8/7/2019 Jean Baudrillard - Sombra das maiorias silenciosas
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J E A N B A U D R IL L A R D
S O M B R A D A S M A IO R IA SS I L E N C I O S A S O F IM D O S O C I A L E O S U R G IM E N T O D A S
M A S S A S
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SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS
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Autor: Jean Baudrillard
Ttulo: sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas
Ano da Publicao Original: 1978
Ano da Digitalizao: 2005
Esta obra foi formatada, revisada e liberta das excludentes convenes mercantis pelo Coletivo Sabotagem. Ela
no possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, alm de ser liberada a sua
distribuio, preservando seu contedo e o nome do autor.
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nesse sentido que a massa caracterstica da nossa modernidade, na qualidade de
fenmeno altamente implosivo, irredutvel a qualquer prtica e teoria tradicionais, talvez
mesmo irredutvel a qualquer prtica e a qualquer teoria simplesmente.
Na representao imaginria, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e
a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de
social e de energia social, hoje referente mudo, amanh protagonista da histria, quando elastomaro a palavra e deixaro de ser a maioria silenciosa - ora, justamente as massas no
tm histria a escrever, nem passado, nem futuro, elas no tm energias virtuais para liberar,
nem desejo a realizar: sua fora atual, toda ela est aqui, e a do seu silncio. Fora de
absoro e de neutralizao, desde j superior a todas as que se exercem sobre elas. Fora de
inrcia especifica, cuja eficcia diferente da de todos os esquemas de produo, de
irradiao e de expanso sobre os quais funciona nosso imaginrio, incluindo a vontade de
destru-los. Figura inaceitvel e ininteligvel da imploso (trata-se ainda de um processo?),
base de todos os nossos sistemas de significaes e contra a qual eles se armam com todas as
suas resistncias, ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescncia de
todas as significaes e com uma dissipao de todos os significantes:
O vcuo social atravessado por objetos intersticiais e acumulaes cristalinas que
rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal a massa, um conjunto no vcuo de
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partculas individuais, de resduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja
densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para
finalmente desabar sob seu prprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.
Exatamente o inverso, portanto, de uma acepo sociolgica. A sociologia s podedescrever a expanso do social e suas peripcias. Ela vive apenas da hiptese positiva e
definitiva do social. A assimilao, a imploso do social lhe escapam. A hiptese da morte do
social tambm a da sua prpria morte.
O termo massa no um conceito. Leitmotiv da demagogia poltica, uma noo
fluida, viscosa, lumpen-analtica. Uma boa sociologia procurar abarc-la em categorias
mais finas: scio-profissionais, de classe, de status cultural, etc. Erro: vagando em torno
dessas noes fluidas e acrticas (como outrora a de mana) que se pode ir alm dasociologia critica inteligente. Alm do que, retrospectivamente, se poder observar que os
prprios conceitos de classe, de relao social, de poder, de status, todos.Estes
conceitos muito claros que fazem a glria das cincias legtimas, tambm nunca foram mais
do que noes confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de
preservar um determinado cdigo de anlise.
Querer especificar o termo massa justamente um contra-senso - procurar um
sentido no que no o tem. Diz-se: a massa de trabalhadores. Mas a massa nunca a de
trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social. As massas camponesas de
outrora no eram exatamente massas: s se comportam como massa aqueles que esto
liberados de suas obrigaes simblicas, anulados (presos nas infinitas redes) e
destinados a serem apenas o inumervel terminal dos mesmos modelos, que no chegam a
integr-los e que finalmente s os apresentam como resduos estatsticos. A massa sem
atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referncia. A est sua definio, ou sua
indefinio radical. Ela no tem realidade sociolgica. Ela no tem nada a ver com algumapopulao real, com algum corpo, com algum agregado social especfico. Qualquer tentativa
de qualific-la somente um esforo para transferi-Ia para a sociologia e arranc-la dessa
indistino que no sequer a da equivalncia (soma ilimitada de indivduos equivalentes: 1
+ 1 + 1 + 1 - tal a definio sociolgica), mas a do neutro, isto , nem um nem outro (ne-
uter).
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Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa a causa desse vcuo e da
fora de desagregao que ela exerce sobre todos os sistemas, que vivem da disjuno e da
distino dos plos (dois, ou mltiplos, nos sistemas mais complexos). o que nela produz a
impossibilidade de circulao de sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os
tomos no vcuo. tambm o que produz a impossibilidade, para a massa, de ser alienada,
visto que nela nem um nem ooutro existem mais.
Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem histria. Admirvel
conjuno dos que nada tm a dizer e das massas que no falam. Nada que contm todos os
discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas simulao por precipitao de
todos os referenciais perdidos. Caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos que
no admitiu, da histria impossvel, dos sistemas de representao inencontrveis, a massa o
que resta quando se esqueceu tudo do social.
Quanto impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor exemplo o de
Deus. As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a Idia. Elas jamais foram
atingidas pela Idia de Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angstias do
pecado e da salvao pessoal. O que elas conservaram foi o fascnio dos mrtires e dos
santos, do juzo final, da dana dos mortos, foi o sortilgio, foi o espetculo e o cerimonial da
Igreja, a imanncia do ritual - contra a transcendncia da Idia. Foram pags e permanecerampags sua maneira, jamais freqentadas pela Instncia Suprema, mas vivendo das miudezas
das imagens, da superstio e do diabo. Prticas degradadas em relao ao compromisso
espiritual da f? Pode ser. Esta a sua maneira, atravs da banalidade dos rituais e dos
simulacros profanos, de minar o imperativo categrico da moral e da f, o imperativo sublime
do sentido, que elas repeliram. No porque no pudessem alcanar as luzes sublimes da
religio: elas as ignoraram. No recusam morrer por uma f, por uma causa, por um dolo. O
que elas recusam a transcendncia, a interdio, a diferena, a espera, a ascese, que
produzem o sublime triunfo da religio. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre
a terra, na imanncia pag das imagens, no espetculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio
fantstico do princpio religioso. As massas absorveram a religio na prtica sortlega e
espetacular que adotaram.
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Todos os grandes esquemas da razo sofreram o mesmo destino. Eles s descreveram
sua trajetria, s seguiram o curso de sua histria no diminuto topo da camada social
detentora do sentido (e em particular do sentido social), mas no essencial somente penetraram
nas massas ao preo de um desvio, de uma distoro radical. Assim foi com a razo histrica,
a razo poltica, a razo cultural e a razo revolucionria - assim foi com a prpria razo do
social, a mais interessante pois a que parece inerente s massas, e por t-las produzido no
curso de sua evoluo. As massas so o espelho do social? No, elas no refletem o social,
nem se refletem no social - o espelho do social que nelas se despedaa.
A imagem no exata, pois ainda evoca a idia de uma substncia plena, de uma
resistncia opaca. Ora, as massas funcionam mais como um gigantesco buraco negro que
inflete, submete e distorce inexoravelmente todas as energias e radiaes luminosas que se
aproximam. Esfera implosiva, em que a curvatura dos espaos se acelera, em que todas as
dimenses se encurvam sobre si mesmas e involuem at se anularem, deixando em seu lugar
e espao somente uma esfera de absoro potencial.
O abismo do sentido
O mesmo ocorre com a informao.
Seja qual for seu contedo, poltico, pedaggico, cultural, seu propsito sempre
filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. Imperativo de produo de sentido que se
traduz pelo imperativo incessantemente renovado de moralizao da informao: melhor
informar, melhor socializar, elevar o nvel cultural das massas, etc. Bobagens: as massas
resistem escandalosamente a esse imperativo da comunicao racional. O que se lhes d
sentido e elas querem espetculo. Nenhuma fora pde convert-las seriedade dos
contedos, nem mesmo seriedade do cdigo. O que se lhes d so mensagens, elas queremapenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de esteretipos, idolatram todos os contedos
desde que eles se transformem numa seqncia espetacular. O que elas rejeitam a
dialtica do sentido. E de nada adianta alegar que elas so mistificadas. Hiptese sempre
hipcrita que permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: as massas
aspirariam espontaneamente s luzes naturais da razo. Isso para conjurar o inverso, ou seja,
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que em plena liberdade que as massas opem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua
vontade de espetculo. Temem essa transparncia e essa vontade poltica como temem a
morte. Elas farejam o terror simplificador que est atrs da hegemonia ideal do sentido e
reagem sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados a uma nica dimenso
irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na
fascinao: o espetacular.
Uma vez mais, no se trata de mistificao: trata-se de sua exigncia prpria, de uma
contra-estratgia expressa e positiva - trabalho de absoro e de aniquilamento da cultura, do
saber, do poder, do social. Trabalho imemorial, mas que hoje assume toda a sua envergadura.
Um antagonismo profundo, que obriga a uma inverso de todos os cenrios aceitos: o sentido
no seria mais a linha de fora ideal de nossas sociedades, sendo o que escapa apenas um
resduo destinado a ser reabsorvido qualquer dia - ao contrrio, o sentido que somente um
acidente ambguo e sem prolongamento, um efeito devido convergncia ideal de um espao
perspectivo num momento dado (a Histria, o Poder, etc), mas que na realidade nunca disse
respeito seno a uma frao mnima e a uma camada superficial de nossas sociedades. E
isso tambm verdadeiro para os indivduos: ns somos apenas episodicamente condutores
de sentido, no essencial e em profundidade ns nos comportamos como massa, vivendo a
maior parte do tempo num modo pnico ou aleatrio, aqum ou alm do sentido. Logo, tudo
muda com essa hiptese inversa.
Vejamos um exemplo entre mil desse menosprezo pelo sentido, folclore das
passividades silenciosas. Na noite da extradio de Klaus Croissant, a televiso transmitia um
jogo de futebol em que a Frana disputava sua classificao para a Copa do Mundo. Algumas
centenas de pessoas se manifestam diante da Sant, alguns advogados correm na noite, vinte
milhes de pessoas passam sua noite diante da televiso. Quando a Frana ganhou, exploso
de alegria popular. Horror e indignao dos espritos esclarecidos diante dessa escandalosa
indiferena. Le Monde: 21 horas. Nesta hora o advogado alemo j foi retirado da priso da
Sant. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol. Melodrama da indignao.1
1 Que se assemelha amargura da extrema-esquerda, e a seu cinismo inteligente em relao maioriasilenciosa. Charlie-Hebdo, por exemplo: A maioria silenciosa no liga para nada, desde que noite ronrone emsuas pantufas... A maioria silenciosa, no se engane, se fecha sua boca porque ao final das contas ela faz a lei.Ela vive bem, come bem, trabalha somente o necessrio. O que ela reivindica aos seus patres serpaternalizada e tranqilizada no que preciso, alm da sua pequena dose inofensiva de imaginria cotidiano.
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Nenhuma nica interrogao sobre o mistrio dessa indiferena. Uma nica razo sempre
invocada: a manipulao das massas pelo poder, sua mistificao pelo futebol. De qualquer
maneira, essa indiferena no deveria existir, ela no tem nada a nos dizer. Em outros termos,
a maioria silenciosa despossuda at de sua indiferena, ela no tem nem mesmo o direito
de que esta lhe seja reconhecida e imputada, necessrio que tambm esta apatia lhe seja
insuflada pelo poder.
Que desprezo atrs dessa interpretao! Mistificadas, as massas no saberiam ter
comportamento prprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade
revolucionria atravs da qual elas vislumbram a racionalidade do seu prprio desejo, isso
sim, mas Deus nos proteja de seu silncio e de sua inrcia. Ora, exatamente essa indiferena
que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia
branca, a uma alienao mgica que sempre desviaria as multides de sua vocao
revolucionria.
Mas, por outro lado, como que ela consegue desvi-las? Com relao a este fato
estranho, pode-se perguntar: por que aps inmeras revolues e um sculo ou dois de
aprendizagem poltica, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de
todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se
encontrar o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhes paraficar passivas? - e no somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa f
e satisfao, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama poltico e
humano? curioso que essa constatao jamais tenha subvertido a anlise, reforando-a, ao
contrrio, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulao, e de uma massa
prostrada num coma ininteligvel. Pois nada disso tudo verdadeiro, e os dois so um
equvoco: o poder no manipula nada e as massas no so nem enganadas nem mistificadas.
O poder est muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fcil, ou seja,
a de assumir a responsabilidade diablica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta
em sua iluso de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferena das
massas sua verdadeira, sua nica prtica, porque no h outro ideal para inventar, no h
nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distoro coletiva e
de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes so propostos.
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O problema das massas no est nisso. Melhor constatar e reconhecer que toda
esperana de revoluo, toda a esperana do social e da mudana social s pde funcionar at
aqui graas a essa escamoteao, a essa contestao fantstica. Como Freud o fez na ordem
psicolgica,2 melhor partir deste resto, deste sedimento cego, deste resduo de sentido, deste
no-analisado e talvez no-analisvel (h uma boa razo para que essa revoluo copernicana
jamais tenha sido tentada no universo poltico - toda a ordem poltica que se arriscaria a
pagar as contas).
Grandeza e decadncia do poltico
O poltico e o social nos parecem inseparveis, constelaes gmeas sob o signo(determinante ou no) do econmico, pelo menos desde a Revoluo Francesa. Mas hoje,
para ns, isso provavelmente s verdade para o seu declnio simultneo. Exemplificando
com Maquiavel, quando o poltico surge da esfera religiosa e eclesial na poca da
Renascena, ele antes de tudo apenas um puro jogo de signos, uma pura estratgia que no
se preocupa com nenhuma verdade social ou histrica, mas, ao contrrio, joga com a
ausncia de verdade (como, mais tarde, a estratgia mundana dos jesutas sobre a ausncia de
Deus). O espao poltico inicialmente da mesma natureza do teatro de intriga da
Renascena, ou do espao perspectivo da pintura, que so inventadas no mesmo momento. A
forma a de um jogo, no de um sistema de representao - semiurgia e estratgia, no
ideologia -, e a sua utilizao depende de virtuosismo e no de verdade (como o jogo sutil e
2 A analogia com Freud cessa nesse ponto, porque seu ato radical resulta numa hiptese, a da represso e doinconsciente, que ainda leva possibilidade, depois amplamente explorada, de produo de sentido, de umareintegrao do desejo e do inconsciente na partitura do sentido. Sinfonia concertante, em que a irredutvelalterao do sentido entra no cenrio bem temperado do desejo, sombra de uma represso que abre para apossibilidade inversa de liberao. De onde o fato de a liberao do desejo ter podido assumir to facilmente olugar da revoluo poltica, acabando por esconder a incapacidade de sentido, ao invs de aprofund-la. Ora, no
se trata de maneira alguma de encontrar uma nova interpretao das massas em termos da economia libidinal(remeter o conformismo ou o fascismo das massas a uma estrutura latente, a um obscuro desejo de poder e derepresso que eventualmente se alimentaria de uma represso primria ou de uma pulso de morte). Esta hoje anica alternativa para a declinante anlise marxista. Mas a mesma, com uma deformao a mais. Outrora seatribula s massas um destino revolucionrio contrariado pela servido sexual (Reich), hoje se lhes atribui umdesejo de alienao e servido, ou ainda uma espcie de microfascismo cotidiano to incompreensvel quantosua virtual pulso de liberao. Ora, no h nem desejo de fascismo e de poder nem desejo de revoluo. ltimaesperana: que as massas tenham um inconsciente ou um desejo, o que permitiria reinvesti-las como suporte ousuposto de sentido. 0 desejo, reinventado em toda parte, no seno o referencial do desespero poltico. E aestratgia do desejo, aps ter sido envolvida no marketing empresarial, hoje se purificou na promoorevolucionria das massas.
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corolrio deste, de Balthazar Gracian em Homme de Cour). O cinismo e a imoralidade da
poltica maquiaveliana esto nisso: no no uso sem escrpulos dos meios com que se o
confundiu na concepo vulgar, mas na desenvoltura com relao aos fins. Pois, Nietzsche o
viu bem, nesse menosprezo por uma verdade social, psicolgica, histrica, nesse exerccio
dos simulacros enquanto tais, que se encontra o mximo de energia poltica, nesse momento
em que o poltico um jogo e ainda no se deu uma razo.
a partir do sculo XVIII, e particularmente depois da Revoluo, que o poltico se
infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de uma referncia social, o social se
apodera dele. No mesmo momento comea a ser representao, seu jogo dominado pelos
mecanismos representativos (o teatro segue um destino paralelo: torna-se um teatro
representativo - o mesmo acontece com o espao perspectivo: de instrumental que era no
incio, torna-se o lugar de inscrio de uma verdade do espao e da representao). A cena
poltica se torna a cena da evocao de um significado fundamental: o povo, a vontade do
povo, etc. Ela no trabalha mais s sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que
obrigada a significar o melhor possvel esse real que ela exprime, intimada a se tornar
transparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boa representao. Mas
durante muito tempo ainda haver um equilbrio entre a esfera prpria do poltico e as foras
que nele se refletem: o social, o histrico e o econmico. Este equilbrio sem dvida
corresponde idade de ouro dos sistemas representativos burgueses (a constitucionalidade: a
Inglaterra do sculo XVIII, os Estados Unidos da Amrica, a Frana das revolues
burguesas, a Europa de 1848).
com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivos que se inaugura
o fim do poltico e de sua energia prpria. Nesse momento comea a hegemonia definitiva do
social e do econmico, e a coao, para o poltico, de ser o espelho, legislativo, institucional,
executivo, do social. A autonomia do poltico inversamente proporcional crescente
hegemonia do social.
O pensamento liberal sempre viveu de uma espcie de dialtica nostlgica entre os
dois, mas o pensamento socialista, o pensamento revolucionrio postula abertamente uma
dissoluo do poltico no fim da histria, na transparncia definitiva do social.
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O social triunfou. Mas a esse nvel de generalizao, de saturao, em que s h o
grau zero do poltico, a esse nvel de referncia absoluta, de onipresena e de difrao em
todos os interstcios do espao fsico e mental, o que se torna o prprio social? o sinal de
seu fim: a energia do social se inverte, sua especificidade se perde, sua qualidade histrica e
sua idealidade desaparecem em benefcio de uma configurao em que no s o poltico se
volatilizou, mas em que o prprio social no tem mais nome. Annimo. A MASSA. AS
MASSAS.
A maioria silenciosa
Enfraquecimento do poltico de uma pura ordenao estratgica a um sistema derepresentao, depois ao cenrio atual de neofigurao, isto , em que o sistema se perpetua
sob os mesmos signos multiplicados mas que no representam mais nada e no tm seu
equivalente numa realidade ou numa substncia social real: no h mais investidura
poltica porque tambm no h mais referente social de definio clssica (um povo, uma
classe, um proletariado, condies objetivas) para atribuir uma fora a signos polticos
eficazes. Simplesmente no h significado social para dar fora a um significante poltico.
O nico referente que ainda funciona o da maioria silenciosa. Todos os sistemasatuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essa substncia flutuante cuja existncia
no mais social mas estatstica, e cujo nico modo de apario o da sondagem. Simulao
no horizonte do social, ou melhor, no horizonte em que o social j desapareceu.
O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referente imaginrio no quer
dizer que ela no existe. Isso quer dizer que no h mais representao possvel. As massas
no so mais um referente porque no tm mais natureza representativa. Elas no se
expressam, so sondadas. Elas no se refletem, so testadas. O referendo (e as mdias so umreferendo perptuo de perguntas/respostas dirigidas) substituiu o referente poltico. Ora,
sondagens, testes, mdias so dispositivos que no dependem mais de uma dimenso
representativa mas simulativa. Eles no visam mais um referente, mas um modelo. A
revoluo aqui total contra os dispositivos da socialidade clssica (de que ainda fazem parte
as eleies, as instituies, as instncias de representao, e mesmo a represso): em tudo
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isso, o sentido social ainda passa de um plo ao outro, numa estrutura dialtica que d lugar a
um jogo poltico e s contradies.
Tudo muda com o dispositivo de simulao. Na dupla sondagem/maioria silenciosa,
por exemplo, no h mais plos nem termos diferenciais, portanto, j no h eletricidade dosocial: ela curto-circuitada pela confuso dos plos, numa circularidade especifica total
(exatamente como acontece com o comando molecular e a substncia que ele informa no
ADN e no cdigo gentico). Esta a forma ideal da simulao: aniquilao dos plos,
circulao orbital de modelos (o que tambm a matriz de qualquer processo implosivo).
Bombardeadas de estmulos, de mensagens e de testes, as massas no so mais do que
um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que s so conhecidos atravs
da anlise do seu espectro luminoso - espectro de radiaes equivalente s estatsticas e ssondagens. Mais exatamente: no mais possvel se tratar de expresso ou de representao,
mas somente de simulao de um social para sempre inexprimvel e inexprimido. Esse o
sentido do seu silncio. Mas esse silncio paradoxal - no um silncio que fala, um
silncio que probe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de
alienao, uma arma absoluta.
Ningum pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta sua vingana. As
massas no so mais uma instncia qual se possa referir como outrora se referia classe ou
ao povo. Isoladas em seu silncio, no so mais sujeito (sobretudo,no da histria), elas no
podem, portanto, ser faladas, articuladas, representadas, nem passar pelo estgio do espelho
poltico e pelo ciclo das identificaes imaginrias. Percebe-se que poder resulta disso: no
sendo sujeito, elas no podem ser alienadas - nem em sua prpria linguagem (elas no tm
uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das esperanas
revolucionrias. Porque estas sempre especularam sobre a possibilidade de as massas, como
da classe proletria, se negarem enquanto tais. Mas a massa no um lugar de negatividadenem de exploso, um lugar de absoro e de imploso.
Inacessvel aos esquemas de libertao, de revoluo e de historicidade, mas seu
modo de defesa, seu modo de restrio. Modelo de simulao e referente imaginrio para uma
classe poltica fantasma que desde j no sabe que espcie de poder exerce sobre ela, a
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massa ao mesmo tempo a morte, o fim desse processo poltico que supostamente a governa.
Na massa o poltico se deteriora como vontade e representao.
Durante muito tempo a estratgia do poder pde parecer se basear na apatia das
massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lgica s caracterstica da fase burocrtica e centralista do poder. E ela que hoje se volta contra ele: a
inrcia que fomentou se tornou o signo de sua prpria morte. por isso que o poder procura
inverter as estratgias: da passividade participao, do silncio palavra. Mas muito tarde.
O limite da massa crtica, o da involuo do social por inrcia, foi transposto.3
Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a existir de forma
social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participao, nas festas, na livre
expresso, etc. preciso conjurar o espectro, preciso que ele diga seu nome. Nadademonstra com mais clareza que hoje o nico problema verdadeiro o silncio da massa, o
silncio da maioria silenciosa.
Todas as energias so consumidas para manter essa massa em emulso dirigida e para
impedi-Ia de cair em sua inrcia pnica e em seu silncio. Como no mais do reino da
vontade nem do da representao, ela cai sob o golpe do diagnstico, da adivinhao pura e
simples - de onde o reino universal da informao e da estatstica: preciso auscult-la, senti-
Ia, retirar-lhe algum orculo. Da o furor de seduo, de solicitude e de solicitao em torno
dela. Da a predio por ressonncia, os efeitos de antecipao e de futuro da multido em
miragens como: O povo francs pensa... A maioria dos alemes reprova... Toda a Inglaterra
vibra com o nascimento do Prncipe..., etc. - espelho que tende a um reconhecimento sempre
cego, sempre ausente.
Da esse bombardeio de signos, que a massa supostamente repercute. Ela interrogada
por ondas convergentes, por estmulos luminosos ou lingsticos, exatamente como as
estrelas distantes ou os ncleos que so bombardeados com partculas num ciclotron. Isso a
informao. No um modo de comunicao nem de sentido, mas um modo de emulso
3 A noo de massa crtica, habitualmente relativa ao processo de exploso nuclear, aqui retomada nosentido de imploso nuclear. Isso a que assistimos no domnio do social e do poltico, com o fenmenoinvolucionrio das massas e das maiorias silenciosas, uma espcie de exploso inversa da fora de inrcia -esta tambm conhece seu ponto de no-retorno.
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incessante, de input-outpute de reaes em cadeia dirigidas, exatamente como nas cmaras
de simulao atmicas. preciso liberar a energia da massa para dela se fazer o social.
Mas este um processo contraditrio, porque a informao e a segurana, sob todas as
suas formas, em vez de intensificar ou de criar a relao social, so ao contrrio processosentrpicos, de modalidades do fim do social.
Acredita-se que se estruturam as massas injetando-lhes informao, acredita-se que se
libera sua energia social cativa fora de informao e de mensagens (a tal ponto que no
mais o enquadramento institucional, mas a quantidade de informao e a taxa de exposio
aos meios de comunicao que hoje medem a socializao). Mas exatamente o contrrio.
Em vez de transformar a massa em energia, a informao sempre produz mais massa. Em vez
de informar como ela pretende, isto , dar forma e estrutura, neutraliza sempre mais o camposocial, cria cada vez mais massa inerte impermevel s instituies clssicas do social, e aos
prprios contedos da informao. fisso das estruturas simblicas pelo social e sua
violncia racional sucede hoje a fisso do prprio social pela violncia irracional dos meios
de comunicao e de informao - o resultado final sendo exatamente a massa atomizada,
nuclearizada, molecularizada -, resultado de dois sculos de socializao acelerada e que a
chega inapelavelmente ao fim.
A massa s massa porque sua energia social j se esfriou. um estoque frio, capaz
de absorver e de neutralizar todas as energias quentes. Ela se assemelha a esses sistemas
semimortos em que se injeta mais energia do que se retira, a essas minas esgotadas que se
mantm em estado de explorao artificial a preo de ouro.
A energia que se dispende para atenuar a baixa tendencial da taxa de investimento
poltico e a fragilidade absoluta do princpio social de realidade, para manter essa situao do
social e impedi-lo de implodir totalmente, essa energia imensa, e o sistema se precipita a.
Na realidade, o mesmo sentido da mercadoria. Antigamente bastava ao capital
produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqncia. Hoje preciso produzir os
consumidores, preciso produzir a prpria demanda e essa produo infinitamente mais
custosa do que a das mercadorias (o social nasceu em grande parte, sobretudo a partir de
1929, desta crise da demanda: a produo da demanda ultrapassa amplamente a produo do
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prprio social).4Assim, durante muito tempo bastou que o poder produzisse sentido (poltico,
ideolgico, cultural, sexual), e a demanda acompanhava, absorvia a oferta e ainda a excedia.
Se faltasse sentido, todos os revolucionrios se ofereciam para produzi-lo mais ainda. Hoje
tudo mudou: o sentido no falta, ele produzido em toda parte, e sempre mais - a demanda
que est declinante. E a produo dessa demanda de sentido que se tornou crucial para o
sistema. Sem essa demanda, sem essa receptividade, sem essa participao mnima no
sentido, o poder s o simulacro vazio e o efeito solitrio de perspectiva. Ora, ai tambm a
produo da demanda infinitamente mais custosa que a produo do prprio sentido. No
limite ela impossvel, todas s energias reunidas do sistema no sero suficientes. A
demanda de objetos e de servios sempre pode ser produzida artificialmente, a um preo
elevado mas acessvel, o sistema j o demonstrou. O desejo de sentido, quando falta, o desejo
de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, no podem ser plenamente satisfeitose so um abismo definitivo.
A massa absorve toda a energia social, mas no a refrata mais. Absorve todos os
signos e todos os sentidos, mas no os repercute. Absorve todas as mensagens e as digere.5
Ela d a todas as questes que lhe so postas uma resposta tautolgica e circular. Nunca
participa. Perpassada pelos fluxos e pelos testes, ela se comporta como massa, se limita a ser
boa condutora dos fluxos, mas de todos os fluxos, boa condutora da informao, mas de
qualquer informao, boa condutora de normas, mas de todas as normas; com isso, se limita a
remeter o social sua transparncia absoluta, a s dar lugar aos efeitos do social e do poder,
constelaes flutuantes em torno desse ncleo imperceptvel.
4 No se trata tambm de produo do social, porque seno o socialismo bastaria, at mesmo o prpriocapitalismo. De fato, tudo muda com a precedncia da produo da demanda sobre a das mercadorias. A relaolgica Ida produo ao consumo) se desfaz, e estamos numa ordem inteiramente diferente, que no mais nem
de produo nem de consumo, mas de simulao de ambas graas inverso do processo. De repente, no setrata mais de uma crise real do capital, como o supe Attali, crise que depende de um pouco mais de social ede socialismo, mas de um dispositivo absolutamente diferente, hiper-real, que no tem mais nada a ver nem como capital nem com o social.5 A configurao idntica dos buracos negros. Verdadeiros sepulcros estelares, seu campo de gravidade tomonstruoso que a prpria luz agarrada, satelitizada e depois absorvida. So, portanto, regies do espao dasquais no pode chegar nenhuma informao. Sua descoberta e exame implicam, ento, uma espcie derevoluo de toda a cincia ou do processo de conhecimento tradicional. Este sempre se fundamenta nainformao, na mensagem, no sinal positivo Ido sentido) veiculado por um meio (ondas ou luz), aqui apareceoutra coisa, cujo sentido ou mistrio gira em torno de ausncia de informao. Esta coisa no emite, noresponde. Ao se considerar as massas, entra em jogo uma revoluo da mesma natureza.
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A massa se cala como os animais e seu silncio comparvel ao silncio dos animais.
Embora examinada at a morte (e a solicitao incessante a que submetida, a informao,
equivale ao suplcio experimental dos animais nos laboratrios), ela no diz nem onde est a
verdade: direita, esquerda? Nem o que prefere: a revoluo, a represso? Ela no tem
verdade nem razo. Embora lhe emprestem todas as palavras artificiais. Ela no tem
conscincia nem inconsciente.
Esse silncio insuportvel. Ela a incgnita da equao poltica, a incgnita que
anula todas as equaes polticas. Todo o mundo a interroga, mas nunca enquanto silncio,
sempre para faz-la falar. Ora, a fora de inrcia das massas insondvel: literalmente
nenhuma sondagem a far aparecer, pois elas existem para eclips-la. Silncio que balana o
poltico e o social na hiper-realidade que conhecemos. Porque se o poltico procura captar as
massas numa cmara de eco e de simulao social (os meios de comunicao, a informao),
em compensao so as massas que se tornam a cmara de eco e de simulao gigantesca do
social. Nunca houve manipulao. A partida foi jogada pelos dois, com as mesmas armas, e
ningum hoje poderia dizer quem a venceu: a simulao exercida pelo poder sobre as massas
ou a simulao inversa, dirigida pelas massas ao poder que nelas se afunda.
Nem sujeito nem objeto
A massa realiza esse paradoxo de ser ao mesmo tempo um objeto de simulao (ela s
existe no ponto de convergncia de todas as ondas mdias que a descrevem) e um sujeito de
simulao, capaz de refratar todos os modelos e de revert-los por hiper-simulao (seu
hiperconformismo, forma imanente de humor).
A massa realiza esse paradoxo de no ser um sujeito, um grupo-sujeito, mas de
tambm no ser um objeto. Todas as tentativas para fazer dela um sujeito (real ou mtico)deparam com uma espantosa impossibilidade de tomada de conscincia autnoma. Todas as
tentativas para fazer dela um objeto deparam com a evidncia inversa da impossibilidade de
uma manipulao determinada das massas ou de uma apreenso em termos de elementos, de
relaes, de estruturas e de conjuntos. Qualquer manipulao imerge, volteia na massa,
absorvida, revirada, revertida. Impossvel saber onde ela leva, o mais verossmil que ela se
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consome num ciclo sem fim, frustrando todas as intenes dos manipuladores. Nenhuma
anlise saberia abarcar essa realidade difusa, descentrada, brouniana, molecular: a noo de
objeto a se perde, como o campo da microfsica se perde na anlise ltima da matria -
impossvel capt-la como objeto neste limite infinitesimal em que o prprio sujeito da
observao se acha subitamente anulado. Nem objeto de saber, nem sujeito de saber.
A massa atualiza a mesma situao limite e insolvel no campo do social. Ela no
objetivvel (em termos polticos: ela no representvel) e anula todos os sujeitos que
pretenderiam capt-la (em termos polticos: anula todos aqueles que pretenderiam represent-
la). S as sondagens e as estatsticas podem dar conta dela (como na fsica matemtica a lei
dos grandes nmeros e o clculo de probabilidades), mas sabe-se que esse encantamento, que
esse ritual meterico das estatsticas e das sondagens no tm objeto real, sobretudo no nas
massas que elas supostamente exprimem. Ele simplesmente simula um objeto que escapa,
mas cuja ausncia intolervel. Ele o produz sob forma de respostas antecipadas, de
assinalamentos circulares que parecem circunscrever sua existncia e testemunhar sua
vontade. Signos flutuantes - assim so as sondagens -, signos instantneos, destinados
manipulao, e cujas concluses podem ser trocadas. Todo o mundo conhece a profunda
indeterminao que reina sobre as estatsticas (o clculo de probabilidades ou os grandes
nmeros tambm correspondem a uma indeterminao, a uma flutuao do conceito de
matria, a que pouco corresponde uma insignificante noo de lei objetiva).
Alis, no seguro que os procedimentos de experimentao cientfica nas cincias
ditas exatas tenham muito mais verdade que as sondagens e as estatsticas. A forma de
interrogao codificada, dirigida, objetiva, em qualquer disciplina que seja, s d lugar a
esse tipo circular de verdade, de onde o prprio objeto que ela visa excludo. Em todo caso,
possvel pensar que a incerteza deste projeto de determinao objetiva do mundo continua
total e que mesmo a matria e o inanimado, intimados a responder (nos mesmos termos e
segundo os mesmos procedimentos que as massas e o ser social nas estatsticas e nas
sondagens), tambm s do os mesmos sinais adequados, as mesmas respostas codificadas,
com o mesmo conformismo exasperante, incessante, para em ltima instncia, exatamente
como as massas, escapar a qualquer definio enquanto objeto.
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Haveria uma ironia fantstica da matria e de qualquer objeto de cincia, como h
uma ironia fantstica das massas em seu mutismo, ou em seu discurso estatstico to
adequado s questes que lhes so postas, parecendo a eterna ironia da feminilidade de que
fala Hegel - a ironia de uma falsa fidelidade, de um excesso de fidelidade lei, simulao de
passividade e de obedincia definitivamente impenetrveis, mas que ao contrrio anula a lei
que os governa, segundo o imortal exemplo do soldado Schweik.
Da partiria, no sentido literal, uma patafsica ou a cincia das solues imaginrias,
cincia da simulao e da hiper-simulao de um mundo exato, verdadeiro, objetivo, com
suas leis universais, incluindo o delrio daqueles que o interpretam segundo estas leis. As
massas e seu humor involuntrio nos introduziriam a uma patafsica do social que finalmente
nos desembaraaria de toda esta metafsica do social que nos atravanca.
Isso contradiz toda a concepo aceita do processo de verdade, mas esta talvez no
seja mais do que uma iluso dos sentidos. O cientista no pode acreditar que a matria ou o
ser no respondem objetivamente s questes que ele lhes formula, ou que respondem
muito objetivamente para que suas questes sejam as boas. S esta hiptese lhe parece
absurda e impensvel. Nunca a far. Ele jamais sair do crculo encantado e simulado de sua
interrogao.
A mesma hiptese vale para todas as coisas, o mesmo axioma de credibilidade. O
publicitrio no pode deixar de crer que as pessoas acreditam - por pouco que seja, isso quer
dizer que existe uma probabilidade mnima de que a mensagem alcance seu objetivo e seja
decodificada segundo seu sentido. Qualquer princpio de incerteza est excludo do assunto.
Se ele verificasse que o ndice de refrao da mensagem sobre o destinatrio nulo, a
publicidade desapareceria num instante. Ela s vive deste crdito que postula para si mesma
( a mesma aposta que a cincia faz acerca da objetividade do mundo) e que no procura
verificar a fundo, no terror de que a hiptese inversa tambm seja verdadeira, a saber, que aimensa maioria das mensagens publicitrias nunca chega ao seu destino, que os leitores no
vem mais a diferena entre os contedos que se refratam no vcuo - s o meio funcionando
como efeito ambiente e se apresentando como espetculo e fascinao. O MEIO A
MENSAGEM, profetizava Mac Luhan: frmula caracterstica da fase atual, a fase cool de
qualquer cultura mass-media, de um resfriamento, de uma neutralizao de todas as
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mensagens num ter vazio. Fase de uma glaciao do sentido. O pensamento critico julga e
escolhe, produz diferenas, e pela seleo que ele vigia o sentido. As massas, elas no
escolhem, no produzem diferenas, mas indiferenciao - elas mantm a fascinao do meio,
que preferem exigncia crtica da mensagem. Pois a fascinao no depende do sentido, ela
proporcional insatisfao com o sentido. Obtm-se a fascinao ao neutralizar a
mensagem em benefcio do meio, ao neutralizar a idia em proveito do dolo, ao neutralizar a
verdade em benefcio do simulacro. Pois neste nvel que os meios de comunicao
funcionam. A fascinao sua lei, e sua violncia especfica, violncia massiva sobre o
sentido, violncia negadora da comunicao pelo sentido em benefcio de um outro modo de
comunicao. Qual?
Para ns uma hiptese insustentvel: que seja possvel comunicar fora do meio do
sentido, que a prpria intensidade da comunicao seja proporcional supresso do sentido e
sua runa. Porque no o sentido nem o excesso de sentido que so violentamente
agradveis, sua neutralizao que fascina (cf. le Witz, a operao da palavra espirituosa, in
LEchange Symbolique et ta Mort). E no por alguma pulso de morte, o que subentenderia
que a vida ainda est perto do sentido, mas simplesmente por provocao, por alergia
referncia, mensagem, ao cdigo e a todas as categorias da operao lingstica, por recusa
de tudo isso unicamente em benefcio da imploso do signo na fascinao (nem significante,
nem significado: supresso dos plos da significao). Nenhum dos guardies do sentido
pode entender isso: toda a moral do sentido se levanta contra a fascinao.
Tambm a esfera poltica s vive de uma hiptese de credibilidade, a saber, que as
massas so permeveis ao e ao discurso, que elas tm uma opinio, que elas esto
presentes atrs das sondagens e das estatsticas. somente a este preo que a classe poltica
ainda pode acreditar que fala e ouvida politicamente. Enquanto o poltico h muito tempo
considerado s como espetculo no interior da vida privada, digerido como divertimento
semi-esportivo, semildico (veja-se o voto vencedor das eleies americanas, ou as tardes de
eleies no rdio ou na tev), e na forma ao mesmo tempo fascinada e maliciosa das velhas
comdias de costumes. O jogo eleitoral se identifica h muito tempo aos jogos televisados na
conscincia do povo. Este, que sempre serviu de libi e de figurante para a representao
poltica, se vinga entregando-se representao teatral da cena poltica e de seus atores. O
povo tornou-se pblico. o jogo, o filme ou os desenhos animados que servem de modelos
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de percepo da esfera poltica. O povo tambm aprecia dia-a-dia, como num cinema a
domiclio, as flutuaes de sua prpria opinio na leitura cotidiana das sondagens. Nada disso
tudo incita a uma responsabilidade qualquer. Em momento algum as massas so engajadas de
modo consciente poltica ou historicamente. Elas nunca o foram, s para se matar, com total
irresponsabilidade. E isso no uma fuga diante do poltico, mas o efeito de uma
antagonismo inexpivel entre a classe (casta?) portadora do social, do poltico, da cultura,
senhora do tempo e da histria, e a massa informe, residual, despojada de sentido. A primeira
sempre procura aperfeioar o reino do sentido, investir, saturar o campo do social, a segunda
sempre desvia todos os efeitos do sentido, neutraliza-os e os rebate. Nesse enfrentamento,
aquela que o venceu no absolutamente a que se pensa.
Isso pode ser visualizado na inverso de valor entre histria e cotidianidade, entre
esfera pblica e esfera privada. At os anos 60, a histria se impe como tempo forte: o
privado e o cotidiano no so mais do que o avesso obscuro da esfera poltica. No melhor dos
casos, intervm uma dialtica entre os dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, como o
individual, resplandecer alm da histria, no universal. Mas at l s se pode deplorar o
recuo das massas a sua esfera domstica, sua recusa da histria, da poltica e do universal, e
sua absoro na cotidianidade embrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o que
lhes garante um estatuto histrico objetivo at o momento da tomada de conscincia). Hoje,
inverso do tempo fraco e do tempo forte: comea-se a vislumbrar que o cotidiano, que os
homens em sua banalidade at que poderiam no ser o reverso insignificante da histria -
melhor: que o recuo para o privado at poderia ser um desafio direto ao poltico, uma forma
de resistncia ativa manipulao poltica. Os papis se invertem: a banalidade da vida, a
vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burgus, abjeto e apoltico
(inclusive o sexo) .que se torna o tempo forte; e a histria e o poltico que desenvolvem sua
acontecimentalidade abstrata algures.
Hiptese vertiginosa. As massas despolitizadas no estariam aqum mas alm da
poltica. O privado, o inominvel, o cotidiano, o insignificante, os pequenos ardis, as
pequenas perverses, etc., no estariam aqum mas alm da representao. As massas
executariam em sua prtica ingnua (e sem ter esperado as anlises sobre o fim do
poltico) a sentena da anulao do poltico, seriam espontaneamente transpolticas, como
so translingsticas em sua linguagem.
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Mas, ateno! Esse universo privado e a-social, que no entra numa dialtica de
representao e de ultrapassamento para o universal, dessa esfera involutiva que se ope a
toda revoluo pelo alto e se recusa a jogar o jogo, alguns desejariam que se tratasse (em
particular em sua verso sexual e de desejo) de uma nova fonte de energia revolucionria,
desejariam lhe dar um sentido e o reconstituir como negatividade histrica em sua prpria
banalidade. Exaltao de microdesejos, de pequenas diferenas, de prticas cegas, de
marginalidades annimas. ltimo sobressalto dos intelectuais para exaltar a insignificncia,
para promover o no-sentido na ordem do sentido. E revert-lo razo poltica. A banalidade,
a inrcia, o apoliticismo eram fascistas, agora se tornam revolucionrios - sem mudar de
sentido, isto , sem deixar de ter sentido. Micro-revoluo da banalidade, transpoltica do
desejo - mais um truque dos libertadores. A negao do sentido no tem sentido.
Da resistncia ao hiperconformismo
A emergncia das maiorias silenciosas se integra no ciclo completo da resistncia
histrica ao social. Resistncia ao trabalho, evidentemente, mas tambm resistncia
medicina, resistncia escola, resistncia segurana, resistncia informao. A histria
oficial s registra o progresso ininterrupto do social, relegando s trevas, como culturas
passadas, como vestgios brbaros, tudo que no concorreria para esse glorioso
acontecimento. Ora, contrariamente ao que se poderia pensar (que o social definitivamente
ganhou, que o movimento irreversvel, que o consenso sobre o social total), a resistncia
ao social sob todas as suas formas progrediu mais rapidamente ainda do que o social. Ela
simplesmente tomou outras formas que no as primitivas e violentas, que foram reabsorvidas
pela seguinte (o social vai bem, obrigado, s restam uns loucos para escapar ao registro,
vacinao e s vantagens da segurana). Essas resistncias frontais ainda corresponderiam a
uma fase tambm frontal e violenta da socializao, e viriam mais de grupos tradicionais,procurando preservar sua cultura prpria, suas estruturas originais. No era a massa que
resistia neles, mas sim as estruturas diferenciadas, contra o modelo homogneo e abstrato do
social.
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tambm esse tipo de resistncia que se encontra nos two steps flow of
communication (duplo fluxo de comunicao) que a sociologia americana analisou: a massa
absolutamente constitui uma estrutura passiva de recepo das mensagens dos meios de
comunicao, sejam elas polticas, culturais ou publicitrias. Os microgrupos e os indivduos,
longe de se alinharem em uma decodificao uniforme e imposta, decodificam as mensagens
sua maneira, as interceptam (atravs de lderes) e as transpem (segundo nvel), opondo ao
cdigo dominante seus sub-cdigos particulares, e terminam por reciclar tudo o que os atinge
em seus prprio ciclo, exatamente como os primitivos reciclavam a moeda ocidental em sua
circulao simblica (os Sians da Nova Guin) ou como os corsos reciclam o sufrgio
universal e as eleies em sua estratgia de rivalidades entre cls. Esta maneira de desvio, de
absoro, de recuperao vitoriosa pelos subgrupos do material difundido pela cultura
dominante, este ardil universal. tambm ele que conduz ao uso mgico do mdico e damedicina nas massas subdesenvolvidas. Creditado normalmente a uma mentalidade arcaica
e irracional, preciso ler ai, ao contrrio, uma prtica ofensiva, um desvio por excesso, uma
recusa no-analisada, mas sem o saber profundamente consciente das devastaes da
medicina racional.
Mas esta ainda a ao de grupos estruturados, pertencentes e de origem tradicionais.
Outra coisa o fracasso da socializao imposto pela massa, isto , por um grupo inumervel,
inominvel e annimo, e cuja fora reside na sua prpria desestruturao e inrcia. Assim, no
caso dos meios de comunicao, a resistncia tradicional consiste em reintegrar as mensagens
segundo o cdigo prprio ao grupo e em torno de seus prprios objetivos. As massas, estas
aceitam tudo e desviam tudo em bloco no espetacular, sem exigncia de um outro cdigo,
sem exigncia de sentido, na realidade sem resistncia, mas fazendo com que tudo passe para
uma esfera indeterminada que no nem mesmo a do no-sentido, mas a da
fascinao/manipulao de todos os azimutes.
Sempre se acreditou que so os meios de comunicao que enredam as massas - o que
a prpria ideologia dos mass media. Procurou-se o segredo da manipulao numa
semiologia que combate os mass media. Mas se esqueceu, nessa lgica ingnua da
comunicao, que as massas so um meio muito mais forte que todos os meios de
comunicao, que so elas que os enredam e os absorvem - ou que pelo menos no h
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nenhuma prioridade de um sobre o outro. O processo da massa e o dos meios de comunicao
so um processo nico. Mass(age) mensagem.
O mesmo aconteceu com o cinema, cujos inventores no incio imaginaram como um
meio racional, documental, informativo, social, e que caiu muito rpido e definitivamente noimaginrio.
O mesmo aconteceu com a tcnica, com a cincia e com o saber. Destinados a uma
prtica mgica e a um consumo espetacular. Aconteceu o mesmo com o prprio consumo.
Levando em conta a seriedade de sua teoria das necessidades e o consenso geral sobre o
discurso da utilidade, para seu prprio estupor os economistas nunca conseguiram
racionalizar o consumo. Mas isso porque a prtica das massas nunca teve imediatamente
nenhuma relao (talvez nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram do consumo umadimenso de status e de prestgio, de promessa intil ou de simulao, de potlatch que de
qualquer maneira excederia o valor de uso. Na verdade, trata-se de lhes inculcar de todos os
lados (propaganda oficial, associao de consumidores, eclogos, socilogos) a boa prtica e
o clculo funcional em matria de consumo, mas sem esperana. Porque pelo valor/signo e
pelo jogo desenfreado do valor/signo (onde os economistas, mesmo quando tentaram integr-
lo como varivel, no deixaram de ver uma inclinao da razo econmica), por isso que as
massas pem prova a economia, resistem ao imperativo objetivo das necessidades e ponderao racional dos comportamentos e dos fins. Valor/signo em vez de valor de uso j
um desvio da economia poltica. E que no se diga que tudo isso afinal serve ao valor de
troca, isto , ao sistema. Porque se o sistema se sai muito bem com esse jogo e at mesmo o
favorece (as massas alienadas nos gadgets, etc.) isso no o essencial e o que esse deslize,
essa derrapagem inaugura a longo prazo - inaugura desde agora - o fim do econmico,
isolado de todas as suas definies racionais pelo uso excessivo, mgico, espetacular, indireto
e quase pardico que as massas fazem dele. Uso a-social, resistente a todas as pedagogias
socialistas - uso aberrante atravs do qual as massas (ns, vocs, todo o mundo) inverteram a
economia poltica desde agora. No esperaram as revolues futuras nem as teorias que
pretendem libert-las de um movimento dialtico. Elas sabem que no se liberta de nada e
que s se abole um sistema obrigando-o ao hiperlgico, impelindo-o a um uso excessivo que
equivale a um amortecimento brutal. Vocs querem que se consuma - pois bem,
consumamos sempre mais, e no importa o qu; para todos os fins inteis e absurdos.
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O mesmo aconteceu com a medicina: resistncia frontal (que alis no desapareceu)
se substituiu uma forma mais sutil de subverso, um consumo excessivo, irrefrevel, da
medicina, um conformismo pnico s injunes da sade. Escalada fantstica do consumo
mdico que desvia completamente os objetivos e as finalidades sociais da medicina. Que
melhor meio de aboli-Ia? Desde ento os mdicos no sabem mais o que fazem, o que so,
muito mais manipulados do que manipuladores. Queremos mais cuidados, mais mdicos,
mais medicamentos, mais segurana, mais sade, sempre mais, sem limites! As massas so
alienadas na medicina? De modo algum: ao exigirem sempre mais, como mercadoria, esto
prestes a arruinar sua instituio, a explodir a segurana social, a colocar o prprio social em
perigo. Que maior ironia pode haver do que nesta exigncia do social como bem de consumo
individual, submetido ao excesso da oferta e da procura? Pardia e paradoxo: por sua
inrcia nos caminhos do social que lhes foram traados que as massas lhes ultrapassam algica e os limites, e destroem todo o edifcio. Hipersimulao destrutiva, hiperconformismo
destruidor (como no caso de Beaubourg, analisado em outra perspectiva)6que tem todas as
aparncias de um desafio vitorioso - ningum avaliar a fora desse desafio, da reverso que
ele exerce sobre todo o sistema. a que est o verdadeiro problema hoje, nesse afrontamento
surdo e inelutvel das maiorias silenciosas contra o social que lhes imposto, nessa hiper-
simulao que redobra a simulao e que a extermina a partir de sua prpria lgica - no em
alguma luta de classe nem no caos molecular das minorias em ruptura de desejo.
Massa e terrorismo
Estamos portanto no ponto paradoxal em que as massas se recusam ao batismo do
social, que ao mesmo tempo o do sentido e da liberdade. No faze mos delas uma nova e
gloriosa referncia. Porque elas no existem. Mas constatamos que todos os poderes acabam
por se arruinar silenciosamente nessa maioria silenciosa, que no nem uma entidade nemuma realidade sociolgica, mas a sombra projetada pelo poder, seu abismo no vcuo, sua
forma de absoro. Nebulosa fluida, movente, conforme, excessivamente, conforme a todas
as solicitaes e de um conformismo hiper-real que a forma extrema da no-participao:
tal o desastre atual do poder. Tal tambm o desastre da revoluo. Porque essa massa
6L'Effet et Beaubourg. Paris, Ed. Galile, 1977.
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implosiva jamais explodir por definio, e qualquer palavra revolucionria tambm
implodir a. Em conseqncia, o que fazer com essas massas? Elas so o leitmotiv de todos
os discursos. So a obsesso de todo projeto social, mas todos malogram nelas, porque todos
permanecem enraizados na definio clssica de massas, a de uma esperana escatolgica do
social e de sua realizao. Ora, as massas no so o social, so a reverso de todo social e de
todo socialismo. Muitos tericos, entretanto, condenaram o sentido, denunciaram as
armadilhas da liberdade e as mistificaes do poltico, criticaram radicalmente a
racionalidade de qualquer forma de representao - quando as massas atravessavam o sentido,
o poltico, a representao, a histria, a ideologia, com uma forma sonamblica de negao,
quando realizam aqui e agora tudo o que a critica mais radical pde vislumbrar, nesse
momento esta no sabe o que fazer disso e se obstina em sonhar com uma revoluo futura -
revoluo crtica, revoluo de prestgio, a do social, a do desejo. Esta revoluo porinvoluo no a sua: no explosiva-crtica, implosiva e cega. Procede por inrcia e no
por uma negatividade franca e jovial. Ela silenciosa e involutiva - exatamente o inverso de
todas as tomadas de palavra e tomadas de conscincia. No tem sentido. No tem nada a nos
dizer.
Alis o nico fenmeno que est em relao de afinidade com elas, com as massas,
exatamente como se a se desenrolasse a ltima peripcia do social, e de sua morte, o
terrorismo. Nada mais afastado das massas do que o terrorismo, e o poder tem tentado
levantar um contra o outro. Mas nada mais estranho, nada mais familiar tambm, do que sua
convergncia na negao do social e na recusa do sentido. Porque o terrorismo na verdade
pretende visar o capital (o imperialismo mundial, etc.) mas se engana de inimigo, e ao fazer
isso visa seu verdadeiro inimigo, que o social. O terrorismo atual visa o social em resposta
ao terrorismo do social. Ele visa o social tal como produzido hoje - rede orbital, intersticial,
nuclear, textural, de controle e de segurana, que nos investe de todas as partes e nos produz,
a ns todos, como maioria silenciosa. Socialidade hiper-real, imperceptvel, que no operamais pela lei e pela represso, mas pela infiltrao de modelos, no pela violncia, mas pela
persuaso/dissuao. A isso o terrorismo responde com um ato ele mesmo hiper-real,
imediatamente destinado s ondas concntricas dos meios de comunicao e da fascinao,
imediatamente destinado no a alguma representao nem conscincia, mas desacelerao
mental por contingidade, fascinao e pnico, no reflexo nem lgica das causas e dos
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efeitos, mas reao em cadeia por contgio. Desprovido de sentido, portanto, e
indeterminado como o sistema que ele combate, em que ele se insere mais como um ponto de
imploso mxima e infinitesimal - terrorismo no-explosivo, no-histrico, no-poltico;
implosivo, cristalizante, siderante - e por isso profundamente homlogo ao silncio e inrcia
das massas.
O terrorismo no visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem quer que seja; no
tem prolongamento revolucionrio (a esse respeito, seria mais uma contra-performance total,
o que se lhe censura violentamente, mas seu problema no est nisso), visa as massas em seu
silncio, silncio magnetizado pela informao; ele visa, para precipitar sua morte ao acentu-
la, esta magia branca do social que nos envolve, a da informao, da simulao, da dissuaso,
do controle annimo e aleatrio, essa magia branca da abstrao social pela magia negra de
uma abstrao maior ainda, mais annima, mais arbitrria e mais aleatria ainda: a do ato
terrorista.
Ele o nico ato no-representativo. nisso que ele tem afinidade com as massas,
que so a nica realidade no-representvel. Sobretudo isso no quer dizer que novamente o
terrorismo representaria o silncio e o no-dito das massas, que exprimiria violentamente sua
resistncia passiva. Isso quer dizer simplesmente: no h equivalente ao carter cego, no-
representativo, desprovido de sentido, do ato terrorista, seno o comportamento cego,desprovido de sentido e alm da representao que o das massas. Eles tm isso de comum
porque so a forma atual mais radical, mais exacerbada, de negao de qualquer sistema
representativo. tudo. Ningum sabe na realidade que relao pode se estabelecer entre dois
elementos que esto alm da representao, um problema que nossa epistemologia do
conhecimento no permite resolver pois ela postula sempre a mediao de um sujeito e de
uma linguagem, a mediao de uma representao. S conhecemos bem os encadeamentos
representativos, no sabemos grande coisa dos encadeamentos analgicos, afinitrios,
imediatizados, irreferenciais e outros sistemas. Sem dvida, alguma coisa de muito forte
passa entre eles (massas e terrorismo) que procuraramos em vo nos precedentes histricos
dos sistemas representativos (povo/assemblia, proletariado/partido, marginais-
minorias/grupelhos, etc.). E assim como uma energia social passa entre dois plos de um
sistema representativo qualquer, energia positiva, assim se poderia dizer que entre as massas
e o terrorismo, entre esses dois no-plos de um sistema no-representativo, tambm passa
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uma energia, mas uma energia inversa, energia no de acumulao social e de transformao,
mas de disperso do social, de absoro e anulao do poltico.
No se pode dizer que a era das maiorias silenciosas que produz o terrorismo.
a simultaneidade dos dois que assombrosa e causa estranheza. nico acontecimento, aceite-se ou no sua brutalidade, que verdadeiramente marca o fim do poltico e do social. O nico
que traduz essa realidade de uma imploso violenta de todos os nossos sistemas de
representao.
O terrorismo no visa de modo algum desmascarar o carter repressivo do Estado
(essa a negatividade provocadora dos grupelhos, que a encontram uma ltima oportunidade
de serem representativos aos olhos das massas). Ele propaga, por sua prpria no-
representatividade e por reao em cadeia (no por demonstrao e tomada de conscincia), aevidncia da no-representatividade de todos os poderes. A est sua subverso: ele precipita
a no-representatividade injetando-a em doses infinitesimais mas bastante concentradas.
Sua violncia fundamental de negao de todas as instituies de representao
(sindicatos, movimentos organizados, luta poltica consciente, etc.). Inclusive daqueles que
professam solidariedade a ele, porque a solidariedade ainda a maneira de constitu-lo como
modelo, como emblema, e, portanto, de lhe atribuir representao (Eles esto mortos para
ns, sua ao no foi intil...). Todos os meios so bons para violentar o sentido, para
desconhecer quanto o terrorismo sem legitimidade social, sem prolongamento poltico, sem
continuidade em histria alguma. Seu nico reflexo no exatamente um prolongamento
histrico: sua narrao, sua onda de choque nos meios de comunicao. Ora, essa narrao
no de natureza objetiva e informativa, tanto como o terrorismo no de natureza poltica.
Todos os dois esto em outro lugar, numa ordem que no nem de sentido nem de
representao - talvez mtica, sem dvida simulacro.
O outro aspecto da violncia terrorista a negao de toda determinao e de toda
qualidade. Nesse sentido, preciso distinguir o terrorismo do banditismo e da ao de
comando. Esta um ato de guerra que visa um inimigo determinado (explodir um trem,
ataque a bomba sede do partido adversrio, etc.). O outro depende da violncia criminal
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tradicional (hold-up num banco, seqestro em troca de resgaste, etc.). Todas essas aes tm
um objetivo econmico ou militar. O terrorismo atual, inaugurado com a tomada de refns
e o jogo adiado da morte, no tem objetivo (se ele pretende t-los, so irrisrios ou
inacessveis, e, de qualquer maneira, exatamente o mtodo mais ineficaz de atingi-los) nem
inimigo determinado. Os palestinos visam Israel por intermdio dos refns? No, atravs da
intermediao de Israel que eles visam um inimigo mtico, mesmo no-mtico, annimo,
indiferenciado, uma espcie de ordem social mundial presente em toda parte, no importa
quando, no importa quem, at o ltimo dos inocentes. Assim o terrorismo, original e
insolvel somente porque ataca no importa onde, quando e quem, seno seria somente ato de
resgate ou de comando militar. Sua cegueira a rplica exata da indiferenciao absoluta do
sistema, que h muito tempo no distingue os fins dos meios, os carrascos das vitimas. Seu
ato visa, na indistino assassina da tomada de refns, exatamente o produto maiscaracterstico de todo o sistema: o indivduo annimo e perfeitamente indiferenciado, o termo
substituvel por qualquer outro. preciso dizer paradoxalmente; os inocentes pagam o crime
de no serem nada, de serem sem destino, de terem sido despossudos de seu nome por um
sistema tambm annimo, de que eles se tornaram, ento, a mais pura encarnao. So os
produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstrata doravante mundializada. nesse
sentido, exatamente no sentido em que eles so qualquer pessoa, que so as vtimas
predestinadas pelo terrorismo.
nesse sentido, ou melhor, nesse desafio ao sentido, que o ato terrorista se assemelha
catstrofe natural. No h diferena alguma entre um terremoto na Guatemala e a queda de
um Boeing da Lufthansa com trezentos passageiros a bordo, entre a interveno natural e a
interveno humana terrorista. A natureza terrorista, como o a interrupo abrupta de
todo o sistema tecnolgico: os grandes black-outs de Nova Iorque (1965 e 1977) criam
situaes terroristas melhores que as verdadeiras, situaes sonhadas. Melhor: esses grandes
acidentes tecnolgicos, como os grandes acidentes naturais, exemplificam a possibilidade deuma subverso radical sem sujeito. A pane de 1977 em Nova Iorque poderia ser fomentada
por um grupo terrorista muito organizado e isso no mudaria nada no resultado objetivo.
Teriam sucedido os mesmos atos de violncia, de pilhagem, de levante, a mesma suspenso
da ordem social. Isso significa que o terrorismo no est na deciso de violncia, mas em
toda parte na normalidade do social, de modo que ela pode de um momento para o outro se
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transfigurar numa realidade inversa, absurda, incontrolvel. A catstrofe natural funciona
dessa maneira e assim que, paradoxalmente, ela se torna a expresso mtica da catstrofe do
social. Ou melhor, sendo a catstrofe natural por excelncia um incidente desprovido de
sentido, no-representativo (seno de Deus, eis por que o responsvel pela Continental Edison
pde falar de Deus e de sua interveno no episdio do ltimo black-out de Nova Iorque),
torna-se uma espcie de sintoma ou de encarnao violenta do estado do social, a saber, de
sua catstrofe e da runa de todas as representaes que o sustentavam.
Sistemas implosivos, sistemas explosivos
Massas, meios de comunicao e terrorismo, em sua afinidade, triangular, descrevemo processo de imploso hoje dominante. Todo o processo afetado por uma violncia que
somente comea, violncia orbital e nuclear, de aspirao e fascinao, violncia do vazio (a
fascinao a intensidade extrema do neutro). A imploso, para ns e hoje, s pode ser
violenta e catastrfica, porque ela resulta do fracasso do sistema de exploso e de expanso
dirigida que foi o nosso no Ocidente h alguns sculos.
Ora, a imploso no necessariamente um processo catastrfico. Ela foi, sob uma
forma controlada e dirigida, o segredo dominante das sociedades primitivas e tradicionais.Configuraes no-expansivas, no-centrifugas: centrpetas - pluralidades singulares que
nunca visam o universal, centradas num processo cclico, o ritual, e que tendem a involuir
nesse processo no-representativo, sem instncia superior, sem polaridade, disjuntiva, sem
entretanto se arruinar a si mesmas (salvo, sem dvida, determinados processos implosivos
inexplicveis para ns, como o colapso das culturas tolteca, olmeca, maia, que de que no se
soube nada, cujos imprios piramidais desapareceram sem deixar traos, sem catstrofe
visvel, como se desinvestidos brutalmente, sem causa aparente, sem violncia externa). As
sociedades primitivas viveram portanto de uma imploso dirigida - morreram quando
deixaram de controlar esse processo, e oscilaram ento para o da exploso (demogrfica, ou
excedentes de produo irredutveis, processo de expanso incontrolvel, ou simplesmente
quando a colonizao as iniciou violentamente na norma expansiva e centrfuga dos sistemas
ocidentais).
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Inversamente, nossas civilizaes modernas viveram sobre uma base de expanso e
de exploso em todos os nveis, sob o signo da universalizao do mercado, dos valores
econmicos e filosficos, sob o signo da universalidade da lei e das conquistas. Sem dvida
mesmo elas souberam viver, pelo menos num momento, de uma exploso dirigida, de uma
liberao de energia controlada e progressiva, e foi a idade de ouro de sua cultura. Mas,
conforme um processo de arroubamento e de acelerao, esse processo explosivo se tornou
incontrolvel, atingiu uma rapidez ou uma amplitude mortal, ou melhor, atingiu os limites do
universal, saturou o campo de expanso possvel e, assim como as sociedades primitivas
foram devastadas pela exploso por no terem sabido controlar durante mais tempo o
processo implosivo, assim nossas culturas comeam a ser devastadas pela imploso por no
terem sabido controlar e equilibrar o processo explosivo.
A imploso inelutvel, e todos os esforos para salvar os princpios de realidade, de
acumulao, de universalidade, os princpios de evoluo que dependem dos sistemas em
expanso so arcaicos, regressivos, nostlgicos. Inclusive todos aqueles que querem liberar as
energias libidinais, as energias plurais, as intensidades fragmentrias, etc. A revoluo
molecular s traduz a ltima fase de liberao de energias (ou de proliferao de
segmentos, etc.) at os limites infinitesimais do campo de expanso que foi o de nossa
cultura. Tentativa infinitesimal do desejo que sucede do infinito do capital. Soluo
molecular que sucede ao ataque molar dos espaos e do social. ltimos clares do sistema
explosivo, ltima tentativa de ainda controlar uma energia dos confins, ou de ampliar os
confins da energia (nosso leitmotiv fundamental) para salvar o principio de expanso e de
liberao.
Mas nada travar o processo implosivo, e a nica alternativa que resta a de uma
imploso violenta e catastrfica, ou de uma imploso lenta e progressiva. H traos disso, de
diversas tentativas de controlar os novos impulsos anti-universais, anti-representativos,
tribais, centrpetos, etc.: as comunidades, a ecologia, o crescimento zero, as drogas - tudo isso
sem dvida dessa natureza. Mas preciso no se iludir sobre a imploso lenta. Ela est
destinada efemeridade e ao fracasso. No houve transio equilibrada de sistemas
implosivos aos sistemas explosivos: isso sempre aconteceu violentamente, e h toda a
possibilidade de que nossa passagem para a imploso tambm seja violenta e catastrfica.
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... Ou o fim do social
O social no um processo claro e unvoco. As sociedades modernas correspondem a
um processo de socializao ou de dessocializao progressiva? Tudo depende da acepo dotermo, ora, nenhuma segura e todas so reversveis. O mesmo ocorre com as instituies
que marcaram os progressos do social (urbanizao, concentrao, produo, trabalho,
medicina, escolarizao, segurana social, seguros, etc), inclusive o capital, que sem dvida
foi o meio de socializao mais eficaz de todos, pode-se dizer que elas produzem e destroem
o social no mesmo movimento.
Se o social feito de instncias abstratas que, umas aps as outras, se edificam sobre
as runas do edifcio simblico e ritual das sociedades anteriores, ento essas instituies oproduzem cada vez mais. Mas, ao mesmo tempo, elas sancionam essa abstrao devorante,
talvez devoradora exatamente do mago substantivo do social. A partir desse ponto de
vista, pode-se dizer que o social regride na prpria medida d desenvolvimento das
instituies.
O processo acelera e atinge sua extenso mxima com os meios de comunicao de
massa e com a informao. Os mdia, todos os mdia, e a informao, qualquer informao,
funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem mais social e neutralizamprofundamente as relaes sociais e o prprio social.
Mas, ento, se o social ao mesmo tempo destrudo por aquele que o produz (os
mdia, a informao) e reabsorvido pelo que produz (as massas), segue-se que a definio
nula, e que esse termo que serve de libi universal para todos os discursos no analisa nada,
no designa nada. Ele no somente suprfluo e intil - em toda a parte em que aparece
esconde outra coisa: desafio, morte, seduo, ritual, repetio -, esconde que abstrao e
resduo, ou mesmo simplesmente efeito de social, simulao e miragem.
O prprio termo contato social enigmtico. O que um contato social, uma
relao social, o que a produo de contatos sociais? Aqui tudo falsa evidncia. O
social imediatamente, e como por definio, um contato ou uma relao? - o que j
supe uma sria abstrao e uma lgebra racional do social -, ou na verdade outra coisa que
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o termo contato racionaliza demais? Talvez o contato social exista para outra coisa, por
exemplo, para que o destri? Talvez ele confirme, talvez inaugure o fim do social?
As cincias sociais vieram consagrar essa evidncia e essa eternidade do social. Mas
preciso desencantar. Houve sociedades sem social, assim como houve sociedades sem
histria. As redes de obrigaes simblicas no eram exatamente nem contato nem
social. No outro extremo, nossa sociedade talvez esteja prestes a pr fim ao social, a
enterrar o social sob a simulao do social. Para este h diversas maneiras de morrer - assim
como definies. O social talvez s ter tido uma existncia efmera, numa estreita
bifurcao entre as formaes simblicas e a nossa sociedade, onde morre. Antes, no
existe ainda. Aps, no existe mais. S a sociologia pode parecer testemunhar sua
eternidade, e a soberana algaravia das cincias sociais ainda o divulgar muito tempo aps
ele ter desaparecido.
A energia ininterrupta do social surgiu h dois sculos com a desterritorializao e a
concentrao sob instncias cada vez mais unificadas. Espao perspectivo centralizado que d
um sentido a tudo o que nele se insere por simples convergncia numa linha de fuga ao
infinito (como o espao e o tempo, o social efetivamente abre uma perspectiva ao infinito).
No h definio do social seno nessa perspectiva pantica.
Mas no esqueamos que este espao perspectivo (em pintura e em arquitetura, assim
como em poltica ou em economia) s um modelo de simulao entre outros, e que s tem
por caracterstica o fato de que permite efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e
desconhecidos aos outros modelos. Ele no talvez um equvoco? Em qualquer caso, tudo o
que se tramou e se colocou nessa cena italiana do social jamais teve importncia
profunda. As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo social, mas sim
simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc. O que subentende a frmula: o capital
um desafio sociedade. O que quer dizer que essa mquina perspectiva, pantica, que esta
mquina de verdade, de nacionalidade, de produtividade que o capital, no tem finalidadeobjetiva, no tem razo: ela antes de mais nada uma violncia, e esta violncia se exerce
pelo social sobre o social, mas na realidade ela no uma mquina social, ela despreza o
capital e o social em sua definio ao mesmo tempo solidria e antagnica. Isso quer dizer
ainda que no h contrato, que jamais houve contrato passado entre as distintas instncias
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segundo a lei - tudo isso vento -, s h questes, desafios, isto , algo que no passa por
uma relao social.
O desafio no uma dialtica, nem uma oposio respectiva de um plo ao outro, de
um termo ao outro, numa estrutura plena. Ele um processo de exterminao da posio
estrutural de cada termo, da posio de sujeito de cada um dos antagonistas e em particular
daquele que lana o desafio: por isso mesmo ele abandona qualquer posio contratual que
possa dar lugar a uma ligao. A lgica no mais a da troca de valor. a do abandono de
posies de valor e de sentido. O protagonista do desafio sempre est em posio suicida,
mas um suicdio triunfal: pela destruio do valor, pela destruio do sentido (a sua, o seu)
que ele fora o outro a uma resposta nunca equivalente, sempre superada. O desafio sempre
do que no tem sentido, no tem nome, no tem identidade, para o que se prevalece de um
sentido, de um nome, de uma identidade - o desafio ao sentido, ao poder, verdade, de
existirem enquanto tais, de pretenderem existir como tais. S esta reverso pode dar fim ao
poder, ao sentido, ao valor, e nunca alguma relao de foras, por mais favorvel que seja,
pois esta se reproduz numa relao polar, binria, estrutural, que recria por definio um novo
espao de sentido e de poder.7
Aqui so possveis vrias hipteses:
1. Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve ligao social. Nunca nada
funcionou socialmente. Nessa base inelutvel de desafio, de seduo e de morte, sempre
houve somente simulao do social e de ligao social. De nada adianta, nesse caso, sonhar
com uma sociedade real, com uma socialidade escondida, com uma socialidade ideal. Seria
hipostasiar o simulacro. Se o social uma simulao, o nico incidente provvel o de uma
dessimulao brutal - o prprio social deixando de se afirmar como espao de referncia e de
jogar o jogo, pondo imediatamente fim ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do social
que o eterniza. Dessimulao que assume ela mesma o comportamento de um desafio
(desafio inverso ao do capital ao social e sociedade): desafio ao capital e ao poder deexistirem segundo sua lgica prpria - eles no a tm, eles se desvanecem como ordenao
7 A mesma coisa vale para a seduo. Se o sexo e a sexualidade, dado que a revoluo sexual os muda em simesmos, so verdadeiramente um modo de troca e de produo de relaes sexuais, j a seduo o inverso datroca, e prxima ao desafio. A sexualidade realmente s se tornou relao sexual, s pde ser falada nessestermos j racionalizados de valor e de troca, ao se esquecer qualquer forma de seduo - assim como o social sse torna relao social quando perdeu toda a dimenso simblica.
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desde que a simulao do espao social se desfaz.8Na verdade isso que assistimos hoje:
desagregao do pensamento do social, ao definhamento e involuo do social, ao
enfraquecimento do simulacro social, verdadeiro desafio ao pensamento construtivo e
produtivo do social que nos domina. E isso de repente, como se o social nunca tivesse
existido. Enfraquecimento que tem todos os traos de uma catstrofe, no de uma evoluo
ou de uma revoluo. No mais uma crise do social, mas a incorporao do seu
ordenamento. Sem nada a ver com as deseres marginais (loucos, mulheres, drogados,
delinqentes), que servem, ao contrrio, de novas energias ao social enfraquecido. Esse
processo no pode mais ser ressocializado. Ele a evaporao, como a de um espectro ao
canto do galo, do principio de realidade e de racionalidade social.
2. O social realmente existiu, ele at existe cada vez mais, ele investe tudo, s h o
social. Longe de se volatilizar, ele que triunfa, a realidade do social que se impe em toda
a parte. Mas pode-se considerar, contra o preconceito que faz do social um processo objetivo
da espcie humana, tudo o que escapa sendo somente resduo, que o prprio social que
resduo, e que, se triunfou no real, foi exatamente enquanto tal. Resduo crescente e logo
universal da disperso da ordem simblica, foi o social como resto que se fortaleceu do real.9
Eis a um tipo de morte mais sutil.
Nesse caso, na verdade estamos sempre mais no social, isto , na dejeco pura, na
obstaculizao fantstica do trabalho morto, das relaes mortas e instanciadas nas
burocracias terroristas, das linguagens e dos sintagmas mortos os prprios termos ligao e
relao j tm algo de morto, e algo de morte.
Ento evidentemente no se pode mais dizer que o social morre, pois ele desde
sempre acumulao do morto. Com efeito, estamos numa civilizao do super-social, e
simultaneamente do resduo indegradvel, indestrutvel, que se expande na prpria medida da
extenso do social.
Desperdcio e reciclagem: tal seria o social imagem de uma produo cujo ciclo
escapou h muito tempo s finalidades sociais para tornar-se uma nebulosa espiral
8 Mas o desafio ao social pode tomar a forma inversa da recrudescncia do simulacro social, da demanda social,da demanda do social. Hiperconformismo exacerbado, compulsivo, exigncia ainda mais formal do social comonorma e como discurso.9 Ver, em L'Echange Simbolique et le Mort, a tripla residualidade: do valor na ordem econmica, do fantasmana ordem psquica, da significao da ordem lingstica. preciso portanto acrescentar a a residualidade dosocial na ordem... social.
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completamente ex-inscrita, girando sobre si mesma e se alargando cada revoluo que
descreve. V-se assim o social crescer no decorrer da histria como gesto racional dos
resduos, e dentro em pouco produo racional de resduos.
Em 1544 abriu-se o primeiro grande estabelecimento de pobres em Paris: vagabundos,
dementes, doentes, todos aqueles que o grupo no integrou e deixou como sobras sero
adotados sob o signo nascente do social. Este se expandir s dimenses da assistncia
pblica no sculo 19, depois Segurana Social no sculo 20. medida que se refora a
razo social, a coletividade toda que logo se torna residual e, portanto, com uma espiral
mais, o social que se alarga. Quando a sobra atinge as dimenses da sociedade toda, tem-se
uma socializao perfeita.10 Todo o mundo est perfeitamente excludo e adotado,
perfeitamente desintegrado e socializado.
A integrao simblica substituda pela integrao funcional, instituies funcionais
se ocupam dos resduos da desintegrao simblica - uma instncia social aparece onde no
existia e no havia nem mesmo nome para diz-la. Os contatos sociais se multiplicam,
proliferam, se enriquecem proporcionalmente a esta desintegrao. E as cincias sociais vm
coroar o conjunto. De onde o sabor de uma expresso como: a responsabilidade da
sociedade em relao a seus membros deserdados, quando se sabe que o social,
exatamente, s a instncia que resulta deste desamparo.
De onde o interesse da rubrica Sociedade do Monte, em que paradoxalmente s
aparecem os emigrados, os delinqentes, as mulheres, etc.: exatamente tudo o que no foi
socializado, o caso social anlogo ao caso patolgico. Bolses para serem incorporados,
segmentos que o social isola pouco a pouco em sua extenso. Designados como residuais no