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Page 1: Imigrantes Ingleses em Santos

RONALDOABREUVAIO

DAREDAÇÃO

“Você já bebeu a águadaBiquinha emSãoVicente?”.A pergunta, que na verdade surgiu na entrevistacomo uma resposta, resume muita coisa na vida dainglesa Isa Mignon Thomas, de 88 anos. A água daBiquinhaéosímbolodoquefezela,omaridoeo filho,Robert George Thomas, retornarem ao Brasil emmeados dos anos 60, para nunca mais deixá-lo. Emesmoque tivessemumabolade cristal e soubessemque beber a água da Biquinha, no futuro, ofereceriaumcerto riscoà saúde, jáera tardedemaisparavoltarde vez à terra natal. “O Brasil já pareciamais a nossacaradoqueaInglaterra”, resume.Uma cara cujas feições podem ser descritas por

uma justaposição de histórias que Robert, ou Bob,recorda de seu pai, falecido em 1989. “Fazia 40 anosque ele não voltavapara lá. Então ele foi, de surpresa.Bateu na porta na hora do almoço. Os parentesabriram, estavam comendo. E continuaram comen-do:meupai ficouesperandonasala.Repare: elesnãose viam há 40 anos”, desabafa. Em compensação,quando a família voltou da aventura de dois anos emseu país de origem, um vizinho brasileiro foi bater àsuaporta perguntando seprecisavamdealgoe ofere-ceudividircomelesasuaprópriarefeição.Esses movimentos da vida só aconteceram por

causa da guerra. O marido de Isa, Eric GeorgeWilliamThomas, serviu no Stars in Battledress, cor-pode animação dos soldados britânicos, que se apre-sentava nas bases aliadas pela Inglaterra. Eric canta-va, dançava, interpretava.Quando tudo acabou, ele eoutros milhares de combatentes voltaram para suascasas. A de Isa e Eric era na cidade de Plymouth, nacostasuldopaís.Encontraram-natotalmentedestruí-dapeloseverobombardeioalemão.Sem trabalho ou perspectiva – Isa chegou amorar

nacasados sogrosdurantea guerra–, aduradecisão:imigrar.O lugar foi escolhidoprincipalmenteporqueo filho Bob, então bem pequeno, sofria de umadoença pulmonar. Na época, o aquecimento nascasas inglesas era racionado.Eomeninoprecisavadecalor. Então, quando Isa se lembrou de uma amigacasada com um brasileiro e morando em um paístropical, com a temperatura certa para Bob, o Brasillhepareceuaescolhamaiscorretaparasuasvidas.

‘BRAZILIANNUT’

Primeiro, a família foi para Maringá, onde omaridoda amiga de Isa comprara um lote de terra. Lá,tiveram que se acostumar com a vida na roça, queincluía comida em fogão à lenha e água de poço –muito diferente daquilo a que Isa estava acostumadaemseupaís,pormaisduraquetivessesidoaguerra.Afalta de estrutura acabou levando a família para SãoPaulo, onde o pai começou a dar aulas de inglês, naescola Yázigi. Em 1958, recebeu o convite para abriruma filial emSantos. Ele aceitou e osThomas vierampara cá.As coisas iambem,mas às vezes é impossívelnão olhar para trás. “Houve o golpe militar, nós nossentimos inseguros. Havia um sentimento de ‘váembora,estrangeiro”, relembraIsa.A família retornou à Inglaterra em 1964, com os

Beatles no auge da fama. Ótimo para Bob, então nofinal da adolescência.Comosprimos, foi aumshowdos Fab Four (quatro fabulosos), como eram cha-mados. Foi, mas não viu os Beatles: eles simples-mente não apareceram. “Estavam fazendo váriosshowspordia enão conseguiramchegarporproble-mas de tráfego, disseram. Foi uma decepção geral.Mas vimos os Herman’s Hermits, que tambémestavamagendados”.Por sua idade, 18 anos, Bob talvez tenha sido o

membroda família quemais sentiu e viveu o retornoà Inglaterra – e nem sempre de maneira agradável.“NoBrasil, ninguémse importava seeuerabrasileiroou não. Lá, apesar de eu ser inglês, brincavam,chamavam de brazilian nut (castanha do Pará)”.Mas não foram essas diferenças que trouxeram afamíliadevoltaaoBrasil.Foramasgreves,o trabalhoescasso e os invernos rigorosos – “já estávamos acos-tumados ao sol”. Assim, ficou fácil para a água daBiquinha, em São Vicente, cobrar o seu quinhão nasaudadedosThomas.De volta a Santos, na segundametade dos anos 60,

o pai, Eric, fundou a Thomas English School. Ocentro de idiomas existe desde então. Hoje, fica naAvenida Almirante Cochrane, 150, e é coordenadopelo filho Bob. Já Isa trabalhou na extinta EscolaAmericana de Santos durante 30 anos, onde foi atédiretora. “O Brasil é um país fabuloso”, comenta ela.“Comgente domundo inteiro vivendo lado a lado”. Elado a lado ela aprendeu a aliar o arroz com feijão dodia adia ao chádas cinco, quena verdade é às quatro.“Éochádaclassemédia.Àscinco,éodaaristocracia”.Comotambém‘inventou’nataisanglo-brasileiros emfamília. A divisão é assim: a comemoração principal,comtrocadepresentes, énodia24dedezembro (lá, é25). Mas os quitutes faz questão de que sejam bembritânicos. As vedetes dessas noites de família eamigosreunidos sãooChristmasPudding (pudimdeNatal) e o Christmas Cake (bolo de Natal). No restodo ano, divide-se em admirar o jeito do humor brasi-leiro, muito mais escrachado do que o fleumáticoinglês, e a reprovar a ‘administração’ do País. Mas écomo a própria Isa diz, “o bem sempre vem com umpouco de mal” – há que se conformar. “Eu aprendimuitoaqui.OBrasil foiumbomprofessor”.

OPUDIMEOBOLODENATALOsdois sãobemparecidos. Adiferençaéqueopudimé feito novapor eobolo, no forno.Masosingredientes sãopraticamenteidênticos: nãopodem faltar aspassasdevários tipos, as cerejas, asnozesouamêndoas, e outras frutascristalizadas.A tradição tambémrezaqueopudimdeve serpreparadocomantecedência, paracurtirmelhor. Isa Thomas, porexemplo, já começaemsetembro.

LONDRESAcidade, capital da Inglaterra, temsuasorigens aindanaépocaemqueo ImpérioRomanomandavanaBritânia.Onome, Londres, derivado latim, londinium–quequerdizero ‘pontomais longe’ – umaalusãoaos confins do império. A famosaPontedeLondresdata aindadesseperíodo–eraoúnico canal decomunicaçãoentreasduasmargensdoRioTâmisa.

OABRAÇOEOBEIJOAgritaria queElizabethSnedkerpresenciounonavio, quandoestavapróximoaSantos, fez-lhe temerpeloqueaconteceria. Logo, porém,aenfermeira inglesaque saiudosarredoresdeLiverpoolacompanhandoomaridoemuma

missãocomcomeço,meioefim–masquejamaisvoltariaaoseupaís–percebeuqueabalbúrdianãoerahostil:osbrasileirosqueriammostrar-lhesumurubunocéu.SortedeElizabethedomarido,FrankSnedker,quenuncatinhamvistoumaavecomoaquelaantes.Era1968.FrankchegavaaSantosparatrabalharnaorganizaçãoTheMissiontotheSeafares(AMissãoaosMarinheiros),deamparoaosembarcados, ligadaàIgrejaAnglicana.Apartirde1981,elesetornoutambémoreverendodaigrejaemSantos,atésuamorte,em2001.Semfilhos,mesmodepoisdisso,ecomfamiliaresnaInglaterra,ElizabethpermaneceunoBrasil.Masocomeçonãofoi fácil.“Nãohaviasupermercados,arefrigeraçãoeraruim:acarneficavapendurada,cheiademoscasemcima.Umaamigaacaboucomprandoacarneparamimedisse‘passa limão’,nãotemproblema”.Dacarneaopeixe.Depoisdeestudarafundoapalavracamarõesnodicionário,chegounomercadoepediu200gramasde‘caminhões’.Ocostume,porém,ésempreumaquestãodetempo.Paraela, foiassimcomafeijoada–queaconquistouaospoucos.Masoqueaconquistoudecarafoio jeitodobrasileirodecumprimentar.“NaInglaterra,sósedãoasmãos.Agora,oabraçoeobeijo...éalgoqueàsvezesvocêprecisa”.Elizabethestácom81anos.Hoje,asúnicasreferênciasexplicitamenteinglesasemseuapartamento,naPontadaPraia,sãoasrevistassobrearealezabritânica,trazidasporamigos,eocapachodaportadeentrada,ondeestáescrito‘wellcome’.Deresto,atéumpilãogigante,bemmineiro,elatemnasaladeestar.“Quandoponhoachavenaporta,voltandodaInglaterra,émaravilhoso”.Portudoisso,nãohesita.“Souinglesaesantista”.

Esses imigrantes se identificamcomo jeito deobrasileiro receber e tratar as pessoas noPaís. E não trocam issopor nada

Longedo frio,mascomochá

Abandeira sobaqual estão IsaeThomasnãoéada Inglaterra (no topodestapágina,àdireita),masadoReinoUnido, conhecida comoUnion Jack. OReinoUnidodaGrã-BretanhaeIrlandadoNorte éumaunidadepolítico-administrativaquecongregaquatronações: aEscócia, a IrlandadoNorte, oPaís deGales ea Inglaterra.

ALEXSANDERFERRAZ

Inglaterra (England)Capital:Londres

População:62.698.362 (2010)*

LínguaOficial: Inglês*

PIB:US$2,260 trilhões*

RendaperCapita:US$36.089,60 (2011)*

ÍndicedeDesenvolvimentoHumano(IDH):0,863 (2011)*

Acolônia:dezpessoas nativasemSantoséa estimativa do reverendoda IgrejaAnglicana

*OSDADOSSEREFEREMAOREINOUNIDO,QUE INCLUI, AINDA,AESCÓCIA,OPAÍSDEGALESEA IRLANDADONORTE

CONTATOINGLÊSDepiratas a senhoresdamodernidade, em três séculosmudouradicalmenteo tipode frequência inglesa emsolobrasileiro.Duranteboaparte doBrasil Colônia, eram temidos comoexímiosbucaneiros (caçadores). No século 19, emplenaRevolução Industrial,iniciadanaprópria terrada rainha, foramresponsáveis por introduziro suporte técnico e logísticonecessárioaumPaís queprecisavacrescer,masquenãopossuía infraestrutura alguma.Assim, emSantos, nãoépor acaso, queaantigaEstaçãodoValongo tenhaumestilo arquitetônicoquecontemple telhados inclinados,paraaneveescorregar, enemquea companhia responsável porsuaconstrução, e queoperavaa linha, se chamavaSãoPauloRailway.Tampoucoé obradoacasoqueos santistas, de 1873a 1973,acertassemahorapelo semprepontual relógio da torredaantigaWesternTelegraphCompany, noLargodaSenadorVergueiro, noCais, ouquehaja uma IgrejaAnglicana, comarquitetura típica,no JoséMenino, ou, ainda, queumclubedeSantos seja chamado ‘dosIngleses’. E oquedizerdeumaempresa concessionária que respondiapelonomedeCity ofSantos Improvements&Company? FundadaemLondres, deu a luz, a água,o gáseo transporte santistas até 1967.

“Nuncapenseiemvoltar.

Tenhomuitosamigos aqui.

E não suportariamais o clima lá(Inglaterra),chovemuito”

ElizabethSnedker,imigrante inglesa

NIRLEYSENA

A-8 Local ATRIBUNA Segunda-feira 19www.atribuna.com.br novembro de2012