentadas acrescenta que
[] os primeiros anos devem ser aqueles que permitam que as crianccedilas
imprimam nesta sociedade escrituriacutestica a instabilidade da demarcaccedilatildeo a
estrangeiridade sem fronteiras a fabricaccedilatildeo de uma linguagem De uma
linguagem que acolhe e integra natildeo soacute sua concepccedilatildeo como instrumento de luta
ideoloacutegica como comunicaccedilatildeo ou registro de algo mas principalmente que traz
em seu modo histoacuterico e social o aspecto da constituiccedilatildeo do homem como
sujeito enraizado na coletividade no diaacutelogo de quem se produz no outro na
capacidade do indiviacuteduo de interrogar-se surpreender-se indignar-se
(FERREIRA 2005 sp)
Diante desses pressupostos inserir-se na cultura escrita eacute modificar a relaccedilatildeo com a
linguagem e com o mundo a sua volta (BERNARDIN 2003) Na medida em que a crianccedila
vivencia a experiecircncia dos objetos da cultura escrita os modos como os seus gecircneros satildeo
organizados eacute que encontraraacute sentido nela (BRITTO 2005 p 17) A condiccedilatildeo de participaccedilatildeo
na cultura escrita estaacute intimamente relacionada tanto a discursos que se elaboram em diferentes
instituiccedilotildees e em praacuteticas sociais orais e escritas quanto a muitos objetos procedimentos
atitudes como formas sociais de expressatildeo entre elas a expressatildeo em liacutengua escrita (GOULART
2006 p 450) Assim eacute possiacutevel pensar que eacute na Educaccedilatildeo Infantil que as crianccedilas devem iniciar
esse processo de inserccedilatildeo e participaccedilatildeo na cultura escrita e eacute na escola da pequena infacircncia que
se deve pensar nos modos de se promover vivecircncias para que essa inserccedilatildeo e participaccedilatildeo
ocorram de forma necessaacuteria e adequada
O processo de apropriaccedilatildeo e o de objetivaccedilatildeo da liacutengua escrita satildeo na essecircncia um uacutenico
processo o de internalizaccedilatildeo da liacutengua em seu funcionamento como conjunto siacutegnico de
interaccedilatildeo entre as pessoas Nessa perspectiva natildeo se dicotomiza alfabetizaccedilatildeo e letramento como
dois processos separados mas como um processo discursivo interativo para a humanizaccedilatildeo das
crianccedilas Ao se tratar da formaccedilatildeo leitora e escritora de textos na Educaccedilatildeo Infantil vale ressaltar
que a crianccedila aprende de uma forma especiacutefica em cada idade Para aprender eacute preciso que seja
ativa nesse processo sujeito de suas aprendizagens Aprender envolve dar sentido ao que se
69
aprende Quando a crianccedila compreende o motivo do que lhe eacute proposto e atua motivada por esse
objetivo eacute capaz de atribuir sentidos positivos agrave atividade
22 A atividade na leitura e na escrita
Leontiev (1987 1988) esclarece que o fazer humano tem sempre um objetivo e um
resultado previsto para a accedilatildeo Quando o objetivo que leva agrave accedilatildeo coincide com o resultado a
crianccedila estaacute em atividade e a atividade vai ser definida pelo grau de sentido que aquele fazer tem
para ela porque garante um profundo envolvimento emocional e cognitivo Sobre isso Leontiev
(1987 p 10) esclarece que
A base ontogeneacutetica do desenvolvimento da consciecircncia (psiquismo) do homem
eacute o desenvolvimento de sua atividade durante a realizaccedilatildeo de uma atividade
nova no sujeito surgem umas ou outras funccedilotildees novas da consciecircncia (por
exemplo quando a crianccedila de idade preescolar realiza a atividade de brincar
nele surgem funccedilotildees psiacutequicas tais como a imaginaccedilatildeo e a substituiccedilatildeo
simboacutelica) A cada periacuteodo evolutivo da vida do homem lhe eacute inerente uma
atividade principal (ou guia) sobre cuja base surgem e se formam as novas
estruturas psicoloacutegicas da idade dada (LEONTIEV 1987 p 10 grifos do autor
traduccedilatildeo nossa)7
A atividade principal eacute a atividade pela qual a crianccedila melhor se relaciona com o mundo
fiacutesico com o mundo dos objetos com que ela organiza e reorganiza os processos de pensamento
de memoacuteria e eacute por ela que a crianccedila promove as mudanccedilas mais significativas nos processos
psiacutequicos e nos traccedilos da sua personalidade
Nessa perspectiva os fazeres propostos para as crianccedilas pela escola tem mais
possibilidades de se estabelecerem como atividades quanto maior for a participaccedilatildeo da crianccedila na
escola e quando o professor criar necessidades humanizadoras ndash necessidade de conhecer de se
expressar de se sentir parte integrante do grupo ndash ao trazer elementos para dar corpo agrave atividade
(MELLO 2005) Nesse processo o professor da infacircncia pode considerar as regularidades do
desenvolvimento infantil e perceber os periacuteodos sensitivos nesse desenvolvimento Vygotski
7 Trecho original da citaccedilatildeo (LEONTIEV 1987 p 10) La base ontogeneacutetica del desarrollo de la consciencia
(psiquis) del hombre es el desarrollo de su actividad durante la realizacioacuten de una actividad nueva en el sujeto
surgen unas u otras funciones nuevas de la consciencia (por ejemplo cuando el nintildeo de edad preescolar realiza la
actividad de juego en eacutel surgen funciones psiacutequicas tales como la imaginacioacuten y la sustituicioacuten simboacutelica) A cada
periacuteodo evolutivo de la vida del hombre le es inherente una actividad principal (o rectora) sobre cuya base surgen y
se forman las nuevas estructuras psicoloacutegicas de la edad dada
70
(1995) considera que a intervenccedilatildeo do professor sobre o processo de desenvolvimento das
crianccedilas seraacute mais adequada se considerar o momento do desenvolvimento psiacutequico e cultural A
influecircncia da educaccedilatildeo sobre determinada funccedilatildeo psiacutequica seraacute mais efetiva no momento em que
esta funccedilatildeo estiver em desenvolvimento porque este seraacute o momento adequado para influenciar e
potencializar seu desenvolvimento em vez de ser quando uma determinada funccedilatildeo natildeo tem ainda
as bases necessaacuterias para o seu desenvolvimento ou em contrapartida quando uma funccedilatildeo jaacute estaacute
plenamente desenvolvida porque isso implicaria retomar um desenvolvimento jaacute cristalizado
desfazer processos e recuperar desvios (MELLO 2005) Diante do exposto cabe ao professor da
infacircncia considerar as regularidades do desenvolvimento infantil conhecer suas especificidades e
perceber os periacuteodos sensitivos do desenvolvimento Desse modo consideraraacute a forma de
atividade por meio da qual a crianccedila se apropria do mundo nas diferentes etapas do seu
desenvolvimento
Esse pressuposto eacute crucial para o entendimento do processo de ensino e de aprendizagem
desde a Educaccedilatildeo Infantil e assim da apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita pela crianccedila pequena
foco desse trabalho Natildeo se trata somente de oferecer grande quantidade de informaccedilotildees porque
isso natildeo garante a apropriaccedilatildeo dessas informaccedilotildees O que se enfatiza satildeo as relaccedilotildees que vatildeo
estabelecer com essas informaccedilotildees e ainda a maneira pela qual estas relaccedilotildees seratildeo mediadas
pelo professor ou por outros
Nesse contexto o processo de ensino e de aprendizagem eacute um diaacutelogo que se estabelece
entre a crianccedila e a cultura Ela natildeo se apropriaraacute da leitura e da escrita somente porque pais e
professores desejam ou porque os professores datildeo tarefas de reproduccedilatildeo repetitiva de grafar as
letras e de oralizaacute-las mas porque poderatildeo se apropriar da leitura e da escrita quando fizerem
sentido para elas quando conviverem com esses atos de forma dialoacutegica e dinacircmica quando o
resultado responde a uma necessidade criada
Nesses processos de ensino aprendizagem e de desenvolvimento entende-se que o sujeito
aprende historicamente num dado contexto cultural dentro das condiccedilotildees de vida e de educaccedilatildeo
de que participa (LEONTIEV 1988) e nas relaccedilotildees que estabelece com o outro porque se
constitui nessa relaccedilatildeo Essa afirmaccedilatildeo na perspectiva da Teoria Histoacuterico-Cultural estaacute em
consonacircncia com a concepccedilatildeo bakhtiniana Bakhtin (1992) esclarece que o sujeito se constitui
socialmente por meio de suas interaccedilotildees e de seus diaacutelogos O princiacutepio baacutesico da filosofia
71
bakhtiniana se encontra nessa proposiccedilatildeo ou seja a de o sujeito se constituir na relaccedilatildeo com o
outro
Ao abordar neste trabalho o pressuposto de que as relaccedilotildees com a escrita devem ser
dialoacutegicas e dinacircmicas me apoio na concepccedilatildeo de diaacutelogo para Bakhtin e seu ciacuterculo 8
23 Aspectos da teoria bakhtiniana para se pensar o ensino da liacutengua
A palavra diaacutelogo eacute comumente usada para designar uma determinada forma
composicional em narrativas escritas representando a conversa dos personagens ou ainda para
designar a sequecircncia de fala dos personagens no texto dramaacutetico bem como o desenrolar da
conversaccedilatildeo na interaccedilatildeo face a face (FARACO 2009 p 60) Bakhtin e seu ciacuterculo natildeo assumem
essas posiccedilotildees O diaacutelogo concreto (a conversaccedilatildeo cotidiana a discussatildeo cientiacutefica o debate
poliacutetico entre outros) as relaccedilotildees entre reacuteplicas de tais diaacutelogos satildeo apenas tipos mais simples e
mais visiacuteveis de relaccedilotildees dialoacutegicas mas essas relaccedilotildees natildeo coincidem com as relaccedilotildees entre as
reacuteplicas do diaacutelogo concreto ndash ldquoelas satildeo muito mais amplas mais variadas e mais complexasrdquo
(BAKHTIN 19591960 p 124 apud FARACO 2009 p 61)
As relaccedilotildees dialoacutegicas satildeo relaccedilotildees entre iacutendices sociais de valor que constituem parte
inerente de todo enunciado entendido natildeo mais como unidade da liacutengua mas como unidade da
interaccedilatildeo social ldquonatildeo como um complexo de relaccedilotildees entre palavras mas como um complexo de
relaccedilotildees entre pessoas socialmente organizadasrdquo (FARACO 2009 p 66)
Eacute nesse encontro do eu com o outro que o sujeito se constitui Eacute na relaccedilatildeo do sujeito com
os gecircneros do discurso com o professor com seus pares com a cultura que a crianccedila pequena
inicia esse processo de apropriaccedilatildeo da liacutengua Eacute na alteridade que o sujeito se reconhece como
tal ldquoque nos potildee diante da inescapaacutevel buscaencontro com o Outro desde o bdquooutro-de-mim‟ ateacute
o Outro que bdquonatildeo sou eu‟ (MIOTELLO 2012 p 12)
O ser se reflete no outro refrata-se A partir do momento que o indiviacuteduo se
constitui ele tambeacutem se altera constantemente E esse processo natildeo surge de
sua proacutepria consciecircncia eacute algo que se consolida socialmente atraveacutes das
8 Segundo Faraco (2009 p 13) por ciacuterculo de Bakhtin entende-se um grupo de intelectuais (boa parte nascida por
volta da metade de 1890) que se reuniu regularmente de 1919 a 1929 primeiro em Nevel e Vitebsk e depois em Satildeo
Petersburgo (agrave eacutepoca rebatizada de Leningrado) Esse grupo era constituiacutedo por pessoas de diversas formaccedilotildees
interesses intelectuais e atuaccedilotildees profissionais que se dedicaram ao estudo de diferentes temas principalmente
relacionados agrave filosofia e agrave linguagem
72
interaccedilotildees das palavras dos signos Constituiacutemo-nos e nos transformamos
sempre atraveacutes do outro Eacute isso tambeacutem que move a liacutengua (GRUPO DE
ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO DISCURSO 2009 p13 grifos dos
autores)
O trabalho ora apresentado busca compreender esse processo inicial de apropriaccedilatildeo da
leitura e da escrita pelas crianccedilas de cinco e seis anos e coloca-as em contato direto com textos
quer seja em situaccedilotildees de leitura quer seja em situaccedilotildees de escrita e nesse contexto os textos
lidos e re-criados sempre tinham um destinataacuterio real o outro
Esse processo de participaccedilatildeo da crianccedila na cultura escrita e de apropriaccedilatildeo da liacutengua
materna ocorreu dentro de um trabalho pedagoacutegico intencionalmente planejado com os gecircneros
discursivos Os gecircneros do discurso satildeo ldquotipos relativamente estaacuteveis de enunciadosrdquo que
produzidos nas diferentes esferas de utilizaccedilatildeo da liacutengua organizam o discurso em outras
palavras em cada esfera de atividade social os falantes utilizam a liacutengua de acordo com gecircneros
especiacuteficos (BAKHTIN 2003) Sem eles a comunicaccedilatildeo seria praticamente impossiacutevel pois a
liacutengua soacute pode se manifestar pelo gecircnero Como a variedade da atividade humana eacute cada vez
maior a diversidade dos gecircneros tambeacutem se amplia e se transforma na medida em que essa
atividade se desenvolve e se amplia (BAKHTIN 2003)
Desse modo os gecircneros discursivos satildeo estaacuteveis e mutaacuteveis ao mesmo tempo Satildeo
estaacuteveis porque conservam traccedilos que os identificam e satildeo mutaacuteveis porque estatildeo em constante
transformaccedilatildeo pois se datildeo nas trocas na relaccedilatildeo com o outro e se alteram a cada vez que satildeo
empregados a ponto de haver casos em que um gecircnero se transforma em outro (SOBRAL 2009
p 115)
Haacute alguns aspectos dentro do caraacuteter estaacutevel-dinacircmico dos gecircneros que precisam ser
considerados O gecircnero possui uma loacutegica orgacircnica em outras palavras natildeo haacute algo que venha
de fora se impor a ele mas uma ldquoaccedilatildeo generificante criadora de suas caracteriacutesticas como
gecircnerordquo (SOBRAL 2009 p 117) O gecircnero tem certo ldquotomrdquo certa ldquolinguagemrdquo que natildeo devem
ser confundidos com foacutermulas fixas ainda que alguns gecircneros possam ser ldquoformulaicosrdquo
(SOBRAL 2009 p 117) Aleacutem disso a loacutegica dos gecircneros natildeo eacute abstrata porque se manifesta
em cada variedade nova em cada nova obra e portanto o gecircnero natildeo eacute riacutegido em sua
normatividade mas dinacircmico e concreto ldquoO gecircnero traz o novo (a singularidade a
impermanecircncia) articulado ao mesmo (a generalidade a permanecircncia) porque natildeo eacute uma
73
abstraccedilatildeo normativa mas um vir-a-ser concreto cujas regras supotildeem uma dada regularidade e natildeo
uma fixidezrdquo (SOBRAL 2009 p 117-118)
Essas ideias sobre o conceito de gecircneros do discurso se vinculam ao movimento com uma
percepccedilatildeo global da arquitetocircnica bakhtiniana em que eacute desenvolvivda a compreensatildeo sobre
totalidade-estabilidade em que a relativa estabilidade de um gecircnero estaria relacionada a sua
historicidade passada (memoacuteria do passado) Os enunciados e seus tipos ou seja os gecircneros
discursivos ldquosatildeo o retrato dos usos jaacute feitos anteriormente em vaacuterias atividades humanas e satildeo a
memoacuteria e o acuacutemulo da histoacuteria de suas utilizaccedilotildeesrdquo (GRUPO DE ESTUDOS DOS GEcircNEROS
DO DISCURSO 2009 p 50 grifos dos autores) Disso depreende-se que os enunciados se
constituem gradativamente em tipos e formas mais consistentes para uso em esferas especiacuteficas
com estilos especiacuteficos temas especiacuteficos e assim se compotildeem com formas especiacuteficas Esses
enunciados relativamente estaacuteveis se constituem ainda ldquocomo lugar de emergecircncia dos sentidos
histoacutericos das comunicaccedilotildees existentes em determinados contextos e com determinadas
significaccedilotildeesrdquo e tambeacutem mantecircm vivas aquelas significaccedilotildees jaacute socialmente consolidadas
(GRUPO DE ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO DISCURSO 2009 p 50)
O conceito de gecircnero discursivo dentro da concepccedilatildeo bakhtiniana requer ainda que se
desenvolva a compreensatildeo sobre a singularidade-instabilidade Essa compreensatildeo se vincula agrave
possibilidade de os gecircneros estarem sempre em movimento se atualizarem se modificarem Isso
se deve ao fato de os gecircneros serem criados nas relaccedilotildees sociais e de o sujeito ter sempre uma
atitude responsiva e de esse trabalho responsivo instabilizar o gecircnero a cada vez que determinado
enunciado eacute empregado em determinada atividade humana Afirma-se ainda que
Esse movimento natildeo nega a historicidade do sentido nem o tipo e a forma jaacute
relativamente estabilizada mas a movimenta para novas possibilidades
instaurando novas formas e novos tipos de enunciados relacionando com tipos e
formas que satildeo usualmente empregados em outras atividades humanas esse
movimento relaciona gecircneros joga um dentro de outro obriga enunciados a
frequumlentar novas atividades e significaacute-las e ao mesmo tempo renova o gecircnero
dentro do qual se enuncia Esse trabalho dialoacutegico responsivo centrado na
alteridade estaacute sempre prenhe de perspectivas e buscas por completudes de
sentidos de identidades de relaccedilotildees sociais sempre inconclusas Esse trabalho
responsivo instaura a renovaccedilatildeo do gecircnero veste novos temas sobre
significaccedilotildees histoacutericas dos enunciados e das palavras faz com que o estilo do
gecircnero se conflite com o estilo individual e vice-versa reconfigura sua
composiccedilatildeo formal (GRUPO DE ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO
DISCURSO 2009 p 51-52)
74
No percurso que vai do dialogismo ao gecircnero haacute uma mesma concepccedilatildeo diferenccedila ndash
semelhanccedila mudanccedila ndash estabilidade estatildeo em constante tensatildeo no aqui e agora e ao longo do
tempo uma vez que para o Ciacuterculo no mundo humano o ldquoabsolutamente novordquo eacute tatildeo
inconcebiacutevel quanto o ldquoabsolutamente mesmordquo O ldquoabsolutamente novordquo pressuporia sujeitos que
conhecessem tudo o que existe para entatildeo criaacute-lo ou identificaacute-lo O ldquoabsolutamente mesmordquo
pressuporia a total imutabilidade do mundo humano a proacutepria indistinccedilatildeo Dessa forma a
articulaccedilatildeo entre repetiacutevel e o irrepetiacutevel a atividade em geral e os atos especiacuteficos dessa
atividade presentes na concepccedilatildeo do ato percorrem todo esse percurso do dialogismo ao gecircnero
(SOBRAL 2009)
Dentro dessa perspectiva cabe lembrar que o gecircnero eacute uma categoria discursiva da ordem
do enunciado Bakhtin (2003 p 268) afirma que
Os enunciados e seus tipos isto eacute os gecircneros discursivos satildeo correias de
transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum
fenocircmeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua
sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e
elaboraccedilatildeo de gecircneros e estilos
Essa afirmaccedilatildeo se encontra em consonacircncia com a tese segundo a qual as crianccedilas se
apropriam da liacutengua escrita por meio dos gecircneros discursivos quando o professor apresenta a elas
os gecircneros de modo a levaacute-las a interagir e a estabelecer relaccedilotildees intensas com eles Essa tese se
fundamenta na premissa de que ldquoo emprego da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e uacutenicos proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humanardquo (BAKHTIN 2003 p 261) A comunicaccedilatildeo humana soacute eacute possiacutevel porque dominamos os
gecircneros empregados naquela atividade verbal ldquoE quanto mais os dominamos mais livres nos
sentimos no seu uso ndash um uso que eacute tambeacutem renovaccedilatildeo pelos diaacutelogos com outros gecircneros ndash e
nas construccedilotildees de sentidos possiacuteveis que nosso projeto de dizer possibilita no jogo com o outro
que tambeacutem se comunica comigordquo (GRUPO DE ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO DISCURSO
2009 p 52)
Ao considerar esses pressupostos afirma-se que eacute desde a Educaccedilatildeo Infantil que a
apresentaccedilatildeo e o ensino de diferentes gecircneros discursivos podem ocorrer de forma dialoacutegica uma
vez que as crianccedilas satildeo capazes de aprender a ter uma atitude responsiva de refletir refratar ou
refutar aquilo que veem ouvem percebem pensam e essa atitude diante do conhecimento da
75
leitura e da escrita contribuiraacute para que elas se constituam como leitoras e re-criadoras de textos
As crianccedilas na pequena infacircncia satildeo capazes de estabelecer relaccedilotildees com os gecircneros seus
elementos constitutivos para iniciarem o processo de apropriaccedilatildeo da liacutengua de forma interativa
Para maior compreensatildeo dos dados analisados a partir do proacuteximo item deste capiacutetulo vale
ainda esclarecer que para Bakhtin (2003) os gecircneros se dividem em dois grupos gecircneros
primaacuterios e gecircneros secundaacuterios Os gecircneros primaacuterios satildeo considerados mais simples em sua
composiccedilatildeo satildeo mais cotidianos ldquose formam nas condiccedilotildees da comunicaccedilatildeo discursiva
imediatardquo (BAKHTIN 2003 p263) Os gecircneros secundaacuterios satildeo mais complexos mais
elaborados e ldquosurgem nas condiccedilotildees de um conviacutevio cultural mais complexo e relativamente mais
desenvolvido e organizadordquo (BAKHTIN 2003 p 263) e se estabelecem ldquocomo relacionais entre
si numa troca infinita de sentidos e renovando continuamente os gecircnerosrdquo (GRUPO DE
ESTUDOS DOS GEcircNEROS DO DISCURSO 2009 p 52) Os gecircneros discursivos secundaacuterios
em seu processo de formaccedilatildeo incorporam e reelaboram os diversos gecircneros primaacuterios Esses
gecircneros primaacuterios por sua vez integram os complexos ldquoaiacute se transformam e adquirem um
caraacuteter especial perdem o viacutenculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais
alheiosrdquo (BAKHTIN 2003 p 263)
Os gecircneros discursivos possuem trecircs elementos ndash o conteuacutedo temaacutetico o estilo e a
construccedilatildeo composicional Esses trecircs elementos estatildeo indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e satildeo igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da
comunicaccedilatildeo (BAKHTIN 2003) O conteuacutedo temaacutetico ou tema natildeo eacute simplesmente ldquoassuntordquo ou
ldquotoacutepicordquo mas sentido concreto contextual Pode existir um nuacutecleo comum que permanece em
todos os usos mas os contextos as situaccedilotildees de uso o alteram imprimindo a uma determinada
palavra novos sentidos A construccedilatildeo composicional ou forma de composiccedilatildeo ldquovinculada com a
forma arquitetocircnica que eacute determinada pelo projeto enunciativo do locutor natildeo se confunde com
um artefato ou forma riacutegida porque pode se alterar de acordo com as alteraccedilotildees dos projetos
enunciativosrdquo (SOBRAL 2009 p 118) O estilo eacute um aspecto do gecircnero que indica sua
mutabilidade ldquoEle eacute a um soacute tempo expressatildeo da comunicaccedilatildeo discursiva especiacutefica do gecircnero e
expressatildeo pessoal mas natildeo subjetiva do autor ao criar uma nova obra no acircmbito de um gecircnerordquo
(SOBRAL 2009 p 118)
Diante desses pressupostos apresento a anaacutelise dos discursos proferidos por professores e
crianccedilas na tentativa de estabelecer um diaacutelogo entre eles Por meio da anaacutelise dos registros dos
76
discursos das accedilotildees observadas e das atitudes proponho-me a interpretar e a complementar o que
os dados aparentam revelar
24 O que eacute aprender a ler e a escrever na Educaccedilatildeo Infantil Os conceitos das professoras
Ao se olhar sobre o processo de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita com as
crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil e sobre a sua inserccedilatildeo e participaccedilatildeo na cultura escrita percebe-se
que os conceitos que os professores tem de crianccedila de infacircncia de leitura e de escrita direcionam
as praacuteticas educativas nas escolas e nas instituiccedilotildees dedicadas agrave educaccedilatildeo de zero a seis anos
Tais conceitos orientam o fazer pedagoacutegico dos professores embora nem sempre os professores
estejam cientes disso Esse fato revela uma ampliaccedilatildeo na garantia de se promover situaccedilotildees de
aprendizagem mais adequadas e necessaacuterias ou do contraacuterio uma limitaccedilatildeo nessas possibilidades
quando essas praacuteticas ficam enraizadas em conceitos que determinam uma educaccedilatildeo destituiacuteda da
intencionalidade que criaria o interesse de aprender
A seguir apresento alguns registros desses conceitos Como exposto no capiacutetulo I as
entrevistas foram com professoras dos sujeitos da pesquisa nos quatro anos anteriores da turma
de Infantil II de 2010 Seratildeo designadas da seguinte forma PB (Professora do Berccedilaacuterio) PM I
(Professora do Maternal I) PM II (Professora do Maternal II) PI I (Professora do Infantil I) A
pesquisadora seraacute designada somente pela letra P
Ao serem questionadas sobre em qual momento julgam mais adequado iniciar o processo
de ensino de aprendizagem da leitura e da escrita com as crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil assim se
manifestam
PB
P PB em que momento da Educaccedilatildeo Infantil vocecirc considera que seja mais
importante ou mais adequado na verdade para iniciar o ensino ou aprendizagem
da leitura e da escrita E por quecirc
PB seria no processo ou no comeccedilo
P na Educaccedilatildeo Infantil em que momento vocecirc acha que
PB momento com que idade vocecirc quer falar
P eacute ou idade ou que turma poderia acontecer de uma forma
PB somente no Infantil II ou o antigo Preacute III porque o antigo Preacute III eacute melhor
para trabalhar isso que eles jaacute estavam bem maduros neacute
P eles jaacute tinham seis anos
PB tinha seis anos
77
P eles completavam com a gente (refere-se agraves crianccedilas que completavam seis
anos ainda Educaccedilatildeo Infantil)
PB entatildeo vocecirc ia passando uma coisa vocecirc via a resposta neacute agora cinco anos
tem crianccedila que natildeo estaacute maduro psicologicamente neacute elas precisam de algum
tempinho a mais entatildeo eu acho que aiacute tem um pouquinho neacute demora um
pouquinho mais natildeo concordo muito natildeo eu acho que com seis anos que
deve comeccedilar a gente pode comeccedilar antes elas conhecem as letras mas natildeo
eacute uma coisa forccedilada eacute uma coisa natural que vem florescendo neacute mas mais
mesmo eacute com seis anos
PB eacute professora haacute treze anos e sua experiecircncia docente sempre foi na Educaccedilatildeo Infantil
Alguns dados revelam que para PB o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita satildeo mais
adequados a partir do Infantil II (crianccedilas de 5 anos) ou do antigo Preacute III (crianccedilas de seis anos)
Dessa forma PB parece entender que o ensino e a aprendizagem soacute eacute possiacutevel de serem iniciados
a partir dessas turmas nessas idades ou seja que o trabalho pedagoacutegico com a leitura e a escrita
se faz mais eficaz quando a crianccedila tem essas idades Isso se verifica quando diz ldquo somente no
Infantil II ou o antigo Preacute III porque o antigo Preacute III eacute melhor para trabalhar isso que eles
estavam mais maduros neacuterdquo Essa fala denota restriccedilatildeo da possibilidade do trabalho pedagoacutegico
com a leitura e a escrita nos primeiros anos da crianccedila pequena na escola ainda que esse trabalho
seja orientado de forma a respeitar as regularidades do desenvolvimento infantil e seus interesses
especiacuteficos Pode ainda limitar por meio das situaccedilotildees educativas propostas a possibilidade de
colocar a crianccedila em contato com a cultura escrita de forma ativa e de criar nela a necessidade de
ler e de escrever
A ideia de estar ldquomais madurosrdquo traz em seu bojo a compreensatildeo de que a crianccedila precisa
estar ldquoprontardquo para aprender e remete ao princiacutepio de que existe a necessidade de maturaccedilatildeo de
estar biologicamente preparada para essas aquisiccedilotildees PB reitera o conceito de que a crianccedila tem
que estar madura para aprender quando revela ldquo agora cinco ou seis anos tem crianccedila que natildeo
estaacute madura neacute elas precisam de um tempinho a maisrdquo e ainda completa ldquoeu acho que com
seis anos que deve comeccedilarrdquo
Essas ideias natildeo se coadunam com os pressupostos teoacutericos defendidos nesse trabalho de
acordo com a Teoria Histoacuterico-Cultural preconizada por Vygotski e seus colaboradores Sobre
isso Vygotski esclarece que
A tarefa que se coloca hoje para a psicologia eacute a de captar a peculiaridade real da
crianccedila em toda sua plenitude e riqueza de expansatildeo e apresentar o positivo de
78
sua personalidade Entretanto o positivo soacute aparece se modificarmos
radicalmente a concepccedilatildeo de desenvolvimento infantil e se compreendermos que
se trata de um complexo dialeacutetico que se caracteriza por uma complicada
periodicidade pela desproporccedilatildeo no desenvolvimento das diferentes funccedilotildees
pelas metamorfoses ou transformaccedilatildeo qualitativa de umas formas em outras um
entrelaccedilamento complexo de processos evolutivos e involutivos o complexo
entrecruzamento de fatores externos e internos um complexo processo de
superaccedilatildeo de dificuldade e de adaptaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 141 traduccedilatildeo
nossa)9
Disso decorre o conceito de que desenvolvimento infantil apresentado por PB natildeo estaacute em
concordacircncia com a concepccedilatildeo de desenvolvimento que fundamenta este trabalho Para PB o
desenvolvimento infantil e por conseguinte a aprendizagem satildeo biologicamente determinados
O desenvolvimento prepara as condiccedilotildees para a aprendizagem e nesse caso a crianccedila primeiro se
desenvolve para poder depois aprender em desenvolvimento natural
A Teoria Histoacuterico-Cultural daacute lugar agrave concepccedilatildeo da materialidade dos processos
psiacutequicos Natildeo haacute a biologizaccedilatildeo desses processos mas a materialidade deles O
desenvolvimento eacute condicionado pelas condiccedilotildees concretas de vida e educaccedilatildeo e assim o
desenvolvimento decorre de processos de aprendizagem
As ideias da professora do Maternal I (PM I) e da professora do Maternal II (PM II) no
que se refere aos conceitos sobre desenvolvimento infantil de ensino e de aprendizagem e de
crianccedila compactuam com as ideias da professora do Berccedilaacuterio (PB)
PM I
P PM I em que momento na Educaccedilatildeo Infantil vocecirc considera mais adequado o
ensino da aprendizagem da leitura e da escrita e por quecirc
PM I olha eu acho assim como eu trabalho sempre com crianccedilas pequenas
com faixa etaacuteria menor assim vocecirc fala assim Eacute ESSE O MOMENTO
P certo
PM I vocecirc vai mantendo a crianccedila em contato com a escrita com a leitura
vocecirc vai oferecendo materiais faz uma releitura (refere-se ao fato de
reconstruir a histoacuteria oralmente) vocecirc trabalha com eles a oralidade e a crianccedila
9 Trecho original da citaccedilatildeo (Vygotski 1995 p 141) La tarea que se plantea hoy diacutea a la psicologiacutea es la de captar la
peculiaridad real de la conducta del nintildeo en toda su plenitud y riqueza de expansioacuten y presentar el positivo de su
personalidad Sin embargo el positivo puede hacerse tan soacutelo en el caso de que se modifique de raiacutez la concepcioacuten
sobre el desarrollo infantil y se comprenda que se trata de un complejo proceso dialeacutectico que se distingue por una
complicada periodicidad la desproporcioacuten en el desarrollo de las diversas funciones las metamorfosis o
transformacioacuten cualitativa de unas en otras un entrelazamiento complejo de procesos evolutivos e involutivos el
complejo cruce de factores externos e internos un complejo proceso de superacioacuten de dificultades y de adaptacioacuten
79
vai aos poucos despertando o interesse e tem tambeacutem cada um tem o seu
momento neacute tem crianccedila que estaacute mais aleacutem tem crianccedila que tem o momento
dela que vai despertar cada um tem o seu momento-chave eacute agora
PM II
P em que momento da Educaccedilatildeo Infantil vocecirc considera mais adequado para o
ensino da aprendizagem da leitura e da escrita
PM II ah eu acho que no Infantil I e no Infantil II neacute porque as crianccedilas estatildeo
mais prontas jaacute daacute pra ensinar as letras palavras nomes elas jaacute
reconhecem mais raacutepido jaacute entendem melhor o que a gente ensina se bem
que a letra inicial do nome jaacute daacute pra ensinar antes no maternal mas no Infantil
II para as crianccedilas jaacute fica mais faacutecil elas relacionam a letra ao som
conseguem perceber mais isso eu ensino no maternal tambeacutem vou
mostrando trabalho muito com muacutesicas e conforme eles vatildeo respondendo eu
vou oferecendo mais vou puxando sabe Mas sem ser uma coisa que seja duro
demais pra elas
Inicialmente PM I declara que o trabalho pedagoacutegico de inserir a crianccedila na cultura escrita
acontece mesmo com as crianccedilas pequeninas quando estatildeo no Maternal I que eacute a turma em que
geralmente trabalha Isto se verifica quando enfatiza ao responder que o momento de se iniciar o
ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita na Educaccedilatildeo Infantil eacute o momento em que se estaacute
ldquoEacute ESSE O MOMENTOrdquo Admite que manteacutem a crianccedila em contato com a escrita ao oferecer
materiais ao reconstruir oralmente uma histoacuteria ao conversar sobre essa histoacuteria No entanto
conclui que cada crianccedila tem seu momento em que ela vai ldquodespertarrdquo cada crianccedila tem o seu
ldquomomento-chaverdquo
A anaacutelise desses dados sugere em contrapartida que PM I descarta as vivecircncias da crianccedila
as situaccedilotildees de leitura e de escrita intencionalmente planejadas pelo professor bem como as
mediaccedilotildees que ocorrem nesse processo como fatores que interferem decisivamente nas
aprendizagens Dessa forma para PM I as condiccedilotildees bioloacutegicas determinam o desenvolvimento
e a aprendizagem
PM II declara que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita deve ser iniciado nos
uacuteltimos anos da Educaccedilatildeo Infantil pelo fato de as crianccedilas estarem ldquomais prontasrdquo ldquojaacute entendem
melhor o que a gente ensinardquo PM II tambeacutem revela indiacutecios de como realiza seu trabalho com a
leitura e com a escrita Apoia-se em letras palavras e na relaccedilatildeo letra-som grafema e fonema ldquo
jaacute daacute pra ensinar as letras palavras nomes elas jaacute reconhecem mais raacutepidordquo E continua
mas no Infantil II para as crianccedilas fica mais faacutecil elas jaacute relacionam a letra ao som conseguem
80
perceber issordquo Essa fala remete ao conceito de leitura e de escrita como codificaccedilatildeo e
decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos e revela um conceito redutor do processo de apropriaccedilatildeo da
liacutengua
O problema natildeo reside no fato de as crianccedilas se alfabetizarem ainda na Educaccedilatildeo Infantil
mas na forma como isso eacute conduzido de forma fragmentada em que a teacutecnica se sobrepotildee agrave
criaccedilatildeo de sentidos e ao desejo de expressatildeo Parece ser justo que as crianccedilas sejam alfabetizadas
dentro de propostas pedagoacutegicas consistentes e organizadas mas eacute preciso ter clareza de que
alfabetizar natildeo eacute aprender o domiacutenio de uma teacutecnica mas ao contraacuterio eacute pocircr o sujeito no mundo
da escrita de modo que ele possa transitar pelos discursos ter condiccedilotildees de operar criticamente
com os modos de pensar e co-criar a cultura escrita (BRITTO 2005)
Ao analisar esses dados de acordo com a perspectiva teoacuterica baseada na Teoria Histoacuterico-
Cultural ressalta-se que o sujeito eacute um ser social porque todas as suas produccedilotildees humanas que se
encontram fora das pessoas e que constituem o requisito fundamental para a humanizaccedilatildeo das
novas geraccedilotildees satildeo produtos da vida social Em outras palavras ldquoo que caracteriza a atividade
humana enquanto uma atividade social natildeo eacute o fato do indiviacuteduo agir de forma imediatamente
coletiva mas sim o fato de que os elementos constitutivos da atividade satildeo objetivaccedilotildees sociaisrdquo
(DUARTE1993 p77)
Vygotsky introduziu na Psicologia a ideia de que o principal mecanismo do
desenvolvimento psiacutequico na crianccedila eacute o mecanismo da apropriaccedilatildeo das diferentes espeacutecies e
formas sociais de actividade historicamente constituiacuteda (LEONTIEV 1978 p 155) e essa
categoria se contrapotildee ao conceito de adaptaccedilatildeo e equilibraccedilatildeo para explicar o desenvolvimento
do psiquismo Para Leontiev (1978 p 320)
[] A apropriaccedilatildeo eacute um processo que tem por resultado a reproduccedilatildeo pelo
indiviacuteduo de caracteres faculdades e modos de comportamento humanos
formados historicamente Por outros termos eacute o processo graccedilas ao qual se
produz na crianccedila o que no animal eacute devido agrave hereditariedade a transmissatildeo ao
indiviacuteduo das aquisiccedilotildees do desenvolvimento da espeacutecie
Isto posto o conceito de desenvolvimento apresentado pelas professoras entrevistadas se
distancia dos pressupostos que fundamentam essa pesquisa O desenvolvimento humano e a
aprendizagem natildeo satildeo determinados pela heranccedila bioloacutegica simplesmente embora as
caracteriacutesticas bioloacutegicas hereditaacuterias da crianccedila sejam apenas a condiccedilatildeo necessaacuteria da formaccedilatildeo
81
das faculdades e funccedilotildees (LEONTIEV 1987 p 320) A anaacutelise das falas das professoras denota
ainda o conceito que possuem de crianccedila um ser passivo e incapaz quando exprimem a ideia de
que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita satildeo mais adequados quando a crianccedila estaacute
mais madura supostamente mais apta para compreender e aprender capaz de estabelecer
relaccedilotildees
A concepccedilatildeo de crianccedila defendida neste trabalho eacute a de crianccedila como ser capaz
competente ativo e sujeito de suas aprendizagens (VYGOTSKI 1995 MELLO 1997) A
crianccedila eacute desde pequena capaz de se relacionar com as pessoas com os objetos com o mundo a
sua volta
[] crianccedila como algueacutem que experimenta o mundo que se sente uma parte do
mundo desde o momento do nascimento uma crianccedila que estaacute cheia de
curiosidade cheia de desejo de viver uma crianccedila que tem muito desejo e
grande capacidade de se comunicar desde o iniacutecio da vida uma crianccedila que eacute
capaz de criar mapas para sua proacutepria orientaccedilatildeo simboacutelica afetiva cognitiva
social e pessoal Por causa de tudo isso uma crianccedila pequena pode reagir com
um competente sistema de habilidades estrateacutegias de aprendizagem e formas de
organizar seus relacionamentos (RINALDI 2002 p 76 ndash 77)
Ao se considerar as contribuiccedilotildees de Vygotskii e de estudiosos da teoria ressalta o
princiacutepio de que a apropriaccedilatildeo da escrita implica modificaccedilotildees profundas nos processos
psiacutequicos A forma como a escrita eacute apresentada desde cedo as vivecircncias com e na cultura escrita
e a relaccedilotildees que a crianccedila vai estabelecer com essa cultura satildeo cruciais nesse processo e natildeo se
devem somente ao fato de ela estar biologicamente preparada Quanto a isso Vygotskii esclarece
que
Aprender a usar uma maacutequina de escrever significa na realidade estabelecer um
certo nuacutemero de haacutebitos que por si soacutes natildeo alteram absolutamente as
caracteriacutesticas psicointelectuais do homem Uma aprendizagem deste gecircnero
aproveita um desenvolvimento jaacute elaborado e completo e justamente por isso
contribui muito pouco para o desenvolvimento geral
O processo de aprender a escrever eacute muito diferente Algumas pesquisas
demonstraram que este processo ativa uma fase de desenvolvimento dos
processos psicointelectuais inteiramente nova e muito complexa e que o
aparecimento desses processos origina uma mudanccedila radical das caracteriacutesticas
gerais psicointelectuais da crianccedila da mesma forma aprender a falar marca
uma etapa fundamental na passagem da infacircncia para a pueriacutecia (VYGOTSKII
1988 p 116)
82
A aprendizagem da escrita provoca um salto qualitativo no desenvolvimento da
inteligecircncia de quem aprende a ler e a escrever uma vez que essa aprendizagem amplia e
desenvolve os mecanismos cerebrais usados para pensar porque a escrita eacute um instrumento
cultural complexo
PB aparenta revelar que a inserccedilatildeo da crianccedila na cultura escrita por meio de um trabalho
pedagoacutegico pode comeccedilar antes que tenha cinco ou seis anos como se verifica nessa fala ldquo a
gente (refere-se aos professores) pode comeccedilar antes elas conhecem as letras mas natildeo eacute uma
coisa forccedilada eacute uma coisa natural que vem florescendo neacute Mas mais mesmo eacute com seis
anosrdquo Se por um lado essas falas de PB aparentam reconhecer que a Educaccedilatildeo Infantil natildeo eacute
responsaacutevel por alfabetizar quando afirma que ldquonatildeo eacute uma coisa forccedilada eacute uma coisa naturalrdquo
por outro lado essa espontaneidade e naturalidade natildeo podem implicar uma visatildeo simplista de
deixar que a crianccedila aprenda sozinha no tempo em que estiver com maturidade suficiente para tal
A crianccedila na escola da infacircncia tem necessidade de viver experiecircncias que contribuam para que
estabeleccedila relaccedilotildees positivas com o conhecimento e crie para si novas necessidades inclusive a
de ler e de escrever (MELLO 2005)
A professora do Infantil I (PI I) tambeacutem eacute professora do Ensino Fundamental do 1ordm ao 5ordm
ano haacute vinte e dois anos e meio (no periacuteodo da manhatilde) e possui cinco anos e meio de experiecircncia
docente na Educaccedilatildeo Infantil (no periacuteodo da tarde) Das professoras participantes esta eacute a uacutenica
que possui experiecircncia em outro segmento da educaccedilatildeo no Ensino Fundamental
PI I
P que momento da Educaccedilatildeo Infantil vocecirc considera mais adequado para o
ensino da aprendizagem da leitura e da escrita
PI I que momento
P Eacute
PI I eu acho jaacute no Infantil I daacute porque que nem eu falei pra vocecirc eu trabalho as
muacutesicas e eles jaacute estatildeo procurando as letrinhas eles jaacute sabem a palavrinha agraves
vezes eu falo pra eles onde estaacute escrito o pintinho jaacute tem crianccedila que jaacute fala
que comeccedila com letra P ela proacutepria jaacute acha o siacutembolo da palavra jaacute percebe
pelo espaccedilo que naquele espacinho termina que cabe a palavra antes de eu
mostrar na lousa de eu grifar com eles tecircm crianccedila que encontra entatildeo eu
acho que desde o Infantil I jaacute daacute neacute eles jaacute comeccedilam a ver diferenccedilas que tem
letras iguais nos nomes o som do nome Gui comeccedila com tal letra acho que jaacute
daacute jaacute eacute o iniacutecio neacute quando eles vatildeo ler que nem eu falei pra vocecirc quando eu
vou pocircr a muacutesica na lousa jaacute vatildeo com o dedinho cantando e vai assim o dedinho
(faz o gesto no ar e movimenta o dedo indicador em linha reta da esquerda para
a direita como a indicar leitura) entatildeo jaacute estaacute iniciando desde pequenos jaacute
83
comeccedilam os livros de alfabetizaccedilatildeo do Maternal II do Maternal Ieles jaacute estatildeo
tendo contato com a escrita neacute
P certo
PI I eu acho que tudo jaacute comeccedila a aprendizagem dali neacute minha sobrinha tem
um ano e meio e coloco-a no computador jaacute a coloco na letrinha como ela
adora BARBIE (nome de uma boneca) o site da BARBIE ela procura qual
eacute o B no teclado e comeccedilo perguntando qual eacute o B qual que eacute o B ela faz
assim com o dedo (faz o gesto indicando que a crianccedila passa o dedo sobre cada
letra no teclado do computador) procura e aperta o B entatildeo acho que natildeo tem
uma idade definida mas eu acho que o trabalho em si seria no Infantil II mas
pode comeccedilar firme no Infantil I aquele trabalho de procurar letra na muacutesica
eu acho que eacute um eacute mais eacute faacutecil neacute
PI I aparenta revelar uma proximidade de conceito de desenvolvimento infantil com as
demais professoras entrevistadas ao concordar com o fato de a crianccedila de cinco e seis anos estar
mais preparada para iniciar o processo de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita
Contudo tal ensino parece se dar por meio do ensino de letras e palavras Isso se verifica quando
afirma ldquoporque que nem eu falei pra vocecirc eu trabalho as muacutesicas e eles jaacute estatildeo procurando as
letrinhas eles jaacute sabem a palavrinha agraves vezes eu falo pra eles onde estaacute escrito o pintinho jaacute
tem crianccedila que jaacute fala que comeccedila com letra P ela proacutepria jaacute acha o siacutembolo da palavrardquo
O discurso apresentado por PI I sugere ainda que nesse trabalho de ensino de letras e
palavras haacute o ensino da relaccedilatildeo letrandashsom a identificaccedilatildeo de palavras por meio de ldquopistasrdquo como
o proacuteprio tamanho das palavras e dos espaccedilos correspondentes a elas num texto lacunado ou seja
o texto (muacutesica) possui espaccedilos para que sejam escritas as palavras que faltam no original
memorizado pelas crianccedilas Esses espaccedilos ndash lacunas ndash tecircm o mesmo tamanho da palavra para que
a crianccedila encontre com maior facilidade qual palavra deveraacute ser escrita em cada respectivo
espaccedilo Assim como PI I explica ldquojaacute percebe pelo espaccedilo que naquele espacinho termina que
cabe a palavra antes de eu mostrar na lousa de eu grifar com eles tecircm crianccedila que encontra
entatildeo eu acho que desde o Infantil I jaacute daacute neacute eles jaacute comeccedilam a ver diferenccedilas que tem letras
iguais nos nomes o som do nome Gui comeccedila com tal letra acho que jaacute daacute jaacute eacute o iniacutecio neacute
quando eles vatildeo ler que nem eu falei pra vocecirc quando eu vou pocircr a muacutesica na lousa jaacute vatildeo com
o dedinho cantando e vai assim o dedinho (faz o gesto no ar e movimenta o dedo indicador em
linha reta da esquerda para a direita como a indicar leitura)rdquo
PI I aborda o uso de livros de alfabetizaccedilatildeo desde o Maternal I e Maternal II e aponta que
o uso desses materiais eacute uma forma de colocar as crianccedilas em contato com a escrita Cabe
lembrar que a unidade em que foi realizada a entrevista natildeo adota livros didaacuteticos ou apostilas
84
No entanto a professora faz uso desses materiais na elaboraccedilatildeo dos conteuacutedos em seu trabalho
pedagoacutegico
Segundo Arena (1992) a concepccedilatildeo de linguagem interfere na escolha dos materiais e
estrateacutegias utilizadas no ensino por essa razatildeo eacute necessaacuterio estabelecer uma coerecircncia entre a
concepccedilatildeo de linguagem de educaccedilatildeo e de crianccedila uma vez que as accedilotildees atitudes e concepccedilotildees
do professor refletem-se na qualidade de intervenccedilatildeo (mediaccedilatildeo) nesse processo Sendo assim
Arena (1992 p 75 ndash 76) afirma que
Eacute possiacutevel colocar para a crianccedila o signo linguiacutestico e a enunciaccedilatildeo linguiacutestica
plenos de significaccedilatildeo contextualizados e marcados pela vivecircncia Essa
aproximaccedilatildeo pode restituir ao ensino e agrave aprendizagem da liacutengua a proacutepria
liacutengua antes destruiacuteda fragmentada e reduzida agrave sinalidade pelos ldquotextosrdquo das
cartilhas (ARENA 1992 p 80 ndash 81)
PI I continua a esclarecer que natildeo haacute uma idade determinada para que o ensino da leitura e
da escrita seja iniciado no entanto exemplifica sua opiniatildeo com a situaccedilatildeo de sua sobrinha de
um ano e meio A ela ensina a procurar a letra inicial do nome da personagem da boneca Barbie
no teclado do computador quando visita o site Mas reafirma que o ensino sistemaacutetico da escrita
e da leitura deve ocorrer mesmo a partir do Infantil II ldquomas eu acho que o trabalho em si seria
no Infantil II mas pode comeccedilar firme no Infantil I aquele trabalho de procurar letra na
muacutesica eu acho que eacute um eacute mais eacute faacutecil neacuterdquo
Esses discursos proferidos pelas professoras tambeacutem revelam o conceito de ensino da
liacutengua e de linguagem que subsidiam as suas praacuteticas na Educaccedilatildeo Infantil Reportam-se sempre
ao ensino de letras e palavras mas natildeo tratam em seu trabalho pedagoacutegico no que se refere ao
ensino da liacutengua propriamente da sua utilizaccedilatildeo da leitura e da re-criaccedilatildeo de textos Sobre isso
ao recorrer agraves contribuiccedilotildees de Vygotski (1995) e Bakhtin (1992) depreende-se que ldquoo fato de se
acreditar que primeiro eacute preciso que as crianccedilas aprendam a sinalidade da linguagem para
somente apoacutes essa etapa aprender a trataacute-la como signo eacute apenas incorrer contra a proacutepria
linguagem mas com a proacutepria loacutegica dos leitores aprendizesrdquo (CRUVINEL 2010 p 129)
Para Bakhtin (1992) a liacutengua eacute viva dinacircmica e se transforma constantemente por causa
de sua historicidade do uso cotidiano e portanto natildeo pode ser separada do fluxo da
comunicaccedilatildeo verbal A liacutengua em sua totalidade concreta viva em seu uso real tem a
propriedade de ser dialoacutegica Desse modo a linguagem eacute fruto da interaccedilatildeo verbal entre os
85
sujeitos em outras palavras a relaccedilatildeo entre os interlocutores funda a linguagem nas trocas e na
atitude responsiva do outro
A teoria da enunciaccedilatildeo de Bakhtin ressalta a produccedilatildeo da linguagem na perspectiva da
enunciaccedilatildeo e a natureza social da situaccedilatildeo de produccedilatildeo de discursos ldquoNesse lugar os feixes de
sentidos constroem-se dialogam e disputam espaccedilo instaurando-se como signos ideoloacutegicosrdquo
(GOULART 2006) O outro eacute parte constitutiva da situaccedilatildeo social de enunciaccedilatildeo e atua de forma
que o sujeito tambeacutem seja parte constitutiva dessa organizaccedilatildeo Nessa perspectiva o diaacutelogo eacute
condiccedilatildeo fundamental para que se conceba a linguagem Bakhtin concebe o dialogismo como o
princiacutepio constitutivo da linguagem e a condiccedilatildeo do sentido do discurso (BARROS 2003 p 2)
Independentemente de sua dimensatildeo todos os enunciados no processo de comunicaccedilatildeo
satildeo dialoacutegicos Existe neles uma dialogizaccedilatildeo interna da palavra que eacute perpassada sempre pela
palavra do outro e eacute sempre e inevitavelmente tambeacutem a palavra do outro Para constituir um
discurso o enunciador considera o discurso de outrem que estaacute presente no seu proacuteprio Por isso
todo discurso eacute ocupado atravessado pelo discurso alheio O dialogismo eacute caracterizado pelas
relaccedilotildees de sentido que se estabelecem entre dois enunciados (FIORIN 2006 p 19) A realidade
eacute sempre mediada pela linguagem ou seja o real se apresenta pra noacutes sempre semioticamente
linguisticamente Com relaccedilatildeo a isso
Um objeto qualquer do mundo interior ou exterior mostra-se sempre perpassado
por ideias gerais por pontos de vista por apreciaccedilotildees dos outros daacute-se a
conhecer para noacutes desacreditado contestado avaliado exaltado categorizado
iluminado pelo discurso alheio Natildeo haacute nenhum objeto que natildeo apareccedila cercado
envolto embebido em discursos Por isso todo discurso que fale de qualquer
objeto natildeo estaacute voltado para a realidade em si mas para os discursos que a
circundam Por conseguinte toda palavra dialoga com outras palavras
constituindo-se a partir de outras palavras estaacute rodeada de outras palavras
(FIORIN 2006 p 20)
Essas afirmaccedilotildees esclarecem que na teoria bakhtiniana natildeo satildeo as unidades da liacutengua que
satildeo dialoacutegicas mas os enunciados ldquoAs unidades da liacutengua satildeo os sons as palavras e as oraccedilotildees
enquanto os enunciados satildeo as unidades reais da comunicaccedilatildeordquo (FIORIN 2006 p 20) As
unidades da liacutengua satildeo repetiacuteveis satildeo fechadas e acabadas em si mesmas os enunciados satildeo
irrepetiacuteveis satildeo acontecimentos uacutenicos que a cada vez possui um acento uma apreciaccedilatildeo uma
entonaccedilatildeo proacuteprios
86
O que diferencia um enunciado de uma unidade da liacutengua eacute que o enunciado eacute a reacuteplica de
um diaacutelogo porque cada vez que se produz um enunciado o que ocorre eacute a participaccedilatildeo de um
diaacutelogo com outros discursos e o que delimita a sua dimensatildeo eacute a alternacircncia dos sujeitos O
enunciado natildeo existe fora das relaccedilotildees dialoacutegicas ldquoNele estatildeo sempre presentes ecos e
lembranccedilas de outros enunciados com que ele conta que refuta confirma completa pressupotildee e
assim por diante Um enunciado ocupa sempre uma posiccedilatildeo numa esfera de comunicaccedilatildeo de um
dado problemardquo (FIORIN 2006 p 21)
Ao considerar neste trabalho essa premissa como fundamental para se pensar o ensino da
liacutengua materna natildeo se admite o ensino da leitura e da escrita engessado em letras siacutelabas e
palavras como supostamente apresentado pelas professoras entrevistadas A escrita eacute um
instrumento cultural usado para comunicar para informar e se informar para se lembrar de algo
importante para expressar sentimentos pensamentos accedilotildees desejos e portanto seu ensino e sua
aprendizagem implicam saber o porquecirc e o para quecirc se escreve implicam perceber desde o iniacutecio
que sua apropriaccedilatildeo eacute uma forma de humanizaccedilatildeo
Ao compreender que o ensino da liacutengua se daacute por meio de enunciados de gecircneros de
situaccedilotildees dialoacutegicas entende-se que o ensino da leitura e da escrita desde a Educaccedilatildeo Infantil
pode ocorrer de forma a provocar as crianccedilas a pensar sobre a escrita a estabelecer relaccedilotildees
intensas com ela a dialogar em situaccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo em outras palavras em situaccedilotildees
uacutenicas de comunicaccedilatildeo em que a existecircncia do outro eacute uma condiccedilatildeo
Bakhtin natildeo nega a existecircncia da liacutengua como sistema e natildeo condena seu estudo Ao
contraacuterio considera-o necessaacuterio para entender as unidades de formaccedilatildeo da liacutengua Contudo
mostra que a fonologia a morfologia ou a sintaxe natildeo explicam o seu funcionamento real
(FIORIN 2006)
Ressalta-se que
A liacutengua enquanto produto desta histoacuteria e enquanto condiccedilatildeo de produccedilatildeo da
histoacuteria presente vem marcada pelos seus usos e pelos espaccedilos sociais destes
usos neste sentido a liacutengua nunca pode ser estudada ou ensinada como um
produto acabado fechado em si mesmo de um lado porque sua ldquoapreensatildeordquo
demanda aprender no seu interior as marcas de sua exterioridade constitutiva (e
por isso se internaliza) de outro lado porque o produto histoacuterico ndash resultante do
trabalho discursivo passado ndash eacute hoje condiccedilatildeo de produccedilatildeo do presente que
tambeacutem fazendo histoacuteria participa da construccedilatildeo deste mesmo produto sempre
inacabado sempre em construccedilatildeo (GERALDI 1996 p 28)
87
Compreender a liacutengua como algo vivo em movimento que se daacute nas relaccedilotildees sociais na
interaccedilatildeo com o outro a liacutengua como produto da histoacuteria e da cultura humana que se renova e se
reconstroacutei requer pensar que o seu ensino deve considerar essa historicidade essa dinamicidade
A crianccedila desde pequena pode aprender a liacutengua escrita em seu funcionamento vivenciar
situaccedilotildees de uso em que seja criada a necessidade de iniciar esse processo de inserccedilatildeo e de
participaccedilatildeo na cultura escrita A crianccedila desde pequena pode conviver com os textos reais que
condizem com seus interesses com sua curiosidade que criam cada vez mais a necessidade de
aprender o que descarta a possibilidade do uso de textos descontextualizados elaborados com a
finalidade de ensinar a crianccedila a ler e a escrever em que a repeticcedilatildeo de letras siacutelabas e palavras eacute
privilegiada
Outro aspecto abordado nas entrevistas foi o de entender como as professoras percebem
que as crianccedilas jaacute sabem ler e escrever e quais as manifestaccedilotildees das crianccedilas denotam isso
PB
P como que vocecirc chega agrave conclusatildeo que uma crianccedila sabe ler e escrever quais
satildeo as manifestaccedilotildees que essa crianccedila apresenta que vocecirc fala nossa estaacute
lendo e escrevendo o que vocecirc observa que te garante que aquela crianccedila jaacute
aprendeu a ler e a escrever
PB lendo alguma coisa mas geralmente crianccedila dessa idade comeccedila a ler
coisas que estatildeo em placas mostrando eacute cartazes sabe Eles passam e
comeccedilam a ler e falam pra vocecirc OLHA estaacute escrito natildeo sei o que olha laacute
estaacute sol entatildeo vocecirc jaacute vai percebendo que eles estatildeo lendo neacute e escrevendo
uma hora eles vatildeo escrever mesmo ou uma muacutesica ou uma coisa ateacute mesmo na
areia agraves vezes eles escrevem geralmente os maiores neacute eacute o nome
principalmente o nomeconsegue neacute
P comeccedila por aiacute
PB eacute mas daiacute natildeo seria leitura e nem escrita tambeacutem seria somente do
nome mas eacute mais pra frente que eles fazem neacute
P ta normalmente comeccedila escrever coisas assim produzir um texto maior
que olha
PB que jaacute deu neacute que ele consiga ler e entender entatildeo vocecirc pode perguntar
que ele natildeo vai te responder
PM I
P e pra vocecirc como que vocecirc chega agrave conclusatildeo de que uma crianccedila sabe ler e
escrever como que vocecirc percebe que manifestaccedilotildees essa crianccedila apresenta
que vocecirc fala essa crianccedila jaacute sabe ler e escrever
PM I quando ela domina eu acho que a crianccedila comeccedila a despertar o interesse
para tudo que ela vecirc olha taacute escrito ta olha eu jaacute sei escrever tal palavra
88
quando ela comeccedila ter o interesse a dar razatildeo aquilo que taacute escrito neacute porque
chega o momento que a crianccedila desperta o divisoacuterio o concreto as figuras
uma coisa mais simboacutelica quando ela comeccedila a abstrair essa ideia ela
comeccedila juntar as letrinhas olha o que estaacute escrito aquijaacute sei ler issojaacute sei
fazer isso
P E com a escrita
PM I com a escrita tambeacutem a crianccedila comeccedila a falar eu jaacute sei eu vou
escrever o meu nome ela comeccedila pela primeira letrinha ela fala escrevi meu
nome vocecirc fala jaacute estaacute despertando e vai com a maturidade ela vai
deslanchando
P e quando vocecirc percebe que ela jaacute sabe ler mesmo que ela jaacute aprendeu de
que forma essa crianccedila se manifesta e vocecirc fala que jaacute sabe ler e escrever
PM I pela manifestaccedilatildeo da autonomia neacute de escrever sozinha sem pedir
ajuda quando ela tem aquela autonomia aquele domiacutenio neacute essa daiacute jaacute
(risos) (refere-se agrave crianccedila que jaacute consegue ler e escrever)
PM II
P e pra vocecirc como que vocecirc chega agrave conclusatildeo de que uma crianccedila sabe ler e
escrever como que vocecirc percebe que manifestaccedilotildees essa crianccedila apresenta
que vocecirc fala essa crianccedila jaacute sabe ler e escrever
PM II ah quando a crianccedila falaeu jaacute sei ler ou eu vou escrever tal
coisasabe ela comeccedila ler as coisas que estatildeo escritas em cartazes na rua
essas coisas a crianccedila chega num momento que ela desperta mesmo e ela
comeccedila a ler e a escrever
P mas como vocecirc percebe isso Quais as manifestaccedilotildees dela Vocecirc observa
outros indiacutecios
PM II a crianccedila ela quando ela aprende a ler e a escrever ela quer fazer
isso o tempo todo isso acaba sendo legal pra ela a crianccedila se sente importante
porque jaacute consegue fazer isso e agraves vezes as outras ainda natildeo
Os discursos aparentam revelar que as professoras percebem que as crianccedilas jaacute sabem ler
e escrever quando elas falam que jaacute sabem ou que dizem que vatildeo fazecirc-lo As crianccedilas se
objetivam mais claramente para as professoras por meio de suas proacuteprias falas como ressalta PB
ldquoEles passam e comeccedilam a ler e falam pra vocecirc OLHA estaacute escrito natildeo sei o que olha laacute
estaacute sol entatildeo vocecirc jaacute vai percebendo que eles estatildeo lendo neacute e escrevendordquo PM I tambeacutem
concorda ldquocom a escrita tambeacutem a crianccedila comeccedila a falar eu jaacute sei eu vou escrever o meu
nome ela comeccedila pela primeira letrinha ela fala escrevi meu nome e vocecirc fala jaacute estaacute
despertando e vai com a maturidade ela vai deslanchando Essa mesma forma de objetivar eacute
declarada por PM II ldquoah quando a crianccedila falaeu jaacute sei ler ou eu vou escrever tal coisasabe
ela comeccedila ler as coisas que estatildeo escritas em cartazes na rua essas coisas a crianccedila chega
num momento que ela desperta mesmo e ela comeccedila a ler e a escreverrdquo
89
No entanto PB acrescenta que a crianccedila escreve mesmo na areia ndash no tanque de areia ndash
quando se encontra numa situaccedilatildeo de brincadeira e escreve seu nome Embora afirme que a
aprendizagem da leitura e da escrita comece com a escrita do nome ressalta que somente esse
fato natildeo prova que seja leitura e escrita propriamente e que a crianccedila faraacute isso ldquomais pra frenterdquo
Essa fala de PB parece demonstrar que mesmo quando a crianccedila lecirc e entende que estaacute escrito seu
proacuteprio nome natildeo se trata de leitura e de escrita para a professora
PB PM I PM II datildeo indiacutecios de que a crianccedila sabe ler e escrever quando eacute capaz de fazer
essas accedilotildees sem pedir ajuda ou seja sozinha As professoras parecem atribuir essa apropriaccedilatildeo agrave
autonomia que a crianccedila tem para realizar essas accedilotildees no entanto natildeo se referem em suas falas
como a crianccedila consegue ter essa autonomia e quais os fatores que as levam a conseguirem fazer
isso como quando PM I diz ldquopela manifestaccedilatildeo da autonomia neacute de escrever sozinha sem pedir
ajuda quando ela tem aquela autonomia aquele domiacutenio neacute essa daiacute jaacute (risos) (refere-se a
crianccedila que jaacute consegue ler e escrever)rdquo Isso tambeacutem pode se verificar na fala de PI I a seguir
PI I
P e pra vocecirc como que vocecirc chega agrave conclusatildeo de que uma crianccedila sabe ler e
escrever como que vocecirc percebe que uma crianccedila jaacute se apropriou disso
PI I quando ela sozinha consegue ler e entender o que ela estaacute lendo quando
ela consegue escrever histoacuterias criar e conseguir o que ela escreveu
P certo eacute que eu iria perguntar que manifestaccedilatildeo dela com a leitura que te leva
a concluir que ela aprendeu a ler por exemplo
PI I eacute porque agraves vezes a crianccedila decodifica vocecirc pergunta o que vocecirc leu e
natildeo consegue explicarentatildeo eu acho que quando ela aprender mesmo eacute quando
ela entendeu o que ela leu neacute porque na verdade a leitura se vocecirc entender
como uma decodificaccedilatildeo aqui estaacute escrito BOLA e ela lecirc BOLA ela sabe
decodificar mas natildeo prestou atenccedilatildeo no que estaacute lendo entatildeo eu considero
que ela tem que entender o que estaacute lendo tambeacutem por exemplotem que ser
um complemento neacute a escrita tambeacutem tem que saber passar sabe escrever e
entender o que ela quis passar pra mim neacute outra pessoa lecirc que tenha
coerecircncia uma coisa eacute entender pode ter erros de ortografia e tudo mas isso
eacute normal neacute
P ainda mais que isso eacute normal
PI I Isso eacute tem bastante erro mas daacute pra entender o que a crianccedila quis
passar neacute
As professoras aparentam admitir que a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita confere agrave
crianccedila um status diferente uma condiccedilatildeo vantajosa e necessaacuteria para se tornar parte integrante
da sociedade escrita em que vivemos confere a crianccedila uma autonomia antes natildeo experimentada
90
como esclarece PM II ldquoa crianccedila ela quando ela aprende a ler e a escrever ela quer fazer
isso o tempo todo isso acaba sendo legal pra ela a crianccedila se sente importante porque jaacute
consegue fazer isso e agraves vezes as outras ainda natildeordquo Desse modo Britto (2005 p XV ndash XVI)
afirma que
O que se propotildee como princiacutepio que deve orientar a accedilatildeo educativa eacute que entrar
no universo da escrita eacute operar com signos e significados dentro de um mundo
pleno de valores e de sentidos historicamente produzidos e socialmente
marcados portanto operar com esses discursos em particular quando se pensa
em um sujeito autocircnomo inserido e indignado supotildee que se possa sempre pocircr
em questatildeo as formas de alienaccedilatildeo e de dominaccedilatildeo
E continua
Aiacute estaacute o desafio da educaccedilatildeo infantil que natildeo eacute o de ensinar letras mas o de
construir as bases para que as crianccedilas possam desenvolver-se como pessoas
plenas e de direito e assim participar criticamente da cultura escrita
convivendo com essa organizaccedilatildeo discursiva experimentar de diferentes
formas os modos de pensar tiacutepicos do escrito Antecipar o ensino das letras em
vez de trazer o debate da cultura escrita no cotidiano eacute inverter o processo e
aumentar a diferenccedila
Diante do exposto eacute na Educaccedilatildeo Infantil que se constroem as bases para a apropriaccedilatildeo
da leitura e da escrita e por tal razatildeo eacute na escola da pequena infacircncia que esses modos de ver a
escrita e de operar com ela podem ser ensinados por meio de um ensino intencionalmente
planejado que considere as especificidades de cada etapa do desenvolvimento infantil e crie a
necessidade de aprender
PM I indica compreender a escrita como algo que requer uma abstraccedilatildeo do pensamento
que se refere a algo simboacutelico ldquoporque chega o momento que a crianccedila desperta o divisoacuterio o
concreto as figuras uma coisa mais simboacutelica quando ela comeccedila a abstrair essa ideia ela
comeccedila juntar as letrinhas olha o que estaacute escrito aqui jaacute sei ler isso jaacute sei fazer issordquo No
entanto embora aparentemente reconheccedila a existecircncia de uma abstraccedilatildeo do pensamento no ato
de ler e de escrever ainda atribui isso ao ato teacutecnico ao relatar que a crianccedila vai juntando as
letrinhas Dessa forma Arena (2009 p 169) assinala que ao ensinar a ler o foco da escola natildeo
deveria ser o sistema alfabeacutetico de escrita como objeto em si a ser apropriado mas ldquoo sentido que
pode ser conseguido por meio delerdquo Isolar a aprendizagem desse sistema por acreditar ser este
91
um preacute-requisito para algueacutem se tornar leitor eacute contribuir para a aprendizagem de uma liacutengua
morta artificial que natildeo propicia ao aprendiz reconhecer-se como leitor Com isso cabe agrave escola
ensinar o sistema de escrita no fluxo da linguagem uma vez que ldquoa apropriaccedilatildeo desse
conhecimento se daacute em seu proacuteprio uso em textos vivos e em pleno funcionamento carregados
de significados produzidos pelas relaccedilotildees entre todos os que vivem no contexto em que se situam
[]rdquo (ARENA 2009 p 172)
Vygotski (1995) criticou os processos de apresentaccedilatildeo escolar da escrita para as crianccedilas
em sua eacutepoca ndash deacutecada de 20 do seacuteculo XX ndash e essa criacutetica ainda eacute bastante atual Para o autor o
ensino da escrita em geral eacute um haacutebito motor realizado de forma artificial e esse ensino
mecacircnico da teacutecnica prevalece sobre a compreensatildeo do funcionamento e da utilizaccedilatildeo racional e
social da escrita Desse modo
() o ensino da linguagem escrita se baseia em uma aprendizagem artificial que
exige enorme atenccedilatildeo e esforccedilos por parte do professor e do aluno e devido a tal
esforccedilo se transforma em algo independente em algo que se basta a si mesmo
enquanto a linguagem escrita viva passa a um plano posterior () Nosso ensino
da escrita natildeo se baseia no desenvolvimento natural das necessidades da crianccedila
nem em sua proacutepria iniciativa lhe chega de fora das matildeos do professor e lembra
a aquisiccedilatildeo de um haacutebito teacutecnico como por exemplo tocar piano (VYGOSTKI
1995 p 183 traduccedilatildeo nossa)10
Apropriar-se da escrita significa dominar um sistema simboacutelico extremamente complexo
A escrita eacute um sistema de signos que representa outro sistema de signos e por tal razatildeo eacute um
simbolismo de segundo grau uma representaccedilatildeo de segunda ordem Como esclarece Vygotski
(1995 p 184 traduccedilatildeo nossa) a escrita ldquose forma por um sistema de signos que identificam
convencionalmente os sons e palavras da linguagem oral que satildeo por sua vez signos de objetos e
relaccedilotildees reaisrdquo11
Em outras palavras a escrita representa a fala que por sua vez representa a
realidade Ao escrever eacute representado o som da fala mas esse som natildeo eacute apenas um som ele tem
10
Trecho original da citaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 183) () la ensentildeanza del lenguaje escrito se basa en un
aprendizaje artificial que exige enorme atencioacuten y esfuerzos por parte del maestro y del alumno debido a lo cual se
convierte en algo independiente en algo que se basta a si mismo el lenguaje escrito vivo pasa a un plano posterior
() Nuestra ensentildeanza de la escritura no se basa auacuten en el desarrollo natural de las necesidades del nintildeo ni en su
propia iniciativa le llega desde fuera de manos del maestro y recuerda el aprendizaje de un haacutebito teacutecnico como
por ejemplo tocar el piano 11
Trecho original da citaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 184) (hellip) el lenguaje escrito estaacute formado por un sistema de
signos que identifican convencionalmente los sonidos y las palabras del lenguaje oral que son a su vez signos de
objetos y relaciones reales
92
um significado e eacute esse significado que representa a realidade ou seja as coisas que satildeo faladas
as ideias os sentimentos as informaccedilotildees Para que a aquisiccedilatildeo da escrita ocorra de forma efetiva
eacute necessaacuterio que o nexo intermediaacuterio ndash representado pela linguagem oral ndash desapareccedila
gradativamente e a escrita se transforme em um sistema de signos que simbolizem diretamente os
objetos e as situaccedilotildees designadas ndash uma representaccedilatildeo de primeira ordem
A aquisiccedilatildeo da linguagem escrita eacute resultado de um longo processo de desenvolvimento
das funccedilotildees superiores do comportamento infantil que possui uma longa e complexa histoacuteria
iniciada muito antes de a crianccedila comeccedilar a estudar a escrita na escola Segundo Luria (1988 p
143)
O momento em que uma crianccedila comeccedila a escrever seus primeiros exerciacutecios
escolares em seu caderno de anotaccedilotildees natildeo eacute na realidade o primeiro estaacutegio do
desenvolvimento da escrita As origens deste processo remontam a muito antes
ainda na preacute-histoacuteria do desenvolvimento das formas superiores do
comportamento infantil podemos ateacute mesmo dizer que quando uma crianccedila
entra na escola ela jaacute adquiriu um patrimocircnio de habilidades e destrezas que a
habilitaraacute a aprender a escrever em um tempo relativamente curto
Esse patrimocircnio de habilidades e destrezas que habilitaraacute a crianccedila a aprender a escrever
como afirma Luria reporta no caso da crianccedila na Educaccedilatildeo Infantil agrave formaccedilatildeo das bases
orientadoras para a aprendizagem da escrita ndash o controle da vontade e da conduta (a auto-
disciplina) a percepccedilatildeo antecipada do resultado da atividade a necessidade de expressatildeo a
funccedilatildeo simboacutelica da consciecircncia a necessidade de ler e escrever A esse processo Vygotski
(1995) chama de preacute-histoacuteria da linguagem escrita ndash que eacute a histoacuteria das formas de expressatildeo da
crianccedila ndash e eacute constituiacuteda por ligaccedilotildees em geral natildeo perceptiacuteveis agrave simples observaccedilatildeo e comeccedila
com a escrita no ar com o gesto da crianccedila ao qual os adultos atribuem um significado O gesto
eacute o primeiro signo visual eacute a escrita no ar assim pode-se dizer que os signos escritos satildeo
frequentemente simples gestos que foram fixados Entre o gesto e o signo escrito haacute dois
elementos que se interpotildeem o desenho e o faz de conta
O desenho eacute uma continuidade do gesto inicialmente eacute uma representaccedilatildeo graacutefica do
gesto que aos poucos se torna uma representaccedilatildeo simboacutelica e graacutefica do objeto ldquo() o desenho
infantil eacute uma etapa preacutevia agrave linguagem escrita Por sua funccedilatildeo psicoloacutegica o desenho infantil eacute
uma linguagem graacutefica peculiar um relato graacutefico sobre algo (VYGOTSKI 1995 p 192
93
traduccedilatildeo nossa)12
O desenho comeccedila quando a linguagem oral jaacute alcanccedilou grande
desenvolvimento e se tornou habitual A fala predomina no geral e modela a vida interior
submetendo-a as suas leis O mesmo ocorre com o desenho O desenho eacute uma linguagem graacutefica
que tem por base a linguagem verbal Quando a crianccedila revela seus reservatoacuterios de memoacuteria por
meio do desenho ela o faz como se estivesse contando uma histoacuteria Desse modo ldquoa teacutecnica do
desenho demonstra sem duacutevida que na realidade se trata de um relato graacutefico ou seja uma
peculiar linguagem escritardquo (VYGOTSKI 1995 p 192 traduccedilatildeo nossa)13
O mesmo ocorre com o faz-de-conta uma vez que a ausecircncia de alguns objetos
necessaacuterios agrave brincadeira eacute compensada por objetos que passam a representar os objetos ausentes
e gradativamente se convertem em signos que representam os objetos ausentes Natildeo importa
exatamente a semelhanccedila entre o objeto verdadeiro e o representado mas a possibilidade de
representar com a ajuda do novo objeto o gesto representativo do objeto ausente ldquoDe fato eacute o
gesto que atribui a funccedilatildeo de signo ao objeto e ao longo de exerciacutecio do faz-de-conta graccedilas ao
uso prolongado o novo significado se transfere ao objeto e este passa a representar o novo objeto
para a crianccedila independente do gesto (MELLO 2005)
Desse modo ao longo da idade preacute-escolar com a ajuda do desenho e do faz-de-conta a
crianccedila torna mais elaborada a forma como utiliza as formas de representaccedilatildeo e eacute por tal razatildeo
que se entende o desenho e o faz-de-conta como constituintes de uma etapa e uma forma de
linguagem que leva agrave linguagem escrita compotildeem uma linha uacutenica do desenvolvimento que vai
do gesto ndash a forma mais inicial da comunicaccedilatildeo ndash agraves formas superiores da linguagem escrita Essa
forma superior da linguagem escrita deve ser entendida como o momento em que o elemento
intermediaacuterio entre a realidade e a escrita ou seja a linguagem oral desaparece e a escrita se
torna diretamente simboacutelica representa diretamente a realidade (VYGOTSKI 1995 MELLO
2005)
12
Trecho original da citaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 192) () el dibujo infantil es una etapa previa al lenguaje
escrito Por su funcioacuten psicoloacutegica el dibujo infantil es un lenguaje graacutefico peculiar un relato sobre algo 13
Trecho original da citaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 192) La teacutecnica del dibujo infantil demuestra sin lugar a duda
que en realidad se trata de un relato graacutefico es decir un peculiar leguaje escrito
94
241 O ensino do ato de ler e de escrever
Por se compreender a liacutengua escrita como instrumento cultural complexo eacute que ela deve
ser apresentada agraves crianccedilas desde a Educaccedilatildeo Infantil de forma adequada e natildeo somente como um
ato motor Eacute complexo porque natildeo se aprende simplesmente por imitaccedilatildeo como alguns
instrumentos ou por repeticcedilatildeo mas exige de quem aprende o exerciacutecio de um conjunto de
funccedilotildees intelectuais e como exposto a articulaccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da consciecircncia do
pensamento da memoacuteria da atenccedilatildeo das percepccedilotildees
O ensino da linguagem escrita precisa ser intencionalmente planejado pelo professor e
exige uma dedicaccedilatildeo especiacutefica de quem aprende Por tal razatildeo Vygotski (1995) afirma que a
linguagem escrita precisa ser apresentada desde o iniacutecio agrave crianccedila como um instrumento que tem
como funccedilatildeo social comunicar informaccedilotildees ideias sentimentos
Noacutes natildeo negamos que seja possiacutevel ensinar a ler e a escrever as crianccedilas de
idade preacute-escolar inclusive consideramos conveniente que a crianccedila saiba jaacute ler
e escrever ao ingressar na escola Mas o ensino deve organizar-se de forma que a
leitura e a escrita sejam necessaacuterias de algum modo para a crianccedila () a escrita
deve ter sentido para a crianccedila deve ser provocada por necessidade natural
como uma tarefa vital que eacute imprescindiacutevel Unicamente entatildeo estaremos
seguros de que a escrita se desenvolveraacute na crianccedila natildeo como um haacutebito de matildeos
e dedos mas como um tipo realmente novo e complexo de linguagem
(VYGOSTKI 1995 p 201 traduccedilatildeo nossa)14
As professoras datildeo indiacutecios de aceitarem o ensino de letras ndash identificaccedilatildeo e junccedilatildeo ndash
siacutelabas e palavras de forma natural espontacircnea com o qual a crianccedila ldquovai despertandordquo
ldquodeslanchando com a maturidaderdquo o que acaba por descartar a intencionalidade do ensino a
mediaccedilatildeo do professor e a compreensatildeo de que dominar a escrita significa ldquouma transformaccedilatildeo
criacutetica em todo o desenvolvimento cultural da crianccedilardquo (VYGOTSKI 1995 p 184 traduccedilatildeo
nossa)15
14
Trecho original da citaccedilatildeo (Vygotski 1995 p 201) Nosotros no negamos que sea posible ensentildear a leer y escribir
a nintildeos de edad preescolar incluso consideramos conveniente que el nintildeo sepa ya leer y escribir al ingresar en la
escuela Pero la ensentildeanza debe organizarse de forma que la lectura y la escritura sean necesarias de alguacuten modo para
el nintildeo () la escrita debe tener sentido para el nintildeo que debe ser provocada por necesidad natural como una tarea
vital que le es imprescindible Unicamente entonces estaremos seguros de que se desarrollaraacute en el nintildeo no coacutemo un
haacutebito de de sus manos y dedos sino como un tipo realmente nuevo y complejo del lenguaje 15
Trecho original da citaccedilatildeo (VYGOTSKI 1995 p 184) () significa un viraje criacutetico en todo el desarrollo cultural
del nintildeo
95
Com relaccedilatildeo agrave leitura PI I considera que natildeo adianta decodificar e que a crianccedila precisa
ler e entender o que lecirc Acrescenta ainda que a crianccedila decodifica letra por letra de uma palavra
mas que agraves vezes natildeo presta atenccedilatildeo ao que lecirc e que o mesmo acontece com a escrita Nas
palavras da professora lecirc ldquoquando ela sozinha consegue ler e entender o que estaacute lendo quando
ela consegue escrever histoacuterias consegue criar e consegue entender o que ela escreveurdquo
Diante dessas afirmaccedilotildees emergem duas situaccedilotildees que merecem serem ressalvadas A primeira
se relaciona ao fato de que ler e entender parecem duas etapas distintas do ato de ler o que natildeo
condiz com a concepccedilatildeo de leitura que entende a leitura como compreensatildeo como produccedilatildeo de
sentido e como praacutetica social histoacuterica e cultural (ARENA 1992 CHARMEAUX 1997
JOLIBERT 1994 SOUZA 2004)
Arena (2010b) esclarece que ler
eacute a accedilatildeo de atribuir sentido por meio de sinais graacuteficos em situaccedilotildees elaboradas
pela cultura humana Essas atitudes constituintes do entorno satildeo vitais para a
formaccedilatildeo do leitor e satildeo desenvolvidas nas relaccedilotildees com os gecircneros
enunciativos porque satildeo as relaccedilotildees culturais que orientam os modos de ler Eacute
importante entender que ensinar o sistema linguumliacutestico natildeo eacute ensinar a ler ensinar
a ler eacute ensinar as proacuteprias praacuteticas sociais e culturais que exigem o domiacutenio
desse sistema (ARENA 2010b p 242)
Nessa perspectiva ler eacute uma forma de apropriar-se da cultura humana e seu ensino
ultrapassa a mera decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos e a vocalizaccedilatildeo e se relaciona agraves formas de
desenvolvimento do pensamento Ao ensinar a ler a atitude seria de ensinar a proacutepria liacutengua natildeo
somente como um instrumento de comunicaccedilatildeo mas como um instrumento do pensamento
(ARENA 2010b FOUCAMBERT 1998 VYGOTSKY 2000)
Segundo Arena (2010b p 242 ndash 243)
Aprender a ler eacute necessaacuterio para a transformaccedilatildeo contiacutenua progressiva para um
modo cada vez mais abstrato e profundo de pensar que somente a relaccedilatildeo com
essa tecnologia chamada escrita pode proporcionar ao homem Vista do acircngulo
da antropologia a escrita apropriada pelo leitor revela-se como um
poderosiacutessimo instrumento de desenvolvimento da mente humana das funccedilotildees
psiacutequicas superiores constituintes do progressivo processo de humanizaccedilatildeo de
acordo com o pensamento de Vygotsky (2000)
96
O que se enfatiza natildeo eacute somente a natureza comunicativa da liacutengua escrita mas ldquoo aspecto
transformador das funccedilotildees psiacutequicas superiores que permitem a inserccedilatildeo do homem diretamente
nas relaccedilotildees humanas permeadas pelo graacutefico atualmente potencializado pelos processadores
eletrocircnicosrdquo (ARENA 2010b p 243) Ler eacute a accedilatildeo de produzir sentidos e essa funccedilatildeo
transformadora da liacutengua exige que seu ensino seja compatiacutevel com essa exigecircncia em outras
palavras ldquoobriga a didaacutetica da leitura a elaborar novas condutas metodoloacutegicas para atender a
esse novo leitor e agraves novas funccedilotildees redescobertas no ato de lerrdquo (ARENA 2010b p 243)
Com isso considera-se que o ensino da liacutengua do ato de ler e de escrever requer do
professor condutas metodoloacutegicas que possibilitem a produccedilatildeo de sentido a aprendizagem e o
desenvolvimento da crianccedila Essas formas de se pensar o trabalho pedagoacutegico para a sua inserccedilatildeo
na cultura escrita de colocaacute-la no fluxo dessa liacutengua de modo que ela pense sobre a liacutengua
estabeleccedila relaccedilotildees e perceba seu funcionamento de modo a utilizaacute-la conforme seus interesses e
necessidades eacute o desafio que esse trabalho se propotildee
O professor ensina o ato de ler para que a crianccedila possa criar leitura porque a leitura
acontece no momento em que o leitor a realiza ela se daacute na relaccedilatildeo entre o leitor e o texto A
leitura natildeo eacute um objeto uma coisa Ela existe no momento em que a realiza ldquosomente ganha
existecircncia quando o leitor a cria na relaccedilatildeo entre o que ele eacute o que sabe e o que o texto criado
pelo outro estaacute a oferecerrdquo (ARENA 2010b p243) Dessa forma o professor ensina ldquoo modo
como o leitor em formaccedilatildeo deve agir sobre o texto para criar a leiturardquo (ARENA 2010b p 243)
e por essa razatildeo natildeo se ensina a leitura mas se ensina o aluno a ler
como ato cultural para criar a sua proacutepria leitura nos limites de sua
potencialidade na sua relaccedilatildeo com os diferentes gecircneros e suportes textuais que
possibilitam a formaccedilatildeo crescente e permanente de modos de pensar cada vez
mais abstratos (ARENA 2010b p 243)
Esses pressupostos fundamentam a tese de que as crianccedilas aprendem a liacutengua por meio
dos gecircneros discursivos quando o professor introduz o ensino dos gecircneros na escola desde a
Educaccedilatildeo Infantil como instrumentos de humanizaccedilatildeo como forma de apropriaccedilatildeo da cultura
humana
Diante disso pode-se inferir que PI I ao afirmar que a crianccedila ao ler agraves vezes natildeo presta
atenccedilatildeo ao que leu ou seja que natildeo entendeu o que leu distingue a leitura da produccedilatildeo de
sentido separa o ler do entender como duas etapas desse processo Arena (2010b) esclarece que eacute
97
uma expressatildeo comum nos planos escolares que diagnostica os alunos como incapazes de ler de
compreender e de interpretar Este fato revela em sua gecircnese uma visatildeo do ato de ensinar a ler
que envolve essas trecircs etapas distintas em que a primeira eacute ler a segunda eacute compreender e a
terceira eacute interpretar Essa visatildeo do ato de ensinar a ler estaacute relacionada agrave proacutepria tradiccedilatildeo
histoacuterica do ensino das liacutenguas alfabeacuteticas em nosso caso do portuguecircs em que a ecircnfase do
ensino do ato de ler eacute colocada sobre a relaccedilatildeo grafofocircnica como o essencial a ser dominado
isolado do aspecto semacircntico que seria uma consequecircncia natural dessa relaccedilatildeo ou seja havia
uma ecircnfase no ensino do coacutedigo da relaccedilatildeo letra-som da vocalizaccedilatildeo num primeiro momento
para depois e como consequecircncia desse primeiro atribuir sentido ao que foi vocalizado
(ARENA 2010b)
Assim de acordo com esse ponto de vista a primeira etapa a de ler seria a de ler para
pronunciar ler sem atribuir sentido a segunda etapa seria a de compreender nas linhas e na
superfiacutecie o que o autor do texto quis dizer de forma ateacute literal e a terceira etapa a de interpretar
seria a capacidade do leitor de fazer inferecircncias e relaccedilotildees com o conhecimento organizado em
sua mente e com possiacutevel criticidade (ARENA 2010b) De acordo com os fundamentos teoacutericos
desse trabalho ler eacute compreender eacute produzir sentido eacute uma praacutetica social histoacuterica e cultural
Ler se entende sempre como uma atitude de compreensatildeo de estabelecer um diaacutelogo com o texto
e consigo mesmo de construir e desconstruir o texto no interior do pensamento de fazer
perguntas ao texto (ARENA1992 CHARMEAUX1994 JOLIBERT 1994)
A segunda situaccedilatildeo que se apresenta das afirmaccedilotildees de PI I com relaccedilatildeo ao ensino do ato
de ler e por conseguinte ao ensino da liacutengua eacute a contradiccedilatildeo que aparece em seu discurso PI I
revela que ler natildeo eacute apenas decodificar letras siacutelabas ou palavras mas entender o que se lecirc No
entanto como foi analisado anteriormente em sua entrevista em seu trabalho pedagoacutegico no que
se refere ao ensino da liacutengua enfatiza a sinalidade e natildeo a significaccedilatildeo
Bakhtin (1992) e Vygotsky (1995) concebem a palavra como signo Quando a escola natildeo
realiza um trabalho com a leitura e a escrita a partir das enunciaccedilotildees deixa de conceber a palavra
como signo e passa a consideraacute-la como sinal ldquoO sinal constitui-se num aspecto teacutecnico que
sozinho nada diz apenas quando eacute absorvido pelo signo eacute que pode comunicar-se tornar-se
linguagemrdquo (CRUVINEL 2010 p 65) Diante dessas consideraccedilotildees a liacutengua materna a ser
ensinada na escola desde a pequena infacircncia natildeo eacute a mediada pela relaccedilatildeo grafema-fonema mas a
mediada pela significaccedilatildeo A palavra escrita eacute signo por isso sempre significa e natildeo pode ser
98
lida como sinal Eacute siacutembolo visual que soacute adquire sentido quando inserida num contexto quando
corresponde ou pertence a uma enunciaccedilatildeo (BAKHTIN 1992)
242 O ensino da liacutengua materna
Na tentativa de compreender como entendem o processo de inserccedilatildeo das crianccedilas
pequenas na cultura escrita as professoras foram indagadas durante a entrevista sobre o que
pensam sobre alfabetizaccedilatildeo e letramento
PB
P PB o que vocecirc entende por alfabetizaccedilatildeo e por letramento
PB sabe que natildeo ouvi falar muito de letramento natildeo mas eu acho que
letramento seja a crianccedila que conheccedila as letras que talvez monte (refere-se as
letras) mas alfabetizaccedilatildeo jaacute natildeo ela eacute incorporada porque tem palavra que
tem duplo sentido entatildeo a crianccedila jaacute vai natildeo soacute na palavra que vocecirc vai lendo
nas placas nos siacutembolos neacute entatildeo eacute diferente mas natildeo sei se eacute bem isso
P natildeo eacute a sua opiniatildeo mesmo
PB acho que alfabetizaccedilatildeo eacute mais complexo neacute porque entender e escrever e
ler aiacute vocecirc tem uma alfabetizaccedilatildeo e letramento talvez seja a leitura sem
entender o que estaacute lendo somente juntando as palavras ou sabendo o
alfabeto inteiro mais ou menos acho que eacute isso
P ah obrigada
PM I
P o que vocecirc entende por alfabetizar e por letrar
PM I na minha concepccedilatildeo na minha ideia alfabetizar e letrar eu acho que
caminham juntas uma crianccedila letrada estaacute alfabetizada neacute ou pode estar
letrada conhecer as letras e natildeo ter o domiacutenio assim alfabetiZADA MESMO
quando natildeo consegue ter a proacutepria autonomia se virar sozinha mesmo
P alfabetizar pelo que vocecirc estaacute me dizendo pra vocecirc seria a crianccedila que jaacute
domina a leitura com a escrita
PM I isso
P de forma mais autocircnoma
PM I isso
P e letrada eacute quando ela jaacute conhece tem noccedilotildees
PMI mas ela ainda natildeo tem aquela autonomia de ficar fazendo sozinho essa
letra e essa escrita
P certo
PM I minha ideia de ficar analisando a fundo neacute
P e na Educaccedilatildeo Infantil esses processos de alfabetizaccedilatildeo e de letramento satildeo
adequados
99
PM I desde que a crianccedila esteja assim se ela desperta pra isso neacute vocecirc natildeo
vai queimar etapas eacute atropelar eacute forccedilar a situaccedilatildeo e tambeacutem vocecirc natildeo vai
provar a crianccedila se ela tem o interesse se ela se envolver se ela tem vaacuterios
recursos na famiacutelia pra estimular vai despertar antes que outros mas vocecirc natildeo
vai pular (etapa) para aprender agora vocecirc natildeo vai escrever vocecirc natildeo vai
segurar a crianccedila e vocecirc tambeacutem natildeo vai forccedilar a situaccedilatildeo assim entatildeo se
acontece
P vocecirc trabalha em cima do que ela vivencia
PM I eacute essa eacute mais ativa ela que vai se tornar eacute depende da situaccedilatildeo
vocecirc natildeo vai forccedilar
P ah estaacute bem muito obrigada
PM I de nada
PM II
P o que vocecirc entende por alfabetizaccedilatildeo e por letramento
PM II ah eacute uma coisa meio complicada neacute mas pra mim alfabetizaccedilatildeo eacute
quando a crianccedila sabe codificar e decodificar sabe o que estaacute escrito e sabe
escrever agora letramento eacute eu acho que eacute quando a crianccedila sabe usar
isso de algum jeito sabe usar de maneira mais funcional eu acho que eacute isso
neacute
PI I
P e o que vocecirc entende por alfabetizar e por letrar
PI I ai eu natildeo sei eu jaacute li sobre isso mas na minha cabeccedila ficou a mesma
coisa letrar alfabetizar ficou a mesma coisa
P e pra vocecirc o que eacute alfabetizar
PI I alfabetizar entatildeo eacute isso que acabei de falar eacute vocecirc ensinar a crianccedila a
ler a escrever a poder utilizar isso ela pegar um jornal e saber usar o jornal
como lecirc como que entende o que estaacute escrito laacute na vida dela se ela precisa de
uma receita ela vai laacute e ela sabe procurar um livro de receitas ela vai lecirc
sozinha sem ajuda de ningueacutem ela consegue fazer sozinha neacute lecirc uma
histoacuteria lecirc pro amiguinho lecirc uma bula de remeacutedio saber o que ela estaacute
lendo ela quer fazer um brinquedo lecirc um texto e lecirc sabe o que estaacute
escrito e lecirc sabe escrever um bilhete pra algueacutem uma carta uma histoacuteria
P obrigada
PM I eacute isso neacute
P muito obrigada
Pela anaacutelise do registro da transcriccedilatildeo das entrevistas das professoras marcadas pela
presenccedila frequente de dois pontos e das reticecircncias pode-se inferir que as professoras hesitam em
abordar o assunto por possivelmente natildeo terem uma ideia clara sobre esses conceitos PB
quando questionada inicia com uma ideia e em seguida a reelabora criando outra definiccedilatildeo
100
Relaciona letramento ao fato de a crianccedila conhecer as letras o alfabeto inteiro o fato de saber ler
e escrever mas sem entender o que se lecirc e o que se escreve Atribui agrave alfabetizaccedilatildeo um processo
mais complexo em que a crianccedila entende lecirc e escreve ldquoacho que alfabetizaccedilatildeo eacute mais complexo
neacute porque entender e escrever e ler aiacute vocecirc tem uma alfabetizaccedilatildeo e letramento talvez seja a
leitura sem entender o que estaacute lendo somente juntando as palavras ou sabendo o alfabeto
inteiro mais ou menos acho que eacute issordquo
PM I inicialmente declara que alfabetizar e letrar satildeo processos que acontecem juntos
poreacutem satildeo distintos porque a crianccedila pode estar letrada ndash que em seu conceito estar letrado eacute
ldquoconhecer as letrasrdquo ndash mas natildeo estar alfabetizada ainda que para PM I eacute dominar a leitura e a
escrita de forma que a crianccedila consiga se valer delas de forma autocircnoma PM I declara que a
alfabetizaccedilatildeo e o letramento podem acontecer na Educaccedilatildeo Infantil desde que a crianccedila
ldquodesperterdquo pra isso desde que demonstre interesse mas que natildeo pode ser algo imposto exigir da
crianccedila que ela seja alfabetizada e letrada que natildeo se pode ldquopular etapasrdquo Essas afirmaccedilotildees de
PM I satildeo denotativas de duas situaccedilotildees jaacute abordadas anteriormente nesse trabalho a primeira se
refere agrave alfabetizaccedilatildeo precoce das crianccedilas (ZAPHOROacuteZETS 1987 MELLO 2005) em que PM
I parece ser contraacuteria a essa ideia ndash assim como se defende nesta pesquisa ndash ao declarar que natildeo
pode ser algo imposto porque as crianccedilas ainda precisam desenvolver as bases orientadoras Por
outro lado como segunda situaccedilatildeo que emerge dessa fala de PM I haacute o indiacutecio de que a crianccedila
vai ldquodespertarrdquo em algum momento que o interesse pela leitura e pela escrita eacute natural que por
esse motivo eacute destituiacutedo de intencionalidade da necessidade da mediaccedilatildeo que as condiccedilotildees
concretas de vida e de educaccedilatildeo natildeo interferem nesse processo e ainda que a aprendizagem
decorre do desenvolvimento e natildeo o contraacuterio
PM II apresenta a ideia de que alfabetizar eacute dominar o coacutedigo eacute conseguir codificar e
decodificar os signos linguiacutesticos sendo que o letramento se refere ao uso social da leitura e da
escrita Apesar de ter declarado que em sua praacutetica pedagoacutegica trabalha com o ensino de letras e
palavras com as crianccedilas a resposta de PI se revelou diferente das demais professoras ao abordar
esses conceitos porque natildeo distingue alfabetizaccedilatildeo de letramento e afirma que para ela ldquoeacute a
mesma coisardquo Vincula a alfabetizaccedilatildeoletramento ao saber ler e escrever e ao saber fazer o uso
social da leitura e da escrita
A preocupaccedilatildeo desta pesquisa natildeo eacute a de aprofundar a discussatildeo desses conceitos mas
trazecirc-los agrave tona para compreender melhor os conceitos de liacutengua e de linguagem que permeiam a
101
praacutetica pedagoacutegica dessas professoras para que se possa pensar na trajetoacuteria vivenciada pelos
sujeitos da pesquisa com relaccedilatildeo ao processo inicial de apropriaccedilatildeo e de objetivaccedilatildeo da leitura e
da escrita
Ao considerar as ideias de liacutengua linguagem de leitura e de liacutengua escrita apresentadas
ao longo do capiacutetulo eacute necessaacuterio reiterar que alfabetizaccedilatildeo e letramento referem-se a um uacutenico
processo o processo de internalizaccedilatildeo da liacutengua em seu funcionamento como elemento de
interaccedilatildeo entre as pessoas e por assim dizer um processo discursivo interativo para a
humanizaccedilatildeo das crianccedilas O que estaacute em jogo eacute o processo de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da
liacutengua uma liacutengua viva oriunda da concepccedilatildeo de linguagem essencialmente dialoacutegica vista em
seu uso na atitude responsiva do outro Sobre isso Geraldi (1997 p 5 ndash 6 grifos do autor)
esclarece que
Focalizar a linguagem a partir do processo interlocutivo e com este olhar pensar
o processo educacional exige instauraacute-lo sobre a singularidade dos sujeitos em
contiacutenua constituiccedilatildeo e sobre a precariedade da proacutepria temporalidade que o
especiacutefico do momento implica Trata-se de erigir como inspiraccedilatildeo a
disponibilidade para mudanccedila Focalizar a interaccedilatildeo verbal como lugar da
produccedilatildeo da linguagem e dos sujeitos que neste processo se constituem pela
linguagem significa admitir a) que a liacutengua (no sentido linguiacutestico do termo)
natildeo estaacute de antematildeo pronta dada como um sistema de que o sujeito se apropria
para usaacute-la segundo suas necessidades especiacuteficas do momento de interaccedilatildeo
mas que o proacuteprio processo interlocutivo na atividade da linguagem a cada vez
a (re)constroacutei b) que os sujeitos se constituem como tais agrave medida que
interagem com os outros sua consciecircncia e seu conhecimento de mundo
resultam como ldquoprodutordquo deste mesmo processo Neste sentido o sujeito eacute
social jaacute que a linguagem natildeo eacute o trabalho de um artesatildeo mas trabalho social e
histoacuterico seu e dos outros e eacute para os outros e com os outros que ela se constitui
Tambeacutem natildeo haacute um sujeito dado pronto que entra na interaccedilatildeo mas um sujeito
se completando e se construindo nas suas falas c) que as interaccedilotildees natildeo se datildeo
fora de um contexto social e histoacuterico mais amplo na verdade elas se tornam
possiacuteveis enquanto acontecimentos singulares no interior e nos limites de uma
determinada formaccedilatildeo social sofrendo as interferecircncias os controles e as
seleccedilotildees impostas por esta Tambeacutem natildeo satildeo em relaccedilatildeo a estas condiccedilotildees
inocentes Satildeo produtivas e histoacutericas e como tais acontecendo no interior e nos
limites do social constroem por sua vez limites novos
Entender a apropriaccedilatildeo e a objetivaccedilatildeo da liacutengua como um processo interlocutivo eacute
entender que somos seres histoacutericos e sociais em constante transformaccedilatildeo que somos produto e
produtores da cultura humana que a liacutengua eacute algo vivo porque se constitui na interaccedilatildeo com o
outro e que nos constituiacutemos nela dentro de um dado contexto situacional Apropriar-se da liacutengua
102
nessa perspectiva eacute uma construccedilatildeo histoacuterica social e cultural e por essa razatildeo eacute humanizar-se
A liacutengua como produto da histoacuteria eacute marcada pelo uso e pelo espaccedilo social deste uso Assim a
liacutengua nunca pode ser estudada e ensinada como um produto fechado em si mesmo porque o
externo se internaliza participando da construccedilatildeo deste mesmo produto
243 As praacuteticas de leitura e de escrita o gecircnero literaacuterio
Ao analisar as entrevistas das professoras quanto agraves praacuteticas de produccedilatildeo de textos de
leitura e o trabalho com os gecircneros discursivos com as crianccedilas pequenas os dados revelaram
vaacuterios aspectos a saber
PB
P vocecirc costuma ler para os seus alunos
PB leio mas agraves vezes eu conto porque eles satildeo muito pequenos entatildeo agraves
vezes leio o livro primeiro e nisso eu vou contando pra eles
P certo
PB senatildeo eles natildeo prestam atenccedilatildeo aiacute no uacuteltimo ano dependendo da turma jaacute
daacute pra dar uma lida em livros pequenos mas a maioria eacute contada
P certo e que tipos de textos vocecirc costuma ler para eles
PB ai eu gosto de ler tudo assim principalmente livros neacute histoacuterias conto
de faacutebula faacutebulas eacute conto de fada faacutebulas poesias eacute mais isso
P certo e vocecirc costuma produzir textos escritos com os seus alunos
PB costumo soacute que satildeo pequenos entatildeo natildeo daacute pra fazer uma coisa muito
grande tem que ficar dando muita dica neacute pra tirar mas pequenos textos datildeo
pra fazer
P Eacute
PB depois de uma histoacuteria talvez o reconte da histoacuteria no momento que
aconteceu eles vatildeo falando
P certo
PB alguma coisa que aconteceu o que a gente fez entatildeo como que foi neacute
P sei sei
PB eacute mais assim
P e como eacute feita essa produccedilatildeo
PB coletando o primeiro momento se for uma histoacuteria que natildeo tem lousa eu
vou escrevendo no papel mas se eacute numa sala eu vou marcando na lousa e
depois eu passo para o papel e depois para o cartaz geralmente gosto de ver
eles perto porque aquilo que foi falado foi passado na lousa passado no papel e
num cartaz grande aiacute eles desenham eu dou um giz grande eles desenham
debaixo do cartaz entendeu
P sim
PB foram eles que fizeram neacute
P e depois o que vocecirc faz com essa produccedilatildeo escrita
103
PB deixo na parede aiacute eles jaacute sabem neacute o que estaacute escrito o que natildeo estaacute
quem desenhou
P entendi
PB mesmo natildeo sabendo mas eles apontam e falam como se estivessem lendo
neacute fica bonito
PM I
P vocecirc costuma ler para os seus alunos
PM I leio
P e que tipo de textos vocecirc costuma ler pra eles
PM I entatildeo a literatura infantil leio bastante todos os dias leio um livro
uma histoacuteria seleciono leio sempre assim com um objetivo de trabalhar
sentimento eacute trabalhar famiacutelia ou amorou sei laacute a cooperaccedilatildeo sempre
seleciono uma histoacuteria assim que de alguma forma vai tocar eles eles vatildeo viver
uma situaccedilatildeo aqui da escola tambeacutem
P e vocecirc percebe assim algum tipo de texto que eles se interessam mais De
quais histoacuterias que eles se interessam mais
PM I que eacute das histoacuterias neacute geralmente eles se interessam bastante e tem
insistecircncia
P as que tem o personagem malvado
PM I tem o bonzinho
P sei
PM I as preferidas tem ateacute que induzi-los a um outro tipo de histoacuteria porque
eles querem sempre o mesmo
P o mesmo
PM I o mesmo
P e vocecirc costuma produzir textos eacute escritos por escritos com os alunos
PM I nessa classe ainda natildeo eu sou mais oralmente vocecirc conta a histoacuteria e
P sim
PM I eles relatam o que aconteceu
P aiacute recupera essa histoacuteria
PB e PM I revelam que leem com frequecircncia histoacuterias para suas crianccedilas e aparentam ter
uma praacutetica de leitura contudo PM I natildeo apresenta uma praacutetica de produccedilatildeo de textos escritos
com as crianccedilas mas geralmente faz a reconstruccedilatildeo oral da histoacuteria lida PM I parece utilizar a
leitura dos livros que escolhe como pretexto (LAJOLO 1986) para abordar a formaccedilatildeo de
valores de condutas ou de sentimentos como revela ldquoentatildeo a literatura infantil leio bastante
todos os dias leio um livro uma histoacuteria seleciono leio sempre assim com um objetivo de
trabalhar sentimento eacute trabalhar famiacutelia ou amorou sei laacute a cooperaccedilatildeo sempre seleciono
uma histoacuteria assim que de alguma forma vai tocar eles eles vatildeo viver uma situaccedilatildeo aqui da
escola tambeacutemrdquo
104
Com relaccedilatildeo agrave forma como os gecircneros discursivos chegaram ateacute os sujeitos da pesquisa
verificou-se que na maioria das vezes foi por meio da transmissatildeo vocal (BAJARD 2007) do
texto pelo professor Essa praacutetica era frequente entre as professoras entrevistadas Outro
procedimento utilizado pelas professoras em relaccedilatildeo agrave literatura infantil era o contato direto das
crianccedilas com os livros seu manuseio e observaccedilatildeo No entanto esta era uma praacutetica menos
frequente pois as professoras principalmente das crianccedilas pequenininhas como PB e PM I
temiam que as crianccedilas ldquoestragassem os livrosrdquo como relataram ao terminarem a entrevista
Se as sessotildees de transmissatildeo vocal das histoacuterias lidas e de outros gecircneros discursivos
fossem realizadas como parte da rotina do trabalho com as crianccedilas pequenas poderiam
constituir-se como oportunidades significativas a um desenvolvimento mais amplo da infacircncia
aleacutem de gerar sentido agrave aprendizagem do ato de ler e de escrever (LIMA 2005) uma vez que
ldquoatraiacuteda pelo mundo da literatura graccedilas agraves imagens e agrave voz do mediador que confere vida agraves
histoacuterias adormecidas nos livros talvez a crianccedila chegue a desejar o poder de saber ler detido
pelo adultordquo (BAJARD 2007 p 87)
A leitura eacute uma via de acesso para participar da cultura escrita e desse modo ler se
constitui numa necessidade essencial para garantir o pertencimento e a atuaccedilatildeo ativa nessa
sociedade Nessa perspectiva a literatura o gecircnero literaacuterio deve aparecer no cenaacuterio escolar de
modo a contribuir na formaccedilatildeo de leitores e natildeo de ldquoledoresrdquo Perrotti (1999 apud SOUZA
GIROTTO 2008 p 66) distingue o ledor do leitor ao ressaltar que
O ledor prefigura aquele ser passivo imobilizado que pouco ou nada acrescenta
ao ato de ler O texto para o ledor natildeo tem aberturas porque ele decifra
mecanicamente os seus sinais Natildeo haacute misteacuterio nem criaccedilatildeo A leitura eacute
definitiva O leitor no entanto eacute moacutevel e tem um olhar indefinido errante e
criativo sobre o texto que se permite ler em suas linhas e entrelinhas
desvelando seus sinais visuais e invisiacuteveis Isto soacute ocorre quando se daacute o pacto
entre texto e leitor que o ledor natildeo se arrisca a fazer
O enfoque dado no aspecto fiacutesico do signo subsidia muitas praacuteticas educativas no iniacutecio
da aprendizagem da leitura Pode-se inferir que a preocupaccedilatildeo excessiva com a foneacutetica e com a
decodificaccedilatildeo forma crianccedilas ledoras mas natildeo leitoras Satildeo crianccedilas que apenas repetem ou
pronunciam as palavras e frases que compotildeem um texto mas que natildeo conseguem compreendecirc-
105
las e natildeo participam dialogicamente do processo de significaccedilatildeo da leitura pelas proacuteprias
condiccedilotildees educativas a que estatildeo submetidas
A literatura o gecircnero literaacuterio implica diaacutelogo interaccedilatildeo com o texto com a esteacutetica e
por isso requer para si leitores e natildeo ledores A literatura exige do leitor uma interlocuccedilatildeo
envolvimento exige esforccedilo para atuar no texto e com o texto ao lidar intensamente com os
enunciados que desvelam e revelam em si o conteuacutedo temaacutetico o estilo e a construccedilatildeo
composicional (BAKHTIN 2003 p 261) Esse esforccedilo os ledores natildeo datildeo conta de fazer
PB realiza situaccedilotildees de escrita com as crianccedilas pequenas declara que faz essas produccedilotildees
na presenccedila das crianccedilas ao coletar as falas e as informaccedilotildees dadas por elas Acrescenta que as
crianccedilas desenham apoacutes o texto ter sido escrito num cartaz que esse texto fica exposto na sala e
que por essa razatildeo imitam o gesto de leitura da professora reproduzem esse gesto humano de
ler
A anaacutelise dos trechos a seguir denota aspectos que precisam ser considerados no que se
relaciona ao ensino e agrave aprendizagem da leitura e da escrita e dos gecircneros discursivos
PM II
P e vocecirc costuma ler para os seus alunos
PM II sim
P eacute e que tipo de textos vocecirc costuma ler para eles
PM II primeiro vou te contar o tipo de leitura que eu faccedilo em alguns
momentos eu leio conforme a histoacuteria do livro neacute leio as letras do livro
mesmo a histoacuteria do livro mas em outros momentos eu costumo contar a
histoacuteria tambeacutem Faccedilo o momento da histoacuteria contada porque dependendo da
faixa etaacuteria os pequenos no comeccedilo do ano de eu soacute ler livros pra eles natildeo se
interessam tanto eles se dispersam neacute desviam a atenccedilatildeo e eacute entatildeo que em
alguns momentos eu leio ou em outros eu conto para eles irem se habituando agrave
leitura do livro natildeo contar a histoacuteria assim simplesmente entatildeo eacute leio dessa
forma entatildeo eacute eu leio mais os contos ou eacute eu trabalho lendas neles eacute o
que mais leio satildeo faacutebulas mas aiacute eu natildeo enfoco tanto a moral porque eles ainda
natildeo entendem neacute (risos) mas eu natildeo costumo trabalhar assim por exemplo
com histoacuterias em quadrinhos porque satildeo muito pequenos entatildeo eacute assim pra
essa faixa etaacuteria neacute quando eu penso nos maiores daacute
P aiacute jaacute daacute
PM II aiacute jaacute daacute pra trabalhar outros gecircneros porque a poesia tambeacutem eacute
complicada pra eles entenderem o que taacute falando ali porque eacute uma linguagem
mais eacute mais conotativa
P hum estaacute certo e vocecirc costuma produzir textos escritos com os alunos em
quais atividades se isso acontece em quais atividades isso acontece
PM II textos deixa-me pensar entatildeo eacute difiacutecil porque crianccedila pequena
produz texto assim em alguns momentos que eu escrevo os momentos que eu
106
escrevo que eles falam mais quando assim a gente estaacute por exemplo natildeo
satildeo textos satildeo palavras geralmente por exemplo assim se eles estatildeo se dou
uma opccedilatildeo de duas histoacuterias ou trecircs histoacuterias pra turma escolher eu posso fazer
uma votaccedilatildeo entatildeo eu vou perguntando vocecirc qual histoacuteria gostaria de
ouvir eu ponho o nome da histoacuteria na lousa de repente surge outra histoacuteria
que natildeo eacute nenhuma daquelas que eu separei para as crianccedilas escolherem entatildeo
eu marco na lousa aiacute a gente faz a contagem ou de repente a gente vai falar
sobre ou ateacute mesmo falar o nome da histoacuteria o nome das crianccedilas mas assim
texto mesmo eacute quase o Maternal II eacute meio complicado
PI I
P vocecirc costuma ler para os seus alunos
PI I costumo
P e que tipo de textos vocecirc costuma ler para eles
PI I eacute a maioria satildeo histoacuterias infantis mesmo contos de fada historinhas em
si infantis hum a gente lecirc muitas muacutesicas tambeacutem mas como eu escrevo na
lousa a gente acaba lendo a muacutesica neacute
P certo
PI I mas histoacuteria mesmo satildeo contos de fada
P e vocecirc costuma produzir textos por escrito com os alunos
PI I natildeo
P sei
PI I com o Preacute III eu fazia
P certo
PI I com o Infantil I eu ainda natildeo fiz natildeo
P uma produccedilatildeo oral que vocecirc vai registrando
PI I ano passado eu fiz sabe
P eacute
PI I eu fiz brincadeiras a gente brincava na quadra e escrevia a brincadeira neacute
P certo
PI I com eles eu fiz mas com esse ano natildeo fiz natildeo
P certo e tem algum motivo especial assim por que natildeo fez ainda esse ano
PI I natildeo
Pode-se inferir que PM II e PI I tambeacutem apresentam uma praacutetica de leitura mas natildeo uma
praacutetica de re-criaccedilatildeo de textos escritos de registro de situaccedilotildees vividas de ideias de opiniotildees ou
de informaccedilotildees Quando se reporta agrave escrita com as crianccedilas refere-se agrave escrita de palavras de
nomes
Eacute possiacutevel depreender ainda que as professoras priorizam o gecircnero narrativo dos contos de
fadas e as faacutebulas Pelos elementos constitutivos desses gecircneros e pela constacircncia em que esse
gecircnero eacute lido as crianccedilas solicitam as repetidas leituras natildeo somente desse gecircnero mas
especificamente de algumas histoacuterias desse gecircnero discursivo Isso pode ser constatado ainda nos
trechos seguintes
107
PB
P e vocecirc percebe que seus alunos se interessam mais por algum tipo de texto e
qual tipo de texto seria esse
PB eles gostam mais de histoacuterias
P sim
PB e os pequenos gostam mais de histoacuterias com animais
P eacute mesmo
PB eacute dos animais todos eles amam pode ser qualquer histoacuteria uma
narrativa mas que tenha animais
P certo
PB mas agora os maiores jaacute natildeo eacute um conto de fada uma faacutebula eles
gostam os maiores gostam de faacutebula porque eles podem falar para o amiguinho
tambeacutem
PM II
P vocecirc percebe que seus alunos se interessam mais por um tipo de texto por
algum tipo de texto qual sua opiniatildeo
PM II Nessa faixa etaacuteria eacute soacute os claacutessicos neacute os claacutessicos
P Ah sei
PM II e geralmente eles gostam das histoacuterias que tem eacute o Lobo Mau que tem
a bruxa entatildeo tem que ter esse tipo de personagem
P e como vocecirc percebe que eles se interessam mais por esse tipo de texto
PM II olha eu acredito que seja por conta da imaginaccedilatildeo que eles tecircm que a
imaginaccedilatildeo deles eacute bem feacutertil neacute eles contam diversas histoacuterias eles
inventam eles criam eacute mesmo que de repente vocecirc comeccedila contar uma
histoacuteria de cada o que aconteceu em casa eles satildeo de repente natildeo contam
exatamente contam o que aconteceu e depois eles comeccedilam a contar inventar
criar imaginar as coisas ou uma situaccedilatildeo que eles gostariam eu acho que eacute
por isso porque os contos claacutessicos as histoacuterias de fadas e de princesas assim
mexem muito com a imaginaccedilatildeo da crianccedila
PI I
P vocecirc percebe que seus alunos se interessam mais por algum tipo de texto
PI I que eles gostam mais
P eacute tem algum tipo que causa mais que causa mais interesse
PI I eles pedem mais os que tecircm lobo que tenha mais personagem do tipo do
lobo neacute tenha bruxa eles adoram OS TREcircS PORQUINHOS neacute
P Ah Os Trecircs Porquinhos
PI I eacute o que eles mais gostam A Bela e a Fera eles adoram
P sim
PI Iacho que tem esse elemento que causa esse tipo de medo natildeo sei
108
Os registros das entrevistas de PM II denotam uma concepccedilatildeo de crianccedila incapaz
ldquoimaturardquo passiva diante daquilo que eacute ensinado porque por diversas vezes afirma que natildeo
apresenta outros gecircneros por ela ainda natildeo ter condiccedilotildees de entendecirc-los como as histoacuterias em
quadrinhos e a poesia Nessas afirmaccedilotildees encontram-se tambeacutem a limitaccedilatildeo do trabalho
pedagoacutegico na pequena infacircncia com os diferentes gecircneros discursivos natildeo somente porque o
professor desconsidera a possibilidade da crianccedila de interagir com eles desde pequena por meio
de um ensino intencionalmente planejado mas denota possivelmente tambeacutem um
desconhecimento sobre o funcionamento dos gecircneros e suas caracteriacutesticas Desse modo vale
lembrar que
Desde o princiacutepio do processo educativo eacute necessaacuterio que a professora se
dedique ao estudo dos gecircneros discursivos e se aproprie deles compreendendo o
seu conteuacutedo temaacutetico estilo e construccedilatildeo composicional (BAKHTIN 2003)
uma vez que essa apropriaccedilatildeo possibilitaraacute organizar e planejar as formas mais
adequadas e necessaacuterias de realizar o trabalho pedagoacutegico voltado para o ensino
e a aprendizagem da leitura e buscar em cada gecircnero discursivo os aspectos
essenciais que possam envolver as crianccedilas criando nelas o interesse e o desejo
de ler (SILVA 2009 p183)
Os gecircneros do discurso podem ser uma importante ferramenta do professor para introduzir
a crianccedila agrave cultura escrita para orientar o trabalho pedagoacutegico no ensino do ato de ler e de
escrever pois ensinar a liacutengua eacute ensinar a dominar a diversidade dos gecircneros discursivos de
forma que ao reconhecerem seu conteuacutedo temaacutetico seu estilo e sua construccedilatildeo composicional as
crianccedilas possam dar-lhes sentidos em outras palavras possam ler e escrever Quando o ensino do
ato de ler e de escrever eacute realizado por meio dos enunciados natildeo eacute a leitura e a escrita como sinal
que se enfatiza natildeo eacute a decodificaccedilatildeo e a codificaccedilatildeo que se prioriza em detrimento do sentido
construiacutedo mas a leitura e a escrita como praacutetica cultural oriunda de uma concepccedilatildeo de
linguagem dialoacutegica de um conceito de liacutengua como construccedilatildeo social e ideoloacutegica que dotada
de um sistema de signos sempre pressupotildee uma atitude responsiva do outro com quem se fala
para quem se escreve Haacute uma relaccedilatildeo dialoacutegica entre os discursos e entre os interlocutores
possiacutevel por meio da interaccedilatildeo social entre os sujeitos
Os dados apresentados e analisados por meio das entrevistas com as professoras permitem
tentar compreender a seguir como esses conceitos direcionadores do fazer pedagoacutegico
interferem nos conceitos que as crianccedilas tecircm sobre a leitura a escrita e os gecircneros discursivos
Com essa anaacutelise eacute possiacutevel inferir como as relaccedilotildees e os conceitos que as crianccedilas estabelecem
109
podem ser modificados dependendo das condiccedilotildees concretas de vida e de educaccedilatildeo das quais
participam
No capiacutetulo III seraacute realizada uma anaacutelise dos conceitos que as crianccedilas tecircm sobre leitura
e escrita e gecircnero discursivo cotejando-se com as respostas no iniacutecio e no final do trabalho
pedagoacutegico
110
CAPIacuteTULO III
A LEITURA E A ESCRITA NA ESCOLA DE EDUCACcedilAtildeO INFANTIL O QUE
PENSAM AS CRIANCcedilAS PEQUENAS
(QUINO Mafalda no jardim-de-infacircncia Satildeo PauloMartins Fontes 1999 p 3)
O diaacutelogo dos personagens da tira remete ao processo de ensino e de aprendizagem da
escrita e seu desenvolvimento na escola desde a pequena infacircncia A liacutengua consiste num sistema
de signos simboacutelicos complexos em vez de um processo superficial de identificaccedilatildeo de letras
siacutelabas e palavras isoladas O valor de qualquer enunciado natildeo eacute determinado pela liacutengua como
sistema puramente linguiacutestico mas pelas formas de interaccedilatildeo que ela estabelece com a realidade
com sujeitos falantes com outros enunciados Todo enunciado eacute um diaacutelogo e faz parte de um
enunciado ininterrupto por esse motivo a linguagem eacute interaccedilatildeo eacute um fenocircmeno social
inseparaacutevel do fluxo da comunicaccedilatildeo verbal (BAKHTIN 1992 p 90) A liacutengua nesse cenaacuterio eacute
concebida como uma atividade de construccedilatildeo de sentidos entre os falantes
Uma crianccedila submetida apenas a um ensino teacutecnico da escrita aprende a codificar e a
decodificar mas natildeo se apropria da linguagem escrita com o objetivo pelo qual ela foi criada
para comunicar informar expressar ideias vontades e contribuir para o desenvolvimento
intelectual do homem
Como afirma Vygotski (1995) ensinam as crianccedilas as letras as siacutelabas e as palavras mas
natildeo a linguagem escrita muito mais complexa e muito mais que o aspecto teacutecnico representado
pela correspondecircncia entre letras e sons ldquoO treino de ldquoescritardquo num momento em que a crianccedila
111
natildeo estaacute preparada para essa aprendizagem torna-se lento e demorado exige um esforccedilo enorme
da crianccedila e por isso acaba por tomar a maior parte do tempo na escolardquo (MELLO 2007 p 6)
Quando a linguagem escrita eacute ensinada como uma teacutecnica se reduz agrave sinalidade e se torna
um objeto escolar A crianccedila natildeo aprende a manejar os signos erdquoaleacutem disso na maior parte das
vezes acaba sendo uma experiecircncia de fracasso pois em geral ela natildeo cumpre a expectativa da
professora ndash que eacute inadequada para a idade da crianccedilardquo (MELLO 2007 p6) As aprendizagens
da crianccedila bem como a formaccedilatildeo leitora e produtora de textos estatildeo relacionadas agraves vivecircncias
que possui agraves condiccedilotildees concretas de vida e de educaccedilatildeo das quais ela participa A vivecircncia eacute a
unidade miacutenima do psiacutequico eacute determinada pelos conjuntos das experiecircncias do sujeito pelas
situaccedilotildees concretas e pelo sentido que ela atribui (VIGOTSKI 2010)
Ao refletir sobre os registros dos dados das entrevistas das professoras concernentes aos
conceitos de leitura escrita gecircneros discursivos e sobre suas praacuteticas pedagoacutegicas trago alguns
enunciados das crianccedilas que revelam seus conceitos em dois momentos o primeiro no iniacutecio
desta pesquisa antes da realizaccedilatildeo da proposta de leitura e de escrita dos gecircneros discursivos
carta relatos por meio do livro da vida e notiacutecia por meio do jornal No segundo momento
apresento os conceitos das crianccedilas no final da pesquisa apoacutes a realizaccedilatildeo do trabalho
pedagoacutegico com os gecircneros explicitados com o objetivo de perceber as possiacuteveis mudanccedilas bem
como identificar os motivos que as provocaram
31 Os conceitos das crianccedilas no iniacutecio da pesquisa
C14
P C14 vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C14 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute e por que vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C14 tarefa
P eacute e vocecirc vai usar essa escrita pra que mais por que as pessoas tem que saber
escrever C14
C 14 pra fazer tudo
P tudo tudo o quecirc
C14 fazer as tarefas
P tarefas o que mais a gente faz quando a gente sabe escrever
C14 desenho
P desenho o que mais
C14 eacute desenho de carro
P C14 o que eacute saber ler quando que uma crianccedila sabe ler
C14 eacute tarefa
112
P quando que algueacutem jaacute sabe ler vocecirc sabe ler jaacute
C14 ((afirma com a cabeccedila))
P e como vocecirc descobriu que sabia ler
C14 minha matildee me ensinou
P eacute mesmo e como eacute que vocecirc percebeu ou como vocecirc percebe que algueacutem jaacute
sabe ler
C14 natildeo sei
P estaacute bem obrigada C14
C8
P C8 vocecirc acha que eacute importante a gente saber escrever por quecirc
C8 eacute porque eacute muito importante pra gente ler
P o que fazemos quando aprendemos a escrever o que a gente pode fazer
C8 ela faz tarefa
P podemos fazer tarefa o que mais
C8 matemaacutetica
P matemaacutetica o que mais
C8 ler livro
P ah certo e o que eacute saber ler C8
C8 saber ler eacute quem aprende mais coisas
P quando que uma crianccedila jaacute sabe ler
C8 uma crianccedila jaacute sabe ler quando ela sabe ler quando ela descobre quando
ela vai para outra escola
P aqui na escola tem algumas crianccedilas que jaacute sabem ler
C8 ((afirma com a cabeccedila))
P entatildeo natildeo precisa mudar de escola precisa
C8 natildeo mas semana que vem tem que mudar de escola (refere-se ao
proacuteximo ano em que ingressaratildeo na escola de Ensino Fundamental)
P e quando vocecirc vecirc uma crianccedila e fala assim ldquonossa aquele meu amiguinho
jaacute aprendeu a lerrdquo quando que vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler
C8 porque a minha matildee me ensina a ler
P e como que vocecirc percebeu que vocecirc jaacute sabe ler
C8 eu jaacute sei disso porque a minha avoacute me ensinou tambeacutem a ler
P ah e eacute importante aprender a ler tambeacutem
C8 uhum
P certo obrigada viu C8
C8 de nada
Pelas falas de C14 e de C8 depreende-se que a escrita eacute utilizada para realizar tarefas
escolares e natildeo como uma forma de expressatildeo humana As crianccedilas parecem perceber que eacute
importante aprender a escrever e a ler porque se faz ldquotarefas matemaacutetica se faz tudordquo
Vygotski (1996) afirma que a escola eacute a instituiccedilatildeo por excelecircncia responsaacutevel por
garantir a apropriaccedilatildeo do saber que foi historicamente produzido e organizado pela humanidade
com o objetivo de promover a humanizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e consequentemente responsaacutevel pelo
113
ensino da leitura e da escrita e por possibilitar a apropriaccedilatildeo e a objetivaccedilatildeo desses objetos
culturais Dessa forma no processo de ensino e de aprendizagem do ato de ler e de escrever o
professor seria o principal mediador nessa instacircncia No entanto as falas indicam que as crianccedilas
atribuem agraves pessoas da famiacutelia a funccedilatildeo de ensinar-lhes o ato de ler e de escrever em vez do
professor e da escola como comumente se pensa As famiacutelias leem para as crianccedilas livros ou
outros materiais de leitura em casa e assumem o papel de mediadores que de acordo com as falas
das proacuteprias crianccedilas parecem mais eficazes que da professora da escola como C8 e C14 ldquoa
minha matildee me ensina a lerrdquo ldquoeu jaacute sei disso porque a minha avoacute me ensinou tambeacutem a lerrdquo No
caso destas crianccedilas natildeo quer dizer que jaacute soubessem ler mas de que as famiacutelias assumiram o
papel que a escola natildeo conseguia realizar ou seja a escola dentro das condiccedilotildees concretas de
educaccedilatildeo oferecidas e vividas pelas crianccedilas ateacute aquele momento natildeo contemplava os interesses
nem mesmo criava a necessidade de virem a aprender a ler num futuro proacuteximo
No ensino do ato de ler e de escrever aleacutem da crianccedila participar de situaccedilotildees reais de
leitura e de escrita a mediaccedilatildeo do outro eacute crucial Por essa razatildeo possivelmente as crianccedilas natildeo
atribuem agrave escola a tarefa de ensinaacute-las a ler uma vez que as praacuteticas de inserccedilatildeo na cultura
escrita do ensino do ato de ler e de escrever escolares sejam ocupadas por exerciacutecios teacutecnicos
artificiais da liacutengua relacionados agrave foneacutetica Os materiais de leitura ndash livros didaacuteticos utilizados na
elaboraccedilatildeo das aulas como se verifica no capiacutetulo II na fala de PI I por exemplo ou ainda os
livros de literatura infantil natildeo satildeo utilizados para saber o que estava escrito para se informar
mas para fazer a identificaccedilatildeo de letras a correspondecircncia com os sons a formaccedilatildeo das siacutelabas e
de palavras Diante disso o que se verifica eacute que a escola propotildee exerciacutecios de codificaccedilatildeo e
decodificaccedilatildeo enquanto os atos de ler e de escrever satildeo ensinados em casa
As crianccedilas buscam o sentido do que estaacute diante dos olhos e natildeo tecem uma
distinccedilatildeo entre ler na escola e ler fora dela porque para elas as praacuteticas de leitura
satildeo praacuteticas culturais referem-se ao manejo do signo linguumliacutestico natildeo no
tratamento da palavra como sinal Assim enquanto a escola dirige o processo de
alfabetizaccedilatildeo como domiacutenio do sistema de codificaccedilatildeo acreditando estar
ensinando as crianccedilas a ler do ponto de vista dos sujeitos a aprendizagem desta
atividade ou natildeo estaacute ocorrendo ou estaacute poreacutem aleacutem de seus muros porque a
instituiccedilatildeo escolar natildeo apresenta o ler como elemento do jogo da crianccedila como
acontece nas situaccedilotildees de leitura vivenciadas em casa ou na rua (CRUVINEL
2010 p 137)
114
No processo de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da linguagem escrita enfatiza-se a sua utilizaccedilatildeo
para registrar vivecircncias expressar sentimentos e emoccedilotildees comunicar-se ldquoCom isso jaacute se
percebe que as atividades que em geral satildeo utilizadas para ensinar a escrever pecam por sua
finalidade e pelo sentido que imprimem agrave atividaderdquo (MELLO 2005 p29) Desse modo a
escrita se constitui como tarefa como algo eminentemente escolar como uma tarefa de estudo
em razatildeo de o ensino da escrita valorizar o ensino de letras e siacutelabas na correspondecircncia entre
letra e som desde a Educaccedilatildeo Infantil como foi analisado nos registros das entrevistas com as
professoras no capiacutetulo anterior Ao se fazer isso parece que se busca uma forma de tornar o
processo de apropriaccedilatildeo da escrita mais simples mas os resultados demonstram o contraacuterio Ao
se acreditar que ensinar primeiramente letras e siacutelabas para num momento posterior chegar aos
processos de comunicaccedilatildeo e expressatildeo deixa-se de utilizar a escrita com a funccedilatildeo para a qual foi
criada
Os exerciacutecios de escrita que de um modo geral preenchem boa parte do tempo
das crianccedilas nos uacuteltimos anos da educaccedilatildeo infantil e no iniacutecio do ensino
fundamental satildeo em geral tarefas de treino de escrita de letras siacutelabas e
palavras que natildeo constituem atividade de expressatildeo De um modo geral insiste-
se no reconhecimento das letras ndash com as quais a crianccedila natildeo lecirc nada Esse
trabalho com letras e siacutelabas dificulta a percepccedilatildeo pela crianccedila de que a escrita eacute
um instrumento cultural Escrever em lugar de expressar uma informaccedilatildeo uma
emoccedilatildeo ou um desejo de comunicaccedilatildeo toma para a crianccedila o sentido de
atividade que se faz na escola para atender a exigecircncia do professor Da mesma
forma se daacute com a leitura E esse sentido marca a relaccedilatildeo que a crianccedila vai
estabelecer com a escrita no futuro ao enfatizar o aspecto teacutecnico comeccedilando
pelo reconhecimento das letras e gastando um periacuteodo longo numa atividade que
natildeo expressa informaccedilatildeo ideia ou desejo pessoal de comunicaccedilatildeo ou expressatildeo
a escola acaba por ensinar agrave crianccedila que escrever eacute desenhar as letras quando de
fato escrever eacute registrar e expressar informaccedilotildees ideias e sentimentos (MELLO
2005 p 30)
A afirmaccedilatildeo de que por meio desse ensino do coacutedigo a escola acaba por ensinar a
desenhar as letras remete agrave fala de C14 quando ao ser indagada sobre o que mais eacute possiacutevel fazer
quando se aprende a escrever aleacutem de fazer tarefa responde ldquodesenhordquo E ao retomar a
pergunta ldquodesenho o que maisrdquo responde ldquoeacute desenho de carrordquo Essas falas aparentam
revelar que desenhar letras e desenhar objetos pertencem agrave mesma accedilatildeo A crianccedila natildeo
compreende que a escrita serve para dizer coisas para registrar para ler depois para se lembrar
de algo para comunicar e expressar ideias Para C14 se aprende a ler para fazer tarefas
115
Embora C8 afirme que eacute importante aprender a escrever para fazer tarefa revela que uma
crianccedila jaacute sabe ler quando descobre que pode ir para a escola do Ensino Fundamental Essas
afirmaccedilotildees relacionam-se ao discurso das professoras que na intenccedilatildeo de ldquoprepararemrdquo as
crianccedilas para essa modalidade de ensino introduzem o ensino do ato de ler e de escrever focado
na sinalidade e na sonorizaccedilatildeo Nesse contexto a Educaccedilatildeo Infantil se reduz a uma etapa da vida
da crianccedila em que ela recebe na escola da pequena infacircncia os conhecimentos que falsamente se
julgam necessaacuterios para ingressar e ser bem sucedida no Ensino Fundamental A leitura e a
escrita objetos da cultura passam a ser objetos de escola (CRUVINEL 2010) Acredita-se que
se a crianccedila for submetida a esse ensino preparatoacuterio poderaacute supostamente aprender a ler e a
escrever para natildeo envergonhar-se e natildeo envergonhar a escola diante de pessoas estranhas
C1
P vocecirc acha importante C1 saber escrever
C1 eu sei mas somente o meu nome
P mas vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C1 ((afirma com a cabeccedila))
P acha e por que vocecirc acha importante a gente saber escrever
C1 porque eu natildeo sei
P por que vocecirc acha que isso eacute importante para que a gente precisa aprender a
escrever
C1 porque a gente vai crescendo e vai aprendendo
P eacute e pra fazer o que depois com essa escrita
C1 eacute ((silencia))
P e o que vocecirc vai usar por exemplo quando vocecirc aprender a escrever vocecirc
vai usar para que isso
C1 porque sim
P pra que a gente aprende a escrever
C1 porque nossos pais fazem a gente escrever
P ah C1 o que eacute saber ler
C1 eacute para aprender
P quando que uma crianccedila jaacute sabe ler
C1 tem que ter seis anos para saber ler
P ah quando tem seis anos mas tem gente que aprende antes dos seis anos
natildeo aprende
C1 a hatilde
P e aiacute
C1 hum
P quando que uma crianccedila jaacute sabe ler quando que vocecirc olha para um
amiguinho e diz aquela pessoa jaacute sabe ler como eacute que vocecirc percebe isso
C1 eacute porque um dia a V ((refere-se a uma colega da turma)) conseguiu ler
P eacute mesmo e como eacute que vocecirc percebeu que ela fez isso
C1 porque ela estava vendo o livrinho e prestando atenccedilatildeo nos desenhos
P eacute mesmo
116
C1 e a professora deu um pontinho
P quando foi isso
C1 ah quando a gente estudava com a outra professora ((refere-se a professora
do ano anterior)
P muito obrigada viu C1
C1 taacute obrigada
A expectativa dos pais em querer que seus filhos se alfabetizem precocemente na
Educaccedilatildeo Infantil pode ser verificada na fala de C1 ldquoporque nossos pais fazem a gente escreverrdquo
Essa crianccedila possivelmente era submetida em casa a exerciacutecios de leitura e de escrita na tentativa
dos pais de alfabetizaacute-la possivelmente de uma forma impositiva Admite que sabe escrever
somente o nome A ideia de quanto mais cedo se escolarizar mais chances a crianccedila teraacute de
alcanccedilar o sucesso na vida profissional leva natildeo somente os professores da Educaccedilatildeo Infantil
mas tambeacutem os pais a terem praacuteticas de ensino da leitura e da escrita artificiais que
desconsideram os interesses e as especificidades do desenvolvimento infantil Disso resulta que a
inserccedilatildeo na cultura escrita ocorre de forma a natildeo contemplar a crianccedila nas relaccedilotildees em que ela
pode estabelecer com a escrita e com a leitura e que esse processo pode ser destituiacutedo de sentido
positivo a sua apropriaccedilatildeo
C1 afirma que a colega de turma jaacute sabe ler porque a viu observando os desenhos do livro
Esse fato revela as ideias que C1 apresenta sobre a leitura Para ler eacute preciso buscar indiacutecios
pistas no texto as ilustraccedilotildees satildeo elementos importantes porque dizem coisas datildeo informaccedilotildees e
dialogam com o leitor e com o texto Ao afirmar que V sabe ler porque viu o livrinho e prestou
atenccedilatildeo nos desenhos provavelmente identificou nessa colega condutas de um leitor
C1 ainda afirma que quando sua colega apresentou essa mesma conduta que remetia ao
ato de ler quando estava na turma do ano anterior sua professora deu um ldquopontinhordquo Ao analisar
essa fala pode-se inferir que desde cedo jaacute na Educaccedilatildeo Infantil a leitura eacute motivada por
ldquopontinhosrdquo e recompensas quando as crianccedilas leem o que eacute pedido ou da forma como eacute
solicitado Nesse caso natildeo se trata de criar a necessidade de ler mas a vontade de ganhar uma
possiacutevel recompensa pelos esforccedilos em decodificar ainda tatildeo precocemente Essa fala de C1 estaacute
em consonacircncia com as falas das professoras e de suas praacuteticas do ensino do ato de ler Quanto a
isso Arena (2010b p 244 ndash 245 grifos do autor) explica que
A grande diferenccedila estaacute na atitude de ensinar a ler O sistema linguumliacutestico do
portuguecircs ou de outras liacutenguas ocidentais pode ser considerado uma tecnologia
117
elaborada cultural social e historicamente em profunda e contiacutenua evoluccedilatildeo
porque natildeo estaacute congelada em abstrato mas pelo contraacuterio estaacute viva na relaccedilatildeo
entre os seus usuaacuterios e seus escritores na Europa na Aacutesia na Aacutefrica e na
Ameacuterica Esse sistema eacute apropriado pela crianccedila na escola porque essa crianccedila
tambeacutem eacute um ser cultural histoacuterico e social que motivada por essas relaccedilotildees
quer conhecer o mundo por esse sistema Nessa linha de raciociacutenio os elementos
teacutecnicos dessa tecnologia cultural devem ser dominados porque existe uma
atitude de leitor que busca o sentido esse sim o motivo que cria a necessidade de
a crianccedila querer aprender a ler A liacutengua escrita soacute pode ser lida porque haacute nela
um sentido a ser recriado por um sujeito cultural A diferenccedila estaacute pois na
atitude do leitor orientada pelo professor que sempre tenta atribuir um sentido e
natildeo o sentido (FOUCAMBERT 1998) embora para isso seja preciso dominar o
funcionamento do sistema linguumliacutestico e das relaccedilotildees entre as letras sem descuido
da atitude primeira para a formaccedilatildeo do leitor a de atribuir sentido
Essas afirmaccedilotildees remetem ainda ao fato de que a leitura para a crianccedila nesse contexto
corre o risco de ser somente uma tarefa e natildeo se tornar uma atividade (LEONTIEV 1988) uma
vez que a crianccedila se esforccedila para alcanccedilar uma recompensa e natildeo para satisfazer uma curiosidade
para conhecer para se informar para se divertir O motivo que levou a crianccedila a ler natildeo coincide
com o resultado previsto para a accedilatildeo
Haacute ainda outro aspecto que pode ser considerado em relaccedilatildeo ao ldquopontinhordquo Ao mesmo
tempo em que usa esse recurso para avaliar a ldquoleiturardquo daacute agrave crianccedila um retorno positivo
indicativo de que teve sucesso nessa accedilatildeo Natildeo se pode afirmar que ela nessas condiccedilotildees
aprendeu a ler mas eacute uma forma de mostrar seu ecircxito por meio dessa accedilatildeo docente
C11
P C11 vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C 11 eu acho
P e por que vocecirc acha que eacute
C11 eu queria quando crescer ser um escritor de histoacuterias
P ah quando vocecirc crescer vocecirc quer ser um escritor que maravilhoso C11 e
por que vocecirc acha que eacute importante pra gente escrever
C11 porque vocecirc fica inteligente eu gosto muito de ficar inteligente
P eacute e o que daacute pra gente fazer quando a gente jaacute sabe escrever o que a gente
pode fazer quando a gente jaacute sabe escrever
C11 ai eu gosto de escrever um monte de coisas vocecirc natildeo sabe o que eu
mais gosto
P natildeo o que
C11 eacute de fazer peixe tubaratildeo e baleia
P nossa satildeo vaacuterios neacute ((risos)) C11 e pra vocecirc o que eacute saber ler quando
uma crianccedila jaacute sabe ler
C11 eacute quando ela tem uns oito anos dez anos
P mas vocecirc jaacute disse que jaacute estaacute comeccedilando a ler natildeo estaacute
118
C11 to
P e vocecirc jaacute tem oito anos
C11 natildeo
P natildeo entatildeo natildeo precisa ter oito anos para aprender a ler precisa
C11 natildeo eacute soacute juntar as palavrinhas que jaacute consegue ler
P eacute mesmo e vocecirc jaacute faz isso entatildeo
C11 hum hum ((afirma com a cabeccedila))
P ah taacute entatildeo estaacute bem
C11 minha matildee escreve no guarda roupa pra mim e eu tenho que ler aiacute eu leio
GUAR-DA-ROU-PA mamatildee natildeo sabe escrever tudo
P natildeo mas algueacutem pode ajudaacute-la quando souber
C11 meu pai sabe escrever tudo
P eacute mesmo
C11 eacute sim
Pela anaacutelise da fala de C11 depreende-se que a crianccedila reconhece a escrita como uma
forma de saber coisas de ter acesso ao conhecimento de se apropriar da cultura elaborada e por
tal razatildeo aparenta reconhecer a necessidade de se apropriar da cultura escrita ao dizer ldquoeu queria
quando crescer ser um escritor de histoacuteriasrdquo e quando reitero a pergunta sobre por que acha
importante saber escrever responde ldquoporque vocecirc fica inteligente eu gosto muito de ficar
inteligenterdquo Como abordado anteriormente a escrita por ser um instrumento cultural complexo
(VYGOTSKI 1995) resulta de um longo processo de desenvolvimento das funccedilotildees superiores do
comportamento infantil que Vygotski denominou de preacute-histoacuteria da linguagem escrita Quando
C11 diz que acha importante saber escrever porque fica inteligente eacute porque aparenta perceber
que aprender a escrever eacute algo complexo que exige dela um esforccedilo ensinado por algueacutem mais
experiente pelo pai pela matildee ou algueacutem da famiacutelia Com isso deduz-se que natildeo se aprende a
escrever soacute por imitaccedilatildeo e que esse instrumento serve para comunicar suas ideias quando diz que
deseja ser um escritor de histoacuterias Por outro lado C11 pode ter declarado que deseja ser um
escritor de histoacuterias porque isso lhe confere prestiacutegio social Saber ler e escrever lhe confere um
status diante da proacutepria famiacutelia dos colegas da professora e garante supostamente que ela
participe da cultura de forma mais ativa
A escrita comeccedila entre o gesto e o signo escrito haacute dois elementos que se interpotildeem o
desenho e o faz-de conta (VYGOTSKI 1995) Esse processo pode ser constatado na fala de C11
quando revela ldquo ai eu gosto de escrever um monte de coisas vocecirc natildeo sabe o que eu mais
gosto eacute de fazer peixe tubaratildeo e baleiardquo Em outras palavras a crianccedila aparenta demonstrar
119
que o desenho representa ideias e que num passo seguinte a escrita o faraacute Segundo Vygotski
(1995 p 192 ndash 193 traduccedilatildeo nossa)
Por tudo isso podemos considerar que o desenho infantil eacute uma etapa preacutevia agrave
linguagem escrita Por sua funccedilatildeo psicoloacutegica o desenho infantil eacute uma
linguagem graacutefica peculiar um relato graacutefico sobre algo A teacutecnica do desenho
infantil demonstra sem deixar duacutevida que na realidade se trata de um relato
graacutefico ou seja uma peculiar linguagem escrita16
Pode-se inferir que C11 entende que para ler eacute preciso juntar palavras unidades de
sentido e a matildee tambeacutem tenta ensinar a crianccedila a ler ao escrever Por exemplo pode escrever a
palavra guarda-roupa num papel fixaacute-la no proacuteprio moacutevel que o corresponde e solicitar que a
crianccedila leia Disso decorre que aprender a linguagem escrita como um sistema de codificaccedilatildeo natildeo
eacute suficiente para que as crianccedilas possam se apropriar dessa linguagem participar da cultura
escrita e se tornar leitoras e escritoras
C6
P vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C6 importante
P eacute vocecirc acha que eacute importante a gente saber escrever
C6 eu acho
P e por que eacute importante aprender a escrever
C6 hum para a gente aprender mais
P aprender mais e o que a gente pode fazer depois que a gente aprende a
escrever
C6 escreve
P escreve o quecirc por exemplo
C6 escreve para professora para o amiguinho
P ah escreve para a professora para os amigos eacute
C6 uhum ((afirma com a cabeccedila))
P hum C6 o que eacute saber ler quando que uma crianccedila jaacute sabe ler
C6 somente quando estuda na outra escola dos grandes (refere-se agraves crianccedilas
com mais de seis anos e a escola de Ensino Fundamental)
P somente quando vai para laacute e antes natildeo pode aprender
C6 antes aprende tambeacutem
P entatildeo e quando uma crianccedila jaacute sabe ler
C6 quando estiver em outras escolas assim
16
Trecho original da citaccedilatildeo (Vygotski 1995 p 192 ndash 193) Por todo ello podemos considerar que el dibujo infantil
es una etapa previa al lenguaje escrito Por su funcioacuten psicoloacutegica el dibujo infantil es un lenguaje graacutefico peculiar
un relato graacutefico sobre algo La teacutecnica del dibujo infantil demuestra sin lugar a duda que en realidad se trata de un
relato graacutefico es decir un peculiar lenguaje escrito
120
P vocecirc tem alguma amiguinha aqui na nossa escola que jaacute sabe ler
C6 natildeo
P nenhuma
C6 nenhuma
P ah e quando uma pessoa jaacute sabe ler vocecirc fala assim nossa aquela crianccedila
ali jaacute sabe ler como que vocecirc percebe que algueacutem estava lendo
C6 eu jaacute sei ler
P e como eacute que vocecirc sabe o que vocecirc faz quando vocecirc lecirc como vocecirc faz pra
ler
C6 eu fico juntando as letrinhas (novamente discurso da professora ou da
matildee)
P ah vocecirc fica juntando as letrinhas e vai conseguindo ler
C6 uhum ((afirma com a cabeccedila))
P eacute assim
C11 eacute
P ah entendi entatildeo jaacute aprendeu
C6 uhum ((afirma com a cabeccedila))
P que bom obrigada viu C6
C6 de nada
Eacute possiacutevel dizer pela anaacutelise das falas de C6 que ela percebe a funccedilatildeo social da escrita e
que essa linguagem assim como a leitura se faz na interaccedilatildeo com o outro de forma dialoacutegica
Em outras palavras se escreve para algueacutem ler para um destinataacuterio real com o intuito de
informar algo de dizer algo ldquoescreve para a professora para os amigosrdquo Esta crianccedila tambeacutem
sugere por meio de sua fala como as falas jaacute apresentadas que a aprendizagem da escrita ocorre
quando satildeo maiores quando possuem mais idade e estatildeo no Ensino Fundamental apesar de
admitirem que saibam ler ainda na Educaccedilatildeo Infantil
Os discursos das professoras se encontram presentes nos discursos das crianccedilas Percebe-
se que por meio das vivecircncias das praacuteticas do ensino do ato de ler e do escrever na escola da
pequena infacircncia o estatuto de crianccedila para o de aluno natildeo se modifica quando elas ingressam no
Ensino Fundamental porque satildeo forccediladas a assumir o estatuto de aluno jaacute na Educaccedilatildeo Infantil
com a consequente abreviaccedilatildeo da infacircncia (ZAPOROacuteZHETS 1987) aleacutem de contribuir para que
o processo de apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita se tornem um possiacutevel fracasso para a crianccedila
No entanto ao ser indagada como faz para ler explica que ldquofica juntando as letrinhasrdquo O
problema natildeo reside no fato de a crianccedila aprender a ler e a escrever na Educaccedilatildeo Infantil mas na
forma como isso acontece destituiacuteda de sentido positivo sem que entenda a finalidade dessa
aprendizagem Focar o ensino da liacutengua desde o iniacutecio no ensino de letras siacutelabas e palavras
desconexas em detrimento do trabalho com textos que trazem ideias eacute dificultar todo o processo
121
de apropriaccedilatildeo da liacutengua porque ldquodificulta a percepccedilatildeo pela crianccedila que a escrita eacute um
instrumento culturalrdquo (MELLO 2005 p 30) Escrever de forma teacutecnica artificial em vez de
expressar um desejo de expressatildeo uma informaccedilatildeo uma emoccedilatildeo ldquotoma para a crianccedila o sentido
de atividade que se faz na escola para atender agrave exigecircncia do professor Da mesma forma se daacute
com a leiturardquo (MELLO 2005 p 30)
C16
P vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C16 acho
P por que vocecirc acha importante saber escrever
C16 porque ensina mais
P quem
C16 vocecirc ((refere-se a mim que sou professora da turma e pesquisadora))
P e vocecirc o que vocecirc vai poder fazer quando vocecirc souber escrever
C16 eacute carta
P carta Olha eacute mesmo que legal o que mais a gente pode fazer aleacutem de
escrever cartas
C16 a gente tambeacutem pode fazer uma histoacuteria
P pode escrever uma histoacuteria eacute mesmo neacute hum muito bem e o que eacute saber
ler
C16 eacute quando as pessoas fazem algum tipo de histoacuteria
P quando vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler
C16 quando ele estaacute contando uma histoacuteria
P ah eacute e como vocecirc sabe que isso acontece
C16 por que ah eu natildeo lembro
P quando que vocecirc olha e falanossa aquele meu amiguinho ali jaacute sabe ler
como que vocecirc percebe o que esse amiguinho agraves vezes faz que vocecirc percebe
que ele jaacute sabe ler
C16 eu acho que ele treina
P treina e como
C16 ele pega algum livrinho emprestado e comeccedila a ler
P eacute e como eacute que faz pra treinar
C16 treinar eacute soacute juntar as letras
P ah e vai juntando as letras assim
C16 aham
P e vai aprendendo e vai treinando
C16 Aham
P certoentatildeo estaacute bom obrigada
Embora a entrevista realizada com os sujeitos no iniacutecio da pesquisa tenha sido realizada
em maio de 2010 ndash no quarto mecircs de trabalho com essa turma ndash C16 afirma que acha importante
aprender a escrever porque a professora (no caso eu mesma) ensina mais Ao ser indagada sobre
o que vai poder fazer quando souber escrever afirma que poderaacute escrever cartas e histoacuterias Essa
122
crianccedila jaacute havia assim como as demais da turma recebido cartas de uma turma de crianccedilas de
outra escola e participado de algumas situaccedilotildees de escrita de histoacuterias coletivamente como parte
do trabalho pedagoacutegico realizado o que muito possivelmente possa ter influenciado a sua
resposta Eacute possiacutevel perceber as marcas das accedilotildees e dos discursos docentes na fala dessa crianccedila
como nas demais e essas marcas atuam diretamente nos conceitos que elaboram
Em contrapartida para C16 a leitura eacute algo que exige treino e esse treino se constitui em
juntar as letras Ao juntar letras treina e aprende a ler Esta afirmaccedilatildeo coincide com as falas das
professoras que como foi analisado no item anterior possuem conceitos que interferem
diretamente em suas praacuteticas de ensino da leitura e da escrita e consequentemente nas
aprendizagens Isso se verifica nas falas das professoras retomadas para perceber essa
interferecircncia PM II ldquoah eu acho que no Infantil I e no Infantil II neacute porque as crianccedilas estatildeo
mais prontas jaacute daacute pra ensinar as letras palavras nomes elas jaacute reconhecem mais raacutepido
jaacute entendem melhor o que a gente ensina se bem que a letra inicial do nome jaacute daacute pra ensinar
antes no maternal mas no Infantil II para as crianccedilas jaacute fica mais faacutecil elas relacionam a letra
ao som conseguem perceber mais isso eu ensino no maternal tambeacutem vou mostrando
trabalho muito com muacutesicas e conforme eles vatildeo respondendo eu vou oferecendo mais vou
puxando sabe Mas sem ser uma coisa que seja duro demais pra elasrdquo Ou ainda como explicita
PI I ldquoeles jaacute estatildeo procurando as letrinhas eles jaacute sabem a palavrinha agraves vezes eu falo pra eles
onde estaacute escrito o pintinho jaacute tem crianccedila que jaacute fala que comeccedila com letra P ela proacutepria jaacute
acha o siacutembolo da palavra jaacute percebe pelo espaccedilo que naquele espacinho termina que cabe a
palavra antes de eu mostrar na lousa de eu grifar com eles tecircm crianccedila que encontra eles jaacute
comeccedilam a ver diferenccedilas que tem letras iguais nos nomes o som do nome Gui comeccedila com
tal letra entatildeo jaacute estaacute iniciando desde pequenos jaacute comeccedilam os livros de alfabetizaccedilatildeo do
Maternal II do Maternal Ieles jaacute estatildeo tendo contato com a escrita neacuterdquo
Nesse contexto cabe lembrar que
Partindo desse pressuposto no qual a apropriaccedilatildeo da linguagem (que no caso a
escrita) age como mola propulsora para o desenvolvimento humano eacute que natildeo
podemos concordar com a alfabetizaccedilatildeo sendo ldquoensinadardquo ou melhor
ldquotreinadardquo como se fosse um conhecimento mecacircnico norteado por exerciacutecios
repetitivos e descontextualizados como se a aprendizagem ocorresse quando
estes procedimentos didaacuteticos esteacutereis fossem completados com ldquoecircxitordquo Esta eacute
uma forma de considerar que a aprendizagem ocorre de ldquodentro para forardquo
123
reduzido unicamente por caracteres bioloacutegicos ndash espontacircneos (CHAVES
GRACILIANO GROTH 2011 p 5)
E continua
A preocupaccedilatildeo algumas vezes tem sido manifestada na praacutetica escolar em
ensinar a decodificaccedilatildeo de letras gerandodesencadeando uma leitura mecacircnica
ndash amortizada ndash ignorando o papel fundamental que ela proporciona ao
desenvolvimento intelectualcognitivo cultural e emocional da crianccedila
(CHAVES GRACILIANO GROTH 2011 p 5)
C16 afirma que algueacutem jaacute sabe ler quando ldquoele estaacute contando uma histoacuteria bem certardquo
Pode-se inferir que contar uma histoacuteria bem certa refere-se possivelmente agrave manifestaccedilatildeo da
leitura em voz alta que C16 jaacute presenciou algueacutem fazer Ao se referir a ldquocontarrdquo quer dizer que
ouviu e viu algueacutem fazer isso e de forma ldquobem certardquo porque a pessoa leu uma histoacuteria num livro
a histoacuteria em seu suporte e por isso natildeo era algo inventado mas lido tal e qual fora escrito
Essa manifestaccedilatildeo do ato de ler pela leitura em voz alta tambeacutem
pode ser percebida nos trechos a seguir
C12
P e o que eacute saber ler quando que uma crianccedila jaacute sabe ler C12
C12 hum
P quando que algueacutem jaacute sabe ler a sua irmatilde jaacute sabe ler
C12 sabe
P e como eacute que vocecirc sabe que ela jaacute sabe ler o que vocecirc percebeu que ela faz
que te mostra que ela jaacute sabe ler
C12 ela leu a histoacuteria do Saci na minha casa
P ela leu a histoacuteria do saci na sua casa
C12 eacute
P e como eacute que vocecirc viu que ela estava lendo
C12 ah porque ela contou pra mim
P ela contou pra vocecirc
C12 eacute
P ah certo e vocecirc gostou
C12 gostei
P obrigada
C20
P C20 o que eacute saber ler quando uma crianccedila jaacute sabe ler
C20 de anos
124
P quando vocecirc acha que algueacutem aprendeu a ler que vocecirc olha assim e fala
olha aquela garota jaacute sabe ler como que vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler
C20 porque eles ficam falando porque eles pegam uma folha e ficam
falando
P ah eacute falam alto
C20 eacute
P aiacute vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler
C20 eacute
P ah certo muito obrigada
C20 taacute
Os dados apresentados aparentam revelar que as crianccedilas mencionadas percebem que a
leitura eacute algo que ocorre no interior do pensamento mas que eacute objetivada na medida em que se
fala em que se oraliza Contudo natildeo eacute possiacutevel afirmar que a irmatilde de C12 e as pessoas as quais
C16 e C20 dizem ler de fato estatildeo lendo porque ler natildeo eacute apenas oralizar natildeo eacute fazer uma versatildeo
oral do escrito (FOUCAMBERT 1994) natildeo eacute somente decodificar Ler segundo o conceito
assumido neste trabalho eacute compreender eacute produzir sentido eacute questionar o texto como elucida
Arena (2004 sp) ldquoler eacute compreenderrdquo E saber pronunciar natildeo eacute saber ler E ver letra por letra
ou siacutelaba por siacutelaba natildeo eacute saber lerrdquo Ler eacute dialogar com o texto eacute interagir dialogicamente ldquoeacute
fazer perguntas desejadas para a linguagem organizada em sua modalidade escrita com a
perspectiva de encontrar respostas precaacuterias ou satisfatoacuterias para perguntas fragilmente
elaboradasrdquo (ARENA 2004 sp)
Segundo Charmeux (apud BAJARD 2005) a oralizaccedilatildeo eacute uma emissatildeo vocal que nasce
da decifraccedilatildeo e eacute anterior agrave produccedilatildeo de sentido e por essa razatildeo dificulta a aprendizagem
ldquoQuando o aprendizado da leitura se faz pela decifraccedilatildeo a produccedilatildeo sonora traduz o domiacutenio das
relaccedilotildees grafo-foneacuteticasrdquo (BAJARD 2005 p 76) Nessa perspectiva de aprendizagem a
compreensatildeo se daacute com a sonorizaccedilatildeo do texto ou seja pela oralizaccedilatildeo e a construccedilatildeo do sentido
pertence ao campo do oral e natildeo do escrito A oralizaccedilatildeo permite avaliar essa habilidade de
transformar os signos escritos em signos sonoros Entretanto essa habilidade eacute insuficiente para o
aprendizado da leitura porque natildeo pressupotildee a compreensatildeo a produccedilatildeo de sentido Para Bajard
(2007 p32)
Desde o nascimento do alfabeto a praacutetica da leitura estaacute fortemente associada agrave
emissatildeo sonora do texto Esse caraacuteter vocal da leitura estaacute estreitamente
relacionado a outros aspectos do uso da escrita que vatildeo se modificando pouco a
pouco sob a influecircncia das transformaccedilotildees sociais
125
Outro aspecto a ser ressaltado eacute que C12 declara que a irmatilde leu a histoacuteria do Saci na casa
dela mas quando se pergunta como ela percebeu que ela lera a histoacuteria C12 responde que ela
contou a histoacuteria a ela Essa fala indica a existecircncia de duas accedilotildees a de ler e a de contar
C3
P C3 vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C3 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute eacute importante aprender a escrever e por que vocecirc acha que eacute importante
C3 por quecirc eacute para poder escrever as cartas no dia do aniversaacuterio para poder
dar para os amigos (refere-se agrave convites de aniversaacuterio)
P ah entatildeo quando a gente sabe escrever a gente pode escrever cartas para os
amigos convites de aniversaacuterios o que mais a gente pode fazer quando a
gente sabe escrever
C3 a gente tambeacutem pode dar para as professoras coisa boa que estaacute escrita
P eacute mesmo e que tipo de coisas boas assim
C3 elogios de amor de felicidade
P nossa que gostoso entatildeo quando a gente sabe escrever a gente pode fazer
um montatildeo de coisas neacute
Gabriela eacute
P C3 o que eacute saber ler quando que uma crianccedila sabe ler
C3 eacute eu natildeo sei quais os dias
P natildeo os dias natildeo mas como que vocecirc percebe que algueacutem sabe ler
C3 eacute porque minha matildee conta histoacuterias pra mim todos os dias aiacute eu ouccedilo
P vocecirc conhece algueacutem que sabe ler a sua matildee por exemplo sabe ler
C3 o meu avocirc
P o seu avocirc tem amiguinhos seus que jaacute sabem ler
C3 tem
P tem
C3 a minha amiga G e minha outra amiga que chama D
P e como eacute que vocecirc sabe que elas jaacute sabem ler
C3 porque elas satildeo grandes
P ah eacute mas uma crianccedila menor pode aprender a ler natildeo pode
C3 pode minha matildee me ensina
P entatildeo mas como eacute que vocecirc fala assim nossa aquela pessoa ali jaacute sabe
ler
C3 eacute porque eu fico estudando todos os dias lendo eu fico falando o alfabeto
assim oacute Q E M A B
P Ah e aiacute falando as letras vocecirc vai aprendendo
C3 eacute
P a ler falando o alfabeto
C3 eacute
P entendi muito obrigada viu
C3 parece compreender que a escrita eacute algo necessaacuterio para comunicar para informar
para expressar vontades desejos ideias sentimentos quando diz que eacute importante escrever
126
porque pode se escrever cartas (refere-se a convites) de aniversaacuterio para dar aos amigos ou ainda
para comunicar a professora o que pensa ou sente por ela ldquoa gente tambeacutem pode dar para as
professoras coisa boa que estaacute escrita elogios de amor de felicidaderdquo Possivelmente esta
crianccedila afirma que se podem escrever cartas ou elogios para as pessoas de quem se gosta porque
no ano da realizaccedilatildeo da pesquisa jaacute havia presenciado ainda que de forma inicial situaccedilotildees de
leitura e de escrita com alguns gecircneros discursivos com destinataacuterios reais em que as crianccedilas
participaram de todo o processo de discussatildeo escolha e re-criaccedilatildeo dos textos movidas por um
objetivo e um projeto coletivo ou individual
Apesar de ter participado na ocasiatildeo da entrevista no iniacutecio da pesquisa de algumas
poucas situaccedilotildees de leitura e escrita percebe-se em contrapartida que o enunciado de C3 com
relaccedilatildeo ao aprendizado da leitura e da escrita estaacute diretamente relacionado aos enunciados das
professoras entrevistadas suas concepccedilotildees e praacuteticas pedagoacutegicas quando revela que para
aprender a ler repete oralmente as letras o alfabeto Essa fala de C3 remete a pesquisadora para
as praacuteticas escolarizadas de leitura que possivelmente estatildeo presentes desde cedo na Educaccedilatildeo
Infantil Vygotski (1995 p 201) afirma que o ensino da escrita pode ocorrer jaacute na preacute-escola
desde que seja apresentado para a crianccedila de forma natural com significado e organizado para
que estes conhecimentos sejam necessaacuterios a ela pois do contraacuterio corre-se o risco de fazer
acontecer uma praacutetica puramente teacutecnica
Desse modo o que se enfatiza natildeo eacute o fato de as crianccedilas aprenderem a ler e a escrever na
Educaccedilatildeo Infantil mas como isso ocorre isto eacute de forma forccedilada impositiva como indicam as
praacuteticas pedagoacutegicas das professoras Se essas praacuteticas satildeo focadas nos exerciacutecios motores no
caso da leitura nada exprimem da essecircncia da praacutetica social da leitura e da escrita cuja funccedilatildeo e
valor estatildeo culturalmente determinados (BRITTO 2005)
A crianccedila a seguir C5 tambeacutem aparenta compreender a funccedilatildeo da escrita
C5
P C5 vocecirc acha importante aprender a escrever ou saber escrever
C5 eu jaacute sei
P vocecirc jaacute sabe escrever mesmo o que vocecirc faz agora por vocecirc jaacute sabe escrever
C5 ler histoacuteria pra minha irmatilde dormir
P ah que legal vocecirc lecirc histoacuterias para sua irmatilde dormir e ela gosta
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute mesmo C5 o que a gente pode fazer quando a gente aprende a escrever
C5 falar coisas para os amigos
127
P eacute falar ou escrever
C5 escrever
P eacute que tipo de coisas
C5 uma coisa que eles natildeo sabem depois vocecirc fala
P escreve
C5 depois vocecirc fala o que eacute se natildeo sabe
P ah aiacute vocecirc estaacute lendo natildeo eacute
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P mas vocecirc acha que eacute importante saber escrever entatildeo
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P e o que eacute saber ler
C5 eacute que aprende muitas coisas
P e quando que uma crianccedila jaacute sabe ler vocecirc por exemplo vocecirc falou pra
mim que jaacute sabe ler natildeo eacute
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P quando que vocecirc percebeu que vocecirc jaacute sabia ler
C5 aquele dia que eu fui falar as letras
P ah vocecirc foi falando e foi aiacute que vocecirc percebeu
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute como que vocecirc faz pra ler C5
C5 fala as letras e depois eu adivinho
P ah vocecirc fala as letras e depois adivinha hum entatildeo estaacute bem muito
obrigado viu
A crianccedila revela que por saber escrever auxilia os amigos e a irmatilde que ainda natildeo sabem
Escreve coisas e depois as lecirc para que essas pessoas fiquem sabendo participando assim desse
ato comunicativo da cultura escrita Ao declarar que lecirc histoacuterias para a irmatilde dormir C5 realiza
um costume cultural o ato cultural de ler (ARENA 2010b) que foi aprendido apropriado por ela
mas esse ato cultural foi ensinado supostamente pela matildee ou algum outro familiar e natildeo pela
escola
Essas falas de C5 tambeacutem remetem ao fato de que a escrita e a leitura satildeo dialoacutegicas
acontecem na relaccedilatildeo com o outro A dimensatildeo do dialoacutegico que envolve as relaccedilotildees sociais o
espaccedilo social e as matrizes geradoras de educaccedilatildeo satildeo ressaltadas nesse trabalho de ensino e de
aprendizagem da leitura e da escrita considerando-se o contexto em que esse processo se daacute
Nesse vieacutes o ensino da liacutengua soacute ocorre se se considerar essa dimensatildeo ou seja se se considerar
o processo interativo da linguagem com trocas linguiacutesticas dinacircmicas entre as pessoas e os
valores proacuteprios da cultura e da sua historicidade
C5 diz que fala letras e depois adivinha Isso demonstra que para ler eacute necessaacuterio
ldquoadivinharrdquo e essa afirmaccedilatildeo se refere ao fato de ser necessaacuterio buscar pistas no texto C5 ainda
128
diz que ldquoadivinhardquo porque eacute preciso esforccedilo para compreender e nesse processo eacute preciso arriscar
verificar confirmar ou natildeo voltar e tentar novamente validar
Aleacutem dos conceitos de leitura e de escrita abordados seratildeo apresentados e analisados os
dados sobre os gecircneros discursivos com o intuito de compreender como esse processo de se daacute no
contexto especiacutefico deste trabalho
C6
P C6 vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C6 gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C6 mais gosto eacute Cinderela
P hum e por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuteria
C6 porque eu acho mais bonito
P eacute e o que elas tem que deixa mais bonita a histoacuteria
C6 eacute porque a fada transforma num vestido rosa
P C6 aleacutem de histoacuterias tem outros tipos de textos que vocecirc conhece
reportagens poesias notiacutecias
P tem algum outro tipo de texto que vocecirc conhece
C6 histoacuteria conheccedilo da Chapeuzinho Vermelho
P qual mais
C6 Ahn deixa eu ver Branca de Neve
P certo
C6 Pequena Sereia
P certo
C6 E
P mais alguma
C6 natildeo
C2
P C2 vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C2 gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C2 Os Trecircs Porquinhos
P Os Trecircs Porquinhos eacute e por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuteria
C2 porque Os Trecircs Porquinhos fazem uma Os Trecircs Porquinhos eacute um eacute burro
e outro eacute esperto
P ah eacute C2 aleacutem de histoacuterias tem algum outro tipo de texto que vocecirc conhece
C2 O caso do bolinho (refere-se a histoacuteria de autoria de Tatiana Belinky)
P O caso do bolinho eacute outra histoacuteria neacute mas sem ser histoacuterias poesias por
exemplo vocecirc conhece jaacute ouviu algumas poesias alguma vez
C2 eacute A Branca de Neve
P A Branca de Neve hum e vocecirc costuma usar livros na escola vocecirc natildeo
costuma pegar livros na caixinha da leitura
C2 somente gosto de pegar o livro do Aladim e do catildeo
129
P mas entatildeo vocecirc usa livros na escola
C2 ((afirma com a cabeccedila))
P e em casa vocecirc usa livros vocecirc tem livros na sua casa
C2 uhum
P tem
C2 meu irmatildeo daacute pra eu ler
P e quais livros ele daacute pra vocecirc ler
C2 aquele que tem a Barba Azul
P ah certo C2 vocecirc conhece outros materiais escritos que tambeacutem tem
histoacuterias poesias ou outros textos aleacutem dos livros
C2 Aquela da bruxa ruim que daacute a maccedilatilde ruim pra Branca de Neve
Pela anaacutelise das falas pode-se inferir que haacute uma predominacircncia do gecircnero discursivo
contos de fada que faz parte da rotina das crianccedilas e da praacutetica de leitura das professoras Esse
gecircnero eacute comumente abordado na Educaccedilatildeo Infantil por supostamente condizer com os interesses
infantis e por seus elementos constitutivos atraiacuterem as crianccedilas ndash seu conteuacutedo temaacutetico seu
estilo sua construccedilatildeo composicional as caracteriacutesticas dos personagens o heroacutei e o vilatildeo o
conflitosituaccedilatildeo de tensatildeo elemento ldquomaravilhosordquo fantaacutestico o bem que vence o mal o
reequiliacutebrio a resoluccedilatildeo do problema
O problema natildeo estaacute em apresentar os contos de fadas agraves crianccedilas ao contraacuterio eacute um
gecircnero discursivo literaacuterio que possui elementos enunciativos ndash discursivos relevantes e
necessaacuterios ao processo de formaccedilatildeo leitora e escritora das crianccedilas Contudo o que se enfatiza eacute
o fato de se priorizar apenas um ou poucos gecircneros discursivos limitando o trabalho pedagoacutegico
e o contato com outros gecircneros Pelas falas das crianccedilas apresentadas pode-se depreender que em
decorrecircncia do exposto as crianccedilas natildeo conhecem outros gecircneros discursivos e por tal razatildeo natildeo
podem estabelecer relaccedilotildees e pensar sobre o funcionamento de outros e da proacutepria liacutengua
C20
P C20 vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C20 gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C20 Lobo Mau
P ah histoacuterias que tem o Lobo Mau e por que vocecirc gosta mais desse tipo de
histoacuterias
C20 que tem bicho
P eacute e vocecirc gosta os que tecircm bicho
C20 ((afirma com a cabeccedila))
P C20 aleacutem das histoacuterias tem outros tipos de texto que vocecirc conhece
C20 ((nega com a cabeccedila))
130
P C20 quando vocecirc estava no Maternal ou no Infantil I as suas professoras
costumavam ler ou contar histoacuterias pra vocecirc
C20 costumava
P e que tipo de histoacuterias elas liam ou contavam
C20 contavam da Branca de Neve
P da Branca de Neve qual mais
C20 contava dos Trecircs Porquinhos
P dos Trecircs Porquinhos tem mais alguma que vocecirc lembra que elas contavam
C20 ((nega com a cabeccedila))
C9
P vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C9 Gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C9 do coelhinho que tenho laacute em casa
P como chama essa histoacuteria Lembra
C9 Coelhinho Tatau
P Ah O coelhinho Tatau tem outros tipos de histoacuterias que vocecirc gosta
C9 Chapeuzinho Vermelho
P ah eacute
C9 mas do Lobo Mau o porquinho
P e por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuterias
C9 porque tem o Lobo que faz as coisas com os porquinhos e aiacute o Lobo se
ferra
P nossa e por que isso acontece com ele
C9 porque ele apronta e aiacute os porquinhos sabem que o Lobo estava atraacutes deles
e aiacute eles pegam e jogam o caldeiratildeo embaixo da chamineacute e ele natildeo sente calor
entra pela chamineacute e sai correndo na hora que cai no caldeiratildeo cheio de aacutegua
quente
P eacute nossa
C9 aiacute ele aprende que natildeo pode mexer com os porquinhos
P hum entendi C9 aleacutem de histoacuterias tem outros tipos de textos que vocecirc
conhece Poesias notiacutecias reportagens trava-liacutenguas
C9 natildeo
C10
P vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C10 gosto
P gosta e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C10 do Lobo Mau
P ah eacute e por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuteria
C10 porque o meu tio conta sempre pra mim
P ah eacute seu tio conta sempre
C10 ((afirma com a cabeccedila))
P ah aleacutem de histoacuterias haacute outros tipos de textos que vocecirc conhece por
exemplo as poesias as notiacutecias de jornal tem algum outro tipo de texto que
vocecirc conhece
131
C10 natildeo
P natildeo e vocecirc costuma usar os livros na escola
C10 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute e na sua casa tambeacutem vocecirc tem livros em casa
C10 tenho ((fala quase inaudiacutevel))
P ah entatildeo fala pertinho (aproximo o gravador da crianccedila para tentar gravar
melhor a sua voz) tem
C10 tenho
P hum e vocecirc conhece outros materiais escritos que tambeacutem tem histoacuterias
poesias ou outros textos aleacutem dos livros
C10 natildeo
P vocecirc natildeo conhece algum material escrito igual os livros que tem coisas
escritas
C10 natildeo
P somente conhece os livros
P e quando vocecirc estava no Maternal ou no Infantil I as suas professoras
costumavam ler histoacuterias pra vocecirc
C10 ((afirma com a cabeccedila))
P costumavam e que tipo de histoacuterias
C10 Lobo Mau Chapeuzinho Vermelho e Trecircs Porquinhos
As crianccedilas declaram que gostam de ouvir histoacuterias e que suas professoras as leem No
entanto ao serem questionadas sobre quais satildeo lidas ou quais os tipos que mais gostam C2
refere-se tambeacutem agrave histoacuteria ldquoO caso do bolinhordquo de Tatiana Belinky e C9 a histoacuteria ldquoCoelhinho
Tataurdquo
Essas falas das crianccedilas estatildeo em consonacircncia com as das professoras entrevistadas ao
elegerem os contos de fadas como o gecircnero mais lido uma vez que segundo dizem as crianccedilas
os preferem Tais falas trazem marcas das vivecircncias de leitura na escola e em ambientes natildeo
necessariamente escolares considerando as enunciaccedilotildees e o contexto em que a linguagem ocorre
Com a anaacutelise das entrevistas das professoras e das crianccedilas pode-se perceber que o
trabalho com os diferentes gecircneros discursivos na escola de Educaccedilatildeo Infantil em que se realizou
a pesquisa era restrito e se constituiacutea muitas vezes como um recurso didaacutetico com um fim em si
mesmo e natildeo como instrumentos que tornam possiacutevel a comunicaccedilatildeo discursiva Desse modo
toda introduccedilatildeo de um gecircnero na escola eacute o resultado de uma decisatildeo didaacutetica
que visa a objetivos precisos de aprendizagem que satildeo sempre de dois tipos
trata-se de aprender a dominar o gecircnero primeiramente para melhor conhececirc-lo
ou apreciaacute-lo para melhor saber compreendecirc-lo para melhor produzi-lo na
escola ou fora dela e em segundo lugar de desenvolver capacidades que
ultrapassem o gecircnero e que satildeo transferiacuteveis para outros gecircneros proacuteximos ou
distantes Isso implica uma transformaccedilatildeo pelo menos parcial do gecircnero para
132
que esses objetivos sejam atingidos e atingiacuteveis com o maacuteximo de eficaacutecia
simplificaccedilatildeo do gecircnero ecircnfase em certas dimensotildeesetc (DOLZ
SCHNEUWLY 2010 p 69)
E ainda
pelo fato de que o gecircnero funciona num outro lugar social diferente daquele em
que foi originado ele sofre forccedilosamente uma transformaccedilatildeo Ele natildeo tem mais
o mesmo sentido ele eacute principalmente sempre ndash noacutes acabamos de dizecirc-lo ndash
gecircnero a aprender embora permaneccedila gecircnero para comunicar Eacute o
desdobramento do qual falamos mais acima que constitui o fator de
complexificaccedilatildeo principal dos gecircneros na escola e de sua relaccedilatildeo particular com
as praacuteticas de linguagem Trata-se de colocar os alunos em situaccedilotildees de
comunicaccedilatildeo que sejam o mais proacuteximas possiacuteveis de verdadeiras situaccedilotildees de
comunicaccedilatildeo que tenham um sentido para eles a fim de melhor dominaacute-las
como realmente satildeo ao mesmo tempo sabendo o tempo todo que os objetivos
visados satildeo (tambeacutem) outros (DOLZ SCHNEUWLY 2010 p 69)
De acordo com essas consideraccedilotildees cabe ao professor conhecer os diferentes gecircneros
discursivos se apropriar de suas caracteriacutesticas especiacuteficas e planejar intencionalmente o trabalho
pedagoacutegico Apropriar-se dos gecircneros eacute tornar possiacutevel a produccedilatildeo ou a compreensatildeo dos
enunciados e por isso constituem-se tambeacutem em instrumentos para o ensino da leitura e da
escrita As crianccedilas aprendem a ler e a escrever a partir de tipos relativamente estaacuteveis de
enunciados Cada conjunto de enunciados organizados de acordo com seu conteuacutedo sua estrutura
e suas marcas linguiacutesticas requerem do leitorescritor condutas diferentes porque natildeo se lecirc ou se
escreve uma carta da mesma maneira que se lecirc ou se escreve uma poesia uma receita ou um
conto de fadas (CRUVINEL 2010) Se a escola concebe a linguagem como um sinal e ensina
apenas uma forma de ler ou de escrever algo impede que as crianccedilas operem com os gecircneros
discursivos que elas se comuniquem de diferentes formas com diferentes objetivos dificultando
a formaccedilatildeo leitora e produtora de textos
Com essas consideraccedilotildees eacute possiacutevel compreender que a escola ndash lugar de apropriaccedilatildeo da
cultura mais elaborada do conhecimento cultural produzido e organizado ndash seja responsaacutevel por
introduzir a crianccedila na cultura escrita por meio dos gecircneros discursivos O trabalho pedagoacutegico
com os gecircneros amplia o universo discursivo das crianccedilas Por esse motivo os gecircneros natildeo se
constituem apenas como instrumentos de comunicaccedilatildeo como tambeacutem instrumentos de ensino e
de aprendizagem da linguagem porque sem eles natildeo haacute comunicaccedilatildeo e portanto natildeo haacute o ensino
133
da liacutengua Desse modo o ensino dos gecircneros e a mediaccedilatildeo do professor satildeo fundamentais no
processo de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da liacutengua escrita pelas crianccedilas
Para a Teoria Histoacuterico-Cultural ndash concepccedilatildeo assumida neste trabalho ndash o homem constroacutei
e eacute construiacutedo pela sua proacutepria histoacuteria e desse modo as caracteriacutesticas humanas satildeo apropriadas
Por esse motivo a intencionalidade do professor orientada pelo conhecimento das regularidades
do processo de desenvolvimento bioloacutegico e cultural direcionada para a apropriaccedilatildeo das
maacuteximas qualidades humanas eacute condiccedilatildeo essencial ainda que natildeo suficiente para a formaccedilatildeo das
marcas do humano nas crianccedilas (MELLO 2005) Disso decorre que o professor tem um papel
fundamental no processo de humanizaccedilatildeo pois de forma intencional e por meio do processo de
ensino faz avanccedilar o niacutevel de desenvolvimento jaacute alcanccedilado pela crianccedila Segundo Saviani
(2003 p 13)
() o trabalho educativo eacute o ato de produzir direta e intencionalmente em cada
indiviacuteduo singular a humanidade que eacute produzida histoacuterica e coletivamente pelo
conjunto dos homens Assim o objeto da educaccedilatildeo diz respeito de um lado agrave
identificaccedilatildeo dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos
indiviacuteduos da espeacutecie humana para que eles se tornem humanos e de outro lado
concomitantemente agrave descoberta das formas mais adequadas para atingir esse
objetivo
Nessa perspectiva o professor organiza intencionalmente a vida da crianccedila na escola para
provocar a sua maacutexima humanizaccedilatildeo e assume seu papel de mediador no processo educativo
Assim cabe a ele descobrir e estar atento agraves formas mais adequadas para iniciar essa
humanizaccedilatildeo jaacute na pequena infacircncia
32 Os conceitos das crianccedilas no final da pesquisa
Seratildeo analisados os dados coletados por meio das entrevistas com as crianccedilas no final da
pesquisa para perceber possiacuteveis mudanccedilas nas respostas apoacutes a realizaccedilatildeo de um trabalho
pedagoacutegico com os gecircneros discursivos e em quais aspectos essas mudanccedilas ocorreram
C9
P C9 vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C9 gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta C9
134
C9 dos Trecircs Porquinhos
P e por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuteria
C9 porque o Lobo queima o traseiro
P ah aleacutem de histoacuterias tem outros tipos de textos que vocecirc conhece
C9 uhum
P como as poesias as receitas
C9 eu conheccedilo as receitas
P eacute somente a receita tem outro tipo de texto que vocecirc conhece
C9 natildeo
P natildeo e vocecirc costuma usar livros na escola
C9 costumo
P e na sua casa
C9 tambeacutem
P tambeacutem
C9 eu tenho um livrinho que minha matildee comprou ela fez uma surpresa pra
mim com o livro
P que bom que livro eacute
C9 eacute do coelhinho Tataacute e de um cachorrinho
P certo vocecirc conhece outros materiais escritos C9 que tambeacutem tem histoacuterias
textos
C9 jornal
P jornal qual mais aleacutem dos livros do jornal
C9 revista
P revistas tem mais algum que vocecirc se lembra que vocecirc conhece
C9 natildeo
P C9 quando vocecirc estava no Maternal ou no Infantil I as suas professoras
costumavam contar histoacuterias pra vocecirc
C9 natildeo
P vocecirc prefere que leiam ou que contem histoacuterias pra vocecirc
C9 contar
P vocecirc acha mais legal contar por quecirc
C9 porque gosto que conte as histoacuterias pra mim
P e por que vocecirc prefere mais quando algueacutem conta mais a histoacuteria
C9 porque ele tambeacutem sabe da histoacuteria quando ele lecirc
P C9 o que vocecirc mais gosta das histoacuterias das personagens dos desenhos por
exemplo
C9 dos desenhos eu gosto do Mickey
P eacute e dos livros vocecirc gosta mais
C9 do Pato Donald
P C9 vocecirc acha que eacute importante saber escrever
C9 uhum
P e por quecirc
C9 porque aiacute a gente pode escrever um monte de coisas como cartas
P eacute mesmo e o que mais
C9 e a gente tambeacutem pode ler as coisas
P hum entatildeo a gente pode usar a escrita pra escrever uma seacuterie de coisas
importantes
C9 somente usar a nossa liacutengua para falar
P e o que eacute saber ler C9 na sua opiniatildeo quando uma crianccedila jaacute sabe ler
C9 eu percebo porque eu vejo os outros lendo
P vocecirc sabe ler
135
C9 ((afirma com a cabeccedila))
P sabe e como que vocecirc faz pra ler
C9 eu pego um livro e fico lendo eu fico entendendo o que estaacute escrito laacute
P ahcerto entatildeo obrigada viu
Pela anaacutelise da fala de C9 pode-se depreender que embora C9 continue com sua
preferecircncia pelo gecircnero discursivo conto de fadas declara conhecer outros gecircneros como a
receita Declara ainda que os reconhece em outros suportes como o jornal e a revista e desse
modo aparenta perceber que podem estar presentes em outros lugares natildeo somente os livros
como afirmara na entrevista realizada no comeccedilo da pesquisa
O conceito de escrita que C9 apresenta apoacutes a realizaccedilatildeo de um trabalho pedagoacutegico
intencionalmente planejado com os gecircneros se coaduna com o conceito de escrita defendido
neste trabalho a escrita como um instrumento cultural de humanizaccedilatildeo das pessoas (ARENA
1992 2010b MELLO MILLER 2008 VYGOTSKI 1995) C9 revela que se escreve para
comunicar para expressar ideias sentimentos e que a carta eacute uma forma de fazer isso C9 parece
entender que por meio desse gecircnero discursivo eacute possiacutevel dizer coisas importantes de escrever
vaacuterias coisas bem como de iniciar o processo de apropriaccedilatildeo da liacutengua materna como explica
Bakhtin (2003 p 282- 283 grifos do autor)
Falamos apenas atraveacutes de determinados gecircneros do discurso isto eacute todos os
nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de
construccedilatildeo do todo () Esses gecircneros do discurso nos satildeo dados quase da
mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos livremente ateacute
comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua materna ndash sua composiccedilatildeo
vocabular e sua estrutura gramatical ndash natildeo chega ao nosso conhecimento a partir
de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos
ouvimos e noacutes mesmos reproduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as
pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas
formas das enunciaccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as
formas tiacutepicas dos enunciados isto eacute os gecircneros do discurso chegam agrave nossa
experiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas
Ao considerar essas afirmaccedilotildees depreende-se que os gecircneros discursivos satildeo formas de
comunicaccedilatildeo humana e por tal razatildeo por meios deles as pessoas se apropriam da liacutengua materna
e nesse sentido eacute que o ensino da leitura e da escrita desde a Educaccedilatildeo Infantil pode ocorrer por
meio do ensino dos diferentes gecircneros discursivos na escola
136
Outro aspecto relevante apresentado nessa entrevista relaciona-se agrave mudanccedila do conceito
de leitura de C9 A crianccedila revela que jaacute sabe ler e ao ser indagada sobre como faz para ler
responde ldquoeu pego um livro e fico lendo eu fico entendendo o que estaacute escrito laacuterdquo Esse
conceito de leitura se coaduna com o conceito de leitura assumido neste trabalho em que ler eacute
compreender eacute produzir sentido eacute uma praacutetica cultural (ARENA 1992 CHARMEUX 1997
FOUCAMBERT 1994 JOLIBERT 1994 LAJOLO 1986 SOUZA 2004)
C9 percebe quando algueacutem jaacute sabe ler ao dizer ldquoeu percebo porque eu vejo os outros
lendordquo Essa fala revela possivelmente que C9 reconheceu atitudes leitoras em outras pessoas
que conhece possivelmente na famiacutelia Essas pessoas apresentaram indiacutecios manifestaccedilotildees que a
fizeram reconhecer nelas a leitura como uma praacutetica cultural com seus modos e lugares de ler
A seguir apresento paralelamente as duas entrevistas da mesma crianccedila antes e depois do
trabalho com os gecircneros discursivos intencionalmente planejados com o intuito de perceber as
mudanccedilas nos conceitos
C13
P vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C13 gosto
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C13 da Bela Adormecida
P ah eacute por que vocecirc gosta mais desse tipo de histoacuteria
C13 porque eu gosto muito de princesa
P ah entatildeo histoacuterias com princesas satildeo as suas preferidas
C13 uhum
P muito bem aleacutem dessas histoacuterias tem algum outro tipo de histoacuteria ou texto
que vocecirc conhece
C13 eu gosto mais da poesia da Bailarina
P ah da Ceciacutelia Meireles
C1 ((afirma com a cabeccedila))
P ah certo tem algum outro tipo de texto que vocecirc conhece
C13 uhum eu conheccedilo alguns soacute que eu gosto mais desse da Bailarina
P certo C13 vocecirc costuma usar os livros na sua casa
C13 costumo
P e na escola
C13 tambeacutem
P vocecirc tem livros em casa
C13 tenho
P certo e vocecirc conhece algum outro tipo de material escrito aleacutem dos livros
que tambeacutem tem histoacuterias que tem poesias e que tem outros escritos
C13 algumas cartas alguns envelopes que vem escrito alguma mensagem neacute
P eacute mesmo tem livros tem envelopes tem cartas
C13 revistas
P tem mais algum tipo de material que vocecirc conhece
137
C13 caderninhos
P certo
C13 um monte de coisas
P C13 quando vocecirc estava no Maternal ou no Infantil I as suas professoras
costumavam contar histoacuterias pra vocecirc
C13 eu acho que natildeo viu
P natildeo
C13 ((confirma negando com a cabeccedila))
P eacute natildeo se lembra de nenhuma
C13 natildeo me lembro natildeo me lembro porque jaacute faz muito tempo que eu era
bebezinha
P certo e vocecirc prefere que leiam ou que contem histoacuterias pra vocecirc
C13 que leiam
P e por que vocecirc prefere que as pessoas leiam
C13 porque tem desenhos nas historinhas pega um livrinho natildeo eacute
P eacute aiacute daacute pra ver as ilustraccedilotildees
C13 eacute eu gosto mais
P o que vocecirc mais gosta nas histoacuterias
C13 o que eu mais gosto como assim
P das personagens ou dos desenhos
C13 olha o que eu gosto mais eacute de histoacuteria soacute que dos desenhos sabe do
que eu gosto mais
P natildeo o que
C13 os desenhos eu gosto mais do desenho animado que passa laacute no Bom Dia e
Companhia ((refere-se a um programa infantil de televisatildeo)) As Super
Poderosas que eacute mais legal A minha personagem predileta eacute a Florzinha (refere-
se ao nome de um desenho animado que eacute transmitido pela televisatildeo)
P e nos livros por exemplo
C13 A Bela Adormecida
P mas aiacute entatildeo vocecirc prefere as personagens ou as ilustraccedilotildees
C13 uhum eu prefiro as personagens
P ah certo e vocecirc acha importante saber escrever
C13 acho
P e por quecirc
C13 porque a gente aprende mais coisas neacute
P Eacute mesmo e o que daacute pra fazer depois que a gente aprende a escrever
C13 a gente pode fazer um monte de coisas
P que tipo de coisas
C13 assim ensinar umas criancinhas que ainda que natildeo saibam neacute a gente pode
ajudar um pouco neacute
P pra que elas aprendam tambeacutem a escrever
C13 uhum
P muito bem C13 o que eacute saber ler
C13 ler eacute saber juntar umas letrinhas e vai vendo o que estaacute escrito
P ah certo e vocecirc jaacute sabe ler
C13 sei ler algumas coisinhas
P eacute e como eacute que vocecirc faz pra ler
C13 ah eu vou juntando pra ver o que estaacute escrito
P e vocecirc consegue fazer isso entatildeo
C13 uhum
P e quando uma crianccedila entatildeo sabe ler
138
C13 uma crianccedila quando sabe ler como assim eu natildeo entendo muito bem
isso
P quando eacute que vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler
C13 vixi eu soacute percebo quando algueacutem aprende assim bastante aiacute eu
percebo sabe como eu percebo
P como
C13 com as crianccedilas que jaacute tecircm anos mais altos que as crianccedilas mais novinhas
P ah mas uma crianccedila mais nova pode aprender a ler
C13 eacute como eu
P isso como vocecirc muito obrigada C13
C13 tchau
(Entrevista com C13 no iniacutecio da pesquisa)
Pode-se inferir pelas falas de C13 que haacute uma preferecircncia pelo gecircnero conto de fadas
contudo a crianccedila conhece outro gecircnero como a poesia Ela parece ter provavelmente outros
mediadores nesse processo de formaccedilatildeo leitora aleacutem da professora que satildeo as pessoas de sua
famiacutelia pois declara que natildeo se lembra das professoras dos anos anteriores lerem ou contarem
histoacuterias a ela Esse fato se deve supostamente pela leitura natildeo ser uma praacutetica frequente ou
talvez diaacuteria na escola
C13 demonstra perceber a funccedilatildeo da escrita quando diz que com a escrita ldquoa gente
aprende um monte de coisasrdquo ou ainda ldquoa gente pode fazer um monte de coisas‟ ateacute ldquoensinar
umas criancinhas que ainda natildeo saibamrdquo Essas falas denotam que a escrita eacute necessaacuteria
essencial para viver numa sociedade culturalmente baseada na escrita e que ao saber escrever
ela mesmo sendo uma crianccedila pode ensinar outras Dessa forma atuaraacute tambeacutem como parceira
de outras nesse processo de apropriaccedilatildeo da escrita
O conceito de leitura nesse momento de C13 estaacute vinculado agraves condiccedilotildees das quais
participou ou dos discursos que ouviu Afirma que para ler eacute preciso juntar letras que eacute algo
complexo que precisa aprender bastante e se aprende a ler quando se tem mais idade como se
verifica nesses trechos ldquoler eacute saber juntar umas letrinhas e vai vendo o que estaacute escritordquo ldquoeu soacute
percebo quando algueacutem aprende assim bastante aiacute eu percebo sabe como eu percebo com as
crianccedilas que jaacute tecircm anos mais altos que as crianccedilas mais novinhasrdquo
Um aspecto a ser ressaltado na fala dessa e de outras crianccedilas anteriormente analisadas no
iniacutecio da pesquisa eacute que parecem natildeo estabelecer fronteiras entre saber e natildeo saber ler Algumas
afirmaram que jaacute sabiam ler mas suas atitudes no iniacutecio do trabalho pedagoacutegico
139
intencionalmente planejado denotavam o contraacuterio Haacute uma linha fraacutegil que indica que isso estaacute
relacionado ao conceito que as crianccedilas possuem sobre o que eacute ler
Pode-se afirmar que as crianccedilas que declararam que jaacute sabiam ler mas que natildeo realizavam
esse ato de fato se referiam aos atos de leitura das quais participavam e que supostamente
alcanccedilavam sucesso Em outras palavras as crianccedilas afirmavam que sabiam ler quando
decodificavam quando diziam letras siacutelabas e essas atitudes eram as atitudes inicialmente
esperadas pelas professoras em resposta ao ensino por elas proposto
A entrevista a seguir realizada no final do trabalho com os gecircneros discursivos oferece
subsiacutedios para ampliar as discussotildees anteriormente feitas
C13
P C13 vocecirc gosta de ouvir histoacuterias
C13 ADORO
P e que tipo de histoacuterias vocecirc mais gosta
C13 eu gosto de contos de fadas
P ah eacute mesmo e por quecirc por que vocecirc gosta desse tipo de histoacuteria
C13 eacute porque pra mim elas satildeo muito legais
P e o que elas tecircm que faz com que as histoacuterias sejam bem legais
C13 um monte de coisas que nem daacute pra falar direito
P ((risos)) de tantas que tecircm
C13 aham
P mas conta uma delas por exemplo
C13 algumas coisas
P eacute
C13 eacute porque do jeito que as histoacuterias satildeo algumas tecircm piadas ((refere-se as
situaccedilotildees engraccediladas presentes nas histoacuterias))
P eacute mesmo
C13 aham
P que legal
C13 eacute por isso que eu gosto dos contos de fadas
P muito bem e aleacutem de histoacuterias tem alguns outros tipos de textos que vocecirc
conhece
C13 eu gosto das poesias que vocecirc fala
P eacute mesmo
C13 aham
P eacute mesmo e vocecirc conhece outros textos aleacutem das poesias e das histoacuterias
C13 bom por enquanto eu somente conheccedilo as suas
P e receitas vocecirc conhece
C13 eu conheccedilo receita de bolo de cenoura de goiabada o de cenouras pra
mim natildeo esqueccedilo ((refere-se agraves receitas que li e preparei com as crianccedilas da
turma na escola))
P que a gente fez aqui natildeo eacute
C13eacute
P e textos de hum jornal notiacutecias
140
C13 notiacutecias quando as notiacutecias satildeo muito legais neacute
Por meio deste trecho da entrevista de C13 no final do trabalho pode-se inferir que a
crianccedila conhece diferentes gecircneros discursivos aleacutem daqueles abordados especificamente nesta
pesquisa como a receita a poesia Por meio do discurso de C13 reitera-se a influecircncia das accedilotildees
e do discurso docentes nas aprendizagens da crianccedila e na formaccedilatildeo de conceitos Isso pode se
verificar quando C13 declara ldquoeu gosto das poesias que vocecirc falardquo ldquobom por enquanto eu
somente conheccedilo as suasrdquo (refere-se as histoacuterias lidas pela professora) Verifica-se tambeacutem
quando a crianccedila afirma conhecer o gecircnero discursivo receitas e refere-se a todas as receitas lidas
e preparadas na escola (bolo de cenouras de goiabada) Haacute que ressaltar ainda que o trabalho
intencionalmente planejado com os gecircneros e principalmente as vivecircncias adequadas promovem
aprendizagens como se pode perceber na fala de C13 ao falar da receita do bolo de cenoura ldquoo
de cenouras pra mim natildeo esqueccedilordquo
E continua
P uhum vocecirc consegue ler
C13 bom algumas eu junto agraves palavrinhas pra conseguir ler
P vocecirc jaacute consegue fazer isso
C13 eu fico tentando eu fico soletrando para ver como se faz
P C13 vocecirc costuma ler livros na escola
C13 costumo usar mais os contos de fadas que eu vejo que eacute legal
P e em casa vocecirc usa livros tambeacutem
C13 uso eu tenho alguns
P e vocecirc conhece outros tipos de materiais escritos que tambeacutem tecircm histoacuterias
poesias
C13 conheccedilo livros jornais revistas cadernos
P quando vocecirc estava laacute no Maternal ou no Infantil I as suas professoras
costumavam ler histoacuterias pra vocecirc
C13 bom eu natildeo lembro mas acho que sim
P e vocecirc prefere que leiam ou que contem histoacuterias pra vocecirc
C13 como assim ler eacute com o livro
P isso quando a pessoa estaacute com o material escrito na matildeo pode ser um livro
ou uma revista um bilhete
C13 eu gosto quando estaacute com alguma coisa na matildeoeacute mais legal
P e por que eacute mais legal
C13 porque tem desenhos natildeo eacute mostra os desenhos sendo mais legal
P hum entendi e o que vocecirc mais gosta das histoacuterias das personagens ou
das ilustraccedilotildees
C13 das ilustraccedilotildees eu gosto bom das histoacuterias dos contos de fadas eu gosto
mais das princesas
141
Ao afirmar que para ler junta-se as palavrinhas C13 revela que tenta encontrar o caminho
sozinha para ler porque provavelmente por meio das situaccedilotildees de leitura das quais participou ela
criou para si a necessidade de fazecirc-lo
Quando a crianccedila eacute indagada se prefere que leiam ou contem histoacuterias para ela responde
com outra pergunta na intenccedilatildeo de se certificar sobre o que eacute ler ldquocomo assim ler eacute com o
livro A crianccedila aparenta perceber que quando algueacutem lecirc uma histoacuteria esta o faz presa ao livro eacute
a transmissatildeo vocal a liacutengua oral que revela a liacutengua escrita (BAJARD 2007)
P certo e vocecirc acha importante C13 saber escrever
C13 eacute muito importante natildeo eacute
P e por que vocecirc acha importante
C13 eacute porque a gente aprende as coisas assim escrevendo vai aprendendo
mais coisas natildeo vai
P e sempre que a gente precisa da escrita em que podemos usaacute-la
C13 para escrever um recado mas se for recado importante natildeo pode esquecer
neacute
P de jeito algum e pra que mais a gente usa a escrita pra que a gente pode
usar as coisas que a gente escreve
C13 bom a resposta natildeo sei natildeo heim mas eu acho assim pode ser pra
algumas coisas importantes neacute
P coisas importantes
C13 umas coisas importantes
P quais coisas importantes por que ou para que a gente escreve
C13 escreve para aprender pra aprender muitas coisas
P muitas coisas
C13 e aprender eacute muito importante e gostoso
P eacute mesmo vocecirc escreve bastante coisa jaacute
C13 estou aprendendo algumas eu estou escrevendo mais ou menos
P muito bem e o que vocecirc geralmente gosta de escrever
C13 gosto mais de escrever carta cartas para professora G (refere-se a atual
professora da turma e pesquisadora no caso eu mesma)
P ai que maravilha
C13 eu jaacute escrevi uma pra vocecirc
P eu gostei muito daquela
C13 jaacute colocou no livro da vida ou natildeo
P jaacute coloquei no livro da vida sim
C13 aquela daacute pra ver atraacutes e na frente
P e todas as pessoas que lerem e consultarem o nosso livro da vida iratildeo ver laacute
registrado essa linda cartinha que vocecirc me escreveu
C13 todo mundo vai saber o que eu escrevi quando ler
P sim todos poderatildeo saber ao lerem C13 o que eacute saber ler quando que
uma crianccedila jaacute sabe ler em sua opiniatildeo
C13 bom a crianccedila quem eu conheccedilo sabe ler bastante
P eacute quando que vocecirc acha que algueacutem jaacute sabe ler
C13 bom eu acho a M a minha irmatilde
P eacute mesmo e como eacute que vocecirc sabe que ela sabe ler
142
C13 porque eu a vejo lendo e escrevendo
P eacute
C13 aham
P e o que ela faz que vocecirc fala nossa minha irmatilde jaacute sabe ler ou algum
outro amigo seu que vocecirc conhece
C13 bom pra falar a verdade eu natildeo conheccedilo nenhum amigo que saiba
P mas vocecirc jaacute estaacute comeccedilando a ler e escrever natildeo estaacute
C13 estou
P como que vocecirc percebe isso
C13 percebo que eu estava soletrando
P eacute mesmo
C13 e ateacute falo para minha matildee ainda isso
P e como eacute que vocecirc faz pra soletrar
C13pra soletrar eu junto o abecedaacuterio com a vogal depois penso e falo pra
pergunta pra ver se combina
P entendi
C13 bom professora a minha irmatilde tambeacutem estaacute me ensinando a fazer isso
mas eu soacute li de verdade quando eu entendi o que estaacute escrito
P entatildeo obrigada C13
(Entrevista com C13 no final da pesquisa)
Esse registro permite inferir que a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita pela crianccedila se
ampliou porque ela esteve em contato frequente com uma praacutetica de leitura e de escrita
intencional planejada e dialoacutegica Embora desde o iniacutecio do trabalho de leitura e de escrita
proposto conhecesse alguns outros gecircneros discursivos como a poesia e a carta atuando muitas
vezes nesse processo como uma crianccedila mais avanccedilada junto agraves demais crianccedilas participantes eacute
possiacutevel assinalar uma modificaccedilatildeo no proacuteprio conceito de C13 no iniacutecio da pesquisa como se
verifica na anaacutelise da entrevista anterior Pode-se dizer que o conceito de leitura e de escrita de
C13 no final do processo se coaduna com o conceito de leitura e de escrita defendidos neste
trabalho o de leitura como compreensatildeo como produccedilatildeo de sentido como praacutetica cultural
(ARENA 1992 2010 CHARMEUX 1997 FOUCAMBERT 1994 JOLIBERT 1994
LAJOLO 1986 SOUZA 2004) e o de escrita como instrumento cultural complexo para a
humanizaccedilatildeo das pessoas (VYGOTSKI 1995 MELLO 2005)
C13 demonstra estabelecer relaccedilotildees com o gecircnero discursivo carta relato de vida por
meio do livro da vida e notiacutecia de jornal respondendo a ela e a si proacutepria de forma interativa
demonstra que consegue pensar a escrita sendo interlocutora ativa ou seja leitora e escritora e
que apesar de iniciante jaacute participa da cultura escrita
143
C13 parece compreender a funccedilatildeo social da escrita e da leitura Ao objetivar por meio de
sua fala que se usa a escrita ldquopara escrever um recado mas se for recado importante natildeo pode
esquecer neacuterdquo em outras palavras a escrita serve tambeacutem para registrar algo importante para
lembrar depois Acrescenta que a escrita eacute usada para aprender muitas coisas que com ela se tem
acesso a inuacutemeras informaccedilotildees e que ldquoaprender eacute muito importante e gostosordquo Com essa
afirmaccedilatildeo denota que foi criada a necessidade de aprender e que entende o porquecirc e para quecirc se
escreve Por essa razatildeo aprender torna-se algo que impulsiona a crianccedila que garante novas
aprendizagens Com relaccedilatildeo a isso Vygotskii (1988 p 115) esclarece que
[] a aprendizagem natildeo eacute em si mesma desenvolvimento mas uma correta
organizaccedilatildeo da aprendizagem da crianccedila conduz ao desenvolvimento mental
ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento e esta ativaccedilatildeo natildeo
poderia produzir-se sem a aprendizagem Por isso a aprendizagem eacute um
momento intrinsicamente necessaacuterio e universal para que se desenvolvam na
crianccedila essas caracteriacutesticas humanas natildeo-naturais mas formadas
historicamente
Ao considerar essa proposiccedilatildeo ressalta-se assim o ensino como esteio da formaccedilatildeo dos
processos psicoloacutegicos superiores e a necessaacuteria e adequada mediaccedilatildeo do professor ou do adulto
Atuar como professor mediador eacute reconhecer que as crianccedilas satildeo capazes e competentes para
aprenderem quando satildeo auxiliadas de maneira adequada e intencional pelo adulto Desse modo eacute
possiacutevel dizer que o conhecimento das crianccedilas bem como seus modos de aprender se
constituem na dinacircmica das relaccedilotildees sociais
A crianccedila aponta para o fato de que gosta de escrever cartas para a professora da turma do
Infantil II atual professora da turma no momento da pesquisa e ao perguntar se a professora jaacute
colocara a carta que ela escreveu no livro da vida atribui um valor agrave escrita reconhece que para
se comunicar com a professora e expressar suas ideias e sentimentos se utiliza de um gecircnero
discursivo ndash a carta ndash e compreende que o livro da vida natildeo eacute soacute uma teacutecnica de ensino mas um
suporte textual que permite agraves pessoas fazer consultas sempre que desejarem para conhecerem ou
saberem daquilo que vivido na escola
O contato com a carta relato de vida e notiacutecia de jornal na escola se daacute por intermeacutedio da
professora do Infantil II uma vez que as professoras dos anos anteriores agrave pesquisa natildeo
realizavam leituras ou escrita desses gecircneros conforme constatado pelas entrevistas No entanto
144
o entorno familiar aliado ao escolar vivenciado durante o periacuteodo de realizaccedilatildeo da proposta de
leitura e de produccedilatildeo de texto dos gecircneros mencionados aparece como crucial para a apropriaccedilatildeo
da leitura da crianccedila que encontra nesses entornos as condiccedilotildees necessaacuterias e adequadas Posto
isto depreende-se que as condiccedilotildees histoacutericas e sociais determinam esse processo de apropriaccedilatildeo
da leitura e da escrita (LEONTIEV 1988 VYGOTSKII 1988)
P mas vocecirc jaacute estaacute comeccedilando a ler e escrever natildeo estaacute
C13 estou
P como que vocecirc percebe isso
C13 percebo que eu estava soletrando
P eacute mesmo
C13 e ateacute falo para minha matildee ainda isso
P e como eacute que vocecirc faz pra soletrar
C13pra soletrar eu junto o abecedaacuterio com a vogal depois penso e falo pra
pergunta pra ver se combina
P entendi
C13 bom professora a minha irmatilde tambeacutem estaacute me ensinando a fazer isso
mas eu soacute leio de verdade quando eu entendo o que estaacute escrito
Com a anaacutelise dos dados depreende-se que a crianccedila reconhece que eacute necessaacuterio dominar
o coacutedigo linguiacutestico para ler e para escrever ao revelar que soletra e para isso junta vogais e
consoantes depois pensa e fala a pergunta pra ver se combina No entanto natildeo se prende ao
coacutedigo apenas num mero exerciacutecio de codificaccedilatildeo e decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos Ela tenta
apropriar-se do coacutedigo e supera-o quando ressalta ldquomas eu soacute leio de verdade quando eu entendo
o que estaacute escritordquo Dessa maneira pode-se inferir que a crianccedila entende a leitura como
compreensatildeo como produccedilatildeo de sentido pois do contraacuterio quando ela natildeo entende o que leu
natildeo realizou a leitura soacute decodificou Outro ponto a destacar nesta afirmaccedilatildeo de C13 eacute a possiacutevel
influecircncia do conceito do ato de ler da professora-pesquisadora que emerge em sua praacutetica
pedagoacutegica em seus discursos proferidos no processo de ensino e de aprendizagem da leitura na
apresentaccedilatildeo e no trabalho com os gecircneros discursivos C13 ao participar de situaccedilotildees de ensino
e de aprendizagem da leitura de forma interativa por vivenciar situaccedilotildees diretas de mediaccedilatildeo da
professora-pesquisadora revela ter se apropriado desses conceitos e os objetivado
C5
P vocecirc acha que eacute importante saber escrever C5
C5 acho
P e por que vocecirc acha
145
C5 porque tambeacutem eacute legal
P o que a gente aprende quando sabe escrever O que a gente pode fazer
quando a gente sabe escrever
C5 ler
P a gente pode ler tambeacutem mas para que vocecirc pode usar a escrita
C5 em livro
P aleacutem dos livros o que a gente pode escrever
C5 aiacute a pessoa fala que sabe ler
P e o que eacute saber ler quando que uma crianccedila jaacute sabe ler
C5 ela eacute quando uma pessoa que jaacute aprendeu tudo
P eacute e quando que vocecirc percebe que algueacutem jaacute sabe ler como que vocecirc
percebeu que realmente aprendeu a ler
C5 porque que estaacute lendo
P e como que vocecirc sabe que ela estaacute lendo ela pode estar somente falando
natildeo pode
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P e como que vocecirc tem certeza que ela estaacute lendo o que essa pessoa faz que
mostra pra vocecirc que ela realmente estaacute lendo
C5 ah (dirige o olhar para o alto)
P vocecirc jaacute sabe ler
C5 ((afirma com a cabeccedila))
P eacute e o que vocecirc faz pra ler
C5 eu vou juntando as letras e vendo as ideias
P eacute mesmo entatildeo pra vocecirc o que eacute ler
C5 eacute aprender
P Obrigada C5
As falas de C5 denotam que ela percebe a escrita e a leitura como parte de um mesmo
processo o de internalizaccedilatildeo da liacutengua quando reafirma por diversas vezes que com a escrita as
pessoas podem ler Ela parece reconhecer que a leitura possibilita participar da cultura escrita
uma vez que afirma que algueacutem jaacute sabe ler quando uma pessoa jaacute aprendeu tudo e com isso
pode-se compreender a leitura como um instrumento cultural (VYGOTSKI 1995 MELLO
MILLER 2005)
Quando C5 aponta que para ler ldquovai juntando as letras e vendo as ideiasrdquo pode-se inferir
que a crianccedila percebe que ao ler lecirc-se ideacuteias e que ao escrever escrevem-se ideias e natildeo
simplesmente letras siacutelabas e palavras desconexas muito embora para expressar as ideias por
meio da leitura e da escrita seja necessaacuterio fazer uso do coacutedigo de representaccedilatildeo da escrita
Desse modo a crianccedila demonstra iniciar seu processo de apropriaccedilatildeo lendo e escrevendo o que
pensa sente percebe ouve e vecirc por meio de textos e natildeo de exerciacutecios repetitivos de codificaccedilatildeo
e decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos Como explica Miller (2009 p45)
146
O processo de aquisiccedilatildeo da base alfabeacutetica da escrita o domiacutenio do sistema de
representaccedilatildeo satildeo partes importantes do processo de aprender a ler e escrever
mas esse processo natildeo pode se restringir a esses conhecimentos sob pena de o
aluno dominar a teacutecnica da escrita das palavras mas natildeo saber como utilizar essa
teacutecnica para compreender os textos escritos e para escrever textos adequados agraves
mais diversas situaccedilotildees em que eles satildeo produzidos e lidos O ensino da escrita
soacute se torna um caminho que leva o aluno a ler com compreensatildeo e a escrever
textos coerentes quando se faz com sentido para o aluno E isso se consegue
quando o ler e o escrever satildeo necessidades para o aluno ou seja quando o
ensino da escrita se organiza de modo a que o aluno sinta a necessidade de ler e
de escrever
Baseado nesse pressuposto natildeo significa que natildeo se deve ensinar o coacutedigo de
representaccedilatildeo da escrita agraves crianccedilas mas atendendo a uma necessidade que foi criada pelas
condiccedilotildees de vida e de educaccedilatildeo das quais participa No capiacutetulo a seguir seraacute abordado o ensino
e a aprendizagem da leitura por meio do gecircnero discursivo carta relato de vida e notiacutecia de
jornal em que seratildeo analisadas situaccedilotildees de leitura do trabalho pedagoacutegico realizado
147
CAPIacuteTULO IV
O ENSINO DA LEITURA E OS GEcircNEROS DISCURSIVOS
Observem diante de um livro ou de uma paacutegina do jornal a crianccedila que
aprendeu a ler segundo o meacutetodo tradicional faz um grande esforccedilo de
reconhecimento das peccedilas a desmontar que combina laboriosamente A
mecacircnica funciona lecirc de uma maneira certa sem erros de pronuacutencia Mas
perguntam-lhe o sentido daquilo que leu teraacute de reler o texto para compreender
porque o lera da primeira vez para decifrar A operaccedilatildeo faz-se em dois tempos
fazer andar a mecacircnica tentar compreender em seguida Mas a crianccedila pode
muito bem contentar-se em fazer andar a mecacircnica sem compreender No
entanto a isto chamaraacute ler (FREINET 1977 p 54)
Esta proposiccedilatildeo traz em seu bojo o conceito escolarizado de leitura subjacente a muitas
praacuteticas do ensino do ato de ler isto eacute a ensino focado no aspecto fiacutesico dos signos linguiacutesticos
que resulta em pronunciaccedilatildeo correta mas apartada da compreensatildeo Tais praacuteticas de ensino do
ato de ler estatildeo presentes na escolarizaccedilatildeo precoce das crianccedilas na Educaccedilatildeo Infantil quando o
professor prioriza a decifraccedilatildeo Essas praacuteticas se sustentam na univocidade do sentido e nas
interpretaccedilotildees legitimadas
Nesse contexto surgem as indagaccedilotildees Como formar o leitor na Educaccedilatildeo infantil Como
garantir que a crianccedila pequena participe ativamente da cultura escrita sem que esteja ainda
convencionalmente alfabetizada Neste capiacutetulo seratildeo apresentadas possiacuteveis respostas a essas
questotildees na medida em que seratildeo analisadas situaccedilotildees de leitura com as crianccedilas em trecircs
momentos o primeiro no trabalho pedagoacutegico com o gecircnero discursivo carta por meio da
correspondecircncia interescolar o segundo com o gecircnero discursivo relato de vida por meio do
livro da vida e terceiro com notiacutecia por meio do jornal escolar
41 A crianccedila e o seu estatuto de leitor
Este trabalho de pesquisa compreende a leitura em seu movimento discursivo isto eacute a
leitura como um lugar privilegiado de encontro com a palavra alheia Essa concepccedilatildeo de leitura
adveacutem do conceito de liacutengua e de linguagem para Bakhtin (1992) em que a liacutengua eacute um
fenocircmeno social dirigida para o outro Disso decorre que natildeo haacute diaacutelogo entre sentenccedilas mas
148
entre pessoas Existe infinita mobilidade para diferentes interpretaccedilotildees e significaccedilotildees que tornam
a palavra permanente fluida no contexto das transformaccedilotildees culturais e histoacutericas
Para Bakhitn (1992) a categoria principal da linguagem eacute a interaccedilatildeo verbal cuja
realidade fundamental eacute o seu caraacuteter ideoloacutegico Toda enunciaccedilatildeo eacute um diaacutelogo e faz parte de
um processo de comunicaccedilatildeo ininterrupto Desse modo a interaccedilatildeo verbal se realiza no diaacutelogo
que em sentido mais amplo ocorre na leitura e na escrita O caraacuteter ideoloacutegico do diaacutelogo remete
ao contexto histoacuterico e cultural uma vez que os diaacutelogos e os discursos satildeo envolvidos pelos
interesses pelos valores e pelas intenccedilotildees definidas por um grupo ou classe social em
determinado tempo
A linguagem tem dimensotildees dialoacutegicas e ideoloacutegicas determinadas historicamente A
palavra territoacuterio comum entre eu e o outro (locutor interlocutor) eacute prenhe de significados e
intenccedilotildees (BAKHTIN 1992) possui valor semioacutetico sendo percebida como um signo
ideoloacutegico ldquoarena de confronto de diferentes valores sociais de diferentes vozes sociais
(RAMOS SHAPPER 2009) Por essa razatildeo o sujeito se constitui discursivamente ao interagir
com as vozes sociais que constituem a comunidade semioacutetica de que participa Essas vozes em
inter-relaccedilatildeo dialoacutegica possibilitam encontro entre consciecircncias marcado por movimentos de
sentidos que ldquoora instituem a reproduccedilatildeo do discurso alheio ora possibilitam que ele se abra para
novas construccedilotildees discursivasrdquo (RAMOS SHAPPER 2009 p 2)
No movimento de produccedilatildeo e negociaccedilatildeo de sentido que demarca a leitura como praacutetica
social e cultural faz-se necessaacuterio compreender as formas de discurso que relacionam a palavra
do leitor agrave palavra alheia expressa no texto uma vez que o sujeito fala por meio da palavra dos
outros e todo enunciado eacute uma reacuteplica de um diaacutelogo que incorpora e se apropria do discurso de
outrem Os enunciados satildeo sempre dependentes daquilo que jaacute foi dito e soacute podem ser
compreendidos no fluxo da cadeia de interaccedilatildeo verbal Desse modo
A palavra (em geral qualquer signo) eacute interindividual Tudo o que eacute dito o que eacute
expresso se encontra fora da ldquoalmardquo do falante natildeo pertence apenas a ele A
palavra natildeo pode ser entregue apenas ao falante O autor (falante) tem os seus
direitos inalienaacuteveis sobre a palavra mas o ouvinte tambeacutem tem os seus direitos
tem tambeacutem os seus direitos aqueles cujas vozes estatildeo na palavra encontrada de
antematildeo pelo autor (porque natildeo haacute palavra sem dono) () Se natildeo esperamos
nada da palavra se sabemos de antematildeo tudo o que ela pode dizer ela sai do
diaacutelogo e se coisifica (BAKHTIN 2003 p 327 ndash 328)
149
A palavra eacute por assim dizer dialoacutegica pois pressupotildee o outro pressupotildee em si mesma
uma resposta
Isso decorre da natureza da palavra que sempre quer ser ouvida sempre procura
uma compreensatildeo responsiva e natildeo se deteacutem na compreensatildeo imediata mas abre
caminho sempre mais e mais agrave frente (de forma ilimitada)
Para a palavra (e consequentemente para o homem) natildeo existe nada mais terriacutevel
do que a irresponsividade Nem a palavra deliberadamente falsa eacute absolutamente
falsa e sempre pressupotildee uma instacircncia que a compreende e a justifica ainda
que seja na forma ldquono meu lugar qualquer um mentiriardquo (BAKHTIN 2003 p
333 grifos do autor)
Este trabalho discute a leitura na perspectiva bakhtiniana da teoria enunciativa da
linguagem que traz uma entonaccedilatildeo outra ao universo da relaccedilatildeo do leitor com o texto A
percepccedilatildeo dialeacutetica da linguagem preconizada pelo autor permite pensar a leitura como produccedilatildeo
de sentido instacircncia discursivo-simboacutelica mediadora das relaccedilotildees entre sujeitos Nesse panorama
teoacuterico Bakhtin (1983) explicita dois tipos de palavras alheias que adquirem um sentido
fundamental no processo de formaccedilatildeo ideoloacutegica do homem no mundo a palavra de autoridade e
a palavra internamente persuasiva Por meio dessas palavras o autor objetiva mostrar a
complexidade do processo de apropriaccedilatildeo linguiacutestico-discursiva que natildeo se funda somente na
repeticcedilatildeo e no reconhecimento da palavra alheia mas em sua re-elaboraccedilatildeo repercutindo de
forma diferente e sob uma nova perspectiva Assim se de um lado haacute discursos assumidos como
vozes de autoridade por outro lado haacute discursos que satildeo assumidos como vozes internamente
persuasivas
O discurso autoritaacuterio se estabelece no estatuto de verdade plena absoluta e consolida-se
ou reforccedila significados fixos que natildeo se modificam em contato com outras vozes Por ser
vinculado agrave autoridade (moral poliacutetica religiosa paterna do professor) eacute encontrado ao exigir
do homem o seu reconhecimento incondicional Aleacutem disso a palavra de autoridade se
materializa no discurso proferido natildeo existindo espaccedilo para argumentaccedilatildeo refutaccedilatildeo ou
contestaccedilatildeo pois
a palavra autoritaacuteria natildeo se representa ndash ela apenas eacute transmitida Sua ineacutercia
sua perfeiccedilatildeo semacircntica e rigidez sua singularizaccedilatildeo aparente e afetada a
impossibilidade de sua livre estilizaccedilatildeo tudo isto exclui a possibilidade da
representaccedilatildeo artiacutestica da palavra autoritaacuteria (BAKHTIN 1983 p 144)
150
Em contraposiccedilatildeo ao discurso de autoridade a palavra internamente persuasiva natildeo eacute
finita e riacutegida mas abre-se para muitas possibilidades de inferecircncia no discurso interior Eacute
dialoacutegica carrega em si parte da palavra proacutepria e parte da palavra do outro e em decorrecircncia
disso propicia negociaccedilotildees de significados encadeando a produccedilatildeo de novos sentidos Conforme
Bakhtin (1983 p144)
a estrutura semacircntica da palavra interiormente persuasiva natildeo eacute terminada
permanece aberta eacute capaz de revelar sempre todas as novas possibilidades
semacircnticas em cada um de seus novos contextos dialogizados () Noacutes a
introduzimos em novos contextos a aplicamos a um novo material noacutes a
colocamos numa nova posiccedilatildeo a fim de obter dela novas respostas novos
esclarecimentos sobre o seu sentido e novas palavras ldquopara noacutesrdquo (uma vez que a
palavra produtiva do outro engendra dialogicamente em resposta uma nova
palavra nossa)
Conforme exposto a linguagem eacute algo vivo mutaacutevel e estaacute em constante movimento
porque se daacute nas relaccedilotildees na troca na atitude responsiva A leitura nesse contexto eacute entendida
como um processo dialoacutegico e dinacircmico e o ensino do ato de ler numa perspectiva que considera
a responsividade a palavra internamente persuasiva e por assim dizer coloca constantemente a
crianccedila em diaacutelogo com o texto e com o outro A atitude responsiva na leitura requer a
compreensatildeo ativa e segundo Bakhtin (1992 p 131 ndash 132) ldquoqualquer tipo genuiacuteno de
compreensatildeo ativa deve conter jaacute o germe de uma resposta Soacute a compreensatildeo ativa nos permite
apreender o tema pois a evoluccedilatildeo natildeo pode ser aprendida senatildeo com a ajuda do outro processo
evolutivordquo
Essas afirmaccedilotildees remetem agrave ideia de que ldquoeacute especialmente por meio da linguagem que as
pessoas agem umas sobre as outras num processo contiacutenuo de autotransformaccedilatildeo Por isso a
linguagem eacute uma das mais importantes criaccedilotildees da humanidaderdquo (GONTIJO 2007 p 22) e a
liacutengua soacute pode ser analisada tendo em vista sua complexidade quando considerada como um
fenocircmeno socioideoloacutegico e apreendida dialeacutetica e dialogicamente no fluxo da histoacuteria
(BAKHTIN 1992 2003)
Ao tratar sobre a linguagem Bakhtin (1992) esclarece que a realidade psiacutequicainterior eacute a
do signo e eacute por meio deste que o organismo e o mundo se encontram O signo eacute um fenocircmeno
do mundo exterior resultado das praacuteticas sociais humanas e por esse motivo o conteuacutedo da
atividade psiacutequica origina-se da realidade exterior e estaacute impregnada por ela ldquoOs signos soacute
151
podem aparecer em um terreno interindividualrdquo (BAKHTIN 1992 p 35) No entanto natildeo basta
que dois homens estejam presentes face a face nesse mesmo terreno para que os signos se
constituam ldquoEacute fundamental que esses dois indiviacuteduos estejam socialmente organizados que
formem um grupo (uma unidade social) soacute assim um sistema de signos pode constituir-serdquo
(BAKHTIN 1992 p 35) Se o conteuacutedo do psiquismo eacute o signo constituiacutedo no terreno
interindividual a explicaccedilatildeo para o psiquismo para a atividade psiacutequica deve ser elaborada a
partir dessa realidade De acordo com Bakhtin (1992 p 35 ndash 36)
A consciecircncia adquire forma e existecircncia nos signos criados por um grupo
organizado no curso de suas relaccedilotildees sociais Os signos satildeo o alimento da
consciecircncia individual a mateacuteria de seu desenvolvimento e ela reflete sua
loacutegica e suas leis A loacutegica da consciecircncia eacute a loacutegica da comunicaccedilatildeo ideoloacutegica
da interaccedilatildeo semioacutetica de um grupo social Se privarmos a consciecircncia de seu
conteuacutedo semioacutetico e ideoloacutegico natildeo sobra nada A imagem a palavra o gesto
significante etc constituem seu uacutenico abrigo Fora desse material haacute apenas o
simples ato fisioloacutegico natildeo esclarecido pela consciecircncia desprovido de sentido
que os signos lhe conferem
Segundo Bakhtin (1992) a palavra a linguagem eacute o material semioacutetico da vida interior
da consciecircncia A palavra resulta do consenso entre indiviacuteduos constitui material veiculaacutevel pelo
corpo Disso decorre que a realidade psiacutequica eacute definida em termos da significaccedilatildeo pois esta eacute a
funccedilatildeo do signo ldquosem isso o signo natildeo eacute signo e a palavra natildeo eacute palavra Sem a significaccedilatildeo natildeo
existe atividade psiacutequicardquo (GONTIJO 2007 p 21)
Com essas afirmaccedilotildees acerca da constituiccedilatildeo da consciecircncia humana Bakhtin (1992 p
36) esclarece que ldquo[] a realidade dos fenocircmenos ideoloacutegicos eacute a realidade objetiva dos signos
sociais [] as leis dessa realidade satildeo diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e
econocircmicasrdquo Desse modo o signo existe na materializaccedilatildeo social e seu aspecto semioacutetico
aparece de forma completa na linguagem ldquoKarl Marx dizia que soacute uma ideia enunciada em
palavras se torna pensamento real para o outro e soacute assim para mim mesmordquo (BAKHTIN 2003
p 334) No entanto esse outro natildeo eacute apenas o outro imediato (o destinataacuterio segundo) ldquoa palavra
avanccedila cada vez mais agrave procura da compreensatildeo responsivardquo (BAKHTIN 2003 p 334) A
constituiccedilatildeo humana para Bakhtin eacute revestida por um princiacutepio dialoacutegico que se define pela
alteridade em outras palavras pela impossibilidade de pensar o homem fora das relaccedilotildees com o
outro
152
Eacute nesse contexto das relaccedilotildees dialoacutegicas que a leitura se situa Ler eacute compreender eacute
produzir sentido eacute uma praacutetica social histoacuterica e cultural (ARENA 1992 2010b
CHARMEAUX 1997 JOLIBERT 1994 SOUZA 2004) Ler eacute dialogar com o texto eacute
questionaacute-lo eacute construir e reconstruir o texto no interior do pensamento e estabelecer relaccedilotildees
ativas e dinacircmicas com ele Durante a leitura o sujeito leva em consideraccedilatildeo o discurso do outro
que estaraacute sempre presente no seu A leitura ocorre na atividade da proacutepria liacutengua em seu uso nas
relaccedilotildees sociais na interaccedilatildeo do escritor com o leitor na palavra interna persuasiva Nessa
perspectiva ndash perspectiva defendida neste trabalho ndash a leitura eacute um objeto da cultura e como tal
precisa ser ensinada agraves crianccedilas como algo que se contraponha ao ensino da leitura de forma
estaacutetica acabada em si mesma que nada refuta nada reflete nada refrata e que reduz o discurso
escrito a um compilado de letras siacutelabas palavras e frases portanto o natildeo-discurso Quando a
crianccedila dialoga com o texto atua nele e tem uma atitude responsiva ela assume pra si o estatuto
de leitor
Segundo Jolibert (1994 p 31) ldquoa vida cotidiana estaacute cheia de oportunidades de leiturardquo e
muitos satildeo os motivos e situaccedilotildees que provocam a necessidade de ler nas crianccedilas ldquoque levam as
crianccedilas a lerem pra valerrdquo ler para responder agrave necessidade de viver com os outros para se
comunicar para descobrir as informaccedilotildees das quais se necessita para fazer (brincar construir
levar a termo um projeto-empreendimento) para alimentar o imaginaacuterio para documentar uma
pesquisa em andamento na turma Essas satildeo situaccedilotildees reais de leitura nas quais as crianccedilas satildeo
provocadas por um interesse uma necessidade criada um desejo
Jolibert (2006 p 183 grifos do autor) ao tratar do ensino e da aprendizagem da leitura
esclarece que
Ler eacute ler de saiacuteda compreensivamente desenvolvendo ndash em uma situaccedilatildeo real de
uso ndash uma intensa busca do sentido do texto [] O leitor procura desde o
iniacutecio o sentido do texto utilizando ndash para construiacute-lo ndash diferentes processos
mentais e coordenando muitos tipos de indiacutecios (contexto tipo de texto tiacutetulo
marcas gramaticais significativas palavras letras etc) Na escola ler eacute ler ldquode
verdaderdquo desde o iniacutecio textos autecircnticos completos em situaccedilotildees reais de uso
e relacionados aos projetos necessidades e desejos em pauta
Diante desses pressupostos eacute possiacutevel afirmar que as crianccedilas aprendem a ler e se
tornaratildeo leitoras se realmente estiverem motivadas se sentirem necessidade de ler de conhecer
de se expressar se tiverem disponiacuteveis agrave matildeo os escritos sociais os escritos da realidade
153
42 A leitura do gecircnero discursivo carta
Neste item seratildeo apresentados os dados e sua anaacutelise relacionados agraves situaccedilotildees de leitura
com o gecircnero discursivo carta
Como foi exposto no capiacutetulo I o trabalho pedagoacutegico com a carta iniciou-se na roda da
conversa no mecircs de abril de 2010 A coordenadora da escola em que se deu a pesquisa entregou
para as crianccedilas uma carta de uma turma de Infantil II de uma escola municipal de Educaccedilatildeo
Infantil da zona sul da mesma cidade A correspondecircncia interescolar com uma professora dessa
unidade escolar da cidade jaacute ocorria havia trecircs anos mas com as crianccedilas era a primeira vez que
participavam de um trabalho envolvendo esse gecircnero discursivo A professora da turma
correspondente apresentava em suas praacuteticas concordacircncia com as ideias da Pedagogia Freinet
Assim que a primeira carta foi recebida conversei com as crianccedilas
P Pessoal recebemos uma carta quem seraacute que escreveu
C5 Eu acho que eacute do correio
A12 Eu acho que eacute da diretora
P Mas por que a diretora nos escreveria uma carta se ela estaacute aqui na escola
C12 Ah eacute mesmo neacute Entatildeo eu natildeo sei
P Vocecircs jaacute receberam uma carta alguma vez aqui na escola
Todas Natildeo
P Algueacutem de vocecircs jaacute recebeu uma carta em casa
Todas Natildeo
P Para que vocecircs acham que algueacutem escreve uma carta para outra pessoa
C13 Hum eu acho que eacute pra contar coisas
P Quais coisas
C13 Ah eu acho que eacute pra contar coisas que a gente quer que a outra pessoa
fique sabendo
P Ah eacute
P O que mais vocecircs acham que pode ter uma carta O que pode estar escrito
nela
Todas (As crianccedilas silenciaram e estavam atentas ao envelope grande que eu
segurava nas matildeos)
C11 Que cartona que a gente recebeu neacute pro (referia-se ao tamanho e volume
do envelope)
P Sim o envelope eacute grande (deixo que as crianccedilas tambeacutem o manuseiem)
C9 Deve ter mais coisas aqui aleacutem da carta eu acho porque o envelope estaacute
gordo
C4 Eacute mesmo (a crianccedila manuseia tambeacutem o envelope e concorda com o colega
da turma)
P Hum eu acho que temos vaacuterias coisas a descobrir quem mandou a carta por
que nos mandou essa carta o que diz a carta e o que tem dentro do envelope
aleacutem da carta
Todas Eacute mesmo
154
C11 Pro acho que no envelope estaacute escrito quem mandou a carta
P E onde vocecirc acha que deve estar escrito
Todas (As crianccedilas apontam para o lado do envelope que estava voltado para
elas)
P (viro e mostro o envelope do outro lado)
C7 Eacute mesmo E agora Como eacute que a gente vai saber quem mandou a carta se
tem coisa escrita dos dois lados (do envelope)
C13 Eacute soacute a professora ler ueacute Lecirc pro leia logo porque todo mundo quer saber
o que estaacute escrito aiacute
Em seguida li para as crianccedilas os dados presentes no envelope e expliquei que para uma
carta chegar ao seu destino precisa conter os dados completos do destinataacuterio e do remetente
Mostrei no envelope os dados de quem enviara e os dados da nossa turma Expliquei que se
tratava de crianccedilas da mesma idade delas de uma escola localizada na regiatildeo sul da nossa cidade
e que se chamava ldquoTurma do Dedo Verderdquo ndash como constava no envelope ndash e que eu conhecia a
professora
Abri o envelope e orientei que ficassem agrave vontade para observarem a carta e os presentes
recebidos ndash desenhos de auto-retrato feitos pelas crianccedilas individualmente e o mapa do bairro da
escola Durante cerca de 30 minutos fizeram observaccedilotildees expressadas por meio de falas e
atitudes Provoquei-as a observar cada aspecto e fiz diversos questionamentos ldquoQuando seraacute que
foi escritardquo ldquoO que seraacute que essa turma nos contardquo As fotos a seguir trazem contribuiccedilotildees para
compreender a situaccedilatildeo de leitura descrita anteriormente e o ensino e a aprendizagem por meio
desse gecircnero discursivo
155
(Foto 1 - Situaccedilatildeo fotografada e gravada no dia 190310)
Na foto 1 estatildeo observando a primeira carta recebida da Turma do Dedo Verde Como a
carta eacute longa com desenhos feitos pelas crianccedilas correspondentes que ilustram cada assunto
abordado por elas e por ter fotos eles se sentam dos dois lados e comentam tudo o que veem
Uma menina sentada proacutexima agrave parede em que estaacute fixado o iniacutecio aponta para algo escrito logo
abaixo de um desenho Outra garota do mesmo lado da menina observa as fotos atentamente e
entre elas duas trecircs meninos conversam entre si Quando os questiono sobre o que veem
respondem
C9 Que carta da hora neacute pro
P Vocecircs gostaram
C12 Eacute mor legal (Expressatildeo que indica ser ldquomuito legalrdquo) Parece uma carta
gigante
P E por que seraacute que a ldquoTurma do Dedo Verderdquo nos escreveu uma carta tatildeo
grande
156
C9 Ah ela deve estar falando um monte de coisas pra gente natildeo estaacute pro Eu
acho que estaacute sim
P E o que seraacute que as crianccedilas dessa turma estatildeo falando pra gente O que elas
teriam para nos contar
C5 Eu acho que elas estatildeo contando um monte de coisas que elas sabem que a
nossa turma eacute a ldquoTurma do Solrdquo acho que estatildeo falando os nomes delas no
final da carta
P Por que vocecirc acha isso
C5 Porque elas desenharam um sol bem grande logo no comeccedilo da carta e no
final tem um monte de nomes eu acho que eacute o nome delas pra gente saber
quem satildeo elas
C12 Pro lecirc logo pra gente Todo mundo quer saber
E depois de terem observado e conversado sobre suas observaccedilotildees li para as
crianccedilas a carta Ao final da leitura C1 diz
C1 A gente precisa escrever uma carta pra essa turma tambeacutem Pro Agora as
crianccedilas de laacute vatildeo ficar esperando a nossa carta
P Vocecircs concordam com C1
Todas Oba Sim
C7 A gente tambeacutem tem um monte de coisas pra contar pra elas
O relato da observaccedilatildeo da foto 1 e dos diaacutelogos com as crianccedilas antes e depois da leitura
da carta demonstram minha intencionalidade como professora no ensino da leitura e da
apresentaccedilatildeo do gecircnero discursivo carta Tal intencionalidade se revela na forma como organizo
o espaccedilo da sala o tempo para a observaccedilatildeo das crianccedilas e minha interaccedilatildeo com o gecircnero e o
suporte Tambeacutem se revela nos questionamentos desde o momento em que recebi o envelope nas
matildeos instigando-as a pensarem sobre a carta sobre a sua finalidade e sobre o seu funcionamento
como se verifica em minhas perguntas ldquoPara que vocecircs acham que algueacutem escreve uma carta
para outra pessoardquo ldquoO que mais vocecircs acham que pode ter uma cartardquo ldquoO que pode estar
escrito nelardquo ldquoHum eu acho que temos vaacuterias coisas a descobrir quem mandou a carta por que
nos mandou essa carta o que diz a carta e o que tem dentro do envelope aleacutem da cartardquo Com
esse procedimento pode-se inferir que eu como professora ensino as crianccedilas a questionarem o
texto a buscarem indiacutecios a elaborarem suas hipoacuteteses a dialogar com o texto desde o princiacutepio
e a ter uma atitude responsiva que pode ser constatada desde o iniacutecio desse processo quando uma
crianccedila depois da leitura feita por mim declara ldquoA gente precisa escrever uma carta pra essa
turma tambeacutem Pro Agora as crianccedilas de laacute vatildeo ficar esperando a nossa cartardquo
A atitude responsiva eacute percebida desde a conversa inicial da chegada da carta e marca o
caraacuteter dialoacutegico das relaccedilotildees que satildeo estabelecidas ndash da professora com as crianccedilas das crianccedilas
com a carta das crianccedilas com a linguagem e das crianccedilas com o outro com o outro real Assim
157
O ato da linguagem eacute determinante para o engendramento de aspectos
ideoloacutegicos culturais histoacutericos nas mais variadas esferas sociais tais aspectos
sobrepesam a configuraccedilatildeo e o funcionamento do ato na accedilatildeo comunicativa De
certo modo haacute paracircmetros sociais seguidos de maneira ritualiacutestica que acabam
por oferecer o arsenal de escolhas possiacuteveis para a interaccedilatildeo verbal Poder-se-ia
afirmar que essa relaccedilatildeo descrita essencialmente dialoacutegica eacute garantida ou
traduzida pelo que Bakhtin (2003) definiu como gecircnero do discurso (RIBEIRO
2010 p 55)
Pode-se dizer que desde a conversa inicial e com os diaacutelogos travados entre as crianccedilas e
eu entre as proacuteprias crianccedilas a comunicaccedilatildeo eacute feita sempre por meio de um gecircnero discursivo e
por meio desse gecircnero mais simples em sua composiccedilatildeo a professora introduz o ensino de outro
gecircnero a carta Por essa razatildeo haacute a necessidade de identificar os aspectos constitutivos do
gecircnero ndash ldquoas condiccedilotildees de sua produccedilatildeo os campos de atividade humana nos quais ele eacute
construiacutedo os possiacuteveis papeacuteis assumidos pelos participantes desse campo a sua funccedilatildeo social
(RIBEIRO 2010 p 55) ndash uma vez que ldquoateacute mesmo no bate-papo mais descontraiacutedo e livre noacutes
moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gecircnero agraves vezes padronizadas e
estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativasrdquo (BAKHTIN 2003 p 282)
Pela conversa inicial percebe-se que as crianccedilas nunca tinham recebido elas mesmas
cartas na escola ou em casa Depois de observarem o envelope e a carta aberta na sala
reconheceram a professora como a pessoa experiente que poderia mediar a sua relaccedilatildeo com os
enunciados enviados pelas outras crianccedilas Isso se verifica ao solicitarem a leitura da carta em
diferentes momentos ldquoEacute soacute a professora ler ueacute Lecirc pro leia logo porque todo mundo quer
saber o que estaacute escrito aiacuterdquo ldquoPro lecirc logo pra gente Todo mundo quer saberrdquo
Outro aspecto relevante merece ser ressaltado C1 sugere e os demais concordam que
seja escrita uma resposta aos correspondentes e C7 acrescenta ldquoA gente tambeacutem tem um monte
de coisas pra contar pra elasrdquo Essa fala denota que a crianccedila possivelmente deseja partilhar
expressar comunicar temas e acontecimentos e com isso reafirma o processo de apropriaccedilatildeo da
linguagem escrita que como tem sido defendido neste trabalho nasce do desejo de expressatildeo do
sujeito
No ato de ler e escrever aleacutem de mobilizar o conjunto dessas funccedilotildees
intelectuais a crianccedila tambeacutem precisa ter vontade de expressar ou comunicar
alguma experiecircncia vivida ou a vontade de conhecer a experiecircncia dos outros
contadas num texto (MILLER MELLO 2008 p 6 ndash 7)
158
A
foto 2 refere-se tambeacutem a uma situaccedilatildeo de leitura da carta recebida dos correspondentes da
ldquoTurma do Dedo Verderdquo Como costumeiramente era feito antes que eu fizesse a leitura para
eles eu conversava sobre o que os correspondentes poderiam ter escrito para a Turma do Sol e
assim iam levantando suas hipoacuteteses buscando sempre novos indiacutecios e baseados nas cartas
anteriores e no diaacutelogo contiacutenuo estabelecido por meio dessa interlocuccedilatildeo faziam previsotildees
sempre confirmadas ou natildeo agrave medida que eu lia oralmente Com as sucessivas leituras que se
tornaram frequentes e com as discussotildees dos elementos constitutivos desse gecircnero discursivo as
crianccedilas comeccedilaram a estabelecer relaccedilotildees durante a audiccedilatildeo
(Foto 2 ndash Situaccedilatildeo fotografada e gravada no dia 160510)
Nessa foto 2 as crianccedilas observam os nomes escritos ndash as assinaturas ndash dos
correspondentes e um dos garotos apontando para um dos nomes diz aos colegas
C2 Olha algueacutem escreveu o meu nome aqui
159
C13 Eacute que tem algueacutem laacute daquela turma que tem o mesmo nome que o seu
vocecirc se esqueceu Tem gente que tem o mesmo nome da gente natildeo eacute pro
P Sim haacute pessoas que tecircm o mesmo nome da gente Leia se haacute o sobrenome na
frente desse primeiro nome C2
(C2 e as outras crianccedilas sentadas ao seu lado olham atentamente para o escrito)
C2 Hum natildeo tem nada mas na proacutexima carta eu quero escrever meu nome
inteiro assim ningueacutem fica pensando que eu sou ele Vocecirc me ensina pro a
escrever meu nome inteiro
P Claro C2 assim vocecirc poderaacute escrevecirc-lo sempre que for necessaacuterio
C2 Aiacute quando elas forem ler a carta que a gente mandar e elas forem ler os
nomes de quem mandou a carta elas vatildeo saber direito que C2 que eacute
C11 Mas eu acho que elas natildeo sabem ler ainda C2
C2 Mas a professora delas pode ler pra elas igual a nossa faz e aiacute elas tambeacutem
vatildeo aprendendo
Por meio da observaccedilatildeo e leitura da carta pode-se perceber que as crianccedilas estabelecem
relaccedilotildees com a escrita e com o outro e que essas relaccedilotildees provocam outras aprendizagens como
se verifica nessa fala de C2 ldquo mas na proacutexima carta eu quero escrever meu nome inteiro assim
ningueacutem fica pensando que eu sou ele Vocecirc me ensina pro a escrever meu nome inteirordquo
Nessa fala pode-se inferir tambeacutem que as crianccedilas percebem a minha mediaccedilatildeo como professora
nesse processo de apropriaccedilatildeo da leitura e eu as instigo frequentemente a buscar elementos que
possam pensar sobre o que veem e ouvem ldquoSim haacute pessoas que tecircm o mesmo nome da gente
Leia se haacute o sobrenome na frente desse primeiro nome C2rdquo A professora ao questionar e a
ensinar a questionar o texto ao criar situaccedilotildees de leitura em que interajam e dialoguem com o
escrito permite que criem para si necessidades para ler e para escrever assim como nesta fala
ldquoAiacute quando elas forem ler a carta que a gente mandar e elas forem ler os nomes de quem mandou
a carta elas vatildeo saber direito que C2 que eacuterdquo Ou ainda quando C11 diz ldquoMas eu acho que elas
natildeo sabem ler ainda C2rdquo e C2 responde ldquoMas a professora delas pode ler pra elas igual a nossa
faz e aiacute elas tambeacutem vatildeo aprendendordquo
Dos discursos proferidos pelas crianccedilas nessa situaccedilatildeo de leitura ressalta o papel do
sentido nas relaccedilotildees que os sujeitos estabelecem com o mundo que aos poucos conhece e nas
aprendizagens que gradativamente faz Leontiev (1981) afirma que o conhecimento eacute
indubitavelmente fator de desenvolvimento e humanizaccedilatildeo no processo ontogeneacutetico mas
ressalta que para que o conhecimento eduque eacute preciso antes educar no sujeito sua atitude em
relaccedilatildeo ao conhecimento (LEONTIEV 1981)
Leontiev (1981) ao abordar sobre a formaccedilatildeo da atitude frente ao conhecimento se refere
ao sentido que as crianccedilas atribuem aos objetos da cultura com os quais se defrontam ao longo da
160
infacircncia ldquoEsse sentido condiciona toda relaccedilatildeo que estabelecem com esses objetos a partir de
entatildeo ndash num processo dinacircmico de formaccedilatildeo e desenvolvimento de sentido - em outras palavras
condiciona a atitude da crianccedila frente a esses objetosrdquo (MELLO 2011 p 2) Disso decorre que
essa atitude da crianccedila constitui-se como uma resposta sua ao objeto ldquosua atitude depende do que
o objeto significa para ela como ela o entende como o objeto a afeta e quanto a afetardquo (MELLO
2011 p 2) Para Leontiev (1981 p 234 traduccedilatildeo nossa) o sentido eacute ldquoesse aspecto da consciecircncia
do indiviacuteduo determinado por suas relaccedilotildees vitais proacutepriasrdquo 17
Em outras palavras a atitude das
crianccedilas frente aos objetos condicionada pelo que eles significam para elas natildeo eacute algo que se
ensina como um produto mas eacute elemento da consciecircncia que se forma como um processo Com
base nessas afirmaccedilotildees no processo de ensino e de aprendizagem o planejamento intencional das
situaccedilotildees de leitura a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo destinado a isso a mediaccedilatildeo do
professor e principalmente as relaccedilotildees que satildeo estabelecidas com esse objeto cultural contribuem
para que as crianccedilas atribuam um sentido para a leitura e para a sua atitude de aprender a ler
Ainda que o sentido seja formado intencionalmente na escola o sentido que uma crianccedila
atribui a um objeto ldquonatildeo se ensina se educardquo18
(LEONTIEV 1981 p 234 traduccedilatildeo nossa) se
constitui como produto das relaccedilotildees estabelecidas com os objetos da cultura histoacuterica e
socialmente elaborada
Podemos dizer que a intencionalidade do outro nesse aprender precisa considerar
as relaccedilotildees reais que as crianccedilas estabelecem com os objetos da cultura na escola
e a complexidade desse processo de atribuiccedilatildeo de sentido pelas crianccedilas
(MELLO 2011 p 2)
Desse modo as situaccedilotildees vivenciadas e as relaccedilotildees estabelecidas com o gecircnero com os
interlocutores e com a escrita criam atitudes positivas diante do conhecimento necessidade de
saber de aprender
Outra situaccedilatildeo de leitura de carta eacute apresentada para se compreender o processo de
apropriaccedilatildeo de leitura por meio do gecircnero carta Com o objetivo de ampliar as experiecircncias para
que compreendessem todo o processo de emissatildeo e de recepccedilatildeo da correspondecircncia fiz com elas
uma aula-passeio agrave agecircncia central dos Correios As aulas-passeio satildeo tambeacutem uma das teacutecnicas
17
Trecho original da citaccedilatildeo (LEONTIEV1981 p 234) [] que aquel aspecto de la conciencia del individuo
determinado por sus relaciones vitales propias es el sentido 18
Trecho original da citaccedilatildeo (LEONTIEV1981 p 234) El sentido no se ensentildea el sentido se educa
161
da Pedagogia Freinet Satildeo saiacutedas ao ar livre ndash aulas de campo ndash que oportunizam maior contato
com o proacuteprio meio permitindo descobertas que motivam a re-criaccedilatildeo dos textos livres
Antes de postarem a carta aos correspondentes ndash pesaram verificaram o valor e fizeram o
pagamento da taxa Em seguida foram conhecer por meio de um responsaacutevel a parte interna e o
trabalho dos funcionaacuterios Em meio a conversas e explicaccedilotildees de um monitor que nos
acompanhavam nesse passeio trecircs crianccedilas pararam numa caixa em que as correspondecircncias jaacute
estavam separadas para que o carteiro fizesse a entrega
(Foto 3 - Situaccedilatildeo fotografada e gravada no dia 010610)
C7 Olha C6 que carta linda Acho que eacute uma carta de amor (as crianccedilas riem)
C6 Por que vocecirc acha isso
C7 Porque tem um monte de adesivos de coraccedilatildeo grudados no envelope e o
envelope eacute vermelho
C13 Ah mas pode ser uma carta de amigas ou de amigos
C7 Hum natildeo parece parece de amor
C13 Daacute pra ler quem mandou (C13 lecirc o nome do destinataacuterio) eacute nome de
homem
C6 Ih mas e quem que estaacute mandando A gente precisava saber
C13 Nem precisa olha aqui (aponta com o dedo indicador direito) estaacute
escrito aqui em cima ldquoPara o meu amorrdquo (as crianccedilas riem novamente)
162
A anaacutelise da foto e dos dados apresentados pela conversa entre as crianccedilas denota que ao
criar necessidades de leitura o interesse por ler se manifesta em diferentes situaccedilotildees e que se
aprende a ler em situaccedilotildees reais (JOLIBERT 1994 2006)
Quando as cartas satildeo redigidas e os envelopes satildeo preenchidos as crianccedilas
entram em contato com modelos convencionais de escrita [] Como se pode
perceber com esse tipo de texto escrito as crianccedilas tecircm oportunidade de se
apropriar de conteuacutedos culturais dos quais necessitaraacute para inserir-se no processo
de comunicaccedilatildeo com outras pessoas Isso inclui natildeo soacute saber qual a funccedilatildeo da
carta como eacute o seu tracircnsito de pessoa a pessoa quanto custa esse tracircnsito mas
tambeacutem quais os recursos de escrita satildeo necessaacuterios para que esse veiacuteculo de
comunicaccedilatildeo se concretize o que implica a assimilaccedilatildeo de certos conceitos
envolvidos nesse processo (MILLER MELLO 2005 p 13 ndash 14)
Na situaccedilatildeo analisada as crianccedilas levantam suas hipoacuteteses para saber se se trata de uma
carta de amor por meio dos questionamentos que fazem no escrito do envelope e de outros
elementos natildeo verbais como os adesivos de coraccedilatildeo e a cor No processo inicial de apropriaccedilatildeo
da leitura as crianccedilas buscam indiacutecios no envelope para descobrirem informaccedilotildees e realizarem a
leitura Quanto a isto ressalta-se que
A interpretaccedilatildeo de um signo natildeo pode coincidir somente com sua identificaccedilatildeo
mas tambeacutem requer compreensatildeo ativa O sentido de um signo consiste em algo
mais no que diz respeito aos elementos que permitem seu reconhecimento Eacute
feito desses aspectos semacircntico-ideoloacutegicos que satildeo em certo sentido uacutenicos
que tem algo de peculiar e de indissoluvelmente ligado ao contexto situacional
da semiose A compreensatildeo do signo eacute uma compreensatildeo ativa pelo fato de que
requer uma resposta uma tomada de posiccedilatildeo nasce de uma relaccedilatildeo dialoacutegica e
provoca uma relaccedilatildeo dialoacutegica vive como resposta a um diaacutelogo (PONZIO
2011 p 186 ndash 187)
Ao considerar esses pressupostos pode-se inferir que as crianccedilas tecircm uma atitude
responsiva uma atitude leitora uma vez que observam os elementos presentes no envelope
fazem inferecircncias questionam opinam dialogam com os dados percebidos e elaboram uma
contrapalavra Ao compreenderem os signos participam de uma compreensatildeo ativa
A situaccedilatildeo a seguir denota o caraacuteter dialoacutegico das crianccedilas com o gecircnero carta e seus
elementos constitutivos
163
Numa tarde antes das crianccedilas chegarem agrave escola afixei na parede da sala de aula em que
estavam outros textos de diferentes gecircneros ndash receita poesia carta histoacuteria em quadrinhos conto
ndash uma carta diferente das outras recebidas de nossos correspondentes escrita em uma uacutenica folha
de sulfite recebida por e-mail de uma amiga geoacutegrafa em resposta a uma pergunta feita pelas
crianccedilas em nossas pesquisas sobre um fenocircmeno que ocorre no Oriente chamado ldquoSol da meia-
noiterdquo Assim que chegou o e-mail o imprimi e o levei para as crianccedilas Natildeo fiz nenhum
comentaacuterio inicialmente e aguardei que observassem e se manifestassem Enquanto
organizaacutevamos o espaccedilo da sala de aula como costumeiramente faziacuteamos duas crianccedilas
perceberam o novo texto na parede e me perguntaram
C6 Ocirc pro foi vocecirc quem colocou isso aqui (refere-se ao novo texto afixado)
P Sim fui eu O que acharam
C13 Hum isso aqui estaacute me cheirando uma carta
P E por que vocecirc acha que eacute uma carta
C13 Porque logo aqui em cima no comeccedilo acho que estaacute escrito ldquoProfessora G e
Turma do Solrdquo (referia-se agrave saudaccedilatildeo ou cumprimento) aiacute depois tem umas
coisinhas escritas uma mensagem Natildeo eacute uma mensagem Eu acho que eacute
simparece (silencia por alguns instantes e seus olhos movimentam-se em
direccedilatildeo ao escrito como se estivesse a ler) e depois dessas coisas escritas tem
uma despedida Olha soacute Aqui estaacute escrito ldquoAbraccedilos amigosrdquo
P Mas natildeo tem a data de quando foi escrita a carta
C6 Tem que ter neacute professora
P Onde estaacute
C13 e C6 observam atentamente direcionam o olhar por toda a folha e depois de
alguns instantes C13 diz
C13 Achei Ela estaacute aqui oacute (aponta com o dedo indicador na folha) eacute que eacute a
data econocircmica (refere-se a data abreviada registrada somente com nuacutemeros ndash
dia mecircs e ano)
P Sim eacute verdade Mas se eacute uma carta quem a escreveu
C13 Hum ah (volta a dirigir o olhar por toda a folha pensa silencia e diz)
C13 Jaacute sei eacute esse nome que estaacute aqui debaixo dos ldquoabraccedilos amigosrdquo (aponta
com o dedo indicador direito o nome encontrado) olha e eacute igual ao nome da
PA (refere-se a coordenadora da escola)
P Realmente eacute igual ao nome da PA
C13 Natildeo falei que eacute uma carta
Com o contato frequente com cartas com as situaccedilotildees de leitura vivenciadas por meio
desse gecircnero e com as relaccedilotildees dialoacutegicas estabelecidas pode-se dizer que as crianccedilas natildeo
somente identificam os elementos que a compotildeem ndash conteuacutedo temaacutetico construccedilatildeo
164
composicional e estilo (BAKHTIN 2003) ndash mas compreendem o seu funcionamento e a sua
dinacircmica
C13 ao observar o novo texto afixado na parede revela logo de iniacutecio antes da leitura a
ser feita pela professora sua hipoacutetese de que se trata de uma carta ao dizer ldquoHum isso aqui estaacute
me cheirando uma cartardquo Ao tentar responder agraves perguntas da professora e orientada por seu
interesse e necessidade em saber que texto eacute esse que se apresenta ela lecirc o texto e ao dialogar
com ele encontra as respostas ao perceber a construccedilatildeo composicional vinculada com a forma
arquitetocircnica determinada pelo projeto enunciativo do locutor que natildeo se confunde com uma
forma riacutegida porque pode se alterar de acordo os projetos enunciativos (SOBRAL 2009) Em
outras palavras a crianccedila percebe que eacute uma carta ainda que esse gecircnero natildeo tenha se
apresentado na forma costumeira elaborada recebida pelos correspondentes
Pode-se inferir que a crianccedila ao analisar o texto tambeacutem percebe o estilo um aspecto do
gecircnero que indica fortemente sua mutabilidade ldquopois eacute a um soacute tempo expressatildeo da comunicaccedilatildeo
discursiva especiacutefica do gecircnero e expressatildeo pessoal mas natildeo subjetiva do autor ao criar uma
nova obra no acircmbito de um gecircnerordquo (SOBRAL 2009 p 119) Os dados tambeacutem revelam que a
crianccedila percebe o conteuacutedo temaacutetico ou tema elemento esse que natildeo se confunde com ldquoassuntordquo
uma vez que pode se falar de um determinado assunto e ter outro tema (SOBRAL 2009 p 119)
Esses elementos satildeo percebidos quando reconhece cada parte mesmo que a data por exemplo
tambeacutem esteja escrita soacute em nuacutemeros (dia mecircs e ano) e natildeo por extenso (nome da cidade dia
mecircs e ano) como as crianccedilas costumam ler e escrever nas cartas recebidas e enviadas ainda que
natildeo esteja logo no iniacutecio mas no rodapeacute da folha impressa uma vez que ateacute aquele momento natildeo
tinham tido acesso a e-mails e por conseguinte natildeo utilizavam ou participavam desse tipo de
suporte do gecircnero conhecido em outro o papel no interior de um envelope
A crianccedila aponta que depois da saudaccedilatildeo haacute uma mensagem e aparenta esforccedilo para ler
possivelmente porque as explicaccedilotildees dadas pela geoacutegrafa traziam termos natildeo antes vistos ou
sabidos pela crianccedila sobre o fenocircmeno ldquoSol da meia-noiterdquo que posteriormente foi pesquisado
Esse fato revela o estilo da autora do texto que ao abordar um assunto ateacute aquele momento
desconhecido escreve de uma forma peculiar dentro de sua escolha e de sua condiccedilatildeo
profissional na elucidaccedilatildeo das informaccedilotildees abordadas Outro aspecto relevante eacute que a hipoacutetese
da crianccedila desde o comeccedilo eacute de que o texto se tratava de uma carta e a reconhece no meio de
165
vaacuterios outros textos de outros gecircneros discursivos tambeacutem afixados na parede junto a esse ndash
poesia receita conto entrevista
Com a anaacutelise do dado apresentado ressalta-se que ldquoo texto exibe indiacutecios (ou marcas) de
gecircnero de modo imediato mas natildeo de maneira transparente e a discursividade eacute assim uma
mediaccedilatildeo constitutiva entre gecircnero e texto ou seja o discurso eacute mobilizado pelo gecircnero e
mobiliza o textordquo (SOBRAL 2010 p 15) Por meio do trabalho intencional de leitura da carta e
das relaccedilotildees que a crianccedila estabelece com ela com seus elementos constitutivos e com o outro a
crianccedila eacute capaz de se apropriar gradativamente do gecircnero e dos modos de operar com a escrita
43 A leitura do gecircnero discursivo relatos de vida
As situaccedilotildees de leitura analisadas a seguir correspondem ao gecircnero discursivo relatos de
vida relacionados aos fatos vividos pelas crianccedilas escritos no livro da vida um compilado de
textos produzidos pelas crianccedilas que conta o que se passa na vida do grupo Eacute uma teacutecnica
Freinet voltada para o trabalho com a leitura e a escrita mas que apresenta antes de tudo uma
preocupaccedilatildeo em permitir que as crianccedilas expressem suas ideias impressotildees sensaccedilotildees
sentimentos opiniotildees Trata-se de um livro de registros escritos e desenhados dos acontecimentos
mais relevantes ocorridos no dia da turma Satildeo vivecircncias cotidianas expressatildeo de acontecimentos
reais que a marcaram de alguma forma
Os registros no livro da vida iniciaram-se no mecircs de marccedilo de 2010 Expliquei na roda da
conversa o seu funcionamento alguns dos textos criados seriam de toda a turma ndash textos criados
coletivamente com as experiecircncias de todo o grupo ndash e outros poderiam ser escritos
individualmente conforme quisessem ou sentissem a necessidade de fazecirc-lo Essa teacutecnica
Freinet aleacutem de ser utilizada para gerar dados tambeacutem faz parte do contexto em que o meu
trabalho pedagoacutegico como professora pesquisadora se realizou Todos os textos escritos e lidos
tornam-se materiais de leitura e ficam expostos na sala para consulta assim como as
correspondecircncias e outros materiais produzidos por elas ou natildeo como jornais livros gibis
revistas infantis enciclopeacutedias folhetos mapas O livro da vida tambeacutem eacute lido pelos pais quando
participam das reuniotildees pelos funcionaacuterios da escola quando se sentem instigados para saber dos
registros comentados pelas crianccedilas em situaccedilotildees diversas e pelos correspondentes da turma por
ocasiatildeo da visita ou ainda pelas proacuteprias cartas enviadas A situaccedilatildeo de leitura de relato de vida
166
analisada a seguir traz diferentes aspectos sobre a relevacircncia desse gecircnero discursivo na formaccedilatildeo
de leitores e re-criadores de textos
Em comemoraccedilatildeo ao dia das matildees e com o trabalho de correspondecircncia jaacute iniciado com a
turma fiz com as crianccedilas uma aula-passeio ao correio quando puderam conhecer o processo de
envio postagem e recebimento de cartas escritas para as suas matildees com seus desenhos a elas
dedicados Ao voltarmos na escola C13 propocircs que escrevecircssemos nossa aula passeio no livro da
vida Terminado o texto fiz a sua leitura oral
Mariacutelia 29 de abril de 2010
Hoje a nossa turma fez um passeio no Correio junto com a turma da
professora L e por isso a gente veio no periacuteodo da manhatilde para a escola
A gente foi de ocircnibus e viu um monte de coisas no caminho Eacute super legal
andar de ocircnibus
A gente foi ao Correio levar as cartinhas que a gente escreveu para as
nossas matildees
Laacute no Correio o moccedilo que ficava recebendo as cartas deixou cada um
colar o selo na sua proacutepria carta e depois ele carimbava
A gente levou dinheiro para pagar o selo e ainda sobrou troco
Depois a gente conheceu o Correio todo e o moccedilo que trabalha laacute explicou
como eacute que as cartas chegam ao lugar que a gente quer
A gente conversou com os carteiros e viu eles separando as
correspondecircncias
Todo mundo gostou do passeio
Turma do Sol ndash Infantil II
Depois da leitura do texto conversei com as crianccedilas sobre o que eu havia transmitido a
eles oralmente
P Pessoal haacute alguma coisa a mais que vocecircs gostariam de colocar nesse texto
C1 Hum acho que natildeo pro mas toda hora repete a gente
P Vocecircs concordam com C1
Todas (ningueacutem faz comentaacuterio)
P Bem eu vou ler novamente o texto e vocecircs me falam se vocecircs acham que C1
tem razatildeo tudo bem
Todas (Todas concordam)
Terminada a segunda leitura pergunto
P O que vocecircs acham
C13 Nossa pro eacute verdade toda hora a gente escreveu a gente
P E o que podemos fazer para o nosso texto ficar melhor e natildeo repetir tanto a
gente
167
C13 A gente pode trocar a gente por ldquonoacutesrdquo eacute a mesma coisa natildeo eacute Aiacute natildeo fica
toda hora falando do mesmo jeito
P Sim eacute uma boa ideia Faremos isso no texto de amanhatilde
C5 Pro eacute muito legal ler as coisas do livro da vida neacute
P Eacute E por que vocecirc acha legal
C5 Porque a gente pode contar coisas bem legais a gente pode escrever as
coisas aiacute e todo mundo vai poder ler qualquer hora Vocecirc deixa minha matildee ler
quando ela vier na reuniatildeo (refere-se agrave leitura do livro da vida pela matildee na
ocasiatildeo da Reuniatildeo de Pais e Mestres na escola)
P Claro que sim seus pais e quem mais quiser (e todas as demais crianccedilas
pediram para que eu deixasse seus familiares tambeacutem lerem)
O livro da vida eacute a documentaccedilatildeo do dia a dia da turma e o relato de vida emerge dessa
situaccedilatildeo de realizar essa documentaccedilatildeo Na anaacutelise da situaccedilatildeo descrita a crianccedila parece se
reconhecer como sujeito desse processo em que vive e que registra sua proacutepria histoacuteria Agrave medida
que faz isso tambeacutem interage com a liacutengua e percebe gradativamente seu funcionamento como
se verifica nessa fala de C1 quando questiono sobre a leitura do texto produzido ldquoHum acho
que natildeo pro mas toda hora repete a genterdquo ou ainda na fala de C13 ldquoNossa pro eacute verdade toda
hora a gente escreveu a genterdquo e ainda propotildee ldquoA gente pode trocar a gente por noacutes eacute a mesma
coisa natildeo eacute Aiacute natildeo fica toda hora falando do mesmo jeitordquo
Outro aspecto a ser ressaltado eacute que C13 aparenta se reconhecer e reconhecer o grupo
como re-criador do texto lido uma vez que afirma terem escrito o texto mesmo que tenham tido a
professora como escriba dos enunciados das ideias Isso se apresenta na mesma fala ldquoNossa pro
eacute verdade toda hora a gente escreveu a genterdquo
Por se sentirem sujeitos desse processo as crianccedilas criam para si a necessidade de ler e de
escrever de se apropriarem desse instrumento cultural Colocam-se em situaccedilatildeo real de uso da
leitura e da escrita e sabem que a produccedilatildeo escrita seraacute lida por outra pessoa um destinataacuterio real
Ao se utilizar relato de vida conquistam a sua autonomia porque dizem coisas que vivem que
ouvem que experimentam e o registro escrito das conversas das vivecircncias e das histoacuterias das
crianccedilas eacute uma forma de contato com o gecircnero discursivo Por ele retomam o sentido histoacuterico de
registro da comunicaccedilatildeo
Na situaccedilatildeo apresentada pode-se inferir que as crianccedilas reconhecem a leitura como uma
forma de expressatildeo de dizer de contar coisas de comunicar de informar e de se informar A
teacutecnica livro da vida constitui e caracteriza o relato de vida agrave medida que o livro da vida ldquoeacute (ou
tenta ser) um relato e a marca do que acontece do que se vive se diz se realiza no decorrer dos
diasrdquo (GROUPE MATERNEL LIEGEOIS sd p 15) Desse modo o fato de a crianccedila pedir agrave
168
professora que deixe sua matildee ler o livro por ocasiatildeo da reuniatildeo de pais denota que reconhecem a
leitura como uma forma de expressatildeo humana de partilhar informaccedilotildees e que teratildeo a garantia de
que os escritos seratildeo socializados em outras palavras que os escritos seratildeo lidos por outros
(outras crianccedilas os pais durante as reuniotildees a proacutepria professora pelos funcionaacuterios ou pelos
correspondentes na ocasiatildeo dos encontros entre as turmas) e que a livre expressatildeo eacute e seraacute
privilegiada
Pode-se dizer que o relato de vida eacute um gecircnero primaacuterio (BAKHTIN 2003) uma vez que
os gecircneros primaacuterios satildeo os gecircneros da vida cotidiana ldquoSatildeo predominantemente mas natildeo
exclusivamente orais Pertencem agrave comunicaccedilatildeo verbal espontacircnea e tem relaccedilatildeo direta com o
contexto mais imediatordquo (FIORIN 2006 p 70) Por isso os gecircneros primaacuterios correspondem a
um espectro diversificado da atividade linguiacutestica humana relacionada com os discursos da
oralidade em seus mais variados niacuteveis (do diaacutelogo cotidiano ao discurso didaacutetico filosoacutefico ou
sociopoliacutetico) (MACHADO 2005 p 144)
Com relaccedilatildeo agrave leitura do gecircnero discursivo relato de vida eacute apresentada outra situaccedilatildeo
C1 ao se dirigir a mim no local em que as crianccedilas satildeo recepcionadas diariamente ndash no galpatildeo
entregou-me uma folha com um desenho e algumas coisas escritas Quando perguntei do que se
tratava respondeu
C1 Pro eu fiz esse desenho ontem na minha casa e eu trouxe para vocecirc pocircr no
livro da vida Eu contei tudinho pra minha matildee ontem o que noacutes pesquisamos
sobre o Sol e eu pedi pra minha matildee escrever Aiacute depois eu desenhei e trouxe
para vocecirc por no livro da vida pra todo mundo ler
P Que bom C1 Mas acho que podemos primeiro contar no livro da vida por
que vocecirc teve essa ideia para que todo mundo possa entender o desenho e as
coisas que a sua matildee escreveu O que vocecirc acha E entatildeo colamos essa folha
nele tambeacutem
C1 Estaacute bom pro Mas vocecirc pode ler pra todo mundo porque quase ningueacutem da
nossa turma sabe ler neacute
(Situaccedilatildeo observada e registrada no dia 120510)
Dirigi-me para a sala e depois de negociado na roda o nosso plano de trabalho do dia as
crianccedilas realizavam uma tarefa de pintura enquanto C1 produzia o texto que ao terminar foi lido
para toda a turma bem como o escrito com o desenho que foi afixado no livro da vida
169
Mariacutelia 12 de maio de 2010
A nossa turma se chama Turma do Sol e a gente aprendeu um monte de
coisas sobre ele
Aiacute eu cheguei em casa e contei pra minha matildee o que eu aprendi na escola
e pedi pra ela escrever num papel agrave noite
Quem ler o que a minha matildee escreveu no papel vai saber um monte de
coisas sobre o Sol tambeacutem
C1
170
(Desenho trazido por C1 com observaccedilotildees escritas por sua matildee ndash 120510)
171
Por meio da leitura do texto de C1 e do desenho com o registro escrito das explicaccedilotildees
que dera a sua matildee eacute possiacutevel inferir que C1 percebe a escola como o lugar da cultura mais
elaborada (MELLO 2010) em outras palavras como um lugar em que a crianccedila se apropria da
cultura humana do conhecimento e das formas mais elaboradas da cultura uma vez que ao
pesquisar na escola informaccedilotildees sobre o Sol ndash pesquisa decorrente do nome da turma ndash solicita agrave
matildee mais informaccedilotildees aleacutem do que pesquisara com a professora e os colegas Segundo Davidov
(1988 p 57) quando analisamos os processos de educaccedilatildeo de ensino temos a reproduccedilatildeo e a
apropriaccedilatildeo das capacidades construiacutedas historicamente como ponto central e este movimento eacute
gerador do desenvolvimento psiacutequico do homem
Eacute possiacutevel perceber ainda que a matildee ao atender a solicitaccedilatildeo da filha preocupa-se em
escrever exatamente da forma como a crianccedila disse e resguarda assim a historicidade desse
momento por meio da escrita Na tentativa de supostamente materializar esse conhecimento e de
atribuir a ele um valor leva esse registro para a escola e o incorpora ao seu relato de vida
partilhado por toda a turma no momento da leitura oral C1 reconhece a professora como o adulto
que pode fazer a mediaccedilatildeo quando C1 diz ldquoMas vocecirc pode ler pra todo mundo porque quase
ningueacutem da nossa turma sabe ler neacuterdquo Ler para C1 eacute uma forma de comunicar de se expressar
de informar de estabelecer relaccedilotildees ldquoQuem ler o que a minha matildee escreveu no papel vai saber
um monte de coisas sobre o Sol tambeacutemrdquo
A seguir eacute apresentada outra situaccedilatildeo de leitura do relato de vida
Numa tarde enquanto as crianccedilas faziam uma tarefa C7 terminou rapidamente a tarefa e
solicitou-me para que eu escrevesse com ela no livro da vida Disse-me que queria muito que
ficasse escrito o que ela ia contar Desse modo atendi a sua solicitaccedilatildeo
Mariacutelia 4 de junho de 2010
Amanhatilde eu vou viajar para Aparecida do Norte com a minha matildee e com o
meu pai Meus irmatildeos tambeacutem vatildeo
Noacutes vamos viajar de ocircnibus e a minha matildee vai levar a Santinha pra laacute
Eu vou ter que escovar os dentes no posto de gasolina porque em
Aparecida natildeo tem banheiro
A minha matildee vai levar aacutegua refrigerante e bolacha Vai levar tambeacutem
talquinho pra eu ficar bem cheirosinha Vai ser bem legal
C7
172
Ao terminar o relato natildeo foi possiacutevel fazer a leitura dele no mesmo momento como de
costume porque o horaacuterio havia acabado e deveriacuteamos reorganizar a sala para que outra
professora pudesse entrar com sua turma Dirigi-me com as crianccedilas para o tanque de areia e por
isso natildeo houve a possibilidade de fazer a leitura do texto produzido por C7 agraves outras crianccedilas
naquele local e naquele dia
No dia seguinte enquanto todas as crianccedilas brincavam com jogos de construccedilatildeo C6 se
retira do grupo no qual brincava se dirige ao fundo da sala pega o livro da vida e passa cerca de
vinte minutos a observar somente o registro feito por C7 no dia anterior Em seguida coloca
novamente o livro no local em que o encontrara e se dirige a mim
C6 Pro C7 foi hoje para Aparecida do Norte neacute Por isso que ela faltou na
escola
P Como eacute que vocecirc sabe disso Ela te contou
C6 Natildeo eu li agora no livro da vida Eacute verdade que laacute em Aparecida natildeo tem
banheiro
P Tem sim eacute preciso ter porque muitas pessoas vatildeo laacute visitar
C6 Ueacute mas C7 disse que vai ter que ir no banheiro do posto de gasolina Hum
acho que eacute por isso que ela escreveu que a matildee dela vai levar talquinho pra ela
ficar bem cheirosinha porque se natildeo tem banheiro natildeo vai dar para tomar
banho Eacute pro eu sei porque eu li tudo tudo mesmo
Pela anaacutelise do dado apresentado pode-se inferir que as falas de C6 revelam a concepccedilatildeo
de leitura defendida neste trabalho a de leitura como interlocuccedilatildeo como compreensatildeo como
produccedilatildeo de sentido (ARENA 1992 2010b CHARMEAUX 1997 JOLIBERT 1994 SOUZA
2004) a leitura como lugar de encontro com a palavra alheia como diaacutelogo que requer uma
atitude responsiva (BAKHTIN 1992 2003)
C6 compreende o que a colega escreveu e sua atitude responsiva a essa leitura se verifica
na conversa que estabelece com a professora e com as relaccedilotildees que estabelece com o texto ao
dizer que sabe que C7 viajara para a cidade de Aparecida do Norte e que por tal razatildeo natildeo
comparecera agrave aula naquele dia Outro indiacutecio dessa atitude responsiva se revela no fato de C6
perguntar se nessa cidade natildeo teria banheiro porque C7 escrevera que usaria o banheiro do posto
de combustiacuteveis aleacutem do fato de a matildee de C7 ter de levar talquinho para que ela ficasse
cheirosinha
Essa atitude responsiva atitude leitora eacute demonstrada ateacute mesmo quando C6 toma a
iniciativa de recorrer ao livro da vida para ler o que fora escrito pela colega sem que a professora
173
o fizesse uma vez que no dia anterior ndash momento em que C7 produziu o texto ndash natildeo foi possiacutevel
devido ao tempo que a professora realizasse a leitura para a turma como costumeiramente era
feito C6 provocada por uma necessidade criada faz a leitura sem a mediaccedilatildeo direta sem
oralizaccedilatildeo dialogando com o texto A crianccedila participa desse ato comunicativo como
interlocutora ativa e compreende o que C7 escrevera porque participa do contexto situacional
Desse modo
Compreender eacute participar de um diaacutelogo com o texto mas tambeacutem com seu
destinataacuterio uma vez que a compreensatildeo natildeo se daacute sem que entremos numa
situaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo e ainda com outros textos sobre a mesma questatildeo Isso
quer dizer que a leitura de uma obra eacute social mas tambeacutem individual Na medida
em que o leitor se coloca como participante do diaacutelogo que se estabelece em
torno de um determinado texto a compreensatildeo natildeo surge da sua subjetividade
Ela eacute tributaacuteria de outras compreensotildees Ao mesmo tempo como o leitor
participa desse diaacutelogo mobilizando aquilo que leu e dando a todo esse material
uma resposta ativa sua leitura eacute singular (FIORIN 2006 p 6)
Pode-se inferir ainda que C6 realiza a leitura do texto com responsividade porque
tambeacutem conhece o gecircnero discursivo relato de vida e seus elementos constitutivos dessa forma
gera sentido quando lecirc
O gecircnero somente ganha sentido quando se percebe a correlaccedilatildeo entre formas e
atividades Assim ele natildeo eacute um conjunto de propriedades formais isolado de
uma esfera de accedilatildeo que se realiza em determinadas coordenadas espaccedilo-
temporais na qual os parceiros da comunicaccedilatildeo manteacutem certo tipo de relaccedilatildeo
Os gecircneros satildeo meios de apreender a realidade (FIORIN 2006 p 69)
Ao considerar esses pressupostos pode-se dizer que C6 realizou a leitura do texto de C7
porque faz parte do contexto situacional em que ocorreu a enunciaccedilatildeo conhece o gecircnero relato de
vida por participar com frequecircncia de situaccedilotildees de leitura e de escrita que envolvem esse gecircnero
e por estabelecer relaccedilotildees com as especificidades que ele apresenta como o registro de
acontecimentos do cotidiano das crianccedilas da turma da qual faz parte Nessa situaccedilatildeo apresentada
C6 demonstra que se apropria da leitura que consegue pensar o escrito que eacute leitora embora
iniciante e por isso participa da cultura escrita
Esse registro permite inferir que a apropriaccedilatildeo da leitura pela crianccedila se ampliou porque
ela esteve em contato frequente com uma praacutetica de leitura intencional planejada e dialoacutegica
174
Essa crianccedila desde o iniacutecio do trabalho proposto de leitura e de escrita de diferentes gecircneros
participou ativamente contudo nessa situaccedilatildeo especiacutefica denotou que sua apropriaccedilatildeo da leitura
ocorreu por meio dos gecircneros discursivos os quais vivenciou e estabeleceu relaccedilotildees intensas ao
confirmar ldquoEacute pro eu sei porque eu li tudo tudo mesmordquo A apropriaccedilatildeo da liacutengua por meio dos
gecircneros discursivos estaacute em concordacircncia com Freinet ao esclarecer que
A crianccedila sabe ler sem exerciacutecio de leitura Sabe ler porque reconhece sob o
grafismo manuscrito ou impresso o pensamento que laacute fora depositado eacute como
se ouvisse agrave distacircncia a palavra dos ausentes ou afastada no tempo a dos
mortos Que importa se ainda natildeo eacute capaz de ler correctamente e em voz alta Se
isso natildeo passa afinal de contas de um exerciacutecio fastidioso e quase
soberanamente inuacutetil que a Escola sempre tem iccedilado ao niacutevel de uma
necessidade porque eacute impotente para avaliar a compreensatildeo muda (FREINET
1969 p 57)
De acordo com estes pressupostos pode-se dizer que C6 se apropria da leitura da liacutengua
porque atua nela percebe seu funcionamento estabelece diaacutelogo com o escrito sem ter que
participar de exerciacutecios de leitura de repeticcedilotildees orais de letras siacutelabas e palavras de fazer
locuccedilotildees de oralizar por oralizar
No proacuteximo item desse capiacutetulo seratildeo apresentadas e analisadas situaccedilotildees de leitura com
o gecircnero discursivo notiacutecias de jornal por meio do jornal escolar
44 A leitura do gecircnero discursivo notiacutecia de jornal
A tira acima ilustra possivelmente leitores de jornal que direcionam sua leitura a
diferentes partes do jornal e a diferentes gecircneros discursivos ndash do qual o jornal eacute portador ndash de
acordo com suas necessidades preferecircncias e interesses
175
A notiacutecia de jornal natildeo eacute um gecircnero comumente abordado na Educaccedilatildeo Infantil com as
crianccedilas pequenas como os contos de fada e as faacutebulas por exemplo como pode se verificar pela
anaacutelise dos dados no capiacutetulo II e especiacuteficamente com as crianccedilas da presente pesquisa Os
dados analisados neste trabalho foram gerados por meio de um trabalho intencional de leitura e
escrita de notiacutecias por meio da teacutecnica Freinet jornal da turma e da leitura de jornal da cidade e
de um nacional O jornal da turma eacute um jornal produzido e editado de forma cooperativa pelas
crianccedilas Eacute constituiacutedo de falas curiosidades e opiniotildees sobre suas vivecircncias e descobertas As
informaccedilotildees trazidas e discutidas principalmente na roda da conversa satildeo transformadas em
notiacutecias do jornal do grupo Segundo Freinet (1974 p 85) ldquoo jornal escolar eacute um inqueacuterito
permanente que nos coloca a escuta do mundo e eacute uma janela ampla e aberta sobre o trabalho e a
vida [] eacute o arquivo vivo da aulardquo
O jornal editado pela crianccedila da Escola Freinet era baseado no texto livre e impresso no
limoacutegrafo ou imprensa escolar Freinet sugeria o uso de jornal (mural escrito ou falado) como
substituto dos manuais didaacuteticos da liccedilatildeo de casa imposta pelo adulto e previa assim as
vantagens de seu uso para abordar a realidade e os programas escolares Ele permitia agraves crianccedilas
se apropriarem de diferentes formas de linguagem e dos diferentes gecircneros do discurso
Na Escola Freinet os jornais natildeo satildeo imitaccedilotildees nem substitutos dos jornais de adultos
Satildeo produccedilotildees originais cujo conteuacutedo atende aos verdadeiros interesses das crianccedilas tal como
satildeo expressos nos textos livres e traz como conteuacutedos elementos da vida de exteriorizaccedilatildeo do
pensamento Sua originalidade e importacircncia consistem numa seleccedilatildeo de textos produzidos e
impressos pelas crianccedilas e agrupados numa encadernaccedilatildeo especial para os correspondentes
familiares comunidade escolar
Cabe lembrar que o jornal escolar se tornou um importante instrumento de ensino e de
aprendizagem de linguagem em muitos paiacuteses desde a experiecircncia seminal de Freinet (1974)
iniciada em 1924 No Brasil contudo apenas mais recentemente se tem investido em
experiecircncias desse tipo ldquoAleacutem disso existem poucas pesquisas que relatem e analisem essas
experiecircncias de modo que ainda pouco se sabe sobre como satildeo produzidos esses jornais e que
lugar ocupam no conjunto dos conteuacutedos ensinados na disciplina de Liacutengua Portuguesardquo
(BONINI 2011 p 149)
Para abordar o gecircnero primeiramente eu apresentei na hora da leitura um jornal da cidade
com uma notiacutecia em que eu era citada Optei por fazecirc-lo porque as crianccedilas me conheciam e
176
possivelmente poderia provocar interesse saber do que se tratava a notiacutecia e por que eu fazia parte
dela Fiz a leitura dessa notiacutecia na durante o momento diaacuterio em que leio ou conto uma histoacuteria
poesia faacutebula histoacuteria em quadrinhos dentre outros gecircneros discursivos Utilizo uma cadeira
pequena para me posicionar as crianccedilas se sentam proacuteximas a mim para poderem visualizar as
ilustraccedilotildees ou fotos e acompanharem a leitura
Terminada a leitura e depois de ouvir as impressotildees sobre a notiacutecia lido organizei
inicialmente a sala de aula como todos os dias fazia deixando o centro dela livre com as
carteiras nas laterais de modo que houvesse espaccedilo disponiacutevel para que as crianccedilas pudessem
manusear analisar e fazer observaccedilotildees acerca das notiacutecias Dei a elas vaacuterios outros exemplares
do jornal da cidade e do Jornal Estado de Satildeo Paulo (Estadatildeo) e as observei nos primeiros
contatos com esse suporte textual e com esse gecircnero discursivo Durante cerca de quarenta
minutos fizeram observaccedilotildees e expressaram suas impressotildees por meio de falas e atitudes e em
seguida disse que diariamente eu faria a leitura de uma notiacutecia para que pudeacutessemos saber das
novidades que aconteciam na cidade e em diferentes lugares do mundo
Durante a leitura das notiacutecias eu apresentei suas caracteriacutesticas e especificidades na
medida em que o diaacutelogo com o texto e com as crianccedilas acontecia Semanalmente eram
escolhidas duas notiacutecias que mais haviam causado interesse na turma e faziam parte de um painel
que havia na sala Esse painel tambeacutem se constituiacutea em material de leitura Houve a produccedilatildeo de
notiacutecias e a elaboraccedilatildeo do jornal da Turma do Sol
A foto a seguir traz contribuiccedilotildees para se pensar no processo de ensino e de aprendizagem
da leitura do gecircnero
177
(Foto 4 ndash Situaccedilatildeo fotografada em 140810)
Nessa foto um dos meninos ndash o segundo da direita para a esquerda ndash observa uma notiacutecia
no jornal e solicita que o quarto menino da direita para a esquerda o ajude a ler Quando esse
uacuteltimo se dirige ao colega na tentativa de realizar a leitura outros dois garotos tambeacutem se dirigem
ao primeiro e se voltam todos atentamente ao jornal Nesse momento um quinto garoto se dirige
aos quatro colegas de turma e mostra uma foto do jornal que tem em suas matildeos Contudo os
meninos envolvidos com a notiacutecia que queriam ler natildeo interrompem o que fazem para observar a
foto indicada pelo colega que permanece proacuteximo aos demais ouvindo os comentaacuterios
C2 Eu quero saber o que estaacute escrito aqui Deve ser alguma coisa sobre o Timatildeo
(refere-se ao time de futebol e aponta com o dedo indicador direito para a foto
no jornal dos jogadores uniformizados)
C5 Vamos tentar ler
C10 Vixi seraacute que estaacute escrito que ele vai jogar Contra quem
C4 Vai ver que estaacute escrito que ele jaacute jogou e que perdeu
C11 Olha direito alguma coisa vai dar para saber Deve estar tudo escrito aiacute
Meu pai tambeacutem eacute Corinthiano aiacute eu vou poder falar pra ele o que aconteceu
178
C5 Oacute aqui em cima escrito bem grande e bem preto eacute o nome da notiacutecia o
tiacutetulo neacute
C2 Por isso que eu quero aprender a ler logo aiacute eu fico sabendo de tudo
C5 Eu jaacute sei ler soacute que eacute soacute um pouquinho
C2 Entatildeo lecirc pra mim
(C5 continua com o olhar voltado fixamente para o jornal e silencia)
C11 Vamos pedir para a professora ler pra gente
C5 Aqui estaacute escrito Corinthians vence em casa (aponta o dedo indicador
direito para o tiacutetulo da notiacutecia)
C2 Lecirc tudo C5
C5 Vou pedir para a professora ajudar a gente
Os meninos solicitam que eu faccedila a leitura da notiacutecia e em seguida dizem
C2 Estava certinho o que vocecirc leu no comeccedilo da notiacutecia C5 e o Timatildeo venceu
mesmo
C5 Eacute jaacute estou aprendendo neacute pro (refere-se agrave professora) Pelo menos uma
parte da notiacutecia eu consegui ler
P E como vocecirc conseguiu ler o tiacutetulo da notiacutecia
C5 Eu olhei bem aiacute eu fiquei pensando aiacute eu fiquei lembrando das outras
coisas que vocecirc sempre lecirc pra gente um pouquinho eu jaacute sei eu jaacute aprendi eu
penso nas coisas escritas nas coisas que ah tem alguma ideia escrita
P Tem alguma ideia Como assim
C5 Ueacute Tem alguma coisa contando alguma coisa escrita mesmo algueacutem estaacute
contando alguma coisa eacute uma notiacutecia natildeo eacute
P Sim eacute uma notiacutecia
C5 Entatildeo tem alguma novidade
(Situaccedilatildeo registrada no dia 140810)
O relato da observaccedilatildeo da foto 4 referente agrave leitura de notiacutecia de jornal enfatiza o papel
dos gecircneros discursivos na apropriaccedilatildeo da liacutengua materna uma vez que as pessoas se comunicam
por meio dos gecircneros A situaccedilatildeo apresentada relata leitura de notiacutecia de jornal comum e natildeo
propriamente da leitura de notiacutecias do jornal da turma que como abordado anteriormente eacute uma
forma de retratar os fatos e acontecimentos da vida das crianccedilas em que os conteuacutedos satildeo
diretamente ligados aos interesses e necessidades de expressatildeo delas Contudo essa situaccedilatildeo
demonstra que o contato com os gecircneros discursivos a reflexatildeo sobre eles a forma como satildeo
apresentados nas diferentes situaccedilotildees de ensino criam a vontade de ler de se informar de se
comunicar por meio deles como se verifica nessas falas ldquoEu quero saber o que estaacute escrito aqui
Deve ser alguma coisa sobre o Timatildeordquo ldquoVamos tentar lerrdquo ldquoVixi seraacute que estaacute escrito que ele
vai jogar Contra quemrdquo ldquoVai ver que estaacute escrito que ele jaacute jogou e que perdeurdquo ldquoOlha direito
179
alguma coisa vai dar para saber Deve estar tudo escrito aiacute Meu pai tambeacutem eacute Corinthiano aiacute eu
vou poder falar pra ele o que aconteceurdquo
A leitura do jornal comum tambeacutem contribuiu no processo de re-criaccedilatildeo escrita e de
leitura de notiacutecias do jornal da turma A notiacutecia de jornal natildeo era um gecircnero comumente lido e
escrito pelas crianccedilas sujeitos da pesquisa como se verifica nos capiacutetulos II e III No entanto a
praacutetica de leitura de diferentes gecircneros discursivos a re-criaccedilatildeo escrita desses gecircneros e a
compreensatildeo de seu funcionamento pela apresentaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas permitem inferir
que as crianccedilas satildeo capazes de estabelecer relaccedilotildees intensas com eles A forma como seguram o
jornal como o observam suas expressotildees e seus enunciados proferidos satildeo denotativos da
apropriaccedilatildeo do gesto humano de ler da leitura como uma praacutetica histoacuterico-cultural que envolve a
evoluccedilatildeo de conceitos na relaccedilatildeo dialoacutegica estabelecida por meio da linguagem que se modifica
de acordo com o lugar com os materiais de leitura com o tempo histoacuterico com os interesses e
necessidades do leitor
As crianccedilas da situaccedilatildeo analisada buscam indiacutecios pistas visuais elaboram hipoacuteteses que
ao final da leitura da professora se confirmam ou natildeo Apresentam atitudes leitoras ao
interrogarem o que possivelmente poderia estar escrito no texto Segundo Jolibert (2006 p 53 ndash
54 grifos do autor)
Falar em ldquointerrogarrdquo um texto em vez de apenas ldquolecirc-lordquo ou ldquolecirc-lo de maneira
interpretativardquo eacute uma maneira de enfatizar o que agora sabemos sobre o processo
de leitura ndash e de explicitar o que as crianccedilas tecircm de aprender desde a educaccedilatildeo
infantil para aprender a ler Se ler eacute interrogar um texto em funccedilatildeo de um
contexto de um propoacutesito de um projeto para dar resposta a uma necessidade
entatildeo corresponde a uma interaccedilatildeo ativa curiosa aacutevida direta entre um leitor e
um texto No caso das crianccedilas ateacute 4ordf seacuterie natildeo se trata de responder a perguntas
propostas pelo professor satildeo as crianccedilas que interrogam o texto e natildeo o
professor que interroga os alunos Em vez de somente identificar letras e
siacutelabas trata-se de que elas busquem e coordenem as variadas pistas que um
texto oferece para compreendecirc-lo Essa busca corresponde a uma atividade
muito complexa que necessita tornar-se objeto de aprendizagens
Ao interrogar o texto a crianccedila busca produzir sentido a ele busca compreendecirc-lo e por
assim dizer inicia seu processo de formaccedilatildeo leitora Desse modo a cada indagaccedilatildeo feita cada
crianccedila compotildee o conjunto de possibilidades apoiadas nas pistas que possui e avanccedila com a
mediaccedilatildeo do outro
180
No caso analisado C5 uma crianccedila mais avanccedilada no processo de leitura naquele
momento indica o que deveriam tentar ler ao observar a localizaccedilatildeo do tiacutetulo reconhecendo que
este se apresenta com uma forma plaacutestica em destaque (letras em tamanho maior que o corpo do
texto e em negrito) e ao ler o proacuteprio tiacutetulo da notiacutecia ldquoCorinthians vence em casardquo C5 ao
declarar que sabe ler soacute um pouquinho assinala possivelmente que iniciou seu processo de
apropriaccedilatildeo da leitura e que o que hoje faz com alguma ajuda num futuro proacuteximo faraacute sozinho
Esse fato se apresenta quando lecirc o tiacutetulo mas em seguida solicita que a professora mediadora
desse processo complemente os sentidos em construccedilatildeo e confirme suas hipoacuteteses Assim
A atividade mediada eacute constituiacuteda a partir de um processo interpsicoloacutegico
Desde os primeiros momentos de vida da crianccedila o desenvolvimento das
funccedilotildees psicoloacutegicas superiores eacute sempre mediado pelo outro que aponta atribui
eou restringe os processos de significaccedilatildeo da realidade Atraveacutes dos diferentes
processos de mediaccedilatildeo social a crianccedila se apropria dos caracteres das
faculdades dos modos de comportamento e da cultura representativos da
histoacuteria da humanidade Agrave medida em que estes processos satildeo internalizados
passando a ocorrer sem intervenccedilatildeo de outras pessoas a atividade mediada
transforma-se em um processo intrapsicoloacutegico dando origem agrave atividade
voluntaacuteria (NOGUEIRA 1995 p16)
Ao se tratar da mediaccedilatildeo da professora e da crianccedila mais avanccedilada que ocorre nesse
processo de apropriaccedilatildeo da leitura haacute ainda que se considerar a mediaccedilatildeo dos signos linguiacutesticos
uma vez que a leitura ocorre e se faz por meio deles A minha mediaccedilatildeo como professora tambeacutem
pode ser percebida por meio da minha atitude de garantir acesso e contato com os diferentes
gecircneros discursivos nos diferentes suportes e materiais do tempo que ofereccedilo agraves crianccedilas para
manusear observar e elaborar suas hipoacuteteses de leitura por meio de praacuteticas coloco a crianccedila em
contato com o gecircnero e com a liacutengua em funcionamento de modo a estabelecer relaccedilotildees
dialoacutegicas Esse fato pode ser percebido nas falas de C5 quando a professora no caso eu mesma
indago como conseguira ler o tiacutetulo da notiacutecia e C5 responde ldquoEu olhei bem aiacute eu fiquei
pensando aiacute eu fiquei lembrando das outras coisas que vocecirc sempre lecirc pra genterdquo
Nesse trabalho pedagoacutegico com o ensino da liacutengua por meio dos gecircneros discursivos um
aspecto a ressaltar eacute que C5 percebe algumas caracteriacutesticas da notiacutecia que aleacutem da apresentaccedilatildeo
do tiacutetulo que se destaca em negrito se trata de uma informaccedilatildeo
A notiacutecia se caracteriza pelo novo pela novidade Em inglecircs notiacutecia eacute news em francecircs eacute
nouvelle e aleacutem de ldquonotiacuteciardquo essas palavras significam tambeacutem ldquonovasrdquo ldquonovidadesrdquo
181
ldquoinformaccedilatildeordquo (BARBOSA 2001 p 22 grifos do autor) A partir do significado desses termos
pode-se dizer que uma das caracteriacutesticas das notiacutecias eacute apresentar algo que seja novo e esse
interesse ou curiosidade pelo novo pela novidade eacute algo que parece caracterizar a humanidade haacute
muito tempo (BARBOSA 2001 p 22)
A anaacutelise da situaccedilatildeo da foto 4 permite inferir que as condiccedilotildees de vida e educaccedilatildeo que o
sujeito possui satildeo cruciais no processo de apropriaccedilatildeo da cultura especificamente nesse caso na
apropriaccedilatildeo da leitura pelas crianccedilas pequenas porque as crianccedilas aparentam perceber que se
apropriar da leitura eacute se apropriar de conhecimentos eacute saber coisas eacute se informar eacute informar o
outro eacute se fazer entender e compreender o outro eacute estabelecer relaccedilotildees eacute aprender Essa
afirmaccedilatildeo se evidencia nas falas das crianccedilas ldquoOlha direito alguma coisa vai dar para saber
Deve estar tudo escrito aiacute Meu pai tambeacutem eacute Corinthiano aiacute eu vou poder falar pra ele o que
aconteceurdquo ldquoPor isso que eu quero aprender a ler logo aiacute eu fico sabendo de tudordquo ldquoEacute jaacute estou
aprendendo neacute pro (refere-se agrave professora) Pelo menos uma parte da notiacutecia eu consegui lerrdquo
C5 ao considerar que para ler ldquopensa nas coisas escritas nas coisas que tem alguma ideia
escritardquo revela o seu conceito de leitura revela o que essa crianccedila pensa depois de iniciado o
trabalho pedagoacutegico com os gecircneros discursivos Esse conceito de C5 se coaduna com o conceito
de leitura deste trabalho que eacute a de leitura como interaccedilatildeo dialoacutegica como produccedilatildeo de sentido
como uma praacutetica histoacuterico-cultural (ARENA 2010b) que permite a comunicaccedilatildeo humana Essa
crianccedila parece indicar que para ler ela natildeo se prende somente aos signos linguiacutesticos e agrave
decodificaccedilatildeo mas se preocupa em compreender as ideias em produzir sentidos
Por isso quando lemos lemos ideias e natildeo letras siacutelabas e palavras Lemos ideias
informaccedilotildees opiniotildees que se apresentam nos textos e nos valemos tambeacutem do coacutedigo
linguiacutestico como um elemento a mais na composiccedilatildeo do sentido do texto Quando eu indago C5
na tentativa de que ele explique com detalhes o que fez para ler e a qual ideia ele se refere
explica ldquoUeacute Tem alguma coisa contando alguma coisa escrita mesmo algueacutem estaacute contando
alguma coisa eacute uma notiacutecia natildeo eacuterdquo Eu afirmo que se tratava de uma notiacutecia e entatildeo C5
continua ldquoEntatildeo tem alguma novidaderdquo Desse modo o que se enfatiza natildeo eacute a letra a siacutelaba ou
a palavra como unidades de sentido mas o enunciado como ldquounidade real da comunicaccedilatildeo
discursivardquo (BAKHTIN 2003 p 296)
Ao tratar o enunciado como unidade da atividade comunicativa Bakhtin (2003) contrapotildee
a ideia de enunciado agrave de oraccedilatildeo sendo que essa uacuteltima natildeo considera a alternacircncia dos sujeitos
182
do discurso o contexto de produccedilatildeo os enunciados alheios e por assim dizer natildeo suscitaria a
atitude responsiva dos interlocutores Nessa perspectiva a oraccedilatildeo eacute entendida como unidade da
liacutengua e por essa razatildeo estaacute circunscrita agrave esfera gramatical O enunciado por sua vez fundado
nos pressupostos dialoacutegicos incorpora o contexto verbal e o extraverbal (aspectos histoacutericos
situacionais ideoloacutegicos) Em outras palavras o enunciado materializa concomitantemente o
que haacute de peculiar da situaccedilatildeo enunciativa concreta e elementos sociodiscursivos estabilizados
nas e pelas interaccedilotildees ao longo da histoacuteria (BAKHTIN 2003)
O enunciado sob o prisma bakhtiniano eacute o garantidor do espaccedilo do outro na
dinacircmica discursiva e por conseguinte constitui-se do fluxo de muacuteltiplas vozes
que ecoam da alternacircncia dos sujeitos do discurso nas situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo
Ademais por figurar como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva o enunciado
elucida especificidades das esferas sociais nas quais ele se constituiu
(RIBEIRO 2010 p 56)
E continua
Nesse sentido se considerado sob o plano individual o enunciado carrega traccedilos
particulares agrave situaccedilatildeo comunicativa jaacute que eacute concreto e uacutenico Analisando-o
sob uma perspectiva mais ampla calcada no plano coletivo o enunciado ganha
uma relativa estabilidade decorrente dos usos em uma dada esfera social Eacute
desse ponto de vista que Bakhtin anuncia a concepccedilatildeo de gecircnero do discurso
mencionando que se trata de tipos relativamente estaacuteveis de enunciados
(RIBEIRO 2010 p 56 grifos do autor)
Essas proposiccedilotildees assumidas neste trabalho fundamentam a tese de que as crianccedilas
aprendem a liacutengua desde a Educaccedilatildeo Infantil por meio dos gecircneros ndash uma vez que a liacutengua se
manifesta pelos gecircneros ndash quando o professor os introduz na escola como instrumento de
humanizaccedilatildeo como forma de apropriaccedilatildeo da cultura humana As crianccedilas podem aprender a
liacutengua em sua dinamicidade ao estabelecer desde o iniacutecio relaccedilotildees dialoacutegicas com ela porque a
liacutengua natildeo eacute fechada engessada A liacutengua eacute histoacuterica e culturalmente construiacuteda se faz na relaccedilatildeo
com o outro e portanto estaacute em movimento e em constante modificaccedilatildeo Quando as crianccedilas
aprendem a pensar sobre a liacutengua desde a pequena infacircncia em situaccedilotildees reais de uso aprendem a
interagir dialogicamente com ela e ampliam as possibilidades de comunicaccedilatildeo
183
A situaccedilatildeo a seguir tambeacutem contribui para compreender as relaccedilotildees que as crianccedilas
estabelecem com os gecircneros e com o gecircnero discursivo notiacutecia
Numa tarde depois de realizarem uma tarefa que envolvia recorte e colagem cada crianccedila
geriu sua proacutepria tarefa Algumas se dedicaram a brincar com brinquedos disponiacuteveis na sala
outras organizaram os livros e gibis que eu havia trazido naquele dia para a escola e algumas se
dedicaram agrave leitura especialmente de jornais
Uma das crianccedilas foi ateacute ao fundo da sala observou os vaacuterios jornais dispostos folheou
alguns deles escolheu um deles afastou-se das demais colocou-o sobre uma das carteiras no
fundo da sala e natildeo se sentou Debruccedilou-se observou atentamente uma das notiacutecias passou o
dedo indicador direito por cima do tiacutetulo e permaneceu durante vinte minutos a repetir esse
mesmo gesto nas linhas de toda a notiacutecia Natildeo estabeleceu contato algum com as demais crianccedilas
e natildeo apresentou nenhuma reaccedilatildeo com qualquer outro evento ocorrido nesse periacuteodo nem
mesmo com as conversas dos colegas ao seu redor
Durante esse tempo recebemos a visita na sala de uma funcionaacuteria que deu oralmente um
recado a todos da turma sobre o lanche e em seguida da coordenadora da escola que tambeacutem
proferiu um recado Ambas as pessoas que estiveram na sala cumprimentaram as crianccedilas e
conversaram em poucas palavras com elas cumprindo o objetivo de suas visitas a nossa turma
Contudo a crianccedila da situaccedilatildeo analisada natildeo desviou o olhar sequer uma vez do jornal
184
(Foto 5 ndash Situaccedilatildeo de leitura fotografada e registrada no dia 250910)
Passado esse periacuteodo de vinte minutos a crianccedila dirigiu-se a mim e disse-me
C2 Eu gostei da notiacutecia do jornal que eu peguei pro
P Eacute mesmo E sobre o que eacute a notiacutecia
C2 Ah eu natildeo sei direito mas eu acho que fala que faz tempo que natildeo chove e
que estaacute estragando tudo as plantaccedilotildees
P Eacute mesmo
C2 Ocirc pro a notiacutecia do jornal eacute diferente da carta neacute
P Porque vocecirc acha que elas satildeo diferentes O que elas tecircm de diferente
C2 Ah (olha pra o teto silencia por alguns segundos) eacute que a notiacutecia
parece que a pessoa que fala estaacute brava
P Brava Por que brava Como assim
C2 Parece que estaacute brava mesmo natildeo sei parece que estaacute mandando
falando as coisas raacutepido natildeo sei
P Por que vocecirc acha isso Como vocecirc percebe isso Onde vocecirc viu
C2 abre o jornal dirige seu olhar para esse material novamente e depois de
alguns segundos me disse
C2 Acho que a pessoa que escreveu a notiacutecia estaacute estaacute brava mesmo ela
conta meio brava sei laacute pro mas agora que eu vi a notiacutecia eu entendi tudinho
o que estaacute escrito laacute eu adivinhei tudinho
P Vocecirc natildeo adivinhouvocecirc leu C2
185
C2 sorriu
(Situaccedilatildeo registrada no dia 250910)
A anaacutelise da foto 5 tambeacutem refere-se agrave leitura de notiacutecia de jornal comum e faz parte de
uma situaccedilatildeo ocorrida no processo de leitura de notiacutecias de contato e diaacutelogo com este gecircnero A
anaacutelise da foto permite inferir uma atitude leitora da crianccedila que tambeacutem inicia seu processo de
apropriaccedilatildeo do ato cultural de ler jornais C2 parecia isolado de tudo o que estava acontecendo na
sala O fato de natildeo interromper sua leitura em nenhum momento durante vinte minutos em que se
manteve dedicado a isso e de natildeo estabelecer contato com outras crianccedilas datildeo indiacutecios da
importacircncia desse ato para a crianccedila Ela se interessou pelo material teve iniciativa para buscaacute-lo
e escolhecirc-lo a sua proacutepria postura fiacutesica e sua conduta intelectual de leitor denotam o seu
absoluto envolvimento Pode-se dizer que a leitura de notiacutecia se tornou uma atividade para essa
crianccedila nesse momento pois conforme Leontiev (1988) a atividade eacute a forma pela qual a crianccedila
melhor se relaciona com o mundo e eacute por meio dela que ocorrem as mudanccedilas mais significativas
no conhecimento do mundo nos processos e nos seus traccedilos da personalidade (MELLO 2007)
Leontiev (1988 p 68) caracteriza a atividade como
aqueles processos que realizando as relaccedilotildees do homem com o mundo
satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele Noacutes natildeo chamamos
de atividade um processo como por exemplo a recordaccedilatildeo porque ela em si
mesma natildeo realiza via de regra nenhuma relaccedilatildeo independente com o mundo e
natildeo satisfaz qualquer necessidade especial Por atividade designamos processos
psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo como um todo se
dirige (seu objeto) coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a
executar esta atividade isto eacute o motivo
Dessa forma o que determina diretamente o desenvolvimento da psique de uma crianccedila eacute
a sua proacutepria vida e o desenvolvimento dos processos reais desta vida em outras palavras o
desenvolvimento da sua atividade A disponibilidade de diferentes materiais a leitura diaacuteria de
diferentes gecircneros discursivos o diaacutelogo estabelecido as relaccedilotildees que satildeo travadas com os
gecircneros provocam a necessidade de ler
Outro aspecto relevante consiste no fato de C2 perceber diferenccedilas entre os gecircneros
discursivos carta e notiacutecia Pode-se inferir que C2 reconhece que por meio de ambos os gecircneros
discursivos as pessoas dizem coisas falam coisas contam coisas mas de formas diferentes ou
seja ainda que possuam a funccedilatildeo de comunicar de fundar a linguagem cada gecircnero discursivo
186
especificamente possui estilo construccedilatildeo composicional e conteuacutedo temaacutetico diferentes e que em
cada situaccedilatildeo especiacutefica em cada esfera de atividade humana as pessoas se utilizam de um
gecircnero do discurso (BAKHTIN 2003)
Ao tentar explicar a diferenccedila que existe entre os dois gecircneros carta e notiacutecia C2 diz que
ldquoeacute que a notiacutecia parece que a pessoa que fala estaacute bravardquo Quando peccedilo que me explique ainda
mais sobre o que percebe reitera ldquoAcho que a pessoa que escreveu a notiacutecia estaacute estaacute brava
mesmo ela conta meio brava sei laacute prordquo Essas afirmaccedilotildees indicam que possivelmente se
refira a alguns elementos especiacuteficos caracteriacutesticos da notiacutecia como por exemplo o fato dos
verbos se apresentarem muitas vezes no tempo presente no tiacutetulo e a notiacutecia jornaliacutestica eacute
marcada pela imparcialidade o que supostamente tenha sugerido a C2 que a pessoa que fala na
notiacutecia o faz de forma ldquobravardquo Por ser um gecircnero que pretende informar com clareza precisatildeo e
objetividade os fatos e por se caracterizar pela dinamicidade a notiacutecia em decorrecircncia do fluxo
de acontecimentos do dia a dia perde seu status de novidade com relativa rapidez o que sugeriu
C2 ao declarar ldquoParece que estaacute brava mesmo natildeo sei parece que estaacute mandando falando as
coisas raacutepido natildeo seirdquo
C2 afirma que entendeu a notiacutecia que adivinhara tudo e quando afirmo que ele lera reage
com um sorriso aparentando possiacutevel satisfaccedilatildeo por ter ganhado uma nova condiccedilatildeo a condiccedilatildeo
de quem aprendeu a ler e que faz parte de forma ainda mais ativa da cultura escrita A situaccedilatildeo a
ser apresentada pode corroborar para a reflexatildeo de como pode ocorrer o ensino e a aprendizagem
da leitura por meio do gecircnero discursivo notiacutecia pelo jornal da turma
A introduccedilatildeo do gecircnero teve seu iniacutecio na roda da conversa como todos os demais
gecircneros apresentados Diariamente as crianccedilas escolhiam uma notiacutecia para compor o jornal da
Turma do Sol usando como criteacuterio o interesse causado no grupo a novidade a surpresa a
curiosidade e ainda algum fato engraccedilado da vivecircncia das crianccedilas na escola ou fora dela mas
que era trazida para a roda da conversa para o conhecimento de todos
Numa tarde depois de escrever a notiacutecia relatada por C6 transmiti a todos oralmente o
texto a seguir
PESCARIA DO PAI DE C6 ACABA EM RISADA
O pai de C6 resolveu ir pescar com os amigos no final de semana passado
Quando ele contou que iria pescar para a matildee de C6 ela ficou uma fera e natildeo
gostou nadinha disso
187
No dia da pescaria o pai de C6 saiu cedinho com os amigos dele e foram
no rio pescar mas quando eles chegaram laacute comeccedilou a chover sem parar Eles
esperaram bastante e quando a chuva passou soacute um pouquinho o pai de C6 e os
amigos dele saiacuteram do carro correndo para sentar perto do rio mas o pai de C6
levou um baita tombo e teve que voltar pra casa sem peixe nenhum
Quando chegou em casa ele contou tudo pra famiacutelia o que tinha
acontecido e foi soacute risada
(Texto criado e lido no dia 230910)
A notiacutecia foi dada por C6 na roda da conversa mas no momento de re-criaccedilatildeo textual as
crianccedilas participaram dando sugestotildees opiniotildees de como deveria ser escrito o texto para ser
colocado no jornal da Turma do Sol que cada crianccedila depois de produzido e editado
cooperativamente recebeu um exemplar para ser levado para casa e ser lido com os familiares
No dia seguinte na roda da conversa contaram sobre as impressotildees dos familiares
C6 Professora meu pai ficou espantado com o olho arregalado quando eu li pra
ele a notiacutecia do jornal que eu contei da pescaria dele
P E por que ele ficou espantado C6
C6 A minha matildee disse que ele estava com vergonha de todo mundo saber o que
tinha acontecido na pescaria dele Mas ele disse que ficou espantado porque ele
natildeo sabia que eu jaacute sei ler porque eu li a notiacutecia toda pra ele e aquela da C13
tambeacutem
P Nossa mas essa eacute uma surpresa muito boa natildeo eacute C6
C6 Eacute sim pro agora eu consigo ler qualquer coisa
(Situaccedilatildeo registrada no dia 101010)
Pela anaacutelise da situaccedilatildeo apresentada pode-se inferir que a notiacutecia do jornal da turma
assim como os relatos de vida do livro da vida e a carta provocaram o desejo de expressatildeo
criaram a necessidade de ler e de escrever porque retratam diretamente o que pensam vivem
sentem e percebem aleacutem dos textos terem sempre um destinataacuterio real o outro
Os gecircneros que surgem das teacutecnicas Freinet possibilitam que a crianccedila esteja
constantemente em contato com a cultura escrita e que participe dela na medida em que percebe
seu funcionamento por meio das relaccedilotildees que ocorrem de forma dialoacutegica e dinacircmica tornando-se
assim produto e produtor dessa cultura
Por se tratar de fatos que foram vividos pelas crianccedilas os textos lidos e criados satildeo
carregados de significados e sentidos porque pressupotildeem por parte dos sujeitos uma compreensatildeo
ativa e responsiva (BAKHTIN 1992) Eacute no processo da compreensatildeo ativa que ocorre a distinccedilatildeo
188
entre sentido e significado uma vez que a compreensatildeo ativa eacute uma forma de diaacutelogo que
possibilita ao locutor-ouvinte espaccedilos de oposiccedilatildeo na contrapalavra na reacuteplica
Diante do exposto o significado eacute reiteraacutevel e idecircntico a cada repeticcedilatildeo da palavra e
funda-se sobre uma convenccedilatildeo natildeo tendo existecircncia concreta independente Em contrapartida o
sentido (tema) eacute aberto agrave multiplicidade potencialmente infinito sendo determinado natildeo apenas
pelas formas linguiacutesticas (as palavras as formas morfoloacutegicas e sintaacuteticas os sons as
entonaccedilotildees) como ocorre na significaccedilatildeo mas tambeacutem pelos elementos extraverbais da cena
discursiva (BAKHTIN 1992) O sentido eacute o conjunto de todos os eventos psicoloacutegicos que a
palavra desperta em nossa consciecircncia O significado eacute dicionarizaacutevel mais estaacutevel e preciso eacute
apenas uma das faces do sentido (BAKHTIN 1992)
Por meio da anaacutelise das falas de C6 ldquoMas ele disse que ficou espantado porque ele natildeo
sabia que eu jaacute sei ler porque eu li a notiacutecia toda pra ele e aquela da C13 tambeacutemrdquo e ainda
ldquoagora eu consigo ler qualquer coisardquo pode-se inferir que assume pra si o estatuto de leitor ainda
que seja um leitor iniciante Ao dizer que agora consegue ler qualquer coisa sugere a ideia de que
agora consegue ler os escritos sociais que atribui sentido por meio de sinais graacuteficos em
situaccedilotildees elaboradas pela cultura humana (ARENA 2010b) que consegue compreender a liacutengua
escrita numa atitude responsiva e que portanto consegue fazer parte de forma mais ativa da
cultura escrita
No capiacutetulo a seguir proponho a anaacutelise de situaccedilotildees de produccedilatildeo de textos que
possibilitam uma reflexatildeo sobre a formaccedilatildeo do re-criador de textos desde a Educaccedilatildeo Infantil por
meio dos gecircneros discursivos
189
CAPIacuteTULO V
O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA E OS GEcircNEROS DISCURSIVOS
A escrita soacute tem sentido se nos sentimos obrigados a recorrer a ela a fim de
comunicarmos o nosso pensamento fora do alcance da voz para aleacutem das portas
da escola (FREINET 1969 p 53)
Esta proposiccedilatildeo freinetiana remete agrave ideia da necessidade da escrita na vida das pessoas
que vivem numa sociedade que lecirc e escreve Como um instrumento cultural complexo a escrita se
manteacutem e se reorganiza constantemente pela necessidade de expressatildeo do sujeito Vygotski
(1995) se aproxima da afirmaccedilatildeo de Freinet ao reiterar que o ensino da linguagem escrita deve
organizar-se de forma que o ato de ler e o ato de escrever sejam necessaacuterios provocados por uma
necessidade social como atos vitais e imprescindiacuteveis
Intentar inserir a crianccedila na cultura escrita apenas oferecendo materiais e situaccedilotildees em que
se depara com uma liacutengua morta estanque pronta e acabada eacute incorrer num risco de ensinar
ldquohaacutebitos motoresrdquo (VYGOTSKI 1995) e reduzir o seu ensino agrave mera codificaccedilatildeo accedilatildeo
insuficiente para que se aproprie e participe ativamente dessa cultura O que orienta a apropriaccedilatildeo
da escrita satildeo as relaccedilotildees dialoacutegicas que a crianccedila estabelece com ela por meio das mediaccedilotildees e
situaccedilotildees promotoras de aprendizagem Diante disso um desafio se apresenta o de iniciar a
formaccedilatildeo do re-criador de textos na Educaccedilatildeo Infantil de modo que a crianccedila desde pequena
aprenda a pensar sobre a escrita a perceber seu funcionamento por meio de seu uso em diferentes
situaccedilotildees para atender a seus interesses e necessidades e a utilizar a escrita como um instrumento
de humanizaccedilatildeo
Neste capiacutetulo seratildeo abordados caminhos possiacuteveis que cumpram esse desafio em
consonacircncia com a fundamentaccedilatildeo teoacuterica defendida neste trabalho Para tanto seratildeo analisadas
situaccedilotildees de re-criaccedilatildeo de textos em trecircs momentos o primeiro no trabalho pedagoacutegico com o
gecircnero discursivo carta por meio da correspondecircncia interescolar o segundo com o gecircnero
discursivo relato de vida por meio do livro da vida e terceiro com notiacutecia por meio do jornal
escolar
190
51 A crianccedila e seu estatuto de re-criador de textos
Ao tratar do processo inicial de apropriaccedilatildeo da cultura escrita pela crianccedila considera-se
que ela tenha experiecircncias na escola e que possa ser provocado o desejo de expressatildeo Esse
desejo ocorre quando vive situaccedilotildees em que pode conhecer coisas pensar sobre elas e expressar-
se por meio de diferentes linguagens como a danccedila a muacutesica o teatro a pintura o faz-de-conta
Nessas condiccedilotildees o trabalho pedagoacutegico privilegia na pequena infacircncia a experiecircncia com
diferentes conhecimentos constituiacutedos culturalmente entendendo-os tanto na sua dimensatildeo de
produccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais cotidianas como de produccedilatildeo historicamente acumulada presente
nas artes na literatura no cinema na produccedilatildeo artiacutestica de modo geral
Desse modo as experiecircncias vividas por meio das diferentes linguagens e da brincadeira
garantem agrave crianccedila a possibilidade de formar conceitos selecionar ideias estabelecer relaccedilotildees
loacutegicas integrar percepccedilotildees fazer estimativas planejar accedilotildees Eacute nesse emaranhado de
linguagens brincadeiras textualidades vozes que a crianccedila tambeacutem se apropria gradativamente
da linguagem escrita
Ler e escrever satildeo atividades altamente complexas que envolvem o conhecimento de
linguagens sociais (BAKHTIN 1983 p 154 ndash 155) que historicamente e culturalmente foram
organizadas oralmente e por escrito por meio de recursos expressivos como modos de dizer os
conhecimentos das diferentes esferas sociais criadas pelo homem As linguagens sociais
apresentam os conhecimentos especiacuteficos em cada esfera de atividade humana com sintaxes e
repertoacuterios lexicais que as caracterizam relacionadas aos gecircneros do discurso que foram se
elaborando para contemplar as necessidades humanas nas situaccedilotildees sociais (GOULART 2006)
O trabalho na escola tem se caracterizado cada vez mais pela presenccedila do texto quer
enquanto objeto de leituras quer enquanto trabalho de produccedilatildeo (GERALDI 1997) A produccedilatildeo
de textos orais e escritos eacute considerada nesta pesquisa como ponto de partida e ponto de chegada
(GERALDI 1997) de todo o processo de ensino e de aprendizagem da liacutengua escrita Nessa
perspectiva eacute desprezado o ensino focado em letras siacutelabas e palavras em que a prioridade eacute a
sinalidade e consequentemente a codificaccedilatildeo
Em contraposiccedilatildeo a isso o que se propotildee eacute pensar a liacutengua escrita nas suas relaccedilotildees na
sua dialogicidade de forma interativa viva e em movimento na interlocuccedilatildeo com os falantes que
requer sempre uma atitude responsiva (BAKHTIN 1992) Por esse motivo criar textos com as
191
crianccedilas e ensinaacute-las a criar os seus proacuteprios eacute garantir que elas possam expressar ideias
sentimentos escolhas opiniotildees e a operar com os signos Eacute no texto que a liacutengua se manifesta
que se revela na sua totalidade seja como conjunto de formas seja como discurso que remete a
uma relaccedilatildeo intersubjetiva constituiacuteda no proacuteprio processo de enunciaccedilatildeo marcada pela
temporalidade e suas dimensotildees (GERALDI 1997) Natildeo haacute texto sem o outro sem um
interlocutor dessa forma
O outro eacute a medida eacute para o outro que se produz o texto E o outro natildeo se
inscreve no texto apenas no seu processo de produccedilatildeo de sentidos na leitura O
outro insere-se jaacute na produccedilatildeo como condiccedilatildeo necessaacuteria para que o texto
exista E porque se sabe do outro que um texto acabado natildeo eacute fechado em si
mesmo Seu sentido por maior precisatildeo que lhe queira dar seu autor e ele o
sabe eacute jaacute na produccedilatildeo um sentido construiacutedo a dois (GERALDI 1997 p 102
grifo do autor)
Ao considerar essas afirmaccedilotildees este trabalho se propotildee a pensar o processo de
apropriaccedilatildeo da escrita ndash como o da leitura abordado no capiacutetulo IV ndash de forma dialoacutegica com
textos reais que satildeo endereccedilados ao outro Os textos produzidos correspondem agraves situaccedilotildees
vividas pelas crianccedilas na escola e fora dela em que lidam com a liacutengua em seu funcionamento
Desse modo o ato comunicativo que se estabelece sempre pressupotildee o outro com a sua
contrapalavra sua atitude responsiva (BAKHTIN 1992) na busca do sentido Por isso
No processo de compreensatildeo ativa e responsiva a presenccedila da fala do outro
deflagra uma espeacutecie de ldquoinevitabilidade de busca de sentidordquo esta busca por
seu turno deflagra que quem compreende se oriente para a enunciaccedilatildeo do outro
(GERALDI 1997 p 19)
De acordo com Bakhtin (2003 p 307) ldquoo texto eacute a realidade imediata (realidade do
pensamento e das vivecircncias) () onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamentordquo Ao
tratar neste capiacutetulo sobre a formaccedilatildeo do produtor de texto no interior da escola de Educaccedilatildeo
Infantil enfatiza-se a diferenccedila entre textos e redaccedilotildees O primeiro refere-se a textos criados na
escola e as redaccedilotildees referem-se a textos produzidos para a escola (GERALDI 1997) Considera-
se que para produzir um texto eacute preciso ter o que dizer ter motivos para dizer o que se quer dizer
ter o outrointerlocutor e a escolha das estrateacutegias para se dizer o que se quer dizer e da forma que
se pretende fazer isso Em contrapartida os textos quando satildeo produzidos para a escola
192
apresentam muita escrita e pouco texto (discurso) precisamente porque se constroem no ato de
escrever para cumprir uma exigecircncia escolar uma tarefa imposta pelo professor em que satildeo
descartados os aspectos que a produccedilatildeo de texto valida (GERALDI 1997)
Esses pressupostos se coadunam com as ideias de Jolibert (2006 p 19) ao esclarecer que
Escrever eacute produzir mensagens reais com intencionalidade e destinataacuterios reais
Natildeo se trata de transcrever (copiar) nem de praticar caligrafia Tampouco se
trata de escrever ldquocomposiccedilotildees ou ldquoredaccedilotildeesrdquo do tipo escolar com a intenccedilatildeo de
mostrar ao professor que sabe ou natildeo sabe
A re-criaccedilatildeo de texto nessas condiccedilotildees se configura como um processo carregado de
historicidade construiacutedo pelos sujeitos em diferentes momentos e condiccedilotildees de interaccedilatildeo que
expressam ideias opiniotildees desejos Um processo interativo discursivo que potildee em jogo os
conhecimentos jaacute apropriados sobre a liacutengua e cria a necessidade de novas apropriaccedilotildees
Nesse processo a crianccedila atua como sujeito e natildeo como objeto Ela participa intensamente
do discurso e de forma ativa eacute capaz de dialogar com o outro tornando-se tambeacutem parceira num
ato comunicativo Quando isso acontece a crianccedila assume o estatuto de re-criador de textos
52 A escrita do gecircnero discursivo carta
As situaccedilotildees de re-criaccedilatildeo de texto apresentadas e analisadas neste item satildeo relacionadas
ao gecircnero discursivo carta Um garoto da turma ao ter a sua vez de falar na Roda da Conversa
faz o seguinte relato ao dialogar comigo sua professora
C8 Professora hoje eu tenho uma super notiacutecia pra contar na roda da conversa
P Entatildeo pode nos contar qual eacute Jaacute estamos todos curiosos
C8 Sabe pro minha voacute estaacute estudando agrave noite numa escola Ela me falou que
isso era o maior sonho da vida dela aprender a ler e escrever Ela me contou que
quando ela era pequena ela tinha que trabalhar pra ganhar dinheiro e natildeo podia ir
para a escola Aiacute depois que ela cresceu e se casou com meu vocirc ela tambeacutem natildeo
podia ir porque meu vocirc natildeo deixava porque ele tinha ciuacutemes dela E ela falou
que isso era a maior tristeza da vida dela Agora ela anda feliz da vida porque ela
estaacute aprendendo um monte de coisas que ela queria Aiacute eu ateacute ensino ela
escrever umas coisas tambeacutem
P Ah eacute E o que vocecirc ensina ela a escrever
C8 Eu ensino tudo o que eu sei e ela aprende tudinho
P Mas o que (vocecirc ensina) por exemplo
193
C8 Eu ensino ela a escrever o nome dela da minha matildee do meu irmatildeo eu ateacute
ensinei ela a escrever uma carta igual a gente faz aqui na escola
P E como vocecirc a ensinou a escrever a carta
C8 Eu expliquei pra ela que tinha que comeccedilar pela data depois tinha que
cumprimentar a pessoa (saudaccedilatildeo) e depois ir escrevendo cada coisa que queria
contar A data eu mesmo escrevi aiacute chamei meu irmatildeo e ele foi escrevendo pra
gente o que a gente ia falando No fim da carta eu falei pra minha voacute que tinha
que colocar a despedida e escrever o nome dela
P E pra quem era essa carta que vocecircs escreveram
C8 Era pra irmatilde da minha voacute que mora bem longe e que a minha voacute natildeo vecirc faz
um tempatildeo Minha voacute estava com saudade dela e aiacute eu falei que ela podia
escrever uma carta Agora toda vez minha voacute fica me falando pra gente estudar
junto
P E vocecirc gosta de estudar com sua voacute
C8 Eu gosto Ontem minha voacute ganhou uma receita da vizinha dela e eu li a
receita pra ela Sabe do que era a receita Era de bolo gelado A minha voacute nem
acreditou que eu li a receita inteirinha
P Eacute mesmo E por que ela natildeo acreditou
C8 Porque ela natildeo sabia que eu jaacute aprendi a ler Ela acha que eu sou pequeno
mas eu ateacute falei pra ela que daqui a pouco ela vai ler como eu
(Situaccedilatildeo observada em 040810)
Por meio do diaacutelogo apresentado pode-se inferir que aprender a ler e a escrever para a
avoacute do garoto sempre foi uma forma de inserir-se e de pertencer agrave cultura escrita porque a
inserccedilatildeo lhe foi negada por ter que trabalhar na infacircncia e juventude e ainda na idade adulta por
natildeo ter a permissatildeo do marido A avoacute denota compreender a funccedilatildeo da escola como um lugar
privilegiado em que essas aprendizagens ocorrem e ao mesmo tempo percebe que sua
aprendizagem de ler e de escrever tambeacutem se daacute fora da escola ndash no caso em sua casa ndash com a
ajuda de seu neto Isso se verifica quando o garoto diz ldquoAgora toda vez minha voacute fica me falando
pra gente estudar juntordquo Desse modo para a avoacute a leitura e a escrita natildeo satildeo tarefas
eminentemente escolares mas servem para atender a seus interesses e necessidades
O diaacutelogo estabelecido entre o garoto e sua avoacute e as accedilotildees desencadeadas a partir desse
diaacutelogo encontram alicerce nas ideias de Bakhtin (1992) em que a linguagem natildeo se restringe a
ser um meio um instrumento capaz de transmitir a algueacutem uma determinada mensagem A
linguagem eacute uma forma de interaccedilatildeo humana e segundo Kramer (1993 p 103) ldquoeacute produccedilatildeo
humana acontecida na histoacuteria produccedilatildeo que ndash construiacuteda nas interaccedilotildees sociais nos diaacutelogos
vivos ndash permite pensar as demais accedilotildees e a si proacutepria constituindo a consciecircnciardquo
O garoto atua junto agrave avoacute tambeacutem como mediador dessas aprendizagens da leitura e da
escrita na medida em que a ensina a escrever seu proacuteprio nome o nome dos familiares a escrever
194
uma carta e ainda quando lecirc para a avoacute a receita que acabara de ganhar de uma vizinha Eacute
possiacutevel dizer que reconhece a funccedilatildeo social da leitura e da escrita quando propotildee que a avoacute
escreva para a sua irmatilde que mora longe da qual sentia saudades percebe que a escrita dessa carta
cumpre seu papel de comunicar de expressar de estabelecer relaccedilotildees e de interagir com o outro
Haacute um destinataacuterio real numa situaccedilatildeo real da qual a avoacute se vale tambeacutem para aprender
Considera-se que a linguagem eacute fruto da interaccedilatildeo verbal entre os sujeitos (BAKHTIN
1992) e deve ser vista em seu uso na atitude responsiva do outro e por esse motivo deve ser
compreendida a partir de sua natureza soacutecio-histoacuterica Desse modo a concepccedilatildeo bakhtiniana de
linguagem decorre do pressuposto de que o sujeito se constitui na medida em que se relaciona
com o outro agrave medida que vai ao encontro do outro Nesse sentido a linguagem pressupotildee trocas
linguiacutesticas dinacircmicas numa situaccedilatildeo num lugar histoacuterico e num lugar social concretos (BRAIT
2005) Haacute ainda a presenccedila do irmatildeo do garoto que atua de forma colaborativa nessa situaccedilatildeo
como escriba para a avoacute aluna da EJA e para o irmatildeo aluno da Educaccedilatildeo Infantil ambos no
iniacutecio do processo de apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita que re-criavam o texto oralmente
Por meio da fala do garoto ldquo eu ateacute ensinei ela a escrever uma carta igual a gente faz
aqui na escolardquo eacute possiacutevel perceber que a crianccedila vivencia situaccedilotildees reais de leitura e de
escrita na escola (JOLIBERT 1994) Diante desse apontamento vale ressaltar que para
Vygotsky ldquoO aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e potildee
em movimento vaacuterios processos de desenvolvimento que de outra forma seriam impossiacuteveis de
acontecerrdquo (VYGOTSKY apud FREITAS 1994 p 95) Desse modo pode-se inferir que o
conhecimento das crianccedilas jovens ou adultos bem como seus modos de aprender vatildeo se
constituindo na dinacircmica das relaccedilotildees sociais
Percebe-se tambeacutem que a crianccedila se apropria da liacutengua por meio dos gecircneros discursivos
(DOLZ SCHNEUWLY 1999 BAKHTIN 2003) como a carta Na situaccedilatildeo descrita ela orienta
a avoacute durante a produccedilatildeo do texto carta ao explicar a ela as partes especiacuteficas que a compotildeem
(data saudaccedilatildeo mensagem despedida e assinatura) ao escrever a data ao propor o que pode ser
escrito e ao fazer isso pode-se dizer que estabelece relaccedilotildees com os elementos que compotildeem os
gecircneros discursivos ndash conteuacutedo temaacutetico estilo e construccedilatildeo composicional (BAKHTIN 2003)
Vale ressaltar que os gecircneros discursivos nesse trabalho satildeo concebidos como praacuteticas
soacutecio-histoacutericas e culturais em que a liacutengua eacute tratada em seus aspectos discursivos e enunciativos
em vez de serem meramente observados seus aspectos formais e estruturais Dessa maneira a
195
liacutengua eacute vista como uma atividade social histoacuterica e cultural na qual os gecircneros referem-se aos
discursos em circulaccedilatildeo em nosso dia a dia e apresentam caracteriacutesticas soacutecio-comunicativas
(MACHADO 2005) Pode-se inferir ainda que a crianccedila instiga a avoacute a pensar sobre o complexo
processo que envolve o ato de ler e de escrever pelo qual ambos mobilizam vaacuterios
conhecimentos de que ler e escrever implicam tambeacutem o domiacutenio do coacutedigo a mediaccedilatildeo do
outro no interior do pensamento
A concepccedilatildeo bakhtiniana entende a linguagem como uma abordagem histoacuterica em que o
foco eacute a interaccedilatildeo verbal e cuja realidade fundamental eacute o seu caraacuteter dialoacutegico Aprender a ler e
a escrever pressupotildee uma relaccedilatildeo dialoacutegica a atitude responsiva do outro a interaccedilatildeo ativa com o
texto com o mediador e consigo mesmo que atua tambeacutem como o outro nesse processo
(BAKHTIN 1992) Portanto ler e escrever implicam lidar com uma liacutengua viva dinacircmica em
constante movimento
Pode-se inferir que o garoto se apropria da leitura e da escrita por meio da leitura e da
escrita de textos ndash este fato pode ser constatado quando trata da re-criaccedilatildeo da carta e da leitura da
receita ndash e natildeo por meio da repeticcedilatildeo de letras e siacutelabas Essa interaccedilatildeo e diaacutelogo que ele parece
travar por meio de suas vivecircncias contribuem para que ele faccedila o mesmo com a avoacute ao re-criar
com ela a carta e ao ler para ela a receita Linguagem eacute interaccedilatildeo (BAKHTIN 1992) e ao se
partir dessa premissa entende-se que se aprende a ler e a escrever lendo e escrevendo textos que
tecircm contextos situacionais que os organizam linguisticamente
A situaccedilatildeo ora apresentada denota que a crianccedila percebe a leitura e a escrita como atos
necessaacuterios para poder pertencer e atuar na cultura escrita Isto se verifica quando revela que a
avoacute se surpreende que ela embora pequena jaacute saiba ler e quando afirma que ela logo saberaacute
tambeacutem ldquoA minha voacute nem acreditou que eu li a receita inteirinhardquo ldquoPor que ela natildeo sabia que
eu jaacute aprendi a ler Ela acha que eu sou pequeno mas eu ateacute falei pra ela que daqui a pouco ela
vai ler como eurdquo
O dado a ser apresentado a seguir pode corroborar com a reflexatildeo sobre o ensino da
liacutengua por meio do gecircnero discursivo carta com as crianccedilas pequenas Ao planejarmos a tarde de
trabalho daquele dia com as crianccedilas na roda da conversa propus que respondecircssemos a carta de
nossos correspondentes da cidade de Campinas ndash SP
P Pessoal hoje noacutes vamos responder a carta da professora L e da Turma dos
Coelhinhos porque noacutes estamos atrasados com a nossa correspondecircncia Faz
196
tanto tempo que elas escreveram essa cartinha (mostra a carta agraves crianccedilas) e
hoje por e-mail a professora L me pediu muito para noacutes respondermos porque
as crianccedilas e ela estatildeo querendo demais receber a nossa resposta Eacute como noacutes
quando escrevemos para a para a Turma do Dedo Verde natildeo eacute Quando
escrevemos natildeo daacute vontade de recebermos logo a resposta dela
Todas Daacute
P Entatildeo a Turma dos Coelhinhos eacute como a nossa As crianccedilas estatildeo muito
ansiosas esperando a nossa resposta e olhem passou tanto tempo e noacutes com
tantas atividades com tantas coisas para fazermos natildeo conseguimos responder a
cartinha ainda Entatildeo noacutes vamos fazer isso hoje Combinado
Todas Combinado
C13 Pro comeccedila com a data
C13 natildeo eacute ouvida por mim porque atendia a uma crianccedila que propunha que eu
lesse a carta novamente para que pudessem ter ideia do que responder Entatildeo
fala novamente
C13 Pro comeccedila com a data
P Pessoal C13 deu a ideia de comeccedilarmos com a data O que acham
C13 Estaacute certo ou estaacute errado
Todas Certo
C6 A carta sempre comeccedila com a data
P Bem entatildeo vou escrever o local e a data assim elas vatildeo saber onde e quando
foi escrita essa carta ldquoMariacutelia 12 de agosto de 2010
O planejamento diaacuterio (FREINET 1973) do que seraacute feito no dia indica uma participaccedilatildeo
das crianccedilas no processo educativo Ao planejarem junto com a professora o que seraacute feito
semanalmente diariamente as crianccedilas propotildeem opinam ouvem satildeo ouvidas buscam soluccedilotildees
O procedimento de fazer com elas e natildeo por elas orienta o fazer pedagoacutegico com o objetivo de
tornaacute-las sujeitos desse processo Nessas condiccedilotildees o ensino eacute colaborativo pois aleacutem do
planejamento intencional haacute a negociaccedilatildeo em busca de contemplar seus interesses e criar novas
necessidades de aprender
No processo de re-criaccedilatildeo de texto da carta elas aparentam perceber a sua construccedilatildeo
composicional (BAKHTIN 2003) ao indicarem que a data ndash um dos seus elementos
caracteriacutesticos ndash deveria ser escrita logo de iniacutecio
C13 Olha soacute a professora faz umas letras diferentes natildeo eacute pro (refere-se agrave
dupla caixa como a carta recebida da Turma dos Coelhinhos e da professora L)
P Eacute sim E que letra seraacute que eacute essa
C11 Eacute de focircrma (refere-se agrave letra dupla caixa As crianccedilas e eu usaacutevamos
somente a caixa alta para escrever conforme orientaccedilatildeo da Secretaria Municipal
da Educaccedilatildeo no periacuteodo da pesquisa e a carta da Turma dos Coelhinhos estava
escrita em dupla caixa)
P Letra de focircrma Mas as letras que usamos tambeacutem natildeo satildeo letras de focircrma
C6 Hum agora complicou
C5 Eacute de focircrma mas eacute diferente
197
P As letras que noacutes usamos (refiro-me a caixa alta) aparecem na carta que noacutes
recebemos da Turma dos Coelhinhos Vamos ver
Todas As crianccedilas se voltam para a carta recebida afixada no mural da sala e a
observam
C5 Aparece soacute de vez em quando
P Quando elas aparecem Onde
C1 No comeccedilo de Mariacutelia
P Onde mais
C7 No comeccedilo do nome da professora L
P Certo
C3 Aqui oacute (Aponta para o comeccedilo da frase)
P Aparece em mais algum lugar
C2 Nos nomes deles aqui embaixo tambeacutem (observa as letras iniciais dos nomes
das crianccedilas da Turma dos Coelhinhos ao findar a carta suas assinaturas)
P Pessoal elas usam as letras maiuacutesculas e as minuacutesculas Soacute que as letras
maiuacutesculas noacutes usamos em situaccedilotildees como essas que vocecircs me mostraram (eu
pego o envelope escrito da carta recebida) A professora L usou a letra
maiuacutescula no comeccedilo dos nomes das pessoas no comeccedilo do nome da nossa
cidade
C2 Mariacutelia neacute pro
P Exato Ela usou tambeacutem quando no (a crianccedila interrompe a minha fala)
C13 Engraccedilado pro
P O que eacute engraccedilado C13
C13 Na carta que elas escreveram depois do ponto final elas escreveram com
letra maiuacutescula
P Eacute mesmo
C13 Eacute mesmo pro vem caacute ver (aponta com o dedo indicador da matildeo direita
para a carta)
P Vocecircs concordam com C13
Todas (Concordam com a cabeccedila depois de observarem a proacutepria crianccedila
mostrando em toda carta quando isso ocorria)
P Bem observado C13 Todas agraves vezes que organizamos nossas ideias quando
escrevemos e colocamos o ponto final em seguida iniciamos com a letra
maiuacutescula
C11 Pro Campinas eacute longe daqui
P Eacute longe satildeo cerca de 6 a 7 horas de viagem de ocircnibus
C9 Que longe
C13 De aviatildeo chega no mesmo dia neacute
P De carro tambeacutem chegamos no mesmo dia dependendo da hora que sairmos
daqui soacute que demora mais tempo que de aviatildeo Bem reparem aqui no envelope
que elas nos enviaram A professora L escreveu o iniacutecio do nome da nossa
cidade com letra maiuacutescula o iniacutecio do nome da nossa rua com letra maiuacutescula
o iniacutecio do nome do bairro com letra maiuacutescula
C5 Mas o resto elas escreveram com letra minuacutescula
P Eacute por isso que eu vou escrever como a professora L Pode ser
Todas Pode
C2 Assim a gente vai aprendendo
198
Por meio da anaacutelise desse trecho do ato de re-criaccedilatildeo de texto as crianccedilas insistem em
lidar com a linguagem escrita de forma dialoacutegica por meio do gecircnero discursivo apresentado e
por meio da minha mediaccedilatildeo como professora que as instigo a pensar sobre a escrita sem dar
respostas prontas e acabadas Ao contraacuterio provoco a atitude responsiva ao indagaacute-las sobre o
que vecircem a observarem e a elaborarem hipoacuteteses sobre essas observaccedilotildees para num momento
posterior pelo uso e pelo diaacutelogo travado validaacute-las ou natildeo
C13 observa que eu uso a dupla caixa para escrever a carta resposta para os
correspondentes como eles o fizeram No entanto usaacutevamos somente a caixa alta ndash ateacute aquele
momento ndash recomendada pela Secretaria da Educaccedilatildeo da cidade no periacuteodo de realizaccedilatildeo da
pesquisa Esse fato causou surpresa durante a escrita da carta mas por esse motivo foi possiacutevel
estabelecer relaccedilotildees que envolvem diretamente o processo de apropriaccedilatildeo da linguagem escrita
C13 observa que a outra professora escrevia com uma ldquoletra diferenterdquo Quando pergunto
qual letra era aquela C11 responde que eacute letra de focircrma Ao pretender aprofundar essa questatildeo
pergunto ldquoMas as letras que usamos natildeo satildeo de focircrmardquo Ao que C5 responde Eacute de focircrma mas eacute
diferente Essas falas reafirmam o pressuposto de que ldquoa liacutengua escrita natildeo eacute apenas um registro
da liacutengua oral Linguagem nova que multiplica a capacidade de pensar e agir do homem a escrita
eacute uma heranccedila diante da qual a crianccedila deve se deter para dela se apropriarrdquo (BAJARD 2012 p
54) Para este autor o uso da tipografia ndash somente a maiuacutescula (caixa alta) ndash natildeo permite que a
especificidade da escrita se manifeste Isso se verifica por exemplo na grafia das palavras ldquorosardquo
e ldquoRosardquo em que a primeira pode se referir agrave flor ou agrave cor e a segunda ao nome de uma pessoa o
que seria inviaacutevel perceber se para designar essas duas situaccedilotildees a grafia fosse ldquoROSArdquo
Outro aspecto a ser ressaltado eacute que as crianccedilas percebem o uso da letra maiuacutescula quando
satildeo levadas a observar o uso que os correspondentes fizeram dela e quando passam a usaacute-la para
expressarem as suas ideias por meio da escrita com a tipografia dupla caixa ldquoO uso da maiuacutescula
eacute indiacutecio de um funcionamento da escrita que vai aleacutem das relaccedilotildees som-letrardquo (BAJARD 2012
p 83) pois assume uma funccedilatildeo fundamental na leitura ldquonatildeo somente manifesta no corpo do
texto a presenccedila de personagem como tambeacutem sinaliza para os olhos o indiacutecio da frase e
consequentemente o seu fimrdquo (BAJARD 2012 p 83) Este fato pode ser observado quando C13
revela ldquoNa carta que elas escreveram depois do ponto final elas escreveram com letra
maiuacutesculardquo E a professora com a intenccedilatildeo de refletir sobre esse uso pergunta ldquoEacute mesmordquo ao
199
que C13 responde ldquoEacute mesmo pro vem caacute verrdquo (aponta com o dedo indicador da matildeo direita para
a carta)
A partir desse momento todas as escritas foram grafadas com a tipografia dupla caixa
uma vez que as proacuteprias crianccedilas solicitavam seu uso por compreenderem que os escritos sociais
em sua maioria se apresentam dessa forma e natildeo somente com a caixa alta como nos livros
revistas e outros materiais ndash com exceccedilatildeo das histoacuterias em quadrinhos que em geral satildeo escritas
em caixa alta
Aleacutem do uso da caixa alta para marcar o iniacutecio de frases a situaccedilatildeo de escrita da carta
ainda possibilitou a reflexatildeo sobre o uso da maiuacutescula em outras situaccedilotildees por exemplo quando
mostro o envelope escrito pelos correspondentes e as situaccedilotildees em que ela aparece como na
escrita de substantivos proacuteprios apesar de natildeo ter cogitado essa nomenclatura especificamente e
de natildeo ser esse o objetivo mas de perceber o funcionamento da escrita ldquoA professora L escreveu
o iniacutecio do nome da nossa cidade com letra maiuacutescula o iniacutecio do nome da nossa rua com letra
maiuacutescula o iniacutecio do nome do bairro com letra maiuacutesculardquo Com isso ldquorejeitar o iacutendice
maiuacutesculaminuacutescula com o pretexto de que ele natildeo corresponde a nenhum iacutendice sonoro resulta
em apagar a mais evidente marca sintaacutetica da fraserdquo (BAJARD 2012 p 83)
P Bem entatildeo vamos continuar O que escrevemos depois da data
C13 Que tal Olaacute amigos queridos da Turma dos Coelhinhos
P Ah a saudaccedilatildeo Isso mesmo Noacutes vamos iniciar a carta saudando as
pessoas cumprimentando as pessoas para comeccedilarmos a escrever as nossas
novidades O que vocecircs acham da ideia de C13
C8 Certo
Eu escrevo a sugestatildeo da crianccedila na carta Olaacute amigos novos da Turma dos
Coelhinhos e professora (sou interrompida)
C18 Natildeo se esquece de escrever o nome da professora L com letra maiuacutescula
pro
P Muito bem farei isso (e entatildeo eu escrevo)
C13 Nossa o L de C7 eacute igual da professora L (a crianccedila observa que a letra
inicial do nome da colega de turma eacute o mesmo da professora da carta)
P Eacute verdade o dois nomes comeccedilam com a mesma letra
C7 Escreve que ela eacute linda
P Sim podemos escrever isso Mas antes de tudo eu acho que noacutes devemos nos
desculpar pela demora da carta vocecircs natildeo acham E contar os motivos porque
natildeo pudemos escrever antes
C10 Hatilde hatilde
C4 Eacute mesmo
P E como podemos escrever isso
C7 Potildee ldquoDesculpardquo Desculpa neacute professora
P Mas precisamos escrever porque estamos pedindo desculpas
200
C5 Escreve assim pro ldquoDesculpa pela demora da carta Soacute deu pra gente
escrever agora porque a gente tinha muitas coisas para fazer e aconteceram
muitas coisasrdquo
P Hum O que vocecircs acharam da sugestatildeo de C5
C12 Eacute acho que estaacute bom assim
Escrevo na carta e as crianccedilas acompanham
C7 Pro eu tive uma ideia Noacutes tambeacutem podemos mandar uns desenhos pra elas
C13 Eu sei desenhar coelhinhos A gente pode mandar de presente pra turma
Todas concordam
C8 Escreve que noacutes gostamos do nome da turma delas
P Como podemos escrever isso na carta
C7 Escreve assim pro ldquoNoacutes gostamos muito do nome da turma de vocecircsrdquo
Continuo a escrever
C9 ldquoE noacutes ama vocecircsrdquo (Sugere a crianccedila que seja escrito)
C5 Natildeo eacute noacutes AMA vocecircs Eacute noacutes AMAMOS vocecircs neacute pro
P Isso mesmo porque natildeo eacute soacute uma pessoa da nossa turma que os ama mas
algumas pessoas que os ama satildeo as pessoas da nossa turma Bem e o que vocecircs
querem que eles saibam O que mais podemos escrever na carta
As falam sugerem que as crianccedilas aprendem a pensar sobre a liacutengua por meio dos gecircneros
discursivos e consequentemente a se comunicar por meio deles As discussotildees travadas
permitem inferir que a liacutengua eacute vista em seu uso e que as marcas da escrita incluindo a gramaacutetica
e a ortografia acontecem concomitantes nesse processo natildeo de forma imposta teacutecnica ndash porque
seria contrapor-se ao que eacute defendido nesse trabalho com relaccedilatildeo ao proacuteprio ensino da liacutengua ao
respeito agrave crianccedila e agraves regularidades de seu desenvolvimento ndash mas como uma apropriaccedilatildeo
dialoacutegica dela que requer situaccedilotildees reais de uso em que a crianccedila atua de forma ativa Essa
atuaccedilatildeo promove constantes interesses e cria a necessidade de aprender Pode-se perceber isso
quando C9 diz ldquoE noacutes ama vocecircsrdquo (Sugere a crianccedila que seja escrito) E imediatamente numa
atitude responsiva C5 afirma ldquoNatildeo eacute noacutes AMA vocecircs Eacute noacutes AMAMOS vocecircs neacute prordquo
Eacute possiacutevel depreender tambeacutem que as crianccedilas percebem a minha mediaccedilatildeo como
professora e minha participaccedilatildeo como uma interlocutora ativa tambeacutem desse processo uma vez
que as crianccedilas frequentemente se voltam a mim na tentativa de se certificarem do que pensam e
dizem ldquoNatildeo eacute noacutes AMA vocecircs Eacute noacutes AMAMOS vocecircs neacute prordquo E ao ser indagada esclareccedilo
ldquoIsso mesmo porque natildeo eacute soacute uma pessoa da nossa turma que os ama mas algumas pessoas que
os ama satildeo as pessoas da nossa turmardquo E dou continuidade ao processo de re-criaccedilatildeo de texto
ldquoBem e o que vocecircs querem que eles saibam O que mais podemos escrever na cartardquo
A discussatildeo sobre a maiuacutescula e seu uso traz agrave tona sua apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo pelas
crianccedilas quando a professora no caso eu mesma ao escrever a saudaccedilatildeo e colocar o nome da
201
outra professora eacute orientada por C18 ldquoNatildeo se esquece de escrever o nome da professora L com
letra maiuacutescula prordquo
C1 Pro potildee o nome da nossa turma agora
Todas Turma do Sol (Todas falam juntas)
P Como eacute que podemos escrever isso
C1 Hum escreve assim O nome da nossa turma eacute Turma do Sol
Todas concordam e eu escrevo
C1 Coloca aiacute que a gente aprendeu um monte de coisas sobre o Sol
P Como podemos escrever isso
C1 Ah escreve ldquoe noacutes aprendemos um monte de coisas sobre o Sol
C5 ldquoEle eacute uma mistura de gases Eacute uma bola de fogordquo
C17 ldquoEle eacute quente quente quenterdquo
C16 ldquoSem o Sol natildeo ia ter vida na Terra porque todo mundo precisa dele Se
natildeo tivesse o Sol ia ser tudo escurordquo
C7 ldquoSem o Sol natildeo poderiacuteamos viverrdquo
P Isso mesmo C7
C13 ldquoSem o Sol nada daria certordquo
P Que beleza Satildeo informaccedilotildees importantes Acho que eles vatildeo gostar muito de
saber de tudo isso
Escrevo as informaccedilotildees sobre o Sol pesquisadas pela turma ateacute aquele momento
C14 Ocirc pro a gente pode desenhar o Sol com planetinhas
P Claro que sim Assim que terminarmos a carta vocecircs podem ilustraacute-la como
vocecircs sempre fazem Cada um vai escolher qual parte dela quer desenhar estaacute
bem
Todas Oba
As crianccedilas participam todo o tempo do processo de re-criaccedilatildeo porque tecircm o que dizer o
que contar uma vez que eacute a continuidade de um diaacutelogo jaacute estabelecido com a outra turma A
escrita surge nesse processo de re-criaccedilatildeo textual como uma forma dizer coisas de informar de
comunicar Isso ocorre porque as crianccedilas tecircm muitas experiecircncias na escola porque a escola eacute o
lugar da cultura mais elaborada (MELLO FARIA 2010)
Esse desejo de expressatildeo que se materializa nesse caso com a escrita da carta acontece
tambeacutem por meio do desenho em que por diversas vezes eacute proposto pelas crianccedilas ldquoC14 Ocirc pro
a gente pode desenhar o Sol com planetinhasrdquo ou como foi visto no trecho analisado
anteriormente com as falas de C7 e C13 ldquoPro eu tive uma ideia Noacutes tambeacutem podemos mandar
uns desenhos pra elasrdquo ldquoEu sei desenhar coelhinhos A gente pode mandar de presente pra
turmardquo
C12 Pro escreve que noacutes gostamos das brincadeiras que eles ensinaram pra
gente
P Turma que tal a ideia da C12
202
C20 Legal Pode escrever
P Entatildeo me ajudem como posso escrever isso aqui
C20 Escreve assim pro ldquoAs brincadeiras que vocecircs ensinaram a gente satildeo
legaisrdquo
C13 Ueacute natildeo sei natildeo
P O que C13
C13 Eacute melhor escrever assim Noacutes gostamos das brincadeiras que vocecircs
ensinaram para a nossa turma
P Por que vocecirc acha melhor dessa forma e natildeo como C20 disse
C13 Ueacute pro Porque desde o comeccedilo da carta escrevemos ldquonoacutesrdquo e natildeo a
ldquogenterdquo Ai eu acho que eacute melhor neacute
P Vocecircs concordam com C13
Todas concordam
As falas das crianccedilas no trecho acima sinalizam que elas se apropriam e se objetivam da
liacutengua de forma dialoacutegica viva em seu funcionamento por meio dos gecircneros discursivos Ao
fazerem isso percebem que
O texto portanto eacute o espaccedilo de escolha dos recursos linguiacutesticos e estiliacutesticos
que depende da relaccedilatildeo enunciativa manifesta no discurso a partir do gecircnero
em vez de ser uma unidade autocircnoma O texto eacute tomado como unidade apenas
na condiccedilatildeo de espeacutecime do gecircnero (SOBRAL 2009 p 131)
Por tal razatildeo as crianccedilas escolhem como e quais recursos da liacutengua preferem usar na re-
criaccedilatildeo do texto e adotam criteacuterios como propotildee C13 ao sugerir outra maneira de escrever a ideia
de C20 ao apontar ldquoEacute melhor escrever assim Noacutes gostamos das brincadeiras que vocecircs
ensinaram para a nossa turmardquo Quando pergunto por que considera melhor da forma que ela
propotildee e natildeo a de C20 esclarece ldquoUeacute pro Porque desde o comeccedilo da carta escrevemos ldquonoacutesrdquo e
natildeo ldquoa genterdquo Ai eu acho que eacute melhor neacuterdquo
Para finalizar a carta proponho
P Qual brincadeira vocecircs mais gostaram
C5 A do homem de fogo
Todas Eacute mesmo
Escrevo e pergunto em seguida
P E qual brincadeira noacutes podemos ensinar para elas (refere-se agraves crianccedilas da
Turma dos Coelhinhos)
C10 Coelhinho sai da Toca
C6 A menina que estaacute na roda
Entatildeo escrevo com as crianccedilas como se brinca cada uma das brincadeiras
citadas
203
P O que vocecircs acham de escrevermos que noacutes estamos mandando um presente
para elas
C2 Eacute mesmo pro E a gente precisa terminar o presente (refere-se agraves pinturas
que cada crianccedila fez com pincel e tinta para cada uma das crianccedilas da outra
turma)
P Entatildeo vamos laacute ldquoEstamos mandando uns presentes para vocecircs Esperamos
que gostemrdquo Algo mais a escrever turma
C6 A despedida pro
P Como podemos escrever a despedida
C5 ldquoRespondam logo por favor Um abraccedilo da Turma do Solrdquo
P O que vocecircs acham da ideia de C5
Todas Legal
C9 Boa
Termino de escrever e em seguida leio a carta toda para as crianccedilas
P O que acharam Haacute algo mais a escrever ou a mudar na carta
C14 Agora eacute soacute assinar a carta
E Cada crianccedila escreve seu nome ao final da carta
Ao re-criar a carta com as crianccedilas e por ser esse ato de escrita um ato interlocutivo
discursivo comum na minha praacutetica pedagoacutegica como professora as crianccedilas fazem inferecircncias
opinam e se sentem motivadas a participarem porque este fazer para elas condiz com os seus
interesses Em decorrecircncia disso as crianccedilas se apropriam cada vez mais do gecircnero discursivo
carta e de seus elementos constitutivos como o conteuacutedo temaacutetico a construccedilatildeo composicional e
o estilo (BAKHTIN 2003) Desde o iniacutecio as crianccedilas percebem cada elemento da carta sua
funccedilatildeo e funcionamento ndash data saudaccedilatildeo mensagem despedida assinatura ndash de modo que
sugerem como cada um desses elementos pode ser escrito considerando o contexto situacional
em que foram criados
Dentro do gecircnero discursivo carta surge outro gecircnero as regras das brincadeiras a serem
ensinadas para os correspondentes de caraacuteter mais instrucional mas que cumprem sua funccedilatildeo
dentro do contexto
Os assuntos eleitos para serem abordados satildeo diretamente relacionados a suas
experiecircncias aos interesses diretos como a brincadeira considerada a atividade principal
(LEONTIEV 1988) das crianccedilas dessa idade Eacute por meio do brincar que ocorre o
desenvolvimento da inteligecircncia da personalidade da funccedilatildeo simboacutelica da consciecircncia da
atenccedilatildeo da memoacuteria do controle da proacutepria conduta que se apropria da cultura humana e por
isso mesmo se humaniza Eacute por meio dessa atividade que a crianccedila melhor se relaciona com o
mundo a sua volta que atribui significados e sentidos que elabora explicaccedilotildees para fenocircmenos e
fatos e eacute quando que se constituem as bases orientadoras necessaacuterias para a apropriaccedilatildeo da
204
leitura e da escrita (LEONTIEV 1988 VYGOTSKI 1995 MELLO 2005) Por essa razatildeo essa
atividade surge como elemento a ser partilhado entre as crianccedilas da proacutepria turma e da turma
correspondente Essa atividade surge tambeacutem como motivo entre as crianccedilas para re-criarem seus
textos para comunicarem por meio da escrita o que natildeo podem fazer pela linguagem oral ndash no
caso ensinar agraves crianccedilas de outra cidade de outra cultura com sua proacutepria histoacuteria a histoacuteria e a
cultura da sua localidade Paralelamente agrave carta a escrita de outro gecircnero com o objetivo de
ensinar as brincadeiras agraves crianccedilas correspondentes cria a necessidade de re-criar outro texto e
assim conhecer outro gecircnero que atenda aos interesses que se fazem naquele momento
A correspondecircncia interescolar promove aprendizagens porque intensifica as relaccedilotildees e as
experiecircncias das crianccedilas com o outro com a leitura com a escrita e com a cultura humana
porque as crianccedilas trocam informaccedilotildees sobre as pesquisas que realizam na escola suas leituras
suas descobertas e trocam presentes criados por elas por meio de diferentes linguagens como por
exemplo o envio de outras re-criaccedilotildees como a poesia regras de brincadeira jogos desenhos
pinturas jogos com sucatas bonecos de papel machecirc Pode-se constatar esse fato quando eu
sugiro que escrevam na carta sobre o presente a ser enviado aos correspondentes e C2 responde
ldquoEacute mesmo pro E a gente precisa terminar o presenterdquo (refere-se agraves pinturas que cada crianccedila fez
com pincel e tinta para cada um de seus colegas)
As crianccedilas datildeo sinais de que lidam com os elementos que compotildeem o gecircnero discursivo
carta quando respondem que falta a despedida e a assinatura propondo oralmente a melhor
maneira de escrever e assumindo a participaccedilatildeo pelo texto re-criado
A anaacutelise da foto 6 e do diaacutelogo apresentado em seguida sobre uma situaccedilatildeo de re-criaccedilatildeo
de carta contribui com a reflexatildeo sobre a apropriaccedilatildeo da escrita por meio desse gecircnero
discursivo
205
(Foto 6 ndash Situaccedilatildeo fotografada e registrada no dia 221110)
Depois de terminada a re-criaccedilatildeo da carta resposta aos correspondentes da turma do Dedo
Verde de uma escola da zona sul da cidade e jaacute com as ilustraccedilotildees das crianccedilas compondo cada
parte da carta fiz uma uacuteltima leitura estendi a carta no chatildeo da sala propus que a observassem e
fizessem por conta proacutepria qualquer alteraccedilatildeo que julgassem necessaacuteria por exemplo acrescentar
ou retirar algo antes que a colocaacutessemos no envelope para ser postada Algumas crianccedilas se
ocuparam da tarefa de terminar os presentes para serem enviados juntos com ela ndash presentes
referentes a algum assunto pesquisado pelas turmas ou com a finalidade de provocar um desafio
mapas desenhos adivinhas pinturas livros e fantoches com material reciclaacutevel C1 C3 C6 C7
C8 C13 e C16 preferiram analisar a carta as informaccedilotildees contidas nela os desenhos e ateacute
mesmo as assinaturas
Dez minutos depois C1 que tinha em sua matildeo direita um laacutepis debruccedila-se sobre a carta e
conversa com C13
206
C1 Eu vou escrever uma coisa aqui na carta que eu quero perguntar pra Turma
do Dedo Verde Vocecirc me ajuda
C13 Ajudo o que eacute que vocecirc vai escrever
C1 Espera aiacute
C1 escreve na carta ldquoOnde vocecircs pesquisaram sobre as cores Liga pra falar
Agente quer saberrdquo
C7 se aproxima para acompanhar o que ocorria Terminada a escrita C13 lecirc o
que C1 escreveu e diz
C13 Nossa Que boa ideia
C1 Eu escrevi porque todo mundo da nossa turma quer saber mais sobre isso
agora estaacute todo mundo curioso Se a gente souber logo a gente nem precisa
esperar eles responderem a carta pra ficar sabendo A gente pode pesquisar com
a pro a gente mesmo
C7 Eacute mesmo neacute
C13 dirige seu olhar novamente para a escrita de C1 e diz C13 Ih olha aqui o que vocecirc escreveu C1 (aponta para a palavra escrita
ldquoagenterdquo)
C1 digire seu olhar para a escrita observa e pergunta
C1 O que eacute que estaacute errado
C13 Lembra que a pro jaacute explicou que AGENTE junto eacute agente secreto e que
A GENTE separado quer dizer noacutes as pessoas
C7 Eacute mesmo Tem um monte disso (refere-se agrave ldquoa genterdquo) escrito nessa carta
C1 observa novamente apaga com a borracha e escreve separado seguindo a
orientaccedilatildeo de C13
C13 Tem que prestar atenccedilatildeo na hora de escrever C1 porque uma coisa eacute uma
coisa e outra coisa eacute outra coisa neacute pro
P Sim bem lembrado C13 Vamos dar uma olhada em tudo o que vocecirc escreveu
C1 Vamos ver se haacute algo mais que podemos melhorar
C1 concorda e com as crianccedilas que acompanhavam foi feita a correccedilatildeo
(Situaccedilatildeo observada e registrada em 091110)
Mariacutelia 7 de novembro de 2010
Olaacute amigos da Turma do Dedo Verde e Professora E
Tudo bem
A gente fez a maior festa quando recebeu a cartinha de vocecircs e quando viu
os presentes que vocecircs mandaram
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
Semana passada a gente plantou os girassoacuteis com as sementes que vocecircs
mandaram e agora todos os dias a gente cuida para que os girassoacuteis cresccedilam
raacutepido
A pro falou que depois que essas plantas crescerem uns 15 centiacutemetros a
gente jaacute vai poder levar os vasinhos para casa Aiacute todos os dias a gente mede
com a reacutegua aqui na escola E falta pouco porque a maioria jaacute estaacute medindo 5
centiacutemetros mais ou menos
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
207
Ah as duas muacutesicas sobre os girassoacuteis que vocecircs mandaram gravadas no
CD pra gente tambeacutem satildeo bem legais A gente ateacute vai pesquisar mais sobre o
Viniacutecius de Morais e sobre o grupo Cidade Negra
Pena que natildeo deu pra gente ir agrave Feira de Ciecircncias da escola de vocecircs mas
as coisas que vocecircs pesquisaram sobre as cores satildeo demais A gente fez aqui
tambeacutem algumas das experiecircncias que vocecircs ensinaram Nossa foi muito legal
Vocecircs podem contar pra gente mais coisas sobre o que vocecircs descobriram sobre
as cores
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
Onde vocecircs pesquisaram sobre as cores Liga pra falar Agente quer
saber (Parte escrita por C1)
A gente colocou as fotos de vocecircs no mural da nossa sala Vocecircs estatildeo
lindos A professora ldquoErdquo eacute uma princesa
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
A gente estaacute mandando outra poesia pra vocecircs e tambeacutem os fantoches das
personagens da histoacuteria preferida da nossa turma ldquoO caso do Bolinhordquo da
Tatiana Belinky A gente mesmo quem fez os fantoches pra vocecircs
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
No livro que estaacute junto tambeacutem tem um monte de coisas sobre o Sol Eacute soacute
vocecircs lerem ou pedirem para a pro de vocecircs lerem Tem muitas coisas novas
sobre o Sol e vocecircs vatildeo gostar de saber
Aqui estaacute todo mundo louco de vontade de chegar logo o dia do nosso
encontro Tomara que chegue logo A gente pode brincar de umas brincadeiras
novas e legais O lanchinho a gente ainda estaacute decidindo qual vai ser taacute
(Ilustraccedilatildeo das crianccedilas)
Um abraccedilo bem grande da Turma do Sol e Professora G
(Cada crianccedila escreveu seu nome e a professora tambeacutem)
A anaacutelise da foto 6 e da situaccedilatildeo relatada permite inferir que C1 criou para si a
necessidade de aprender de saber de se expressar o que a mobilizou escrever na carta jaacute re-
criada pela turma algo que julgava necessaacuterio e que supostamente natildeo atenderia somente ao seu
desejo mas o de todos os seus colegas ldquoOnde vocecircs pesquisaram sobre as cores Liga pra falar
A gente quer saberrdquo e quando explica o motivo que a levou a escrever ldquoEu escrevi porque todo
mundo da nossa turma quer saber mais sobre isso agora estaacute todo mundo curioso Se a gente
souber logo a gente nem precisa esperar elas responderem a carta pra ficar sabendo A gente
pode pesquisar com a pro a gente mesmordquo
Diante das palavras de C1 pode-se dizer que haacute nelas a palavra de seus colegas
carregadas de vontades de opiniotildees de impressotildees decorrentes das experiecircncias vividas Ribeiro
(2010 p 58) lembra que
A palavra para Bakhtin (2003 p 350) eacute um ponto convergente de vozes Ela
natildeo eacute neutra Estatildeo ali latentes experiecircncias diversas dos sujeitos sociais
208
Mesmo conferindo os creacuteditos da escolha e utilizaccedilatildeo da palavra ao autor a
palavra natildeo lhe pertence com exclusividade jaacute que eacute fruto da Histoacuteria e sendo
assim pertenceria a todos Nesse sentido a palavra existe para o falante em trecircs
acircmbitos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como
palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo
como a minha palavra (BAKHTIN 2003 p 294)
Dessa forma quando C1 escreve a mensagem na carta e justifica sua atitude o seu
discurso oral e o escrito refletem vaacuterias vozes a dela proacutepria a de seus colegas a minha como
professora e que instiga as crianccedilas por meio da situaccedilotildees vivenciadas e ainda as vozes dos
correspondentes e da professora dessa turma que jaacute pesquisaram sobre os assunto e os comunica
provocando a necessidade no outro tambeacutem de saber
Apesar de a mensagem escrita pela crianccedila ter sido discutida e corrigida na ocasiatildeo em
que ocorreu com ela proacutepria e com as demais que participavam para que elas pudessem pensar
sobre essa escrita a iniciativa de escrever algo naquele momento de finalizaccedilatildeo do texto denota
uma atitude positiva diante do conhecimento revelada pelo fato de a crianccedila de ser a ldquoporta-vozrdquo
dela e dos colegas por ter criado uma atitude investigativa diante do que se queria conhecer Eacute
possiacutevel perceber que com essa atitude de C1 a crianccedila aparenta saber como para quecirc e por quecirc
pesquisar ao solicitar que os correspondentes telefonem para a escola em que ocorreu a pesquisa
para solicitar a fonte dos estudos por eles realizados Nas cartas recebidas e enviadas sempre
eram comunicadas as descobertas feitas pelas turmas os estudos os resultados A mensagem
escrita por C1 denota urgecircncia em obter informaccedilotildees ndash no caso sobre as cores ndash porque solicita
um telefonema por parte dos correspondentes contrariando a dinacircmica comumente estabelecida
de aguardar a resposta da carta A crianccedila revela o iniacutecio de sua apropriaccedilatildeo da escrita por meio
do gecircnero discursivo carta e ainda demonstra que se humaniza Desse modo
[] quando a inserccedilatildeo da crianccedila na heranccedila cultural da humanidade responde a
necessidades de conhecimento criada na crianccedila melhor ela se envolve no que
faz e aprende Oa professora pode organizar de modo intencional e consciente
as experiecircncias propostas na educaccedilatildeo Infantil para provocar o encontro da
crianccedila com a cultura de modo a favorecer a apropriaccedilatildeo pelas crianccedilas da
heranccedila cultural da humanidade e por meio desta a reproduccedilatildeo pelas crianccedilas
das maacuteximas qualidades humanas criadas ao longo da histoacuteria Para isso o
conhecimento das regularidades do desenvolvimento das crianccedilas em nossa
sociedade ndash isto eacute da forma como a crianccedila melhor se relaciona com a cultura
nas diferentes idades e aprende ndash eacute condiccedilatildeo essencial (MELLO 2010 p58)
209
Pode-se inferir que o ensino planejado e organizado intencionalmente e as relaccedilotildees
dialoacutegicas estabelecidas entre as crianccedilas entre as crianccedilas e a professora e entre as crianccedilas e o
espaccedilo garantem participaccedilatildeo ativa na elaboraccedilatildeo dos gecircneros discursivos cria a necessidade de
aprender e provoca o desenvolvimento humano Eacute possiacutevel perceber a mediaccedilatildeo de C13 nessa
situaccedilatildeo natildeo somente quando C1 decide escrever algo e pede a sua ajuda mas tambeacutem quando a
crianccedila percebe o que a colega escreveu e faz a distinccedilatildeo entre ldquoagenterdquo e ldquoa genterdquo Ao explicar
essa diferenccedila C13 solicita a confirmaccedilatildeo da professora no caso eu mesma que tambeacutem atuo
como mediadora C13 ao esclarecer C1 sobre a diferenccedila entre ldquoagenterdquo e ldquoa genterdquo medeia a
situaccedilatildeo trazendo agrave tona uma explicaccedilatildeo que eu jaacute fizera em outra ocasiatildeo
Haacute outros mediadores nesse processo que satildeo os proacuteprios correspondentes e a professora
dessa turma que ao elaborarem suas cartas e enviaacute-las agraves crianccedilas provocam novas necessidades
por meio dos desafios lanccedilados por meio das informaccedilotildees partilhadas sobre os conteuacutedos
diversos e por meio das relaccedilotildees estabelecidas entre as turmas
Outro aspecto a ressaltar eacute que C13 ao observar que C1 havia escrito ldquoagenterdquo denota
compreender que a presenccedila ou a ausecircncia do espaccedilo em branco entre ldquoa genterdquo altera
completamente o seu significado e que natildeo se trata somente de uma questatildeo graacutefica mas de
significaccedilatildeo Para Bajard (2012 p 78) ldquoo espaccedilo tem uma grande importacircncia na escrita
modernardquo Esclarece que ldquopor causa do espaccedilo em branco dois nomes escritos aparecem
separadamente enquanto na fala um uacutenico nome eacute ouvidordquo O espaccedilo em branco eacute considerado
um caracter e por essa razatildeo e por sua funccedilatildeo na escrita natildeo pode ser desprezado
A correspondecircncia interescolar como todas as outras teacutecnicas da Pedagogia Freinet
priorizam o ensino cooperativo em que a comunicaccedilatildeo eacute privilegiada Valoriza-se o processo e
natildeo somente o resultado Freinet (1973) esclarece que ao modificar as teacutecnicas de trabalho satildeo
modificadas automaticamente as condiccedilotildees de vida na escola ldquomelhoramos as relaccedilotildees entre as
crianccedilas e o meio entre as crianccedilas e os professores Eacute com certeza o benefiacutecio mais importante
com que contribuiacutemos para o progresso da educaccedilatildeo e da culturardquo (FREINET 1973 46) Isto se
verifica na organizaccedilatildeo das proacuteprias crianccedilas em que algumas delas optaram por terminar os
presentes que seriam enviados e outras que se encarregaram de terminar os desenhos e outros
detalhes da carta antes de ser colocada no envelope
210
A situaccedilatildeo apresentada a seguir trata de uma re-criaccedilatildeo de texto elaborado por uma
crianccedila sem ajuda
Numa tarde quando as crianccedilas realizavam diferentes tarefas nos cantos organizados na
sala ndash ateliers espaccedilos organizados com materiais especiacuteficos de pintura modelagem desenho
digitaccedilatildeo no computador impressatildeo jogos ndash C13 se dirige para o canto da sala em que ficavam
as mochilas das crianccedilas da turma retira duas folhas de papel com linhas que trouxe de sua casa e
se senta sozinha no canto do desenho Por quarenta minutos permanece nesse local utilizando
alguns materiais Passado esse tempo se dirige a mim entrega o envelope e diz
C13 Pro eu escrevi para vocecirc essa carta Eu escrevi sozinha
Abro o envelope feito pela crianccedila leio o que escreveu e respondo
P Que linda carta C13 Gostei muito muito mesmo
C13 Eu jaacute sei escrever cartas (Situaccedilatildeo observada no dia 270910)
211
(Carta escrita por C13 em 290910)
212
A anaacutelise deste dado permite inferir que C13 daacute indiacutecios de ter se apropriado de dados no
iniacutecio do processo de apropriaccedilatildeo da linguagem escrita por meio do gecircnero discursivo carta ao
tomar a iniciativa de escrevecirc-la para a professora Indica tambeacutem que a crianccedila percebe a funccedilatildeo
da escrita como instrumento de comunicaccedilatildeo e o ato de escrever a carta denota que foi criado o
desejo de se expressar por meio da escrita e do desenho Ela natildeo somente escreve e ilustra o seu
texto como tambeacutem confecciona o envelope fechando as laterais com grampos de grampeador
Ao fazer isso aparenta perceber que natildeo somente compreende a funccedilatildeo da escrita o
funcionamento do gecircnero discursivo como tambeacutem o seu suporte
O texto re-criado trata-se de um texto livre segundo Freinet (1976 p 21) ldquoum texto livre
deve ser realmente livre Quer isto dizer que escrevemos quando temos alguma coisa a dizer
quando sentimos a necessidade de exprimir escrevendo ou desenhando aquilo que em noacutes
agitardquo Vale ressaltar que os textos re-criados ocorreram dentro dessa perspectiva em que as
crianccedilas participavam das criaccedilotildees textuais fazendo suas escolhas de como o quecirc quando e para
quem queriam escrever As situaccedilotildees de re-criaccedilatildeo de texto e de leitura eram intencionalmente
planejadas com o objetivo de provocar a necessidade de aprender a ler e a escrever para que elas
pudessem num futuro proacuteximo fazerem sozinhas o que naquele momento ainda precisavam de
ajuda para realizaacute-lo
Freinet (1976 p 22 ndash 23) ao defender a utilizaccedilatildeo de suas teacutecnicas e da imprensa na
escola afirma que as crianccedilas satildeo motivadas a escrever porque o texto escrito nessas condiccedilotildees
tem ldquoum objetivo e uma funccedilatildeo que eacute a de comunicar com os outros companheiros e adultos
proacuteximos ou afastados e a crianccedila sente naturalmente a necessidade de escrever de se exprimir
tal como um bebecirc sente a necessidade de palrarrdquo
C13 escreve sua primeira carta sem ajuda do outro mas se arrisca a fazecirc-lo porque se
sente capaz para isso e se sente motivada a fazer Desse modo
Atraveacutes desta teacutecnica natural de trabalho a proacutepria crianccedila sente muito cedo a
necessidade de escrever e aparece entatildeo o primeiro texto livre ou a primeira
carta A crianccedila com a caneta que ainda maneja dificilmente escreve o que tem
vontade de dizer ao professor ou aos companheiros Esta escrita eacute naturalmente
de um gecircnero muito especial e temos de nos treinar a lecirc-la (FREINET 1976 p
29 ndash 30)
213
Nessa carta ela natildeo escreve a saudaccedilatildeo e a despedida poreacutem a inicia com a escrita de seu
proacuteprio nome a data escreve uma mensagem coerente e finaliza com a assinatura do seu nome
completo
(Escreve seu nome completo)
Mariacutelia 29 de setembro de 2010
(Escreve seu nome completo)
Professora Greici
A mais linda bailarina
Que eu mais gosto
De vocecirc professora Greici
(Escreve seu nome completo novamente)
A carta de C13 apresenta marcas da linguagem oral contudo jaacute se caracteriza como um
texto do gecircnero discursivo Possenti (1996 p 32) afirma que ldquoos grandes problemas escolares
estatildeo no domiacutenio do texto natildeo no da gramaacuteticardquo Explica que embora a finalidade da escola seja
a de ensinar a norma culta padratildeo essa instituiccedilatildeo o faz de maneira afastada do uso que o sujeito
faz da linguagem em diferentes situaccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo Em consonacircncia com essa
afirmaccedilatildeo Geraldi (1996 1997) explica que o fracasso do ensino da produccedilatildeo escrita e da leitura
eacute a artificialidade com que essas atividades satildeo propostas na escola
Ao considerar tais afirmaccedilotildees pode-se inferir que o texto de C13 se estabelece na
contramatildeo desse ensino artificial da produccedilatildeo escrita pois C13 apesar de ter apenas cinco anos
natildeo soacute participa de situaccedilotildees de escrita com a mediaccedilatildeo da professora em situaccedilotildees reais de uso
mas tambeacutem aprende a pensar a escrita no seu funcionamento de forma dialoacutegica desde a
Educaccedilatildeo Infantil num ensino que privilegia a expressatildeo sendo a crianccedila sujeito desse processo
Em decorrecircncia da inserccedilatildeo da crianccedila na cultura escrita o dado a ser apresentado poderaacute
contribuir com a reflexatildeo sobre o processo de apropriaccedilatildeo da linguagem escrita por meio do
gecircnero discursivo carta
521 Evoluccedilatildeo na escrita do gecircnero discursivo carta
Haacute poucos dias do teacutermino das atividades escolares e do ingresso no periacuteodo de feacuterias as
crianccedilas geriam seu proacuteprio tempo em tarefas variadas como pintura modelagem e desenho C13
214
que inicialmente havia se juntado agraves crianccedilas que desenhavam pegou uma folha de sulfite e em
vez de desenhar conforme se pensava que faria comeccedilou a escrever Manteve-se nessa escrita
durante 35 minutos e todas as vezes que era interpelada pelos colegas sobre o que escrevia
explicava que se tratava de uma ldquocarta importanterdquo contudo manteve segredo sobre o conteuacutedo e
o destinataacuterio
O seu teacutermino coincidiu com o momento de reorganizar a sala para que outra professora
pudesse utilizaacute-la uma vez que nos dirigiriacuteamos para o tanque de areia C13 ajudou os amigos a
guardar os materiais e a reorganizar a sala mas dobrou o papel que escrevera e o guardou em seu
bolso sem nada comentar Brincou normalmente com as demais e chegada a hora de ir embora
para casa se dirige agrave professora retira o papel do bolso e o entrega a ela dizendo
C13 Professora isso aqui eacute pra vocecirc (entrega o papel que guardara no bolso
durante todo o tempo depois que o escrevera)
P Mas o que eacute isso C13
C13 Eacute uma carta importante que eu escrevi para vocecirc
P Uma carta importante pra mim
C13 Eacute pro eacute de umas coisinhas que eu queria te falar de umas coisas que
vocecirc PRECISA saber
P Nossa eacute mesmo
C13 Hatilde hatilde (afirma movimentando a cabeccedila)
P Hum eu vou ler agora mesmo
C13 Amanhatilde vocecirc me fala o que vocecirc achou taacute pro
P Claro que sim Estou muito curiosa para saber o que vocecirc escreveu nessa
carta
C13 foi embora com sua matildee mas enquanto caminhava em direccedilatildeo agrave sua casa
voltava-se para traacutes na intenccedilatildeo de ver se a professora estaria possivelmente
lendo a carta que escrevera
(Situaccedilatildeo observada no dia 021210)
No dia seguinte assim que chegou agrave escola deu um beijo de boa tarde e a professora diz
P Muito obrigada pela carta C13 Fiquei muito feliz e emocionada ao saber das
coisas importantes que vocecirc queria me dizer Eu vou guardar para sempre sua
carta comigo para que eu me lembre sempre de vocecirc e das coisas bonitas que
vocecirc aprendeu quando estivemos juntas
C13 Ainda bem que eu escrevi neacute pro Porque assim natildeo daacute pra esquecer e
toda vez que vocecirc quiser se lembrar eacute soacute vocecirc pegar essa carta e ler de novo
(Situaccedilatildeo observada no dia 031210)
215
(Carta escrita por C13 em 021210)
216
Pode-se inferir que a carta escrita por C13 no final da pesquisa denota evoluccedilatildeo em suas
apropriaccedilotildees da liacutengua materna em relaccedilatildeo agrave carta apresentada e analisada anteriormente tambeacutem
escrita por C13 no mecircs de setembro do mesmo ano Por meio do texto livre originado da
necessidade de expressar o que pensa e sente eacute capaz de criar sem a ajuda de outro colega ou de
outro adulto o seu proacuteprio texto na tentativa deliberada de deixar registrado algo que para si
possui um sentido uacutenico ldquoEacute uma carta importante que eu escrevi para vocecircrdquo ldquoEacute pro eacute de umas
coisinhas que eu queria te falar de umas coisas que vocecirc PRECISA saberrdquo Ela aparenta
perceber que a escrita legitima as coisas e que por meio dela o que ldquoeacute importanterdquo permanece
para ser lembrado em qualquer tempo ou circunstacircncia Isso se verifica quando diz ldquoAinda bem
que eu escrevi neacute pro Porque assim natildeo daacute pra esquecer e toda vez que vocecirc quiser se lembrar eacute
soacute vocecirc pegar essa carta e ler de novordquo
A anaacutelise dos dados remete ao princiacutepio de que a linguagem eacute um objeto social e a
comunicaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel por meio de enunciados completos passiacuteveis de respostas em um
determinado contexto discursivo No processo de comunicaccedilatildeo verbal os enunciados pressupotildeem
o outro e o interlocutor espera a posiccedilatildeo responsiva ativa do outro alternando as posiccedilotildees num
processo dialoacutegico ou seja toma a posiccedilatildeo de enunciador em determinados momentos
A alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele
a massa firme rigorosamente delimitada dos outros enunciados a ele vinculados
eacute a primeira peculiaridade constitutiva do enunciado como unidade da
comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua (BAKHTIN
2003 p 279 ndash 280)
A segunda peculiaridade eacute a conclusividade especiacutefica do enunciado uma espeacutecie de
aspecto interno da alternacircncia dos sujeitos do discurso ldquoessa alternacircncia pode ocorrer
precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob
dadas condiccedilotildees (BAKHTIN 2003 p 280 grifo do autor) De acordo com o autor o primeiro e
mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele
em outras palavras eacute a possibilidade de ocupar em relaccedilatildeo ao enunciado uma posiccedilatildeo responsiva
(BAKHTIN 2003 p 280 grifo do autor) Esse fato ocorre quando eu depois de ler a carta que
C13 entregara a mim tenho uma atitude responsiva aos enunciados proferidos por meio do
discurso escrito da crianccedila ao dizer no dia seguinte ldquoMuito obrigada pela carta C13 Fiquei
217
muito feliz e emocionada ao saber das coisas importantes que vocecirc queria me dizer Eu vou
guardar para sempre sua carta comigo para que eu me lembre sempre de vocecirc e das coisas
bonitas que vocecirc aprendeu quando estivemos juntasrdquo Essa alternacircncia de sujeitos da
interlocuccedilatildeo e a constante atitude responsiva entre eles pode ser percebida tambeacutem na escrita da
carta O fato de C13 ser capaz de re-criar o seu proacuteprio texto jaacute eacute uma atitude responsiva agraves
situaccedilotildees vivenciadas por ela na escola resultado das condiccedilotildees concretas objetivas que ela
participou
A carta que C13 escreve para o seu destinataacuterio real ndash no caso a professora ndash traz as
caracteriacutesticas e as especificidades do gecircnero em seus elementos constitutivos A construccedilatildeo
composicional ndash data saudaccedilatildeo mensagem despedida assinatura ndash aparece contemplada no
texto que demonstra organizaccedilatildeo de ideias pela presenccedila dos paraacutegrafos do uso da pontuaccedilatildeo
marcado pelo ponto final com tamanho acentuado O conteuacutedo temaacutetico eacute delineado pela voz do
sujeito que expressa as ideias a serem lidas pelo outro e o estilo eacute privilegiado pelas
caracteriacutesticas proacuteprias da crianccedila ao permitir que suas experiecircncias com a escrita se faccedilam
presentes O estilo ainda eacute observado pela forma como escolhe dizer o que tem a dizer com os
recursos da liacutengua dos quais dispotildee
O gecircnero discursivo carta escolhido pela crianccedila para comunicar suas ideias desejos e
vontades cumpre sua funccedilatildeo de instrumento de comunicaccedilatildeo A crianccedila desde a Educaccedilatildeo
Infantil parece compreender que nos comunicamos por meio de textos que trazem ideias e natildeo
por meio de letras siacutelabas e palavras soltas e descontextualizadas As palavras e oraccedilotildees como
unidades do sistema da liacutengua natildeo possuem expressividade natildeo carregam por si soacutes o sentido
completo Dessa forma eacute somente na cadeia da comunicaccedilatildeo verbal no interior do enunciado
que ela adquire determinada expressatildeo ao ouvinte
53 A escrita do gecircnero discursivo relatos de vida
Neste item seratildeo apresentadas e analisadas situaccedilotildees de re-criaccedilatildeo de texto escrito do
gecircnero discursivo relatos de vida que oferecem indiacutecios das relaccedilotildees que as crianccedilas estabelecem
com os seus elementos constitutivos e a mediaccedilatildeo da professora nesse processo
218
Depois de realizar a roda da conversa como era feito todos os dias C6 e C11 solicitam a
minha ajuda para escreverem no livro da vida As crianccedilas realizavam a construccedilatildeo de brinquedos
com sucata para presentearem os correspondentes da Turma do Dedo Verde turma da escola da
zona sul da cidade e essas duas crianccedilas preferiram criar o texto do gecircnero discursivo relato de
vida
P Entatildeo vamos comeccedilar
C6 Vamos
P E sobre o que vocecircs querem escrever
C6 A data
P Primeiro a data
C6 Esqueceu da data neacute
P Eacute a data ldquoMariacutelia E pra que noacutes colocamos a data
C6 Pra saber neacute Que dia que a gente fez neacute Que cidade eacute que mecircs que eacute neacute
P Certo Entatildeo ldquoMariacutelia 23 de
C11 ldquode agostordquo
P Agosto
C6 Setembro
P Mariacutelia 23 de setembro de 2010 E jaacute que colocamos a data sobre o que
vocecircs querem escrever
C6 Bom vocecirc tem alguma ideia C11
C11 Tenho Eu posso escrever sobre aquela novidade que eu trouxe hoje pra
vocecirc
P Claro E eu sugiro que a gente faccedila entatildeo dois textos um sobre o que vocecirc vai
contar e outro da C6
C6 ISSO (A crianccedila aplaude)
C11 Legal pro
P Quem quer comeccedilar
C6 Eu Ah qual eacute a minha novidade mesmo Ah O GIRASSOL
P O que vocecirc quer contar aqui
C6 Bom primeiro escreve (A crianccedila olha para o papel e aponta com o dedo
indicador da matildeo direita o lugar onde eu devo comeccedilar a escrever o que vai
falar) ldquoEu arrumei dois jeitos de plantar o girassolrdquo Escreve aqui em cima vai
(indica novamente com o dedo indicando o espaccedilo inicial que eu deveria deixar
para marcar o iniacutecio do paraacutegrafo)
Depois que escrevo a crianccedila diz
C6 Olha aqui o E o E e o U Olha aqui o Eu vocecirc escreveu Eu
A crianccedila continua a me observar a escrever o que disse
C6 Ocirc pro o J e o E escreve JE G de Gabriela de Gabriel
P Mas o J eacute diferente do G
C6 Eacute que o G com o I tem o som de J neacute pro
P Sim C6
C6 Pro eu amo o girassol Eu vou contar igual a gente fez aqui (refere-se ao
plantio do girassol realizado na escola com a professora)
ldquoPrimeiro pro vocecirc pega vocecirc lava um potinho de danoninhordquo (refere-se ao
potinho descartaacutevel de iogurte) Escreve aqui pro (a crianccedila indica novamente o
lugar em que devo escrever o que acaba de dizer)
Escrevo o que a crianccedila diz e C6 observa
219
C6 Olha aqui o vo de vovocirc Olha aqui o da de dado
P Entatildeo ldquoPrimeiro vocecirc pega o potinho de danoninho e coloca terrardquo
C6 O primeiro jeito neacute
P Sim
C6 ldquoDepoisrdquo (eu interrompo)
P Aqui eu coloco um ponto final e aiacute vou continuar escrevendo o que vocecirc vai
falar Eacute isso
C6 Isso ldquoDepois vocecirc joga as sementinhas laacute dentro e rega elasrdquo Pontinho final
neacute pro
Escrevo o que a crianccedila diz e pergunto
P Por que vocecirc quer que eu coloque o ponto final
C6 Porque sim neacute Porque eacute o final
P Final de quecirc
C6 Dessa ideia que eu contei
P Ah sim ldquoDepois vocecirc joga as sementinhas laacute dentro e rega elasrdquo (eu coloco
o ponto final)
C6 Escreve aiacute pro ldquoDeixa no solrdquo
P O que
C6 A plantinha Olha o x Xuriccedilo tambeacutem eacute com x
P Entatildeo vamos escrever assim ldquoDeixa as sementinhas que foram plantadas no
solrdquo porque a plantinha ainda natildeo nasceu Vocecirc concorda
C6 Concordo Fica melhor mesmo Mas coloca o ponto final depois disso
P Acabou de contar a ideia
C6 Acabou mas agora tem a outra parte neacute
P Certo Entatildeo vamos laacute
Por meio da anaacutelise do processo de re-criaccedilatildeo de texto de C6 com a minha mediaccedilatildeo
como professora pode-se inferir que a crianccedila aprende a liacutengua em seu funcionamento de forma
dinacircmica e dialoacutegica C6 aprende a pensar sobre o que quer dizer e a forma como quer dizer Eacute
por meio dessa relaccedilatildeo dialoacutegica que eacute inserida na cultura escrita O desejo de querer dizer de C6
se realiza acima de tudo na escolha de um gecircnero discursivo Essa escolha eacute determinada em
funccedilatildeo da especificidade de uma dada esfera da comunicaccedilatildeo humana das necessidades de uma
temaacutetica do parceiro do ato comunicativo Feito isso o intuito discursivo do locutor sem
renunciar a sua individualidade e a sua subjetividade ajusta-se ao gecircnero escolhido compotildee-se e
desenvolve-se na forma do gecircnero determinado (BAKHTIN 2003)
C6 participa ativamente da re-criaccedilatildeo de texto ao escolher o gecircnero de que se utilizaraacute o
momento para essa re-criaccedilatildeo o assunto a ser abordado a forma como a escrita desse texto pode
se dar Esses elementos todos caracterizam o texto livre (FREINET 1976) C6 revela ter se
apropriado de alguns conhecimentos sobre a linguagem escrita ao indicar para a professora onde
deve escrever ndash iniciar os paraacutegrafos ndash quando deve finalizar os enunciados e iniciar outros ndash uso
220
da pontuaccedilatildeo ndash mas principalmente manteacutem a coerecircncia das ideias ao organizaacute-las
espacialmente e temporalmente no texto
Durante a escrita realizada por mim C6 algumas vezes ressalta as relaccedilotildees que percebe
sobre as unidades da liacutengua sobre o coacutedigo escrito sobre a presenccedila de letras e de siacutelabas que
compotildeem as palavras No entanto natildeo se prende agrave sinalidade mas avanccedila no manejo dos signos
O signo na perspectiva bakhtiniana constitui-se como uma atitude responsiva ativa de um
determinado sujeito em relaccedilatildeo a algo e para ser compreendido ldquoexige tambeacutem uma atitude
dialoacutegica de um outro sujeito o qual produz signos num exerciacutecio de aproximaccedilatildeo entre o signo
em observaccedilatildeo e outros jaacute conhecidosrdquo (DI FANTI 2003 p 100)
Dentre a ampla (e densa) pertinecircncia da reflexatildeo bakhtiniana sobre o signo a de
consideraacute-lo ideoloacutegico ndash apresentar iacutendices de valor de cunho social ndash eacute a que
possibilita juntamente com a noccedilatildeo de dialogismo a ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de
signo linguumliacutestico proporcionando uma nova relaccedilatildeo com o sistema Sistema este
que deixa de ser linguumliacutestico estrito no sentido de possuir unidades significantes
neutras e sem expressividade para ser linguumliacutestico-ideoloacutegico-dialoacutegico no
sentido de apresentar signos que se formam como enunciados (imbricam verbal
e natildeo-verbal dito e natildeo dito) e que implicam uma atitude ativa responsiva do
sujeito a qual desencadearaacute outros enunciados Sendo assim entendemos que
esse sistema ampliado dialoacutegico se inscreve em um sistema enunciativo-
discursivo uma vez que se constitui de uma complexidade de enunciados que
estatildeo em relaccedilatildeo dialoacutegico-discursiva (DI FANTI 2003 p 100)
Ao remeter essas consideraccedilotildees a C6 eacute possiacutevel dizer que as relaccedilotildees que a crianccedila faz ao
longo do processo da re-criaccedilatildeo natildeo se restringem agrave sinalidade inexpressiva e teacutecnica da liacutengua
mas ao contraacuterio estabelece relaccedilotildees com o coacutedigo elevando-o agrave condiccedilatildeo de signo e por essa
razatildeo natildeo interrompe a re-criaccedilatildeo para codificar e decodificar as letras e siacutelabas mas para se
apropriar da liacutengua escrita e colocaacute-lo agrave serviccedilo das suas necessidades e interesses para expressar
seu pensamento e suas ideias
E C6 continua
C6 Escreve aiacute pro ldquoProacuteximo jeito proacuteximo jeito vairdquo
Escrevo como a crianccedila pediu e ela continua
C6 ldquoProacuteximo jeito de plantar os girassoacuteisrdquo
P Muito bem aqui ao final eu vou colocar dois pontos porque agora vocecirc vai
explicar o segundo jeito
C6 Taacute Entatildeo vocecirc vai escrever igual no comecinho assim ldquoPrimeiro vocecirc lava
o potinho de danoninho Depois vocecirc joga um algodatildeozinho laacute dentrordquo Esse eacute o
221
jeito que eu fiz em casa depois que eu plantei com terra aqui na escola Eu
plantei com algodatildeo por causa que natildeo tinha terra na minha casa
P Ah porque vocecirc natildeo tinha terra
C6 Eacute
P Entendi Entatildeo vou ler ateacute aqui para ver como podemos seguir com o texto
estaacute bem
C6 Taacute
Leio o texto e retomo
P ldquoDepois vocecirc joga o algodatildeozinho laacute dentrordquo E agora
C6 ldquoDepois coloca as sementinhasrdquo
P Mas escreve depois de novo
C6 Eacute
P Teria uma outra forma de a gente escrever isso sem repetir depois Olha eu
vou ler esse trecho ldquoDepois vocecirc joga o algodatildeozinho laacute dentrordquo
C6 ldquoe coloca as sementinhasrdquo
P Ah acho que ficou melhor
C6 Agora escreve pro ldquoEntatildeo vocecirc rega e deixa no sol as sementinhasrdquo
Escrevo e leio novamente com a intenccedilatildeo de concluir a ideia
P ldquoEntatildeo vocecirc rega e deixa no sol as sementinhasrdquo
E a crianccedila conclui
C6 ldquoque foram plantadasrdquo
Entatildeo escrevo
C16 Agora eu posso escrever o meu nome
P Tem mais alguma coisa para escrever no texto
C6 Escrever meu nome
A crianccedila escreve o seu nome no final do texto e diz
C6 Agora eacute a vez de C11
C6 Pro eu vou segurar o meu texto Eu vou ficar com ele
Mariacutelia 23 de setembro de 2010
Eu arrumei dois jeitos de plantar os girassoacuteis
Primeiro vocecirc pega lava um potinho de danoninho e coloca terra Depois vocecirc
joga as sementinhas laacute dentro e rega elas Deixa as sementinhas que foram
plantadas no sol
Proacuteximo jeito de plantar os girassoacuteis Primeiro vocecirc lava o potinho de
danoninho Depois vocecirc joga um algodatildeozinho laacute dentro e coloca as
sementinhas Entatildeo vocecirc rega e deixa no sol as sementinhas que foram
plantadas
C6
Ao considerar que as condiccedilotildees objetivas de vida e educaccedilatildeo que o sujeito possui
influenciam diretamente as aprendizagens (LEONTIEV 1978) pode-se dizer que a minha
mediaccedilatildeo como professora contribui nesse processo de apropriaccedilatildeo da linguagem escrita porque
planejo intencionalmente as situaccedilotildees de escrita e de leitura os tempos e espaccedilos os objetos da
cultura material e natildeo material bem como a forma de intervenccedilatildeo ao propor perguntas sugestotildees
222
sem dar respostas definitivas e acabadas Ao fazer isso o espaccedilo dialoacutegico entre a crianccedila e o
professor se amplia e se estende de modo a promover aprendizagens Diante disso enfatiza-se
que
Eacute oa professora ainda quem - ao conhecer a importacircncia da relaccedilatildeo que a
crianccedila estabelece com a cultura para a sua apropriaccedilatildeo ndash pode intencionalmente
buscar as formas adequadas para provocar nas crianccedilas o estabelecimento de
uma relaccedilatildeo com a cultura que favoreccedila o desenvolvimento das maacuteximas
qualidades humanas nas diferentes etapas de seu desenvolvimento (MELLO
2009 p8)
Outro aspecto a ressaltar no final da re-criaccedilatildeo de texto de C6 eacute que ela insiste em
escrever seu nome no texto e ainda deseja seguraacute-lo enquanto C11 inicia o seu texto com a
professora Essa insistecircncia denota que a crianccedila se sentiu sujeito desse processo que assume sua
re-criaccedilatildeo e sua condiccedilatildeo de re-criadora de textos
Outra situaccedilatildeo de escrita do gecircnero discursivo relatos de vida
P Estaacute bem C20 Sobre o que vocecirc quer que eu te ajude a escrever no Livro da
vida
C20 Eu quero escrever sobre o meu baleacute
P E como vocecirc quer comeccedilar o seu texto O que vamos escrever primeiro
C20 A data
P Certo (Escrevo a data na parte superior da folha ldquoMariacuteliardquo)
C20 Eacute igual ao meu nome pro
P Ateacute em qual parte o nome da nossa cidade parece o seu nome
C20 Ateacute aqui (aponta com o dedo indicador direito ateacute a quarta letra ndash Mari)
P Vocecirc tem razatildeo Bem e como vamos comeccedilar o seu texto
C20 (a crianccedila silencia olha para o alto)
P Quando que vocecirc comeccedilou a fazer baleacute
C20 Foi aquele dia que a minha matildee conversou com vocecirc aiacute a minha matildee
achou muito caro e ela natildeo tinha dinheiro Aiacute depois ela foi numa escola que
dava pra ela pagar Aiacute eu comecei a fazer baleacute laacute
P E desde quando vocecirc decidiu fazer baleacute
C20 Desde que eu tinha quatro aninhos
P Eacute mesmo
C20 Hum hum
P Entatildeo vamos comeccedilar o texto assim
C20 Vamos ldquoEu queria fazer baleacute desde que eu tinha quatro aninhosrdquo
Escrevo
P Muito bem O que vocecirc vai me contar agora Como que podemos continuar
esse texto
C20 ldquoEu pedi para a minha matildee me levar no baleacuterdquo
Continuo a escrever
P E depois C20
223
C20 ldquoDepois que eu pedi ela me levou de ocircnibus e laacute na escola de baleacute a minha
matildee ficou numa salinhardquo
P Fazendo o que
C20 Ficou numa salinha me esperando enquanto eu ensaiava
(Escrevo novamente)
P E agora C20 O que vocecirc aprendeu laacute que vocecirc pode contar aqui no texto
C20 Eu aprendi o plieacute (refere-se a um passo de baleacute)
P Hum mas o que vocecirc acha que podemos fazer aqui no texto Eu continuo a
escrever isso que vocecirc me disse aqui na frente mesmo ou comeccedilo embaixo
C20 Coloca ponto final aqui e comeccedila a escrever embaixo
P Por que vocecirc acha melhor fazer isso C20
C20 Porque eu vou comeccedilar a contar outra parte eacute uma outra coisa sobre o
baleacute que eu quero escrever agora
A situaccedilatildeo apresentada eacute marcada pela presenccedila da mediaccedilatildeo do adulto no caso a
professora que permite agrave crianccedila organizar as ideias para que elas sejam escritas de forma coesa
Ela hesita em alguns momentos em expressar oralmente o que deseja escrever e na medida em
que eu indico possibilidades por meio do diaacutelogo C20 consegue objetivar o seu pensamento e
criar o seu texto C20 aparenta se apropriar do gecircnero discursivo relatos de vida ao propor
abordar em seu texto um acontecimento da sua vida uma experiecircncia do seu dia a dia que revela
seus desejos e emoccedilotildees Desse modo pode-se afirmar que o processo de comunicaccedilatildeo eacute o
elemento crucial no processo de apropriaccedilatildeo da cultura humana
De acordo com Leontiev (1978 p 273)
A comunicaccedilatildeo quer esta se efectue sob a sua forma exterior inicial de
actividade em comum quer sob a forma de comunicaccedilatildeo verbal ou mesmo
apenas mental eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria e especiacutefica do desenvolvimento do
homem na sociedade
Essas ideias se coadunam com as de Freinet e de Bakhtin Para Freinet a comunicaccedilatildeo eacute
uma necessidade da crianccedila e eacute essa compreensatildeo que justifica a livre expressatildeo como princiacutepio
vertebrador na estruturaccedilatildeo de suas teacutecnicas de ensino Essa comunicaccedilatildeo que se concretiza por
meio de diferentes linguagens tem na expressatildeo verbal seu elemento central A livre expressatildeo
segundo Freinet eacute ldquoa proacutepria manifestaccedilatildeo da vidardquo (FREINET 1979 p 12)
Para Bakhtin (1992) a linguagem eacute interaccedilatildeo social cujo objetivo eacute a comunicaccedilatildeo entre
falanteouvinte entre um eu e um tu que requer a atitude responsiva do outro e isso pressupotildee
um princiacutepio geral a reger toda palavra o de que linguagem eacute diaacutelogo (BAKHTIN 1992) Toda
224
palavra eacute por natureza dialoacutegica porque sempre pressupotildee o outro - o outro como destinataacuterio a
quem estaacute voltada toda alocuccedilatildeo o outro como discurso ou discursos (BRANDAtildeO 2005)
Ao considerar esses pressupostos reitera-se a tese aqui defendida de que as crianccedilas
aprendem a liacutengua desde a Educaccedilatildeo Infantil por meio dos gecircneros ndash uma vez que a liacutengua se
manifesta pelos gecircneros ndash quando o professor introduz o ensino dos gecircneros na escola como
instrumento de humanizaccedilatildeo como forma de apropriaccedilatildeo da cultura humana
P Estaacute bem mas eacute preciso explicar no texto para quem natildeo estuda baleacute o que eacute
o plieacute Como vocecirc acha que podemos escrever isso
C20 Hum (olha para o alto novamente e silencia)
P O que vocecirc acha de colocar assim ldquoEu aprendirdquo (C20 interrompe a
professora e continua a ideia a ser colocada no texto)
C20 ldquoEu aprendi o plieacute que eacute um passo de baleacute e foi a minha professora que me
ensinourdquo (refere-se agrave professora de baleacute de C20)
P Vocecirc estaacute gostando de fazer baleacute
C20 Nossa muito
P E como eacute que a gente pode escrever isso aqui
C20 Ai escreve assim Eacute muito legal danccedilar baleacute Eu gosto muito de aprender
baleacute
P Antes de escrever isso eu vou ler todo o texto ateacute aqui Tudo bem
C20 Tudo
A professora lecirc todo o texto e C20 diz
C20 Ai tem um monte de vezes escrito baleacute baleacute baleacute
P Acho que noacutes podemos arrumar um pouco isso natildeo eacute Vamos retomar a sua
ideia para terminar o texto sem repetir novamente a mesma palavra
C20 Eacute
P Entatildeo poderia ficar assim ldquoEacute muito legal danccedilarrdquo (C20 interrompe a
professora e continua)
C20 ldquoEacute muito legal danccedilar igual bailarina A minha professora vai deixar eu
danccedilar com aquela roupa linda e com a sapatilha Vou amarrdquo
A professora escreve e C20 pergunta
C20 Por que vocecirc pocircs esse negoacutecio aqui (refere-se ao ponto de exclamaccedilatildeo) e
natildeo o ponto final
P Esse ponto eacute o ponto de exclamaccedilatildeo que serve para quando a gente escreve
algo que mostra entusiasmo surpresa como vocecirc fez agora
C20 Hum Pro agora eu posso escrever meu nome no meu texto e depois
desenhar eu na aula de baleacute
P Claro que sim
Mariacutelia 29 de novembro de 2010
Eu queria fazer baleacute desde que eu tinha quatro aninhos Eu pedi para a
minha matildee me levar no baleacute
Depois que eu pedi ela me levou de ocircnibus e laacute na escola de baleacute a minha
matildee ficou numa salinha me esperando enquanto eu ensaiava
225
Eu aprendi o plieacute que eacute um passo de baleacute e foi a minha professora que me
ensinou
Eacute muito legal danccedilar igual bailarina A minha professora vai deixar eu
danccedilar com aquela roupa linda e com a sapatilha Vou amar
C20
C20 aprende a pensar a escrita e lida com o gecircnero discursivo ao re-criaacute-lo na relaccedilatildeo
dialoacutegica que se estabelece com a professora com o texto com ela mesma Isso se verifica
durante todo o processo de re-criaccedilatildeo na interlocuccedilatildeo e na contrapalavra que apresenta ldquoAi tem
um monte de vezes escrito baleacute baleacute baleacuterdquo ao que eu respondo ldquoAcho que noacutes podemos
arrumar um pouco isso natildeo eacute Vamos retomar a sua ideia para terminar o texto sem repetir
novamente a mesma palavrardquo E entatildeo na atitude responsiva cria uma forma que atenda agrave
situaccedilatildeo discursiva revelada
De acordo com o exposto cabe enfatizar que o ensino da liacutengua focado na codificaccedilatildeo e
decodificaccedilatildeo de sinais graacuteficos retira da crianccedila a possibilidade de estabelecer relaccedilotildees intensas
com a liacutengua desde a Educaccedilatildeo Infantil e consequentemente de iniciar o processo de
apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita de forma viva dinacircmica e dialoacutegica Nesse vieacutes eacute descartado o
uso de textos simplificados artificiais cartilhescos que se destinam a ldquoensinarrdquo a crianccedila a ler e
escrever porque natildeo condizem dentro da perspectiva apresentada neste trabalho com o conceito
de liacutengua de linguagem de crianccedila e de educaccedilatildeo assumidos Com relaccedilatildeo a isso Arena (2009
p 170) esclarece que
A apresentaccedilatildeo de textos simplificados e artificialmente inventados daacute a falsa
ideacuteia de que a escola estaria realizando uma aproximaccedilatildeo entre aluno e a liacutengua
escrita de maneira que a apropriaccedilatildeo se fizesse completamente Haacute em sintonia
com o que venho comentando uma contradiccedilatildeo nessa conduta porque a
aproximaccedilatildeo deveria dar-se na direccedilatildeo da liacutengua viva usada no cotidiano
trazendo com ela o que dela natildeo poderia ser apartado os matizes ideoloacutegicos a
contextualizaccedilatildeo as suas finalidades e funccedilotildees a necessidade de uso []
Por meio da praacutetica dialoacutegica de re-criaccedilatildeo de textos C20 percebe gradativamente
elementos da linguagem escrita e suas funccedilotildees ndash como por exemplo o ponto de exclamaccedilatildeo ndash
que sem a situaccedilatildeo de re-criaccedilatildeo textual natildeo seria possiacutevel ocorrer Por essa razatildeo
Compreender gecircneros do discurso a partir das leituras das obras do Ciacuterculo de
Bakhtin eacute compreender o texto como parte fundante das atividades humanas dos
226
sujeitos Essa compreensatildeo revela um sujeito produtor de linguagem de
enunciados e de discursos e tambeacutem nos mostra que o texto eacute fundamental natildeo
somente para os estudos da liacutengua mas para a proacutepria reconstruccedilatildeo da
compreensatildeo do homem e das Ciecircncias Humanas (GRUPO DE ESTUDOS
DOS GEcircNEROS DO DISCURSO 2009 p52 ndash 53 grifos dos autores)
Com o ensino da liacutengua por meio dos gecircneros discursivos comunicamos com o outro as
ideias vividas percebidas sentidas pensadas que se materializam nos enunciados no discurso
Seraacute apresentado outro dado sobre a re-criaccedilatildeo do gecircnero discursivo relato de vida por
meio do livro da vida
Apoacutes a roda da conversa em que as crianccedilas se dividiram para realizar suas tarefas nos
ateliers ou cantos de trabalho C6 se dirige a mim e diz
C6 Pro sabe o que eu contei na roda da conversa
P Sim sei sim
C6 Eu quero escrever no livro da vida
P E por que vocecirc quer escrever o que vocecirc contou hoje na roda da conversa no
livro da vida
C6 Porque todo mundo vai ler ateacute a minha matildee quando ela vier na reuniatildeo
(Refere-se agrave Reuniatildeo de Pais e Mestres que ocorre periodicamente na escola)
Atendi ao pedido de C6 e iniciamos a re-criaccedilatildeo do seu relato de vida
P Muito bem entatildeo vamos comeccedilar
C6 Vamos
P Como vocecirc quer comeccedilar seu texto
C6 Primeiro a data pro
Entatildeo escrevo a data ldquoMariacutelia 4 de junho de 2010rdquo
P E agora
C6 Pode escrever assim oacute ldquoOntem eu fui de ocircnibus com a minha matildee na casa
da minha tiardquo
Eu escrevo o que C6 diz e em seguida ela me indaga
C6 Pro por que vocecirc natildeo comeccedilou a escrever grudadinho no comeccedilo da folha
P Porque esse pequeno espaccedilo mostra que estamos iniciando um paraacutegrafo uma
ideia que comeccedila a ser escrita
C6 Hum
P Bem o que mais seraacute colocado aqui
C6 Eacute escreve assim pro ldquoNo caminho eu vi o lugar onde o meu pai trabalha
que eacute a DORI (refere-se agrave uma faacutebrica de doces) Eacute tatildeo grande E tambeacutem vi a
fumacinha do lugar onde o meu tio trabalha que eacute na BELrdquo
P O que eacute a BEL Acho que eacute melhor explicar porque nem todas as pessoas que
vatildeo ler o texto sabem o que eacute a BEL e Bel pode ser a abreviaccedilatildeo do nome de
uma pessoa de Isabel um apelido carinhoso para quem tem esse nome
227
C6 Eacute uma faacutebrica de doces
Escrevo o que C6 sugeriu
P Bem o que mais vocecirc quer escrever
C6 ldquoAiacute quando eu vim embora eu vi na loja uma boneca no balanccedilo e eu pedi
para a minha matildee comprar ela pra mim no dia do meu aniversaacuteriordquo
Entatildeo escrevo o que C6 diz e ela me interrompe
C6 Pro tem um monte de espaccedilo que sobrou na frente de onde vocecirc estava
escrevendo Por que vocecirc escreveu embaixo Olha aiacute oacute (Aponta o indicador
direito para a folha em que eu escrevia)
P Por que vocecirc acha que eu escrevi embaixo e natildeo na frente ateacute preencher o
espaccedilo
C6 Ah por que Hum (C6 observa o que foi escrito dirige o olhar para o
teto silencia por alguns segundos) Ai eu natildeo sei
P Eu comecei embaixo escrevendo grudadinho no comeccedilo da folha ou eu deixei
um espaccedilo para indicar um novo paraacutegrafo
C6 Deixou espaccedilo e comeccedilou um novo paraacutegrafo
P Hum e por que seraacute que eu fiz isso
C6 Ai eu natildeo sei direito mas eu vou contar agora outra parte do meu passeio
P Isso mesmo e por ser outra parte do seu passeio por ser outra ideia que vocecirc
estaacute dizendo eu comecei outro paraacutegrafo para organizar tudo melhor
C6 Ah taacute entendi
P Entatildeo vamos retomar a sua ideia (Releio o que eu havia escrito ateacute aquele
momento e C6 continua)
C6 Soacute falta escrever assim pro ldquoMas ela disse que eu jaacute tenho bonecas demaisrdquo
Terminada a escrita do relato de vida de C6 organizei com as crianccedilas rapidamente a sala
para que outra professora pudesse ocupaacute-la com sua turma e dirige-me com as crianccedilas ao
refeitoacuterio porque jaacute estaacutevamos poucos minutos atrasados para o lanche As crianccedilas se
acomodaram no refeitoacuterio e percebi que C6 natildeo estava junto agrave turma para lanchar Solicitei a uma
funcionaacuteria que pudesse atender as crianccedilas e fui agrave procura de C6 Voltei agrave sala em que
momentos antes ocupaacutevamos e encontrei C6 escrevendo seu nome no texto que acabara de re-
criar Permaneci em silecircncio e assim que terminou de escrever seu nome no texto C6 me explica
C6 Eu natildeo podia ir para o lanche sem escrever o meu nome no texto pro
P Que bom que vocecirc se lembrou de fazer isso C6
C6 Eu tinha que escrever meu nome para todo mundo saber que fui eu quem fiz
A ilustraccedilatildeo eu faccedilo amanhatilde taacute Eu soacute queria escrever o meu nome no meu
texto
P Combinado Amanhatilde vocecirc faz a ilustraccedilatildeo do seu texto
C6 entatildeo guardou o livro da vida no armaacuterio e fomos juntas para o refeitoacuterio
228
(Foto 7 ndash Situaccedilatildeo fotografada e registrada no dia 040610)
Pela anaacutelise da situaccedilatildeo apresentada C6 aparenta perceber que a escrita legitima as coisas
que se escreve para que possa ser lido e lembrado em qualquer outro momento e que se escreve
porque quer comunicar algo para um outro real um destinataacuterio real Escreve porque tem a
intenccedilatildeo que o outro leia porque quer se expressar Isso se verifica quando a crianccedila se direciona
a mim e diz ldquoEu quero escrever no livro da vidardquo e quando eu pergunto o motivo porque quer
escrever no livro da vida justifica ldquoPorque todo mundo vai ler ateacute a minha matildee quando ela vier
na reuniatildeordquo
Eacute possiacutevel perceber que C6 aprende a liacutengua em movimento na relaccedilatildeo com o outro
Focalizar a linguagem a partir do processo interlocutivo (GERALDI 2003) e nessa perspectiva
pensar o processo educacional enquanto produccedilatildeo da linguagem e dos sujeitos significa admitir
que a liacutengua natildeo estaacute pronta e acabada (BAKHTIN 1992) mas que o proacuteprio processo
interlocutivo na atividade da linguagem (re)constroacuteem os sujeitos que a constituem agrave medida em
que interagem uns com os outros O sujeito ldquomergulhado nas muacuteltiplas relaccedilotildees e dimensotildees da
interaccedilatildeo socioideoloacutegica vai se constituindo discursivamente assimilando vozes sociais e ao
229
mesmo tempo suas inter-relaccedilotildees dialoacutegicas (FARACO 2009 p84) Por essa razatildeo que
figurativamente Bakhtin diz ldquoque natildeo tomamos nossas palavras do dicionaacuterio mas dos laacutebios
dos outrosrdquo (FARACO 2009 p 84)
Um aspecto a ser ressaltado eacute que C6 se reconhece como autora como a re-criadora do
texto como algueacutem que sabe escrever mesmo que naquela ocasiatildeo ainda natildeo escrevesse
convencionalmente sem a ajuda da professora que atuou como escriba Pode-se perceber desde o
iniacutecio da conversa quando solicita que quer ldquoescreverrdquo no livro da vida o que havia contado na
roda da conversa e na situaccedilatildeo final em que volta para a sala para assinar o texto re-criado
enquanto toda a turma se encontrava no refeitoacuterio para o lanche Desse modo pode-se dizer que
Por autor o Ciacuterculo19
designa natildeo somente o autor de obras literaacuterias ou natildeo mas
tambeacutem o autor de enunciados o que se justifica se pensarmos que embora
reconhecendo a especificidade dos discursos aos quais se costuma atribuir um
autor o Ciacuterculo considera os atos de discurso parte do conjunto dos atos
humanos em geral ndash e todo agente de um ato humano eacute nesse sentido ldquoautorrdquo
de seus atos Assim falar de autor no acircmbito das teorias do Ciacuterculo implica
pensar no contexto de accedilatildeo dos sujeitos e nas complexas tarefas que realizam ao
enunciar Implica considerar como afirmei alhures de um lado o princiacutepio
dialoacutegico (que segue a direccedilatildeo do interdiscursivo da relaccedilatildeo com o outro) e do
outro os elementos sociais histoacutericos etc que formam o contexto da interaccedilatildeo e
que incidem sobre a accedilatildeo autoral Trata-se de elementos que estatildeo contidos na
proacutepria superfiacutecie dos discursos e que soacute aiacute nos satildeo acessiacuteveis mas que natildeo se
esgotam nessa superfiacutecie (SOBRAL 2009 p 61 ndash 62)
C6 revela a necessidade de escrever seu nome no texto para que as pessoas que o lessem
soubessem que se tratava de uma re-criaccedilatildeo sua A crianccedila denota por sua atitude e por sua fala
que a escrita se torna gradativamente para ela uma necessidade Por essa razatildeo diz ldquoEu tinha
que escrever meu nome para todo mundo saber que fui eu quem fizrdquo ldquoEu soacute queria escrever o
meu nome no meu textordquo Pode-se inferir tambeacutem que para C6 a escrita do seu proacuteprio nome
garante a sua autoria Por isso voltar para escrevecirc-lo naquele momento natildeo deixando para o dia
posterior se constitui como fundamental uma vez que o desenho a ilustraccedilatildeo do texto re-criado
comumente realizada pelas crianccedilas em todos os textos re-criados possivelmente natildeo se
apresentou crucial como a escrita para C6 nesta situaccedilatildeo ao dizer ldquoA ilustraccedilatildeo eu faccedilo amanhatilde
taacuterdquo
19
Refere-se ao Ciacuterculo de Bakhtin ndash Vide nota 8 Capiacutetulo II
230
Por meio da re-criaccedilatildeo do gecircnero discursivo as crianccedilas aprendem a liacutengua de forma
dinacircmica aprendem a pensar sobre ela e sobre o seu funcionamento de maneira responsiva Por
meio da relaccedilatildeo dialoacutegica estabelecida entre C6 e a professora no caso eu mesma a crianccedila no
processo inicial de apropriaccedilatildeo da escrita pensa sobre a ideia o conceito de paraacutegrafo e
principalmente a sua funccedilatildeo no texto Como se verifica nesse trecho
C6 Pro por que vocecirc natildeo comeccedilou a escrever grudadinho no comeccedilo da folha
P Porque esse pequeno espaccedilo mostra que estamos iniciando um paraacutegrafo uma
ideia que comeccedila a ser escrita
E ainda
C6 Pro tem um monte de espaccedilo que sobrou na frente de onde vocecirc estava
escrevendo Por que vocecirc escreveu embaixo Olha aiacute oacute (Aponta o indicador
direito para a folha em que eu escrevia)
P Por que vocecirc acha que eu escrevi embaixo e natildeo na frente ateacute preencher o
espaccedilo
C6 Ah por que Hum (C6 observa o que foi escrito dirige o olhar para o
teto silencia por alguns segundos) Ai eu natildeo sei
P Eu comecei embaixo escrevendo grudadinho no comeccedilo da folha ou eu deixei
um espaccedilo para indicar um novo paraacutegrafo
C6 Deixou espaccedilo e comeccedilou um novo paraacutegrafo
P Hum e por que seraacute que eu fiz isso
C6 Ai eu natildeo sei direito mas eu vou contar agora outra parte do meu passeio
P Isso mesmo e por ser outra parte do seu passeio por ser outra ideia que vocecirc
estaacute dizendo eu comecei outro paraacutegrafo para organizar tudo melhor
C6 Ah taacute entendi
Pode-se dizer que a crianccedila aprende pensar a liacutengua em movimento uma liacutengua viva que
ocorre nas relaccedilotildees estabelecidas e natildeo numa liacutengua morta vazia que nada se pode refletir
refratar ou refutar As crianccedilas apesar de pequenas satildeo capazes de aprender a liacutengua
dialogicamente quando as situaccedilotildees de ensino e de aprendizagem satildeo planejadas
intencionalmente satildeo reais e ocorrem num contexto dialoacutegico interlocutivo
Aspectos da gramaacutetica da ortografia satildeo abordados com as crianccedilas devido as situaccedilotildees
que surgem no processo de re-criaccedilatildeo dos gecircneros discursivos e geralmente surgem por meio da
minha mediaccedilatildeo como professora e da observaccedilatildeo das proacuteprias crianccedilas que vivem
frequentemente situaccedilotildees de escrita e de leitura dos gecircneros discursivos
231
Ao pensar no destinataacuterio real ressalta-se que eu a professora solicito que a crianccedila
explicite o que eacute ldquoBELrdquo porque apesar das pessoas que moram na cidade em que ocorreu a
pesquisa terem mais provavelmente conhecimento do que seja ldquoBELrdquo o objetivo era que C6
pudesse se fazer entender por qualquer e todo leitor Em outras palavras que C6 em qualquer
situaccedilatildeo de escrita de re-criaccedilatildeo possa estabelecer uma relaccedilatildeo responsiva um diaacutelogo com o
outro com o leitor seja ele quem for Que a crianccedila possa compreender a palavra alheia mas que
possa permitir que o outro compreenda ativamente a sua palavra uma vez que para Bakhtin
(1992 p 131 ndash 132) ldquocompreender a enunciaccedilatildeo de outrem significa orientar-se em relaccedilatildeo a
ela encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondenterdquo
54 A escrita do gecircnero discursivo notiacutecia
Seratildeo apresentados neste item dados de situaccedilotildees de escrita do gecircnero discursivo notiacutecia
que contribuam na compreensatildeo de como pode ocorrer o processo inicial da apropriaccedilatildeo da
escrita com as crianccedilas pequenas por meio desse gecircnero
Apoacutes a roda da conversa em que as crianccedilas contaram novidades acontecimentos fatos
que viveram ou souberam por algueacutem escolhemos nesse dia duas notiacutecias da turma para criar
textos que fariam parte do jornal A primeira notiacutecia era resultado de uma situaccedilatildeo de pesquisa
sobre o Sol ndash devido ao nome da Turma do Sol ndash que motivou inuacutemeras discussotildees entrevistas
investigaccedilotildees das crianccedilas na escola e que repercutiu nas accedilotildees pedagoacutegicas e no envolvimento
de toda a comunidade escolar ao envolver natildeo somente as crianccedilas mas os professores
funcionaacuterios diretora coordenadora e os familiares dos sujeitos da pesquisa
A escolha da notiacutecia pelas crianccedilas foi unacircnime sendo o texto criado coletivamente
PESQUISA SOBRE O SOL DEIXA TODO MUNDO CURIOSO NA
ESCOLA
A nossa Turma do Sol fez uma pesquisa que deixou todo mundo curioso
na nossa escola Essa pesquisa foi por causa de um cartatildeo postal que noacutes
recebemos de uma amiga que viaja muito chamada Suely Ela foi para um lugar
que se chama Satildeo Petersburgo laacute na Ruacutessia e que eacute bem longe daqui mas longe
mesmo
Nesse lugar quando eacute veratildeo o sol se potildee agraves 11horas da noite e nasce agraves 4
horas da manhatilde Por que isso acontece
232
Ningueacutem na escola sabe responder essa pergunta e olha que noacutes
perguntamos para um montatildeo de gente Nem os nossos pais sabem mas agora
noacutes jaacute sabemos porque noacutes pesquisamos com a nossa professora
Vocecirc quer saber No proacuteximo jornal noacutes vamos contar tudo Natildeo percam
(Texto criado em 261010)
Terminada a escrita do texto criado pelas crianccedilas as negociaccedilotildees sobre os procedimentos
seguintes ocorreram
P Pessoal a primeira notiacutecia que vocecircs escolheram na roda da conversa para
escrevermos no jornal da nossa turma eacute sobre a pesquisa sobre o Sol certo
Todas Certo
C5 Pro vocecirc deixa eu C11 e C13 escrever esse texto no computador
P Por mim tudo bem Vocecircs concordam que eles faccedilam isso turma
Todas Concordamos
C6 Entatildeo na hora de imprimir vocecirc deixa eu te ajudar a fazer isso
C2 e C9 Eu tambeacutem quero
P Estaacute certo Depois quando formos fazer a separaccedilatildeo das folhas e montarmos
o jornal vamos precisar de mais ajuda
C1 C7 C4 Eu ajudo
Ao iniciar a digitaccedilatildeo C5 diz
C5 Como eu faccedilo para colocar a letra maiuacutescula pro (olha para o teclado do
computador e eu o oriento)
C5 digita quase inteiro o texto acompanhado de C11 e C13 quando em dado
momento C13 diz
C13 C5 vocecirc escreveu ldquoerdquo e natildeo ldquoeacuterdquo
C5 Eu escrevi sim
C11 Natildeo escreveu natildeo Olha aqui vocecirc escreveu ldquoNesse lugar quando e
veratildeordquo
C13 Eacute verdade
C5 Mas onde eu escrevi isso
(C11 aponta com o dedo indicador)
C5 Ah mas eacute a mesma coisa
C13 Natildeo eacute natildeo
C5 Soacute esqueci do acento
C11 Ah mas se natildeo potildee o acento vira outra coisa
C5 Ueacute Como assim
C13 Eu acho que o ldquoErdquo eacute para falar as coisas e juntar o que estaacute falando O ldquoEacuterdquo
eacute quando vocecirc fala que alguma coisa eacute assim que eacute daquele jeito sabe
C5 Hum sei laacute
(C11 modifica e coloca o acento)
C13 Assim eacute melhor Assim todo mundo vai entender direito a nossa notiacutecia e
vai querer que a gente escreva logo no outro jornal
C11 Por enquanto vai ser soacute uma surpresinha essa notiacutecia sobre a pesquisa
sobre o Sol
233
A escolha da notiacutecia e principalmente a forma como ela eacute escrita denotam apropriaccedilatildeo do
gecircnero discursivo notiacutecia Segundo Jolibert (2006 p 109) ldquonotiacutecias satildeo informaccedilotildees sobre
acontecimentos eventos vigentes dos quais se quer dar conhecimento aos leitores do jornalrdquo
Dessa forma pode-se dizer que as crianccedilas comunicaram por meio da notiacutecia re-criada um
acontecimento vivido por elas e que possivelmente teve um sentido positivo promotor de
aprendizagens dada a concordacircncia de todas para que a notiacutecia fosse escrita e levada a puacuteblico
por meio do jornal Elas lidam com os elementos da notiacutecia de forma interativa e aparentam
perceber caracteriacutesticas especiacuteficas desse gecircnero Isso pode ser observado no uso do discurso
indireto em que ldquoos iacutendices de valoraccedilatildeo do autor satildeo mais visiacuteveis por tratar-se de uma
transmissatildeo analiacutetica do discurso do outro Eacute a marca direta do dialogismo e que aparece com
mais frequumlecircncia na notiacuteciardquo (SILVA 2008 p 11 ndash 12) O discurso direto tem um estilo mais
marcado porque tem a sua fala separada da do autor por aspas ou por dois pontos com travessatildeo
No discurso indireto esses limites satildeo ldquoapagadosrdquo funde-se com a fala do autor
Como todo gecircnero discursivo a notiacutecia tambeacutem se orienta para a resposta ativa do
destinataacuterio e se realiza a partir dessa atitude responsiva porque as relaccedilotildees dialoacutegicas se datildeo em
razatildeo do outro do interlocutor uma vez que eacute em funccedilatildeo do destinataacuterio real vivo responsivo
que se constroacutei o discurso Essa premissa eacute percebida no texto re-criado ldquoNingueacutem na escola
sabe responder essa pergunta e olha que noacutes perguntamos para um montatildeo de gente Nem os
nossos pais sabem mas agora noacutes jaacute sabemos porque noacutes pesquisamos com a nossa professora
Vocecirc quer saber No proacuteximo jornal noacutes vamos contar tudo Natildeo percamrdquo
Haacute que se destacar que as crianccedilas trabalham de forma colaborativa cooperativa e que por
essa razatildeo a interaccedilatildeo entre elas com a professora com as pessoas presentes na escola com o
meio e com os materiais promove aprendizagens porque elas estabelecem relaccedilotildees intensas
Nesse contexto satildeo ouvidas e por meio das negociaccedilotildees feitas entre elas e a professora no caso
eu mesma e organizam o trabalho pedagoacutegico e as experiecircncias a serem vividas Esse fato eacute
observado quando toda a turma participa da re-criaccedilatildeo do texto coletivo e se encarrega em
seguida das tarefas para a publicaccedilatildeo do jornal que portaraacute a notiacutecia criada C5 C11 e C13 se
prontificam para digitarem o texto C6 C2 C9 desejam participar da impressatildeo C1 C7 C4
solicitam separar as folhas para a montagem do jornal
Sobre o uso das teacutecnicas e da organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico de forma cooperativa
Freinet (1978 p 113) revela que ldquoa crianccedila que se apercebe de que seu trabalho tem um objetivo
234
e que pode abandonar-se completamente a uma actividade natildeo jaacute escolar mas simplesmente
social e humana sente-se invadida por uma forte necessidade de agir de procurar de criarrdquo A
livre expressatildeo faz emergir na turma um clima de liberdade autodisciplina e confianccedila (ELIAS
1997) Ao solicitarem para digitar o texto C5 C11 e C13 querem utilizar o meu computador que
ficava na sala para esse fim bem como a impressora que tinha a funccedilatildeo de reproduzir os textos
para que todas pudessem ter o seu exemplar Esse recurso corresponde agrave imprensa escolar Para
Freinet (1978 p 112) ldquoa imprensa estaacute na base de um novo comportamento e de uma nova
orientaccedilatildeo da crianccedila e do educador e por conseguinte de toda a pedagogiardquo E ainda afirma que
A Tipografia na Escola fez com que a expressatildeo livre e a actividade criadora dos
nossos alunos passasse para o domiacutenio da praacutetica quotidiana Atraveacutes da
experiecircncia mais eficaz do que todos os raciociacutenios pretensamente cientiacuteficos
juntos abriu novos horizontes a uma pedagogia baseada no interesse autecircntico
fonte de vida e de trabalho Restabeleceu de uma assentada a unidade do
pensamento da actividade e da vida infantis como assinalaacutevamos no nosso
uacuteltimo artigo integrou a escola no processo normal de evoluccedilatildeo individual e
social dos alunos (FREINET 1978 p 113)
Apesar de Freinet se referir aos alunos da escola primaacuteria sua pedagogia e teacutecnicas de
ensino podem adequar-se agrave pequena infacircncia e a qualquer outro niacutevel de ensino porque satildeo
calcadas em atitudes e valores humanizadores O trabalho com a imprensa o texto livre
permitiram que pudessem discutir sobre elementos da liacutengua e pensar em diferentes aspectos
sobre ela C5 digita o texto acompanhado por C11 e C13 que o alerta sobre a diferenccedila entre ldquoerdquo
e ldquoeacuterdquo Inicialmente C5 diz que digitou corretamente por natildeo perceber essa diferenccedila quando diz
ldquoAh mas eacute a mesma coisardquo No entanto C11 e C13 esclarecem que natildeo se trata da mesma coisa
e que a diferenccedila entre elas altera o significado e o sentido do enunciado e por consequecircncia a
compreensatildeo do que se quer expressar C13 tenta explicar a diferenccedila que existe entre ldquoerdquo e ldquoeacuterdquo e
aparenta compreender que ldquoerdquo une as ideias dentro do texto ndash conjunccedilatildeo ndash e que ldquoeacuterdquo indica o
estado de algo ndash o verbo ser
C5 Soacute esqueci do acento
C11 Ah mas se natildeo potildee o acento vira outra coisa
C5 Ueacute Como assim
C13 Eu acho que o ldquoErdquo eacute para falar as coisas e junta o que estaacute falando O ldquoEacuterdquo eacute
quando vocecirc fala que alguma coisa eacute assim que eacute daquele jeito sabe
C5 Hum sei laacute
(C11 modifica e coloca o acento)
235
C13 Assim eacute melhor Assim todo mundo vai entender direito a nossa notiacutecia e
vai querer que a gente escreva logo no outro jornal
O trabalho com os diferentes caracteres presentes no teclado do computador possibilita o
manuseio da liacutengua escrita e seus matizes O leitor e o re-criador de textos do seacuteculo XXI podem
ter esse encaminhamento tambeacutem na escola jaacute que lida com essa diversidade fora dela por meio
de telefones celulares de pessoas proacuteximas da famiacutelia por exemplo Bajard (2012 p 86) explica
que Freinet (1969) ldquohaacute quase um seacuteculo preconizava a utilizaccedilatildeo da imprensa na escola para
incentivar a conquista da escrita a partir do manuseio taacutetil de caracteres controlado pelos olhosrdquo
Por meio do manuseio dos caracteres no computador C5 percebe que a ldquopresenccedila da letra
maiuacutescula favorece a descoberta do sentido da escrita jaacute que a primeira letra fica sempre agrave
esquerdardquo (BAJARD 2012 p 84 ndash 85) Isso se verifica quando a crianccedila solicita agrave professora
que o ensine a colocar a letra maiuacutescula no iniacutecio do textodo paraacutegrafo ldquoPor essa
particularidade o objeto graacutefico natildeo se comporta exatamente como um objeto comum Aleacutem
dessa ldquolateralizaccedilatildeordquo da escrita a crianccedila eacute levada a discriminar outras variaacuteveis pertinentes
como os acentosrdquo (BAJARD 2012 p 89 ndash 90) conforme ocorre com a situaccedilatildeo apresentada com
C5 C11 e C13 Para esse autor os caracteres satildeo capazes de acarretar uma mudanccedila de sentido e
haacute ainda que se considerar que ldquotodos os caracteres possuem um valor visual enquanto apenas
uma parte desse conjunto apresenta um valor sonorordquo (BAJARD 2012 p86)
O uso da caixa alta no tiacutetulo apresenta a intenccedilatildeo de destacar o assunto a ser tratado de
chamar a atenccedilatildeo do leitor e que distingue do corpo da notiacutecia ldquoHaacute uma hierarquia muito
evidente na tipografia maiuacutesculas minuacutesculas tamanho largura disposiccedilatildeo no espaccedilordquo
(JOLIBERT 2006 p 110)
A segunda notiacutecia escolhida e criada pelas crianccedilas na Roda da conversa eacute apresentada a
seguir
BOLO DE CHOCOLATE NA TURMA DO SOL
A receita que a nossa turma mais gostou de fazer ateacute hoje foi a de bolo de
chocolate
Todo mundo ajudou a fazer e o bolo ficou uma deliacutecia Ateacute quebrar os
ovos a professora ensinou Eacute meio difiacutecil fazer isso mas eacute legal
A professora colocou cobertura de brigadeiro por cima e chocolate
granulado
236
A receita eacute faacutecil e daacute ateacute pra ensinar as nossas matildees em casa
Quando a gente foi comer o bolo fez ateacute ldquobigoderdquo na gente por causa da
cobertura de brigadeiro O C5 lambeu os beiccedilos
Depois de criado o texto a professora fez a sua transmissatildeo vocal agraves crianccedilas E
perguntou
P Qual tiacutetulo que daremos a essa notiacutecia
C9 O bolo de chocolate
C15 O bolo de chocolate ficou uma deliacutecia
C1 Ah esses nomes natildeo tem jeito de nome de notiacutecia
P E por que natildeo C1
C1 Porque o nome da notiacutecia tem que ser bem bem com jeito de notiacutecia
P E que jeito eacute esse
C1 Ah (silencia por alguns segundos) ah natildeo pode parecer que eacute outra
coisa outro texto sabe
P E qual nome vocecirc acha que seria melhor para a nossa notiacutecia sobre o bolo de
chocolate que fizemos aqui na escola
C1 Bolo de chocolate na Turma do Sol
Todas aplaudem
C1 Pro deixa eu tentar escrever o nome da notiacutecia (quer escrever no papel em
que a professora escrevia o texto criado)
Eu permito e a crianccedila junto com as demais que se juntaram a sua volta
escreveu o tiacutetulo
A situaccedilatildeo apresentada aparenta revelar que as crianccedilas percebem os elementos
constitutivos de cada gecircnero e suas especificidades como jaacute analisado nos dados anteriores
Nesse caso C1 propotildee outro tiacutetulo para a notiacutecia porque em sua opiniatildeo as sugestotildees dadas natildeo
condiziam com o gecircnero abordado ao dizer ldquoAh esses nomes natildeo tecircm jeito de nome de
notiacuteciardquo E quando a professora indaga C1 na tentativa de verificar os motivos que a fazem pensar
dessa forma C1 responde ldquoAh (silencia por alguns segundos) ah natildeo pode parecer que eacute
outra coisa outro texto saberdquo Pode-se inferir que C1 deseja que o tiacutetulo requeira uma
correspondecircncia agraves especificidades do gecircnero discursivo notiacutecia e que cada gecircnero tem um
ldquojeitordquo um estilo uma construccedilatildeo composicional um conteuacutedo temaacutetico especiacutefico que o
constitui Essa especificidade de cada gecircnero discursivo eacute apropriada e objetivada quando os
gecircneros satildeo apresentados e vividos de forma interativa dinacircmica dialoacutegica em que as relaccedilotildees
com eles satildeo estabelecidas de modo reflexivo e funcional
C1 propotildee outro tiacutetulo agrave notiacutecia ndash BOLO DE CHOCOLATE NA TURMA DO SOL ndash e
recebe a aprovaccedilatildeo de todas as demais crianccedilas da turma por supostamente tambeacutem concordarem
que o tiacutetulo sugerido possui em sua elaboraccedilatildeo elementos condizentes com o gecircnero re-criado
237
As crianccedilas lidam com os gecircneros e os utilizam como instrumento de comunicaccedilatildeo devido
agraves condiccedilotildees objetivas das quais participam promovidas pelo trabalho pedagoacutegico
intencionalmente organizado pelas relaccedilotildees estabelecidas com eles por meio da mediaccedilatildeo da
professora e do outro mais avanccedilado pelo contato com os materiais diversos pelas situaccedilotildees
reais de leitura e de escrita propostas
Elas denotam compreender que o conteuacutedo temaacutetico refere-se ao domiacutenio de sentido de
que se ocupa o gecircnero que a construccedilatildeo composicional corresponde ao modo como os
enunciados satildeo estruturados que o estilo se relaciona agrave seleccedilatildeo dos meios linguumliacutesticos necessaacuterios
ao enunciado em funccedilatildeo do destinataacuterio e de como se espera sua compreensatildeo responsiva ativa
A notiacutecia do jornal da turma traz ainda subjacente que as crianccedilas conhecem outros
gecircneros aleacutem daqueles apresentados nesse trabalho Isso se verifica ao revelarem por meio do
texto re-criado por elas que a receita que mais gostaram de fazer na turma ateacute aquele momento
fora a receita de bolo de chocolate assim como o dado analisado no item 52 sobre a escrita de
cartas em que eacute mencionada a re-criaccedilatildeo do texto que ensina os correspondentes as brincadeiras e
suas regras
Ao me solicitar para escrever o tiacutetulo da notiacutecia no papel em que ela acabara de escrever
C1 denota que se sente motivada a escrever que a escrita ldquosoacute eacute procurada e desenvolvida quando
utilizada para um fim adequado e evidente motivada por uma necessidade orgacircnica [] Por
meio dessa atitude de quer escrever ela mesma o tiacutetulo da notiacutecia C1 revela que ldquocompreende
agora o valor expressivo e comunicativo da escritardquo (FREINET 1969 p 53)
Apresentarei dados sobre a re-criaccedilatildeo de notiacutecia de jornal denotativa da apropriaccedilatildeo desse
gecircnero discursivo pelas crianccedilas
Terminada a hora da leitura realizada apoacutes a roda da conversa as crianccedilas abordaram a
necessidade de aumentar o acervo da biblioteca da sala A hora da leitura eacute um momento diaacuterio
em que satildeo lidas ou contadas histoacuterias e outros gecircneros discursivos Essa iniciativa se deu devido
ao fato de as crianccedilas usarem diariamente os materiais de leitura e por essa razatildeo apresentarem o
desejo de ampliar a quantidade de materiais O acervo da biblioteca da sala eacute composto por
materiais que eu mesma professora da turma providenciara para uso haacute alguns anos O acervo eacute
renovado periodicamente por mim e esporadicamente com doaccedilotildees de pessoas conhecidas A
238
escola possui um acervo que tambeacutem eacute utilizado pelas professoras contudo esses livros natildeo estatildeo
disponiacuteveis para empreacutestimos das crianccedilas ainda que sejam utilizados com elas
C11 Pro a gente podia ter mais livros e gibis na nossa sala neacute
Eu jaacute conheccedilo todos os que tecircm por aqui (refere-se aos livros e gibis)
C3 C17 C20 C8 Eacute mesmo pro
P Bem eu concordo mas o que noacutes podemos fazer para conseguirmos mais
livros e gibis aleacutem daqueles que eu sempre trago
(As crianccedilas silenciam)
C13 Ocirc pro eu jaacute sei A gente pode pedir para as pessoas que tem livros que natildeo
usam mais para dar para a nossa turma
C5 Se a gente pedir quem quiser dar daacute ueacute Se tiver algum
C9 A minha matildee outro dia fez faxina em casa e deu uma sacolona cheinha de
coisas A sacolona estava quase rasgando de tanta coisa que tinha nela hum
mas eu acho que natildeo tinha livros
P Mas para noacutes conseguirmos mais materiais de leitura noacutes temos que divulgar
noacutes temos que dizer isso para muitas pessoas e explicar o porquecirc noacutes estamos
pedindo esse material e como noacutes vamos usaacute-lo Como esses livros e gibis nos
ajudaratildeo aprender mais coisas
C6 Noacutes podemos perguntar para as nossas matildees e para os nossos pais se eles
tecircm algum livro pra doar neacute
C13 Pro pro pro Eu tenho uma ideia melhor ainda Adivinha qual eacute
P Natildeo seiQual eacute C13
C13 Hatilde hatilde Vamos escrever uma notiacutecia para pocircr no nosso jornal Todo mundo
vai ler O que vocecircs acham pessoal
Todas Eba
(Situaccedilatildeo registrada no dia 301010)
P Vamos escrever a notiacutecia
Todas Vamos
P Como podemos comeccedilar a notiacutecia
C5 Coloca assim pro ldquoA nossa turma a Turma do Sol precisa de mais livros e
de mais gibis para pocircr na biblioteca da salardquo
P Vocecircs concordam
Todas Sim
(Eu escrevo a sugestatildeo de C5)
P Precisamos explicar o motivo desse pedido para que as pessoas entendam e
percebam se podem nos ajudar
C1 Escreve que noacutes queremos saber mais coisas que noacutes estamos aprendendo a
ler e a escrever tambeacutem
P E vocecircs gostam de saber de coisas novas e de aprender a ler e a escrever
C11 Claro neacute pro
P E como podemos entatildeo escrever a ideia dada por C1
C6 Escreve assim ldquoA Turma do Sol eacute uma turma bem legal que gosta de saber
das coisas que gosta de aprenderrdquo
(Escrevo a sugestatildeo de C6)
P E o que mais
239
C13 Escreve pro ldquoEacute uma turma que gosta de ler de ouvir histoacuterias de
pesquisar e de escrever coisas importantesrdquo Escreve pro
(Escrevo a sugestatildeo de C13)
P Precisamos escrever que temos poucos materiais Como podemos escrever
isso na notiacutecia
C18 ldquoEssa turma tem poucos gibis e livros na bibliotecardquo
P Em qual biblioteca
Todas Da sala
P E o que mais
C20 Escreve que ldquotodo mundo jaacute conhece todos os livros que tem nessa
bibliotecardquo
P Por isso (sou interrompida por C10 que diz)
C10 ldquoEacute que a Turma do Sol quer ter mais livros pra lerrdquo
(Escrevo as sugestotildees de C20 e C10)
P Precisamos escrever como as pessoas podem nos ajudar e em qual lugar
podem fazer suas doaccedilotildees
C7 Pro pro escreve assim ldquoQuem tiver livros e gibis usados para dar para a
Turma do Sol entrega na escola ou para algueacutem da turmardquo
(Escrevo a sugestatildeo de C7)
P Turma vou ler a notiacutecia para vocecircs verem se haacute algo que precisamos
acrescentar certo
Todas Certo
(Realizo a leitura)
P Tem algo a mais a acrescentar ou a mudar O que vocecircs acham
C13 Soacute para terminar pro que tal vocecirc escrever assim ldquoA Turma do Sol vai
ficar super feliz e vai aprender mais coisas com a ajuda de vocecircsrdquo
(Escrevo a sugestatildeo de C13)
P E qual o tiacutetulo da nossa notiacutecia
C11 ldquoTurma do Sol pede mais livros e gibis para a biblioteca da salardquo
P Vocecircs concordam com o tiacutetulo de C11
Todas Concordamos
TURMA DO SOL PEDE MAIS LIVROS E GIBIS PARA A BIBLIOTECA
DA SALA
A nossa turma a Turma do Sol precisa de mais livros e de mais gibis para
pocircr na biblioteca da sala
A Turma do Sol eacute uma turma bem legal que gosta de saber das coisas que
gosta de aprender Eacute uma turma que gosta de ler de ouvir histoacuterias de pesquisar
e de escrever coisas importantes
Essa turma tem poucos gibis e livros na biblioteca da sala e todo mundo jaacute
conhece todos os livros que tem nessa biblioteca por isso que a Turma do Sol
quer ter mais livros pra ler
Quem tiver livros e gibis usados para dar para a Turma do Sol entrega na
escola ou para algueacutem da turma
A Turma do Sol vai ficar super feliz e vai aprender mais coisas com a
ajuda de vocecircs
(Texto criado no dia 301010)
240
A anaacutelise dos dados revela que as crianccedilas estabeleceram uma relaccedilatildeo positiva com o
conhecimento que criaram para si a necessidade de aprender As experiecircncias que viveram na
escola e a participaccedilatildeo ativa em situaccedilotildees reais de leitura e re-criaccedilatildeo de gecircneros discursivos
permitiram que elas natildeo somente iniciassem o processo de apropriaccedilatildeo da liacutengua mas tambeacutem a
apropriaccedilatildeo da cultura elaborada provocando aprendizagens e desenvolvendo a sua humanidade
o conjunto das qualidades humanas Isso se verifica na atitude que assumem ao proporem que o
acervo de livros e gibis da sala fosse ampliado na justificativa que apresentam para fazerem essa
solicitaccedilatildeo na forma como elaboram a soluccedilatildeo desse problema
A solicitaccedilatildeo para a ampliaccedilatildeo do acervo da biblioteca da sala pelas crianccedilas eacute decorrente
do uso constante dos materiais de leitura que o compotildeem Esse fato natildeo implica o desuso dos
materiais jaacute existentes mesmo que estejam em frequente circulaccedilatildeo entre as crianccedilas mas na
ampliaccedilatildeo de contato com diferentes gecircneros discursivos que garantem outras leituras outras re-
criaccedilotildees outras experiecircncias novas relaccedilotildees novas apropriaccedilotildees As crianccedilas especialmente
C13 parece perceber a funccedilatildeo da escrita ao propor que seja criada uma notiacutecia para pedir
doaccedilotildees para a turma e aparenta perceber tambeacutem as peculiaridades do gecircnero notiacutecia de jornal
que tem a especificidade de divulgar de promover de informar de tornar puacuteblico um
acontecimento um fato ldquoPro pro pro Eu tenho uma ideia melhor ainda Adivinha qual eacuterdquo
Por desconhecer sua ideia pergunto qual eacute e em seguida responde ldquoHatilde hatilde Vamos escrever uma
notiacutecia para pocircr no nosso jornal Todo mundo vai ler O que vocecircs acham pessoalrdquo
C13 aleacutem de denotar conhecer a funccedilatildeo do gecircnero discursivo notiacutecia traz subjacente em
sua fala a responsividade (BAKHTIN 1992) do destinataacuterio real porque ao propor que
escrevecircssemos uma notiacutecia tinha supostamente como objetivo o de levar a puacuteblico a solicitaccedilatildeo
da turma e consequentemente obter a doaccedilatildeo de materiais de leitura para a biblioteca da sala
Com isso pode-se inferir que as situaccedilotildees expostas neste trabalho de inserccedilatildeo da crianccedila na
cultura escrita natildeo se constituiacuteram em situaccedilotildees artificiais teacutecnicas que visavam agrave leitura e a re-
criaccedilatildeo de gecircneros discursivos para o cumprimento de uma tarefa ou ainda situaccedilotildees que
buscavam simular o ensino da liacutengua mas ao contraacuterio buscou-se colocar a crianccedila no fluxo das
comunicaccedilotildees na interlocuccedilatildeo na condiccedilatildeo de sujeito de suas aprendizagem ao participar
ativamente de todo o processo se constituindo na relaccedilatildeo com o outro
Durante o processo de re-criaccedilatildeo do gecircnero discursivo notiacutecia pode-se dizer que as
crianccedilas denotam compreender o funcionamento desse gecircnero e elaboram o texto com coerecircncia
241
e objetividade nas ideias movidas natildeo somente pelo propoacutesito de conseguir novos livros e gibis
mas pelo desejo de aprender Esse fato pode ser percebido na fala de C1 ldquoEscreve que noacutes
queremos saber mais coisas que noacutes estamos aprendendo a ler e a escrever tambeacutemrdquo E para
me certificar sobre o que dizia perguntei ldquoE vocecircs gostam de saber de coisas novas e de
aprender a ler e a escreverrdquo e imediatamente C11 responde ldquoClaro neacute prordquo denotando
obviedade diante da pergunta feita Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas no texto re-criado ldquoA
Turma do Sol eacute uma turma bem legal que gosta de saber das coisas que gosta de aprender Eacute uma
turma que gosta de ler de ouvir histoacuterias de pesquisar e de escrever coisas importantesrdquo
Na re-criaccedilatildeo do gecircnero discursivo notiacutecia as crianccedilas participam ativamente tecendo
seus enunciados que gradativamente o compotildeem Esses enunciados satildeo proferidos num dado
contexto situacional que pressupotildee sempre a alteridade Sobre isso Ribeiro (2010 p 56)
esclarece que
A noccedilatildeo de enunciado por sua vez fundada nos pressupostos dialoacutegicos
incorpora o contexto verbal e o contexto extraverbal (aspectos situacionais
histoacutericos ideoloacutegicos) ou seja ele materializa concomitantemente o que haacute de
peculiar da situaccedilatildeo enunciativa concreta e elementos sociodiscursivos
estabilizados nas e pelas interaccedilotildees ao longo da Histoacuteria O enunciado sob o
prisma bakhtiniano eacute o garantidor do espaccedilo do outro na dinacircmica discursiva e
por conseguinte constitui-se do fluxo de muacuteltiplas vozes que ecoam da
alternacircncia dos sujeitos do discurso nas situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo Ademais por
figurar como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva o enunciado elucida
especificidades das esferas sociais nas quais ele se constituiu
Com base nesses pressupostos pode-se dizer que as crianccedilas estabelecem uma relaccedilatildeo
dialoacutegica entre elas entre elas e a professora entre elas e o gecircnero discursivo re-criado As
crianccedilas sugerem opinam elaboram enunciados que atendem aos interesses e objetivos da turma
e agraves caracteriacutesticas do gecircnero discursivo notiacutecia Cabe lembrar que ldquoa despeito do caraacuteter
regulador da forma do gecircnero haacute espaccedilo para a expressatildeo do sujeito visto que ao participar das
atividades de linguagem ele (re)elabora (re)cria (re)formula formas de gecircnerordquo (RIBEIRO
2010 p 60) Dessa maneira ldquoinstaura um processo de atualizaccedilatildeo dos diversos gecircneros do
discurso presentes na sociedaderdquo (RIBEIRO 2010 p 60)
Por essa razatildeo pode-se dizer que as crianccedilas se apropriam da liacutengua por meio dos gecircneros
discursivos porque
242
Os gecircneros satildeo meios de apreender a realidade Novos modos de ver e de
conceptualizar a realidade implicam o aparecimento de novos gecircneros e a
alteraccedilatildeo dos jaacute existentes Ao mesmo tempo novos gecircneros ocasionam novas
maneiras de ver a realidade A aprendizagem dos modos sociais de fazer leva
concomitantemente ao aprendizado dos modos sociais de dizer os gecircneros
Mesmo que algueacutem domine bem uma liacutengua sentiraacute dificuldade de participar de
determinada esfera de comunicaccedilatildeo se natildeo tiver controle do(s) gecircnero(s) que ela
requer Eacute por isso que haacute pessoas que conversam brilhantemente mas satildeo
incapazes de participar de um debate puacuteblico ou de discursar para uma grande
plateia A falta de domiacutenio do gecircnero eacute a falta de vivecircncia de determinadas
atividades de certa esfera Fala-se e escreve-se sempre por gecircneros e portanto
aprender a falar e a escrever eacute antes de mais nada aprender gecircneros (FIORIN
2006 p 69)
A situaccedilatildeo apresentada e analisada exemplifica o ensino e a aprendizagem da liacutengua por
meio dos gecircneros discursivos desde a Educaccedilatildeo Infantil em que as crianccedilas de forma interativa e
dialoacutegica atuam ativamente nesse processo aprendem se desenvolvem e se humanizam
243
CONCLUSAtildeO
Considero que natildeo haacute haacutebito a ser formado nem gosto a ser criado nem prazer a
ser desenvolvido ou despertado nas praacuteticas das leituras Haacute necessidades
provocadas pelas circunstacircncias criadas pelas relaccedilotildees entre os homens
ancoradas no conhecimento que tem o leitor sobre o proacuteprio conhecimento
sobre a liacutengua e sobre as operaccedilotildees que estabelecem a relaccedilatildeo grafo-semacircntica
entre o leitor e o escrito (ARENA 2003 p 60)
Formar leitores e re-criadores de textos na Educaccedilatildeo Infantil se constitui numa
preocupaccedilatildeo sempre atual que envolve pesquisadores professores e pais Inuacutemeros satildeo os
aspectos que provocam a reflexatildeo sobre o processo de apropriaccedilatildeo da linguagem escrita e sobre a
relaccedilatildeo com os espaccedilos escolares as praacuteticas pedagoacutegicas e as especificidades do ensinar e do
aprender na pequena infacircncia
Ao relevar esses aspectos surgem vaacuterias indagaccedilotildees Como iniciar a inserccedilatildeo da crianccedila
na cultura escrita Como criar a necessidade de ler e de escrever Que atividades satildeo adequadas
para promover a formaccedilatildeo da crianccedila interessada pelos textos Como trabalhar de modo a
respeitar o momento de desenvolvimento em que a crianccedila se encontra sem negligenciar a criaccedilatildeo
de novas necessidades tarefa preciacutepua dos professores Como caracterizar o trabalho com a
leitura e a escrita na Educaccedilatildeo Infantil de modo a superar a visatildeo simplista do processo de
apropriaccedilatildeo da linguagem escrita
Na introduccedilatildeo anunciei que estas questotildees orientariam este trabalho de pesquisa na
tentativa de compreender o que eacute formar o leitor e o re-criador de textos na pequena infacircncia sem
com isso valorizar a alfabetizaccedilatildeo precoce com a aceleraccedilatildeo da escolarizaccedilatildeo mas ao contraacuterio
compreender como a crianccedila pode inserir-se e participar da cultura escrita de forma ativa
dinacircmica e dialoacutegica mesmo natildeo sendo convencionalmente alfabetizada e ainda respeitando as
regularidades do seu desenvolvimento Com essa intenccedilatildeo busquei compreender o processo de
apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da leitura e da escrita como um processo discursivo interativo para a
humanizaccedilatildeo por meio dos gecircneros discursivos Procurei redimensionar o ensino e a
aprendizagem da leitura e da escrita na Educaccedilatildeo infantil por compreender que a crianccedila desde
pequena eacute capaz de aprender eacute sujeito de suas aprendizagens Nesse contexto a leitura e a escrita
natildeo satildeo consideradas tarefas eminentemente escolares apesar de a escola ser o espaccedilo em que
comumente essas aprendizagens sejam ensinadas de forma mais sistematizada e frequente Nesse
244
percurso busquei tambeacutem compreender como as crianccedilas leem e escrevem os gecircneros
discursivos que relaccedilotildees elas estabelecem com os seus elementos constitutivos e de que forma o
trabalho pedagoacutegico intencionalmente planejado e dialoacutegico pode contribuir para na formaccedilatildeo
leitora e re-criadora de textos
Para tanto trouxe no capiacutetulo I a opccedilatildeo metodoloacutegica que direcionou o trabalho de
pesquisa ndash pesquisa-accedilatildeo ndash os procedimentos de pesquisa os recursos utilizados na tentativa de
compreender o meu objeto de pesquisa e ultrapassar a pseudoconcreticidade em busca de uma
proximidade com a sua essecircncia Nesse capiacutetulo busco traccedilar natildeo somente o percurso a ser
realizado como pesquisadora mas tambeacutem como sujeito participante da pesquisa como
professora dos sujeitos crianccedilas Nesse momento descrevo a trajetoacuteria que seria percorrida e as
propostas educativas que orientariam o processo inicial de apropriaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo da leitura e
da escrita na pequena infacircncia Esse periacuteodo foi revelador de grandes esforccedilos devido ao
aprofundamento teoacuterico que exigia uma articulaccedilatildeo com a minha praacutetica sustentando-a Alcanccedilar
apropriaccedilotildees mais aprofundadas sobre a Teoria Histoacuterico-Cultural sobre o universo bakhtiniano
e sobre a Pedagogia Freinet natildeo foi (e natildeo eacute) tarefa simples porque requereu coerecircncia para se
pensar em aproximaccedilotildees entre essas vertentes e o movimento reflexivo de minha parte a cada
etapa do trabalho docente proposto Contudo isso se converteu em um desafio para mim e dado
o meu envolvimento e interesse nesse fazer gradativamente esse desafio se tornou uma atividade
(LEONTIEV 1988)
Desenvolvi a pesquisa em uma escola que natildeo tinha como proposta pedagoacutegica a
Pedagogia Freinet e apesar de ter obtido todo o apoio da Direccedilatildeo para a realizaccedilatildeo do meu fazer
pedagoacutegico e da minha investigaccedilatildeo cientiacutefica encontrei alguns entraves nesse processo Um
deles corresponde agrave organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo que natildeo era compartilhada por outra
professora que ocupava a mesma sala por exemplo A sala em que a maioria das situaccedilotildees de
leitura e de escrita descritas neste trabalho ocorreu era ocupada no mesmo periacuteodo por outra
professora que natildeo compactuava com essa organizaccedilatildeo Desse modo todos os dias era preciso
organizar a sala para que as minhas praacuteticas se efetivassem ndash disposiccedilatildeo dos moacuteveis dos
materiais ateliers ndash e voltaacute-las a organizaccedilatildeo original para que outra professora pudesse tambeacutem
utilizaacute-la em seguida Devido a isso o tempo era algo que exigia tambeacutem uma organizaccedilatildeo pelo
motivo jaacute exposto e porque muitas vezes as tarefas que se tornavam atividades para as crianccedilas
eram interrompidas porque tiacutenhamos que dispor de outro espaccedilo para dar continuidade ao que
245
havia sido iniciado Se por um lado isso se mostrou como um entrave a ser superado por outro
lado exigiu das crianccedilas e de mim maior flexibilidade e estrateacutegias para organizar o espaccedilo e
maior autonomia das crianccedilas para gerirem o tempo
No capiacutetulo II explicitei quais os conceitos que as professoras das crianccedilas nos quatro
anos anteriores da pesquisa desde a turma do Berccedilaacuterio ao Infantil I possuem sobre leitura
escrita alfabetizaccedilatildeo gecircneros discursivos e de que forma esses conceitos interferem nas
aprendizagens das crianccedilas Esses conceitos foram investigados porque revelam em seu bojo
outros conceitos como o de crianccedila de ensino e de aprendizagem de desenvolvimento humano
que subsidiam as praacuteticas pedagoacutegicas agraves quais as crianccedilas foram submetidas
No capiacutetulo III me propus a compreender quais os conceitos que as crianccedilas tinham sobre
leitura escrita gecircneros discursivos porque dessa forma eu pretendia organizar o trabalho
pedagoacutegico com os gecircneros e verificar no final desse processo se ocorreram mudanccedilas nesses
conceitos iniciais das crianccedilas quais eram estas mudanccedilas e por que elas ocorreram ou natildeo
Nestes dois capiacutetulos foi possiacutevel refletir sobre as implicaccedilotildees pedagoacutegicas no processo de
ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita das crianccedilas na pequena infacircncia A anaacutelise dos
dados revelou que os conceitos das professoras participantes da pesquisa sobre infacircncia leitura e
escrita estatildeo ajustados ao preparo da crianccedila para o Ensino Fundamental As tarefas propostas
concernentes agrave leitura e agrave escrita satildeo direcionadas para corresponderem supostamente agraves
expectativas da etapa seguinte da Educaccedilatildeo Infantil Haacute uma ecircnfase no ensino do coacutedigo
linguiacutestico desvinculado de um contexto situacional real concreto de uso A codificaccedilatildeo e a
decodificaccedilatildeo se sobrepotildeem agrave produccedilatildeo de significado e de sentido e as propostas em sala de
aula satildeo voltadas ao domiacutenio da relaccedilatildeo grafema-fonema e do traccedilado das letras Desse modo a
expressatildeo dos sujeitos aprendizes a comunicaccedilatildeo de ideias e desejos natildeo satildeo consideradas
fundamentais nesse processo mas relegadas ao segundo plano Disso decorre que a leitura e a
escrita para as professoras participantes se configuram como objetos escolares Haacute
preponderacircncia no ensino do aspecto fiacutesico do signo (ARENA 1990) que reduz em suas praacuteticas
docentes as possibilidades de as crianccedilas conviverem com formas mais elaboradas dessas
atividades
Haacute uma tendecircncia em apresentar para as crianccedilas poucos gecircneros discursivos em geral os
contos de fada por existir uma crenccedila por parte das professoras de que as crianccedilas se interessam
mais por esse gecircnero As professoras conhecem os diferentes gecircneros discursivos seus elementos
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constitutivos e suas especificidades possivelmente com relativa superficialidade o que limita a
sua atuaccedilatildeo pedagoacutegica Nesse contexto os gecircneros discursivos satildeo apenas objetos didaacuteticos
produto que enquadra os tipos relativamente estaacuteveis de enunciados (Bakhtin 2003) numa
perspectiva normativa e desse modo natildeo emergem como instrumentos de comunicaccedilatildeo de
interlocuccedilatildeo entre as pessoas
Pode-se constatar que os conceitos os discursos e as praacuteticas educativas das professoras
interferem diretamente nos conceitos dos sujeitos crianccedilas e nas relaccedilotildees que elas estabelecem
com a leitura e com a escrita Essa afirmaccedilatildeo eacute percebida pela anaacutelise dos dados no iniacutecio da
pesquisa antes de as crianccedilas participarem de um trabalho pedagoacutegico intencional dinacircmico e
interativo com os gecircneros discursivos Haacute um distanciamento entre a praacutetica do ler e do escrever
na escola e uma praacutetica do ler e do escrever como objeto da cultura
Um elemento que me surpreendeu durante a anaacutelise dos dados foi constatar que os
sujeitos da pesquisa ndash por vivenciarem praacuteticas artificiais do ensino do ato de ler e do ato de
escrever ndash natildeo atribuem agrave escola a tarefa de ensinaacute-las a fazer isso mas agrave proacutepria famiacutelia que
assume esse papel que a escola natildeo consegue realizar como foi verificado pelos discursos nas
entrevistas Pais avoacutes irmatildeos ou outros familiares na expectativa de ajudarem as suas crianccedilas a
aprenderem a ler e a escrever se dedicam a essa funccedilatildeo mediando situaccedilotildees de leitura e de
escrita em casa Nessas condiccedilotildees a escola natildeo apresenta o ler e o escrever como elemento do
jogo do interesse da crianccedila como acontece nas situaccedilotildees de leitura e de escrita vivenciadas em
casa ou na rua (CRUVINEL 2010) Os textos quando abordados pelas professoras natildeo surgem
como elementos de comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo de expressatildeo humana mas como recursos
didaacuteticos com um fim em si mesmos A escola por aderir a essas praacuteticas teacutecnicas do ler e do
escrever acaba por natildeo desempenhar uma funccedilatildeo a qual se julga de sua responsabilidade ou seja
natildeo garante que as crianccedilas se apropriem da leitura e da escrita e nem oferece nessas condiccedilotildees
as possibilidades para que isso aconteccedila
Apesar de algumas crianccedilas terem afirmado no iniacutecio da pesquisa que jaacute sabiam ler ndash
supostamente do ponto de vista da escola ndash verificou-se que somente o domiacutenio de um
mecanismo natildeo garante que elas o soubessem de fato porque esse domiacutenio natildeo permite que
objetivem essa atividade nas relaccedilotildees sociais em ambientes extra-escolares e em diferentes
situaccedilotildees que se faccedilam necessaacuterias
247
Nos capiacutetulos IV e V pus em discussatildeo o que eacute ser leitor e re-criador de textos na
Educaccedilatildeo Infantil e como a crianccedila assume esses estatutos Apresentei situaccedilotildees de leitura e de
escrita dos gecircneros discursivos ndash carta relatos de vida e notiacutecia de jornal ndash e por meio da minha
accedilatildeo pedagoacutegica intencional e planejada destaquei as relaccedilotildees que as crianccedilas estabelecem com
os elementos dos gecircneros discursivos como leem e criam textos e desse modo como elas
iniciam a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita
No iniacutecio do processo as crianccedilas assinalavam por seus discursos e atitudes a
interferecircncia e a reproduccedilatildeo desses conceitos advindos das condiccedilotildees de vida e de educaccedilatildeo das
quais participavam Entretanto ao vivenciarem propostas de leitura e de escrita de gecircneros
discursivos planejadas intencionalmente de modo a priorizar a interlocuccedilatildeo assumem o papel de
sujeito e natildeo de objeto desse processo Essas consideraccedilotildees podem ser constatadas pelo relato das
observaccedilotildees feitas durante as propostas de leitura e de escrita de gecircneros discursivos e pela
entrevista no final do trabalho pedagoacutegico
Conforme passavam a participar de situaccedilotildees de leitura e de escrita cada vez mais
dialoacutegicas reflexivas que privilegiam a contrapalavra do outro se sentiam motivadas a se
expressar por meio da escrita e compreendiam que essa eacute uma das formas pelas quais eacute possiacutevel
se expressar natildeo a uacutenica porque tambeacutem experimentavam concomitantemente a expressatildeo por
meio de outras linguagens como a danccedila a muacutesica a dramatizaccedilatildeo a pintura a modelagem Com
isso revelava-se com essas propostas a intenccedilatildeo de formar pessoas capazes de utilizar as mais
diferentes formas de conhecer e de produzir saberes criados historicamente pela humanidade
Esse entendimento me fez refletir como a Educaccedilatildeo Infantil tem organizado o seu
curriacuteculo e como o ensino da liacutengua se configura nas praacuteticas docentes no universo da pequena
infacircncia Desse modo propus um trabalho pedagoacutegico para a apropriaccedilatildeo da leitura e da escrita
com o propoacutesito de criar nas crianccedilas o desejo de expressatildeo e para isso intentei desenvolver com
elas situaccedilotildees de leitura e de escrita que permitissem a ampliaccedilatildeo de seus conhecimentos que
intensificassem suas relaccedilotildees com as pessoas com os objetos da cultura e com o entorno e que
valorizassem a sua capacidade expressiva como princiacutepio de um trabalho de ensino e de
aprendizagem efetivamente desenvolvente (DAVIDOV 1988)
Ao trabalhar as possibilidades expressivas da crianccedila pretendia interferir positivamente
sobre o processo de desenvolvimento das capacidades de leitura e de escrita Por essa razatildeo
organizei os tempos e os espaccedilos em que as situaccedilotildees de leitura e de escrita ocorreram e
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estabeleci uma relaccedilatildeo dinacircmica e dialoacutegica com as crianccedilas provocando-as a elaborarem
hipoacuteteses a pensarem sobre a escrita a acionarem sua curiosidade seus ldquoconhecimentos
imprecisosrdquo (ZAPOROacuteSHETZ 1997) que mais tarde por meio do diaacutelogo e na confrontaccedilatildeo
com os conhecimentos precisos apresentados pela professora no caso eu mesma e por outros
adultos e crianccedilas mais avanccediladas esses conhecimentos tambeacutem se tornaram precisos
Pela anaacutelise dos dados eacute possiacutevel perceber meu fundamental papel como mediadora no
processo de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita uma vez que criei as mediaccedilotildees e fiz
a mediaccedilatildeo de situaccedilotildees de leitura e de escrita dos gecircneros discursivos desafiando as crianccedilas a
pensarem sobre a escrita e o seu funcionamento sobre os elementos que compotildeem os gecircneros e
principalmente a fazer uso da leitura e da escrita como um instrumento de comunicaccedilatildeo de
expressatildeo e de participaccedilatildeo numa sociedade que lecirc e escreve Nessa perspectiva as crianccedilas
tinham vez e voz em todas as etapas do trabalho que de acordo com os pressupostos teoacutericos
assumidos por mim nesta pesquisa se deram dentro de um ensino cooperativo (FREINET 1973
1974 1976) e colaborativo (VYGOTSKI 1995)
Nesse processo dialoacutegico em que se deu o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita
destaco como participante ativa e tambeacutem sujeito desse processo que todas as accedilotildees educativas
planejadas por mim os diaacutelogos e as relaccedilotildees travadas foram promotoras de novas apropriaccedilotildees
como professora e como pesquisadora colaborando com meu processo de humanizaccedilatildeo Como
docente me impulsionava constantemente a perceber que aliar teoria e praacutetica eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria para se garantir aprendizagens efetivas das crianccedilas porque amplia as possibilidades
de trabalho em busca de um ensino potencializador E como pesquisadora a geraccedilatildeo de novas
duacutevidas reflexotildees e aprofundamento teoacuterico orientaram outras e maiores apropriaccedilotildees Enfatizo
nesse processo a atuaccedilatildeo do meu orientador que por meio de sua mediaccedilatildeo contribuiu
intensamente para a apropriaccedilatildeo dos referenciais teoacutericos assumidos neste trabalho da
problematizaccedilatildeo e reflexatildeo natildeo somente das minhas accedilotildees educativas mas da minha formaccedilatildeo
como pesquisadora
Os dados indicam que as crianccedilas natildeo conheciam muitos gecircneros discursivos e quando
eram apresentados se constituiacuteam como um conjunto de propriedades formais isolado da esfera
de accedilatildeo Os gecircneros nessas condiccedilotildees eram apresentados como objetos didaacuteticos e natildeo como
instrumento de comunicaccedilatildeo o que contradiz os pressupostos teoacutericos defendidos neste trabalho
de que os gecircneros discursivos requerem que sejam vistos na sua funccedilatildeo de interaccedilatildeo porque satildeo a