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Johnny BoyPORTO: ANOS 40 & 50

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Johnny Boy

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JOÃO VAN ZELLER

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Johnny BoyPORTO: ANOS 40 & 50

Prefácio deMário Cláudio

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Título: Johnny Boy. Porto: Anos 40 & 50 Autor: João van ZellerEdição: Edições Afrontamento, Lda.Rua de Costa Cabral, 859 – 4200 ‑225 [email protected]© João van Zeller e Edições AfrontamentoColecção: Vidas / 14N.º de edição: 1965Fotografia da capa: Pedro BrumAutoria das Genealogias: Luís Camilo AlvesConcepção Gráfica: Dep. Gráfico / Edições Afrontamento, Lda.ISBN: 978‑972‑36‑1763‑4Depósito Legal: 458136/19Impressão e Acabamento: Rainho & Neves, Lda. – Santa Maria da Feirawww.rainhoeneves.pt | [email protected]ção: Companhia das Artes – Livros e Distribuição, [email protected]

1.ª Edição / Outubro de 2019

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Caleidoscópio | Prefácio, por Mário Cláudio

Toda a empresa memorialística visa dois objectivos, nem sempre nitida‑mente definidos entre si. Quem calcorreia o seu passado, algumas vezes remoto, e algumas outras assumido, obedece a um intento de transferência do testemu‑nho, e investe num processo de auto ‑revelação. Nas suas expressões mais comuns, e porventura menos dignas, as memórias funcionam como táctica jus‑tificativa, ou como estratégia de julgamento. Afirme ‑se desde já que João van Zeller se exime às vulgares declinações do género, operando uma exemplar revisita do tempo, saudavelmente limpa, e tanto da transitoriedade das opi‑niões como da consequente caricatura da vida. Não saem daqui espíritos moles‑tados, nem se salpicam estas linhas de tenazes ressentimentos, o que nos remete a uma dimensão em que a atitude contemplativa sobreleva do ajuste de contas. Imune a essas pechas, o relato não prejudica no entanto a apresentação de um quadro de valores, francamente abraçado, mas jamais exposto como catecismo para quem quer que seja.

A dialéctica raiz ‑errância, firmada a primeira no clã, e na casa, e expandida a outra por latitudes que, aderentes de início à área da cidade, cobrem progres‑sivamente o mapa ‑mundi, confere o eixo à inteira narração. Numa crónica ofe‑recida aos seus contemporâneos, e aos vindouros, consolida ‑se este texto, redigido por um punho que, não raro falando com os seus botões, não deixa con‑tudo de convocar uma audiência alargada. Aludir à matéria dos afectos, hoje tão mencionada que se transformou num odre de vento, não embacia quanto consta de inteligência, e de imaginação. Valorizadas agora pelas neurociên‑cias, as emoções aqui entesouradas mostravam ‑se, há bem pouco, e antes de estigmatizado o erro de Descartes, inadequadas à banca do historiador, do

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sociólogo, do antropólogo, e do filósofo tocado pela análise das potencialidades da mente.

Em torno destas disciplinas se espraia de facto o exame de época e lugar, este sobretudo coincidente com um burgo, o Porto, que se ergue como motor de rotação de um caleidoscópio gigantesco. E estamos num núcleo aparente‑mente estático, experimentado entre deleite e temor, pânico e fascínio, espanto e ternura, e interrogações sem resposta. As famílias estatuem a cadência das horas, ora entrincheiradas nos loci amœni da Foz do Douro, da Boavista ou de Vilar, ora relegadas para os loci horribilis, em geral indescritos, e que con‑figuram um elenco operático, desencadeante do sobressalto, não necessaria‑mente saudosista, face à precariedade das gentes em trânsito, e aos ofícios que esforçadamente desempenham. Atravessam a cena recoveiros que servem de goes ‑between, peixeiras e leiteiras que vendem os seus artigos à porta das resi dências, e carrejões que alombam com o património alheio. Num plano distinto, mas intercepcionante, age o pessoal doméstico das criadas e cozi‑nheiras, dos jardineiros e motoristas, e um certo estrato, mais sombrio, mas colaborante na higiene da galhofa, e do instinto, o dos fous ‑du ‑village, e o das rameiras que a lei tolera.

A quotidianidade decorre espartilhada pelas limitações que a Segunda Guerra Mundial impõe, ou a que um desaire financeiro obriga, e treina ‑se na austeridade que aconselha a reciclagem da alimentação, a parcimónia dos brinquedos dos meninos, e o recurso aos transportes colectivos. Mas seme‑lhante paisagem não posterga a perseverança na manutenção do estatuto, e tanto no que se reporta às condições da habitabilidade como no que se refere à fruição de um acervo de amenidades, proporcionado pelo comércio tradicional de excelência. Escapa ‑se à aurea mediocritas, ou puxa ‑se o brilho às pratas, mercê da abastança intacta de um parente, ou de um amigo, ou da glória de um baile exportado pelo Império Britânico. Parte ‑se para banhos numa praia peri‑férica, de identificante gregarismo, e com rigoroso direito de admissão, e goza‑‑se a vilegiatura numa quinta do Alto ‑Douro, renovadora do contacto com a terra, indispensável à eternidade de Proteu. A religião dominante patrocina a dinâmica das gentes, traçando ‑lhes as fronteiras, e requerendo ‑lhes satisfa‑ções, embalando ‑as em simultâneo na sonolência das noites de Inverno, escan‑didas pela toada da recitação dos mistérios do terço.

Radicados no Porto desde eras recuadas, os van Zeller ficariam, e muito por efeito da sua origem espessamente estrangeira, como excepção ao fata‑lismo da inexistência na Cidade de uma burguesia de topo, correspondente‑

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CALEIDOSCÓPIO

mente aculturada. Inclusive a comunidade judaica, estabelecida na velha urbe, mas escassa, não bastaria para a alcandorar ao nível da Europa, ou sequer de Lisboa, onde as tribos de origem semítica se destacavam pelo exercí‑cio do mecenato, ou do coleccionismo assinalável. Mas no âmbito de uma certa domesticidade, e desde logo daquela em que o autor deste volume iria crescer, engastava ‑se a constância no cultivo das humanidades, e sobretudo das belas letras, manifestada nas rotinas da leitura, na acorrência a concertos de música erudita, e a espectáculos teatrais, com ou sem o condimento de um meridiano mundanismo.

Nesta panorâmica, e ao longo da década de 50, o Porto esvair ‑se ‑ia no pro‑tagonismo da sua intelligenzia, o que notoriamente aflora, quando compara‑mos os frutos de então com os que o esmaltaram no último quartel do século precedente. Extintos os abanadores da Árvore das Patacas, tornados do Brasil, mas sobrevivente ainda abundante progénie deles, qualquer tardio confrade encontraria no self ‑made man, gerado pelo capitalismo pós ‑bélico, o tipo humano capaz de ombrear com brasuca pé ‑de ‑chumbo. Mas a fortuna dos par‑venus, enfeitada com um título de conde, comprado à Santa Sé, achar ‑se ‑ia razoavelmente acolhida, em virtude da penúria circundante.

Na travessia da década os van Zellers, e o seu jovem descendente, mantêm usos de ilustração que falham aos oriundos da classe média, a muitos da pequena burguesia, e à esmagadora maioria do operariado, e que lhes haviam sido inculcados por uma cadeia geracional ininterrupta. Daí que o autor de Johnny Boy leia o que importa de livros e revistas e, estudando embora em escolas e liceus que se integram no ensino oficial, beneficie de um pragmatismo mais exigente do que o adoptado nos colégios particulares. Cruza ‑se com perso‑nagens relevantes, um Teixeira de Pascoaes, uma Sophia de Mello Breyner Andresen, um Ruben Andresen Leitão, estes aliás seus familiares, e admira à distância os actores que recebe pelas ondas radiofónicas, e os pintores repre‑sentados nas salas do Museu Soares dos Reis. Assiste ao cinema possível, dedica ‑se aos desportos nas modalidades ao dispor, cumpre os códigos com reverência, e infringe ‑os com alegria. Adquirindo progressivamente uma arguta «consciência de classe», desloca ‑se por festas que não são os sobreditos «bailes», e por bailes parcamente «festivos», e opta por Deus definitivamente.

A páginas tantas, informa ‑nos ele, isto em 1958, «decidi propor a meus Pais ir passar os três meses de férias grandes à Alemanha, para aperfeiçoar o domí‑nio do idioma alemão, trabalhando primeiro num campo de refugiados perto de Heidelberg, e depois, numa drogaria, em Koblenz ‑am ‑Rhein. Na volta, e na

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estação de Aveiro onde parava o Sud ‑Express», recorda João van Zeller, «vejo a minha Mãe sentar ‑se ao meu lado na carruagem onde eu regressava, a encher‑‑me de beijos e a tremer de emoção pelo reencontro». Parágrafos adiante, e por uma dessas eloquentíssimas mises en abyme que nos salvam de nós próprios, evoca ele a madrugada de 1999 em que a Mãe lhe morreu. Para quem acredita que se escreve para recuperar uma inocência perdida, e para quase nada mais, este salto de um presente para um futuro resume a mais preciosa das sabedo‑rias, a de que o paraíso se encerra no regresso de uma viagem intemporal.

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Nasci três semanas depois do protagonista desta peregrinação, fomos bap‑tizados na mesma Igreja, a do Santíssimo Sacramento, meu Pai foi dado à luz numa casa que, de muito menores proporções, se situava defronte do casarão dos Andresen na Avenida da Boavista, e nela morreria meu Avô antes do meu ingresso no Planeta. Condiscípulo de turma de Johnny Boy no Liceu Alexandre Herculano, labutei por dois lustres e meio, desempenhando funções de técnico no Ministério da Cultura, num edifício fronteiro àquele onde ele abrira os olhos. Também me debrucei, mas em sítios diferentes do litoral do Norte, para essas «poças dos rochedos, reaparecidas como que por milagre duas vezes por dia», e como o pequeno João pesquisei «camarões, búzios, mexilhões, caranguejos e estrelas ‑do ‑mar.»

Que procurávamos nós? O rosto da criança que éramos, esquecida por ins‑tantes do jogo das cores do caleidoscópio, e do brilho dos espelhos que nele vagarosamente desfalecia?

Mário CláudioNovembro, 2018

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Palavras prévias, por João van Zeller

Esta tentativa de dezoito anos autobiográficos fez um esforço para coa‑dunar a memória dos factos com a sua verdade. Apesar disso, o resultado pode ser involuntariamente tingido de memória criativa aqui e ali, e também de omissões ininteligíveis, ou inclusões injustificáveis, resultado das disfun‑ções próprias da psicologia, situadas entre a consciência e a realidade.

Corroborar tudo o que está escrito teria sido tarefa inglória, até porque muitos testemunhos já desapareceram ou são difíceis de contactar. Possivel‑mente essas ausências acabam por ser uma absolvição ou uma condenação silenciosa para o que tenha saído menos bem. Mas, apesar de não estar des‑contente com o resultado, ficarei para sempre algo céptico em relação ao que o correr da pena retratou sobre uma época, ambientes e pessoas do Porto, que agora parecem pertencer a um estrato histórico do século XX tão efé‑mero ou banal como qualquer outro.

Muito me perguntei sobre a relevância deste escrito. A opinião generosa de algumas mentes esclarecidas, apesar de me deixarem a dúvida sobre o peso da amizade na apreciação da questão, acabaram por me fazer decidir romper, a custo, uma parte da barreira dessa hesitação, e entregar este texto ao papel impresso.

O que aqui se descreve são apenas ingénuas historietas ocorridas entre 1941 e 1960 em alguns dos muitos cenários que o Porto apresentava nesses anos. Foram palcos de um rapazinho no contexto de uma família burguesa, vivendo em apertada austeridade, mas com o intangível peso de alguma tra‑dição na cidade, graças a um passado que aí legou marcas na cultura, em nomes de ruas, em instituições, etc.

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O pano de fundo da tremenda pobreza que então existia em Portugal reflectia ‑se de forma bem clara na cidade do Porto, e na Província que então me era dada a conhecer no Douro Litoral até Amarante, e no Alto Douro. Eram cenários difíceis de serem imaginados pelos millenials de hoje: em muitos bair‑ros e «ilhas» do Porto, assim como em zonas da Província, era visível o pé des‑calço, a subalimentação, a iliteracia, a ausência de um tecto decente, etc. Se, por um lado, o testemunho da miséria me deixou um rasto forte e muito penaliza‑dor, por outro, alavancou uma ambição crescente na luta contra a adversidade alheia e própria. Em retrospectiva, o ambiente burguês de uma Família como a minha acabava também por ser o retrato das complexas diferenciações sociais então existentes, hoje difíceis de julgar sem ter em conta o contexto his‑tórico e os valores predominantes na cidade do Porto e no Portugal da época.

Da porosa transversalidade social que me foi dado viver resultaram valores morais incontestáveis, alicerçados na Religião Católica, e na Família. Apesar da leviandade de muitos dos condottieri de então, e das contradições sociais e políticas que nessas tenras idades eram difíceis de julgar, a vida processava ‑se sem grandes dúvidas, entre o sim e o não, a culpa e a inocência, o preto e o branco.

Além da Família, a alavanca mais poderosa da minha educação foram a Escola Primária Oficial e os Liceus do Estado, em que a estatura intelectual e moral e a exigência didáctica da maioria dos professores brilhava no Olimpo. A eles, eu, e muitos da minha geração, ficámos a dever uma forte semente de conhecimento de base humanista, e um exemplo que nos foi dado de dedica‑ção, disciplina e rigor no ensino, que tanto influenciou a formatação de muitas das nossas personalidades. A maioria desses professores acabou injustamente esquecida, vazios insólitos quando se pensa que eram eles que iam cimen‑tando de forma admirável os alicerces de todo um país num periodo tão parti‑cular da história.

Marcante era também a prática do desporto competitivo, que no meu caso ocorreu na vela, no atletismo e no andebol. A crueza dos resultados, quer na derrota, quer na vitória, acabava por desenhar o carácter, consolidar ami‑zades com companheiros de equipa e adversários, e admirar, reconhecidos, a generosidade dos monitores, treinadores e apoiantes. Ver o nome nos jornais, curiosamente, era apenas divertido, sem mais. Os Pais, esses, ficavam arreba‑tados.

A transgressão dos meios onde eu circulava era, nesses anos, ingénua e predominantemente sexual, num universo hoje difícil de entender. Toda a

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PALAVRAS PRÉVIAS

questão do sexo e da relação com o sexo oposto apresentava ‑se como uma grande cacafonia, produto das lacunas que nessas áreas existiam na educação de então. Para além da transgressão, acima de tudo estavam as nossas namo‑radas, que eram dogmaticamente virgens e, quanto maior a paixão e o amor, mais intocáveis se tornavam. Assim, a experiência do primeiro amor era causa de grande insegurança, sofrimento, perturbação, indecisão, mistério, culpa, remorso, coração em terramoto, idas e vindas de vergonha e coragem.

Mas, por outro lado, os amigos eram frontais, próximos, cúmplices, desassombrados, fiéis, amizades que ficariam para a vida. Estudar De Amiti‑tia do Cícero, no sexto ano do liceu (décimo primeiro de hoje), ajudava a sublinhar os deveres inquebrantáveis da amizade, que não conhecia barrei‑ras sociais ou de qualquer outro tipo. Cinquenta ou sessenta anos depois, muitas dessas proximidades estão preservadas, quer no mundo real quer no imaginário. Revisitar nomes de amigos e amigas desaparecidos ou afastados pelo rolar do tempo é reavivar fidelidades ideais que, surpreendentemente, se revelam nunca esquecidas e, muito menos, traídas.

Mantinha ‑se épica correspondência manuscrita e frequente, circulada em envelopes com selos do correio carimbados nos CTT, com a data. Um ritual regularmente celebrado com as platónicas namoradas, os amigos, a família, as empregadas, num abrir de coração sem culpas nem reticências. A ingenuidade desses escritos, deixando transparecer a menoridade na quali‑dade da expressão, dotava ‑os de verdade reforçada.

Já na adolescência, a literatura e o cinema levantaram o véu do sexo a sério, do amor a sério, da moralidade ou imoralidade a sério. E as permanen‑tes novidades que a ficção novelesca e cinematográfica nos traziam, se por um lado teorizavam a prática da amizade, verdade, lealdade, dedicação, amor, sucesso, por outro deixavam ‑nos a desconfiar do que era morte, ódio, hipocri‑sia, mentira, traição, adultério, poder, guerra, crime, fracasso, tirania, revolta, intolerância, cada um contra todos. E a duvidar da existência de Deus.

A austeridade foi uma norma vivida pela maioria dos rapazes e raparigas do meu entorno, uma das mais importantes lições vividas pela minha gera‑ção. Em criança, o brinquedo era uma raridade, a diversão em locais públicos quase inexistente. E a adolescência era o tempo em que não tínhamos dinheiro nenhum, se caminhavam quilómetros para poupar uns cêntimos nos transportes, e nos cinemas sendo a regra comprar bilhete para o segundo balcão ou galinheiro, e a excepção a plateia. Convidar a namorada para lan‑char era um investimento muito pensado, resultando sempre num duro

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golpe no esquálido porta‑moedas. Frequentar restaurantes, mesmo com a Família, estava fora de questão, e um simples bolo ou a modesta revista de banda desenhada eram adquiridos com tostões espremidos.

A autoridade, tal como os dogmas, era aceite, incontestada, e incontor‑nável, num ambiente em que os Pais, os professores e os chefes eram líderes e as obrigações filiais, tais como as outras, seguidas à letra ou, quando viola‑das, deixando um pesado rasto de culpabilidade. Os rebeldes e os que gosta‑vam da agressão física ou psíquica eram a excepção, a mais das vezes dotados de carácteres verticais, quantas vezes transformados em heróis respeitados. Mas se as notas dos estudos falhassem era o opróbrio. A queixa ou a denúncia eram desprezadas e os seus autores marginalizados. Ainda não se percebia o alcance do mal e da hipocrisia, sendo por então bem mais perceptível a exten‑são do bem, que transportava alívio e era redentor.

Estes quadros do dia a dia da vida de um imberbe portuense dos anos 40 e 50 são relatos em historietas sem pretensão. Contam os primeiros dezoito anos de qualquer vida banal no quadro de uma cidade com uma identidade muito forte, em verdes idades em que todos éramos eternos, sem malícia, sem vícios, com maldades ingénuas, com intuitiva fé nas amizades, no mundo, nos homems e nas mulheres que nos educavam.

A formação que a solidez da cidade e da família do Porto me conferiram, possibilitaram bem cedo a capitalização exponencial das duas férias grandes de 1958 (a trabalhar na Alemanha, país ainda com as cicatrizes da Segunda Guerra Mundial à vista) e de 1960 (volta a uma Europa de múltiplas e sur‑preendentes identidades, em auto ‑stop). Reflectir sobre o colossal impacto que essas janelas luminosas tiveram nos meus seguintes cinquenta anos de vida traz uma nostálgica gratidão a meus Pais, que tão criticados foram por me deixarem abalar à aventura apenas com dezasseis anos, com tão parco dinheiro no bolso. Foi o abrir da cortina do verdadeiro e cru palco da vida, um privilégio que permitiu das duas vezes (a segunda com dezoito anos), e quase sem recursos, tocar no limite do desconhecido, da aventura, do risco, da des‑coberta.

Os tempos de hoje, apesar de uma sociedade portuguesa infinitamente mais próspera, não são nem melhores nem piores do que aqueles aqui retra‑tados. São muito diferentes. Como todos os tempos foram sempre diferentes dos seus anteriores.

E nos dezasete/dezoito anos de vida decorrida no Porto ainda não havia nem vitórias nem derrotas, a ambição e a concorrência ainda não destapara

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PALAVRAS PRÉVIAS

os seus difíceis contornos, a necessidade de sobrevivência ainda não emer‑gira na pele, todos se davam bem com todos, ainda nenhum amigo nos falhara, a solidão e verdadeira dor eram ainda desconhecidas.

O Porto daqueles anos médios do século XX era empreendedor e tra‑balhador incansável, virado para dentro, melancólico, cinzentão, onde a alegria popular parecia explodir apenas nas noites de S. João ou nas vitórias clubísticas.

O século XXI mudou a cidade radicalmente, trouxe arejo, juventude, modernidade, cosmopolitismo, mantendo por outro lado, e exponenciando, a sua incomparável dedicação ao trabalho, ao empreendedorismo, e à defesa do seu inimitável carácter. Essas mudanças conseguiram consolidar o amor ao Porto, independentemente das distâncias físicas que nos separam há mais de cinquenta anos.

Por tudo isso, este é um texto sem sombras.

Estoril, Novembro 2018

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Johnny BoyIntroduçãoCorrespondência de 1941 a 1942

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Pedro Magalhães e Menezes van ZellerRua António Cardoso, 222Porto

Exmº SenhorDr. Carlos SilvaLeal SenadoMacau

20 de Outubro de 1941

Meu caro Carlos,

No passado dia quinze nasceu ‑me o terceiro filho. Baptizei ‑o de João, mas o meu irmão Rolando resolveu chamá ‑lo Johnny Boy! A Alzira, a quem tu sempre trataste por Zicas, se tivesse sido menina, tinha ‑lhe chamado Teresa, pois dia 15 foi de Santa Teresa de Ávila.

Correu tudo bem, e a Zicas está feliz, com a Família Andresen toda à volta. O meu filho Pedro, agora com cinco anos, e a minha filha Fernandinha com quatro, estão ambos cheios de ciúmes do bebé!

Sinto ‑me menos Magalhães e Meneses e menos van Zeller que nunca, nesta zona do Porto: quando o eléctrico número 3 pára aqui, no fim da linha da Rua do Campo Alegre, o condutor grita: Ándres! Não admira: aqui ao lado mora o João Andresen, casado com a Maria Mello Breyner: ele no limiar da inteligência, e ela é mãe de uma geração de miúdos espertíssimos: Johnny (quer ser arquitecto), Sophia (tem veia de poetisa), Tomás (é um verdadeiro diplomata) e Gustavo (de quem sou mais amigo). Ao fundo da Rua António Cardoso está a casa Andresen, já na Rua do Campo Alegre, mas vejo ‑a aqui da janela. Em frente tenho a Teodora Andresen (de Abreu), grande pintora, sobretudo depois da sua passagem por Paris. Borda em linho peças lindíssimas. A Teodorinha e o Fernando, filhos dela, estão agora a sair daqui. A irmã, a Olga, como sabes casada com o António de Almeida, não tem filhos, mora numa bela casa na Tenente Valadim, que quase confina, depois da Av. da Boa‑vista, com a António Cardoso: fez um espalhafato ontem à tarde! E entre a Avenida da Boavista e a Rua António Patrício (onde morei logo depois de me casar) vive numa enorme mansão a minha sogra, a Senhora D.ª Alzira, rainha de um verdadeiro matriarcado, com a

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filha Elsa, o genro António Nicolau de Almeida e as duas filhas e filho: Elsa, Olga e o Antoninho. Um casarão que foi feito pelo con‑tabilista do meu sogro. Um jeitinho às contas deu ao meu sogro a falência da Casa Andresen, e ao gerente a possibilidade de cons‑truir aquela casa, num jardim de quatro hectares com lago, barco a remos, espécies botânicas raríssimas, estufa aquecida para terem ananazes no Inverno, e o casarão com três salas de visitas, sala de bilhar com «marquise», casa de jantar para trinta pessoas, salão de baile, sala de piano (com dois pianos e um órgão!), tudo com madeiras exóticas vindas do Brasil, e vidros cinzelados vindos de França: um exagero de roubo. O meu sogro, sem dinheiro, teve de vender a Quinta do Monte, na Foz, e instalar ‑se na casa do conta‑bilista!

Com toda esta vizinhança, não admira por isso que eu tenha a casa invadida de Andresens com o Joãozinho recém ‑nascido, gordo, anafado, e muito mimado por tanta mulher! Sim, porque estiveram cá também as outras irmãs da Zicas: a Inês (casada com o António Castro Henriques, lembras ‑te?), e a Lídia, solteirona, mas ainda muito bonita. E de Oliveira de Azeméis vieram a Livinha Monteiro, a Tia Otília e a Tia Zé, prima e tias da Zicas. A Mimi deve chegar de Lisboa amanhã. Os Brions não a deixam sair de Lisboa!

Amanhã devem vir também os Magalhães e Meneses. E depois, os van Zeller, finalmente! O baptizado vai ser uma festa. A minha Mãe não se conforma muito com festas, pois o meu Pai Fernando morreu, como sabes, no passado dia vinte e cinco de Maio.

A Rita minha cunhada está muito descontente com o testa‑mento do meu pai. Ameaça com Tribunal! Eu não ligo muito a essas coisas, mas os meus sobrinhos ficaram prejudicados. O que vale é que o Luís Vasconcelos Porto, pai da Rita minha cunhada, e avô dos miúdos (quatro), é rico.

A Zicas vai ter que ficar cá pelo Porto e ver ‑me pouco. Efec‑tivamente, eu lá regresso a Mogadouro por mais um ano, como Delegado do Procurador da República: na pensão, as camas têm piolhos; e neste Inverno que vem a água de certeza que vai gelar nos canos. No ano passado, o frio foi tanto que o meu bafo fazia‑‑se gelo na borda do lençol!

Recebe um abraço do teu Amigo

Pedro

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Carlos SilvaLeal SenadoMacau

Exmº SenhorDr. Pedro Magalhães e Menezes van ZellerRua António Cardoso, 222Porto

29 de Dezembro de 1941

Meu caríssimo Pedro,

Só agora recebi a tua carta de Outubro, anunciando o nasci‑mento do João (Johnny? O teu irmão quere ‑o britânico?) Parabéns a ti e à Zicas: ficam com dois rapazes e uma rapariga. A diferença de cinco anos para os irmãos é capaz de lhe trazer muito mimo: take care.

Veio cá o Ministro das Colónias (o Francisco Vieira Machado) que me causou uma grande maçada. Como sabes, ele arranha mal o Inglês, e pediu ‑me para traduzir o discurso que veio pronunciar no Leal Senado. Eram quatro páginas prolixas. A minha tradução em bom e conciso Inglês deu uma página e meia. Foi do bom e do bonito: achou o discurso demasiado curto e acusou ‑me de forma desabrida de o ter censurado: queria ‑me instaurar um processo disciplinar!

Sei dos dramas do testamento do teu pai, que muito prejudicou os filhos do teu falecido irmão Cristiano, sobretudo com a Quinta de Roriz, os terrenos do Porto e muitos bens móveis que ficaram de usufruto para a tua mãe, Senhora D.ª Fernanda, e raiz para ti e Rolando. Mas que grande maçada! Espero que isso não te traga arrelias.

Enquanto em Mogadouro morres de frio, muito calor por cá. E de Coimbra não tenho saudades!

Um abraço do

Carlos

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Alzira Andresen van ZellerRua António Cardoso, 222Porto

Exm.ª SenhoraD.ª Adelaide Vilalva de Magalhães e MenezesCasa da FaiaAmarante

20 de Julho de 1942

Querida Tia Adelaide,

Muito obrigado pelo convite para ir passar uns dias à Faia. Vou com a Fernandinha e o Johnny. O Pedrinho está um pouco difícil, por isso é melhor ficar cá no Porto, em casa da Teta Correia de Barros. A Teta, como a Tia sabe, é irmã do meu cunhado António Nicolau de Almeida, e adora o Pedrinho. O marido dela, o Manuel Correia de Barros, é muito distraído, mas muito inteligente. Anda a escrever um livro sobre São Tomás de Aquino, o que o traz mais nas nuvens do que nunca. Têm um cão espertíssimo, o Spitfire, que o distrai, e que entretém muito os pequenos, que são muito cuida‑dos pela Glória, criada deles desde que casaram.

Vou então para a Faia no próximo dia 26: apanho a caminheta de carreira das duas e meia, que deve estar ao pé do estradão da Faia por volta das quatro e meia. Muito obrigado por mandar o carro de bois ir ‑nos buscar à estrada.

Estou morta por estar com a Tia Maria de Soutelo e com a gente de Pascoaes. Veja se o Joaquim Teixeira de Vasconcellos (agora já toda a gente o conhece por Teixeira de Pascoaes) aparece por aí com as irmãs, a Senhora D.ª Miquelina e a Senhora D.ª Maria da Glória!, pois gosto muito deles todos.

Tenho lido tanta coisa do Joaquim! Acho ‑o um poeta místico e humilde, e que já escreve como ninguém há mais de 50 anos! Cal‑culo que esteja agora com 65 anos… Espero que os meus filhos não se assustem com ele: anda tão farfalhudo e corcovado!

Acho que ele continua com uma paixão pela minha sogra e sua irmã. Agora que o meu sogro morreu, dizem que o Joaquim Teixeira de Pascoaes quer outra vez casar com ela, tal como já queria há 50 anos. A Tia Fernanda nem sabe o que lhe dizer! E o Pedro meu

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marido, e o Rolando, como filhos, estarrecidos! Desculpam ‑no: coisas de um austero poeta… E ainda por cima influenciado pelo Unamuno, que tanto tempo passou em Pascoaes e Amarante. Tendo‑‑me convertido ao catolicismo, como a Tia sabe, bastante antes de me casar com o Pedro, não posso concordar mais com o Pascoaes, em duas frases que muito me impressionam: «A vida não é senão um grito que Deus escuta» e «Deus depende da luta entre aqueles que O negam e aqueles que O afirmam». Não acha tão bonito?

Muito obrigado por me ter dado de presente a assinatura da Flor do Tâmega: esse jornalzinho faz ‑me sentir como se estivesse sempre aí em Amarante! Já sem falar de «Embryões», com que me delicio!

Já sei que o seu irmão Tio José continua com o vício do jogo. Imaginem: o Barão de Vilalva a ter que vender essas terras todas para pagar dívidas ao Casino de Espinho. Ainda bem que a Casa da Faia escapa! Mas para a tia Adelaide deve ser uma tristeza e uma ralação.

Como estão a Emília e a Joana? Pensar que estas manas suas criadas, que aí nasceram, já estão com mais de 60 anos!

O Johnny está muito gordalhufo: a tia Adelaide e as criadas vão gostar muito de o ver.

Um grande beijo da sobrinha muito amiga,

Alzira

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CASA DA FAIAAmarante

Exm.ª Senhora D.ª Fernanda de Magalhães e Menezes van ZellerRua Miguel Bombarda, 641Porto

5 de Agosto de 1942

Senhora Dona Fernanda,

Aos 70 anos já não há quem me ensine a escrever. Por isso estou a ditar ao recoveiro estas palavrinhas, para desejar a V.ª Ex.ª muitos anos de vida por ocasião do dia de hoje, que são os anos de V.ª Ex.ª e da Senhora D.ª Alzira.

A Fidalga Senhora D.ª Adelaide e sua irmã tem andado muito ralada com as despesas do Senhor Barão de Vilalva, vosso irmão. O Senhor Barão tem parado pouco cá na Faia. Agora que veio de Moçambique com algum dinheiro, desculpe ‑me V.ª Ex.ª, mas não há quem o pare. O Senhor Dom Fernando, Conde de Villas Boas e irmão de V.ª Exc.ª esteve cá a passar dois dias e muito contou à Fidalga e à Senhora D.ª Alzira sobre essas desventuras.

A Senhora D.ª Alzira trouxe com ela o menino Johnny para passarem uns dias cá na Faia. É um amorzinho este neto da Senhora D.ª Fernanda: estamos todas embeiçadas. No Domingo, o Senhor Abade veio cá rezar Missa e abençoou ‑o. A Fidalga não pára de lhe dar mimos. A Senhora D.ª Alzira até ralha à Fidalga por causa disso. A menina Fernandinha, que também veio, com os seus 7 aninhos, está muito bonitinha e educadinha.

Não sei se a Fidalga contou, mas na curva do José do Telhado, esse homem que ensinou o Senhor seu Pai a montar a cavalo nestas terras (e segundo me dizem, falecido em Angola no desterro há 50 anos,) ainda anda gente a assaltar quem por lá passa desprevenido! O Manel da Horta ficou lá há 15 dias sem cinquenta mil reis, sob a ameaça de uma escopeta! Tenha cuidado quando por aqui vier!

As rendas devem ser boas este ano: talvez 20 carros de pão para a Fidalga.

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Morreu confortado com os Sacramentos da Santa Madre Igreja o Bêbedo do Joaquim da Adonela. Foi a enterrar ontem no cemi‑tério de Freixo de Baixo, com o povo todo cá da Faia a acompa‑nhar. O Senhor Abade fez uma encomendação muito bonita.

Os patos, muito branquinhos, são 42, e também 2 galos e 34 galinhas. No quintal o Joaquim de Soutelo cortou os buxos com a forma de um peru, de um pavão, e de um cão, e que estão muito parecidos com os verdadeiros. Os arcos dos buxos também ficaram muito bem cortados e bonitos.

Respeitosamente esta sua criada, e também com muitos cum‑primentos da minha irmã Joana, assina ‑se pelo recoveiro,

Emília

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Alzira Andresen van ZellerRua António Cardoso, 222Porto

Exma SenhoraD.ª Maria Amélia Andresen de BrionRua Garcia de Orta, 41, 2ºLisboa

Praia da Granja, 30 de Agosto de 1945

Querida mana Mi,

Lá fomos este ano para a Granja. Viemos do Porto de comboio. Alugámos aquela casa no fundo da esplanada, mesmo em cima do mar. Nem dormir se pode com o barulho das ondas. Mas é tão bonito…

Apesar das grandes ralações dos negócios do Pedro, a nossa vida é sossegada, e é praia e mais praia: é só sair da cozinha e já estamos na areia! Tivemos a visita da Xixa1, que nos fez um poema lindo, e passou a tarde a contar histórias de fadas aos pequenos.

O Pedrinho, a Fernandinha e o Johnny têm gozado imenso os banhos de mar, e na maré baixa pescam caranguejos e camarões e apanham montes de lapas e mexilhões nas poças entre os rochedos. Mas dão ‑me muito trabalho: estão tão traquinas… Imagina que os três, creio que encorajados pelo Pedrinho, fizeram uma cova na areia bem funda, e depois enterraram lá o Johnny, que só ficou com a cabeça de fora, muito divertido por não poder sair de lá. Não sei quanto tempo esteve lá, mas o Pedro foi dar com ele já a chorar. Tivemos que o levar ao Hospital para o tratarem do escaldão que apanhou na cabeça, que ficou vermelha como um pimentão. Apanhou um febrão, claro, e esteve quatro dias sem poder ir à praia.

Às vezes só com o Pedro, outras, ao fim da tarde com ele e com os miúdos, adoro fazer uma caminhada, descalça, pela areia da praia molhada, com as ondas a morrerem a meus pés. Não ima‑ginas a quantidade de beijinhos que encontro, a maioria destes

1. Sophia de Mello Breyner Andresen.

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caramujos com uma cor de pérola brilhante, mas todos vazios dos seus animaizinhos. Nunca houve um ano que os encontrasse tão facilmente. Com os dezasseis que encontrei estou a fazer um colar de «pérolas/beijinhos» para a Fernandinha!

A nossa prima Olga, no casarão aqui ao lado, ainda não nos convidou para lá ir. O António Almeida está cada vez mais rico. É pena não terem tido ainda filhos.

Vamos os cinco para o Couto, para casa da mãe, na semana que vem. Apanharemos o comboio do Vale do Vouga em Espinho, e sai‑remos em Cucu jães. A Maria vai ‑nos buscar na carroça com o bur‑rico, para depois nos subir até à casa do Couto. O Pedrinho não gosta nada daquilo, a Fernandinha assim assim, e o mais pequeno, coitado, ainda não percebe!

Saudades ao Pedro e para ti um grande beijo da tua mana,

Alzira

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Maria Amélia Andresen de BrionRua Garcia de Orta, 41, 2º DtºLisboa

Exm.ª SenhoraD.ª Alzira Andresen van ZellerCasa do CoutoCouto de CucujãesOliveira de Azeméis

20 de Agosto de 1947

Querida Zicas,

Estou ‑te a escrever aí para o Couto de Cucujães, muito preo‑cupada com as notícias que tenho recebido sobre o negócio da cortiça do teu marido. Disse ‑me a nossa mãe que ele apareceu aí no Couto num Ford descapotável de duas portas, em que a mala de trás se abre, e é um assento para duas pessoas. Anda entusias‑mado a passear toda a gente no «espada». Acho que ele devia ter juízo e estar mais discreto. Tenho a obrigação de te dizer que tenho as piores informações sobre o sócio dele. Venho, no maior dos segredos, recomendar ‑te que aconselhes o Pedro a travar enquanto é tempo. Eu sei que ele herdou muito do pai (ou vai herdar, se é que a tua sogra ficou usufrutuária). Dizem ‑me que o que o sócio quer é apanhar ‑lhe todo o dinheiro que tiver, e o da tua sogra também. Sou a tua irmã mais velha, e és a minha mana preferida. Ziquinhas, faz o que puderes para evitar algum desastre.

Por aqui, eu estou encantada. O Petito (nunca sei porque é que se lembraram de pôr ao meu filho Henrique este petit ‑nom) tem uma namorada que é um encanto de simpatia e muito bonitinha e ani‑mada. Imagina que se querem casar para o ano! Que achas destas notícias? O meu marido Pedro está todo contente com a futura nora! Eu gosto muito dela. Chama ‑se Lourdinhas Pereira e o pai parece ter muito dinheiro, mas a dar ‑se mal com a mulher. Enfim, vamos a ver!

Recebe um grande beijo da tua irmã que te adora,

Mimi

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Adelaide Vilalva de Magalhães e MenezesCasa da FaiaAmarante

4 de Março de 1948

Querida Ziquinhas,

Recebi uma cartinha da tua filha Fernandinha que gostou muito da cá ter estado.

Agora é a vez do Joãozinho, um amor de criança. Não entendo porque lhe puseram esse nome de Johnny, coitado! Não gosto nada, e nunca o irei tratar assim!

As criadas Emília e Joana (já têm setenta e cinco e setenta e sete anos: pensar que nasceram cá na Faia!!!) têm muita paciência para ele. A Emília, com muito jeito para contar histórias, quando está a fiar o linho na casa da costura repete ‑lhe muitas vezes a do «Março Marçagão» que o deixa amedrontado. A Joana agora passa o dia na parte de cima da lareira da cozinha para ficar juntinha ao lume, a rabujar, e a fazer renda. Mas ele não se importa. E não pára de brincar com a gente da Adonela (estão sem dinheiro para pagar os três carros de pão que me devem, acho que vou ter que lhos perdoar, apesar de me fazer muita falta). Descem a ladeira que vem do tennis no triciclo de madeira que fizeram no ano passado, com tanto jeito, só com lenha cá de casa. A Adelaide, sobrinha da Joana e da Emília, já namora com o Ernesto, bom rapaz, mas pouco esperto. Ela aprendeu a fazer o arroz de cabidela com a Joana, fica uma maravilha. A broa que faz no forno da cozinha é que a deixa sempre saborosa, mas um pouco azeda. O Ernesto deu‑‑lhe umas arrecadas de ouro muito bonitas que herdou da mãe: tão pobre e a dar essas coisas!

O teu filho acorda todos os dias às oito. Tem dormido no quarto da cama de dossel grande, no andar de cima. Gosta muito dos lençóis de linho que são mudados todos os dias, e cheiram muito bem à alfazema que ponho nas caixas onde os guardo. Essa alfazema é o Ernesto que a apanha e seca. A Joana prepara para o banho do teu filho a tina do quarto de banho de baixo, e enche ‑a com jarros de água a ferver que vêm a fumegar da cozinha. Ele parece não gostar de se enxugar àquelas toalhas de linho tão boni‑tas que cá tenho, que também as tenho sempre a cheirar muito bem

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a alfazema. Diz o Joãozinho que ficam logo todas molhadas e que fica com frio. Constipou ‑se um pouco: deve ter sido por isso. Diz que o banho cheira a fumo: é natural… já que a água é aquecida nos potes da lareira da cozinha que fuma muito.

Durante o dia não pára: vai para o jardim, vai para a eira, vai para o tennis, e corre pelos campos lá de baixo a aprender as can‑tigas das moçoilas que andam lá a trabalhar. Já o levei a Soutelo no carro de bois. Gosta muito de brincar nos caneiros com barqui‑nhos de papel que ele próprio faz dos jornais velhos. É vê ‑lo feliz, a correr atrás dos barquinhos que descem na correnteza dos regatos.

Almoça e janta sempre comigo na sala de jantar: sente ‑se muito importante por isso, mas à mesa não fala. Devem ter sido tu e o Pedro que lhe ensinaram que à mesa os meninos são para ser vistos e não ouvidos. Tenho pena: gostava de conversar mais com ele. Mas a verdade é que come o que a Adelaide lhe serve, e parece gostar muito de tudo. Estou mesmo a ver que foste tu e o Pedro a ensinar que se não gostar, tem de fazer cara alegre e engolir inteiro! Foi?

À noite, reza o terço comigo e com o pessoal todo, na Capela, e depois, junto ao fogão da sala, fica a folhear os números antigos da revista Flama, e não se cansa do Almanaque de Santo António.

Como sabes, pedi ao Abreu, da Fábrica das Urnas, ali à saída do estradão, na estrada principal, para levar o Joãozinho para o Porto. O negócio dos caixões deve estar a render: comprou já uma caminheta pequena marca Peugeot, que entusiasmou o teu filho.

O Senhor Abade agora só vem cá rezar Missa à Faia uma vez por mês. Tenho por isso de ir quase todos os Domingos à Missa à Igreja de S. Gonçalo de Amarante. Vou de carro de bois, faço uma paragem na Casa das Lérias ou na Lailai para comprar uns doces de ovos, de que o Joãozinho é muito guloso (sobretudo dos Papos de Anjo e das Barrigas de Freira). Em Amarante são todos muito bons comigo, mas por mais que eu insista, não deixam de me tratar por Fidalga, o que me contraria. No fim da Missa encontro sempre a gente de Pascoaes, Alvellos, Soutelo, e os van Zeller de Amarante.

O tempo tem estado frio, com dois dias de sol envergonhado, mais dois ou três de muita chuva. Houve uma trovoada tremenda na quarta ‑feira, já tínhamos rezado o terço. Mas como parecia o fim do mundo, rezámos dez Pai Nossos e dez Avé Marias a Santa Bárbara. Graças a Deus, não houve desgraças. O teu filho já estava a dormir,

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e apareceu na sala cá de baixo a chorar com o susto, coitadinho, todo a tremer. Não admira: foi quase uma hora de trovões a ribom‑bar do Marão até aqui: parecia que nos ia cair o céu em cima.

Vê lá se mandas o teu filho para cá mais vezes. E também, sempre que quiseres, o Pedrinho e a Fernandinha pois gosto muito de todos os três.

Um beijo da tua tia muito amiga,

Adelaide


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