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LUIZ EDUARDO SOARES
TUDO OU NADA
A história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína
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S652t Soares, Luiz Eduardo, 1954-Tudo ou nada : história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína / Luiz Eduardo Soares. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012.
ApêndiceISBN 978-85-209-3103-5
1. Soares, Ronald. 2. Economistas - Brasil - Biografia. 3. Tráfico de drogas. I. Título.
CDD: 923.3 CDU: 929:330
Copyright © 2012 by LUIZ EDUARDO SOARES
No coração é que se travam as batalhas decisivas. Nessa remota arena em que Ronald Soares travou sua guerra com o destino, a vida venceu a morte. A causa, não tenho dúvida: a causa foi o amor incondicional
que seus filhos lhe devotaram. Por isso, o livro é dedicado a eles. Assim como seu pai, depois de uma estação no inferno, dedica a eles
seu futuro.
A memória de Mozart Augusto Soares Neto, que sonhou tanto com a liberdade do irmão querido, mas não teve tempo de celebrá-la.
A memória de André Urani, que nos deu tantas lições de tolerância, compaixão e criatividade, inventando saídas onde não havia
esperança.
SUMÁRIO
Agradecimentos 13
Uma tonelada de cocaína 15Fantasma 23The indians 29Educação sentimental 35Hóspede da rainha 43Plano de fuga 49Reiniciando a mente 53It’s show time 57Com o gosto de quem ergue uma xícara de chá 61O preso mais perigoso da Inglaterra 65Bunker 69O grande livro 73A rainha versus Lukas Mello 77No tribunal 81Os ratos fazem a festa 91A 39 minutos do apocalipse 95Por baixo de Londres 99Segura a onda, mister O 101Minas de uma guerra arcaica 107“Respeitosamente, venho lhe dizer que saí de meu corpo” 109Neurônios na geladeira 121Vinte e quatro anos de prisão 123Memórias do cárcere 129Rio, cinquenta graus 133A realidade segue um roteiro inverossímil 136A mulher que arrasta multidões 139Aclimatação no porquinho 143Baldeação no inferno 147O encontro desejado e temido 152A filha de Lukas no redemoinho 157Amor e ódio 161Uma ideia mortal envenena a manhã de sexta-feira 167Praga 173A visita da velha senhora 177A dor no espelho 183Sem fritura na fossa do subsolo 189Um poço de orgulho 191O caldeirão vai entornar 195Pena de morte 199Silêncio obsequioso 203Larápios de folhetim e os campeões da moralidade 209A bricolagem incandescente de patologias 213Armadilha, mortalha e gladiadores 217
Uma carta mudou seu destino 221Quando a vida era uma viagem 227Hippies contra yuppies na terra do sol & nos mares do sul 231Terra à vista 235O segundo ciclo de navegações e o negócio das drogas 237Cuba, Jamaica e o cargueiro colombiano 241Do fundo dos mais tenebrosos pesadelos 245O pó tem pressa 251O primeiro quilo de cocaína 257Encontro marcado na costa americana 265Do pó à heroína: a volta ao lar 271A sombra na coleira 275Gordon 279Velhos amigos 283Independência ou morte 289Acender uma noite no fogo da outra? Ou o gesto heroico? 297Um medo feliz 301Necrópsia antes da morte 305Episódios da vida romântica I 309Episódios da vida romântica II 315Episódios da vida romântica III 319Flagrantes da vida no mar: os tubarões-baleia 325Flagrantes da vida no mar: o albatroz de Gibraltar 331Travessia: o plano B ao sol do novo mundo 337Fausto 349
Notas do autor: 353Experiência versus mercado 353Meu reino por um veleiro 356
Este relato narra momentos dramáticos da vida de Ronald Soares. Os nomes e alguns
detalhes e locais foram trocados para preservar a privacidade dos personagens. Nesse contexto, não
me pareceu adequado manter o nome real do protagonista. Rebatizei-o, portanto. Talvez o
raciocínio não faça sentido. Talvez renomeá-lo tenha sido apenas um gesto inútil de pudor, tendo
devassado tão radicalmente sua intimidade. O que importa é reconhecer sua disponibilidade para
compartilhar experiências difíceis sem dourar a pílula, chamando o sofrimento, a ambição e o erro
por seus nomes.
AGRADECIMENTOS
Sou grato a Alexandre Mathias, que viabilizou este livro, quando dirigia a Ediouro; a Leila
Name e Antônio Araujo, e aos demais dirigentes e profissionais da editora, que acolheram com
entusiasmo e competência o livro, muito especialmente a Cristiane Costa, cuja leitura crítica
enriqueceu muito meu trabalho e foi absolutamente decisiva para decisões estratégicas que tive de
tomar face a alguns dilemas da estrutura narrativa. Registro também meus agradecimentos a Lucia
Riff, agente literária e amiga, cujas observações me ajudaram a corrigir e aperfeiçoar o texto final.
Sou grato também a André Batista, Paulo Mantuano, Tiago Borba e Katia Mello, colegas e
parceiros; e a Liane Azambuja da Silva, colaboradora permanente.
Não teria sido viável escrever este livro sem o apoio fraterno do senador Lindbergh Farias,
do reitor da UERJ, Ricardo Vieiralves, e de José Augusto de Souza Rodrigues, Marcos Rogério
Souza, Maria José Andrade, Melissa Mestriner, Fausto Trindade, Ernesto Salles, Mariana Gondim
Jacob, Sônia Ferreira da Silva, Ademir Picanço de Figueiredo, Letícia Nogueira, Cristina Serralvo e
sua equipe de suporte.
Sou grato pelos esclarecimentos técnicos ao dr. Jader Marques e ao dr. Tiago Lins e Silva.
Agradeço pelo estímulo e por pistas relevantes Eduardo Escorei, Helena Solberg, David Meyer,
Guilherme Coelho, Sérgio Resende, Marisa Leão, Gustavo Hadba, Marcos Rolim, Marcus Wagner,
Júlio Ludemir, Luiz Carlos Dumontt, Carlos Alberto D’Oliveira, Cláudio Ferraz, Einardo Luiz
Sérgio Henriques, Maria Clara e Einardo Bingemer, Tony Piccolo, Italo Moriconi, Domingos de
Oliveira, Daniel Segenreich, Luiz Martins, Letícia Almeida, Suzy Gentil e ao saudoso Gildo Marçal
Brandão, in memoriam.
Eugênio Davidovich me ajudou a compreender melhor a trajetória humana que descrevi e
minha relação com os enigmas que ela propõe. Uma conversa com Francisco Bosco sobre
arquitetura narrativa e ourivesaria literária, há alguns anos, quando eu testava ângulos e vozes para
contar esta história, foi decisiva para as escolhas que fiz. As sugestões de Rodrigo Loyer foram
sensíveis e agudas, como sempre. A leitura generosa e crítica de Flávio Ramos Tambellini foi
importante para a configuração final do trabalho. Além disso, o book trailer que Flávio e Gustavo
— com a contribuição talentosa de Tina Saphira — nos deram de presente enriqueceu minha
percepção do livro. Como agradecer um gesto de tamanha generosidade? Agradeço o interesse pelo
livro e a disposição de Marcus Vinicius Faustini a me acompanhar na transposição para o
monólogo.
Sou gratíssimo à generosidade de Chaim Litevski e Moira Ines Fradinger, assim como ao
apoio de Julia Powers, para que esta nave vá além fronteiras.
Marina Silva tem sido sempre inspiração renovada para crer no ser humano. Nunca é demais
reconhecê-lo. A amizade de Celso e Marilza Athayde ancora o barco, nas tormentas.
Estendo meus agradecimentos aos sempre irmãos, Marcelo, Martha e Kiko. E não poderia
ignorar a presença amorosa e encorajadora de Bruna, Paula, Gabriel, Fábio, Natália, Vicente,
Manuela, Irene, Flávio, Helene, José Carlos, Fernanda, Fabiana e Terezinha. Os netos, os dois
Antônios e Emanuel, encheram a casa de luz — o que faz toda a diferença.
Agradeço também e muito especialmente a José Carlos Escobar, padrinho deste projeto, o
qual não seria possível sem a incansável e generosa colaboração de Ronald Soares, cuja coragem de
abrir gavetas e coração constituiu a fonte e a própria razão de ser deste livro. Agradeço a boa
vontade de seus filhos para compartilhar memórias, sentimentos e reflexões. Sou particularmente
grato a meus pais, Marilina e Marcello, pela ajuda constante e confiança.
Como sempre, a solidariedade de Miriam Krenzinger Azambuja Guindani e os incentivos,
nos momentos de hesitação e desânimo, quando a tarefa parecia maior do que minha capacidade,
foram fundamentais, assim como suas críticas e sugestões. Seu talento natural para a edição de
estruturas narrativas tem me beneficiado, enormemente, ao longo dos anos. Por tudo isso, lhe devo
reconhecimento e gratidão.
1
UMA TONELADA DE COCAÍNA
Albino está recostado na poltrona de um pequeno avião, contemplando a paisagem. Ele voa
entre montanhas magníficas na cordilheira dos Andes, interior da Colômbia, bem abaixo dos picos
mais elevados.
Saiu do Rio, onde se encontrou com Lukas e recrutou DaCosta, passou por São Paulo, de lá
foi à Cidade do México, a Caracas, visitou algumas ilhas do Caribe e seguiu para Bogotá, de onde
tomou o voo para Pasto. É assim que funciona.
O comandante pede que os poucos passageiros apertem o cinto e se preparem para a
aterrissagem. Nesse momento, o avião acelera e sobe, vertiginosamente, até alcançar a altura de
uma alça de pedra negra, que se projeta sobre o abismo: é o aeroporto que serve à cidade de Pasto.
O avião oscila, identifica a direção dos ventos, circunda a pista, escolhe a direção mais apropriada,
distancia-se para encontrar a inclinação adequada e mergulha para o pouso que pareceria
improvável.
Albino é recebido na pista, senta-se na poltrona de trás de uma van japonesa e é conduzido
serra acima, em tortuosa velocidade, cruzando com uma farta coleção de carros que poderiam,
perfeitamente, fazer figuração em um filme dos anos 1970. A frota se arrasta por milagre nas
pinguelas estreitas.
Pasto tem o aspecto de um santuário maia, à sombra do vulcão Galeras, que se supunha
extinto até calcinar uma expedição científica, há algumas décadas.
No moderno hotel internacional, Albino é recepcionado por um funcionário dos anfitriões e
se desloca pelo lobby com a mesma familiaridade que demonstra ao saudar, na sala reservada, os
homens que o aguardam. Desse encontro resultará o acordo inicial com base no qual será,
finalmente, realizada, em algum ponto remoto, no interior da Colômbia, a reunião com o comando
do cartel de Cali.
Albino será conduzido serra abaixo, até o aeroporto, onde um avião o levará a um campo de
pouso, em meio à floresta.
Dois dias depois, participará das negociações de cúpula.
O encontro de cúpula é breve e deixa um saldo de poucas palavras, uma tonelada de cocaína
pura e 22 milhões de libras. A tarefa de Albino será, como sempre, fazer a carga chegar a seu
destino, estocá-la, distribuí-la entre negociantes europeus atacadistas — que revenderão aos
varejistas —, receber o pagamento e ressarcir os fornecedores colombianos, que controlam a
produção e se responsabilizam pela primeira etapa do transporte, que é aérea e leva o produto da
selva ao oceano, onde é recolhido por embarcações comandadas pelo grupo de Albino. O preço
final do pó pago pelos consumidores nas ruas da Europa e dos Estados Unidos corresponde a um
valor muito superior aos custos envolvidos na produção, na logística do transporte, na estocagem e
na distribuição, porque a droga que chega a quem cheira a cocaína tem um grau de pureza muito
inferior.
* * *
Os nove anfitriões reunidos numa sala rústica, em localidade inóspita e ignorada, em meio à
selva escura, levantam-se para cumprimentar Albino sem excesso de camaradagem. Voltam a
sentar-se. Albino senta-se entre eles.
Albino — Uma tonelada para a Inglaterra. Preciso de entrega imediata para não perdermos a
temporada da travessia do Atlântico, que termina em julho, como vocês sabem. Pago oito milhões
de libras até fevereiro do ano que vem. Oito mil libras o quilo. Isso dá bem mais do que doze mil
dólares o quilo.
Primeiro fornecedor — Uma tonelada de cocaína pura vale seis vezes mais, no varejo. Nós
entregamos o produto com quase 100% de pureza. Os varejistas multiplicam a quantidade por seis.
A pureza cai para 15%. Os caras ganhariam seis vezes mais do que nós. O preço praticado na rua, se
não houvesse nenhum outro custo, seria 600% maior do que o valor que você quer nos pagar.
Albino — Espera aí. As coisas não são assim. Nos oito milhões de libras já embuti boa parte
dos ganhos. Todos nós sabemos que a produção de um quilo de coca sai pra vocês por mil e
quinhentos dólares. Menos de mil libras.
Primeiro fornecedor — Nós sabemos que as coisas não são assim. São piores: você e seu
grupo vendem o quilo puro para atacadistas ingleses por vinte ou 22 mil libras, mais que trinta mil
dólares. Eles vão vender por trinta mil libras para o grupo que distribui a coca no varejo, o que dá
uns 45 mil dólares. Esse pessoal da ponta pode até manter o preço de trinta mil libras o quilo,
porque tira o lucro reduzindo a pureza em até seis vezes. Nós somos homens de negócio como você.
Sabemos fazer contas. Você quer que a gente aceite receber oito milhões de libras pela tonelada que
você vai vender a 22 milhões de libras? E que depois vai virar trinta milhões de libras, no mínimo?
E que no varejo vai virar muito mais? Sua proposta é indecente.
Albino — E os custos? E os riscos?
Segundo fornecedor — Você acha que nós não temos custos, além dos mil e quinhentos
dólares que você mencionou? Nem riscos?
Primeiro fornecedor — Você acha que liberar a pista do exército para nosso avião decolar
carregado do produto sai de graça?
Segundo fornecedor — Cento e cinquenta mil dólares por decolagem.
Primeiro fornecedor — Sem contar os riscos e as perdas de produto e pessoal. Só temos
autorização para usar a pista uma vez por semana. Se o esquema falha, perdemos oportunidades e
pode haver apreensões. De vez em quando os militares apreendem um lote da droga para inflacionar
a propina.
Segundo fornecedor — Fora os problemas do clima na selva. As tempestades, tudo isso.
Albino — Por que é que a gente tem de repetir essa discussão todas as vezes?
Terceiro fornecedor — Doze milhões de libras. Dez a menos do que vocês vão ganhar.
Albino — Nós não vamos ganhar 22 milhões de libras. Essa quantia vai pagar o transporte e
a entrega, em segurança, ao atacadista, na Inglaterra, que depois vai vender ao varejista. Nosso
lucro é muito menor. Mas, tudo bem, dessa vez vou ceder. Aumento em 25% minha proposta: dez
milhões de libras. Dez mil libras por quilo. Vamos fechar isso de uma vez. Se a coca mofar na
selva, todos nós perdemos. Estamos no limite dos prazos.
Quarto fornecedor — Dez milhões estão longe do razoável, mas o tempo está correndo
contra todos nós. O impasse não interessa a ninguém. Não vamos colocar em risco nossa antiga
parceria. A confiança mútua que a gente construiu não se alcança de um dia pro outro. Negócio
fechado. Eu entro com duzentos quilos.
Segundo fornecedor — Cem quilos.
Terceiro fornecedor — Quatrocentos.
Primeiro fornecedor — Trezentos.
* * *
Longe dali, dez dias depois do encontro de cúpula, militares uniformizados afastam-se da
sala de controle, diante da pista, em plena selva amazônica, na qual um pequeno avião é carregado.
Fumam e jogam damas, enquanto o avião decola.
A autonomia de voo é de oitocentas milhas, o que significa quatrocentas para ir e
quatrocentas para voltar. As pistas de pouso ficam a cerca de cem milhas da costa. Portanto, os
barcos de Albino têm de recolher a carga, no máximo, a trezentas milhas do litoral. A melhor forma
de descrever o que acontece é imaginar que estamos no cinema, vendo um filme.
* * *
Em mar aberto e revolto, vê-se do alto o ponto escuro, entre ondas. O foco aproximando-se,
gradualmente, revela a embarcação e, a quinze metros, uma pequena balsa.
Da perspectiva do barco, vê-se o avião aproximar-se, voando em círculos e mais baixo.
Um sobrevoo rasante e seis caixas de cigarro, de dois metros quadrados, são arremessadas.
Uma cai exatamente entre o barco e a balsa, facilitando a ação dos homens que estão a bordo;
quatro erram o alvo e exigem um deslocamento quase heroico dos quatro marinheiros que tripulam
a balsa.
A Operação Resgate é iniciada.
Outro voo e mais seis caixas são lançadas. Dessa vez, todas caem no espaço preferencial.
Ao todo, cinquenta caixas são recuperadas e estocadas no barco, que fará uma parada técnica
no Caribe, antes de seguir para Londres.
* * *
Em alto-mar, um avião sobrevoa a média altitude.
Adotando-se seu ponto de vista, vê-se um veleiro com duas mulheres de biquíni, deitadas de
costas, tomando sol, ao lado de um homem de sunga sentado, com os braços apoiados na toalha sob
o corpo.
Vê-se o avião ganhar altura e desaparecer no horizonte.
No barco, o cenário — extraordinariamente persuasivo — é desmontado, mantendo-se,
entretanto, disponível para imediata utilização. Vários homens trabalham e verificam 150 caixas de
cigarro de dois metros quadrados, guardadas por uma lona — caixas exatamente iguais às
recuperadas do mar, na operação anterior.
* * *
Esse mesmo barco, ao entardecer, ainda em mar aberto.
Na cabine de comando, ouve-se o rádio; observa-se o radar, acom- panham-se movimentos
identificados no monitor que exibe a cartografia geoprocessada, conectada ao equipamento de
navegação por satélite. Trocam-se mensagens técnicas relativas à localização.
Por um alto-falante, enquanto lancham, tripulantes são informados:
Voz metálica — Atingimos o limite do mar territorial inglês. Atenção: mar territorial.
Abordagem em quinze minutos. Repito: quinze minutos.
* * *
Iate com três casais a bordo aproxima-se.
Os tripulantes que lanchavam estão postados, estrategicamente, para transferir a carga.
Enquanto o iate procura a posição ideal, quatro marinheiros, no barco que transporta a carga,
desconectam os equipamentos tecnologicamente mais sofisticados de comunicação e localização e
os lançam ao mar. Em seguida, jogam n’água o cenário desmontado — as duas mulheres de biquíni
etc.
Com dificuldade e esforço, a carga preciosa é transferida para o iate.
As embarcações afastam-se e se dirigem a paradeiros distintos na costa inglesa.
* * *
Os barcos chegam, à noite, a portos ingleses diferentes e distantes entre si.
* * *
A transferência da mercadoria é fundamental.
Um iate com alguns casais, que parte e retorna no mesmo dia para a mesma marina inglesa,
está longe de levantar suspeitas.
Custa muito caro jogar no mar os equipamentos de comunicação e navegação sofisticados.
Mas vale a pena. Quem suspeitaria de um barco desprovido de instrumentos de orientação? Uma
embarcação nesse estado não poderia ir longe, muito menos cruzar o oceano.
Veem-se os três casais serem recebidos por um grupo de homens e algumas mulheres, que
bebem champanhe e ajudam a transportar para vans, estacionadas no porto, parte da carga.
Graças às velas e aos volumes comuns nas embarcações, reduz-se o risco da operação.
Homens carregando objetos pesados dos mais diferentes formatos não é uma cena incomum nas
marinas.
De todo modo, descarregar é sempre arriscado e pode levar semanas. Por isso, a missão cabe
a operadores ingleses.
* * *
Veem-se vans partindo.
Uma van para diante de uma garagem. Um homem, sentado ao lado do motorista, desce,
levanta o portão de ferro e se afasta para a van entrar. Em seguida, abaixa o portão.
A cena repete-se várias vezes: vans distintas, diferentes pessoas envolvidas e garagens
diversas sendo ocupadas.
Lukas ouve The Who, de camiseta e cueca, e fuma um baseado, jogado na cama de seu
quarto. Custa a ouvir as pancadas na porta. Quando reduz o volume, toda a cena é tomada pelo grito
de sua filha:
— Pai, telefone.
Lukas veste uma bermuda em alta velocidade e corre até a sala. Agarra o aparelho:
— Alô.
Ouve em silêncio, desliga o telefone, mete uma sandália nos pés e sai.
* * *
Na esquina mais próxima de seu prédio, aproxima-se do telefone público. Seus olhos ardem
sob a luz furiosa do verão carioca. Espera um rapaz terminar de falar, aproxima-se do aparelho,
apoia-se com os dois braços nas molduras laterais do orelhão e aguarda.
O telefone toca. Lukas atende. Não diz nada. Ouve, desliga e se afasta, caminhando na
direção da esquina seguinte.
* * *
Aproxima-se de outro orelhão. Não há ninguém. Posiciona-se como a protegê-lo de um
ataque. Como a abraçá-lo. Ouve o sinal. Atende. De novo, apenas escuta. Deposita o aparelho na
base e segue adiante.
2
FANTASMA
Três esquinas à frente, há dois aparelhos. Ambos ocupados. Aguarda. Assim que o primeiro
é liberado, posta-se sob a abóbada, à espera da chamada, que é quase imediata. Atende, ouve,
desliga e volta a caminhar.
Na praça, no largo ao lado do pátio de lazer infantil, repete os movimentos, mas, dessa vez,
depois de desligar o telefone, olha em volta. Procura pontos de referência para situar-se. Em
seguida, avança, convicto. Atravessa a rua, entra na varanda de um restaurante, observa ao redor,
segue para a área interna, vai ao banheiro masculino, retorna, certifica-se de que a pessoa que
procura não está, sai para a varanda, confirma o resultado de sua pesquisa, volta ao interior do
restaurante e senta-se na posição que lhe parece ideal: ao mesmo tempo discreta — protegida pela
penumbra que mesmo àquela hora neutraliza as formas — e estratégica, da qual seria impossível
não ver alguém que porventura chegasse.
Permanece atento e tenso um minuto. Por fim, relaxa e pede um chope.
Toca os lábios ressecados na borda gelada da tulipa e os mantém ali, um instante. O prazer
maior se concentra nos momentos de antecipação.
Sente um toque no ombro e um tremor eletrocuta as moléculas de paz que o preparavam
para desarmar o espírito. Um vulto, saído sabe-se lá de onde, sorri.
— Você quer me matar do coração?
Abraçam-se.
— Ainda não. Preciso de você.
— Senta aí. Vou pedir um chope pra você.
Albino o encara.
— Que é isso, Lukas?
— Desculpe, cara. Esqueci que você só bebe água.
— Estou trabalhando.
— Sem gás.
— Em Ipanema também se trabalha.
— E também se bebe água. Um velho professor meu costumava dizer que água é pra lavar as
mãos.
— Marguerite?
— Ótima.
— Anita e Michel?
— Albino, você sabe que eu sou um pai coruja.
— Nós perdemos um companheiro.
— Morto?
— Preso.
— Miami?
— Londres.
— Vacilo ou traição?
— I will have to call the indians.
— Traição tem de custar caro, mas tanto assim? Tem certeza? Não entendo, cara. Não
engulo isso.
— Ficamos com quinhentos quilos de cocaína estocados na Inglaterra, encalhados, 80% a
90% de pureza.
— Como é que eu posso ajudar?
— Perdemos nosso elo com a rede que compra no atacado e assume a distribuição varejista.
Como você sabe, a gente nunca se mete com o varejo. Precisávamos nos acertar com outra rede
local. Fizemos contato, negociamos um acordo, passamos os quinhentos quilos, e quando mandei
um representante receber a dívida, o sujeito disse que nosso homem estava sendo seguido e que ele
não poderia dar o dinheiro nessas condições.
— Você quer que eu tente?
— Não, quero que você resolva.
— Se ele repetir a mesma história?
— Você diz que eu vou chamar os índios, I’mgoing to call the indians, Lukas.
— Só isso?
— Não. Preciso que você ajude na estocagem de mais quinhentos quilos. Gordon e outros
companheiros nossos vão ajudar. Eles vão para lá antes de você com a incumbência de providenciar
garagens e vans.
— Os quinhentos quilos já estão lá?
— Não. Vou tratar disso. Em dois meses faço contato, confirmo e você viaja.
— Tudo bem.
— Tem mais uma coisa. Preciso que você prepare um rapaz. Ele vai com você para aprender
e, se for necessário, para ajudar a trazer o dinheiro.
— Preparar o rapaz? Que experiência ele tem?
— Nenhuma. Um completo idiota. Mas tem futuro. Leva jeito. Bom garoto. Ele vai te
procurar.
— Como é que vou ter certeza de que é a pessoa?
— Você vai saber.
Os métodos do Albino eram rigorosos. Ele só dava o ar da graça depois de certificar-se de
que a pessoa com quem ia se encontrar não estava sendo seguida. Qualquer descuido podia ser fatal.
Quanto maior o controle policial e mais duras as leis, mais competentes têm de ser os que vivem da
transgressão e mais atraentes se tornam os negócios ilícitos, porque a vigilância, ao mesmo tempo
que dificulta as transações ilegais, e justamente por dificultá-las, eleva os preços, valoriza os
produtos e estimula as práticas proibidas. Um paradoxo óbvio, mas que poucos veem. Assim como
Albino, que se destaca na multidão porque faz jus ao nome, mas permanece invisível. É um mago;
uma espécie de fantasma. Lukas nunca soube quem ele era, de onde ele vinha, para onde ia, qual
sua nacionalidade.
Albino levanta-se, fazendo um sinal na direção do banheiro, e se debruça sobre o ombro de
Lukas para sussurrar:
— Don’t be lazy.
Aperta-lhe o rosto com as duas mãos.
Lukas, olhando para a rua, franze o cenho e repete para si mesmo, memorizando:
— Don’t be lazy.
Tira uma caneta esferográfica do bolso da bermuda, escreve em um guardanapo a expressão
inglesa com as letras bem afastadas uma da outra. Debaixo de cada letra, anota um algarismo,
começando com o número 1 e terminando com zero. Em seguida, escreve um número de telefone e
sob cada algarismo anota uma letra. Escreve novamente a senha: Don’t be lazy. Lê com atenção,
fecha os olhos, amassa o papel e respira fundo. Agora, era tudo ou nada.
* * *
Albino materializava-se e desaparecia, num piscar d’olhos. Para comunicarem-se, clonavam
telefones e mudavam os números com frequência. Para informar os respectivos números de
telefone, de contas bancárias ou senhas numéricas, usavam um código, que variava de uma
operação para outra. Era muito simples. Bastava decorar uma expressão em inglês em que houvesse
exatamente dez letras, sem nenhuma repetição. Cada letra correspondia a um número.
Lukas mergulha o guardanapo no resto de chope e pede a conta ao garçom. Olha em direção
ao banheiro, ansioso pelo retorno de Albino, e, finalmente, caminha até o banheiro masculino. Está
vazio. Empurra a porta do feminino. Vazio.
Lukas desconfiava que Albino fosse norte-americano educado na fronteira com o México.
Não era um sujeito erudito, um poliglota culto. Era safo, autoconfiante, cara de pau, tinha uma baita
intuição, uma supermemória e um ouvido prodigioso. Mas, sobretudo, circulava bastante. Estava
sempre viajando entre o Caribe, a Colômbia, a Inglaterra, a África do Sul e a Austrália, passando
por França, Suíça e Holanda. E visitando Lukas, no Rio de Janeiro, de vez em quando, para tratar de
negócios.
* * *
Lukas, de pé, ao lado de sua mesa, no restaurante, olha em volta mais uma vez, resignado e
encantado com a arte de Albino, que acabara de evaporar. Deixa algum dinheiro sobre a mesa, sai à
rua e caminha de volta para casa, sob o sol vespertino que começa a declinar.
* * *
Daquela vez a situação era grave, mas a recompensa, recompensadora: se Lukas e Gordon
conseguissem receber a dívida referente aos quinhentos quilos de cocaína, ficariam com 50% dos
outros quinhentos quilos — quer dizer, com o resultado de sua venda. Nada menos que 5,5 milhões
de libras; mais de oito milhões de dólares, isto é, mais de quatro milhões de dólares para cada um,
como Gordon lhe prometera, um dia, em alto-mar, quando o recrutou para a rede. Lukas sabia que
estava ficando velho para brincar de polícia e bandido. Era sua chance de levar uma bolada e mudar
de vida. Queria que aquela fosse a última viagem de negócios. Sairia rico o suficiente para não
pensar mais em dinheiro. Dali em diante, poderia curtir a aposentadoria com Marguerite, num belo
barco — sonho de velho marinheiro.
3
THE INDIANSEm casos excepcionais, os sócios europeus de Albino convocam the indians — os
índios. Foi o que Lukas descobriu tempos depois de conhecê-lo. Essa história lhe causou horror
quando a ouviu. Lukas tremeu ao pensar que a rede em que se metera era capaz de coisas que
ele sempre repudiara e das quais sempre se mantivera — e sempre se manteria — distante.
Muito cedo compreendera o significado de uma advertência que ouvira do Fantasma,
Albino: lealdade paga-se com lealdade. E com algumas libras ou dólares também, é claro. Mas
quando as libras falam mais alto do que a fidelidade aos parceiros, quando acontece uma
traição, o chefe... “calls the indians”, “chama os índios”. Albino estava convencido de que a
lealdade era o que mantinha a máquina funcionando com eficácia. Bem-azeitada. A lealdade e a
confiança, que é sua contrapartida.
Pois é, há casos em que Albino e seus sócios europeus call the indians. Engraçado: todos
se referem a esses personagens em inglês, mesmo os que falam espanhol ou português, ainda
que estejam conversando em sua língua nativa. Talvez o método sirva para proteger quem
pronuncia a palavra de um contato íntimo com o mal. E mais ou menos como ir daqui ao inferno
fazendo baldeação em Hollywood. Lá pode-se tomar água benta, lustrar os pruridos morais e
dar um polimento na cara de pau, antes de seguir viagem. O que importa é o seguinte: quando
necessário, chamam the indians. Ponto final. Literalmente. E assim que funciona. Quer ver?
O saguão interno de desembarque do aeroporto de Heathrow opõe a disciplina de cordas,
cartazes e guardas à babel de viajantes insones, famílias, executivos e turistas. Tripulantes
evitam filas intermináveis. De cima, bem do alto, vê-se a multidão que chega a Londres filtrada
pelos canais dos guichês da polícia e da alfândega. Uma aglomeração semelhante despejada nas
ruas seria turba, horda, massa. Ali, nas garras da Coroa, inspecionada pelo faro dos cães
imperiais, metabolizada por dutos plebeus, a energia precipitada pela combustão de ansiedade e
vigília rende-se à ordem e põe em marcha a cidade. São apenas cidadãos do mundo em
alvoroço.
Um deles é the indian, indistinguível nas ondas humanas que os primeiros voos
matutinos fazem desabar sobre o velho Heathrow, naquela segunda-feira. Imperceptível entre
milhares. Traços eslavos definidos, mandíbula retangular, sobrancelhas espessas, lendo o jornal
que trouxe de bordo, os óculos sobre o nariz, empurrando com os pés uma pasta escura de
couro. Lá está ele: logo depois do grupo de senhoras nórdicas e antes do casal latino —
ostensivamente latino —, que se divide entre os cuidados devotados ao garoto endiabrado e a
amamentação do inconsolável — e insaciável — bebê.
* * *
The indian é apenas um cidadão entre tantos. Não lhe negam o ca rimbo com a estampa
do Estado. Abrem-se as portas. Ele avança para o largo foyer em que os anfitriões aguardam e
saúdam os visitantes. Desvia dos lentos, dos hesitantes e dos velhos. Sabe o que quer e para
onde vai. Não precisa comprar libras. Trouxe-as trocadas. Identifica as câmeras de vigilância no
alto do saguão, por hábito e dever de ofício. Nada de casacos pesados e chapéus. Os ingleses se
deliciam com os últimos dias de verão.
Toma um táxi até seu primeiro destino. Paga, desce, atravessa a rua, identifica a câmera
de vigilância, mete-se numa transversal, dobra à direita e faz sinal para outro táxi. Desdobra um
mapa da cidade e o examina. Chega ao segundo destino. Salta do carro, caminha alguns metros,
dobra à esquerda, atravessa uma avenida, observa os pontos das câmeras em postes e prédios e
se dirige à estação do metrô, salpicada de olhares eletrônicos. Salta no bairro distante em que o
esperam as orientações para a missão.
* * *
Caminha algumas centenas de metros, mete-se numa travessa estrei ta, identifica a
pequena casa deserta, abre o portão usando a chave que trouxe consigo, destrava o cadeado da
porta, entra e fecha-a, atrás de si. Livra-se do paletó e vai à mesa, onde encontra, sob o forro
falso de madeira, a foto de um homem grampeada num maço de folhas.
Senta-se, lê, destaca um cartão eletrônico e o enfia no bolso. Em seguida, destrói foto e
texto no picotador de papel. Olha o relógio no pulso e segue até o banheiro, em cuja gaveta
encontra os ingredientes necessários. Olha-se no espelho.
Sai da casa calvo e com bigode, o rosto esférico, irreconhecível, portando sua pasta.
Caminha até a estação do metrô.
Chegando a um bairro próximo ao centro, joga a chave no lixo e chama um táxi.
Desce do automóvel negro, atravessa a rua e toma um segundo táxi.
Paga, salta, mete-se numa travessa, dobra à esquerda em larga avenida, prende no bolso
do paletó a identificação de membro do encontro científico e dirige-se a um grande hotel, em
cuja portaria destacam-se cartazes alusivos ao congresso internacional de psicanálise. Passa
célere e confiante rumo ao fim do saguão. Mistura-se ao movimento e ao alarido dos
participantes. Identifica a localização das câmeras. Toma o elevador.
Com sutil movimento dos olhos, percebe a câmera. Sai do elevador no 22a andar e
caminha tranquilo e seguro até a porta que conduz à escada. Não há, em Londres, como escapar à
onipresença da vigilância eletrônica. Sobe até o 26e andar. Encara a câmera com indiferença.
Contempla a numeração nas portas, retira o cartão eletrônico e entra no quarto 2.604.
Entreabre apenas uma fresta da cortina e observa o terraço dois andares mais baixo, no
prédio em frente, a cinquenta metros de distância, no qual se preparam as mesas para o almoço.
Confere o relógio, tira o paletó, afasta a roupa de cama do fundo do armário embutido, puxa a
tampa falsa de madeira que guarda uma valise negra. Destranca-a, girando números de um
código que memorizou, retira peça por peça e monta a arma e o visor sobre o tripé. Ajusta a
lente, empurrando a ponta por entre as abas da cortina. Pelo visor, vislumbra, em close, a parte
descoberta do terraço.
* * *
À uma hora da tarde, cinco homens e três mulheres almoçam e tomam champanhe, no
restaurante do terraço. Dois homens erguem-se e se dirigem, taças em punho, à murada para uma
conversa privada. Uma das fisionomias é conhecida. Foi vista na foto. Seu acompanhante dá dois
passos para trás — dois passos estratégicos —, pedindo ao garçom que o sirva. Nesse momento,
seu interlocutor cai fulminado, em silêncio.
O matador desce a escada com sua pasta, até o 22- andar. Toma o elevador. No lobby,
mistura-se aos congressistas que compram livros. Ostentando seu crachá, deixa o hotel, vira à
esquerda, novamente à esquerda, toma um táxi e salta diante de um cinema.
* * *
No espaço reservado do banheiro, desfaz-se do disfarce, põe os óculos, joga o entulho no
lixo, sai do cubículo privativo, penteia os cabelos, lava o rosto, olha o relógio, deixa o cinema e
toma um táxi.
* * *
Lukas imagina que, se Albino fosse questionado a respeito de seus métodos, responderia
como um espadim da retórica, ágil e sagaz: claro que é uma violência; entretanto, como seria
possível garantir a eficiência e a segurança de uma equipe de trabalho tão bem-organizada,
atuando em diferentes continentes ao mesmo tempo, funcionando como um relógio, enfrentando
desafios tão difíceis e riscos tão grandes, sob pressão constante? Como seria possível manter a
ordem sem lei, a ordem dentro do grupo sem lei interna?
Ou talvez buscaria argumentos alternativos no baú de uma certa sociologia intuitiva: a lei
interna é o código de valores do grupo, são as normas que regem a convivência entre os amigos,
entre os colegas de trabalho. O que seria da lei sem a força? Afinal de contas, todo mundo
aprendeu a lição e deveria saber como as coisas funcionam. Não é assim? A lei só vale de
verdade se estiver armada, se repousar na violência. O que é a Constituição sem a palmatória? O
que é o juiz sem o seu cão de caça? O que é a Justiça sem a espada, sem a ameaça da guerra, sem
a promessa da morte? O que é o governo sem a bomba de nêutrons? Para que serve a polícia? A
paz e a ordem são apenas um lado da moeda; o outro lado é a violência. Albino talvez desfiasse
sua desconversa para exorcizar a culpa, se é que alguma vez a sentiu.
Uma tentativa cínica de jogar assim com as palavras condenaria à insônia Lukas e
qualquer pessoa avessa à violência. Albino e os praticantes desses estratagemas heterodoxos
dormiam bem.
Já Lukas não consegue sequer recordar o recurso aos indians sem ser atravessado por
culpas imemoriais, indizíveis e cuidados e cautelas e tantos sentimentos contraditórios. Ele
gostaria que todos entendessem, mas sabe quantas dificuldades seu desejo teria de vencer para
realizar-se. Gostaria que todos compreendessem o seguinte, para evitar uma impressão falsa:
mobilizar the indians é muito raro. É o último recurso para casos extremos. Esse recurso
inqualificável... só em último caso. Inútil. Lukas sabia e sabe que essa referência é irre levante.
Não muda o caráter do procedimento. De todo modo, tem as mãos limpas porque nunca
participou, nem aprovou esses métodos.
Lukas não justifica, não defende, não desculpa. Albino talvez o fizesse em alguma
circunstância especial, ainda que não fosse típico de seu estilo. Típico era o seguinte: descrever
sem adjetivos e comentários. Descrever a Lukas os fatos como eles são. Graças a essa obje -
tividade fria que chocava Lukas, agora sabemos o que significa chamar os índios. Quando
Albino diz que será necessário to call the indians, é a isso que se refere.
* * *
O táxi encosta diante do portão de embarque do aeroporto. The indian desce, entra no
grande saguão e desaparece.
4
EDUCAÇÃO SENTIMENTALLukas se prepara para cumprir sua missão, que inclui providências financeiras e
logísticas, em Londres, e a preparação de seu sucessor. O treinamento inclui aulas expositivas e
acompanhamento do dia a dia de Lukas, na Inglaterra, como em qualquer estágio remunerado.
Lukas indaga a DaCosta, professoral:
— Como é que uma pessoa deve fazer pra entrar num país com cem mil dólares?
— De avião?
Lukas faz um sinal positivo com a cabeça.
— Espalhando o dinheiro no fundo da mala e costurando um forro falso por cima?
— Não.
— Não é seguro?
— Solução de amador. Malas se perdem, são vistoriadas. Você não tem como interferir.
Vira uma loteria, sem espaço para o talento.
— Talento...
— Isso.
— Então o sujeito põe debaixo da roupa.
— Melhorou.
— E disfarça. O cara tem de ter talento pra disfarçar. Feito um ator.
— Certo, meu caro DaCosta. Isso aí. Um ator.
— Fingir que está tranquilo. Não dar bandeira, nem chamar a atenção. Se misturar com
todo mundo. Parecer mais um passageiro normal.
— Qualquer um pensaria assim, não é?
— Acho que sim. Qualquer pessoa de bom senso. Para a polícia não cismar com alguém, o
jeito é não chamar a atenção, certo?
— E se você fosse o policial?
— O que é que tem?
— O que você esperaria de uma pessoa que transporta cem mil dólares no corpo?
— O que é que você quer dizer, Lukas? Não estou entendendo aonde você quer chegar.
— Quero dizer que todo mundo responderia o mesmo que você, inclusive o policial. E esse
é o problema de sua resposta e é por isso que ela está errada: a polícia vai procurar justamente
quem se confunde com a multidão, quem parece tranquilo, quem não chama a atenção.
— Então, como é que você faz?
— O contrário do que a polícia imagina que uma pessoa carregando essa grana toda faria.
No saguão do Heathrow, Lukas aguarda na fila interminável.
Quando tudo parece calmo e relativamente imóvel, e sua posição na fila o situa no ponto
extremo da linha, quando ela se curva num ângulo de 180°, tornando-o especialmente visível às
câmeras e aos guardas que observam, seu casaco cai do braço. Conforme ele se abaixa para
apanhá-lo, o passaporte, documentos e a passagem caem de seu bolso. Ele se apressa para
recolher os pertences espalhados e avança, pressionado pela ansiedade dos que o sucedem na fila.
Trinta segundos e alguns passos depois, volta-se para trás e fala alto com os que estão à sua volta,
pedindo em português e inglês que o ajudem a encontrar sua maleta. Ele avisa que deve tê-la
esquecido no chão, quando deixou cair seus documentos. Alguém a identifica. Ele recua para
buscá-la. Quando volta, discute porque julga que lhe cabe recuperar, na fila, a posição que
abandonou. Finalmente, reconhece que se enganou e que seu posto anterior não era, de fato,
aquele que reivindica. Ao aproximar-se do guichê da polícia alfandegária abaixa-se para amarrar
os sapatos e não vê o sinal que o convoca, provocando irritação dos que aguardam a vez atrás
dele.
* * *
— Profissional, meu caro DaCosta. O verdadeiro profissional não age de acordo com o
bom senso ou o senso comum. Tem de ser um pouco mais inteligente do que isso. A verdadeira
arte, meu amigo, exige muito mais da gente.
Lukas é o quinto na fila, a caminho do detector de metais.
Enfim, sua vez.
Tira o paletó, dobra-o e o deposita junto à maleta na esteira, joga ali algumas chaves e o
celular.
Cruza o arco e o alarme soa.
Volta, lamentando, desculpando-se com os funcionários e os fiscais, especulando sobre
moedas esquecidas.
Um momento antes de cruzar pela segunda vez o espaço monitorado pela máquina, tira do
bolso uma chave, ri, comunica sua descoberta aos que o observam, reconhece sua falta de atenção
que já lhe causou tantos transtornos na vida e atravessa o arco eletrônico, impunemente.
— O profissional surpreende, chama atenção, dribla as expectativas e, justamente por isso,
anda sempre no fio da navalha. Vai até o limite, se equilibra numa linha tênue, mas não vai além
de certo ponto. DaCosta, presta atenção: buscamos sempre nos situar numa posição muito
delicada, cheia de nuanças, ambiguidade, ambivalência. As pessoas costumam associar comércio
ilegal com brutalidade. Nada disso. Você vai ver. Nós somos mestres da delicadeza. Se você for
um canastrão, perder a medida, ficar acima do tom, fodeu. Mas se ficar com medo e aceitar a
mediocridade, fodeu também. Entendeu?
— Não sei se eu vou conseguir, Lukas. Acho que não nasci pra isso.
— Ninguém nasceu pra isso e ninguém nasceu pra ser frentista ou astronauta.
DaCosta abaixa a cabeça, resignado, e ouve a sequência da aula:
— Lição número dois: qual é a menor distância entre dois pontos?
— A reta.
— Errado. Para nós, a reta não existe. A menor e melhor distância é a mais tortuosa.
Somos um paradoxo ambulante, rapaz.
— Paradoxo...
— E. Somos pessoas práticas, realistas, mas somos também os reis do barroco.
— Conheço os reis do barraco.
— Exploradores do labirinto.
— Não entendi.
— Tudo bem. Presta atenção em cada detalhe e faz o que eu faço. Você vai aprender
rapidinho. Essa vai ser minha última viagem. As próximas você vai fazer sozinho. Já estou
ficando velho pra isso. É a sua vez.
* * *
Manhã fria e cinzenta. Lukas e DaCosta saem juntos do hotel londrino. Atravessam a rua,
dobram à direita numa travessa e logo à esquerda, na avenida. Seguem em frente e viram,
novamente, à esquerda. Dirigem-se a um telefone público. Lukas faz uma ligação. Entram na
estação do metrô e vão rumo ao extremo oeste da cidade.
Sobem as escadas que dão na rua e caminham até um telefone público, de onde Lukas faz
uma segunda chamada. Seguem a pé até a próxima estação do metrô e se acomodam no trem que
segue para o centro da cidade. Saltam, sobem para a rua, Lukas dá mais um telefo nema de um
aparelho público, toma um táxi e desce, com o companheiro, poucos quarteirões adiante, de onde
ambos tomam o metrô para uma área comercial.
Na superfície, Lukas telefona outra vez, de outro aparelho público, e segue a pé, sempre
acompanhado por DaCosta, para uma loja de departamentos, onde compra dez malas de pano de
tamanhos diferentes, nove das quais são enfiadas na maior de todas.
Caminham até a estação de metrô mais próxima, da qual Lukas volta a ligar. Tomam o
trem para o subúrbio, na região leste de Londres. Sobem à rua e caminham duas quadras,
carregando a pesada mala repleta de malas menores.
Numa pequena travessa lateral, os espera uma van. O motorista troca palavras inaudíveis
com Lukas, abre a porta do veículo e recolhe as malas. DaCosta e seu professor retornam ao
metrô e vão para o centro administrativo da cidade. Sobem à superfície, tomam um táxi, outro
metrô e seguem para o Banco do Brasil.
Lukas e outro homem estão no meio de um vasto descampado, no Hyde Park. Olham em
volta, certificando-se de que não há vivalma num diâmetro de, pelo menos, cem metros.
Compartilham um cigarro de haxixe e conversam.
* * *
Numa sala sombria, atulhada de papéis, computadores e telefones, aglomeram-se 21
homens e mulheres cujos rostos mal se veem. Um envelope é entregue por uma mulher que
parece liderar a equipe a um homem mais velho do que os demais, que se mantém sentado. Ele
deposita o envelope em sua mesa de trabalho, liga o abajur, abre-o sob a luz forte que emana da
peça antiga e barroca, e retira dezenas de fotos. São retratos de Lukas e DaCosta em momentos
os mais diversos daquela jornada londrina. Uma foto se destaca: Lukas entra no restaurante com
o homem que se recusou a negociar o pagamento da dívida porque ele, Lukas, esta ria sendo
seguido.
Nenhuma palavra é dita.
O homem mais velho pergunta:
— Qual a escala?
Quem responde é uma mulher:
— Somos 28; quatro equipes de sete. Uma delas está ativa, nesse exato momento.
Permita que lhe mostre o mais interessante.
A mulher faz um sinal com a cabeça para um colega, que apaga a luz opaca da sala e liga
um projetor. Começa um filme. As imagens revelam toda a movimentação, em zigue-zague, dos
brasileiros. A sequência é pontuada pelo ritmo veloz de uma edição tensa e exibe as cenas,
sinteticamente, pelos pontos de vista de sete agentes disfarçados da polícia inglesa — homens e
mulheres que mudam, subitamente, de roupas e funções e que estão entre os que se reúnem na
sala fechada e lúgubre.
Na sequência, a trajetória exótica é assinalada por meio de uma linha vermelha que se
movimenta sobre o mapa da cidade.
As imagens vivas e aceleradas diluem-se no mapa dinâmico e readquirem destaque, para,
em seguida, voltar a diluírem-se na cartografia animada.
Na sequência, veem-se, a distância, mas aproximados por um close vigoroso e ágil, Lukas
e seu parceiro fumando haxixe, olhando em volta e conversando — apesar do baixo volume da
voz com que ambos dialogaram, a gravação é nítida.
Lukas e seu interlocutor começam a rir. Riem, gargalham e fumam.
* * *
Lukas e DaCosta chegam juntos a Heathrow.
Lukas acompanha o parceiro no check-in e o conduz ao portão de embarque, onde se
despedem.
Lukas deixa o saguão de embarque do aeroporto e toma um táxi de volta ao hotel.
Quando as portas do avião se fecham, DaCosta, reclinado em sua poltrona, na classe
executiva, finalmente respira aliviado.
Dois minutos depois, as portas são reabertas. Agentes ingleses dirigem-se a DaCosta e o
retiram de bordo.
Interrogam-no. Um deles indaga:
— O senhor conhece Lukas Mello?
— Lukas...? Não, não conheço.
— O senhor já ouviu falar nessa pessoa?
— Não. Que eu me lembre, não.
— Nunca esteve com ele?
— Que eu saiba, não. A não ser que essa pessoa tenha estado comigo em algum lugar
junto com outras... Mas, que eu saiba, não, nunca estive com ele.
O segundo agente pergunta:
— Então, o senhor não veio com ele para o aeroporto?
— Não, de maneira nenhuma. Vim sozinho.
— Ok.
Mostra-lhe imagens dos dois juntos, no aeroporto.
O primeiro agente volta a formular as perguntas:
— Quem é esse homem que estava com o senhor?
— Ninguém estava comigo.
— E esse homem com o senhor?
— Não sei. Nunca vi antes. Não estava comigo.
— Mas ele falou com o senhor e o senhor respondeu. Vocês conversaram.
— Sim, ele queria me vender um bilhete de loteria, mas eu não quis comprar. Então, ele
insistiu. Só isso.
— Loteria...
— Isso.
Revistam-no.
Caem de seu corpo, como frutas maduras, cinquenta mil dólares. O segundo agente
indaga:
— O senhor pode explicar a origem desse dinheiro?
— Achei.
— O senhor achou...
— Isso.
— E onde foi que o senhor encontrou cinquenta mil dólares?
— Numa praça.
— Numa praça.
— Foi.
— Qual praça?
— Ah! O nome da praça eu não lembro.
— Ok. O dinheiro estava...
— Numa bolsa.
— Onde está a bolsa?
— Deixei lá, no mesmo lugar.
— E por que é que o senhor não comunicou à polícia?
— Bom, sabe... no meu país, a cultura é diferente.
— A cultura...
DaCosta balança a cabeça, confirmando. O agente que lhe fazia as perguntas ecoou:
— É diferente.
DaCosta confirma.
O primeiro agente volta a perguntar:
— O senhor esteve numa loja chamada Sears?
— Não me lembro.
— Uma loja de malas e bolsas.
— Não.
— O senhor comprou uma bolsa ou uma mala?
— Não. Trouxe minha mala do Brasil. É a que estou usando nessa viagem.
— E dez, dez malas, o senhor comprou?
— Dez malas? Pra que eu ia querer dez malas?
— Essa nota fiscal estava em seu bolso. Ela registra a compra de dez malas.
— Nota fiscal? Ah! Esse papelzinho aí eu encontrei no chão, na rua, e resolvi pegar e
guardar, porque às vezes a gente precisa anotar alguma coisa e não tem onde. É sempre bom ter
um papelzinho no bolso.
5
HÓSPEDE DA RAINHANada mais eficiente para despertar de um sono profundo do que a batida forte da polícia
na porta de seu quarto de hotel. Sobretudo se você fumou um bom haxixe antes de dormir. Não
foi o caso de Lukas. Ele não fumou nada. Dormiu careta fazendo contas, planejando o dia
seguinte, avaliando o que faltava fazer e calculando o tempo que ainda teria de esperar para,
enfim, relaxar em paz com Marguerite, no Rio de Janeiro ou, melhor ainda, em alguma praia
linda e deserta, como fazem os gângsteres dos filmes americanos quando fogem vitoriosos, no
final: o dinheiro no bolso, o resto do tesouro guardado em um cofre seguro, o futuro garantido e
a mulher desejada devidamente conquistada. Nada disso seria o caso dele.
Acordou às cinco da manhã num estalo, como se não tivesse nem cochilado. Nunca tinha
se sentido tão alerta. Bem longe, ouviu um movimento de carros vindo rápido e parando. Depois
de alguns minutos, escutou batidas na porta do hotel. Era um hotel português onde costumava
hospedar-se quando ia a Londres. Dessa vez tinha pensado em mudar, mas o preço era
conveniente e ele se sentia bem ali. Seu quarto ficava em um anexo, no térreo, mas distante do
pequeno prédio principal, atrás do pátio interno ladrilhado. O ruído que se seguiu no começo não
era discernível. Em alguns instantes foi possível desfazer o embrulho de sons misturados e
identificar fios de voz bem nítidos. Não havia dúvida: dava para ouvir vozes na recepção. Lukas
ficou estatelado e grudado na cama, como acontece nos pesadelos: o perigo se aproxima e falta
força para mover um dedo. O pavor é tão intenso que paralisa.
Lembrando esse momento, Lukas jura que não foi medo o que sentiu. Diz que não sentiu
nada, embora soubesse o que estava prestes a ocorrer. A cena que definiria seu futuro estava
sendo preparada passo a passo. Mesmo assim, nem lhe passou pela cabeça a hipótese de escapar,
talvez porque intuísse que as saídas estavam cercadas. Tampouco lhe ocorreu levantar-se e vestir-
se, encarnando o herói que sobe ao patíbulo de cabeça erguida, ostentando os maxilares orgu -
lhosos.
As vozes viraram passos; os passos se aproximaram; chegaram à passagem que liga o
prédio antigo ao anexo; atravessaram o primeiro corredor; viraram à direita e levemente à
esquerda e estancaram diante da porta do último quarto. Quando bateram forte na porta de Lukas,
ele não se surpreendeu nem por um segundo. Acompanhara com intimidade todos os movimentos
e já antecipara o próximo capítulo. Contudo, não desgrudou da cama; sequer mudou a posição do
corpo.
Quando conversa sobre o assunto hoje, tantos anos depois, insiste que permaneceu
tranquilo. Seu corpo, entretanto, conforme sua própria descrição, dava testemunho de uma
prostração absoluta.
Batidas à porta.
O personagem encontrava seu destino. Nenhuma virtude poderia deter a máquina dos
acontecimentos. Lukas acordou muito cedo naquela sexta-feira gelada de fevereiro para descobrir
que era tarde demais.
A batida na porta seguida de silêncio o expulsou do torpor, definitivamente. Meteu-se nas
calças, nem cogitou trocar a camiseta, e abriu a porta.
— Mister Mello? Customs and Excise. Are you Mr. Mello?
O policial escocês media uns dois metros.
Lukas respondeu em inglês:
— Sim, sou eu. Posso saber o que está acontecendo?
— As informações lhe serão dadas no momento oportuno. O senhor poderia dar um passo
para trás?
— Sem problema.
— Posso entrar?
— Claro.
Lukas deu passagem e só então, quando o grandalhão avançou quarto adentro e
desobstruiu a porta, viu os outros sete policiais. Cinco homens e duas mulheres.
O mastodonte continuou a entrevista compulsória — educado, formal, mas direto:
— O senhor tem armas ou drogas?
— Armas, não. Tenho droga.
— Onde está?
— Naquele casaco pendurado na cadeira. No bolso direito.
O boxeador escocês — foi a imagem que lhe ocorreu — fuçou as dobras e os bolsos do
casaco até encontrar o saquinho com haxixe. Olhou o resultado da apreensão contra a luz com
indisfarçável decepção e voltou-se para Lukas:
— Não estou falando disso.
— Então eu não sei do que é que o senhor está falando. Não estou entendendo nada. O
senhor pode fazer o favor de me explicar?
— O senhor vai saber no devido tempo, Mr. Mello.
Vasculharam malas, armários, banheiro, cortinas, roupas de cama, os cantos, as gavetas, a
lata de lixo. Acharam dinheiro e se puseram a contá-lo. Enquanto dois companheiros o
observavam, um policial baixinho e ágil contava as cédulas e as separava em blocos sobre a
cama, como um crupiê experiente: dezoito mil libras e dez mil dólares.
Finalmente, a voz de comando. O gigante escocês, fiel à distinção britânica, dirigiu-se a
Lukas:
— Vou lhe pedir, agora, que me acompanhe, Mr. Mello. O senhor pretende fugir? Tem
intenção de reagir?
— Não, de modo algum.
— Muito bem. Nesse caso, não será necessário algemá-lo.
Lukas pediu autorização para tomar um banho, juntar algumas roupas, barbear-se.
Autorização negada, saiu do quarto de mãos vazias, sem algemas e sem seus pertences.
Mal teve tempo de enfiar os pés nos sapatos e vestir o casaco em cima da camiseta que usava
para dormir.
A diligente equipe policial praticamente levou o quarto do hotel, em grandes sacolas, para
futuras averiguações.
Lukas cruzou com pouquíssimas pessoas no trajeto até o carro particular que o conduziu à
central subterrânea da Customs and Ex- cise, à beira do rio Tâmisa, perto da Torre de Londres.
Vantagens de acordar cedo. Havia duas viaturas oficiais na frente do hotel, mas a equipe não as
utilizou. Seus carros eram descaracterizados e estavam estacionados nos fundos.
A Customs and Excise é uma das mais sofisticadas e eficientes polícias investigativas do
mundo, tradicionalmente dedicada a questões relativas a fisco, aduana, finanças internacionais,
contrabando etc... Diz-se que muitos espiões altamente qualificados, que seriam precocemente
aposentados pelo fim da Guerra Fria, foram deslocados para seus quadros.
* * *
Lukas permaneceu numa cela simples, aguardando a chegada de outros que seriam presos
na mesma operação. Podia ouvi-los, não vê- -los. Passou o dia no limbo, sem informações. Um
advogado indicado pela Justiça inglesa apresentou-se e recomendou mutismo completo, caso o
interrogassem antes que constituísse um advogado definitivo e soubesse exatamente quais eram
as acusações.
As onze da noite, em veículos separados, Lukas e outros presos foram levados à delegacia
de um pequeno povoado, chamado Christ Church, na região de New Forest. A cidadezinha era
mínima, mas a delegacia tinha pedigree ilustre e condições excepcionais de segurança:
costumava ser usada para acautelar militantes do IRA — o Exército Republicano Irlandês —, na
clandestinidade. O plano da polícia era julgar todos juntos numa localidade próxima, Winchester,
notória por seu conservadorismo, viveiro de jurados nada indulgentes quando se tratava de
proteger os bons costumes, os valores tradicionais, a lei e a ordem. Os júris ali tampouco seriam
condescendentes com estrangeiros. Um coquetel psicológico e moral perfeito para que se
obtivesse a condenação coletiva e sentenças exemplarmente duras.
Por isso, o advogado de Lukas recomendou-lhe distinguir-se dos demais presos,
separando o seu dos outros casos para impedir a unificação desejada pelos acusadores; e
encontrar meios de evitar um julgamento em Winchester.
As três da manhã foi acordado por um carcereiro para os procedimentos de registro da
ocorrência. Por pouco completaria 24 horas no limiar, fora de lugar em qualquer classificação
legal: nem formalmente preso nem livre. Borraram-lhe as digitais e colheram material para
exame de DNA. Daquele momento em diante, ele seria membro de uma comunidade especial
que habitava bibliotecas biológicas. Sentia- -se borboleta espetada por um colecionador.
Da delegacia de Christ Church até o Fórum de Winchester, a viagem era rápida. Os presos
iam e viam para as primeiras audiências. A rotina não durou muito. Certa manhã, na porta da
cela de Lukas e de seus parceiros de desventura, havia duas letras, AA, coladas. Eles haviam
sido reavaliados. O grau de periculosidade da turma recebeu um upgrade. Lukas consultou o
carcereiro a respeito do significado daquelas letras. A resposta não foi encorajadora:
— Isso significa que você está fodido por um longo tempo.
A delegacia não estava credenciada para acautelar presos duplo A. Todos foram
deslocados para High Down, o presídio mais popular de Londres.
O advogado provisório de Lukas surpreendeu a corte ao declarar que seu cliente tinha,
sim, um caso e estava disposto a admitir sua responsabilidade. A postulação destoou das
posições sistematicamente reiteradas pelos demais advogados, segundo os quais os clientes
estariam presos sem motivo, pois não haviam sido acusados e não reconheciam envolvimento em
qualquer prática ilegal. Ou seja, não tinham um caso. Assumindo a existência de um caso que
justificaria responder perante a Justiça inglesa por algum ato cometido, Lukas destacava-se do
grupo, obrigando o aparelho de Justiça criminal a dar-lhe um lugar distinto e tratá-lo como um
caso à parte.
A partir daquele dia e durante vários dos meses que se passariam até o julgamento, Lukas
cumpriu uma agenda especial: duas vezes por semana era conduzido de High Down à corte de
Southampton para prestar esclarecimentos. A viagem levava pouco mais de duas horas numa van
sem blindagem. Era sempre acompanhado por dois homens e duas mulheres desarmados, guardas
responsáveis por sua segurança. Além do motorista, naturalmente. Parte do percurso atra vessava
a New Forest (Nova Floresta), onde não havia grande movimento, pelo menos nos horários
normalmente escolhidos para o deslocamento. Essa área mais tranquila ficava a cerca de uma
hora do porto de Dover, onde carros e caminhões embarcavam rumo ao continente.
6
PLANO DE FUGAAlgumas semanas depois de ser instalado em High Down — esse nome infame que evoca
o distúrbio bipolar —, Lukas caiu em si. Em outras palavras, a barra pesada despencou em sua
cabeça, rachando-lhe o crânio e o juízo. A tal ponto que travou a seguinte conversa com um
elegante companheiro de infortúnio, educadíssimo e rico, ainda assim preso por golpes menores
na praça. Um homem que ostentava relações privilegiadas com o submundo organizado, a quem
os presos nativos prestavam espontânea reverência e cuja influência transbordava os muros da
prisão. Travou mais ou menos esta conversa, depois de devotar ao figurão a atenção protocolar e
as homenagens de praxe, durante tempo suficiente para conquistar sua confiança e convencer-se
de que valia a pena apostar todas as últimas fichas que lhe restavam num lance de cinema, cujo
sucesso dependeria da qualidade dos efeitos especiais, da competência do diretor e dos contatos
do produtor. Nesse caso, o nobre personagem, que agora conversa com Lukas, acumularia todas
essas funções, credenciando-se ao Oscar dos celerados.
Em seu inglês fluente e apurado, Lukas vai direto ao ponto, aproveitando o lanche na
cafeteria e a privacidade de um momento sem ninguém por perto para perturbar, nem guardas
nem presos:
— Caro Mister Donald, permita que eu ocupe parte de seu tempo com uma especulação,
um devaneio talvez, algumas conjecturas que me ocorreram, recentemente. Espero não molestá-
lo lhe falando de mim.
A receptividade é boa. Mr. Eliot Donald franze a testa e se mantém concentrado, prova de
que se dispõe a seguir ouvindo. Lukas não vacila:
— Cada passo é firme, seguro, mas os caminhos nos levam a labirintos. As vezes uma
pequena alteração no rumo... Navegando por sextante, a gente mede o ângulo de afastamento
entre o horizonte e um astro. O sol ao meio-dia é o que melhor se presta. É preciso relógio
rigoroso ao segundo, porque cada segundo de erro corresponde a duas milhas náuticas de erro.
Imagina o que isso significa em um dia inteiro de viagem... ou em trinta anos de vida.
— Uma pequena decisão e a gente se fode.
— A gente se fode, justamente.
— Ou injustamente.
— Claro, o que eu quis dizer foi exatamente.
— Exatamente o quê?
— Exatamente.
— Não sei se estou entendendo aonde você quer chegar.
— Está vendo, Mr. Donald, um segundo de erro, uma viagem perdida, um plano
arruinado, a comunicação vai pro espaço.
— Qual foi o segundo erro?
— Não, não foi isso. Disse que o erro de um segundo, quando a gente navega em um
veleiro... Deixa pra lá. Esquece. O primeiro erro foi acreditar que tudo iria dar certo mesmo que
nem tudo dependesse só da gente.
— Da gente?
— De mim, eu quis dizer.
— O segundo seria acreditar que nada pode dar certo porque tudo só depende da gente,
isto é, de mim.
— Este é o segundo erro. E o terceiro?
— Não existe um terceiro erro, porque eu detectei o segundo a tempo de corrigi-lo. Nem
tudo depende só de mim e, por isso, alguma coisa pode dar certo nessa merda de lugar. Eu agora
entendo bem isso. Vejo com clareza.
— Certo, é uma merda de lugar. High Down.
Dizendo o nome do presídio, Mr. Donald cospe, como se pronunciasse uma imprecação.
Lukas retoma o fio da meada:
— Você está me seguindo, Mr. Donald?
— Não, foi você que veio aqui falar comigo.
— Desculpe. Expliquei mal. Minha intenção foi perguntar se você está compreendendo o
que eu estou falando.
— Você fala inglês muito bem. Entende-se perfeitamente.
— Ok. Você me ajudaria a fugir desse lugar?
— Impossível. Já estudei todas as possibilidades. Não há brechas. As entradas e saídas
são poucas e estão sempre vigiadas.
— Não me refiro a fugir daqui, de High Down.
— De onde, então?
— Da van.
Donald olha fixo lugar nenhum numa linha reta e repete com seu jeitão esnobe de David
Niven versão pirata:
— Da van.
Lukas confirma:
— Isso. Duas vezes por semana, sempre no mesmo horário...
— Quanto?
— Um milhão de libras, cash.
De novo, sua pose clichê e o eco:
— Um milhão.
Lukas continua:
— Quatrocentos mil antes e seiscentos mil depois.
— Parece razoável.
— Não vai ser muito difícil. Posso mostrar no mapa o ponto ideal para me sequestrarem.
Tenho estudado esse trecho com atenção. A estrada faz uma curva pronunciada e penetra mais na
New Forest do que em qualquer outra parte do trajeto. O movimento é pequeno, a mata fechada e
eu estou a menos de uma hora do porto de Dover. Minha mulher e minha filha podem me ajudar.
Tenho contatos em Portugal. Conheço um português que falsifica passaportes com per feição.
Antes que me cacem no meio da floresta já estou em Portugal. O que você acha?
— Seiscentos mil depois de sua fuga?
— Pode confiar. Não tem erro. Eu sei que ninguém brinca com você. Prefiro estar em
guerra com a Coroa britânica do que com seu império, Mr. Donald.
— Quatrocentos, agora.
— Agora, já.
— Não é nada simples uma operação dessas. São necessárias armas de guerra, de uso
exclusivo do exército. Não é fácil ter acesso a elas, nem achar quem saiba usá-las,
profissionalmente. É uma ação de risco. Pode haver resistência. Os guardas que acompanham
você na van talvez estejam armados mesmo que você não tenha visto as armas. Alguém pode se
machucar.
— Isso não. Se houver resistência armada, seu pessoal fica com os quatrocentos mil, mas
eu quero que a ação seja abortada. Ninguém deve se ferir nessa história.
— Impossível garantir. É imprevisível e incontrolável.
Lukas pensa um pouco. Hesita. Retoma a palavra:
— Certo, mas que fique bem claro para quem for convidado a participar da ação que eu
prefiro que ninguém se machuque.
— Vou fazer umas sondagens e volto a falar com você.
7
REINICIANDO A MENTELukas cruzava com Mr. Eliot Donald quase todos os dias. Limita- va-se aos
cumprimentos formais — “Como vai, Mr. Donald? Como tem passado? Tenha um bom dia, Mr.
Donald”. Saudações de praxe e um leve curvar da cabeça. Forçou a mão nas formalidades, cujo
lado patético não lhe escapava, considerando-se que ambos vestiam aqueles uniformes ridículos
de presos. A nobreza dos indigentes talvez inspirasse um filme divertido de Walt Disney. Na
realidade, era só melancólico. Fez questão de separar as coisas: negócios são negócios. Se Eliot
Donald não voltasse ao assunto, Lukas tampouco o faria. Não por orgulho. Esse era o código, a
regra não dita que orienta os comportamentos na sociedade a que ambos pertenciam. A proposta
foi apresentada, a oferta foi feita, os termos, discutidos. Donald mani festou interesse, entretanto,
numa situação complicada como aquela, era natural que tivesse de ponderar com cautela e em
detalhes cada aspecto do plano. Além disso, como a operação envolveria mais gen te, o manda-
chuva teria de ouvir seus sócios e subordinados. Não era o tipo de decisão que se pudesse tomar
sozinho. Se Lukas insistisse ou cobrasse uma resposta, demonstraria ansiedade, certo descontro-
le, alguma instabilidade. Projetadas no futuro, como preditoras de comportamento, essas
características indicariam imprevisibilidade e incerteza. Como confiar em quem não passa
segurança e autocontrole? O pior cenário para o boss inglês seria não receber as seiscentas mil
libras depois da ação e Lukas deixar-se prender, candidatando-se a tornar-se um delator. A
posição de Eliot Donald ficaria vulnerável. Por isso, o melhor que Lukas tinha a fazer era conter-
se, manter-se frio, distante, formal, sem pressa, a ansiedade perfeitamente domesticada.
Os dias de visitas eram especiais, cercados de emoções fortes para Lukas. Marguerite
prometeu visitá-lo. Apareceria de surpresa num desses dias.
Donald conversaria com auxiliares e emissários. Meu futuro, pensava Lukas, estaria
sendo decidido. Ele ansiava por cruzar com Mr. Donald nas segundas-feiras, no pátio ou no
refeitório. Repetiria a coreografia quase solene de sempre, mas com a expectativa de que,
finalmente, em vez de uma resposta polida e exclusivamente gestual, ele o convocasse para uma
conversa.
Um dia, Marguerite apareceu. Pelo sim, pelo não, Lukas resolveu não correr o risco de
atrasos e se antecipou, preparando-se para a hipótese de seu plano vir a ser posto em prática:
encomendou à esposa o passaporte português. Passou-lhe os contatos, depois de uma boa meia
hora acalmando-a. Prometeu-lhe que nada seria feito sem que houvesse absoluta certeza de que
daria certo. Anita, sua filha querida, esperta como ela só e dedicada ao pai como a uma causa
sagrada, encontraria um meio de adaptar alguma foto do pai ao formato apropriado. Bastaria
enviá-la ao português. O resultado seria altamente convincente, ele tinha certeza.
O poderoso chefão inglês não puxou conversa. Lukas, fiel à sua tática, não tocou no
assunto.
Quase quatro semanas depois, quando Lukas começava a se resignar, um intermediário
trouxe o recado: Eliot Donald o esperaria para uma conversa, no dia seguinte, no pátio, durante
os exercícios matinais.
Lukas dormiu mal. Ensaiou respostas para todos os possíveis questionamentos. O plano
estava na ponta da língua. Considerava-se psicologicamente pronto para qualquer decisão.
Manteria a calma. A decisão negativa poderia ser um teste. Nada o tiraria do sério.
— Mr. Mello, vamos fazer.
Lukas percebeu que estava mais preparado para um desfecho negativo do que para ouvir
o que havia semanas vinha sonhando ouvir. A frase tão curta e objetiva o deixou por um
momento sem fala.
— Maravilha — disse Lukas.
A mente congelou. Ele teve de “reiniciá-la”. Para ganhar tempo e pensar no que diria,
repetiu “maravilha”, “great”, “great”.
Finalmente, articulou uma frase:
— Obrigado, Mr. Donald, obrigado pela confiança. É uma satisfação negociar com você.
Tudo vai dar certo, você vai ver. Estou realmente grato.
— Vamos aos detalhes práticos. Primeiro, as quatrocentas mil libras. Depois, os dados
sobre a van, os acompanhantes, os dias e horários e o percurso.
— Perfeito.
— Quem vai nos passar as libras?
— Não é quem, é onde.
— Então...
Lukas despejou sobre o interlocutor o endereço e as informações complementares a
respeito do lugar.
— Quem estará lá?
— Ninguém, Mr. Donald.
— O que isso significa?
— Seu pessoal vai ter de pegar o dinheiro por conta própria. Vou ensinar o que fazer. Não
se preocupe, Mr. Donald. Tudo vai dar certo.
— Pode me chamar de Eliot.
8
IT’S SHOW TIMEÀ noite, resolvida a parada com Eliot, Lukas virou a página, mudou de canal e se
concentrou na fuga. Sua imaginação o levou à New Forest. Um carro se aproxima velozmente
por trás da van. Cola na traseira da van de um jeito ostensivo. O carro que está à frente da van
reduz a velocidade e não dá espaço para ultrapassagem. O motorista da van se inquieta. O
automóvel à frente continua a reduzir a velocidade e a fechar a passagem. O carro que está atrás
da van acelera e aperta o sanduíche. Os quatro guardas também se inquietam. O motorista
escracha: não há dúvida de que está em curso um procedimento bizarro e intencional. Não se vê
nada dentro dos carros. O motorista pede autorização para tentar uma manobra arriscada. O chefe
da equipe grita com ele. Queria mais iniciativa e menos formalismo; mais agilidade e menos
estupidez burocrática; mais competência e menos respeito ritualístico à hierarquia. Lukas ri
consigo mesmo. Sabe que tudo vai dar certo. A guarda bonitona que lembra Vanessa Redgrave
comunica pelo rádio o que está acontecendo e pede ajuda. A manobra súbita para mudar de pista
e escapar do cerco é bloqueada por um terceiro carro que antes não parecia fazer parte da frota
inimiga. A operação é tão bem-coordenada e célere que antes de contar até vinte os quatro carros
estão parados no acostamento, a van já está cercada de homens encapuzados e fortemente
armados, a porta de trás da van já está sendo aberta e Lukas vai sendo puxado à força para fora,
sem que os guardas possam reagir.
Tudo se passa a jato: num piscar d’olhos o prisioneiro já se embrenhou floresta adentro
sem deixar rastro, enquanto os três veículos usados no sequestro somem na poeira da
autoestrada. Para onde fogem; onde eles serão largados à margem da estrada; onde os bravos
libertadores serão resgatados por outros carros: nada disso importa mais, nem Lukas chegaria a
conhecer as respostas. Só importa o sucesso da missão. Lukas dispara pelo bosque que se parece
com aqueles das fábulas infantis. Carrega nas costas a mochila que um dos seqüestradores lhe
passou. Dentro da mochila, há um celular, que não demora a tocar. Ele atende e ouve a
orientação que faltava: em que direção deve ir e onde está o transporte que o espera para levá-lo
até o porto de Dover. De lá em diante, Lukas não será mais problema de Eliot Donald nem de
sua brigada ligeira. Chegando ao porto, Lukas será seu próprio problema.
E não será um problema de fácil solução. Lukas sabe disso, perfei tamente, porque já
passou por situações parecidas, ainda que muito menos decisivas para sua vida. Encontraria uma
longa fila de caminhões aguardando a vez de embarcar rumo ao continente. O ideal seria ir direto
para Portugal. O mais provável, entretanto, seria conseguir carona para a França. Dali se passava
também para a Holanda e a Bélgica com a mesma facilidade. Desde que conseguisse sair da
Inglaterra, não haveria qualquer obstáculo para entrar nesses países. Não havia barreiras, nem
fiscais. Nenhuma vigilância ou exigência. Território europeu era espaço livre de paranóias
naqueles tempos anteriores ao 11 de setembro de 2001. Aqui e ali, uma ou outra pequena dor de
cabeça, uma eventual amolação, algum inconveniente, mas a presunção de inocência prevalecia.
Portanto, bastava trabalhar bem a saída de Dover. Resolvida essa etapa, a terrinha o estaria
esperando de braços abertos. Em Lisboa, Lukas receberia o passaporte por tuguês novinho em
folha e sumiria nesse mundão de Deus. Adeus, crime e castigo. Bye, bye, Queen Elizabeth. Todo
mundo tem direito a uma segunda chance. Ou deveria ter. Lukas estava disposto a não
desperdiçar a sua.
Não avancemos rápido demais. Ainda falta resolver o dilema da saída. Muito bem, já se
vê à frente, depois da próxima curva da estrada, a procissão de caminhões que parece
interminável. A fila é sinuosa e faz a volta ao redor do restaurante de um posto de gasolina.
Felizmente, o tempo médio de espera é curto. Por um lado, isso favorece Lukas, porque a notícia
da fuga se espalha como fogo em mato seco e as autoridades não devem ser tão idiotas quanto o
idealizador do sistema de transporte de presos. Por outro lado, a exiguidade de tempo aumenta o
grau de dificuldade para quem precisa descobrir um caminhoneiro que se disponha a correr
riscos e comprar-lhe a solidariedade. O passageiro clandestino é um carona incômodo.
Lukas agradece ao homem de Eliot Donald que o recolhera na New Forest e desce do
carro no posto de gasolina onde os caminhoneiros forram o estômago para a travessia. Ele sabe
que, agora, está por sua própria conta. It’s show time é o chavão que lhe vem à cabeça.
Entra no salão imenso e feericamente iluminado do restaurante como os mocinhos das
fitas de cowboy entram nos saloons do velho oeste. É assim que imagina a cena. Dirige-se ao
balcão, pede um café e um sanduíche, ouve as conversas, aqui e ali, acha uma brecha para se
meter, sente a receptividade, cria um ambiente descontraído, vai se infiltrando aos poucos,
identifica o cara mais vulnerável, limita a conversa a esse interlocutor, cerra os punhos, mantém
a guarda alta, diminui a distância, solta as primeiras estocadas, leva-o às cordas, surpreende-o
com um direto no bolso, outro e mais outro, até nocauteá-lo com uma proposta irrecusável.
Derrotadas as resistências do caminhoneiro, vencida a batalha da grana contra o medo, Lukas sai
de fininho e se esconde no caminhão sob as ordens do novo companheiro de jornada. Metade da
gorjeta já foi entregue. A outra, só no destino.
Sendo o tempo relativo, como se sabe, a espera que é curta para os motoristas que
aguardam o embarque com a cabeça no lugar é insuportavelmente demorada para quem aguarda
a vez de embarcar com a cabeça a prêmio.
Mas tudo vai dar certo, Lukas repete seu mantra, tudo vai dar certo, enquanto aguarda o
embalo do sono, tudo vai dar certo, murmura com a cabeça no travesseiro. Falta só uma semana
para a fuga.
9
COM O GOSTO DE QUEM ERGUE UMA XÍCARA
DE CHÁEnquanto os neurônios de Lukas trafegavam a mil, produzindo devaneios sobre a fuga, os
homens de Eliot Donald incumbidos de buscar as quatrocentas mil libras punham a mão na
massa. Eram três rapazes: dois operacionais, como eram chamados no grupo, e o motorista, um
sujeito baixinho, pesado demais para sua altura, porém forte, socado. Os outros dois eram
esbeltos, atléticos, cabelos cortados rente, bíceps salientes, tatuagens maldisfarçadas em camisas
de mangas compridas. Um louro, outro moreno. Fora isso, pareciam irmãos.
Circularam durante uma hora pelas redondezas da casa indicada por Lukas para sondar o
ambiente — uma área residencial tranquila. Crianças voltando da escola, um ou outro ciclista
curtindo a temperatura amena do fim de tarde, nada que chamasse a atenção. Identi ficaram a rua,
o número, a casa, passaram por ali uma, duas vezes, devagar, certificando-se de que as
aparências correspondiam às descrições. Ok, estavam liberados para seguir adiante.
Estacionaram o carro em frente à casa, como era comum naquela rua. Não havia muros
separando a calçada do jardim. Encontraram a chave onde as instruções diziam que ela estaria:
na reentrância à direita, na parte inferior do degrau de pedra. A porta abriu. Entraram na casa. O
rapaz moreno carregava a maleta marrom. O louro trazia a mochila pendurada no ombro
esquerdo. Deram uma olhada geral, não havia ninguém. Verificaram se as cortinas estavam
fechadas. Voltaram à sala, vestiram luvas e começaram a caça ao tesouro. O motorista abriu a
maleta. O louro encostou as costas na porta, contou três passos para a frente e dois para o lado
direito. O motorista e o moreno o ajudaram a levantar o tapete, puxando a mesinha e a poltrona
para o outro lado. O piso de madeira não era liso, o que tornava a fissura no assoalho quase
imperceptível. Usando com cuidado o pé de cabra, suspendeu a tábua sem quebrá-la. Apenas o
suficiente para o braço penetrar no buraco. Por enquanto, o trabalho avançava con forme o
figurino. O louro tentou de novo. Não achou nada. O moreno veio em seu auxílio. Trouxe a
lanterna e o espelhinho grudado na ponta de uma haste longa. Virou a geringonça, girou o
pescoço, pediu ao colega que segurasse a lanterna e a apontasse para onde o espelho se
deslocasse. A manobra exigia habilidade de ourives, talento de cirurgião e sensibilidade de
gatuno.
— Aqui, aqui. Senti o troço na ponta do dedo.
— Já estava desconfiando dessa história toda.
— Está aqui, sim.
— Então, puxa pra fora. Quer mais luz?
— Não adianta. Não dá pra ver nada. Só estou sentindo a ponta de metal. Deve ser a tal
chave.
— É melhor quebrar logo a madeira e tirar essa merda. Não acho bom a gente ficar aqui
muito tempo.
— Calma. A gente mal chegou. Qual é o problema? A gente entrou na casa normalmente,
com a chave, pela porta da frente. Relaxa, cara.
— Tudo bem, mas vamos quebrar essa porra.
O motorista ora observava a cena, ora vigiava a rua, afastando a cortina com as mãos.
Na casa ao lado morava uma velha senhora viúva, cujos afazeres se resumiam a
certificar-se de que o mundo girava ao redor do próprio eixo e em torno do sol, garantindo a ela
e aos demais cidadãos britânicos mais um dia e uma noite de paz e respeito à Lei e à Ordem.
Com o zelo que sua devoção à rainha lhe inspirava, volta e meia perscrutava o andamento das
coisas humanas e naturais, suspendendo a barra da cortina com o gosto de quem ergue uma
xícara de chá. Atentava em especial para as mudanças no tempo e novidades na vizinhança.
Naquela tarde não observou sinais de chuva ou de queda abrupta da temperatura, que lhe
provocava dores nas juntas. Todavia, não ficou indiferente à visita inusitada de três homens
jovens à casa ao lado.
* * *
O moreno de manga arregaçada até o cotovelo suava e se retorcia sem sucesso. Enfim,
tirou o braço do buraco e entregou os pontos:
— Acho que não vai ter jeito mesmo, não. Dá uma marretada desse lado aqui.
Os rapazes aumentaram o buraco, retiraram a chave e, analisando o mapa, passaram à
etapa seguinte: a procura do cofre.
* * *
A vizinha que estava alerta desde que testemunhara o desembarque do grupo e a
movimentação subsequente na casa por tanto tempo vazia excitou-se com os ruídos e julgou
dispor de materialidade suficiente para converter as suspeitas em denúncia. Esperava há anos po-
der ser útil à comunidade, demonstrando sua fidelidade à monarquia e seu apreço particular por
Sua Majestade. Nunca antes ousara chamar a polícia porque temia o estigma de bisbilhoteira. Se
um adjetivo desse tipo colasse à sua imagem, toda uma vida de gestos modestos mas decentes se
degradaria na mais abjeta vulgaridade.
* * *
Os homens de Eliot Donald não tiveram dificuldade para localizar a fenda dentro da
lareira, ao lado da moldura superior. Puxaram com duas ferramentas o tijolo que estava apenas
encaixado, encontraram o cofre, que parecia uma caixa de sapato blindada, enfiaram a chave e a
fizeram girar duas vezes. Funcionou perfeitamente. Contaram as notas e respiraram aliviados.
Estavam ali as quatrocentas mil libras.
O motorista sugeriu um brinde. Seus comparsas o ignoraram. Eram profissionais. “Com
água mesmo”, insistiu o baixinho socado. Nem assim conseguiu uma resposta. O rapaz louro
sepultou o cofre em seu jazigo, enquanto o moreno se preparava para fechar o buraco no meio da
sala.
Não houve tempo para restaurar a decoração. A polícia chegou e os flagrou na sala
revirada com a grana separada em maços no sofá. Os homens de Eliot, tão bem-preparados para o
combate e a caça ao tesouro, se mostraram ineptos para produzir uma versão minimamente
verossímil daquela excêntrica visita vespertina.
10
O PRESO MAIS PERIGOSO DA INGLATERRAÀ noite, dois guardas abordaram Lukas em sua cela. Ordenaram que ele reunisse seus
pertences. Deram-lhe uma sacola. Ele quis saber de que se tratava. Eles aumentaram o volume da
voz repetindo a ordem já enunciada e cobraram celeridade.
— Isso significa que vou ser transferido?
— Junte suas coisas.
— Para onde?
— Rápido.
— Por quê?
— Cale a boca.
— Eu não tenho direito de pelo menos ser informado do que estão fazendo comigo?
— Junte tudo depressa e bico fechado.
Lukas insistia com as perguntas. Intuía alguma coisa no ar além dos procedimentos de
rotina. Alguma coisa ruim. Os guardas o teriam enchido de porrada se pudessem, foi o que ele
deduziu de suas atitudes, da linguagem corporal, do tom de voz e da determinação para que
calasse a boca de uma vez por todas e obedecesse, imediatamente.
Os neurônios que interpelaram seu baú de memórias e as emoções mais primitivas,
postando no monitor mental a história fantástica da fuga em que tudo dava certo, se enrolavam,
agora, em meio à avalanche de sinapses negativas que disparavam sinais de perigo, desmontando
o reino de esperança e devaneios recentemente construído. As fantasias eram espaço de fuga da
realidade claustrofóbica e fonte de abastecimento das energias do dia a dia, sem as quais as
paredes da cela se contraíam e a falta de perspectivas para o futuro sufocava com uma força
irresistível. Destruídos o campo de refúgio, as baterias e as bombas de oxigênio, Lukas pisava o
corredor de High Down desolado. Se seria mesmo transferido, por que daquela forma, sem ex-
plicações? Isso significaria mudança na rotina das viagens semanais para Winchester? Ou seja,
isso implicaria a ruína do plano de fuga? Ele teria de abortá-lo? E se as quatrocentas mil libras
já estivessem nas mãos do grupo de Eliot? Caso as viagens prosseguissem, o plano poderia ser
mantido, desde que houvesse uma maneira de manter contato com ele. Marguerite poderia ser a
intermediária. Mas como comunicar-se urgentemente com ela? Como fazê-la voltar à Inglater -
ra? O advogado não seria confiável para colaborar com a fuga. Jamais se arriscaria a ser
cúmplice de um brasileiro maluco numa empreitada que talvez considerasse suicida. Ele sequer
poderia ficar sabendo do plano. Ninguém deveria saber. Ninguém, além de Marguerite e do
excêntrico padrino britânico.
Jogaram Lukas numa viatura policial diferente das que ele frequentara em outros
deslocamentos. Alguma coisa estava mesmo fora de ordem.
Lukas ficou horas na caminhonete policial fechada. Havia frestas para renovar o ar e
uma pequena escotilha com vidros blindados e grossos que mal permitia vislumbrar a
luminosidade exterior. Foi o suficiente para saber que anoitecera.
Horas depois de descobrir que era noite, a viatura estancou diante de portões que Lukas
supôs pesadíssimos, porque se moviam com forte e prolongado alarde, antes e depois que se o
cruzava. Outro imenso alarido e mais portões arrastando seu peso. Lukas imaginou sua
espessura e deduziu que o guardariam numa espécie de cofre. Despejado num corredor úmido e
solitário, depois numa cela vazia, dormiu mal, desinformado de tudo. Pela manhã, vieram
trazer-lhe um pedaço de pão com café. Continuou desconectado do mundo que habitara até a
véspera e percebeu como fora ingrato quando maldisse High Down. Desolado, desinformado,
levitava num éter sombrio de silêncio e angústia. A única certeza que teve corrigiu sua primeira
impressão: não o depositaram num cofre, mas num cofre instalado dentro de outro cofre.
Bem mais tarde lhe disseram onde estava: Belmarsh, um bunker; uma das três
penitenciárias de segurança máxima da Inglaterra. Seu status fora elevado para triplo A. Do dia
para a noite, tornara-se o preso mais perigoso do país.
Todas as celas são iguais na Inglaterra. Aquela que lhe coube em Belmarsh não fugia à
regra: uma pia com água quente e fria. Uma privada. Uma cafeteira. Uma TV a cores (desde que
o preso se dispusesse a pagar uma libra por semana de aluguel). Eram acessíveis: BBC 1 e 2,
Channel 3, 4 e 5. Uma mesinha e uma cadeira. Cama de ferro aparafusada no chão com faixas de
metal. Travesseiro, fronha, lençol, cobertor. O colchão costumava ser bom quando novo. Havia
calefação na cela. Só se sentia frio quando se saía da cama, mas não com o cobertor. Calor,
Lukas nunca sentiu. Ofereciam pasta de dente, escova cortada, shampoo, sabonete e gilete
descartável. A única arma possível era a gilete aquecida e grudada na escova de dente. Por isso, a
escova era cortada e a gilete tinha de ser devolvida.
Enquanto esteve preso, Lukas teve de trocar de cela de trinta em trinta dias, no bunker ou
fora dele. Apesar das boas condições de higiene e do conforto razoável, cofres, definitivamente,
não são ambientes em que o animal humano desenvolva habilidades adaptativas saudáveis e
preserve a sanidade mental.
11
BUNKERO regime no bunker era... quase escrevo rigoroso, mas seria falso. Em High Down a
ordem era rigorosa. No bunker era outra coisa. Não por conta das três revistas diárias. Isso era o
de menos. O que marcava a diferença eram a solidão absoluta, o isolamento, o silêncio. Tratava-
se de outro planeta com centro de gravidade diferente, condições atmosféricas diferentes, leis
naturais próprias e poucas chances para o desenvolvimento da vida, especialmente da vida sob a
forma humana, esta que costumamos prezar como se fosse sagrada. A cada quarenta minutos o
encarregado abria a pequena janelinha gradeada no alto da porta de aço e observava atentamente
o paciente, o cliente, o sujeito, chame-se lá como se queira. Cobaia talvez fosse o melhor nome
para designar o objeto da observação sistemática do encarregado. Qual a profissão do
observador? Como classificá-lo? Não saberia dizer. Lukas nunca soube definir. Certamente,
diferia do carcereiro; tampouco seria um simples guarda penitenciário. Não era um mero voyeur,
tanto quanto o carteiro e o maratonista não se confundem com o flâneur. Observador de presos?
Sua função era examinar, visualmente, a distância portanto, o homem que habitava a cela.
Examinar com atenção, em detalhes, e transpor para o papel o resultado da observação,
descrevendo a posição física e a localização de Lukas nos seis metros quadrados da cela.
Talvez houvesse em Belmarsh uma unidade de pesquisa responsável por sistematizar o
saber acumulado nos anos de inspeção e por treinar profissionais na aplicação da metodologia
pertinente. Nessa unidade especializada, os agentes absorveriam esse especializadíssimo saber e
o transmitiriam a novas turmas, formando novos experts, passando de geração a geração os
segredos desse ofício comparável, quem sabe?, a ciências como a ornitologia, que estuda os
pássaros.
O método determinava, por alguma razão, a periodicidade: quarenta minutos. Cada
inspeção far-se-ia a intervalos de quarenta minutos. Teria relação com o metabolismo dos
objetos animados dispostos na cela para inspeção? Com ciclos lunares ou ritmos esotéricos da
natureza, digo, da natureza desses objetos animados em particular? Teria a ver com os turnos de
trabalho dos encarregados, de modo a dividir com equidade a extenuante tarefa de observar o
prisioneiro? Teria sido fruto de longa e dura negociação dos governos britânicos com o
sindicato dos observadores de presos em solitárias sob regime de máxima segurança? Ou será
que este, justamente este é o significado da expressão segurança máxima: “estado de absoluta
subordinação à inspeção regular com intervalos precisos de quarenta minutos”? Sim, porque a
regularidade garante a estabilidade e a previsibilidade do ato de inspecionar e a permanência da
própria cela em seu lugar, contendo invariavelmente um e o mesmo homem, mesmo que a re -
ferida regularidade não garanta a estabilidade do estado da vítima, digo, do indivíduo
observado, uma vez que um enfarto pode muito bem fulminá-lo entre as inspeções.
Quaisquer que sejam o sentido e a eficácia desse curioso ofício, o fato é que ele era
praticado com afinco e disciplina. Fazendo do limão a limonada, Lukas, se tivesse tido mais
presença de espírito, poderia ter se beneficiado das inspeções, aproveitando-as para mar car a
hora. Bastaria substituir as unidades convencionais de marcação do tempo pela nova unidade de
tempo Belmarsh: seis inspeções corresponderiam a 240 minutos do tempo comum e, portanto, a
quatro horas. Trinta e seis inspeções equivaleriam ao ciclo de um dia ou 24 horas, no tempo não
Belmarsh, que é o nosso e que havia sido também do Lukas em sua vida passada, em sua
encarnação pré- -bunker.
A vida anterior de Lukas se manifestara sob uma forma biológica e mental, emocional e
cognitiva inteiramente diversa daquela para a qual o cofre dentro do cofre servia de incubadora.
Para resistir à dissipação da lucidez, Lukas precisaria raspar o tacho do amor à vida e amarrar as
tripas no coração para formar um escudo protetor que lhe salvasse a autoestima e a compaixão.
Para evitar que outro tipo de animal fosse gestado no lugar de sua alma, atrás da casca de seu
corpo, seria necessário agarrar-se à memória dos filhos e da mulher, da mãe e também do irmão
e do pai, que se foram cedo demais — e do mar, do mar cortado por um veleiro.
Lukas passou parte de sua vida carcerária imaginando a biblioteca do bunker: dezenas de
quilômetros de corredores subterrâneos mal-iluminados, forrados de prateleiras, nas quais
estariam enfileirados os livros de registro onde os inspetores descrevem o que veem a cada
quarenta minutos. Pôs-se a especular qual seria o número de série de seus livros. A prática teria
sido herdada das primeiras civilizações letradas? Essa bizarra modalidade de conhecimento teria
derivado do uso da privação de liberdade como forma de punição ou como forma de tratamento
de enfermos contagiosos? Ou, pelo contrário, a punição por meio de cativeiro teria tido como
origem o estabelecimento dessa extravagante e secreta ciência, cujo progresso dependeria do
isolamento de homens em cubículos claustrofóbicos por longos períodos de tempo? Teria sido a
prisão, originalmente, um experimento científico? Sofreria Lukas alguma pena secreta que o
submeteria a experimentos diabólicos? Terminaria abduzido?
Lukas concebeu uma instalação no memorial do Homo sapiens, que um dia espécies
futuras construiriam em homenagem à memória da humanidade: um filme seria projetado
continuamente. Um filme cujos fotogramas corresponderiam a cenas flagradas a cada quarenta
minutos na mesma locação. Para apertar mais ainda o garrote na carótida do espectador, a
locação seria aquele mesmo espaço utilizado para a projeção do filme. Lukas desistiu de pensar
nessas coisas quando percebeu que estava enlouquecendo.
As vezes sonhava que despertava num sobressalto com o barulho da escotilha sendo
aberta. Em seguida, despertava e não tinha mais certeza se sonhara ou não. Os olhos que o
inspecionavam não lhe davam descanso. Ocorreu-lhe aguardar a abertura da portinhola e só
depois tentar dormir, porque sabia que, nesse caso, disporia de 39 minutos para relaxar em paz e
com privacidade. Mas os 39 baixavam para 38, 37, 36 e a contagem regressiva o pressionava
para que dormisse de uma vez, antes que fosse tarde demais e tivesse de esperar outra chance. A
pressão aquecia a paranoia e o sono lhe escapava.
Assim atravessava madrugadas inteiras, cochilando como quem soluça. A manhã não
trazia luz nem trégua. O tempo lhe fora roubado. A noite penetrava no dia com suas agulhas; o
dia infeccionava a noite com suas tenazes.
12
O GRANDE LIVRO
Anos depois de chegar a Belmarsh, uma circunstância fortuita no corredor permitiu que
Lukas matasse a curiosidade. O grande livro de registros foi deixado aberto numa pequena mesa,
enquanto seu responsável verificava alguma coisa numa cela vazia, justamente no momento em
que Lukas passava. Ele não resistiu e espiou. Leu as anotações mais recentes, que se seguiam a
centenas de outras:
“14h40: Apenado 01 está sentado na cama com as mãos sobre os joelhos, olhando a
parede.”
“15h20: Apenado 01 está sentado na cama com as mãos sobre os joelhos, olhando para
baixo.”
“16h: Apenado 01 está de pé, urinando na latrina.”
“16h40: Apenado 01 está deitado na cama, olhando para o teto com as mãos sobre a
barriga.”
Naquela noite, Lukas teve um sonho banal:
* * *
Um guarda caminha no corredor da penitenciária até a porta de aço situada ao lado da
mesa, abre a diminuta escotilha protegida por vidro blindado, contempla o interior da cela, fecha
a escotilha, dirige- -se ao livro, olha o relógio, respira fundo, cruza os braços, volta a examinar o
horário e escreve, declamando a frase que redige: “Zero hora: Apenado 01 está sentado na cama
com as mãos no colchão e a cabeça baixa.”
Afasta-se e devolve ao corredor a quietude perturbada por sua rotina de registros.
A cena se repete. Dessa vez, o livro, inteiramente preenchido, é fechado e substituído por
outro exatamente igual. Quando o guarda se retira, portando o livro, Lukas acompanha,
invisível, seu trajeto até uma porta desproporcionalmente alta. O homem digita um código no
painel digital, na parede ao lado, e a porta abre, fazendo um estrondo que ecoa por longo tempo.
Lukas se descobre sozinho numa sala repleta de documentos. Estantes do teto ao chão
estão abarrotadas de livros. Cada volume ostenta na lombada a inscrição em letras góticas e
douradas: “Apenado 01”.
A imagem esmaecida se apaga para, lentamente, retomar viço, devolvendo Lukas à
mesma sala, muitos anos depois: as estantes, agora, exibem centenas de volumes semelhantes.
Uma luz escarlate ilumina a sala e as estantes até saturar a imagem com a ferocidade de
um incêndio, consumindo todo o oxigênio. Lukas desperta asfixiado, o corpo encharcado de
suor.
* * *
Não era incomum despertar molhado de suor, voltar a dormir e sonhar com o mar, o
veleiro, a mansidão líquida. Nesses casos, repousava e acordava de manhã cedo bem-disposto.
* * *
Outras vezes, a noite era atormentada por pesadelos oceânicos, cujo desfecho invariável
era a enchente da cela e o afogamento. Lukas resistia, mas a torrente arrebentava as paredes e
inundava a cela. Ele mantinha o rosto fora d'água até bater a testa no teto, aspirando pela última
vez antes de render-se ao inevitável e submergir. Nesse momento, virava o corpo e percebia que
sua cela transformara-se num aquário e que seus últimos segundos de vida estavam sendo acom-
panhados por um inspetor solitário de Belmarsh, que diligentemente anotava o que observava
no livro de registros, aberto sobre a mesa. A testemunha da morte de Lukas contemplava seu
desespero com indiferença, limitando-se a descrever o que via, entre goles de café e dentadas
num sanduíche de mortadela.
Ao expirar, Lukas acordava, de supetão, empapado de suor, mesmo quando a
temperatura era gélida.
* * *
Por incrível que pareça, nunca lhe passou pela cabeça que a desafortunada transferência
para Belmarsh, a Guantânamo inglesa, guardasse relação com seu abortado plano de fuga. Supôs
que o upgrade na calibragem de sua periculosidade tivesse a ver com a descoberta pela polícia de
alguma nova falcatrua que houvesse cometido no negócio ilícito das drogas. Somente no curso
do julgamento soube que os homens de Eliot Donald haviam sido pegos com a boca na botija,
denunciados por uma inocente velhinha inglesa, exatamente como a personagem clássica de
Agatha Christie. Compreendeu tarde demais que tentativa de fuga envolvendo ações organizadas
constituía crime gravíssimo. A fuga virou do avesso a linha da vida projetada para a frente e para
fora; virou retrocesso, mergulho mais fundo no poço sem fundo. Como se ria possível imaginar
que uma velhinha entediada, num fim de tarde suburbano, poria a pique uma senhora estratégia?
Ao longo dos anos, como hóspede privilegiado da rainha, Lukas aprendeu o seguinte: os
prisioneiros eram classificados de acordo com os crimes que perpetraram ou que supostamente
teriam perpetrado. Havia os quase inocentes, que cometeram pecados veniais, faltas leves, e
mereciam a letra E no boletim do sistema penitenciário britânico. Havia os menos leves, que
recebiam um D estampado na porta da cela. Havia os transgressores da categoria C, cuja mácula
já os credenciava a cuidados especiais. Havia os criminosos do tipo B, aspirantes a inimi gos
públicos de primeira classe. E havia, finalmente, os presos perigosos, cujos crimes exigiam a
letra A, sempre diagramada em vermelho. Quem superasse esse círculo do inferno valia um
duplo A, cujo sentido beirava o inominável. Mas isso não esgotava o repertório. Além dessa
órbita maldita, indicada pelo duplo estigma, havia ainda lugar taxonô- mico para os superlativos,
os hiperbólicos, os perigosíssimos supera- gressores da ordem pública. Esses eram os criminosos
triplo A, linhagem repulsiva à qual Lukas pertencia, ainda que jamais tivesse pegado numa arma
e repudiasse a violência — apesar do fato indisfarçável de que alguns de seus sócios não
hesitassem em praticá-la.
Lukas aprendeu que todo prisioneiro classe A, qualquer que fosse o subgrupo, era
acompanhado do primeiro ao último dia em que estivesse detido por um observador, cuja função
se resumia a observar e registrar por escrito o que observava na cela a cada quarenta minutos.
Por óbvio, o mesmo se aplicava aos presos mais perigosos — isto é, aos top de linha da
criminalidade: duplo e triplo A. Em todas as instituições em que esteve preso na Inglaterra,
mesmo quando perdeu o terceiro A e pôde conviver com os presos comuns, em unidades
comuns, Lukas jamais passou quarenta minutos sem ser flagrado pela inspeção visual de seu
próprio observador. Os homens que o inspecionavam eram sempre os mesmos, em cada unidade
prisional. Revezavam-se em turnos sucessivos. Mas não mudavam. Eram fidelíssimos. Não
trocavam entre si de objeto ou de preso. Lukas era o seu alvo, o seu objeto de inspeção, o seu
preso de estimação. Eles eram os observadores de Lukas, exclusivamente seus. Se Lukas estava
cativo, gabava-se de mantê-los acorrentados à sua rotina, à sua ração de minutos, ao seu próprio
cativeiro. Os inspetores eram prisioneiros da prisão de Lukas. E isso o fazia rir. Rir por dentro,
de si para si, pois não ousava confrontá-los. Era a vingança possível. Afinal, tanto quanto
aqueles bizarros bisbilhoteiros profissionais, Lukas também tinha seus observadores de
estimação, seus pet-watchers.
13
A RAINHA VERSUS LUKAS MELLOChegaram à sua cela em Belmarsh com a fantasia — ou o uniforme — de arlequim verde
e amarelo, as estampas assimétricas distribuídas desigualmente pelas partes altas e baixas do
macacão. Lukas meteu-se naquele saco ironicamente abrasileirado. Ele sabia que era
coincidência. Todos os presos vestiam aqueles andrajos engomados em cores ofuscantes quando
eram conduzidos para o julgamento. Algemaram-no a um guarda, três oficiais conferiram o
fecho, e o fizeram caminhar por uma passagem subterrânea que ligava a penitenciária ao
tribunal.
Os trajes de gala espalhafatosos radicalizavam a degradação da imagem do réu, expondo-
o ao ridículo diante do júri, do juiz, da audiência, da promotoria e dos próprios defensores.
Diante de si mesmo, no espelho de sua consciência. Havia algo de perverso e infanti- lizador.
Parecia pior do que a nudez, porque anulava tudo o que fosse singularidade individualizante. A
experiência chocava e deprimia o preso sobretudo porque a carnavalização de sua figura
contrastava com o figurino solene do juiz e dos agentes da Justiça, com a austeri dade da
coreografia e com a nobreza do cenário em que se processava o ritual, cujo desenrolar simularia
o juízo final sem que se perdesse jamais a elegância típica dos campeões da civilização.
Lukas pisou no tablado com a sensação de que encenava um espetáculo da commedia
dell'arte contracenando com personagens clássicos da tragédia grega ou de um drama moderno
shakespeariano. Entrou em cena, cabisbaixo, sentindo-se a corporificação do mal, a encarnação
do inclassificável, a manifestação exacerbada do isolamento. Trajado com o mosaico divertido
de retalhos da bandeira nacional, Lukas passou pela experiência de ser mais do que estrangeiro:
estranho, radicalmente estranho, porta-estandarte do bizarro. Ele era o bicho excêntrico, o
deslocado absoluto, o sujeito fora de lugar, a extravagância extrema, o enlouquecimento dos
códigos culturais e das bússolas, a supressão irremediável de qualquer resíduo de identidade
humana socialmente significativa. Pairava acima da plataforma em que pisava como se estivesse
embutido numa bolha existencial ou numa cápsula moral alienígena. O tremor provocado pela
suprema humilhação embotava sua inteligência, enfraquecia seu desejo de defender-se e o
submetia a uma espécie de liquidação regressiva e infantilizadora de suas forças. Doeu nele e ao
mesmo tempo o anestesiou. Exatamente como o moribundo exibido numa aula de anatomia: já
não há onde esconder a última reserva de pudor quando o exame público arregaça as primeiras
dobras da carne exposta.
Ingressando na arena do Coliseu, recolheu-se ao nicho que lhe cabia, não muito próximo
dos comparsas, réus como ele do mesmo julgamento. Falhou a tática de separação entre os casos
que a defesa tentou aplicar.
Iniciados os trabalhos, logo, logo, Lukas transitou do trauma inaugural — a
descompostura sob a forma de arlequim — para o tormento substantivamente mais grave, que
ele e os antigos sócios vivenciariam como verdadeira tortura chinesa: os pingos-d’água lentos,
mas constantes, prenunciando um calvário infinito. Esses pingos-d’água eram as informações
que a polícia havia reunido. Informações cuja extensão eles ignoravam, cuja profundidade eles
desconheciam, cuja acuidade eles não tinham como sequer imaginar. Informações que fluíam
lentamente, gota a gota, dia a dia.
O preâmbulo imponente do meritíssimo juiz definiu o julgamento como um duelo épico
e desigual: a rainha versus fulano e beltrano e sicrano. Não foi à toa que o grande historiador
holandês Johan Huizinga estabeleceu a filiação da Justiça aos jogos, nos primórdios da ci -
vilização ocidental. Claro que Lukas não acharia a menor graça nessa genealogia. Para ele e
seus cúmplices, nada naquele ritual era lúdico. Eles, provavelmente, não se lembrariam de que
há jogos nos quais a vida e a morte estão implicadas. Talvez nesses termos eles admitissem a
analogia histórica.
Lukas até hoje cultiva uma paradoxal idolatria pelo homem que presidia as sessões,
ainda que seja dolorosa a memória dos catorze meses em que esteve sob fogo cruzado, mal
cobrindo os flancos fustigados pela artilharia cerrada e incansável dos promotores. O juiz lhe
causou profunda impressão. Mesmo tendo sido condenado a uma pena severíssima, Lukas
reconhece no magistrado o equilíbrio, a inteligência brilhante, o faro para distinguir o falso do
verdadeiro, a honestidade.
Um psicanalista talvez ousasse ir além da mera constatação. Talvez sugerisse ilações com
a figura paterna, que ama e ajuda impondo limites. O pai que Lukas já perdera, reencarnava,
simbolicamente, no juiz, que sabia ser rigoroso e compassivo ao mesmo tempo. O juiz talvez
representasse uma âncora vital, salvadora, para uma navegação desgovernada. Essa figura
paterna travestida de magistrado talvez fosse e ainda seja tão valorizada por Lukas, e com
sentimentos tão surpreendentemente fortes, porque via mais longe e mais fundo, e respondia a
seu desejo inconsciente de ser protegido de si mesmo, de ser impedido de autodestruir-se.
Oferecia um porto seguro para o veleiro.
O veleiro havia brotado dos sonhos de infância. A navegação fora embalada pelo sopro
das utopias. As aventuras, entretanto, sofreram infiltrações crescentes, o barco adernou, as
esperanças se degradaram em espera impaciente pela próxima aplicação de heroína. A subsistên -
cia foi posta a pique. O avesso dos ideais românticos de liberdade ilimitada sobreveio. O crime
levou consigo os mapas. A vida submergiu.
Era mais do que tempo de subir à superfície, respirar, retornar ao porto. Recomeçar.
Lukas não sabia disso, não queria isso, jamais admitiria alguma cumplicidade entre a
prisão e um desejo seu, mesmo que lhe disséssemos que esse desejo estava submerso em águas
profundas de seu espírito. Ele não reconheceria que a prisão foi obra sua, ou melhor, foi uma
criação coletiva que contou com sua ativa contribuição. Criação coletiva da qual participaram os
policiais de Sua Majestade e um lado seu, obscuro, opaco, avesso à consciência.
Sem dúvida Lukas teria razão se contra-argumentasse:
— Sim, um porto era preciso, navegar já não mais, desde que esse porto fosse menos
seguro do que Belmarsh. Porto que se presta a uma metáfora positiva teria de designar um
espaço onde limites e liberdade convivessem. O porto desejável teria sido o abrigo em que eu
pudesse tomar uma água de coco olhando o mar, ao lado de Marguerite e de meus filhos.
Nenhum desejo vital inventaria Belmarsh, nenhum lugar saudável da alma humana conceberia
Belmarsh. Nenhum desejo vital estaria em casa dentro de um cofre.
14
NO TRIBUNALA apresentação do caso pelo porta-voz da equipe de promotores convocou o representante
da polícia. O homenzinho era o contrário do que sugeriam seus títulos: baixo, magro, fala mansa
em baixo volume, que exigia atenção redobrada apesar do microfone. E de novo contrariando
expectativas, sua exposição foi um show pirotécnico arrasador, pontuado por efeitos especiais e
apoiado em um repertório de fatos impressionante. Lukas sentia-se prestes a desfalecer ante cada
novo episódio relatado. O desânimo era devastador. Não tinha coragem de olhar para os
companheiros cuja esperança certamente definhava no mesmo compasso. O advogado lhe
recomendara que não transmitisse nem arrogância nem desolação. Como alcançar esse ponto
ideal naquelas condições? Lukas deduziu que nada ficaria de fora e que não lhe restaria espaço
para defesa. As acusações eram consistentes. Eram muitas. Todo o arco dos negócios parecia
coberto na exposição arrasadora do homenzinho sussurrante e zen.
Suas primeiras palavras dirigiram-se ao juiz, solicitando que as luzes fossem apagadas.
Numa tela bem grande foi projetado o mapa-múndi. As atenções voltaram-se para as
imagens. Vários pontos saltaram em cores fortes. Setas e traços, linhas pontilhadas, díades,
triângulos, pirâmides, hexágonos, círculos, conexões, direções. A geometria animada recortou o
mapa, sobrepondo-se aos territórios, cruzando fronteiras, tecendo o retrato da rede, o caminho
das drogas, a via do dinheiro. América do Sul, Caribe, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha,
Suíça, Leste Europeu. A velocidade dos movimentos não chegava a dificultar o entendimento, a
despeito da progressiva complexificação das imagens. Fotos e filmes sucediam diagramas,
pontuando a narrativa com intervalos que quebravam a sequência, proporcionando ao júri o
tempo necessário ao relaxamento da atenção. As análises eram traduzidas em gráficos
dinâmicos, coloridos e didáticos. Os percursos marítimos. As rotas do comércio. Os
personagens. A hierarquia. A divisão do trabalho. E, finalmente, ali estava, flagrado no painel:
quem havia feito exatamente o quê. Os nomes dos acusados foram citados. O desfile de
credenciais e biografias era notável pelos detalhes.
Os nervos de Lukas estavam em pandarecos; o júri, visivelmente impactado. A maratona
apenas começava e Lukas queria jogar a toalha. Melhor encerrar tudo de uma vez a suportar
essa longa expiação.
A única esperança seria a falta de provas para as afirmações e os relatos. Contudo, como
seria possível saber com tamanha precisão de tantas minúcias se não houvesse provas? De todo
modo, na eventual brecha entre a narrativa e as comprovações materiais repousaria a única
hipótese plausível de uma reviravolta.
O primeiro dia mostrou as armas da polícia. Mostrou que o jogo era pesado. A coisa era
séria. Mas foi só o ensaio geral. Nas inúmeras sessões seguintes, a competência investigativa
não hesitou em atropelar as alegações da defesa. As versões fictícias de Lukas foram
destroçadas. A realidade inundou o julgamento graças a renovadas demonstrações de
capacidade policial.
Meses se passaram até que a vez de Lukas chegasse. Cabia-lhe sentar-se na cadeira do
réu e assumir o lugar de destaque no ritual. Cumpria-lhe ouvir acusações e perguntas capciosas.
A infantaria de interrogações voltava para ele suas baterias. Trinta e seis dias seriam dedicados
a alvejá-lo. Lukas sabia que a pressão tenderia a aumentar a cada sessão. Intimamente,
procurava preparar-se para tensões insuportáveis. Como preparar-se para o imprevisível? As
perguntas antecipadas pelo advogado, ele as sabia de cor. Ensaiara as respostas com afinco. As
surpresas, entretanto, como lidar com elas? O ideal seria dizer a verdade, tanto quanto possível
e até o limite do razoável, sem incriminar-se mais do que fosse inevitável, sem envolver outras
pessoas além do que já constasse dos autos, além do que houvesse sido admitido pelos demais
acusados. Todavia, nem sempre seria possível dizer a verdade.
Mentir é difícil, porque a mentira não se sustenta fora de um vasto repertório de outras
mentiras. Os pontos têm de se conectar com precisão. As respostas devem formar um conjunto
harmônico, coerente. Os detalhes importam. Como incluí-los se for preciso improvisar? Era dia?
Era noite? Fazia frio? Qual a cor das paredes? Assim como nos romances, a verossimilhança
repousa nos detalhes.
O capítulo sobre Lukas em julgamento começou a todo vapor. Ele mal teve tempo de
respirar. A acusação a respeito de seu envolvimento foi apoiada em farto material.
A viagem derradeira de Lukas à Inglaterra não foi apenas descrita, mas exibida na tela.
Cada deslocamento, cada ação foi fotografada ou filmada, as palavras foram gravadas. Seis
policiais se revezavam a cada quatro horas para evitar suscitar suspeitas. Uma equipe de 24
profissionais seguiu Lukas, recorrendo a todos os recursos da tecnologia mais avançada. Ele
jamais se dera conta de que estava sendo acompanhado de perto pela matilha de sombras,
alcateia de fantasmas, frota sinistra e onipresente de espectros.
Quando Lukas deixava o quarto para o café da manhã, quando sentava no lobby, ao sair
do hotel e caminhar, quando tomava um táxi ou o metrô: não havia momento ou ato que
escapasse ao olhar panóptico do grande irmão policial. A segurança britânica parecia onisciente.
Deus salve a rainha, pensou Lukas tantas vezes ao longo do processo. Entre eles há um pacto.
Não se congela um regime em sagrada hibernação através dos séculos impunemente. A
monarquia tem parte com o divino ou contrato com mefisto. É obra do todo-poderoso ou
artimanha do cão.
A cena talvez mais desagradável e desmoralizante aconteceu certo dia em que Lukas
resolveu endurecer o jogo, recuar e guardar-se na retranca.
O flanco abordado pela promotoria era lateral e secundário. Por isso, estava
desguarnecido. Ele não se preparara para responder às primeiras indagações daquela sessão.
Negou peremptoriamente que houvesse trocado ideias com outro réu a propósito de
negócios futuros, considerando a hipótese de expandir a área de atuação do grupo e levar cocaína
colombiana para a Austrália, onde os ganhos prometiam superar com folga a taxa de lu cro
corrente na Inglaterra. Chegou a afirmar que mal conhecia o acusado. Tivera oportunidade de vê-
lo, mas nunca conversara com ele, muito menos a respeito de um plano tão delirante. Nem em
fantasia Lukas concebera uma hipótese assim descabelada. Inclusive porque não sabia
rigorosamente nada sobre Austrália, nunca visitara aquele país, nem se lembrava de ter
conhecido algum australiano em toda a sua vida. Portanto, nem em devaneio pensara na
Austrália. Menos ainda falara da Austrália para alguém.
O promotor não comenta o veemente repúdio de Lukas. Dirige-se ao representante da
polícia e lhe solicita — obtida a autorização do juiz — que apresente o material referente à
acusação em pauta. As luzes declinam para a exibição de um filme.
As primeiras imagens não são claras. Veem-se vultos e borrões possivelmente provocados
por movimentos bruscos do agente que porta a câmera. Aos poucos, o foco se estabiliza e se
veem com nitidez árvores, bancos, gramados, bicicletas, casais, senhoras caminhando, um ou
outro rapaz fazendo jogging, crianças correndo, cachorros, carrinhos de neném.
Ao fundo, além da área ocupada, estende-se um campo com arbustos, relva baixa e, mais
ao fundo, uma área vastíssima que parece um gramado sem fim arruinado pelas temperaturas
extremas do inverno londrino.
O zoom transporta os espectadores — isto é, o juiz e o júri — por uma viagem aérea
através de arbustos e relva, e vai além, sobrevoando a vastíssima área queimada pelo frio. O
zoom trafega pela paisagem como um escrutinizador aéreo. O voo de pássaro aterrissa num close
surpreendente: Lukas e Parson, o outro acusado que Lukas mal conhecia, com quem jamais
conversara. Eles estão batendo um papo descontraído e íntimo, a centenas de metros de distância
da câmera, no meio de um espaço deserto. Tão deserto, vazio e distante de qualquer pessoa que
se supunham livres de intromissões indesejáveis e da curiosidade alheia. O ponto do Hyde Park
em que se encontravam era suficientemente afastado do burburinho urbano para que se sentissem
à vontade e curtissem um baseado na maior tranquilidade.
Lukas e Parson sorriem, olham a paisagem ressecada ao redor. O baseado troca de mãos:
vai, brilha, brilha de novo, volta e assim sucessivamente até extinguir-se. As baforadas ganham
inusitada espessura na atmosfera gelada.
— Claro, claro, por que pensar pequeno?
Lukas pergunta, sempre em inglês, mas a indagação é retórica. Ele está dizendo que o
parceiro tem razão. Prossegue:
— A gente só chegou até aqui porque pensou grande.
Parson está satisfeito:
— Bacana você pensar assim.
— Estamos juntos.
— Isso aí.
Lukas assume a dianteira:
— Vinha tendo umas ideias parecidas há bastante tempo.
— É bom ouvir isso, porque você sabe que nem todo mundo pensa como nós. Nosso
pessoal é superconservador.
— É medo. Covardia. Se a gente se satisfaz com a rotina, não progride. A única
diferença...
Lukas engasga com o cigarro de maconha, tosse, abaixa a cabeça, cospe, devolve o
baseado sem tragar e continua:
— A única diferença é o local.
— Como assim?
— O local para onde expandir os negócios.
— Qual tinha sido sua ideia?
— Olha, Parson, os mercados andam meio saturados. Pelo menos esses em que o grupo
tem atuado.
— Mas o Brasil é imenso e, apesar de você vir de lá e de eventualmente alguma carga
passar por lá, está abandonado. A gente nunca ocupou os espaços, as oportunidades.
— Tudo bem, a gente pode conversar sobre o Brasil. Acho complicado, mas, tudo bem, a
gente conversa a respeito. Mas escuta, Parson, nada é comparável à Austrália. Pensa no poder
aquisitivo. Nas facilidades.
— Longe pra caralho.
— Exatamente. Por isso é que poderia ser uma grande ideia. Todo mundo acaba excluindo
os lugares mais distantes do eixo Colômbia-Europa-Estados Unidos. E é essa razão que torna as
coisas interessantes por lá.
— Eles recebem muita coisa da Ásia e têm algumas produções nativas.
— Mas, Parson, aquilo é um continente. A distância valoriza o produto, inflaciona a
carga. Numa única viagem a gente resolve a vida.
— Não sei.
— E tem mais. Ouve, cara.
Parson parece desligado, traga com força o finzinho do fumo, o nariz apontado para o
céu.
— Presta atenção, Parson. Tem um detalhe.
— Você é amigo de gente do governo...
— A Austrália é praticamente uma ilha. Do tamanho de um continente, mas cercada pelo
mar.
— Facilita?
— Porra, Parson. Mar. Oceano. Agua é o meu elemento.
— Não sei.
— Sou velejador, cara. Sou marujo. Meu mundo é o mar.
— Ainda sou mais o Brasil. O Rio de Janeiro. Sua cidade, Lukas.
* * *
Ouvem-se com absoluta nitidez as vozes. O salão do tribunal é percorrido por uma
irrefreável aragem imaterial, um frisson, talvez a energia emitida pelo choque entre o estupor dos
réus e a vibração quase obscena dos jurados, impelidos a penetrar a esfera privada e a
compartilhá-la sem censura.
* * *
Nas imagens, Parson e Lukas estão agitados. Ensaiam passos para a esquerda e a direita,
sem sair do lugar. Dança imóvel. O frio é o coreógrafo.
* * *
— Tem mais um aí?
Lukas mete a mão no bolso do casaco, no outro bolso. E pensa alto:
— Jurava que tinha uma bagana no bolso...
Continua procurando, até que se rende:
— Não. Nada.
— Então me vê um cigarro.
Lukas não hesita. Puxa a carteira de cigarro do bolso interno do casa co. Acha o isqueiro.
Acende um cigarro e o entrega aceso a Parson, que agradece com a cabeça. Não diz nada. Cabe a
Lukas retomar o diálogo:
— O que foi que você disse?
— Rio de Janeiro.
— Claro. O Rio. Tudo bem, Parson, o Rio é um puta mercado. Neguinho anda fissurado
por qualquer merda. Cheira talco e pó de mármore até tombar na calçada. Só que tem uma coisa.
Você atira bem?
— O quê?
— Atira? Sabe atirar?
— Atirar, atirar? Com arma de fogo?
— Isso aí, Parson.
— Não é o nosso negócio, Lukas. Você sabe disso.
— Pois então, é justamente o que eu quero dizer.
— Tem de usar arma para transar droga no Rio?
Lukas faz sinal afirmativo, balançando teatralmente a cabeça para a frente, enquanto
acende um cigarro para si. Sorri e completa o raciocínio:
— No Rio, a bala come, a porrada come. É guerra, Parson. Guerra civil. Sabe o que é
isso?
— Eu sei, Lukas, mas não estou falando das favelas, irmão. Não seria esse nosso público.
Esse público nem tem poder aquisitivo pra comprar bagulho de qualidade. Nós somos
diferenciados no mercado porque garantimos qualidade. Os distribuidores varejistas batizam o
pó, a maconha, o haxixe, a heroína, tudo o que cair nas mãos deles. Mas nós entregamos com o
máximo teor de pureza possível. Se nossos consumidores no Rio — na hipótese de a gente
investir no Rio —, se nossos consumidores quiserem vender para o pessoal de baixa renda, eles
que batizem, misturem à vontade, façam o que quiserem. Nós não. E se vamos tratar do atacado
e disputar o varejo, vamos em condições boas para competir porque o produto é bom. É muito
bom, Lukas. Nada de favela. Nada de arma, violência, guerra e toda essa merda. Trabalho sujo
não é com a gente.
Lukas está impaciente. Tentou interromper Parson várias vezes. Movimenta o corpo sem
parar. Acende um segundo cigarro no primeiro. Parson também quer fumar de novo e pede mais
um cigarro. Lukas lhe dá o seu e acende outro. Por fim, retoma a palavra:
— Parson, meu amigo, escuta o que lhe digo porque cresci na cidade. O Rio é minha
cidade. Palmilhei aquela terra. Conheço tudo. Falo com muita gente. Sei como as coisas são. Lá
ninguém se cria sem se acertar com os comandos. Os comandos são as facções criminosas.
As facções do tráfico. São três. Elas brigam entre si o tempo todo. A polícia é sócia. Está
sempre metida nos lances. Sobretudo onde pinta grana. Grana com G maiúsculo, entendeu?
Portanto, esquece. Apaga o Rio de seus planos. A menos que você queira migrar da sessão de
contrabando, crime fiscal e comércio ilegal para a sessão de homicídios dos jornais e da Justiça.
— Tudo bem. Fala sobre a Austrália. Qual é o plano?
— Quando a gente acabar o serviço, aqui, lá por fins de março ou abril, o ano de 1999 vai
estar chegando à metade. Se a gente trabalhar ligeiro, ainda vai dar tempo de chegar à Austrália
antes do fim do ano. Já pensou o que será o Réveillon da passagem do século? A gente não pode
perder essa oportunidade, cara.
Dessa vez é Parson que está agitado. Fuma e não olha seu interlocutor nos olhos. Procura
alguma coisa no horizonte. Lukas insiste:
— Já pensou quanta droga vai ser consumida na festa do século?
Parson gira e contempla a vastidão gelada em todas as direções.
Lukas pondera:
— Eu pretendia que essa viagem a Londres fosse meu último trabalho, sabe? Estava
fixado nessa decisão. Expliquei isso para minha mulher. Não foi só pra ela não encher o saco,
não. Estava mesmo decidido. Mas se você topar dividir comigo o empreendimento “Réveillon do
ano 2000 na Austrália”, abro uma exceção e adio a aposentadoria. Faço mais uma viagem de
negócios e encerro minha carreira com fecho de ouro. Aposento com grana no bolso para o resto
da vida. Chega de risco, confusão, droga. Está na hora de descansar, irmão. Já passei por muita
coisa. Sacrifiquei a família, a vida pessoal. Vou fazer cinquenta anos. E aí, topa? Quer escrever
meu último capítulo comigo?
Entre um movimento e outro, Parson diz a Lukas em um tom mais baixo de voz, como se
estivesse falando sozinho:
— Estranho. Sinto uma coisa esquisita. Um mal-estar.
— Nicotina, cara. Isso é veneno. Também fumo, mas sei que é veneno. Já tentei parar
algumas vezes. Tenho de parar. Você deveria fazer o mesmo.
Parson fica um momento em silêncio e insiste:
— Não é nada físico, não. Tenho a sensação de que a gente está sendo vigiado.
— Desencana, rapaz. Para com isso. Você deve estar cheirando demais.
— Há anos não cheiro, Lukas. Não é paranóia. Quer dizer, na verdade é, sim. Claro que é.
Não tem ninguém num diâmetro de quilômetros. Mas é esquisito.
— Paranóia braba.
15
OS RATOS FAZEM A FESTAO frisson faz curto-circuito com a incredulidade dos jurados, o que precipita uma
trepidação contagiante, quase incandescente. O astral que emana do tribunal está plugado na
corrente elétrica. Falta só uma faísca para o julgamento se transformar em outra coisa. Outra
coisa desconhecida, imprevisível, porém desassossegada. Uma realidade alternativa assustadora
que incendeia os intervalos entre o passado e o presente, o sofrimento e o prazer, o certo e o
errado, a alma humana e as glândulas morais dos animais peçonhentos que rastejam.
Lukas assiste ao filme vestindo a fleugma do ator impassível. Esconde o rosto banhado
em suor e angústia na máscara mais fajuta da indiferença. Força a barra e simula a constância do
mármore. Exibe o maxilar altivo com neutralidade olímpica. Enfim, um canastrão. Por dentro, os
ratos fazem a festa. A vertigem ronda. Agarra-o pela garganta. Se soubesse rezar, se lembrasse as
preces que a mãe balbuciava no leito de morte do marido, se pelo menos pudesse gritar. Pressen-
te que vai cair. Ou vomitar. Não vai. Respira fundo. Não vai. Nada de desmaios, fricotes,
bandeiras. A ordem é meter-se na máscara de chumbo e forjar o ânimo da criptonita, simular a
força máxima. A ordem que dá a si mesmo. Sentinelas, alerta. Vomitar, não. Pelo amor de Deus.
Já basta a desmoralização patética: “Então, Mr. Mello, o senhor mal conhecia Parson. Jamais
conversara com Parson. Nunca lhe passara pela cabeça expandir os negócios para a Austrália.”
Toda essa merda agora estava inapelavelmente exposta. O que lhe restava? Babar groselha na
gravata numa calçada do Catete, como recomendaria Nelson Rodrigues? Tudo bem, mas
vomitar, não. Vomitar no tribunal, nunca. Chega de humilhação. Lukas proclama de si para si
que tivera o bastante e que era tempo de se recompor.
O advogado de Parson solicita ao meritíssimo juiz que, data venia, recuse a validade do
filme como prova. Evoca princípios, cita casos, mobiliza o elenco de situações comparáveis
registrados na jurisprudência.
O promotor salta na cadeira e revoga, data venia, os argumentos insustentáveis.
O advogado de Lukas cala-se, antevendo destino funesto para a intervenção do colega,
cujo efeito apenas reforçará o peso dos fatos exibidos, quando teria sido mais proveitoso não
lhes conceder nenhuma atenção especial de modo a transmitir a sensação de que a defesa
permanece tranquila e considera irrelevante uma conversa aleatória sobre delírios que não
correspondem a fatos. No momento oportuno, diria que a única transgressão à legalidade
revelada pelas imagens era o uso de cannabis. Sonhar não é proibido. Fantasiar sobre crimes
não constitui crime, nem é preditor legítimo de cometimento futuro de crimes, a menos que tais
crimes tivessem sido, efetivamente, perpetrados e que a questão, portanto, fosse identificar a
autoria. Não é o caso. Não houve nenhuma viagem à Austrália.
O advogado de Lukas era muito mais esperto e saberia aplicar um golpe fatal nos
acusadores. Um golpe que reverteria a direção da seta que indicava o alvo da desmoralização.
Os promotores teriam de engolir o sapo. Estaria demonstrado, inexoravelmente, que o filme
apenas servira para suscitar uma impressão negativa a respeito de dois réus. A exibição do filme
no tribunal teria sido — o advogado de Lukas demonstraria — um artifício perverso cujo
objetivo fora superestimar a conversa prosaica entre dois homens e atribuir-lhe um sentido, na
prática, irreal.
O advogado de Lukas pensou nesses desdobramentos; irritou-se, intimamente, com o
colega; e se manteve calado.
O defensor de Parson insistiu, pleiteando a supressão da prova, data venia.
Solicitação negada, decidiu o juiz. O advogado de Lukas estava cer to. O erro custou
caro. O efeito da tentativa frustrada de desconstituir a prova foi o pior possível para os réus. Os
jurados identificaram-se com a promotoria. Afinal, o que viram viram. Como se ousara soli citar
que desconsiderassem o que viram, se as imagens não haviam sido forjadas? Sentiram-se alvo de
grosseira tentativa de manipulação por parte do advogado de Parson.
16
A 39 MINUTOS DO APOCALIPSEOs primeiros dias de julgamento ficaram para trás. No entanto, não ficavam para trás.
Permaneciam e se empilhavam, somando-se aos subsequentes, como acontecia com os livros
de registro na biblioteca imaginária dos pesadelos de Lukas.
Quando ele estendia os punhos para receber as algemas e celebrar o casamento bizarro
com o guarda que o conduzia, ao lado dos padrinhos que checavam o ferrolho e
acompanhavam o casal para mais uma sessão do julgamento, ocorria a Lukas a mesma imagem
que lhe passara pela cabeça quando refletia sobre os quarenta minutos e o cativeiro do
observador: ria de si para si, sentindo a corrente puxá-lo para a frente quando o guarda
apertava o passo. Quem trazia quem pela corrente? Ele era o cão, naquela cena, sem dúvida.
Mas o funcionário de Belmarsh tampouco era a melhor ilustração do homem livre. Pelo menos
enquanto cingia a ovelha sacrificial do calabouço para o palácio da justiça pelo túnel úmido. O
mais desagradável da umidade era o desconforto respiratório que seus fungos vaporosos
provocavam. A vista ardia. As imagens ficavam turvas e levemente distorcidas. Se ao menos
Lukas pudesse lamentar, rir dos paradoxos e seguir de cabeça erguida para o patíbulo... Não
podia. Naqueles trajes não podia nada. O vestígio de altivez que a prisão no bunker como
criminoso triplo A lhe proporcionava, a ironia do arlequim verde-amarelo lhe roubava. Talvez
só ele percebesse a citação das cores nacionais, a edição ultrajante dos retalhos da bandeira, a
aberração circense que arruinava seu orgulho, o que restava dele, o orgulho por o temerem, o
isolarem no bunker e lhe atribuírem tanto poder. Pois lhe atribuíam
Tudo ou nada 95
16
poder ao condecorá-lo com o estigma do triplo A, mesmo que fosse um poder inútil. A
investidura de Lukas, o anti-Sir Lukas M., fazia dele personagem épico, ainda que às avessas e
pelas piores razões do mundo. Tudo isso ia para o ralo com a gracinha espalhafatosa do figurino.
Sentou-se no lugar que lhe era destinado, como fazia todos os dias. Olhou para o juiz com a
admiração usual, mas não o ouviu. Divagou por mares distantes. Navegou por redes neurais
excêntricas, explorando associações inusitadas. Lukas prescindia de substâncias psicoativas para
viajar. Nesse dia imaginou sua investidura como Sir. Viu-se ajoelhado, recebendo a espada em cada
ombro. O cinema lhe ensinara os passes. Lembrou-se de que a honraria era irmã siamesa de seu
inverso: a desonra extrema, a decapitação. Os rituais tinham semelhanças. Assim como o batismo, o
sepultamento e a cremação. Os quatro elementos entram no jogo, fazendo um rodízio que tem a sua
graça: da água vai-se à terra ou ao fogo. Incinerado, o corpo pode ser soprado e espargido,
dispersando-se no ar.
Os dias não passavam, não podiam ser esquecidos. Nada era irrelevante. Cada palavra tinha
de ser medida. Lembrar-se todo o tempo de tudo é enlouquecedor. Lukas foi protagonista de um
espetáculo interminável que o exauriu, saturou nervos e neurônios. Os sonhos marítimos voltaram.
Durante as longas sessões no tribunal as fantasias o transportavam para veleiros e oceanos remotos.
À noite, mergulhava mais fundo, descansava na paz perpétua de um mar cristalino imutável e,
subitamente, uma onda gigantesca surgia do nada, transformava-se num transatlântico escuro,
aproximava-se do barco muito frágil de Lukas, ameaçava atropelá-lo. Já não era o navio majestoso
e aterrador; era baleia bíblica, Moby Dick mineral, alguma coisa inominável. Lukas pulava do barco
e despertava na cela, enchia os pulmões de ar, mas não havia ar, estava num aquário, subia à
superfície com a força máxima, e a superfície permanecia à mesma distância, indiferente a seu
esforço. O ar lhe faltava. O desespero o fazia acordar. Inflava o peito, sugava todo o oxigênio,
socava o colchão, o travesseiro, certificando-se de que estava mesmo, afinal, livre do pesadelo, mas
a cela abria as comportas e era tomada por uma onda formidável que o engolfava.
Não havia descanso, não havia paz.
96 Luiz Eduardo Soares
Lukas atravessava as noites entre o pânico onírico e a vigília atormentada, sabendo que
precisava repousar para pôr as ideias no lugar e enfrentar a maratona judicial, mas também
consciente de que se tomasse remédios para dormir estaria um bagaço pela manhã. Quan do o corpo
cedia ao cansaço e ele apagava, a abertura da escotilha no quadragésimo minuto trazia-o de volta ao
círculo do inferno. Lukas pressentia o colapso. Intuía que estava a poucos passos da insanidade.
Estava a 39 minutos do apocalipse, 38, 37, 36. Temia perder a lucidez durante o julgamento. Temia
perdê-la, irreversivelmente. Temia perder-se no claustro pastoso, viscoso, purulento de uma irrea-
lidade sem contornos e oxigênio — onde estaria privado do privilégio da morte. Lukas já não
desejava a liberdade. No umbral da loucura, ansiava pelo fim.
Outro dia, mesma rotina: punhos para a frente e a tríplice checagem. Perguntava a si mesmo
se o fecho das algemas dos presos classificados com duplo A era conferido só duas vezes. Macacão
colorido. Travessia do túnel. Entrada no tribunal. Dessa vez, mais abatido, menos confiante,
inseguro, insone, o mal-estar que vem com a estafa.
Parecia que os promotores haviam deixado para esse momento o grande duelo. Fragilizado
pela sequência de sessões em que ocupava a cadeira do réu sob escrutínio, Lukas foi confrontado
com as questões relativas à sua última viagem. O que viera fazer dessa vez? Qual a missão,
exatamente? Com quem se encontrara?
O advogado o alertara. Lukas estava ciente do caminho a seguir. Nunca recebera instruções
para mentir. Mas há modos e modos de dizer a verdade, ou partes da verdade. Mesmo exausto e
angustiado, estava preparado. Ainda assim, a qualidade da investigação superou suas expectativas.
Tentou tergiversar, sair pela tangente, desconversar, ser evasivo. Enfrentou a tenacidade do
promotor, que lhe cobrava precisão e objetividade. Contou com a solidariedade profissional do
advogado, que se colocava entre o acusador e o cliente, solicitando ao juiz que interviesse e
desqualificasse perguntas e ilações da promoto- ria. Quase sempre o fez em vão.
Lukas foi posto contra a parede. O nocaute era questão de tempo. Ou a rendição
incondicional.
Não denunciou comparsas. Isso nunca fez, mesmo quando, mais tarde, foi tentado por
propostas de redução de pena em troca da de-
Tudo ou nada 97
lação. Entretanto, naquela sessão do julgamento, com frequência gaguejou, titubeou,
recuou, vacilou e desconstituiu o que antes havia declarado com a ênfase das convicções.
Luzes apagadas, as pesadas cortinas aveludadas cobriram as várias janelas altas e o filme
foi projetado no telão.
98 Luiz Eduardo Soares
POR BAIXO DE LONDRES
Lukas está de pé, sobretudo pendurado no antebraço, contemplando os títulos da sessão
dedicada à literatura náutica, turismo e viagens de uma grande livraria. Aproxima-se da estante,
puxa um livro pesado, o sobretudo cai no chão, ele o coloca em cima da bancada e folheia o álbum
de fotografias que tem nas mãos. Em seguida, chega um homem mais jovem — na faixa dos trinta
e poucos anos. Cumprimentam-se. Lukas lhe mostra algumas fotos de veleiros. Não se ouve o que
dizem.
Há um corte óbvio na sequência de imagens. Os dois personagens já não estão na livraria,
mas caminhando na rua. Vê-se que as roupas são as mesmas, o que sugere continuidade entre as
ações. Mais um corte. A próxima cena os mostra, sempre com as mesmas roupas, entrando numa
estação do metrô. A série de cenas seguintes acompanha Lukas e seu interlocutor no percurso de
metrô. Percebe- -se que saltam várias vezes, mudam de plataforma, retornam, entram em túneis
que os conduzem a outras linhas, nas quais repetem o movimento de sucessivas idas e vindas.
Impossível para um espectador compreender o trajeto. Por isso, na parte superior da tela, vê-se, no
mapa do metrô londrino, o desenho da rota que está sendo cumprida, conforme demonstram as
imagens. A qualidade das imagens varia. Algumas são muito ruins. Não o bastante para impedir a
identificação dos personagens e de seu vestuário.
O filme é tão entediante que alguns jurados sucumbem aos cochi- los. Batem o queixo no
peito, sentem o repuxo da nuca e arregalam os olhos, sobressaltados e vexados, procurando
disfarçar o malfeito.
Tudo ou nada 99
17
As cenas prosseguem no rastro daquela jornada labiríntica por baixo da cidade.
Finalmente, os dois voltam à superfície, caminham algum tempo, no zigue-zague
característico, até alcançarem a casa a que se destinam. O parceiro de Lukas tira uma chave do
bolso, abre a porta e entram ambos.
* * *
Nesse momento, a projeção é interrompida e um dos representantes da promotoria intervém:
— Meritíssimo, senhores e senhoras, membros do júri, gostaria de lhes mostrar imagens da
mesma casa que acabaram de ver, obtidas dois dias depois.
* * *
Sob uma luminosidade menos intensa, vê-se na tela a mesma casa. De início, parece tratar-se
de uma foto, mas alguns pedestres passam e percebe-se que a casa está sendo filmada. Aos poucos,
uma porta larga de ferro é erguida, automaticamente, revelando uma garagem espaçosa, à direita (de
quem assiste ao filme) da porta de entrada da casa. Há uma van estacionada na garagem, além de
caixotes e malas, e outros objetos indiscerníveis. Um automóvel manobra e entra, ao lado da van. A
porta de ferro desce, lentamente.
100 Luiz Eduardo Soares
SEGURA A ONDA, MISTER O
A gravação é novamente interrompida. O mesmo promotor retoma a palavra:
— Na sequência, os senhores verão imagens colhidas cinco dias após a filmagem inicial.
Data e hora exatas aparecem na parte superior esquerda das imagens.
* * *
Lukas e o homem que aparecia no filme anterior, agora com roupas diferentes, ainda que o
sobretudo de Lukas seja o mesmo, encontram-se na entrada de uma estação do metrô. As cenas que
se sucedem parecem cópias das anteriores. Novamente, um percurso barroco desenha espi rais, como
se o objetivo fosse inspecionar linhas ou divertir-se no inesgotável e monótono passeio subterrâneo.
É óbvia a finalidade do procedimento: confundir eventual vigilância. O método era tosco, vê-se,
agora. A rigor, expõe o ridículo de sua concepção e o patético de sua execução.
Finalmente, a sequência abreviada por cortes chega ao capítulo final: Lukas e seu
companheiro saem da estação do metrô na periferia de Londres. Caminham para uma várzea que
parece destinada à construção civil. Esperam ao lado de um pequeno lote precariamente arborizado,
os galhos abundantes se debruçam uns sobre os outros, ressecados pelo frio.
Uma caminhonete se aproxima devagar e para, diante dos dois homens, após alguns minutos
— de cuja espera os jurados são poupados por cortes providenciais, indicados pelos saltos da
gravação e pelas indicações cronológicas, no alto das imagens.
Tudo ou nada
101
18
O motorista está sozinho. Salta. Bate a porta. Dá a volta e se dirige aos dois, que o
aguardam. Cumprimentam-se. Lukas olha ao redor. Os outros fazem o mesmo. Os três estão
atentos. Não se ouve o que falam. Depois de alguns minutos, o motorista e o acompanhante de
Lukas entram na caminhonete. Lukas retorna para a estação do metrô. A caminhonete parte em
velocidade reduzida. Sem alarde, como se procurasse misturar-se à paisagem, discretamente.
Outra sequência abre com o foco sobre a casa onde estiveram Lukas e seu parceiro. Não há
movimento na rua. É noite. A marcação cronológica indica 22h14 do mesmo dia. Um pedestre
ingressa nos limites do foco, atravessa toda a extensão e sai do quadro. Segundos depois, a
caminhonete que víramos na várzea aparece. A porta do carona abre. O companheiro de Lukas
desce, caminha até a porta da casa com chaves na mão. Entra na casa. Mais alguns segundos, o
portão da garagem sobe. A van continua estacionada no lado direito da garagem. A cami nhonete
entra do lado esquerdo e o portão desce.
Corte.
Uma hora e vinte e dois minutos da madrugada do dia seguinte. O portão da garagem sobe, a
caminhonete sai de ré, com a ajuda do parceiro de Lukas, que sinaliza, certificando-se de que a rua
está livre. A caminhonete completa o recuo de 45° com o giro do volante à esquerda, vira mais 45°
com o volante girando à direita, e segue. O rapaz volta para dentro da garagem e o portão desce.
* * *
Projeção encerrada, o promotor informa:
— Os senhores ouvirão a gravação de um telefonema dado pelo réu Richard Ornell, vulgo
Dick O, a Lukas Mello, sete minutos depois de entrar na garagem e fechar a porta, na cena que
acaba de ser exibida.
* * *
As luzes permanecem apagadas e na tela as falas são projetadas por escrito para facilitar o
entendimento das vozes. O registro cronológico indica lh29:
102 Luiz Eduardo Soares
Dick — Tudo certo.
Lukas — Ok.
Dick — Podemos conversar amanhã, digo, hoje, mais tarde?
Lukas — Tudo bem.
Dick — Mesmo lugar de hoje, quer dizer, ontem?
Lukas — Não. Vamos velejar.
Dick — Entendi. Dez horas?
Lukas — Certo.
Desligam.
* * *
Os nomes com os textos somem. Novo filme. Dessa vez com som. A polícia teve melhores
indicações e pôde preparar-se. O dia é o mesmo. São 9h58. Veem-se as estantes do setor de viagens
e turismo da livraria.
Dick chega, puxa um livro sem escolher. Um livro qualquer. Finge lê-lo. Observa o
ambiente. Um casal passa, detém-se um instante e segue adiante. Atrás deles vem Lukas, o
sobretudo pendurado no antebraço, uma camisa diferente. Dirige-se a Dick sem cumprimentá-lo:
— Então, deu tudo certo?
— Tudo.
— Contou os pacotes?
— Um por um. Eu e aquele sujeito que você me apresentou, o Lionel, contamos juntos
quando chegamos lá em casa. Na medida em que a gente ia tirando a carga da caminhonete e
passando pra van, a gente ia contando. Está tudo certo.
— Então, por que é que você quer conversar? Não é bom a gente ficar se encontrando.
— Lukas, você não me convenceu a topar a parada dizendo que era seguro? Que estava tudo
tranquilo? Sob controle?
— Desde que a gente se comporte com profissionalismo e tome as precauções que te ensinei.
A conversa é interrompida pela passagem de um adolescente, que fica por ali, espiando os
livros. Enfim, vai adiante. Dick pergunta:
— Mas qual poderia ser o risco de a gente se encontrar? Ainda mais aqui?
Tudo ou nada 103
— Acertar encontros pelo telefone é um troço que não se faz. Mesmo estando tudo tranquilo.
— Eu não disse o lugar. Nem você. Nós não falamos sobre qual seria o assunto.
Outra vez, param de falar e folheiam livros, enquanto duas moças passam. Na sequência,
uma senhora passa falando ao celular. Quando o movimento cessa, Lukas diz:
— Tudo bem. Desembucha.
— Vamos sentar num lugar mais calmo. Aqui não dá.
Lukas pousa o livro na bancada e sai, seguido por Dick. Há nesse ponto um corte no filme.
A próxima cena os mostra sentando-se no café da livraria. Não se ouve o que dizem. Quando param
de se mover e conversam à mesa, o som retorna. Dick está falando:
— ...esperava.
— Não acredito que você não tinha falado com ela!
— Não tinha, cara.
— Caralho.
— Foi mal. Não esperava. Juro que não esperava essa reação.
— Falou pra ela da grana?
— Claro.
— E ela?
— Me sacaneou. Perguntou o que se faz com quinhentas mil libras na prisão. Contrata
advogado?
— Você explicou tudo direitinho?
— Expliquei, mas ela acha que não tem essa de só guardar, só estocar. Ela acha que dá no
mesmo. Tanto faz.
— Caralho.
— No fundo, não é medo de polícia coisa nenhuma.
— É o quê?
— No fundo, ela acha que aqueles quinhentos quilos de pó puríssimo, ali na van, na
garagem, ela acha que... que eu não vou resistir.
— Ela está com medo do marido cheirar meia tonelada de pó e ir pro espaço?
— Pois é. Pirou, cara. A mulher pirou. Nem dormiu. Está totalmente histérica.
— Segura a onda, Dick. Não posso fazer nada. Já te paguei. Agora não vacila. Tua mulher é
problema teu. O acordo é um ano, mas as
104 Luiz Eduardo Soares
coisas estão indo muito bem. Acho que em menos de um mês eu consigo resolver uns
problemas e dar destino à mercadoria.
— Pô, cara, mas eu estou na maior merda.
— Dick. Você teve tempo pra pensar, avaliar a proposta, pra negociar. Nunca te pressionei.
Pressionei?
— Não, cara. Claro que não.
— Então, agora é contigo. Confiei em você e minha turma confia em mim. Se você puxar o
tapete agora, eu estou fodido. Não tenho pra onde correr. Faz o seguinte, viaja com a mulher. Faz
um agrado. Pega a grana e leva ela pro Himalaia. Faz uma excursão pela Transibe- riana. Vai com
ela meditar no Tibete. Só eu e você temos a chave da garagem e da van. Se eu precisar e você
estiver no Himalaia, eu entro e resolvo. Nem precisa se preocupar. Não me procura mais. Nem te-
lefona. Não é bom pra nós. Segura a onda, Mr. O.
Tudo ou nada 105
19
MINAS DE UMA GUERRA ARCAICA
As luzes foram acesas. Acabou o calvário. O único consolo era saber que por um dia não
haveria mais surpresas. Pelo menos daquele tipo. A gravação da voz é terrível, mas omite o rosto, e
o som sem face enfraquece um pouco a acusação. Parece que paira no ar a hipótese da farsa, da
montagem. Mas o filme é mortal. Humilha. As imagens são devastadoras. Lukas estava sendo
acuado, dia após dia. Sentia-se entre a cruz e a espada, ou melhor, entra a espada e a ratoeira.
As noites de Lukas não eram refúgios, propriamente, mas ajudavam a renovar as baterias.
Depois desse dia, a trama do julgamento invadiu as madrugadas e Lukas não teve mais trégua. A
espera pela próxima sessão preencheu os intervalos. Só havia a linha contínua do tempo, pontuada
por perguntas provocativas dos promotores, apelos do advogado, ponderações do juiz. A pausa
afastava dois polos que se atraíam, o ataque precedente e a hostilidade subsequente. Um rosário de
assaltos sem a possibilidade de salvação por uma toalha jogada no centro do ringue. Uma coça, em
bom português. A saturação atingia seu limite porque o circuito se fechava, as pontas apertavam em
pinça o crânio do réu. No meio das hastes de ferro, o espírito de um homem. Assim como algumas
vítimas precipitam a agressão para pôr fim à tensão insuportável da espera, Lukas ansiava pelas
próximas sessões. Suas noites eram cada vez mais a boca desse abismo. Ele já não padecia de
pesadelos repetitivos. Não despertava em pânico. Lukas simplesmente sucumbia a um estado
letárgico em que claros e escuros, vigília e supressão da vigília eram quase indistintos.
Tudo ou nada 107
O mundo coberto por um véu. A realidade sob o manto da penumbra e da ausência de nexos.
O metabolismo do corpo pulsando em harmonia com a liquidificação das coisas e dos sentimentos.
A química entorpecente provinha da cozinha do corpo, exclusivamente. Eram os nervos que
purgavam seu óleo pantanoso. Os remédios continuavam abolidos para evitar o risco de sentar-se
abobalhado na cadeira do réu — não de qualquer réu; do réu a ser inquirido.
Foram quantos dias, ao todo, sentado ali, sendo inquirido? Trinta e seis. Não custa lembrar e
repetir, 36 dias, e estampar o número em plena atmosfera dissipadora, esta atmosfera venenosa na
qual tudo o que vive em Lukas evoca o fim, pede uma noite de verdade e deseja esquecer. Trinta e
seis dias entrecortados por extensões noturnas em que os fios não desligavam, se sobrepunham,
embolavam, se fundiam, até o curto-circuito inevitável.
As aberturas a cada quarenta minutos do globo ocular da porta de aço jamais cessaram.
Ocorreu a Lukas murmurar de si para si: o globo ocular da porta blindada pisca lentamente, mas
com absoluta regularidade. Convenceu-se, quando achava forças para convencer-se, de que a única
lei do cosmo era esta, por isso constituía um fenômeno infalivelmente previsível: a cada quarenta
minutos o globo ocular mineral pisca. A portinhola raspa o ferro e range. Lukas despertaria se
estivesse dormindo com o sono leve de quem aguarda a convocação para jogar xadrez com a morte.
Não estava, por isso não acordava. Ou estava e sequer percebia, mesmo depois de despertar. A
indistinção, o contínuo, a correnteza imóvel, o falso apaziguamento da letargia: a receita
anestesiava, mas, a médio prazo, era explosiva. Espetada na esponja de seu cérebro, a mina de
alguma guerra arcaica palpitava seu coraçãozinho de pregos e rolimãs enroscados. A mina estava
prestes a cumprir seu destino de fogo, borrifando sangue, vísceras, pinos e lascas de metal no teto
da cela, e no olho de vidro da porta de aço.
Até que o dia chegou, o dia em que o livro da vida de Lukas virou a página do capítulo findo
e as duas páginas que vieram à luz estavam vazias.
108 Luiz Eduardo Soares
“RESPEITOSAMENTE, VENHO LHE DIZER QUE SAÍ DE MEU CORPO”
Hora de levantar, bicar o café, meter-se no macacão de arlequim, estender os punhos para as
algemas, esperar as três checagens — uma para cada A —, seguir o guarda-guia, atravessar o túnel
úmido, prender a respiração tanto quanto possível para evitar intoxicar-se com o mofo, entrar no
salão nobre e sentar-se no banco do réu a ser inquirido, mais uma vez.
Nessa manhã enfrentou a exibição do filme decisivo, cujo efeito foi a pá de cal em sua defesa.
Luzes apagadas, telão estendido, as imagens se sucedem.
Vê-se que a cidade é Londres. Fim de tarde chuvoso, aparentemente gelado, considerando-se
os casacos, as luvas, os gorros, as echarpes e as expressões dos transeuntes. De sobretudo e capa,
Lukas caminha com passos firmes e rápidos. Ele é focalizado por alguém que está atrás dele e numa
posição mais elevada — numa sobreloja, por exemplo. O câmera que capta seus movimentos está
bem perto dele, ou essa é a ilusão provocada por uma superlente, capaz do mais incrível zoom.
Lukas serpenteia, trocando duas vezes de calçada. Retorna ao lado em que foi inicialmente
flagrado e sossega um pouco, sempre andando ligeiro mas em linha reta.
Atravessa a rua e entra à esquerda, numa transversal. A câmera o perde de vista. Em seguida,
outra o focaliza. É visível a opção por exibir os cortes, evitando a impressão de falsidade que uma
edição bem- -feita poderia provocar. A segunda câmera, instalada em outro ponto ou manejada por
outra pessoa, acompanha Lukas na travessa estreita.
Tudo ou nada 109
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O foco de captação da imagem dá-se no mesmo ângulo, mostrando que o ponto de
observação ainda está alguns metros acima do solo. Lukas se esgueira na massa de gente e vira à
direita. Sua imagem passa a ser colhida de frente, sempre do alto. Dessa vez a perspectiva sugere
que o ponto de observação é bem mais elevado. A câmera está distante de Lukas. O filme reduz o
efeito de aproximação causado pelo zoom. Mal se o distingue no formigueiro humano. O zoom o
traz para perto. Vemos seu rosto. Ele abre caminho com a firmeza de quem sabe aonde vai e está
imbuído da certeza de que sua missão é muito importante.
Lukas vira novamente à direita. Deduz-se que a câmera estava localizada na esquina, porque
ele passa a ser filmado de costas até alcançar a rua mais larga, na qual o vimos pela primeira vez.
Vê-se que está mais adiante e que prossegue na mesma direção para a qual caminhava antes. Não
avançou muito, por conta do percurso barroco. A distância mais curta entre dois pontos,
definitivamente, não é a linha reta na ciência de Lukas ou em seus cálculos. A segurança para os
envolvidos em crimes confunde-se com a paranóia. E a paranóia é barroca. As linhas de raciocínio e
os caminhos escolhidos são sinuosos, espelham-se uns nos outros e se duplicam, em círculos
concêntricos e algumas fugas em arabescos, que rompem o padrão sem trair o estilo. A linguagem é
o excesso.
Conforme se deduz, ainda que se justifique, a paranóia não é eficiente.
Lukas segue trocando calçadas, eventualmente fugindo do padrão e buscando labirintos. Ao
fim e ao cabo, retorna à direção original.
Em certo momento, mergulha numa estação de metrô. O filme sofre um corte ab-rupto e
retoma a sequência, focalizando — em imagens mais escuras, porém mais nítidas — Lukas de
costas, de lado, de frente, comprando bilhete, examinando mapas afixados em grandes painéis,
consultando o relógio de pulso, comparando-o com o relógio público.
Lukas entra no vagão do metrô. A câmera interna recebe o bastão e cumpre sua etapa no
revezamento. Ele sai na estação seguinte, avança com pressa para as escadas, dá a volta e desce na
plataforma situada do outro lado dos trilhos. Prepara-se para pegar o metrô que segue em direção
contrária.
A despeito da quantidade de movimentos e dos passos quase ornamentais de Lukas, em sua
obstinação por desfazer os passos que
110 Luiz Eduardo Soares
deu, como se apagasse os próprios rastros, o roteiro aos poucos vai se tornando previsível e
maçante.
A promotoria não desiste. Bombardeia a audiência com mais do mesmo: a coreografia
espiralada, reescrevendo o mapa da cidade para, enfim, submeter-se à sua gravitação.
Uma hora e meia depois, o big brother saciado, tendo ostentado com evidente
autoindulgência seu apetite pantagruélico por tudo o que se passa em seus domínios, Lukas chega
ao destino. Não se sabe se o filme é sobre o acusado e seu flerte com a inconstância — por razões
óbvias, que apenas desnudam sua culpa — ou sobre as virtudes panópticas da segurança londrina.
O único espectador que assiste sem tédio é o protagonista, porque só ele e a promotoria
sabem como essa história termina. Lukas sente o coração saltar pela boca, na medida em que as
cenas finais se aproximam.
Os dez ou quinze minutos que antecedem as cenas temidas são intensos, porque entra em
cena um segundo personagem.
Lukas de repente dá sinais de que nota a presença de um mesmo homem em diferentes
lugares por onde passa. A câmera capta sua preocupação. Ele para, se desvia, procura surpreender,
muda de direção, entra em um shopping, sai pelo outro lado, pega um táxi. O homem percebe que
Lukas o identificou, mas não se intimida. Continua a segui-lo.
Finalmente, Lukas desce do taxi, atravessa a rua, dirige-se à praça e estanca ao lado do
telefone público, perto da estação do metrô. Permanece imóvel como se aguardasse alguém. Olha
ao redor, discretamente. Está atento e alerta, e continua no mesmo lugar.
Um homem mais velho, bem-vestido, que ainda não aparecera nos registros visuais,
aproxima-se e lhe diz (é impressionante a fidedigni- dade da gravação sonora):
— Don’t be lazy.
Depois de uma pausa, Lukas se apresenta, em inglês:
— Ok, eu sou Lukas.
É indisfarçável que está tenso. Olha para os lados enquanto fala.
— Não se preocupe. O homem de chapéu trabalha comigo. Ele o seguiu para termos certeza
de que você não está sendo seguido.
Lukas deixa escapar um sorriso, aliviado.
Estende a mão. Cumprimentam-se, enquanto o interlocutor se apresenta:
— Sou Bill Presley. Muito prazer.
Tudo ou nada 111
— O prazer é meu.
— Como está sendo esta visita a Londres? Teve tempo de curtir a cidade?
A mútua checagem parece que não terminou. Lukas corta o papo:
— Que tal a gente sentar num lugar com calefação bem forte, tomar um chocolate quente e
relaxar um pouco?
— Ali. O restaurante está limpo. Já verificamos. Meu pessoal está por perto para garantir
nossa segurança.
Caminham até um restaurante bem em frente à praça.
Entram, olham de relance o ambiente e penduram os casacos e as capas. Sentam-se à mesma
mesa. Antes que Lukas diga alguma coisa, seu interlocutor o tranquiliza mais uma vez:
— Depois do que eu passei... você sabe muito bem do que estou falando... fiquei ligado na
segurança de um jeito meio obsessivo. E desagradável, mas vale a pena. Nós não queremos que
aquele tipo de coisa volte a acontecer, nem eu nem você, Lukas, nem seu grupo, não é verdade?
— Não queremos. Pode acreditar.
— Você sabe como é que foi?
— Me contaram.
— Em detalhes?
— Por alto. Só o que eu precisava saber pra conversar com você e transmitir a mensagem do
Albino.
— Como é que você pode avaliar o que precisa e o que não precisa saber, se você não sabe?
— Bill, não fui eu quem avaliou.
— Eu sei, entendi. O que eu quis dizer é que nem sempre é bom que outros avaliem por nós,
especialmente quando somos nós que temos de desarmar a bomba.
— Nesse caso, não é muito difícil desarmar a bomba. Basta você pagar o que deve e fica
tudo bem.
— Está vendo, Lukas? Você está com uma compreensão errada do que está em jogo aqui,
agora, porque não sabe o que realmente aconteceu. Só sabe, como você disse, por alto. Posso
contar?
— Estou ouvindo.
Lukas lia o cardápio. Disse que estava ouvindo sem olhar para o interlocutor e sem muita
convicção.
— Brandon, Jack Lee Brandon, era meu braço direito, além de amigo. Amigo de muitos
anos. Fiel, leal, grande figura. Parceiro de todas as paradas.
112
Luiz Eduardo Soares
Quando Bill engatou no relato, Lukas fez um sinal para a garçonete e o interrompeu para
pedir chocolate quente e uma torta de nozes.
Bill não se deu por vencido. Continuou:
— Entre outras coisas, ele supervisionava a distribuição da carga que vocês traziam. Há um
ano, gente do Albino trouxe para Londres uma tonelada de cocaína. Você veio naquela viagem?
— Não.
— Pois é. Nós ficamos com quinhentos quilos em consignação para distribuir no mercado
inglês. E ficamos também com mais quinhentos quilos só para armazenar, a pedido de vocês. Vocês
tinham planos para dispor desses quinhentos quilos de algum modo que desconheço, nem me cabe
saber. Seu grupo só nos pediu que fossem estocados em lugar seguro e bem-acondicionado.
Portanto, metade da carga que chegou naquela viagem nós guardaríamos até que Albino mandasse
alguém recuperá-la e transportá-la para outro lugar, ou autorizasse a venda para nós, nos termos que
viéssemos a negociar. Esses quinhentos quilos armazenados já passamos pra vocês, há poucos dias,
Certo?
— Certo.
— Foi você que orientou a operação, não foi?
— Isso mesmo.
— Estava tudo certo? Deu tudo certo, Lukas? Houve algum problema?
— Tudo certo. Nenhum problema. Já recebemos a mercadoria de volta. Ela está estocada à
espera de novos compradores confiáveis e experientes, dispostos, exatamente como vocês, a
comprar no atacado e cuidar do varejo. Mas que paguem antecipadamente. Chega de consignação.
— Espero que essa nossa conversa convença você e Albino de que eu sou a melhor pessoa
pra cumprir essa função. Ninguém tem a nossa experiência e a nossa rede de contatos. Eu e Albino
sempre nos entendemos bem, Lukas.
— Acontece que você não pagou até hoje a carga que ficou com você em consignação, Bill.
Por isso é que estou aqui.
— Escuta. Acho que Albino pediu para eu estocar a metade da carga, esses quinhentos quilos
que devolvi a vocês, só por cautela. Acredito que a ideia dele era só dar um tempo. Esperar que a
gente pagasse
Tudo ou nada 113
a carga que ficou conosco consignada, para depois nos ceder também a outra metade, no
mesmo esquema da consignação, que exige confiança. E nós somos gratos por isso. Até porque não
teríamos como pagar a vocês onze milhões de libras pela meia tonelada se a mercadoria não fosse
consignada. Primeiro a gente vende, depois paga a vocês. Se não fosse assim, não daria para
funcionar. O que quero dizer é que negociar quinhentos quilos e deixar os outros quinhentos pra
depois foi uma opção do Albino que só se explica por cautela. Por segurança. E acabou sendo
providencial.
— Na verdade, o motivo da divisão não foi esse. Tudo bem. Não importa.
* * *
O verdadeiro motivo era outro: o dinheiro arrecadado com a venda, no atacado, de metade da
carga de uma tonelada para Bill Pres- ton iria direto para os sócios europeus de Albino. Os
colombianos do cartel de Cali já tinham recebido sua parte, quando as caixas com cocaína lançadas
pelo avião que decolara da selva foram recolhidas em mar aberto pela equipe de Albino, atuante no
Caribe. A grana recebida com a venda dos outros quinhentos quilos seria dividida entre Albino, a
quem caberiam 50%, e os responsáveis diretos pela operação — nesse caso, Lukas e Gordon —,
que ficariam com os remanescentes 50%, depois de pagos os auxiliares de bordo e os dois casais
que navegaram do porto inglês escolhido até o limite territorial inglês para a baldeação da carga e
sua posterior descarga em terra firme.
A operação envolvia múltiplas tarefas: transporte, negociação, operações financeiras e,
depois, se oportuno ou necessário, o transporte do dinheiro em espécie de volta ao Brasil ou,
eventualmente, ao Caribe, conforme as circunstâncias e as estratégias. Era conveniente não misturar
as duas metades da mercadoria para evitar problemas. Não só em razão do risco. Tudo pode variar
em cada negociação, dependendo do momento, das propostas, das alternativas, do mercado e tudo o
mais. Era melhor tratar separadamente as cargas.
114 Luiz Eduardo Soares
* * *
Depois de contemplar a torta que acabara de aterrissar à sua frente como se fosse uma obra
de arte exposta na Tate Gallery, Bill insistiu:
— Não vejo razão para interrompermos uma relação de confiança. Vou lhe explicar o motivo
do atraso do pagamento e tenho certeza de que vocês vão rever a decisão sobre a outra metade da
mercadoria.
— Olha, Bill, acho bacana essa conversa. Um papo franco entre dois cavalheiros civilizados
e honestos, que honram a palavra empenhada e cumprem os contratos. Não é verdade?
— Claro.
— Então, por que é que a gente não deixa o papo de lado e vai ao que interessa. Você não
cumpriu o contrato. Você mesmo admite que não cumpriu. Por outro lado, é o primeiro a
reconhecer que os acordos devem ser respeitados. Afinal, você é um gentleman. E é por isso que
Albino sempre o respeitou e nunca hesitou em negociar com você. Vamos resolver logo o impasse.
Como é que você prefere pagar a dívida?
— A dívida será paga. No momento certo. Eu sei que esse é seu objetivo.
— Por isso eu vim, desta vez. Vim com a missão de receber sua dívida e de vender a outro
atacadista, não a você, a metade que ficou estocada um ano inteiro, sem render nada e com risco de
perder qualidade ou até de ser localizada pela polícia.
— Muito bem, podemos falar sobre o que fazer com esses quinhentos quilos. Como passar
para o varejo e tudo o mais.
— Não é bem assim, Bill. Não há a menor chance de negociar com você a distribuição dos
quinhentos quilos se você não paga nem o que deve há um ano.
— Estou vendo que preciso mesmo lhe contar o que realmente aconteceu. Não sei que versão
Albino ouviu, os colombianos ouviram. Acho que alguém fez a cabeça de vocês contra nós. Alguém
passou uma versão mentirosa e imagino o que vocês estão pensando. Preciso lhe contar a verdade
ou você vai continuar seguindo uma linha de avaliação totalmente equivocada, que pode ter
consequências ruins para todos.
Lukas dá bicadas no chocolate, que é, de fato, quente, e devora a torta de nozes com um
prazer infantil que não combina com a gravidade da conversa, especialmente com o tom vagamente
ameaçador daquelas últimas palavras: “...consequências ruins para todos.”
Tudo ou nada
115
Bill prossegue, indiferente à voracidade de Lukas:
— Brandon é um cara correto, um negociante confiável. Ele sabe que é a maior babaquice
empurrar uma mercadoria malhada para um vendedor varejista, porque ele ganha hoje, mas perde o
cliente para sempre. Perde mesmo. Quando um sujeito se sente lesado por um golpe, você nunca
mais recupera sua confiança. E o sujeito para quem Brandon vendia era aquela pessoa que
comprava vinte, trinta quilos, e passava meses frequentando inferninhos, pubs, praças, zonas, visi-
tando celebridades. Entendeu, Lukas? A pessoa que carrega o piano, no dia a dia, se arriscando,
sendo simpático, abordando, telefonando, gastando sola de sapato, suando a camisa. Essa pessoa
nunca poderia ser sacaneada. Brandon dependia dela. Eu dependo dela. Vocês dependem dela. Sabe
quem é essa pessoa?
— Não tenho ideia.
— O universitário, o taxista, a manicure, o bancário, o gerente da empresa, o repórter. Gente
de todo tipo, que tem seu emprego, sua profissão e que faz um bico para ganhar uma grana extra.
— Tudo bem, Bill, entendi. Mas aonde é que você quer chegar?
— Calma. Escuta. Albino acertou comigo e mandou a turma de vocês atravessar o Atlântico
com a mercadoria pra nós. Tudo certo, como sempre. Brandon foi atrás dos varejistas. Acertou
preço, quantidade e todos os detalhes. Uma noite, vendeu para um sujeito lá da rede dele. No dia
seguinte, o rapaz ligou pra ele, dizendo que a droga estava ruim, os compradores estavam
reclamando e ele não tinha como ficar com aquilo. Pediu para devolver. A maioria das pessoas da
rede do Brandon também ficava com a mercadoria em consignação. Brandon disse que sim. Disse
que sim como um bom comerciante deve dizer. Melhor arcar com o prejuízo do que perder o
cliente, que, nesse caso, nem é o consumidor final. É um intermediário. Ou seja, é mais importante
do que o consumidor.
— A rigor, não houve prejuízo. O cara recebeu a carga, pediu para devolver. Não havia
dinheiro na parada. A grana viria depois. Brandon não perdeu dinheiro nem mercadoria. Só perdeu
tempo. E perderia a mercadoria se o produto estivesse mesmo ruim.
— Isso, Lukas. É isso aí. O sujeito marcou com ele. Deixaria a mercadoria na mala de um
carro. Deu a marca, a cor, o ano, a placa do automóvel. Tudo direitinho. Explicou onde estaria
estacionado. Marcou a hora. A chave estaria na ignição. Era só entrar, ligar o carro
116 Luiz Eduardo Soares
e dirigir até alguma garagem. Tirar a mercadoria e deixar o carro em algum lugar com a
chave. Avisar à pessoa e tudo bem.
— Certo. E daí?
— Daí que ele se fodeu, Lukas.
— Era um golpe.
— Um golpe fodido.
— Não tinha carro nenhum.
— Tinha. O carro estava onde combinado. Brandon entrou, sentou-se e quando ia dar a
partida, a polícia deu o bote.
— Caralho.
— Pois é, uma merda completa. Como é que se sai dessa?
— Brandon já foi julgado?
— Pegou quase vinte anos.
— Puta, que merda, Bill.
— Nem me fale. O problema não ficou nisso.
— O filho da puta que alcaguetou deve saber mais.
— E deve estar comprando a liberdade com a delação premiada. Descobri que os
homens estão em cima de mim. Estão montando o alçapão. Todo o cuidado é pouco. E por isso,
Lukas, é por isso que não dou um passo sem monitorar tudo, sem investigar o chão que piso, as
paredes, as árvores, os postes, tudo. Quando a polícia fica em cima, é um inferno. E foi por isso que
não pude pagar a dívida. Eu avisei ao Albino que era melhor para todos nós, não só para mim, dar
um tempo. Claro que vou pagar o que devo, mas não podia ter feito isso antes.
— Ok, Bill, eu entendo seu argumento. Pode ser que você tenha razão, mas Albino acha
que já passou muito tempo e que agora já não existe nenhum motivo para você não pagar. Eu vim
receber. Não posso voltar de mãos abanando.
— Vamos definir juntos o melhor modo de lhe passar o dinheiro.
Nesse momento, o celular de Bill vibra. Não era bem um celular.
Parecia um rádio. Ele atende, ouve, desliga e se dirige a Lukas:
— Você está sendo seguido. Não podemos continuar falando. Saia daqui agora, com
cuidado. Fuja da Inglaterra hoje mesmo se encontrar um meio seguro. Diga ao Albino para voltar a
me procurar daqui a um ano. Ele vai receber o que lhe devo. Boa sorte.
Lukas mete a última fatia da torta na boca, bica a xícara de chocolate, encara Bill com
desconfiança, quase ironia, como se lhe dissesse, “não sou nenhum cretino, nenhum babaca. Não
me faça de palhaço”.
Tudo ou nada 117
Diz para Bill algumas palavras que lhe custariam muito caro, no julgamento. Elas caem no
tribunal como um objeto enigmático inflamável:
— Albino temia esse golpe, Bill. A instrução que recebi é a seguinte: “Se o Bill lhe
disser que você está sendo seguido, como disse ao meu emissário anterior, há um ano, diga-lhe que
estou disposto a call the indians.”
Lukas levanta-se, veste o sobretudo e a capa, sai do restaurante e desaparece, mergulhando
na estação do metrô.
* * *
As luzes se acendem. No salão, corre um burburinho sutil que lembra o frescor trepidante de
um córrego.
A cabeça de Lukas estremece. As mãos estão frias. Sente-se o índio dos filmes americanos
que cola o ouvido no chão e rastreia a iminência do cataclismo. Terá que suportar meses de pressão.
Sabe que a promo- toria não vai descansar enquanto ele não traduzir o significado de call the
indians. Ele não está preparado para fazer isso. Ele nunca fará isso.
Caem por terra versões fracas e evasivas de sua participação no esquema internacional.
Versões que subestimam seu papel. Versões em que ele investira tanta concentração, a ponto de
alcançar um desempenho satisfatório, emprestando alguma verossimilhança aos relatos. Tudo cede,
nada resiste. Começa a derrocada definitiva e irreversível.
O promotor assume sua posição. Lukas está em seu posto, o trono às avessas, a cadeira
elevada, quase uma tribuna, destinada ao réu interrogado. Uma espécie de simulação dramatúrgica
do pelotão de fuzilamento. O promotor começa a lhe dirigir algumas perguntas preliminares, mas
ele já não as ouve. Lukas está absorto em alguma trama remota e indevassável. Seus olhos estão
abertos, mas ele não vê o que se passa ao seu redor.
Subitamente, ele não está lá. Lukas não está mais onde naturalmente deveria estar. Onde
sempre esteve. No lugar que tem uma voz, a voz que responde por esse nome, Lukas. Ele não
compreende, mas não está mais em seu corpo. Saiu de si? Está fora de si? Não, saiu apenas do cor -
po. Não saiu de si. Mantém-se consciente. Permanece vendo, sentindo, pensando como um ser
humano, ao menos como um ser humano parcial, dotado dessas faculdades. Entretanto descobre,
como um Gregor
118 Luiz Eduardo Soares
Samsa de folhetim, que está privado da morada natural que sempre supôs ser a sua enquanto
estivesse vivo. Percebe que está fora de seu corpo. Seria isso a morte? Mas se está vivo, conforme o
comprovam aquelas faculdades, como poderia ao mesmo tempo não estar vivo?
O firmamento, onde está?
O planeta sofre uma inflexão metafísica.
O diabo está na pista; a natureza, revogada.
Lukas assiste ao julgamento do alto, junto ao teto. No canto à direita do juiz, do lado oposto.
O pé direito tem dez metros ou mais. Mesmo assim, não há sinal de que a lei da gravidade esteja em
vigor para Lukas Mello. Depois de ser acusado por transgressões a tantas leis, agora o seria também
por trair a gravidade?
Lukas vê a si mesmo sentado na cadeira do réu. Vê a si mesmo lá embaixo, pequeno
personagem entre pequenos personagens, acusando, sendo acusados, defendendo os acusados,
jurados julgando o que se diz, o juiz soberano, funcionários funcionando, a roda da fortuna girando
um pouco inclinada, levemente fora do eixo, o circuito energético em pane — o circuito que
mantém as partes unidas ao todo e que posterga o esfacelamento dos miolos. O salão nobre da
justiça invertido.
A consciência em pane? Sim, provavelmente.
Lucidez? O rato roeu.
Sobraram restos, restos da lucidez, ou Lukas sequer experimentaria o transe como naufrágio,
asfixia, desespero. Sem vestígios de lucidez, não haveria desespero e desamparo, só a experiência
física direta: a falta de ar, a dor no estômago, o nó nas tripas. A vivência sensorial sem a mediação
d’algum resíduo de consciência perde volume, relevo e profundidade. Sem restos de lucidez, talvez
Lukas extraísse prazer do desprendimento e não sofresse ao sentir-se incorpóreo. Sequer se sentiria
incorpóreo. Caso lhe faltasse a consciência, talvez experimentasse o êxtase em vez do pânico, uma
vez que, desprovido de racionalidade, não poderia estar fora de si. A consciência ou o pensar
racional, nesse caso equivalentes, são os guardiões dos limites.
Pois Lukas sofre.
Lukas está em pânico.
Agarra-se ao último fio de lucidez, mas o dedica ao medo de per- der-se na loucura sem
remédio. E o derradeiro fiapo ameaça romper- -se, porque roça na pedra do terror primitivo.
Tudo ou nada 119
Em pânico, Lukas sobrevoa a sessão à procura de seu corpo e de sua voz.
Lukas precisa salvar-se.
Precisa salvar-se com urgência. Não se basta. A ordem externa é a única que lhe resta. A
justiça, o salão, a hierarquia, lâmpadas, papéis, o odor das echarpes banhadas em suor, engomadas a
frio, as regras do jogo, as quinas das mesas, as mesuras da honra, a distinção das horas e dos modos,
a sublime igualdade a si mesmas das coisas que existem: esse universo sistemático e permanente
que Lukas aprendeu a chamar realidade é a âncora disponível. A salvação. A balsa que pode
devolvê-lo ao solo.
O barquinho fugiu ao controle: ego à deriva. Lukas à deriva. Homem ao mar.
Arrasta o saco de ossos que erguem na lança o crânio vazado; estira músculos e cartilagens,
recobertos pelo manto puído e pálido, força-os a obedecer, agarra-os e os arranca da paralisia,
confidenciando à matéria sublevada: é a morte que sopra os metais do crepúsculo, filhos da puta. É
a morte que bate à porta, covardes de merda. É a morte que abre as asas sobre nós, traidores.
Movam-se, braços e pernas, avante. O abismo abriu a boca debaixo desse monte de lixo e de partes
dispersas que sou eu.
— Posso falar com o senhor, meritíssimo?
Lukas de volta ao corpo foi capaz de sussurrar esta súplica.
Sim, está de volta ao corpo. Mas quem se sentiria seguro depois de ser ejetado do próprio
corpo? Quem teria forças para juntar os escombros da explosão de si mesmo? Quem manteria a fé
de que isso faz parte da vida, e não da morte? Quem preservaria firme a fé de que é a vida isso que
circunda o desejo de dirigir-se ao juiz, e não a morte?
O magistrado aquiesceu com um gesto.
E o corpo em desalinho atirou Lukas para a frente, um passo; e mais uma vez, e outra,
adiante; até que, marchando como bêbado, deteve-se sob o púlpito do juiz e confessou, em voz
baixa:
— Respeitosamente, venho lhe dizer que saí de meu corpo, mas estou pronto a
prosseguir se o senhor ordenar.
120 Luiz Eduardo Soares
NEURÔNIOS NA GELADEIRA
O juiz convocou a assistência psiquiátrica, ouviu a avaliação técnica e concordou em
interromper o julgamento até que o réu se recuperasse. Recusou as ponderações da promotoria,
segundo as quais Lukas fingia o mal súbito porque não tinha como responder às perguntas da
acusação. Era teatro. Manipulação grosseira para postergar a série de sessões que estava logrando
aniquilar sua defesa.
O juiz cortou a ladainha colérica do promotor. Em geral, quando negava pleitos da defesa ou
da acusação, o magistrado adotava um tom irônico ou benevolente. Dessa vez, foi ríspido. Bloqueou,
assim, qualquer veleidade da promotoria de insistir na lenga-lenga que des qualificava Lukas e sua
dor.
Com a lâmina de sua voz, o juiz cortou o mundo ao meio. Para um lado, a parte regida pelo
jogo de gato e rato entre fatos e versões, verdades e mentiras, interpretações e artifícios. Para outro
lado, a fatia do mundo regida pela emergência à superfície das coisas como elas são. Mundo de
evidências e revelações. Mundo dos fenômenos imediatamente inteligíveis. Esta parte escapa ao
filtro dos julgamentos. Escapa ao filtro que identifica, restaura e separa as verdades, pescando-as no
pântano promíscuo em que se misturam às mentiras e aos enganos.
A palavra de Lukas estava em tela de juízo quando o tema eram sua associação ao tráfico
internacional de drogas e as operações que comandara na Inglaterra. Quando a questão passou a ser a
experiência pela qual acabara de passar, a palavra de Lukas e a avaliação médica pairaram acima do
pântano das versões.
Tudo ou nada 121
21
Por quê?
Por um lado, porque o serviço psiquiátrico é competente para avaliações desse tipo. Mas
talvez também pesasse na decisão do magistrado algo mais. Talvez ele tenha captado a sinceridade
no rosto do reú, nos movimentos do corpo. Talvez tenha ouvido a explosão que despedaçou o
espírito do homem à sua frente, a lhe pedir clemência. Uma explosão que transcorreu em camadas
geológicas profundas, muito longe dali. Talvez tenha visto Lukas perscrutá-lo a dez metros de
altura. Talvez tenha se apiedado do folclórico personagem tropical que se submete à suprema
humilhação de inventar uma anedota extravagante para refugiar-se na cela que lhe oferecia ao
espírito repertório tão minguado de opções para evadir-se de si mesmo.
Lukas recebeu do magistrado licença para adormecer. Suspenso o julgamento por cerca de
um mês, ele pode receber tratamento psiquiátrico — antidepressivos, barbitúricos, substâncias
psicoativas lícitas e soníferos, anfetaminas e reguladores das emoções primárias. Lukas relaxou.
Deu-se ao luxo de terceirizar o senso de responsabilidade, o direcionamento da atenção, o foco
cognitivo. Rendeu-se à fluidez de seu vasto oceano interior, delegando à química os cuidados com a
ordem. Aos médicos entregou seus compromissos com a disciplina. Nem a visitação do inspetor aos
quarenta minutos o importunou durante aquela trégua. A rotina não foi interrompida, mas ele
esqueceu-se dela. Manteve-se desligado o quanto pôde. Os pesadelos cessaram. Os sonhos também.
Lukas mascou o cotidiano em sua versão rasa e insípida — aquela da qual fugira quando embarcara
para a primeira volta ao mundo. Veleiros e fantasias foram varridos do mapa pelos mesmos ventos
que deram cabo da loucura. Remédios não escolhem o alvo. Para cortar o mal pela raiz, levantam o
paciente e o põem de pé no deserto. Ele estará apto a caminhar com as próprias pernas, se tiver para
onde ir.
122 Luiz Eduardo Soares
VINTE E QUATRO ANOS DE PRISÃO
Lukas ficou isolado em Belmarsh quase dois anos. Foi preso em 12 de fevereiro de 1999 e
permaneceu por pouco tempo em High Down. Em junho daquele mesmo ano foi trancafiado no
bunker. O julgamento começou no final do ano 2000 e durou catorze meses. Lukas foi condenado a
24 anos de prisão por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína — livrou-se da acusação
por uma terceira tonelada. A sentença referia-se a duas viagens, cada uma delas envolvendo uma
tonelada da droga, e supunha que a culpa existia mesmo quando a participação do réu era
subsidiária e se dava a distância, isto é, não envolvia sua presença na Inglaterra. A pena incluía,
para efeitos simbólicos, a cobrança a Lukas de multa no valor de 66 milhões de libras, valor
calculado com base na estimativa dos ganhos auferidos com a venda de duas toneladas de cocaína.
Uma semana depois do fim do julgamento, em março de 2002, foi transferido para outra
penitenciária, Whitemoors. Permaneceu no setor de segurança máxima, onde ficam os presos
considerados mais perigosos, categoria triplo A, até meados de 2004. No segundo semestre daquele
ano o rigor foi relaxado, ele foi rebaixado no ranking de periculosidade para duplo A e acabou
sendo deslocado para o setor comum da penitenciária. No começo de 2005, foi transferido para uma
penitenciária comum, Frankland, na cidade de Durhan, situada na região mais fria da Inglaterra,
perto da Escócia.
Em Whitemoors e Frankland, Lukas trabalhou montando móveis, varrendo e pintando
paredes. Recebia trinta libras por semana, que eram depositadas em uma conta, dando-lhe o direito
de encomendar, uma vez por semana, comida e cigarros.
Tudo ou nada 123
22
Os momentos memoráveis foram poucos, pouquíssimos. Entre eles, a vibração solitária, em
Whitemoors, com o gol de Ronaldinho Gaúcho, na Copa do Mundo de 2002, de falta, contra a
Inglaterra. O Brasil venceria por 2 x 1 . Quando a Inglaterra fez seu gol, a população prisional
comemorou intensamente. De longe, Lukas ouviu a celebração, desolado. Na virada brasileira, ele
foi a voz isolada, quase solitária. Uma ou outra longínqua caneca de algum africano ou latino batia
nas grades, saudando a derrota inglesa.
De Frankland, graças à luta judicial dificílima travada durante anos por sua filha, voltou para
o Brasil, com baldeação em Belmarsh de um mês e meio.
A saída de Frankland marcaria o capítulo mais emocionante e fe liz daqueles anos sem
liberdade. Lukas sabia que seu deslocamento indicava a proximidade do retorno ao Brasil, ainda
que guardas e autoridades britânicas o tenham privado dessa informação. As notícias que vinha
recebendo da filha e da embaixada brasileira apontavam nessa direção. Depois de inúmeras idas e
vindas, a repatriação para o término da sentença estava prestes a ser aprovada.
Antes da maré montante das boas notícias, cartas eram um martírio. Sua chegada suscitava
incontido entusiasmo. A leitura provocava profunda emoção. Depois de lidas e relidas, produziam
uma sensação lancinante de vazio, saudade, desespero. Por isso, Lukas pedira aos que lhe escreviam
que deixassem de fazê-lo. Aos que pretendiam visitá-lo, que não o fizessem. Preferia a solidão
resignada às sístoles e diástoles da dor. Podia conviver com a tristeza em doses homeopáticas e
contínuas. Aprendera a tolerar o cinza, a indistinção dos dias e a falta de horizonte temporal.
Quanto mais se acostumava a matar no nascedouro as falsas ilusões, menos suportável lhe parecia
abrir um envelope ou encontrar um ente querido. A carta e a visita o condenariam a experimentar
mais uma vez a permanência na prisão como uma violência inconcebível e intolerável, porque
reavivariam seu desejo de liberdade.
Ante a iminência da vitória de sua filha no front judicial e diplomático, tudo mudara.
Expectativas otimistas deixaram de ser, necessariamente, ilusórias. As cartas tornaram-se bons
presságios e portadoras de informações preciosas. Lukas as abria com avidez. Aguardava com
ansiedade sua chegada. Devorava-as inúmeras vezes e as conhe
124 Luiz Eduardo Soares
cia de cor. A luta da filha era, em si mesma, uma declaração de amor. Brilhava através dos
muros, do aço blindado, indiferente à espessura da matéria. Lukas já vencera todas as batalhas
independentemente dos resultados objetivos que a filha alcançasse. Nada tinha sido mais importante
em sua vida do que o amor aos filhos e o amor dos filhos. Temia perdê-los com a prisão. Temia
provocar neles ressentimento, reprovação, desprezo. Essa teria sido a pior das sentenças. A filha e o
filho eram seus aliados. Haviam perdoado seus erros. Tinham idade e grandeza para compreender as
fragilidades humanas, os tropeços. Orgulhava-se por lhes ter dado mães que os prepararam para o
desenvolvimento da sensibilidade compassiva e amorosa. Orgulhava-se por tê-los educado para a
supremacia do amor. Quisera ele ter sido sempre fiel a essa confiança. Não estaria ali, contando
dias e horas. Contando os minutos. Puxando o ar do mofo das cartas empilhadas.
Foi dura e confusa a disputa judicial em torno da transferência de Lukas para cumprir o
restante da pena no Brasil. A Justiça inglesa só admitiria aceitá-la se o que restasse da sentença
fosse cumprido no Brasil em condições análogas às previstas na Inglaterra. Ou seja, a progressão de
regime que porventura viesse a ser concedida a Lukas, e os eventuais benefícios, não deveriam
exceder, no Brasil, aqueles passíveis de obtenção na Inglaterra.
O que se passou mostra quão imprevisíveis e labirínticos, aleatórios e contingentes,
imponderáveis e irracionais podem ser os diálogos internacionais entre instituições.
A primeira etapa foram anos de trabalho dedicados a persuadir autoridades brasileiras a
permitir e solicitar a transferência de Lukas
— esforço que combinou a aplicação profissional de advogados com a dedicação da
filha, que não hesitava em viajar para Brasília sempre que preciso para tentar persuadir cada
interlocutor com os argumentos da razão e do afeto, olho no olho.
A segunda etapa foram sucessivos movimentos diplomáticos das agências brasileiras
encarregadas de conduzir os trâmites pertinentes, sensibilizando as autoridades inglesas para a
legitimidade do pleito, com base nos acordos internacionais.
A terceira etapa seria a efetivação da transferência.
Nos capítulos derradeiros da segunda etapa, a novela atingiu o ponto de tensão culminante
quando uma funcionária inglesa redigiu
Tudo ou nada 125
a consulta à Justiça brasileira com a indagação-chave, cuja resposta definiria o destino de
Lukas, uma vez que — convém repetir — a Justiça inglesa apenas autorizaria o deslocamento se
houvesse garantias de que, no Brasil, as condições de cumprimento da pena seriam tão rigorosas
quanto as inglesas.
Para certificar-se de que não haveria qualquer abrandamento ou flexibilização no
cumprimento da pena, a burocrata perguntou se as instituições brasileiras fariam cumprir a pena
prolatada pela Justiça inglesa. Esclareceu que, no caso em pauta, a sentença era de 24 anos e o
crime a que se referia era tráfico de drogas. A resposta brasileira foi precisa: sim, nos termos do
acordo de transferência de presos celebrado pelos dois países. O juiz que a redigiu explicou: no
Brasil, a pena máxima são trinta anos. Abaixo do teto, tendo o caso transitado em julgado, as
instituições brasileiras a farão cumprir.
A funcionária inglesa recebeu a resposta e, não satisfeita, insistiu, interrogando as
autoridades brasileiras sobre a hipótese de aplicar-se ao condenado pelo crime de tráfico de drogas
alguma progressão muito benevolente de regime por bom comportamento. Se permanecesse
cumprindo a pena na Inglaterra, Lukas só se habilitaria a alcançar a liberdade condicional em 14 de
fevereiro de 2015. A zelosa servidora britânica obteve mais uma resposta tranquilizadora: não havia
tal hipótese para o condenado por tráfico de drogas.
Observe-se que, à época, ainda não tinha sido julgada inconstitucional, pelo Supremo
Tribunal Federal, a lei que vedava acesso ao benefício da progressão de regime aos condenados por
crimes tipificados pela rubrica “hediondo”, entre eles tráfico de drogas.
Ainda insegura, a funcionária diligente escreveu mais uma vez. Disse que lhe pareciam
estranhas as respostas da Justiça brasileira, porque, lendo nosso código penal, depreendera a
aplicabilidade da progressão de regime em condições que lhe pareciam mais brandas. A funcionária
lera o item relativo a associação para o tráfico, porque era este o crime pelo qual Lukas havia sido
condenado. Mas como se confundira ao identificar o crime de Lukas na primeira carta que escrevera
— anotou tráfico em vez de associação para o tráfico — não se dava conta de que as respostas
diziam respeito não a associação para o tráfico, mas a tráfico.
Esta tréplica foi lida na véspera do Natal por um funcionário do Ministério da Justiça
brasileiro, a quem o Ministério das Relações Ex
126 Luiz Eduardo Soares
teriores repassara a consulta. Em clima natalino, visando livrar-se da desagradável
incumbência com presteza, o burocrata brasileiro não se deteve em exercícios de hermenêutica
jurídica, nem supôs necessário debruçar-se sobre o código penal de lá e de cá. Optou pela solução
mais simples e prática, que lhe pareceu perfeitamente sustentável, tendo sido assinada por um
magistrado: copiou a primeira resposta. Escreveu algo como “Reiterando os termos do documento
número tal, de tal data, endossado pelo juiz fulano de tal, a legislação brasi leira proíbe a concessão
de progressão de regime nesse caso”. O funcionário brasileiro repetiu a resposta do juiz. Estava em
boas mãos. E estava certo. Sem saber, livrou Lukas de muitos anos na prisão.
Importante deixar claro de novo: foi a burocrata inglesa quem cometeu o erro. Em vez de
escrever associação para o tráfico, tradução do crime (conspiracy) tal como consta no processo e na
condenação de Lukas na Inglaterra, ela redigiu apenas tráfico de drogas. Na legislação brasileira,
associação ao tráfico de drogas envolve pena suscetível do benefício da progressão de regime, cujos
pressupostos são distintos dos ingleses e não são mais rigorosos. Na época da transferência de
Lukas, o crime capitulado como tráfico de drogas, tido como hediondo, não permitia aplicação
desse benefício. Posteriormente, rei- tere-se, o Supremo Tribunal Federal julgaria inconstitucional o
veto à progressão de regime. Entretanto, à época, vigorava o veto. Tendo escrito tráfico, recebeu
como resposta a negativa quanto à progressão. Se tivesse escrito associação ao tráfico, teria
recebido da Justiça brasileira uma resposta afirmativa, a qual talvez inviabilizasse a auto rização da
transferência por parte da Justiça inglesa.
Um erro involuntário de redação, que nenhum dos missivistas identificou, a despeito da
sequência de cartas e consultas, cuja origem foi a própria instituição inglesa, abriu para Lukas
perspectivas favoráveis à volta ao Brasil. Retornando ao seu país, ele não só estaria em sua terra e
próximo dos familiares, como veria acelerar-se o cumprimento de sua pena.
Sem que houvesse golpes, ardis, manipulações, transgressões legais ou táticas oportunistas e
antiéticas, conformou-se uma situação favorável a Lukas. E a graça veio como o infortúnio,
inesperadamente. Assim como o castigo, em fevereiro de 1999, a segunda chance despencou na
cabeça de Lukas, sete anos depois, no começo de 2006, surpreendendo-o como um rasgão no
invólucro de chumbo do inverno europeu.
Tudo ou nada 127
23
MEMÓRIAS DO CÁRCERE
A partida de Frankland rumo a Belmarsh corresponderia a um retorno ao cofre. Claro que
sair de uma galeria normal — mesmo com as inspeções a cada quarenta minutos — rumo ao bunker
era um retrocesso, mas não naquele contexto. Como toda a gente, Lukas sabia que uma situação é
feita da soma entre um certo estado de coisas bem objetivas e a história em que se inscreve. Uma
história envolve o que passou e o que se espera venha a acontecer. Portanto, a história está prenhe
de memórias e expectativas, ambos os polos se combinando na narrativa que se é capaz de formular
e contar a si mesmo. A história é o encontro de uma trajetória com a esperança ou o desespero,
conforme o relato de cada um, em cada ocasião. Lukas chegava ao bunker, numa trajetória de
decadência, porque o lugar de onde o tiravam era muito melhor, mas, agora, vivia esse recuo como
um salto maravilhoso para um novo patamar, mais próximo da liberdade e do amor dos filhos, tal
era a força psicológica e simbólica da promessa de repatriação.
O futuro reinava absoluto, redimindo a miséria do presente.
Um budista veria nesse exemplo a prova de que a realidade que experimentamos não é
determinada pelo estado objetivo das coisas que nos cercam, mas pelo modo como o
experimentamos.
Um antropólogo não discordaria.
A saída de Frankland foi, por isso, um momento de júbilo. Tornou- -se inesquecível também
por outro motivo.
Ao amanhecer, as portas não foram abertas para a saída dos que iriam trabalhar, para os
faxineiros, para os que servem o café. To-
Tudo ou nada 129
dos estavam atentos. Lukas ouviu aproximarem-se algumas pessoas. Elas andavam juntas.
Pararam diante de sua porta. Abriram-na. Eram quatro agentes, três homens e uma mulher. A
mulher lhe entregou uma pequena mala de mão, que carregaria não mais do que uns cinco quilos.
— O senhor pode levar o que couber nela. O senhor vai sair em quinze minutos.
Fecharam a porta.
Um vizinho de cela gritou:
— Ei, Lukas, é pra você?
— É sim, cara.
Havia uma campainha na cela. Lukas a apertou e informou:
— Estou pronto.
Um guarda abriu a escotilha:
— O senhor espere ser chamado.
* * *
Quando o foram buscar e saíram com ele algemado pelo corredor da galeria, os presos das
celas vizinhas deram-se conta de que Lukas estava sendo levado embora e começaram a saudá-lo,
batendo as canecas nas grades — um, depois outro, em seguida um terceiro, e outro e mais um. Em
pouco tempo, toda a comunidade de prisioneiros, de todas as alas, captaram a mensagem e entraram
no coro de despedida, que ecoou por todo o prédio e nunca mais deixaria de ecoar na memória de
Lukas.
A toada metálica fulminou suas resistências.
Nunca imaginara que deixaria Frankland aos prantos, compartilhando um sentimento tão
intenso de comunhão.
Não imaginara que uma irmandade pudesse fundar-se na celebração coletiva do que é
comum a todos, quando os adjetivos já se foram.
* * *
A breve passagem por Belmarsh foi marcante para Lukas, sobretudo porque conviveu com
alguns homens acusados de terrorismo.
Recorda-se de um engenheiro turco inteligente e simpático, cujos relatos sugeriam uma
carreira profissional destacada. O sujeito per
130 Luiz Eduardo Soares
dera os braços desarmando uma dessas minas terrestres em algum país africano.
O serviço de segurança inglês solicitou à Justiça e obteve licença para retirar-lhe os braços
mecânicos. Em compensação, designou um enfermeiro para acompanhá-lo em todos os momentos,
inclusive e especialmente os mais privados.
Lukas indignava-se com aquela pena suplementar que o sadismo dos guardas adicionara à
pena ditada no tribunal. Tratava-se de um estratagema que liquidava o moral do engenheiro de um
modo perverso, porque a humilhação se superpunha à dependência direta, sob a forma do contato
corporal. Forçar uma pessoa a devolver ódio em lugar de gratidão — quando se alimenta por mãos
alheias, mija e caga com o auxílio de mãos alheias, lava o rosto e escova os dentes por meio da
piedade profissional do outro — produz um curto-circuito degradante, que talvez termine minando
as resistências psicológicas do preso.
Não ocorreu a Lukas indagar-se sobre a hipótese de que o engenheiro tenha, eventualmente,
privado outros de mãos, braços, pernas, olhos, moral e cabeça. Seja como for, ele talvez
questionasse a subordinação da justiça civilizadíssima à lógica da vingança. Talvez duvidasse da
racionalidade de um Estado que calculasse a distribuição de punições adotando como critério o
dente por dente.
Tudo ou nada 131
24
RIO, CINQUENTA GRAUS
Ao todo, Lukas ficou mais de quatro anos enjaulado em cofres dentro de cofres, na
Inglaterra, e quase três anos preso em galerias comuns.
Quando era transportado, a viatura que o conduzia era precedida e sucedida por um cortejo
de cinco ou seis BMWs e Land Rovers, e mantida sob a vigilância de um helicóptero, quando em
meio urbano, ou de um pequeno avião expert em voltejar lentamente, quando trafegava em estradas.
Lukas chegou ao Brasil em 19 de maio de 2006 para completar em seu país o cumprimento
da pena, que seria adaptada à legislação nacional, a qual lhe facultaria o direito à progressão de
regime, nos momentos adequados, para o semiaberto, o aberto e a liberdade condicional.
Sua primeira paisagem nativa foi o aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Quando
finalmente aterrissou no Santos Dumont, não resistiu. Tinha engolido em seco quando foi preso,
tinha mordido os lábios e aguentado o tranco quando ouviu a sentença, tinha se manti do firme
quando foi trancafiado no bunker. Só tinha se desmanchado na despedida de Frankland. Pois o fim
de tarde na baía de Guanabara também o derrotou e com muito mais força. Lukas chorou feito
criança. Não foi fácil secar o rosto com os punhos algemados.
Seu percurso pelos cárceres brasileiros foi assustador. A mudança de ares correspondeu a um
salto entre universos inteiramente distintos. Como se uma narrativa de Kafka fosse substituída por
um filme de Tarantino. A emoção incontrolável do Santos Dumont logo daria
Tudo ou nada 133
lugar ao pânico. O terror asséptico dos cofres britânicos foi sucedido por uma viagem no
trem fantasma por masmorras subterrâneas fervendo em fogo brando e constante.
Até que ponto o abre e fecha da escotilha na porta de aço a cada quarenta minutos, que quase
o enlouqueceu, no começo e depois incorporou-se à rotina, ainda que sempre lhe tenha causado um
mal- -estar tanto mental quanto físico, até que ponto aquele mecanismo que lhe pareceu o extremo
inexcedível do sadismo e da perversão paranóica seria mesmo inexcedível?
Quando lhe ocorreu a hipótese da transferência para o Brasil, pesaram todas as
considerações, menos a comparação objetiva e serena entre as condições materiais oferecidas aos
prisioneiros na Inglaterra e em seu país. É verdade que esse aspecto não escapara à mãe de Lukas,
que o alertou em cartas para a insalubridade absurda, a superlotação e os riscos permanentes à
segurança que o filho encontraria nas prisões brasileiras.
Os cuidados maternos foram solenemente desdenhados. Lukas ria quando imaginava o calor.
A carta se referia à temperatura nos cárceres como uma das fontes de martírio. Os sujeitos eram
cozidos vivos. O fedor era insuportável. O ambiente, nojento. Fezes e urina se acumulavam entre
insetos e ratos. As doenças de pele, as alergias, as doenças contagiosas, as patologia respiratórias,
tudo era repulsivo. Nada ficava de fora do escrutínio materno, da alimentação aos colchões,
recheados de pulgas e carrapatos. Lukas ria quando pensava nessa fauna minúscula e nos roedores.
Sentia-se uma reencarnação de Noé. Dispunha-se a levar consigo toda essa enciclopédia de abje-
ções desde que se salvasse do claustro asséptico que lhe cabia, como hóspede maldito da rainha.
Abria os braços ao bendito calor tropical: evocava turbinas, vapores, a fervura de asfaltos e praias.
Imaginava com gosto o suor escorrendo, pegajoso, grosso, denso, cheirando a suor sem disfarces.
Maldizia o frio nórdico. Era, sempre fora, animal do sol, bicho de verão. Bem-vindo o calor.
E os conselhos maternos perdiam-se nesse patriotismo tardio e visceral.
Lukas sonhou anos e anos com esse dia. Desejou a volta ao Brasil. Queria sentir o cheiro da
maresia. Sua filha foi à luta. Finalmente, lá estava ele, suado e algemado, mas em pleno Rio de
Janeiro. Em pouco
134 Luiz Eduardo Soares
tempo, a realidade amarrou as fantasias na coleira. Em menos de 24 horas, as percepções de
Lukas ajustaram seus ponteiros com a sensibilidade materna. Quando foi apresentado à prisão
brasileira típica, ele deu adeus às ilusões.
Rio, cinquenta graus. Centenas de homens seminus, famélicos e febris, gotejando, de pé,
espremidos na massa furiosa, falando no coro cacofônico as línguas do ódio, ou pendurados em
redes feito pássaros abatidos em pleno voo, esquecidos da queda.
Contudo, entre as glórias do solo pátrio incluem-se as mil e uma utilidades da solidariedade
informal das autoridades, artigo de luxo que se compra e vende. Viva o mercado. Graças à pororoca
casamenteira, que promoveu a união entre o jeitinho e a ganância, triunfou a liberdade de mercado
nos bastidores do país dos papagaios. Família com posses é o principal ativo na economia
clandestina do cárcere brasileiro. Foi assim que Lukas foi abrindo passagem nas trevas, tes -
temunhando carnificinas e descalabros, para hospedar-se numa cela especial, a uma distância mais
ou menos segura dos confins da civilização. Enquanto contava os anos para cair fora do inferno pela
porta da frente.
Tudo ou nada 135
25
A REALIDADE SEGUE UM ROTEIRO INVEROSSÍMIL
Se a vida de Lukas fosse um filme, teria sido descartada por inverossímil a hipótese de que
sua chegada coincidisse com a ofensiva do PCC em São Paulo. Seria uma solução artificial.
Entretanto, foi o que aconteceu. Quis o mau roteirista da vida real que Lukas chegasse ao Rio de
Janeiro no dia seguinte aos ataques do PCC em São Paulo. O famigerado Pri meiro Comando da
Capital tinha feito o diabo na capital paulista e nos arredores. Até no interior do estado houve
ataques a postos policiais.
Nenhum policial no Rio se sentia seguro em 19 de maio de 2006. Ninguém sabia até onde
iria aquela fúria semiorganizada. Nem se ela saltaria fronteiras. Ou inflamaria por osmose os
ânimos dos suspeitos cariocas de sempre. O jeito era andar em grupo e fortemente armado. Por isso,
um esquadrão policial pronto para invadir o Iraque ou desembarcar na Normandia aguardava Lukas
na pista de pouso do Santos Dumont. Ele custou a crer que o aparato lhe fosse destinado. Não
entendia por que, no Brasil, se repetia a sorte que o submetera à classificação triplo A, no Reino
Unido. Com base em que teriam os brasileiros concluído que ele era perigoso? Os policiais federais
que o trouxeram de Londres, em avião de carreira, trataram-no com a mais absoluta urbanidade e só
o algemaram antes de sair do avião, porque era a norma. Tanto que fizeram questão de lhe explicar,
quase como se, tacitamente, lhe pedissem desculpas pelo incômodo. Nunca demonstraram sequer
imaginar que ele pudesse suscitar maiores cuidados ou temores. Seu ar pacífico e extremamente
polido, educado, delicado estava estampado na linguagem corporal, no tom da voz, no modo de
falar, na postura e, ele supunha, em sua biografia.
136 Luiz Eduardo Soares
Independentemente da comitiva bélica, era comovente pisar o chão do Rio a céu aberto, ante
o horizonte azul acolhedor, imerso no calor que lhe apetecia e tão perto do mar que soprava uma
brisa salgada. Era irreprimivelmente emocionante, e Lukas teve ganas de beijar a delegada federal
que comandava a tropa. A hierarquia foi exibida num flash quando a moça desprendeu-se da
infantaria e saltou aos pés da escada para algemar-se a Lukas, ostentando os dentes afiados de suas
armas e a coreografia veloz de sua eficiência. A súbita intimidade era constrangedora, assim como a
formalidade e o silêncio que conferiam à cena a dramaturgia disciplinada de um ritual. Lukas
apertou o passo, guindado pela policial. Sentiu-se protagonista da versão invertida de uma comédia
romântica filmada no Rio. Sete anos e meio depois, o homem e a mulher se reencontram,
apaixonadamente. Ela o espera na pista do aeroporto. Digamos que as algemas sejam metafóricas,
que as alianças sejam doces e voluntárias, e que as armas sejam as da mútua sedução. Ele ri em
segredo — aquela bobagem é tudo o que seu cérebro consegue produzir por ora —, corre mais um
pouco para não tropeçar e deixa o paletó dobrar-se sobre os punhos para vestir sua vergonha.
Lukas desvia os olhos para, não vendo ninguém, tornar-se invisível — é o que fazem as
crianças quando se metem debaixo da cama, deixando a bunda empinada à vista. Teme que haja
antigos conhecidos circulando por ali. Teme a foto humilhante. Empenha todas as suas energias no
esforço de não cruzar olhares. O Rio é sua cidade. A terra de sua família. Tem a impressão delirante
de que conhece todo mundo. Os ares da província o tornam vulnerável. Ele não sentia vergonha na
Inglaterra. E a vergonha o remetia ao passado, à relação com os outros, ao sentido de
responsabilidade, ao sentimento de que lhe competia explicar, explicar, explicar. Contar sua
história. Contá- -la para encontrar algum ponto de apoio do qual pudesse vislumbrar uma saída e
pular no mar. Pular no mar e nadar até o veleiro que o levaria bem longe, longe do julgamento dos
outros, longe da vista crítica dos outros, longe de sua culpa, longe de si mesmo. A culpa era
inclemente. A vergonha era inclemente. E a vergonha o empurrava para o começo da história. A
volta ao mundo num veleiro. O começo o empurrava para fora, para longe. De si mesmo? Qual era
o sentido dessas associações esquisitas e circulares? Melhor fixar-se, Lukas
Tudo ou nada 137
concluiu, melhor concentrar-se na comedinha romântica invertida e divertir-se com ela. Não
pretendia enlouquecer no dia em que realizava o desejo de retornar à sua cidade. Sair do corpo,
nunca mais. Desde a sessão aterrorizante do julgamento, não voltara a viver nada parecido e
agradecia a Deus por isso. E se medicava para prevenir- -se. E jurava de pés juntos fazer o que
fosse preciso para não perder a razão. Temia acima de tudo sair do corpo e não voltar. Perder-se no
ar rarefeito e zanzar sem destino, reduzido a lampejos imateriais de lucidez. Lucidez sem objeto e
lugar. Sofrimento em estado puro, circulando numa órbita inóspita.
As viaturas estavam cercadas de brutamontes armados até os dentes. Eles olhavam para
todos os lados e eram cobertos por outros policiais igualmente armados, estrategicamente
posicionados. Deu para ver alguns. Certamente havia mais, Lukas deduziu.
Saindo do aeroporto, atravessando a calçada, a delegada lhe pareceu subitamente irritada e
tensa. Ordenou que a liberassem das algemas e que assumissem o controle sobre o preso. Pedestres
afastados por seguranças assistiam à operação curiosos e assustados. Tudo muito rápido. Os
policiais não queriam ficar expostos muito tempo no mesmo local. O deslocamento pela cidade não
seria menos arriscado. Abaixaram a cabeça de Lukas e o fizeram entrar na caçamba de uma viatura
que partiu em disparada seguida pelo comboio.
138 Luiz Eduardo Soares
26
A MULHER QUE ARRASTA MULTIDÕES
Foi levado à sede da Polícia Federal. Trancaram-no numa sala e o trataram muito bem.
Depois de mais de sete anos em cárceres ingleses, Lukas aprendeu a valorizar pequenos detalhes.
Descobriu que fazem toda a diferença. Obter respostas, por exemplo, era o máximo. Fazia-o sentir-
se companheiro de viagem. O policial que lhe desse atenção, que o respeitasse a ponto de dialogar
com ele, passava a merecer seu reconhecimento. Por um instante, conquistava seu afeto mais
fraternal. Por isso, a hora que passou na PF foi reconfortante e revigorante. Sim, pôde dizer a si
mesmo, estava mesmo no Brasil. Em resposta a suas perguntas, lhe disseram que ele seria
conduzido ao Instituto Médico Legal para um exame físico, porque essa era a praxe, quando alguém
ingressava no sistema penitenciário. Se bem que esse ingresso tivesse de esperar vagas e
determinados procedimentos. Provisoriamente, ele ficaria no cárcere de uma delegacia, que estava
funcionando como concentradora de presos desde que a famigerada Polinter fora desativada. Na
oportunidade, ninguém ficava preso na Polinter. O que sobrara da antiga instituição não fazia mais
do que receber, registrar e distribuir os presos. A 312 a DP era uma espécie de entreposto, onde
presos faziam baldeação no percurso para a penitenciária na qual cumpririam suas respectivas
penas. Ficavam ali, na delegacia concentradora, também presos provisórios ou os preventivamente
presos, isto é, os que ainda não haviam sido condenados. E é claro que havia também os que se
perpetuavam no entreposto, permanecendo muito mais do que o legalmente previsto. Alguns che -
gavam a cumprir pena ali mesmo.
Tudo ou nada 139
Além de atenção, deram-lhe cigarros. Lukas lamentou ter de trocar de endereço, mas saiu da
PF gratíssimo.
No Instituto Médico Legal viveu uma segunda comédia, esta menos romântica, mais
picaresca: depois de aguardar quase duas horas num pequeno e modesto consultório, a médica
entrou gloriosamente, como um efeito especial glamoroso, um holograma cintilante, um carro
alegórico na avenida em pleno desfile de carnaval. Ela não fa lava, cantava. Não andava, dançava.
Não habitava apenas o próprio corpo, sua silhueta bamboleante arrastava multidões. Seu ritmo era
insinuante. Ela adernava e inflava as velas como uma deusa egípcia. Combinava poder e sedução; o
porte da autoridade e o perfil ondulante da miss arquetípica; o imperativo da profissão e a elipse do
carisma.
Quanto daquela imagem estonteante era projeção do preso, afogado em testosterona? Quanto
daquela imagem intoxicante poderia ter alguma relação com a doutora real, de carne e osso? Mais
carne do que osso, Lukas diria, o veneno escorrendo no canto do lábio.
Ela não lhe pediu, não justificou, não se apresentou. Ela ordenou:
— Tira a roupa.
Lukas obedeceu. Em parte. Ela insistiu:
— Toda.
— Toda?
— Está surdo?
— Desculpe, doutora, é que eu, eu talvez não deva, em respeito à senhora.
— Tira, cara, deixa de frescura. Você acha que nunca vi homem nu? É o que mais vejo,
vivo ou morto.
Lukas hesita. Não sabe o que fazer. Mantém-se de cueca. Vira-se de costas. Põe as mãos nas
bordas laterais da cueca. Hesita. Finalmente diz:
— É que o morto está morto.
— Nem sempre, rapaz, nem sempre.
Lukas permanece de costas, vacilando.
A médica eleva o tom:
— Você acha que nunca vi pau duro na vida?
— Tudo bem, doutora, desculpe nossa falha técnica. Não tome como desrespeito.
140 Luiz Eduardo Soares
A médica se divertia com o embaraço do paciente, mas não lhe dava confiança. Agiu como a
profissional que só deixara de ser na imaginação provisoriamente descompensada de Lukas. Não o
tocou. Não disse nada. Debruçou-se sobre os papéis empilhados em desordem na mesa e lhe
entregou um documento assinado, atestando sua saúde na data de seu ingresso no universo prisional
fluminense. Mandou-o embora sem voltar-lhe a vista. Tinha mais o que fazer. A cultura machista e
todos os seus achaques apossaram-se de Lukas. E ele mal desembarcara.
Tudo ou nada 141
27
ACLIMATAÇÃO NO PORQUINHO
Do IML, Lukas foi conduzido por policiais federais à Polinter, apenas para que se
cumprissem as formalidades protocolares. Ele foi registrado. Isso significava que a polícia civil do
Estado do Rio de Janeiro atestava que a PF lhe transferia a responsabilidade sobre a cautela do
preso Lukas Mello. Assim que pudesse livrar-se de Lukas, a polícia civil repassaria a
responsabilidade sobre ele para o sistema penitenciário, onde as penas de privação de liberdade
devem ser cumpridas.
A polícia civil mantinha a cautela sobre presos ilegalmente. Não desejava fazê-lo. Mas a
falta de vagas no sistema levava o governo a obrigar a polícia a sujeitar-se àquela ilegalidade. Os
cárceres das delegacias que ainda não tinham sido modernizadas estavam sobrecarregados — as
modernas deixaram de ter cárcere para evitar a perpetuação dessa realidade anódina. A presença de
presos mudava a natureza das unidades policiais. Sua função institucional, segundo a Constituição
da República, é investigar. Na prática, as delegacias tornaram-se pequenos presídios improvisados.
Esse desvio de função transformava inspetores, detetives, escrivães e até delegados em carcereiros.
Como acolher dignamente um cidadão que busca ajuda ou vem denunciar um crime de que
foi vítima se atrás do balcão há centenas de homens alucinados, sufocados, em condições sub-
humanas, prestes a detonar uma rebelião? Quem chega pedindo auxílio pode ser um aliado dos
presos disfarçado. Alguém que vem atacar os policiais e libertar os presos. Por isso, em delegacias
que ainda mantêm carceragem, os funcionários recebem o cidadão com a mão no coldre e o coração
aos pulos. O contato com o cidadão é um risco. Todo
Tudo ou nada 143
desconhecido é ameaçador. O diálogo é perigoso. Boas maneiras? Urbanidade no trato?
Relações públicas? Respeito e valorização da cidadania? Solidariedade com vítimas que procuram
apoio? Eficiência na investigação? Tudo isso é quimera, nesse contexto explosivo, per -
manentemente pré-insurrecional. Ninguém mantém a pose sentado sobre uma bomba-relógio.
Na Polinter, concluído o registro, Lukas foi depositado no menor porquinho do mundo,
enquanto esperava o transporte para a 22a Delegacia de Polícia, a 312a DP, em cujo cárcere
aguardaria vaga no sistema. A grosseria substituiu a atmosfera civilizada da PF, à qual já estava se
acostumando. Afinal, vinha respirando o ar puro da civilidade desde o encontro, na véspera, em
Londres, com os dois agentes que o acompanhariam até o Rio.
Meteram-no naquele buraco inverossímil.
Porquinho é cela provisória para preso que deve ser mantido fora da circulação normal da
delegacia e fora do cárcere, onde estão os acautelados permanentes ou de estada prolongada. Na
Polinter, o porquinho foi o único pedaço que restou do velho claustro purulento; o único lugar
disponível quando era preciso manter alguém na coleira por algumas horas.
Na prática, porquinho é uma reserva de espaço para facilitar o trabalho dos guardas no dia a
dia. Uma espécie de gaveta em que se metem os papéis em uso, antes que sejam dispensados ou
arquivados. Com uma diferença: em vez de papéis, quem a ocupa são os presos. Felizmente para os
claustrofóbicos, essa gaveta é vertical e arejada, ainda que o espaço seja mínimo. A distância entre
a parede e as grades é de um metro, aproximadamente. Não tem profundidade. Gordos não cabem.
Mas é larga. Comporta umas três ou quatro pessoas, lado a lado. Desde que não se virem. A menos
que sejam magérrimas e estreitas no quadril. Claro que é impossível sentar-se. Não é uma cela,
portanto. Na verdade, é um armário com grades em lugar de portas. Talvez o porquinho tenha sido
inspirado nas masmorras medievais em que os condenados eram emparedados vivos. Na Polinter, só
faltaria empilhar tijolos e cimentar. Os presos estavam prontos para serem sepultados de pé.
Lukas sentiu a barra. Estava mesmo chegando ao Brasil. Depois do entusiasmo inicial, o
pessimismo da sábia genitora começava a
144 Luiz Eduardo Soares
fazer mais e mais sentido. O berreiro generalizado, os palavrões, os solavancos agressivos, o
cheiro nauseante, a iluminação precaríssima: Lukas estava sendo introduzido aos fundos do país
cuja frente florida e caprichada ele conhecia tão bem. Mas ele não é negro, nem era pobre, e os
brasileiros brancos endinheirados não ficam muito tempo nos fundos. Ele sabia disso. Mesmo
indignado com o apartheid, não recusaria seus privilégios. Em tese, questionaria a legitimidade dos
benefícios. Naquela noite, entretanto, antevendo os próximos capítulos que prometiam a descida ao
inferno, tenderia a postergar a discussão sobre a pertinência das prerrogativas de classe e cor. Na
selva darwiniana submetida à supremacia dos mais fortes, Lukas agarraria a primeira oportunidade
sem examinar-lhe os dentes, a procedência ou a origem ética.
Assim que se formou um grupo de cinco presos no porquinho
— eles foram pingando, um a um —, ouviu-se a ordem de partida. Guardas vieram
buscá-los. Os presos não representavam nenhum perigo, porque estavam algemados. Mesmo assim,
Lukas observou que os policiais os empurravam, os mantinham a distância, evitavam dar-lhes as
costas. Ele não demoraria a entender a razão para tanta cautela. Enfiaram-nos na caçamba da
viatura, acenderam o giroflex, ligaram a sirene e saíram em alta velocidade, acompanhados de dois
carros da Polícia Federal. Os federais estavam ali por causa dele. Só o deixariam de vez quando ele
chegasse à 312a DP
Tudo ou nada 145
28
BALDEAÇÃO NO INFERNO
De maio a agosto, a 312a DP seria a nova morada de Lukas. Foi recebido no estilo Polinter.
Compreendeu logo o código: pau, porrada e porrete, porra! Os quatro Ps assumiam o lugar dos três
As britânicos.
Mandaram que ele entregasse todos os seus pertences, mas o pouparam da máquina zero,
que raspava o cabelo dos demais na mão ágil do barbeiro de plantão. Chamaram-no de senhor. Ele
achou aquele tratamento sinal de algum fenômeno excepcional. Não sabia de quê. Esperava que
fosse positivo. Achava que era mesmo positivo. Foi logo afastado do grupo pela intervenção
providencial de uma boa alma. O homenzinho era franzino mas parrudo. Depois viria a descobrir de
quem se tratava: preso, ex-policial, beneficiado por um regime informal cuja vigência se limitava à
circunscrição daquela DP. O regime muito peculiar lhe facultava transitar livremente conforme lhe
apetecesse pelas dependências da delegacia, e para além dela. O sujeito saía quase toda noite e
voltava quando lhe dava na veneta. Mandava nos faxinas, presos cuja posição hierárquica era
intermediária, situando-se entre o ex-policial e os presos comuns. Tinham liberdade para circular,
mas só saíam da DP para comprar alguma coisa no armazém da esquina ou para comer um
sanduíche nas redondezas. Prestavam pequenos favores remunerados para presos, que lhes
encomendavam comida, bebida, cigarro etc... Além de executar as missões subalternas como as da
limpeza, substituíam com destreza os policiais em funções burocráticas, na eventualidade de uma
falta ou um compromisso externo — almoço, encontro com amante, consulta médica, tarefa ligada
ao bico, viagem, doença etc... Arcavam também com a
Tudo ou nada 147
supervisão da segurança das celas, comunicando aos policiais movimentos suspeitos e
mobilizando os meios de força, indiretamente, quando necessário.
A boa alma comandava a tropa dos faxinas e sabia ser um profissional da virtude. Trocava
solidariedade por reais. Não abusava. Respeitava a tabela.
Antes que Lukas abrisse a boca, os policiais da DP, os faxinas e seu comandante, o boa
alma, já estavam de posse de seu curriculum vitae. Conheciam seu ponto forte e seu ponto fraco. Ou
seja, o bolso e o medo.
Para que Lukas pusesse os pés no chão, o boa alma conduziu-o para a galeria subterrânea,
onde os presos se amontoavam. Cicerone paciente, deixou que Lukas caminhasse devagar,
suscitando nele a expectativa de que tinha chegado sua hora.
A idealização do calor tropical, cultivada no inverno inglês, despencava, ou melhor, derretia,
como todas as outras colunas de seu otimismo. Derretiam todas elas, fervidas por labaredas
invisíveis que cuspiam vapores pestilentos. O cheiro de esgoto borrifava as narinas e penetrava os
canais como grãos ácidos: acetona, fezes, enxofre, decomposição dos organismos de pequenos
roedores, poças de sangue ou de vômito espraiadas em afluentes de urina.
Na medida em que Lukas passava rente às grades, a massa febril o fitava irada, insultando
Deus e o diabo, proclamando a cólera coletiva contra tudo que se move. Estavam ali cerca de
quinhentas pessoas comprimidas.
Era o trailer do Brasil.
O estardalhaço incandescente e fétido gerava um campo magnético que abolia qualquer
hipótese de fantasia. Não existia a menor possibilidade de que a imaginação decolasse naquele
buraco. Não havia a menor possibilidade de que a fabulação humana sublimasse aquela ode à ruína,
aquela involuntária conspiração da matéria deteriorada, aquele consórcio das batalhas perdidas.
Lukas sentiu medo. Mais do que no veleiro, nas noites de tempestade. Medo comparável só
havia sentido quando o veleiro sofreu o ataque da baleia, no oceano Atlântico, e quando o clarão
misterioso ofuscou o barco, no oceano Índico. E quando viu o tubarão aproximar-se dos
companheiros de viagem, no mar Vermelho. Pavor maior só quando saiu do corpo, no julgamento.
148
Luiz Eduardo Soares
Talvez tivesse chegado a hora da verdade. O encontro sempre adiado com o avesso da alma
brasileira — alma brasileira, esse troço piegas que coloria suas lembranças nostálgicas; essa coisa
que ele mesmo achava folclórica e meio kitsch, mas celebrava em prosa e verso quando se deprimia
nas celas do Reino Unido. Inebriado pela melancolia nórdica, costumava encarnar o nacionalista de
manual. Sentia-se ridículo, mas a emoção açucarada compensava. Algo a ver com leite materno,
doutor Freud?, brincava. Rindo de si, desencuca- va, renovava forças. O triunfo na Copa, por
exemplo. O golaço de Ro- naldinho. Não importava que não curtisse futebol. O gol derrotaria os
ingleses. Bastava o gol, portanto. Entretanto, o golaço os humilhava. Coroava a vitória, Lukas diria,
o travo corrosivo da ironia na voz. A ironia é acessível a todos. Um bem público, universal por
excelência. Contudo, quem negaria que os ingleses são os mestres dessa arte? Portanto, ele tomava
emprestado de seus carcereiros a arma com a qual os combatia simbolicamente.
A galeria subterrânea na 312a DP zona norte do Rio de Janeiro, não tinha nada de simbólica,
nem se prestava a ironias. Muito menos para quem se acha na iminência de ser lançado à fossa
habitada por irmãos de humanidade espremidos ao limite extremo de sua vulnerabilidade física e
psíquica. Que moralidade resistiria ao degredo dentro da cidade natal? Ao degredo que se era
obrigado a suportar na fossa repleta de detritos que chamavam cela, a cinquenta graus de
temperatura.
Lukas parou, examinou o interior da cela. Não se podia vê-la atrás do enxame de corpos
apertados uns contra os outros. Do teto pendiam dezenas e dezenas de redes. Todas habitadas. Esses
seres do alto pareciam vampiros sonâmbulos, capturados em ratoeiras aladas. Ele saberia depois que
funcionava o sistema de rodízio. A cada duas horas os que estavam de pé, deitavam-se; os que
dormiam ou tentavam dormir, punham-se de pé. Espaço era o bem primário cuja escassez
sobressaía naquele mundo miserável. Quase todos os outros males derivavam deste.
Lukas preparou-se para entrar. O medo o cegou de tal modo que o fez ignorar o significado
daquele passeio pela orla do inferno. O coração disparou. Pensou: a ter um enfarto, melhor naquele
instante. Que um raio o partisse ali, antes de virar repasto da alcateia que o fitava com desprezo e
visceral antipatia.
Tudo ou nada 149
Reparou que ao fundo os homens seminus faziam fila. Esforçando-se, percebeu que a fila se
movia mas não diminuía. O que explicava o moto-contínuo era o chuveiro. Havia um chuveiro. O
oásis. Os homens punham o corpo debaixo da água fria por alguns segundos. Molhados,
arrastavam-se para o final da fila. Em instantes estavam secos e sufocados pelo calor desumano.
Aguardavam na fila sua vez para renovar a brevíssima experiência de tornar-se de novo um bicho
adaptado a seu ambiente natural. A procissão se espichava ao longo da parede dos fundos da cela. A
moenda seguia seu destino circular, indefinidamente.
Lukas suava em abundância e ansiou pela ducha. Perguntou-se, intimamente, se os líderes da
cela lhe atribuiriam o direito de refrescar- -se, sendo ele neófito, representante de outra classe social
— os traços do poder são visíveis mesmo sob as máscaras mais diversas. O medo toma mil e uma
formas. Não cessa de metamorfosear-se, inesgotável, como a fila do chuveiro. Uma delas lhe
parecia patética e ele se envergonhava enquanto a sentia, mas a sentia, embora envergonhado de
seus preconceitos. Seriam preconceitos? Não queria ser a cobaia da pesquisa empírica sobre a
resposta a essa pergunta. Temeu ser o bode expiatório da revanche de classe. Depois de séculos de
escravidão, racismo, desigualdades abissais, iniquidades aviltantes, exploração, opressão e
brutalidade, autoritarismo e exclusões, tomariam Lukas para Cristo e o imolariam no altar da
democratização sacrificial da sociedade brasileira? Um senhor da elite branca não serviria de
petisco apetitoso para a festa antropofágica desse tropicalismo das senzalas? Ele não serviria de isca
para atrair e saciar a revolta contra o notório “tudo isso que está aí”?
Refletindo, retrospectivamente, Lukas entenderia que o pavor tinha sido apenas mais um
sintoma do elitismo verde e amarelo. Uma floração intempestiva dos preconceitos atávicos de
nossas elites, a cuja linhagem ele não negaria pertencer.
Não ficaria bem desfalecer na porta da cela. Até porque o empurrariam para dentro,
provavelmente, e não lhe restariam forças para defender-se, caso houvesse alguma agressão. A
menos que o desmaio fosse de estirpe nobre, anunciando nada menos que um ataque cardíaco.
Desejou as cardiopatias mais hediondas. Invocou os santos das patologias respeitáveis. Quis a morte
digna. Ou um
150 Luiz Eduardo Soares
adiamento razoável do encarceramento naquelas condições. Ainda que o preço a pagar lhe
roubasse anos de vida.
Antes que a histeria rendesse algum achaque performático, o boa alma interrompeu seus
delírios. Puxou-o de volta à terra.
— Tu não precisa ficar aqui.
Lukas ainda demorou um pouco para reconectar. Ele precisava de um tratamento de choque,
um reboot, um restart. As fichas caíam em câmera lenta. Mais devagar que os ralos jatos-d’água do
chuveiro coletivo. Fuso horário, jet lag, readaptação, emoções fortes, muita informação
concentrada. O cérebro deu um tilt. Ele encarava o boa alma sem vê-lo. E o ouvia mal.
— Tu não tá montado na grana? Então...
Alô, Mr. Mello, terra chamando.
— Posso ficar em outro lugar?
— Se puder pagar.
— Quanto?
— Depende.
— Quanto você quer?
— Não quero nada. Sigo a tabela. As coisas aqui estão organizadas.
— Quanto?
— No momento, os dois quartos especiais com cama separada e ar-refrigerado estão
ocupados. Tem um quarto maior, na ala social. Mas não tem ar-refrigerado, nem cama separada. Só
beliche.
— Tudo bem, tudo bem. Só não quero ficar aqui.
— São oito camas, quatro beliches, mas tem oito aparelhos de televisão. Tem um
chuveiro e uma geladeira.
— Quanto?
— Dois mil de entrada, mais duzentos por semana.
— Tudo bem.
O boa alma encerrou o passeio. Missão cumprida. Vendeu a vaga. O cliente nem regateou. A
tática não falhava nunca. Se o cliente não tivesse o dinheiro, daria um jeito de arranjar. A
constatação se aplicava a todo mundo. Não valia só para playboy não. Ou para avô de playboy. Todo
mundo dava um jeito de escapar da fossa imunda, saturada de gente. Quer dizer, quase todo mundo.
Tinha os fodidos, totalmente fodidos. A esses, a fossa.
Outro trailer do Brasil. Do outro lado do Brasil.
Tudo ou nada 151
29
O ENCONTRO DESEJADO E TEMIDO
Enquanto subiam de volta ao térreo, Lukas fez a seguinte análise científica e pormenorizada
de sua situação financeira:
— Só preciso falar com minha filha e com minha mãe. Elas vão me trazer a grana.
Desde que chegou ao Brasil, esperava com um misto de ansiedade e temor o encontro
aguardado e postergado por tantos anos. As duas mulheres foram esperá-lo com farta provisão de
lágrimas e variado estoque de utilidades no aeroporto internacional Antônio Carlos Jo- bim. A
previsão era que Lukas aterrissasse lá. Por algum motivo, tomaram o voo Londres-São Paulo. De
São Paulo é que vieram para o Rio. Acabaram descendo no aeroporto doméstico. Por isso, não
havia recepção amorosa no Santos Dumont para contrabalançar o bloco de araque: delegada, fuzis e
escopetas. E as tensões da operação bélica. Não foi descaso da mãe e da filha. A esposa já era ex-
esposa. Afastara-se de Lukas durante os mais de sete anos na Inglaterra. Não por impaciên cia ou
deslealdade. Apenas porque esse era o destino do processo que estavam vivendo juntos, antes da
prisão. Tinha sido a primeira a visitar o marido preso. Antes mesmo de o transferirem para
Belmarsh. Ficou gradualmente claro para ambos que o casamento chegara ao fim, com ou sem
condenação. Depois que o plano de fuga fracassou e que o trancafiaram no cofre dentro do cofre,
Lukas pediu que ela não o visitasse mais. Que ninguém mais o visitasse. Nem lhe escrevesse, salvo
quando estritamente necessário. Sobretudo depois que a visita dos filhos e da mãe o comovera tanto
e em seguida o atirara no fundo do poço com tamanha força e por tanto tempo. A despeito da
separação consensual, a ex-esposa fora tão moralmente delicada e sensível,
152 Luiz Eduardo Soares
tão psicologicamente respeitosa, que não se envolveu com outro homem enquanto Lukas
esteve preso. Dispôs-se a fazê-lo apenas depois que o ex-marido reconquistou a liberdade e pôde,
como ela, voltar a amar e a viver novos relacionamentos. O cuidado nunca explicitado em palavras
ou promessas lhe rendeu a eterna gratidão de Lukas, que interpretou a atitude da ex-companheira
como uma homenagem à liberdade. E também à igualdade. Somente quando ambos estavam livres
ela se sentiu livre para exercer plenamente sua liberdade. Talvez se sentisse uma usurpadora da
liberdade alheia caso realizasse a sua sob a forma do rompimento com quem não podia contrapor-se
a ela ou imitá-la, ou lutar por ela com todas as armas, em igualdade de condições. Tratava-se de
zelo pela equidade, sem dúvida. Mais ainda: expressava muito bem o terceiro lema da bandeira
revolucionária de 1789, fraternidade. Encarnando a francesa perfeita, ela erguera bem alto o brasão
revolucionário, colocando em prática seus valores: liber- té, égalité, fraternité. Vive la France!
Allons enfants de la Patrie...
Lukas a admirava com tal devoção que o divórcio amigável soa quase incompreensível. Mas
a vida seguia. A vida segue.
Assim que chegou ao quartel-general da PF, obteve licença para telefonar. Falou com a filha,
explicou onde estava e lhe passou informações imprecisas. Compartilhou o que sabia a propósito do
itinerário subsequente. As duas mulheres ficaram confusas e seguiram com dificuldades suas pistas.
Resultado: passavam sempre atrasadas por onde Lukas estivera. É provável que ele tenha
contribuído, inconscientemente, para os desencontros, adiando o quanto pôde o momento tão
desejado e tão constrangedor.
Mas o encontro era inevitável e necessário. Agora, mais do que nunca. Devia dois mil reais
ao boa alma. Prometera saldar a dívida naquela mesma noite. Já se instalara no quarto ao lado da
entrada da delegacia. Dividia a espelunca com mais sete afortunados. Os companheiros de
hospedagem eram figuras típicas, quase folclóricas, contudo, diferentes entre si: o garotão traficante
classe média; o bandido que gostava de ser bandido e fazia questão de ser chamado de bandido.
Esse rapaz gostava de grife, perfume e se arrumava com esmero mesmo que a perspectiva fosse a
mais insípida possível: esticar o dia noite adentro, jogando o carteado de sempre com os parceiros
da 312a DP. Havia ainda o especialista em roubo de carga de
Tudo ou nada 153
caminhão. Esse sujeito correspondia à cota dos presos barra-pesada. Dois estelionatários
também estavam por lá. Gabavam-se de alugar um escritório num prédio chique, na Farme de
Amoedo, em Ipanema. Outro conviva era um vigarista caladão, estranho, sempre na dele. Sequer
conseguia explicar por que estava preso. E havia o bonachão multicultural, com sotaque meio
boliviano meio paraguaio, mas que jurava ser brasileiro. Pelo menos de coração. Era fissurado por
música sertaneja. Se nenhuma das oito TVs estivesse sintonizada n'algum show de dupla sertaneja
— circunstância improbabi- líssima —, ele providenciaria um rádio. Em último caso, ele mesmo
entoaria o sucesso da temporada, ousando a segunda voz em falsete, depois de fazer a primeira voz
com vibrato, deixando ao ouvinte a desafiante tarefa de editar os dois trechos e harmonizá-los,
mentalmente. Talvez porque conhecesse muito bem o centro-oeste, graças aos cinco anos passados
na fazenda da família da primeira mulher, no Pantanal, Lukas afeiçoou-se ao gorducho especialista
em roubar caminhonetes. O cantor as levava para a Bolívia, o que o tornara íntimo de Corumbá,
Puerto Suárez, Ponta Porã e Pedro Juan Cabal- lero. Lukas reconhecia aquelas paragens. Tinham
assunto que não acabava mais. O relicário de fábulas regionais os aproximou.
Comparado à frigideira do subsolo, aquele era um superquarto cinco estrelas, um aposento
verdadeiramente nobre, de fazer inveja à rainha Elizabeth.
* * *
O encontro com a filha e a mãe, Lukas teve de enfrentá-lo. O primeiro e único tinha
acontecido pouco depois que ele fora transferido para Belmarsh. Antes do julgamento, portanto.
Quando sua sorte estava lançada e o futuro, incerto. Os dados ainda rodopiavam. Claro que o jogo
não prometia bons resultados. As perspectivas sempre foram sombrias. A mãe o pressentia por pura
intuição, pois ignorava qual teria sido o grau de envolvimento de Lukas e até que ponto a polícia
inglesa seria capaz de fuxicar e descobrir. Além da intuição, a sábia senhora não era dada a
devaneios otimistas. Nisso refletia a tradição libanesa de seus pais, que reverenciava por respeito e
identificação. Os antepassados amargaram guerras e sofrimento em grande escala. A carga era
pesada demais para ser decantada em uma geração.
154 Luiz Eduardo Soares
Naquela oportunidade, a avó levou consigo os netos. A filha de Lukas acabara de completar
22 anos. O filho tinha nove. Conhecendo-se as duas mulheres, talvez fosse mais apropriado dizer
que a menina levou a avó e o irmão para visitar o pai. Não quer dizer que a matriarca fosse
desprovida de energia e expediente. Pelo contrário. Mais de uma década depois do episódio e após a
virada dos oitenta anos, continua trabalhando e cuidando de si e da família, com a mes ma devoção
protetora e a intensidade de sempre. O ponto é outro. Diz respeito à primogênita de Lukas. Trata-se
de um fenômeno de iniciativa, liderança, empreendedorismo. Os dotes se manifestaram
precocemente. Talvez o talento e a vocação tenham sido estimulados pela necessidade de salvar o
pai de uma condenação quase perpétua
— salvando-se a si mesma e ao irmão da orfandade artificialmente engendrada. O fato é
que a moça já era um prodígio de maturidade e de energia aos vinte, vinte e poucos anos.
Tudo ou nada 155
30
A FILHA DE LUKAS NO REDEMOINHO
Quando acordou na manhã da sexta-feira, 12 de fevereiro de 1999, véspera de carnaval, o dia
estava lindo e ela sentia uma alegria imensa. Uma alegria maior do que ela. O quarto, o bairro, o
planeta estavam iluminados e a luz era a felicidade contagiosa da alegria. Tudo isso era amor? O dia
era tão importante e já começava tão repleto de compromissos que não havia tempo para devaneios
de menina apaixonada. Não importava. De fato, era indiferente. Fosse a plenitude do amor ou o
espasmo químico de hormônios em ebulição, o fato é que ela achava aquilo tudo o máximo,
simplesmente o máximo. Acordar cedo, apaixonada e correspondida, em Ipanema, numa véspera de
carnaval, numa sexta-feira ensolarada que, na prática, já abria o carnaval, não era o máximo?
Menos pelo carnaval, que não a entusiasmava, e mais pelo feriadão. Só assim os pombinhos
conseguiriam uma brecha na agenda puxada do noivo para uma viagem tranquila. Finalmente, o
trailer sempre adiado da lua de mel. Por sua vez, também adiada porque casamento não é coisa que
se decida assim, de um dia para o outro, no calor das emoções. Ela chegou a dizer isso ao Ramon
com a maior convicção, acreditando que soava sensata como a avó. Em matéria de equilíbrio e
sensatez, a mãe e o pai não eram, propriamente, exemplos. A mãe enfrentava crises recorrentes de
alcoolismo e o pai, bem, o pai estava melhor, mais sereno, tinha ido à Inglaterra para uma
consultoria econômica no novo trabalho e parecia livre de vez da dependência. No entanto, a âncora
mais estável ainda era a avó. E ela se inspirava na avó ao declarar que casamento não se decide nem
planeja ao sabor da emoção. Às vezes, julgava a vetusta ma-
Tudo ou nada 157
triarca um tanto careta, mas adotou o que supunha ser sua linha de pensamento quando
enunciou aquela tese surpreendente. Diante da perplexidade do noivo, ou quase noivo, surpreendeu-
se com o que ela mesma dissera. Ramon lhe perguntou qual deveria ser o fundamento de decisões
sobre casar ou não, se emoções estavam excluídas como hipóteses para a resposta?
Ela era capaz de tropeços do tipo, quando se lançava com muita sede ao pote da maturidade.
Parecia faminta de maturidade. Copiava modelos de maturidade que idealizava, no lusco-fusco das
ausências materna e paterna intermitentes, e por vezes dava com os burros n’água. É como se
tivesse de preencher um espaço que deixaram vazio e que lhe fazia falta.
Ramon não se incomodava nem um pouco. Acostumara-se a lidar com a ansiedade da futura
noiva que desejava envelhecer a qualquer preço e instantaneamente, ainda que desmentisse essa
impressão com veemência. O problema é que os capítulos seguintes desmentiam os desmentidos
com a eloquência extravagante de que só os 21 anos são capazes.
As idas e vindas de conversas ponderadas e paixão arrebatadora, de filosofices e cálculos,
regadas a um amor derramado, terminaram. O namoro tinha começado quente e promissor havia
alguns anos. Ramon não era do tipo casamenteiro. O assédio das moças que adoram farda
contribuía para suas convicções individualistas, na fronteira do machismo, e para o fortalecimento
de seu estilo despachado, seco, pragmático e sincero de solteirão precoce e incorrigível.
Duas precocidades em choque: a maturidade antecipada a ferro e fogo, no caso dela, e a
poligamia como religião laica, no caso dele. Ambos se aplicavam a suas vocações com esmero e
denodo. Substantivos caros a ele, não a ela. Tanto quanto era afeita a ela, não a ele, a expectativa de
um amor longevo, lavrado no cartório e legalmente institucionalizado, estendendo-se vida afora sob
a forma de uma família e regido pelo compromisso monogâmico.
Sim, farda. Ramon era militar. Policial militar do Estado do Rio de Janeiro. Mais
especificamente, policial militar do Bope — Batalhão de Operações Policiais Especiais, unidade
cujo ritual de passagem e cujas práticas já inflavam imagens públicas, egos e autoconfianças,
embora não houvesse passado pelo teste da visibilidade globalizada (o que aconteceria em 2007,
com o sucesso do filme Tropa de elite).
158 Luiz Eduardo Soares
Não se deduza, precipitadamente, que faltava a Ramon vontade de casar-se, bem-entendido.
E de constituir família com a mulher que amava. É que talvez fosse um pouco cedo demais, sendo
ele também jovem e considerando-se que oficiais do Bope eram alvo da cobiça no mercado carioca
da sedução. Com a cotação em alta, Ramon não desgostava da vida que levara antes do namoro.
Temia que a formalização do compromisso selasse um pacto cujas exigências superassem suas
forças. Talvez ele não estivesse inteiramente pronto para cumpri-lo. Disciplinar-se nos anos de
fascínio e paixão, tudo bem, era natural. Manter a fleugma e resistir às seduções femininas para
sempre, entretanto, talvez estivesse além de sua capacidade de autocontrole.
Ela tampouco tinha certeza de que o momento fosse ideal e de que a parceria fosse perfeita,
com vistas a um convívio definitivo, permanente. Amava o namorado, sem dúvida, mas será que
esse amor não lhe turvava o senso de avaliação? E lhe voltavam ao espírito as cautelas que herdara
da avó: será que justamente a empolgação do afeto não empanava a racionalidade do juízo?
A despeito das hesitações de parte a parte, gostavam tanto um do outro que o amor falou
mais alto do que o medo de entregarem-se ao sentimento que compartilhavam. Chegaram à
conclusão de que era melhor descobrir juntos as respostas do que vacilar separados, desperdiçando
a chance que a vida lhes oferecia de curtir a felicidade sem temores, bloqueios e censuras.
Celebrariam a decisão na viagem, aproveitando a folga do carnaval. Por isso, a manhã azul
enchia a futura noiva de alegria. E por isso havia muito a fazer em pouco tempo. Nenhum dos dois
queria atrasar os planos. Ela tinha de passar no supermercado. Prometera à madrasta que, mesmo
não dividindo os cuidados com o irmãozinho, ao longo de nove dias, não se furtaria a colaborar,
deixando a despensa bem-fornida. O senso de responsabilidade era um dos sinais do ama-
durecimento precoce. Não lhe importava que a madrasta fosse mãe de seu irmão; ela se sentia em
dívida sempre que por algum motivo não dividia as tarefas da casa e os cuidados com a criança.
Pulou da cama, acordou o irmão, preparou-lhe o café com leite, enquanto a mulher de seu
pai tratava das plantas na varanda. O que aconteceu em seguida veio como cataclismo. Os carros
diante da portaria do prédio, o toque insistente da campainha sem aviso prévio pelo interfone, a
frase dita em tom oficial pelo arauto da PF, frase da
Tudo ou nada 159
qual jamais se esqueceria: “Seu pai foi preso na Inglaterra por associação ao tráfico de três
toneladas de cocaína. Tenho mandado de busca e apreensão para vasculhar a casa.”
160 Luiz Eduardo Soares
31
AMOR E ÓDIO
Foi ela quem abriu a porta, ela quem viu o policial federal, ela quem ouviu suas palavras,
ditas com certo pudor — mas que trafegavam em sua voz sobre o fio da navalha e oscilavam, na
iminência de se tornarem agressivas. Foi ela quem voltou o rosto para dentro da sala e percebeu que
a madrasta se aproximara o suficiente para escutar o que fora dito, e por isso ostentava o olhar
esbugalhado de quem havia sido apunhalada enquanto tomava picolé. Foi ela quem compreendeu
que o irmão continuava entretido com seus jogos e que era indispensável protegê-lo da cena que
viria a seguir. Ela pediu ao policial licença para levar o irmão para a rua. O policial não titubeou.
Ninguém ali estava preso. O único mandado dizia respeito à casa, à privacidade da casa, que seria
violada por ordem judicial. Foi ela quem puxou o menino pelo braço e resistiu à resistência física
dele, até convencê-lo de que tinha de obedecer por bem ou por mal.
Na calçada, imaginou a casa sendo revirada, suas gavetas sendo reviradas, as roupas íntimas,
os livros, as cartas e as fotos sendo reviradas, vistas e revistas, as fotos com Ramon sendo
examinadas, as fotos com Ramon fardado sendo manuseadas, estudadas, separadas do conjunto,
guardadas na caixa das evidências, arquivadas no envelope das provas do crime, classificadas na
pasta dos indícios que sustentariam a acusação de cumplicidade por omissão, ou de cumplicidade
ativa, isto é, participação, associação para o crime. Ela anteviu o destino do futuro noivo. A
humilhação, a destituição pública da farda que ele idolatrava como uma veste sagrada. Imaginou as
manchetes. A proclamação da denúncia no Jornal Nacional. O fim de uma carreira
Tudo ou nada
161
na qual ele investira os melhores anos da juventude. O encerramento brutal de um percurso
em que ele aplicara sua energia e sua esperança. Ela antecipou a morte moral de Ramon. E
vislumbrou seu olhar de repreensão. Pior, de ódio. Um olhar dirigido a ela quando o guarda do
tribunal o estivesse levando embora para o cumprimento de uma pena quase eterna, uma pena
irreversível, uma verdadeira sentença de morte simbólica. Ocorreu-lhe que a futura sogra não
sobreviveria ao calvário do julgamento e a amaldiçoaria pela destruição da vida do filho. Aos
gritos, na Corte da Justiça, a mãe de Ramon a amaldiçoaria antes de expirar.
Ela chorava copiosamente em plena avenida Visconde de Pirajá, às oito da manhã de uma
sexta-feira de carnaval. Chorava ante o espanto do irmão, que teimava em consolá-la com o chiclete
que escondera no bolso e que agora exibia, o predileto da irmã. Ela chorava com ódio do pai, com
ódio da polícia, com ódio dela mesma por odiar o pai, com ódio do chiclete ridículo e do ridículo a
que se prestava, na frente das pessoas, no espaço público, como se fosse uma criança ou uma garo-
tinha histérica. Ela também odiava garotinhas histéricas e isso nada tinha a ver com seus ódios do
momento.
Recompôs-se. Os modelitos patricinha chorona e mulherzinha histérica não faziam seu
estilo. Mais que isso: eram o inverso da imagem com a qual se identificava e que buscava emular.
Recompôs- -se, envergonhada. Agradeceu o chiclete, mas o tomou do menino. Estragava os dentes
e provocava um hálito de ônibus interestadual recém-saído da garagem, o que lhe causava náuseas.
Por que o irmão teimava em classificá-lo como o preferido da irmãzona?
Ela não tinha muito tempo para pensar. Mais uma hora e meia, Ramon chegaria e tudo
ficaria muito mais complicado do que já estava. Nem precisariam investigar as fotografias. O futuro
noivo se entregaria, involuntariamente. Seria pego em flagrante na cena do crime. O apartamento do
pai não era a cena do crime, mas era o lugar em que comumente se encontravam. E o encontro de
um oficial do Bope com a filha de alguém envolvido com tráfico internacional talvez fos se
considerado crime. Talvez fosse o suficiente para suscitar suspeitas capazes de acabar com a
carreira do rapaz. Se a relação com ela era crime ou quase crime ou pelo menos um sinal perigoso
de envolvimento com o crime, de promiscuidade com o tráfico, então o aparta-
162 Luiz Eduardo Soares
mento era, sim, a cena do crime. Ramon passou a frequentar a casa depois que o pai viajou.
Lukas implicava com o namorado da filha. Sua viagem facilitou a vida da filha. Ela sentia saudades
do pai. O pai querido, o pai venerado, o pai que mimava desde a mais tenra infância a filhinha
adorada. Ela atribuía ao ciúme a má vontade de Lukas com Ramon. Agora, revia essa interpretação.
Era provável que o pai temesse Ramon. Era provável que o pai odiasse Ramon. E foi nesse instante,
nesse ponto do raciocínio veloz, que uma ideia aflorou e picou seu estômago, seu coração, sua
língua, o nervo de seus dentes, o bico de seu peito, cada um de seus olhos. Essa ideia nojenta,
medonha, apavorante, carnívora, mortal, essa ideia assombrosa e atraente, fortemente atraente, tinha
de ser enxotada como se enxota um corvo no campo santo, uma gralha na biblioteca, uma barata no
bidê, um rato na cama, uma visão escrota grudada na consciência, uma visão indecente tatuada na
retina, uma imagem ensanguentada cravada na memória, uma imagem ensanguentada, perturbadora
e contagiosa, uma ideia mortal. Sua sorte era que a mente se dividia entre a explosão de ideias e a
conversa que jogava fora com o irmão para entretê-lo e preservar sua cabecinha da barra pesada que
irradiava suas patas de chumbo pelos quatro pontos cardeais, demarcando um círculo violeta ao
redor do casal de irmãos, um círculo da cor dos curativos que as enfermeiras aplicavam aos cotós,
no hospital de campanha, conforme o filme a que assistira com o irmãozinho na sessão coruja da
véspera
— um filme impróprio que ele não deveria ter visto, tanto que não dormiu direito e
acordou falando nos mutilados de guerra. Ela deveria tê-lo impedido de ver, assim como o impedira
de ver o filme que os policiais federais estavam gravando no apartamento enquanto o casal de
irmãos borboleteava na rua.
Era uma sorte dividir-se entre as preocupações com o irmão, o papo com o irmão, e o
circuito de ideias que assombravam seu espírito, vindas sabe-se lá de onde e que a infectavam com
sua mordida peçonhenta na carótida. Uma benção, porque a divisão lhe servia de escudo. Contudo,
o escudo foi se tornando menor, mais frágil e poroso, foi esfarinhando, desmilinguindo, derretendo.
Ela definhava, desfalecia mentalmente, ainda que o corpo permanecesse ereto, a fortaleza em forma
de mulher — ela gostaria desta frase. E ali estava dona fortaleza trêmula, suando frio, acuada,
vulnerável, indefesa, exposta a
Tudo ou nada 163
uma ideia vampiro, a uma ideia alucinada, a uma ideia suicida-homi- cida, a uma ideia
terrorista. Cegou-se para o irmão e os transeuntes, os pedestres entre ônibus, os comparsas daquela
febre que contagiava quem passasse, as cariocas indo à praia na manhã de quase carnaval, as
cariocas de biquíni e canga, seminuas, as cariocas desfilando coxas e pernas e bundas e a libido
viscosa, os cariocas entorpecidos e precoces, lambuzados no âmbar de suas glândulas oleosas antes
mesmo que a cópula adiada se consumasse, os cariocas trôpegos celebrando a antecipação de tudo.
Cegou-se, a filha de Lukas, para tudo, para a festa, para a antecipação do prazer. Carregava o irmão
como os cegos conduzem o cão-guia. O irmão a levava. Puxava sua mão para as ban cas de jornal,
em busca da figurinha que faltava na coleção. Puxava-a para a sorveteria. Ela não reparava na
sexta-feira que abria o feriadão, não reparava na manhã de Carnaval, e se esquecera da viagem. Já
não havia senão a viagem ao fim da noite. A ideia mortal colonizara seu espírito, instalara-se,
fincara as unhas e sua mortalha como se planta a bandeira na terra conquistada. Não havia espaço
para mais nada. A ideia maligna tomou o poder e as que se lhe opunham sucumbiram. Agora, a
filha de Lukas era a mulher de uma ideia só. Cabeça-feita, ca- beça-dura, a ideia enrijeceu e
esterilizou o terreno em que nasceriam ideias rivais. Única, totalitária, a ideia mortal expeliu a
multiplicidade de imagens e emoções. Eliminou as ambiguidades e as contradições. A ideia era
esta: meu pai tinha razão. O ódio que ele nutria por Ramon, o medo que sentia de Ramon não eram
infundados. Não eram paranoicos. Não exprimiam apenas uma lei natural, que todo mundo
formularia nesses termos prosaicos: o fora da lei teme o policial. Havia mais do que isso. Debaixo
da raiva paterna, cavando bem fundo, seria possível descobrir motivos insuspeitados, motivos reais:
Ramon era mesmo temível não só por ser policial, mas por ser o Ramon, um ser humano frio,
traiçoeiro, capaz de sacrificar o amor que um dia talvez tenha mesmo sentido pela glória
pseudopatriótica, a glória vã e narcísica da missão cumprida. Ramon se infiltrara. Ramon estava a
serviço. O crápula esteve lá em casa a serviço, esteve comigo a serviço, esteve em mim a serviço. O
canalha era um policial. Um policial até o osso, e só isso. Um profissional da dissimulação.
Virtuose da farsa. Um traidor escroto que chegara ao cúmulo de planejar o casamento e uma viagem
no Carnaval para afastar a filha de Lukas da casa
164 Luiz Eduardo Soares
do pai que seria invadida. Que manobra inominável. E ela lhe entregara seu amor, seu corpo,
sua confiança. Ela lhe entregara seu futuro numa bandeja de prata.
Tudo ou nada 165
UMA IDEIA MORTAL ENVENENA A MANHÃ DE SEXTA-FEIRA
O círculo violeta se estreitava, a manhã perdera o viço, o sol não brilhava. O sol escaldava a
pele e ofuscava a vista, montando um cenário de sombras. Não queria Ramon ali. Não toleraria
olhar em seus olhos. Não aceitaria mais uma representação teatral. Bastava de men tiras. Não o
queria. Digitou o número no celular:
— Meu amor.
Ele atendeu dizendo isso, de um modo que parecia sincero. Do modo como dizia sempre. E
parecia sempre sincero. Ela implorou a si mesma que não esmorecesse, que não fraquejasse, pois o
estrago estava feito e já estava de bom tamanho.
— Alô, aconteceu alguma coisa? Alô. Fala, meu amor. Você está aí?
Ele continuou falando e ela não conseguia pronunciar nem uma
onomatopéia, quanto mais articular uma frase do começo ao fim. Não conseguia articular um
pensamento do começo ao fim. Nem o fio de um sentimento ela tinha força para esticar do começo
ao fim. A verdade é que a voz de Ramon derrubou a certeza de que ele estava por trás da prisão de
Lukas.
— Melhor desligar e ligar de novo. Não estou te ouvindo. Vou te ligar.
Sem fôlego para dizer o que temia dizer, porque dizer alguma coisa significa, em um certo
sentido, torná-la real, e ela tremia só em pensar que aquela ideia mortal se confirmasse
definitivamente, ir- revogavelmente, a noiva tomou coragem para um simples alô. Foi o suficiente
para evitar que Ramon desligasse.
— Agora, sim. Estou te ouvindo. Pode falar.
Tudo ou nada 167
32
Ramon recolheu-se para que ela preenchesse o silêncio com o que tinha a dizer. Ante a
demora, ansioso, ele mesmo prosseguiu:
— Tá pronta? Mas ainda falta. Marcamos nove e meia, não foi? Quer que eu leve mais
alguma coisa? Estou com a lista, aqui.
— Ramon.
— Oi.
— Escuta.
— Diz.
A noiva se cala. Ramon insiste:
— Estou escutando.
A pausa se estende. Ele recomeça:
— Alô. Tá ruim a ligação. Quer ligar de novo? Quer que eu ligue?
— Ramon.
— Fala. Pode falar.
— A gente não vai viajar.
Agora é Ramon quem emudece. Ela continua:
— A gente não pode mais viajar.
— O quê? O que é que houve?
Silêncio. Ele se irrita:
— Fala, mulher. Pelo amor de Deus. Tá me deixando preocupado. O que é que
aconteceu? Fala.
— Meu pai foi preso na Inglaterra.
— O quê?
— Preso.
— Que isso? Você está de sacanagem comigo.
— Meu pai está preso. Eu ia brincar com um negócio desse?
— Como preso? Como é que você ficou sabendo? Por quê?
— Você está surpreso?
— Como assim?
— Surpreso, você não sabia?
— Não estou entendendo.
— Não sabia?
— Deu na TV?
— Não. Mas você está surpreso mesmo?
— O que você quer dizer?
— Só estou te fazendo uma pergunta.
— Ramon, a gente tem de se afastar. A gente não deve ficar se fa lando. Para seu bem, a
gente não deve ser visto junto.
— Que porra é essa?
— Estou falando para o seu bem.
— Você pirou?
— Não. Estou superlúcida. Mais do que nunca. Acho que me fal tou lucidez antes.
Agora, não.
— O que você está querendo dizer? Não estou entendendo porra nenhuma. Fala direito.
Que merda é essa?
— O que eu estou dizendo é que a Polícia Federal está dentro da minha casa mexendo
em tudo, fuxicando as gavetas, as roupas, os armários, vasculhando de cima a baixo. Estão lá
virando a casa toda, virando tudo pelo avesso. Bisbilhotando a minha vida. A nossa vida. Virando a
nossa vida pelo avesso.
— Estou indo praí.
— Não. Não quero.
— Por quê?
— Um dia a gente conversa. Não estou em condições de conversar agora. Você não
pode ficar comigo. Pensa bem. Como é que você vai explicar que namora a filha de uma pessoa
envolvida com tráfico internacional de drogas? Que é noivo e vai se casar com a filha de um cara
que está preso por causa de uma tonelada de cocaína?
— Não tenho que explicar nada a ninguém. Não é crime ser noivo, casar com a filha de
uma pessoa, uma pessoa que...
— Filha de um criminoso.
— Filha não é cúmplice. Ser filha de alguém é um acidente genético.
— Minha relação com meu pai é um acidente genético?
— Não põe palavras em minha boca.
— Tudo bem, Ramon, eles não vão te punir, mas vão te perseguir.
— Se quiserem perseguir, não precisam de motivo.
— Vão te perseguir a vida toda. Sua carreira... Ia ser o fim da sua carreira.
— Agradeço sua preocupação comigo e com minha carreira, mas deixa que eu cuido
disso. Isso é problema meu.
— Mas você é policial, e isso é problema meu.
— Por quê?
Tudo ou nada 169
— Porque meu pai está preso.
— E daí?
— E daí que são dois poios opostos, não são?
— Mas eu não estou ficando noivo nem pretendo me casar com seu pai.
— Eu não me sentiria bem. Não estou me sentindo bem. Como é que eu posso me casar
com o inimigo de meu pai?
— Mas eu não sou inimigo de seu pai.
— Ah, não?
— Claro que não.
— Tem certeza?
— Não estou entendendo. Por que eu seria inimigo de seu pai?
— Porque você é da polícia. Pior ainda, você é do Bope.
— Você está voltando ao mesmo ponto. Parece louca.
— A situação é louca, Ramon.
— É delicada, isso é. Não nego, mas nosso amor vai superar isso.
— Você disse que não é inimigo de meu pai.
— Não sou.
— Mas se você soubesse que ele...
— Não me afastaria de você, não me separaria de jeito nenhum. Que culpa você teria?
Trazendo a situação para o presente: não quero me separar de você só porque seu pai é isso ou
aquilo e foi preso. Pronto.
— Não é disso que estou falando. A pergunta é outra.
As pessoas formavam filas em pontos de ônibus. Homens, mulheres, casais, crianças,
adolescentes desciam dos ônibus, vindos dos bairros distantes da orla. A multidão, ainda dispersa,
avançava em direção à praia. Procissões de carnavalescos fiéis já começavam a beber, no ensaio
geral para o desfile do bloco que sairia à tarde, arrastando o povo. Uma ou outra fantasia destoava
da banalidade dos corpos despidos.
Ela contemplava o circuito de adrenalina e lubricidade, álcool e lubricidade, que excitava
Ipanema e a fogueira da manhã pré-carna- valesca. Não lhe passou pela cabeça que as manhãs
também poderiam ser preguiçosas. Contemplava e não via. Sentiu um cheiro forte de maconha no ar
e não se deu conta de que se esquecera do irmão. De repente, a golfada de voz — ela não evitou o
grito. Era como se tivesse
170 Luiz Eduardo Soares
sido abduzida e, subitamente, fosse atropelada pela vida real à sua volta. Gritou porque
estava só, o celular pendurado na mão, a cabeça na maior balbúrdia e nada do irmão. O coração
estremeceu num solavanco. Do outro lado da linha, Ramon se assustara e berrava:
— O que aconteceu? Fala. O que foi?
— Meu irmão sumiu.
— A PF? A PF levou? Não pode. Não deixa.
O menino estava no fundo escuro de uma banca de revistas, atrás de uma coluna de
brochuras e postais para turistas, folheando fotos de mulheres peladas. Agarrou-o pela mão e o
trouxe para fora.
— Ramon, depois a gente fala. Não quero que você venha.
— E seu irmão?
— Está aqui.
— Pelo menos diz qual era a pergunta. Se eu não entendi, o que foi que eu não entendi?
Qual era a pergunta? Você não vê que está dando um nó na minha cabeça? Tudo acertado pra uma
viagem tão bacana, que a gente desejou tanto fazer, logo depois que a gente decidiu ficar junto... de
repente...
— Se você soubesse que meu pai estava fazendo alguma coisa errada, você teria
denunciado? Você teria agido como policial ou como futuro marido da filha dele? Você seria leal
ao Bope ou a mim?
Ramon foi pego de surpresa. Não respondeu de imediato. As antenas de sua noiva vibraram.
Ela sentiu um baque no peito. O repique do coice tensionou as antenas. O polígrafo de sua intuição
desgover- nou-se. A ideia fatal impôs-se de novo. O terreno mental que a ideia envenenada cedera à
voz de Ramon, à fala amorosa do noivo, foi reocupado num instante.
Ramon hesitou alguns segundos. Tempo suficiente para a ideia mortal desfechar o ataque
devastador.
— Não responde, Ramon. Por favor, não responde. Não precisa responder.
Tudo ou nada 171
33
PRAGA
Haveria tantas razões para a hesitação de Ramon. Ele poderia simplesmente ter vacilado por
nunca ter tido a oportunidade de se colocar aquela questão. Diante dela, talvez tenha balançado
entre a sinceridade mais espontânea e a conveniência de uma ponderação que contextualizasse a
indagação da noiva em seu momento psicológico e emocional, e que considerasse fatores tão
diversos quanto as expectativas da futura esposa e seus eventuais temores, suas fantasias, suas
desconfianças. Nada mais natural do que estar insegura ante a prisão do pai. Por mais madura que
fosse ou tentasse ser, era uma menina, apenas uma menina cujo tapete lhe fora puxado sob os pés:
faltava-lhe o chão. Quem sabe a pergunta no fundo visasse o pai, em vez de Ramon. Visasse a
lealdade do pai. A quem ele fora leal? À filha, à família ou aos sócios nos negócios sujos do
tráfico? Aos filhos, à mulher e à mãe, ou à ambição, à vontade de ficar rico e curtir a vida sem
carregar nas costas a cruz de um emprego, um empreguinho, uma rotina estafante e desagradável
como qualquer mortal da classe média brasileira?
Haveria também a hipótese de que Ramon temesse o grampo telefônico. Por que não? Seria
perfeitamente razoável supor esta possibilidade. Se o pai da moça tinha sido preso por um crime tão
grave, quem garantiria que os telefones dos familiares não estavam grampeados? Afinal, Lukas
vinha sendo monitorado. E o que se deduziria da notícia de que fora preso. Seus contatos mais
próximos poderiam ter sido usados por ele como intermediários para transmitir a terceiros
determinadas informações, pela via de recados aparentemente
Tudo ou nada 173
inocentes, sem que os familiares se dessem conta de que estivessem a serviço de uma rede
internacional de tráfico de drogas. Certa ou errada, a suspeita de grampo fazia sentido e talvez tenha
passado pelo radar de Ramon. Bastaria a reflexão sobre a hipótese do grampo para roubar-lhe o
tempo que sua noiva interpretou como a confirmação da ideia mortal.
A hesitação de Ramon pode ter tido muitos motivos, mas lhe custou o amor de sua vida.
Ela desligou. Ramon não apareceu.
Ela desligou e chorou muito. Desejou que Ramon insistisse, ligasse de novo, a convencesse
a banir a ideia maluca. Ou aparecesse de uma hora para outra, desobedecendo a ordem que ela lhe
dera. Titubeou. Pegou o celular disposta a render-se, desculpar-se, recomeçar a conversa, recomeçar
o dia, desfalecer para acordar de novo numa sexta-feira gloriosa. Desistiu. Desejou ser menos
orgulhosa, menos paranóica, menos leal ao pai. Desejou não ter pai, nem mãe. Não ter conhecido
Ramon. Não ter nascido. Desejou a morte de todo mundo. Desejou morrer. Largou o celular.
Chorou.
Chorou sem parar. O irmão a consolou como um adulto. Ela co- moveu-se com o carinho do
irmão, seu jeito amadurecido, quase paternal. Enxugou os olhos, escondeu-se nos óculos escuros,
jogou a franja no rosto. E o irmãozinho fez com que ela sorrisse, ao descer do pedestal em que ela o
pusera, julgando-o tão maduro: supondo não a ter consolado suficientemente, recorreu de novo ao
chiclete de anis. Tinha mais um escondido no outro bolso.
O noivado acabou. A filha de Lukas recolheu-se. Erigiu um casulo e meteu-se no breu.
Fechou-se em copas. Os capítulos que vieram encerraram o ciclo exuberante de sua juventude
apaixonada. Instalou-se o ciclo do crepúsculo.
Ramon saiu de sua vida para entrar na história. Em outras histórias. Construiu uma carreira
brilhante na polícia. Mostrou-se capaz de romper barreiras, cruzar limites entre dimensões distintas
da realidade social, atravessar fronteiras invisíveis entre classes e territórios, respei tando e
dialogando, fiel à legalidade. Contudo, nunca foi capaz de saltar o muro que a filha de Lukas ergueu
— tijolo a tijolo num desenho sólido e lógico, diria Chico Buarque.
Sólido, sim, mas lógico?, ele se indaga tantos anos depois. Onde está a lógica daquela
separação intempestiva?
174 Luiz Eduardo Soares
Tantos anos depois, a relação com o ex-noivo restaurada — mas redefinida como amizade
—, os mesmos fantasmas ainda assombram a filha de Lukas. A ideia letal continua voltejando como
um inseto renitente. O inseto sobrevive, volteando feito uma ideia assassina. A ideia-inseto é a
praga que ronda a amizade, infectando-a com o veneno da ambivalência.
A linda menina de 21 anos que despertou feliz para viver a pleni tude de uma sexta-feira de
Carnaval e viajar fixou-se naquele ponto do tempo. A notícia da prisão do pai atropelou amor,
noivado, planos e uma imagem que ela fazia de si mesma e do mundo. O anúncio do policial federal
em sua porta congelou um relato que ela contava a si mesma a respeito de seu passado e de seu
futuro. O enredo foi interrompido. Permaneceu suspenso até segunda ordem. A filha de Lukas
abandonou o soldado que amava para vestir seu próprio uniforme de campanha e preparar-se para a
guerra. Começava outra viagem, uma viagem imóvel para o fundo do drama paterno de que ela
passaria a ocupar-se. Era preciso salvá-lo. Ela poderia salvá-lo. Ninguém mais poderia. Salvá-lo do
cárcere inglês e da prisão a outras cadeias. A libertação do pai seria também a sua. Trazer o pai de
volta representaria salvar-se e conquistar o privilégio de dormir em paz. Dormir, profundamente, e
despertar alegre para a próxima viagem. Despertar, de novo, para a manhã ensolarada, a promessa
de amor, a véspera de Carnaval. Enquanto o pai estivesse em cativeiro, a filha não teria tré gua.
Colecionaria noites em série atrás da pilha de manhãs adiadas.
Tudo ou nada 175
34
A VISITA DA VELHA SENHORA
A viagem até Belmarsh foi cansativa. Longa, difícil, pesada. O que, normalmente,
compensaria o desgaste, nesse caso, intensificava a exaustão: a expectativa do encontro, a
perspectiva da chegada. Fazia tempo que não se viam: mais de seis meses. Saindo do Rio de
Janeiro, Lukas se despedira animado, um pouco tenso mas animado, com os beijinhos rápidos de
quem vai à esquina. A mãe despencara. Foi do alto ao chão com a notícia. Não caiu do paraíso
porque seu temperamento vetava fantasias ingênuas. Acostumara-se a viver o momento e a esperar
o que viesse com a coragem dos ancestrais libaneses. Quem sobreviveu a guerras, perseguições e
exílios sabia que o Brasil merecia crédito pelo acolhimento, apesar dos pesares, que eram tantos.
Não tinha grandes afinidades com os imigrantes que se enfurnavam no conforto conservador e
petrificado da colônia. O gueto era uma gruta inóspita e a colônia, com seus clubes e casamentos
arranjados, as fofocas e os enredos mirabolantes, não era outra coisa senão o gueto repaginado.
Preferia encarar a realidade. Sempre. Quando o marido estava mal, dizia a si mesma que ficaria
sozinha nesse mundo. Portanto, seria melhor acostumar-se a essa ideia e preparar-se para a solidão.
Detestava ser enganada. Por isso, a si mesma não enganava. Repelia as ilusões. A migração era uma
fuga. O destino da fuga não pode ser a sua transformação em estilo de vida, destino e personalidade.
Quem se enfia em guetos, colônias, clubes, casamentos arranjados pereniza a fuga e perde a
oportunidade de voltar a viver a vida como se deve. Quem recusa a integração se condena à
respiração artificial. É o que a distinta senhora pensava. Mas também se irritava
Tudo ou nada 177
com os renegados. Os jovenzinhos que se jactavam da amnésia, que se negavam a admitir
seus vínculos com a tradição, seus laços com a comunidade. A patética soberba da ignorância e da
ingratidão lhe causava a repulsa mais visceral.
Temperada pelo realismo, sua lucidez não permitiu que lhe passasse de todo despercebido o
estranho percurso profissional de Lukas. Era inquietante. Não ousava concluir nada. Inquietava-se,
porém. Interrogava-o uma ou outra vez sobre fontes de renda, emprego, viagens, mas com a
discrição que convém a quem aprendeu a respeitar a privacidade de cada um. Até mesmo dos filhos.
Tampouco lhe escapara o vício. Nessa fase, Lukas sumia. Quando reaparecia, sua palidez assustava.
Seus gestos atrapalhados sinalizavam sabe-se lá o quê. Não cheirava bem. O faro fino materno
ligava o alarme. A espontaneidade desaparecia. Lukas saía de cena. Quem o substituía era um
canastrão vestido com seu corpo. Não reconhecia o filho. Sentia que o estava perdendo. Nessas
horas, ela metia os pés pelas mãos, porque mãe é mãe, independentemente de qualquer outra
qualidade. O equilíbrio meio estoico entre a mulher passional e a sabedoria madura ia para o
espaço. Quanto menos espontâneo lhe soava o filho, mais espontânea ela era, voluntária ou
involuntariamente. O que a remetia às raízes libanesas. Ela perdia as estribeiras. O autocontrole
cedia lugar à tentativa de controlar o filho, defendê-lo dos males do mundo a qualquer custo. Males
do mundo que não eram exclusivamente externos ao espírito do filho. Não é demais sublinhar que
ingênua ela nunca fora. A supermãe baixava e tomava conta do terreiro. Se o mal também estava no
filho, não só fora dele, cabia à mãe intervir. Quem sabe uma reprimenda operística não ajudaria a
exorcizar essas fraquezas? Rodava a baiana — é o que deveria ser dito, se não ferisse a taxonomia
geográfica e cultural. Mães libanesas não rodam a baiana, claro. Mas rodam!
Ela tinha uma teoria. Sempre teve. Desde o episódio ao qual se reporta a teoria. O cristal
partiu-se no coração do menino. A mulher amada o traiu com o melhor amigo. Seis meses depois de
um casamento de conto de fadas. Lukas era um menino ainda, quando tudo aconteceu. Foi rápido
demais. A velha senhora não se cansava de lamentar: rápido demais. Aconteceu além do campo de
ação materno. Campo que seu marido se esmerava em delimitar mobilizando todos
178 Luiz Eduardo Soares
os recursos de poder a seu alcance. Poder psicológico, simbólico e aquele que a vetusta
instituição do matrimônio ainda facultava ao macho, em sua geração.
Que ela não se metesse — o pai de Lukas pedia, implorava e, caso ela insistisse,
determinava. Ela pulava a cerca erigida pelo marido, eventualmente, mas quando lograva escapar às
suas ordens e interferir na vida privada de Lukas, o filho trombava com essa expansão do amor
maternal e a fazia recuar. Em vez de avançar e produzir efeitos positivos, perdia espaço e incitava o
filho a fechar-se em copas. O resultado tendia a ser o inverso do pretendido: Lukas aderia com mais
radicalidade ao que havia sido objeto da repreensão materna. E a mãe, mater dolorosa, ainda se
carpia, ouvindo as críticas do marido. Mesmo assim ela não se calava. Não tombava sem
resistência. O marido ouvia poucas e boas:
— Sou eu, então, a culpada de tudo? Muito bem. Que seja. Sou eu, como sempre, a
culpada de tudo. Por ser mãe. O crime foi ser mãe. Este foi o crime que cometi. Confesso meu
crime. É isso que você quer? Está satisfeito? Pronto: admito. Sou culpada do crime de não fugir às
minhas responsabilidades de mãe. Ao contrário de outras pessoas... Mas não vou entrar nisso
porque já escutei o bastante. Já sofri o bastante. Melhor me calar. A errada sou eu. Que Deus me
perdoe esse pecado mortal: ser mãe. Confesso: sou mãe. E recalcitrante. Fui reincidente como você
acusa, mas não se iluda: vou repetir o crime. Porque esse crime vicia. Esse crime é o vício de toda
mãe. Isso mesmo que você está ouvindo: vou reincidir enquanto tiver forças. Essa heresia não
abjuro. Que venham as abominações.
A sra. Mello, mãe de Lukas, aceitara o sobrenome do marido e renunciara ao seu, para
desgosto do pai. Entretanto, jamais apostaria sua crença na maternidade, cujo sentido elementar era
proteger a prole, física e moralmente, emocional e psicologicamente. E o faria até no domínio das
finanças. Proteger, defender, preservar, o que não significava colocar panos quentes, fazer-se de
tonta, engolir qualquer enrolação barata. Pelo contrário, rechaçar as mentiras, criticar, cobrar,
exigir, disciplinar eram, por excelência, o ofício materno. Por isso, não se envergonhava de ser
chata. Orgulhava-se. Nem se intimidava ao incitar reações duras. Porque ela também era dura.
Maternidade era um corpo a corpo permanente, desde o parto. Um corpo a corpo
Tudo ou nada 179
com as adversidades e os desvios. O destino, agarra-se-o, domestica- -se-o. A causa sendo
nobre assim, justificava-se aplicar todas as forças disponíveis.
Portanto, não foi novidade para a neta ouvir a mesma ladainha do Rio à Londres, de Londres
à penitenciária de Belmarsh. Primeiro, no avião; depois, no trem. O irmão ia distraído. Dormia. Os
filmes o entretinham. Ou viajava nas fantasias, em silêncio. Não escutava a preleção da avó sobre
os desacertos de Lukas. Ela não gostava de falar mal do pai das crianças — os netos seriam sempre
crianças. Mas tinha de fazê-lo, excepcionalmente. Não suportaria 24 horas de viagem calada, aquela
indignação presa na garganta. Tinha de compartilhá-la. Poupou a neta de sua teoria sobre o trauma
amoroso de Lukas, porque a tese deslocava o lugar da segunda esposa — mãe da menina — para
um segundo plano e a desvalorizava. Não faria bem para a neta assimilar uma imagem depreciativa
da mãe. Sobretudo porque mesmo sendo boa, no fundo ótima pessoa, não vinha sendo a mãe dos
sonhos da ex-sogra. Bebia muito, muitíssimo. Por isso, a filha fora morar com Lukas. Cada vez
mais, a filha tornara-se mãe de sua mãe. Era este um dos motivos daquele amadurecimento precoce
da neta.
As drogas eram a perdição. A mãe de Lukas achava que a fonte do vício tinha sido o colapso
matrimonial, a decepção amorosa. As drogas foram consequência. Claro que, em seguida,
instaurada a dependência, prescindiam de causas externas. As próprias drogas dão conta de
realimentar a necessidade de seu consumo. O ciclo vicioso era invencível. A menos que houvesse
uma força de vontade que Lukas custou muito a exercer.
O desejo do ganho rápido era um mal. Mais um. De onde Lukas havia tirado essa mania de
fazer dinheiro sem trabalhar? O pai trabalhou a vida toda. Trabalhou sem descanso até morrer. Não
ficou rico, mas educou os filhos. Nunca faltou comida à mesa. Não faltou conforto em casa. Nem
atenção à saúde. Os filhos brincavam à vontade. Tinham acesso aos brinquedos e aos passeios com
que as crianças e os adolescentes de sua época sonhavam. Lukas ironizava essa vida de esforço que
jamais se concluía. Cobiçava outro patamar e o relax preguiçoso para curtir o planeta como um
magnífico playground..
A avó tagarelou até Belmarsh. A neta a venerava. Sabia conviver com a amargura da avó.
Em certo sentido, a velha senhora falava tam-
180 Luiz Eduardo Soares
bém em nome de um lado da neta. O outro justificava, intimamente, o pai. Perdoava.
Recuperava sua imagem. Conservava a pureza do pai sob uma cúpula de vidro, em seu altar
interior. A tensão entre os dois lados não se resolvia. A avó ajudava, dando voz a um deles e
deixando para a neta o contraponto benigno, reparador. Se a mãe de Lukas era o veneno, a filha era
o remédio. Melhor desse jeito. O contrário seria ruim. Mãe tem todo o crédito do mundo. Fala o que
quiser. Seu amor é incondicional. A gratidão de Lukas também seria. A crítica da filha faria um
estrago no espírito do pai. Ser repelido pela filha que ele adorava seria insuportável.
A ladainha recomeçava, indiferente à altitude ou às paisagens:
— Que sirva de lição para vocês. Que essa desgraça sirva de lição.
A neta mudava o assunto. A avó insistia na lição. Houve uma ou
outra tentativa de lembrar à mãe de Lukas que seu filho estava so frendo e era isso o que
importava, afinal, independentemente do significado pedagógico daquela merda toda.
— Que sofra, que sofra. É merecido. Quanta irresponsabilidade, meu Deus.
A neta desistiu.
Finalmente, quando o táxi os deixou na frente de Belmarsh, o paredão cinza falou mais alto
em seu silêncio mineral e altivo. A avó calou-se. A neta gelou. Seu irmão empalideceu, os olhos
esbugalhados diante do monumento de concreto. Um monumento que homenageia o concreto e que
alude apenas a si mesmo. Era um muro autorreferido. O bloco que não evoca nada, senão o bloco
dentro do bloco dentro do bloco.
A sepultura de seres vivos era no máximo uma ode ao deserto e à morte.
Tudo ou nada 181
A DOR NO ESPELHO
A avó calou-se. A neta congelou. O irmãozinho tremeu.
Fora do táxi, estancaram. E ficaram ali, exatamente onde desceram do automóvel. Faltaram-
lhes pernas para avançar. E vontade.
O filho de Lukas teve medo. A filha teve medo. A mãe, a mãe é um abismo de emoções e
responsabilidades. Quem poderia perscrutar o que a paralisava? Raiva, compaixão, amor, culpa?
Medo?
A filha foi quem se moveu primeiro. Coube-lhe quebrar o feitiço, dissolver o entorpecimento
e puxar os outros dois pelas mãos. Talvez porque estivesse mais preparada para encarar o pai.
Ela achava que não podia encontrar o pai sem lhe acenar com alguma esperança. Veio
maturando essa convicção desde a decolagem, no Rio. De fato, pensava nisso desde que planejaram
a visita. Ninguém a ajudou. Dois advogados amigos da família lavaram as mãos:
— Muito difícil.
O primeiro jogou um balde-d’água fria na cabeça da menina.
—Vamos ter de esperar o julgamento e ver qual vai ser o veredicto. Depois a gente volta a
conversar.
O segundo fechou a cabecinha fervilhante com tranca de bronze. Os dois concordaram:
— Complicado.
Embora compreendesse a dificuldade, ela não se rendia:
— Mesmo sendo complicado paca, impossível não é. Ninguém disse que seria
impossível. Nem os advogados.
Tudo bem, um passo havia sido dado. Ela tinha consciência de que, ao excluir a hipótese da
impossibilidade, ela conseguira trazer a esperança para o terreno do possível. E o que é possível,
por defini-
Tudo ou nada 183
35
ção, pode ser alcançado. Pronto, a esperança estava validada. Ela não precisaria recorrer aos
santos. Era o suficiente, no momento.
Faltava responder à pergunta: esperança de quê? De liberdade, claro. Mas a decisão estava
nas mãos de policiais e promotores do Reino Unido, e de um corpo de jurados, cujos desígnios lhe
pareciam mais insondáveis do que o poder dos santos. Era necessário oferecer ao pai um objetivo,
um alvo para a esperança que fosse mais sólido, mais manejável, que dependesse mais de forças
acessíveis, forças que ela pudesse interpelar e sensibilizar. Decidiu que o melhor seria expor ao pai
o projeto de repatriá-lo. Tinham de aguardar o julgamento. Desse calvário ele não escaparia.
Entretanto, uma vez pronunciada a sentença, qualquer que ela fosse, lhe restaria a chance não
impossível da transferência para o Brasil. Estava aí a boia de salvação. Voltar ao Brasil, cumprir a
pena em seu país, ficar perto da família e lutar pela liberdade em seu país, na esfera da Justiça
brasileira. Eles conheciam tanta gente, tinham tantos amigos. Amigos da família, amigos dos
amigos. A classe média brasileira era um cadinho de laços e favores. Havia tantas prerrogativas na
legislação brasileira, tantas brechas. Quem sabe? Tudo poderia ser diferente abaixo do equador,
como o próprio Lukas costumava dizer.
A peregrinação pelos pontos de segurança demorou mais e foi mais penosa do que
imaginaram. A checagem era refeita como se fosse a primeira. A principal intenção não deveria ser
evitar a entrada de armas ou drogas, ou quaisquer outros artefatos proibidos, mas desestimular o
visitante a voltar.
Cumprido o percurso sinistro, atravessando portas blindadas, a família penetrou o cofre que
ficava trancado no cofre maior — era assim que Lukas se referia à arquitetura paranóica da
penitenciária de segurança máxima. Mais trancas, mais duas portas, e lá estava ele.
A filha se lançou aos braços do pai. O guarda que permaneceu todo o tempo vigiando os
afastou. Só a criança estava autorizada a manter contato físico com o prisioneiro. Não adiantaram
os protestos coléricos da mãe, de quem arrancavam o direito natural de beijar o filho, tocá-lo,
abraçá-lo. Mesmo revoltada, teve de resignar-se, ou a visita seria interrompida.
O filho aninhou-se no colo de Lukas e apagou. Dormiu do começo ao fim do encontro. E não
haveria abraço mais longo e profundo, fu
184 Luiz Eduardo Soares
são afetiva mais plena do que o abandono da consciência e a entrega desarmada ao
predomínio do corpo. Os metabolismos de pai e filho harmonizaram-se. A temperatura, cabelos e
peles estenderam-se sobre uma única superfície. Os dois corpos formaram uma superfície contínua.
Comungaram a respiração.
Lado a lado, a filha, a avó, o pai com o filho no colo, o guarda e o tradutor. A ordem era que
nada se diria sem tradução. O profissional contratado para a missão ingrata era um português
simpático que se desdobrou para dar à intimidade violada ares de intimidade. Venceu o
constrangimento porque era pago para isso.
A mãe de Lukas recuperou a compostura e repreendeu o filho com a severidade decantada
nos meses de distância e amargura.
Não era preciso. A filha intuiu que não fazia sentido vocalizar o que a arquitetura
comunicava com tanta veemência. Beirava a covardia. A crueldade. Teve ganas de gritar à avó que
se calasse. Que deixasse de pensar em si. Que parasse de regurgitar suas lições de moral. Aquilo
não ajudava. Só atrapalhava. Fazia Lukas angustiar-se mais, culpar-se mais, sofrer mais. Para que a
visita, então? Castigo era mercadoria abundante em Belmarsh. Era tudo de que ele não precisava.
Não merecia. Quando parou de chorar e tomava coragem para laçar a avó com um grito, a velha
senhora desmoronou e deixou aflorar a mãezona eclipsada pela máscara de superego. Lançou-se em
direção ao filho para beijá-lo, abraçá-lo, acariciá-lo, dizer-lhe todas as coisas boas que o amor
incondicional sabe dizer. O guarda postou-se entre ambos e decretou sem titubear que era a última
vez, o último aviso.
A filha sentiu que era a sua vez. A reunião familiar em dois idiomas era uma nebulosa
espessa e impenetrável naquela sala asséptica, sob vigilância metódica. Cada frase se duplicava na
outra língua. A dor no espelho. O eco bloqueava o fluxo dos sentimentos e abolia a naturalidade.
Mesmo assim lhe cabia dar um sentido prático ao encontro com o pai e um norte para as emoções
pulverizadas. Treinara para isso. Sabia o monólogo de cor.
O guarda informou que o encontro se aproximava do fim. Restavam cinco minutos.
O filho flutuava no sono encantado, pernas e braços dobrados junto à cabecinha acariciada
pelo pai. Aninhado, sugava toda a energia disponível no amor paterno para cruzar o deserto, os
tempos escuros.
Tudo ou nada 185
Teria derrotado a depressão, a despeito das feridas, como logrou fazer, não fora esse elo
misterioso, resistente ao tempo e à distância?
A mãe de Lukas chorava vendo o filho chorar por seu filho, que lhe seria em seguida
arrancado.
Cumpria à filha o papel da razão. Ela o desempenhou com eficiência. Declamou o monólogo
sobre a esperança e seus motivos realistas. Apontou o caminho, indicou a direção, deu ao pai o alvo
e a seta. Discorreu sobre tática e estratégia. Concluiu com precisão cronológica. Hora da despedida.
O filho despertou e lutou com mãos e pés contra a separação forçada que dividiria sua vida
em duas partes. A cena acabou com Lukas. O punhal está plantado até hoje. Não há cirurgia que o
extraia. Nem o perdão do filho tantas vezes ofertado em prosa e verso. Nem a liberdade para os
abraços.
A mãe compreendeu que competia a ela colaborar, reduzindo o escopo da dor, consolando o
neto. Chorar, desesperar-se não faria bem ao filho, nem ao neto.
A filha entendeu que lhe cabia imitar o equilíbrio da avó, seguir- -lhe o exemplo, conter-se
e, no limite, se conseguisse reunir forças suficientes, despedir-se do pai com um sorriso. Seria sinal
de otimismo. Talvez lhe transmitisse a mensagem de que ela merecia confiança, de que os planos
dariam certo, de que se encontrariam de novo, em breve, celebrando a liberdade.
Desabou. Era pedir demais. Criticou-se por ter feito essa maldade com o pai. Talvez ele
captasse, porém: o amor da filha não cabia num copo de água com açúcar, num sorriso amarelo. E
essa informação talvez fosse mais animadora do que o cálculo otimista sobre o futuro. O futuro não
substitui o analgésico. O sentimento forte da filha era maior que a dor.
* * *
Os três visitantes não acharam um táxi na saída da penitenciária. Nem havia um serviço de
atendimento ao visitante. O visitante que se danasse — espelhando o visitado. Que se danassem
todos juntos, sussurrava a mensagem subjacente ao tratamento que a família Mello recebera.
186 Luiz Eduardo Soares
O jeito era andar no frio rumo à estação de trem. E manter-se aler ta. Alguma condução
haveria de passar.
Os andarilhos tinham caminhado cerca de meio quilômetro quando um carro reduziu a
velocidade e encostou na calçada, dez metros adiante deles. O simpático tradutor lhes oferecia
carona. O rapaz português apiedou-se daqueles brasileiros acostumados ao sol de Copacabana que
vagavam no Polo Norte. Sim, lhes disse, a Inglaterra às vezes parece um posto avançado do polo.
Sobretudo para as gentes dos trópicos.
Não comentaram a visita. O tradutor não falou da cena que testemunhara; a família de Lukas
não a mencionou. Calor e frio eram os temas providenciais.
O motorista amável fez questão de os levar à estação.
No dia seguinte, foi demitido.
Algum tempo depois, Lukas descobriu o que se passou. Vigiavam por câmeras os
movimentos da família. Flagraram o rapaz perpetrando a infame cordialidade. O jovem português
traíra a confiança de seus empregadores. É possível que lhe tenham explicado o motivo. Se não o
fizeram, ele jamais desconfiará que a amabilidade lhe custara a posição. Continuará buscando,
indefinidamente, razões para a exoneração intempestiva — elas estariam para sempre lost in
transla- tion, perdidas na tradução. Nem todos os códigos são acessíveis a um tradutor.
Tudo ou nada 187
36
SEM FRITURA NA FOSSA DO SUBSOLO
O encontro com a filha e a mãe, Lukas teve de enfrentá-lo, sim. Depois da longa marcha,
chegaram ao fim da linha. Lá estava o filho da digníssima senhora libanesa, o pai da Joana D’Arc
de Ipanema, ou o que restara desse homem submetido ao corredor polonês psicológico. O homem
que não beijou a pista do Santos Dumont, não amou a loura, não se manteve sob a custódia
simpática da Federal, não escapou ao porquinho na Polinter, mas, em compensação, tirou a sorte
grande na vida, ao nascer numa família de classe média, o que lhe permitiu comprar o beliche de
luxo e livrar-se da fritura na fossa do subsolo.
Mãe e filha imaginaram que Lukas precisaria de dinheiro. Foram preparadas. Além dos dois
mil reais, cash, lhe deram outros mil para as emergências e o varejo. E mais: um jantar supimpa,
comidinha caseira para matar saudades, guaraná brasileiríssimo, goiabada cascão com queijo de
minas. Coisa de mãe. Nem o quindim para rebater ela esqueceu. Lukas segurava a vontade de
chorar. Não queria dar a si mesmo a impressão de que voltar para casa significava regredir à
infância. Se tivesse voltado mesmo para casa, tudo bem. Admitiria tudo. Curtiria a infantilização
lambendo os beiços. Mas a volta ao país tinha outro significado: se, por um lado, abriria a porta
para revisões legais que o beneficiariam, reduzindo a pena, por outro lado, exigiria força e atenção
para proteger-se de chantagens e violências. Vencera uma batalha. Só uma. Ou melhor, a filha a
vencera por ele. O triunfo havia sido dela, de sua teimosia, de sua persistência, de sua fé, de sua
fidelidade ao sonho de libertar o pai. E também de sua competência
Tudo ou nada 189
— não foi nada fácil sensibilizar tantos interlocutores e tecer a rede de apoio sem a qual
a iniciativa teria morrido na praia.
Ele queria abraçar a filha, abraçar de novo, e mais uma vez, e dizer- -lhe que estava grato.
Mas hesitava, porque era tão pouco retribuir com uma frase e um abraço o que não tinha nome, nem
preço.
Quis beijar as mãos da mãe para lhe agradecer a devoção, o carinho, na contramão do juízo
que fazia do comportamento do filho preso. Desejou dizer à mãe que ela estava certa e ele errado, e
que tudo seria diferente, um dia.
Não disse nada. Emudeceu. A gratidão e a vergonha o calaram. O amor por aquelas
mulheres chegaria a elas pelos olhos, pelo silêncio, pelo tremor das mãos. Resignou-se com a
inabilidade, a reação abúlica, o vazio. Elas saberiam preenchê-lo.
Se elas ainda o amavam, apesar de tudo, não deixariam de amá-lo por sua inaptidão para a
cerimônia dos afetos.
Quebrou o gelo com a providência prática urgente: chamou o boa alma e lhe passou os dois
mil reais, que foram contados e embolsados, profissionalmente. Não era preciso dizer mais nada.
Nem ao boa alma nem às mulheres, que entenderam perfeitamente o que viram. Sabiam muito bem
como funcionava a cadeia.
Lukas não avaliara quão famélico estava antes de aplicar-se vorazmente ao banquete. As
duas mulheres maravilhosas que ele amava puseram-se a tagarelar para alegrá-lo e fazê-lo sorrir.
Ele pôde dedi- car-se com exclusividade aos pratos e concentrar-se nos quitutes até traçá-los todos.
Uma hora, mais ou menos, para comer e atualizar-se nas fofocas familiares.
Antes de irem embora, combinaram a rotina das visitas. Sua filha fechou a noite em grande
estilo, renovando-lhe as esperanças quanto aos procedimentos legais para o novo round judicial que
começava. Tratava-se de reivindicar progressão de regime para o semiaberto, o aberto e a liberdade
condicional e, na sequência, demandar comutações que lhe reduzissem a pena. Faltava muito tempo
para que o pesadelo virasse história, claro, mas era um baita consolo enxergar o fiapo de luz na
dobradiça do portão de aço. Logo, logo, o advogado brasileiro que a filha contratara o visitaria — e
ela não se satisfazia senão com um representante do primeiro time. Nisso também a leoa orgulhava
o pai. Além de generosa, ela sabia o que fazia.
190 Luiz Eduardo Soares
37
UM POÇO DE ORGULHO
Lukas venceu a primeira noite, porque ela derrotou suas resistências. Ele não adormeceu;
desapareceu de repente do radar de sua consciência. E tão absolutamente que nem sonho nem
recordações sobraram do que ocorreu quando fecharam a porta de sua hospedaria. Tombou num dos
beliches. Isso ele sabe, ou melhor, deduz, porque acordou nele. Não restou nada. A exaustão física
tem suas vantagens. Quando se viu impelido a interagir com os colegas do cárcere, já es tava no dia
seguinte à epopeia da chegada ao Brasil e à 312a DP Ou seja, já era um veterano. Nada mais tinha o
semblante ameaçador do desconhecido. Inclusive o que era ameaçador perdera o viço e se redefinia,
agora, como perigo calculado ou, pelo menos, calculável. Isto é: previsível e evitável. Pelo menos
era a percepção de Lukas. Ele se sentia adaptado ao mundo carcerário brasileiro até ser
surpreendido.
O grupo firmou-se, ainda que se constituísse antes num arquipélago de duplas. Em geral, os
duos ocupavam o mesmo beliche. A exceção era Lukas: apesar de dividir o beliche com o playboy
classe média que fazia par com o bandido vaidoso, em pouco tempo se aproximaria do gorducho fã
de música sertaneja.
As noites eram agitadas porque os presos na frigideira da 312 a DP pertenciam à facção do
tráfico chamada Comando Vermelho, mas o morro dos Macacos, que fica ao lado da DP era
controlada pela facção rival, denominada Amigos dos Amigos. Para assustar o pessoal do CV
encarcerado na DP, os rapazes do ADA simulavam ataques, pulando no teto da delegacia, gritando
e atirando com fuzis. Nunca se podia saber ao certo se era provocação ou invasão. A repetição do
espetáculo mostrava que o propósito era intimidar, desgastar os inimigos
Tudo ou nada 191
e humilhá-los. Mesmo assim, as balas eram de verdade e o susto era grande. Alguém poderia
se machucar na brincadeira. Os policiais repeliam a tiros e pediam reforços. A balbúrdia por vezes
se estendia e mantinha insones, a noite toda, os hóspedes das celas especiais, no térreo, e da galeria
subterrânea.
Com a sequência dos encontros, a mãe de Lukas foi se sentindo mais à vontade, a ponto de
convidar familiares, inclusive de outros estados, para visitar o filho. Nada mais constrangedor. Foi
preciso que Lukas implorasse à mãe que o poupasse de tantas amabilidades. Difícil foi fazê-la
entender que a generosidade pode ser, involuntariamente, cruel:
— É humilhante, mãe. Só isso.
— Por quê?
— Ora, por quê; porque estou preso, pinoia.
— Pois é por isso mesmo que eles vêm visitá-lo.
— Então, mãe. Todos vêm com a melhor das intenções, mas o que é que eles veem? O
sobrinho, o primo, preso. E quando me veem assim, sentem pena de mim. Pena, mãe.
— Você queria que eles sentissem o quê? Felicidade por ver você nesse estado? Só se
fossem uns desalmados.
— Justamente, mãe. Eles não ficam felizes. Ficam tristes e têm pena de mim.
— Porque são pessoas de bom coração, que gostam de você.
— Mas é horrível terem pena da gente. A senhora já passou por isso? Já sentiram pena
da senhora? A senhora gostou da experiência?
—Já passei, sim, quando seu pai morreu e quando seu irmão morreu. E quando deu no
Jornal Nacional que você tinha sido preso na Inglaterra. Me fez muito bem saber que eu não estava
sozinha, não estava sofrendo sozinha, que havia parentes solidários comigo, que estavam a meu
lado para me consolar e me apoiar, naqueles momentos difíceis.
— É diferente, mãe. Quando acontece uma desgraça e a senhora não fez nada, só é
vítima da tragédia, o sentimento dos outros é diferente e consola. Mas eu estou preso, mãe. As
pessoas me olham como se eu fosse um doente contagioso, por mais que disfarcem. Não sou a
vítima de uma tragédia, entendeu?
— Vítima sou eu, são seus filhos. Você sabe muito bem o que fez.
192 Luiz Eduardo Soares
— E não preciso de ninguém pra ficar me lembrando disso e ainda por cima com o ar
superior de quem me dá lições ou me acha um coitado.
— Sabe o que você é, Lukas? Um ingrato. É isso que você é.
Seria bem o seu estilo se, despedindo-se com a cara fechada, tendo
dado alguns passos, voltasse para completar:
— E orgulhoso. Um poço de orgulho.
* * *
Pronto. Quando terminava assim, Lukas passava de duas a três semanas sem ver a mãe. Ela
se indignava e entrava em greve. Ele perdia o deleite daquelas brigas e das comidinhas maternas.
A filha compreendia o pai e, instruída por ele, tentava explicar à avó suas razões. Levava-a à
312a DP e, com seu jeito espontâneo, fazia com que todos agissem como se nada tivesse acontecido.
Tudo ou nada 193
O CALDEIRÃO VAI ENTORNAR
De maio a agosto, Lukas experimentou a vida de preso em delegacia. Preso privilegiado,
com bala na agulha para pagar o aluguel de uma das celas especiais. O dinheiro comprava tudo ou
quase tudo. Mulheres, cigarros, comida, telefone, maconha, cocaína, remédios, produtos de higiene.
As visitas íntimas, pagas ou não, aconteciam numa salinha especial. Lukas sentia náuseas só de
passar pela porta. O cheiro e o cenário o remetiam ao velho mangue onde os meninos de sua
geração pegavam gonorreia no ensaio geral para a masculinidade. Era a época em que as
menininhas filhas de papai não davam para qualquer um, nem para os namorados. Os primeiros
anos da adolescência. Nesse tempo, já havia uma vanguarda feminista que queimava sutiã,
mentalmente, e aderia ao amor livre. Ocorre que, por definição, vanguarda é minoria. Lukas
conquistaria o ingresso cobiçadíssimo a esse clube fechado quando chegou à faculdade para estudar
economia. Ao contrário da geração anterior, aprendeu que sexo profissional é aviltante não para
quem recebe, mas para quem paga, porque corresponde a uma declaração de incompetência amo -
rosa e passa ao consumidor um atestado de desvalorização assinado por todas as mulheres do
mundo. Sexo pago tornou-se eminentemente careta, antes que a AIDS o convertesse em
“comportamento de risco”. Somando-se a saleta inóspita e suja a esta percepção cultural que Lukas
assimilara, entende-se por que ele virava o nariz para a hipótese de frequentá-la. Melhor o sacrifício
estoico do longo estio. Certamente, a fermentação hormonal era um tormento. Sempre havia sido.
Talvez o tormento físico mais inclemente, como sugeriu Albert
Tudo ou nada 195
38
Camus, em sua obra-prima, O estrangeiro, descrevendo o martírio de seu personagem na
prisão.
A questão-chave da privação da liberdade, o ponto de ebulição do sistema penitenciário, o X
do problema carcerário talvez fosse exatamente este: a extinção do sexo quando o corpo ferve ao
fogo alto da libido. Os homossexuais talvez sofram menos, porque para eles a relação sexual não é
suprimida pelo confinamento, ainda que as condições sejam deprimentes. Para os demais,
entretanto, o veto ao sexo é mortificante e, no fundo, irrealizável. A utopia puritana do isolamento
monacal, em que a renúncia à matéria sublima o fervilhar dos sentidos, encontra um paralelo no
presídio, com pelo menos quatro diferenças: o celibato é voluntário e equivale à crença de quem o
pratica; a castidade é um valor e será recompensada por Deus. Na prisão, a abstinência é
involuntária, contraria o sistema de crenças do sujeito, não representa uma virtude, mas uma
privação, e provavelmente expressa um castigo diabólico. Portanto, no ambiente religioso, mente e
instituição apontam suas baterias para o mesmo alvo e, mesmo assim, tropeçam na resistência do
desejo; no ambiente prisional, travam o combate de vida ou morte.
O desespero frequentemente fala a língua da justiça para que os sentimentos sejam de algum
modo comunicados. Por isso, os presos clamam por justiça, denunciam injustiças, reivindicam
direitos. O ódio latente busca tradução inteligível colando-se à figura da indignação — indignação
face às violações legais e morais de que são vítimas. Mas o que conta, de fato, o combustível que
movimenta as turbinas dos corpos mascados nas celas, é a libido ardente, que não se extingue nem
por um decreto. Esse é o chão do desassossego.
E o desejo inextirpável que reverbera nas paredes em ruínas do subsolo da 312a DP quando
os quinhentos homens jovens atacam-se, atracam-se, uivam e se arrebentam na porrada.
Matam-se.
O caldeirão vai entornar, Lukas pressente. Testosterona derramada a cinquenta graus é de
fácil combustão. Não se sabe quando, mas é inevitável. O tempo é uma contagem regressiva para o
apocalipse. Por isso, em toda cadeia brasileira que Lukas frequentou, os jovens se en- topem de
ansiolíticos e barbitúricos para apagar. Dormem o dia todo. A noite, cheiram todo o pó que
conseguem comprar, jogam carta e se
196 Luiz Eduardo Soares
acabam. Lukas e os mais velhos preferem apostar nos contraturnos para se preservar do coro
ensandecido e ensurdecedor da matilha, ao qual se unem as televisões ligadas no volume máximo.
Preferem dormir à noite. Suas pílulas, eles as tomam à noite. De um lado e de outro da faixa
indetectável que separa as fases da vida — esse equador etário que a gente só identifica quando já
passou —, ninguém segura a onda sem remédio. A população carcerária, mantida semimorta por
aparelhos institucionais, mantém-se semiviva por químicas industriais.
Respiração artificial. Ordem artificial. Explosão natural. A 312â DP vai pelos ares. Mais dia
menos dia.
Tudo ou nada 197
39
PENA DE MORTE
Um mês depois de Lukas, chegou o magricela meio débil e o engavetaram no porquinho,
bem em frente à cela de Lukas. Não falava com ninguém. A impressão que dava era de que não
tinha noção do lugar em que estava e que isso não lhe interessava. Fisgaram-lhe o punho e o
algemaram à grade. Apenas por um punho. Tinha a outra mão livre para coçar-se. Aliás, era seu
esporte predileto. Passou a manhã de pé. Sua diversão era coçar-se. Pelo menos naquelas horas que
passou diante de Lukas sem dar-se conta de que era observado por gente presa a poucos metros.
Não falava, não pedia comida, nem água. Urinou usando a mão solta. O jato fez uma elipse fora da
grade e alagou o corredor. Dois ou três companheiros de cela de Lukas reclamaram. Nem assim
lograram chamar a atenção do magrelo.
Por volta do meio-dia, meteram outro homem no porquinho. Em tudo, o inverso do primeiro.
Alto, robusto, peito largo, braços fortes, quase careca, falante, fez logo umas brincadeiras com os
vizinhos da cela em frente e com seu parceiro de gaiola, que o olhava de soslaio, desconfiado, sem
lhe dar resposta. Não emitia sons.
Não o algemaram porque seus punhos eram muito grossos. O encarregado não teve paciência
e deixou-o com as mãos livres, no poleiro.
As brincadeiras evoluíram para provocações jocosas, eivadas de hostilidade contra o
franzino. O gigante jactava-se, superior, entre- tendo-se com o jogo de gato e rato. Até que o
magricela encheu-se daquilo e o surrou como gente grande. Isso mesmo. Com seu único braço livre.
Bastou para nocautear o grandalhão, a despeito do ta-
Tudo ou nada 199
manho e da ausência de algemas. O ataque fulminante derrubou o fanfarrão e surpreendeu os
albergados na cela de Lukas. Por acaso, ele testemunhou o ataque sem crer no que via. Ele e o
cantor sertanejo. Os demais se entretinham dentro da cela. Com os gritos e a barulheira, correram
até a grade. Em seguida, chegaram dois policiais e dois faxinas. O provocador continuava
derrubado. O homenzinho franzino deixou-o quieto. A verdadeira superioridade é ética. Prescinde
da humilhação e dispensa o massacre. Bastava o nocaute. O sujeito beijou a lona. Caso encerrado.
Os faxinas e os policiais puxaram o nocauteado para fora do porquinho e o estenderam sobre
a poça de urina. O homem despertou enfurecido, bradando ameaças. Pelo visto, tratava-se de um
velho frequentador da casa. Havia ali certa intimidade. Chamaram-no pelo nome. Foi conduzido à
força, porque teimava em voltar. Prometia esmagar o magrelo como se faz com uma pulga.
O espetáculo do paspalhão arrastado sobre a urina do outro, blefando, era patético. Lukas
calou-se. Ninguém de sua cela manifestou- -se. Sabe-se lá.
À noite, Lukas ouviu abrirem e fecharem o porquinho. Correu à grade. O touro batido estava
de volta. Viera vingar-se. Puseram-no lá de novo sem algemas e ficaram do lado de fora para
assistir à vendetta. Uma rinha de galos. O mais forte talvez tenha pensado que venceria a revanche
contando com o esgotamento do oponente, que passara o dia em pé sem comer ou beber. Talvez
tenha calculado que a derrota fora consequência do fator surpresa: quem poderia supor que o pe-
quenino era forte e bem-treinado? Dessa vez, seria diferente.
Mal se alojou no armário gradeado que era o porquinho, partiu para cima do inimigo. Via-se
agora que as condições dificultavam os movimentos do grandão. Não havia espaço suficiente para
virar-se de frente e socá-lo com os dois punhos. Só podia fazê-lo com a perna direita e um dos
braços de cada vez. O magrelo se aproveitava de seu tamanho. Além disso, eram impressionantes a
força de seus golpes, a precisão e a agilidade. Em menos de dois minutos apagou o agres sor. Mas as
regras da luta eram muito peculiares na 312a DP: “Caso o preso aliado seja batido, cabe aos guardas
de plantão substituí-lo e abater o rival.”
Abusando do cassetete e algemando-lhe a outra mão com um esforço brutal, os dois guardas
dominaram o franzino campeão. Um
200 Luiz Eduardo Soares
deles travou-lhe as pernas; o outro submeteu-o numa gravata. No vocabulário das artes
marciais, dir-se-ia que os dois tencionavam finalizar o magrelo. Na cultura da prisão, o sentido era
acabar com o sujeito. Matá-lo.
E o mataram.
O guarda que o agarrou por trás aplicou-lhe o triângulo fatal com o braço direito, dobrando
sua força com o esquerdo até que o desmaio por falta de ventilação se transformasse em dano
irreversível e em falência geral dos órgãos por interrupção de fornecimento de oxigênio ao cérebro.
Lukas gritou. Avisou que o homenzinho já tinha desfalecido, que podiam largá-lo. Gritou
outra vez, a palidez ganhava um tom arroxeado. Gritou de novo:
— Você vai matar o cara. Não precisa. Larga. Larga o cara. Para com isso. O sujeito já
está apagado.
O guarda continuava apertando a garganta do homem por trás, indiferente à ladainha de
Lukas. O touro ferido levantara-se e ajudava, por fora das grades, os dois guardas a imobilizar o
magrelo.
Os sete companheiros de Lukas se acotovelaram nas grades. Três ou quatro endossaram o
pedido de clemência. Os demais assistiram calados. Lukas não se conformou:
— Ele vai morrer. Você tá matando o cara. Para com isso, caralho. Que merda é essa?
Para, rapaz.
O sertanejo dirigiu-se ao guarda que se agarrara às pernas do rapaz:
— Segura teu colega. Ele vai arrumar problema.
O touro vingado vituperou alguma coisa e calou o coliseu. Não adiantava mesmo continuar
implorando pela vida do rapaz. O magrelo já era. Para que provocar a onça com vara curta? Não
bastava a lição exibida no palco estreito do porquinho? Botaram a viola no saco, o cantor sertanejo,
Lukas e quem mais ousara opor-se à aplicação da lei da selva. Era o mesmo que barrar a lei da
gravidade. Uns incautos morreram tentando. Ninguém ali era idiota. Nem suicida.
Tudo ou nada 201
40
SILÊNCIO OBSEQUIOSO
As cenas seguintes giraram em torno da montagem de uma ficção crível que garantisse a
tranquilidade do delegado, dos policiais e dos faxinas, e dos presos aliados. Especialmente, que
preservasse a paz de espírito do touro ferido, que foi levado sangrando para a sala do plantão, onde
receberia atenção médica. Antes de morrer, o mudinho lhe quebrara um par de dentes e o nariz, lhe
deslocara a clavícula e tudo levava a crer que lhe quebrara o braço. O touro sangrava e rosnava
como o cão. O ódio nos olhos vermelhos era sintoma de que a vingança não o saciara. Talvez
preferisse que seu algoz não sucumbisse tão rápido, que padecesse antes de expirar. O
estrangulamento lhe terá parecido insípido. Que morte mais boba, pode ter pensado. Ou talvez
rosnasse de dor.
Pois esta foi a primeira morte violenta que Lukas presenciou em toda sua vida. Por isso,
nunca a esqueceria. Pareceu-lhe tão brutal. O choque ele sentiu quando se deu conta de que a vida
era aquele sopro.
O sopro. Só. Que se extingue assim.
Pareceu-lhe brutal o que, naquela morte, a tornava absurda: seu caráter aleatório, arbitrário,
e a força definitiva da contingência.
Contribuía para a perplexidade de Lukas a simplicidade de tudo. A naturalidade com que
trataram o fait accompli. A fluidez da rotina que prosseguia sem sobressaltos. A indiferença. A
perplexidade o puxou pelos cabelos até a beira de uma depressão avassaladora. Balançou, cai não
cai, quando a mãe apareceu para visitar o filho preso e saiu com a notícia de sua morte. O
estremecimento da mulher, o frenesi que a consumiu, o contraste entre o suplício da perda do filho
e a
Tudo ou nada 203
insignificância do crime, esse contraste não tinha nexo. Filtrada na linguagem meio policial
de delegado meio escolástica de bacharel, a tragédia virou suco. O assassinato virou pó como o
cadáver. Como o coração da mãe. E seu futuro agora sem o filho. Ele a sustentava? Seria ela viúva?
Ela teria outros filhos? O jornal popular foi o único a considerar a morte do magrelo uma
informação digna de figurar como notícia impressa. Estampou-a sem meios-tons, sem dúvidas:
preso tenta suicídio na delegacia e morre a caminho do hospital. Ponto final. História encerrada.
Homicídio de pobre em delegacia do subúrbio não merece mais do que isso. Nem uma dose mínima
de verossimilhança é necessária. O pobre assassinado pela polícia morre duas vezes: a segunda
quando culpam a vítima por sua morte. Com Vladimir Herzog foi assim na ditadura. Continuava
sendo assim na democracia. A diferença é que antes a selvageria do Estado atingia a classe média.
Lukas veio a saber depois que o estrangulador não era um policial, como ele havia suposto,
induzido pelo jeitão do matador, pelo vocabulário, pela autoridade com que decidiu liquidar o
franzino, pela liberdade com que circulava. Não era policial em termos. Fora policial, mas estava
preso, cumprindo pena por assassinato e perdera carteira e status. Formalmente, deixara de ser
policial. Contudo, uma coisa é a exoneração da polícia e a sentença prolatada pelo juiz, no
julgamento; outra, muito diferente, é o veredicto de seus pares e a realidade da vida, nos bastidores
do Brasil, ou melhor, nos bastidores das polícias brasileiras. Ou melhor: nos bastidores dos cárceres
das polícias brasileiras.
Plantado bem no fundo desses bastidores estava Lukas, a bandeira de sua perplexidade
desfraldada, pendurado sobre o despenhadeiro, às vezes mais pra lá do que pra cá.
Outros detalhes que descobriu tampouco ajudam a reverter a perplexidade e tonificar-lhe o
ânimo, ainda que corrigissem sua avaliação inicial. Houve, sim, turbulência e preocupação entre os
responsáveis pela delegacia. O delegado titular e os auxiliares se aborreceram. Sobretudo quem
respondia pelo plantão não ficou nem um pouco satisfeito com o crime. Entretanto, ao contrário do
que se poderia supor, os motivos nada tinham a ver com apreço à legalidade ou compaixão
humanitária. Os policiais se amolaram com os riscos e com a necessi
204 Luiz Eduardo Soares
dade de conceber uma historinha que lhes cobrisse a retaguarda. Por fim, saíram-se com a
medonha solução do suicídio, que despencaria ante a menor sacudida. Por isso, foi preciso calar a
boca da imprensa e aquietar o funcionário do IML, para evitar que o homicídio chegasse ao
conhecimento da corregedoria e respingasse na equipe da 312a DP Um questionamentozinho
minúsculo e a farsa seria desmascarada.
Lukas se revoltava com a hipocrisia institucionalizada e se perguntava sobre o nonsense de
outra situação que lhe concernia diretamente: que diabo ele estava fazendo na cadeia, se os policiais
podiam acobertar um assassinato, rasgando seus compromissos profissionais e se tornando
cúmplices de uma brutalidade covarde, sem perder salários, títulos e liberdade? O que era mais
grave: associar-se ao tráfico de substâncias psicoativas ilícitas, que eram comercializadas porque
havia demanda, isto é, havia gente disposta a comprar, ou estrangular um pobre coitado algemado?
Pior que amargar a insônia mascando a borracha da revolta, refra- tária à diluição na
paciência da saliva e à deglutição, era saber-se cúmplice da cumplicidade. Isso mesmo, Lukas
olhava para si no espelho imaginário da consciência e não pregava o olho: detestava sentir-se
pusilânime, omisso, paralisado pelo medo e pela impotência. Odiava sentir-se covarde, não obstante
estar suficientemente lúcido para compreender com clareza que seria ocioso denunciar os
criminosos e o esquema de cumplicidades, porque o bumerangue o atingiria em cheio na primeira
volta. Por que ele estava na cela cinco estrelas comendo a quentinha comprada na esquina e
dormindo numa cama razoavelmente decente, cagando em relativa privacidade e se banhando em
paz, recebendo visitas quando lhe conviesse, fumando seus cigarros, lendo seus jornais, escolhendo
os canais na TV? Porque comprava privilégios. Ora, sendo assim, por que enganar-se a si mesmo?
Sendo assim, era sócio do grande esquema imundo que dava forma ao submundo do cárcere. Era
sócio dos sócios do crime covarde contra o rapaz magrelo. Era sócio do matador. Participava do
esquema. Sua opção era envolver-se e lavar as mãos, em silêncio obsequioso e reverente, ou
mergulhar de cabeça na fossa intoxicante do subsolo.
A vontade de sobreviver impôs-se, gradualmente, devolvendo-lhe uma certa paz de espírito.
Não importava mais se o custo do apaziguamento e da aceitação de si era a aceitação do inaceitável
ao seu
Tudo ou nada 205
redor. A pulsão vital sobrepôs-se aos pruridos morais. Teve de dizer a si mesmo: às favas os
escrúpulos, como dissera em 13 de dezembro de 1968 o então ministro Jarbas Passarinho,
pronunciando-se a favor do Ato Institucional no 5 (o AI-5), que levaria a ditadura ao paroxismo, na
reunião do alto-comando do governo federal, no palácio Laranjeiras. Lukas jamais se esquecera
dessa frase. Quando a recordava, tomava-a como a demarcação de campos: até a sacanagem tem
limites. Posso sacrificar os escrúpulos, mas associar-se a quem vende pó e maconha para adultos
que querem comprar não chega aos pés do que fizeram os filhos da puta que dominaram o Brasil à
base de cacete e choque elétrico, censura e execuções covardes. O que é cheirar uma carreira de
cocaína comparado à carreira dos agentes da repressão política, que torturavam e estupravam a
serviço de suas ideologias babacas e dos interesses econômicos inconfessáveis?
Lukas jamais se interessou por política, mas nunca engoliu a tirania. Não só por ela ser o que
é e o que seu nome sinaliza, mas sobretudo por ter o desplante de negar, contra toda evidência, ser o
que é. Nada o ofende mais e mexe mais com seus brios do que a hipocrisia. Por isso, prefere que lhe
roubem a carteira com a pistola apontada para sua testa do que lhe passem a perna engatilhando o
taxímetro para dobrar o preço da corrida. Prefere que o déspota ouse chamar-se déspota e escravize
o povo sem pudor do que se esconda sob mentiras, censuras, eufemismos e covardia. Prefere um
ditador descarado, um Calígula, ao opressor que se fantasia com o discurso da salvação, da virtude,
do bem, do belo e do justo, da moralidade e da verdade.
De si mesmo, falava sem pejo, assumindo substantivos, verbos e adjetivos: associou-se a
traficantes internacionais de drogas ilícitas. Essa rede transnacional recorria à violência? Sim.
Lukas aprovava a violência? Não. Mas sabia que ela era perpetrada? Claro que sim. Tolerou-a, ou
melhor, fingiu para si mesmo que ela não existia porque lhe interessavam os ganhos rápidos que fez
e, principalmente, ansiava pelos que faria? Isso mesmo. Desejava sair desse rolo logo e
definitivamente. Planejava abandonar o barco assim que fizesse um pé-de-meia. Viveria de renda e
se aposentaria. E a merda que rondava o tráfico voltaria ao passado e seria sepultada de vez. Lukas
respiraria o ar puro. O sangue que nunca viu, cujo cheiro não sentiu, mas que pairava, corria,
manchava, o sangue seria exorcizado. E a pági-
206 Luiz Eduardo Soares
na da vida seria virada para sempre. Entretanto, foi pego no contra- pé. Preso, o passado
grudou-se em sua biografia irremediavelmente, curvando-lhe o corpo e o espírito, roubando-lhe
anos e anos e anos. A droga não o assustava, ainda que a dependência, sim, lhe tivesse quase
custado a sanidade mental e a vida. Mas a droga, não. Nunca entendeu por que o álcool e o cigarro
são legais e as outras são ilícitas. Todas matam. Seria a criminalização o melhor modo de lidar com
desejos humanos perigosos? A história do álcool e do próprio tabaco e da nicotina prova que não.
Até porque não tem jeito: quanto mais se sofisticarem os meios de repressão, quanto mais se gastar
na guerra às drogas, mais o tráfico se tornará valioso e atraente, uma vez que não faltam demanda e
produção. Por isso, a política de controle é o desastre conhecido.
Tudo ou nada 207
LARÁPIOS DE FOLHETIM E OS CAMPEÕES DA MORALIDADE
Quando pensava essas coisas, Lukas sabia que tinha de ter cuidado, porque se equilibrava
no fio da navalha, balançando entre um argumento perfeitamente defensável, que lhe parecia
racional e legítimo, e a justificação autocomplacente que talvez lhe servisse para aplacar a culpa,
mas era antes um expediente psicológico do que um raciocínio objetivo. Ele sabia que não lhe faria
bem a autoindulgência. Não o levaria a parte alguma. Só o afastaria da realidade, inclusive e em
especial de sua realidade interior. E em matéria de fuga ele era um expert. O que mais lhe causava
mal-estar era sua cumplicidade com a violência. O incômodo era enorme, do tamanho de sua
consciência. Ele sabia que por mais que se metesse em labirintos mentais, desviando do assunto,
por mais que se esforçasse em esquecer ou em borrar esse vínculo, o vínculo era inamovível: havia
sido sócio da violência, fez parte de sua corrente, aceitou conviver com sua prática, ainda que a
distância. Sempre que lhe ocorria essa conclusão, despencava num buraco sem fundo. Saía dele
escalando as paredes com as unhas. Não era o melhor modo de sair. Mas era o único disponível.
Escalar as paredes, arrebentando os dedos, era vencer a culpa, contra- -argumentando, defendendo-
se da autocrítica, racionalizando o que fizera, culpando terceiros, apontando o dedo contra, por
exemplo, o imperialismo britânico, que matou centenas de milhares de pessoas em guerras
coloniais e racistas, ou o imperialismo norte-americano, que matou ainda mais em golpes de
Estado selvagens, ilegais, criminosos, como o do Chile, com Pinochet. E os beneficiários de toda
essa carnificina? Os grandes capitalistas europeus, ingleses, americanos?
Tudo ou nada 209
41
Foram presos e condenados por associação ao tráfico de capital ao preço da vida humana,
em escala industrial? Os golpes, as guerras imperiais e coloniais serviram a propósitos políticos, os
quais, por sua vez, atenderam a interesses econômicos? Os beneficiários foram classificados como
cúmplices da violência, sócios da barbárie? Amargaram a humilhação e o tratamento desumano?
Foram objeto do desprezo institucionalizado, cujo título é prisão? Perderam o tesouro acumulado na
sucessão de butins? Roubaram-lhes o que lhes restava de vida? Não lhe fazia bem, mas Lukas
sussurrava entredentes para ninguém:
— Ah!, caralho, quanta hipocrisia, quanta mentira travestida de boas intenções e belas
palavras. Quanto teatro! Que farsa imensa, imensa, imensa.
Se lhe vinha ao espírito o ataque típico dos moralistas que não enxergam um palmo além do
nariz, nem sequer desconfiam de que são personagens de uma história cujo roteiro ignoram, Lukas
perdia as estribeiras, no diálogo consigo mesmo:
— Tudo bem, as drogas podem destruir vidas humanas, não só pela violência envolvida
no tráfico, mas porque provocam dependência. Concordo. Por outro lado, o que dizer da indústria
de armas e do comércio legal de armas? O que dizer dos escândalos da indústria farmacêutica,
servindo-se de cobaias humanas na África? O que dizer dos governos americanos que injetaram
vírus e bactérias mortais em dezenas de milhares de latino-americanos e afro-americanos, ao longo
de décadas, para estudar os efeitos das doenças, as reações do corpo, as mutilações, as dores
lancinantes e o processo da morte? Qual a diferença das experiências que os médicos nazistas
faziam? Por acaso, algum cidadão medianamente sensato consideraria mais grave, mais abjeto, mais
brutal e injustificável o comércio ilegal da droga ilícita para consumo voluntário de quem paga para
consumi-la? No entanto, aqui estou eu, na 312a DP ao lado do cantor sertanejo e de larápios de
folhetim, enquanto os perpetradores desses crimes monstruosos e seus sócios tornaram-se
dignitários e deram nome a ruas e monumentos.
Não era bom. Ele sabia que não era nada bom desperdiçar energias nesse duelo subjetivo
entre o Lukas autocrítico e o Lukas autocom- placente. Sabia que o motivador do circuito era a
culpa e, por isso, não
210 Luiz Eduardo Soares
chegaria a nenhum lugar construtivo e saudável que lhe devolvesse a paz perdida. Intuía que
a culpa não era consequência, mas causa e má conselheira; causa de ações destrutivas ou
autodestrutivas. Ainda que tivesse sido no passado consequência de outra causa mais profunda. Mas
esta lhe escapava. Havia, provavelmente, uma culpa originária, instalada em seu espírito, anterior a
qualquer erro que tenha cometido. Talvez os erros tenham sido apenas um esforço de obter punição
para a culpa já existente por pecados que desconhecia. Enfim, matéria bruta para psicanalistas e
escritores. O melhor que ele teria a fazer era descer do ônibus rápido, antes que ele capotasse,
desgovernado.
Lukas respirava, nessas horas, respirava, enchia os pulmões de enxofre com sabão de coco, e
de nicotina, pois ninguém é de ferro, e se juntava ao parceiro de cela num dueto cafona.
Tudo ou nada 211
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A BRICOLAGEM INCANDESCENTE DE PATOLOGIAS
Em agosto, Lukas foi transferido para a penitenciária Plácido de Sá Carvalho em Bangu.
Perdeu as regalias que comprara na delegacia; em compensação, entrando, finalmente, no sistema
penitenciário, credenciava-se a sair dele, mais cedo ou mais tarde. Um preso expe riente um dia lhe
ensinara:
— Para sair do sistema, primeiro você tem de entrar.
Não lamentou as perdas; sabia que o passo era importante. Indiretamente, era positivo, ainda
que as condições materiais piorassem. De fato, pioraram muito. Passou a dividir um galpão bem
grande com sessenta presos. Era a cela dos idosos. Ambiente infinitamente mais tranquilo do que
lhe proporcionariam as alternativas. Havia outras três seções, cada qual formada por uma ou várias
celas. As unidades eram separadas. Uma delas reunia a galera marcada para morrer. Eram os presos
ameaçados pelo Comando Vermelho que tinham sido expulsos da facção. Na Plácido, não havia
membros do CV. Outra abrigava exclusivamente ex-policiais e milicianos. A terceira destina va-se à
ralé jovem.
Lukas aninhou-se junto à parede, refluiu para o espaço mais modesto e menos visível.
Sentia-se mais seguro não sendo notado. Pelo menos até aprender as regras do jogo. As regras
mudavam conforme o número de pessoas, os tipos predominantes, a fase em que se encontravam no
cumprimento de suas respectivas penas, as lideranças que naturalmente se afirmavam, as relações
com os faxinas, os guardas e a administração. Até a estação do ano fazia diferença — ainda que em
matéria de temperatura, as distinções fossem sutis em Bangu, onde o calor escaldante era e é uma
constante.
Tudo ou nada 213
A vantagem da Plácido de Sá Carvalho era sua posição estratégica no organograma
governamental: seu papel era despejar presos na rua, gradual e parcialmente, repassando-os às
unidades responsáveis pela aplicação do regime semiaberto e aberto. Dali, portanto, se passava ao
regime semiaberto. Era a última tranca para a maioria. Alguns, inclusive, já saíam para trabalhar
durante o dia, isto é, já usufruíam a semiliberdade, ainda que esses fossem apenas uma minoria,
porque a função da unidade não era abrigar prisioneiros nesse estágio. De todo modo, o astral já era
outro. Os astros ali estavam regidos pela expectativa da liberdade. Isso, sim, acima de tudo, fazia
toda a diferença.
Os sessenta coroas — na linguagem dos faxinas — dispunham de dois vasos sanitários, dois
chuveiros e um tanque. Cada um fazia seu próprio fogareiro com fio do chuveiro elétrico e um
tijolo quebrado. Quem podia contratava presos mais pobres como cozinheiros. A opção eram as
quentinhas fornecidas pela casa. A lei da ala dos coroas era rígida: as luzes se apagavam às dez
horas da noite. Os velhinhos precisavam dormir. Nas demais alas, imperava a zorra indomesti-
cável. Como sempre, revolta, desamparo e hormônios em ebulição. Como sempre, superpopulação e
um calor dos infernos. Como sempre, ratos, suor e merda, e a bricolagem fumegante de patologias.
Lukas aos poucos entrosou-se. Deram-lhe um cantinho melhor, depois uma cama num
beliche, e assim descobriu que o desafio maior seriam os animaizinhos que atacavam sobretudo no
fim da tarde e à noite: percevejos, insetos, pulgas, as pragas rastejantes e os roedores. Em resumo: a
enciclopédia de perversões da natureza. Doenças de pele eram inevitáveis. A questão era como
melhor conviver com elas, e as coceiras, e mantê-las sob relativo controle naquela estufa de micro-
organismos que odeiam a espécie humana. As coceiras enlouqueciam. As coceiras eram
autossuficientes, porque induziam respostas automáticas que arranhavam a pele, ampliando a
extensão das alergias. A tal ponto as coceiras afligiam os presos que já não era possível distinguir
se havia mesmo bichos correndo pelas costas, braços, nuca, pernas, axilas e virilhas ou se era o
corpo que atazanava seu portador, a má alma que nele encarnara e que agora merecia o martírio.
Parte do desespero estava aí: longamente provocado, o corpo ren- dia-se e passava a
mimetizar os ataques inimigos, atacando-se sem
214 Luiz Eduardo Soares
interferência externa. A sensação era exatamente igual, houvesse ou não carrapato ou
escorpião, barata ou pulga, aranha ou percevejo, desfilando sobre a pele do hospedeiro. Na dúvida,
Lukas lanhava as costas com as unhas. Arranhava pernas e braços e virilha até tirar sangue. Melhor
cortar-se do que resignar-se às picadas.
Quem olha de fora não imagina que o tormento seja tão pequeno, e que um tormento assim
pequeno desespere, e que o desespero assuma proporções gigantescas, e que essa conversão do
micro no macro, da parte no todo, se inscreva na superfície do corpo — como a debochar da
metafísica das profundidades. Nos seres humanos a alma é epidérmica. Por isso a conversa sobre o
aumento do tempo de prisão pode ser mais leviana do que a convicção dos interlocutores nos faria
crer. Um ano? Não, pense em 365 dias. Mais precisamente: pense em 24 horas, 365 vezes. Para ser
exato: imagine 60 minutos 24 vezes e repita 365 vezes a operação mental. Ou: mergulhe no minuto,
desdobre as voltas dos pequenos animais em 60 círculos ou elipses e parábolas nos dedos dos pés,
na sola, entre os dedos, sob as unhas, subindo ao tornozelo, enquanto a centopeia espreguiça em sua
coxa e um comando de traças faz rapel em sua nuca. Agora, sim, mais aler ta, mais sensível, aplique
os cinco sentidos à inteligência e pondere. Pondere. Espere. Ainda uma vez. Pondere antes de
opinar. Antes de precipitar-se em arbitrar anos para lá e para cá. O tempo nos devora na vertical.
Contá-lo é um artifício inepto. Essencialmente, mistifi- cador. Aposente a nobreza das ideias e dos
ideais. A realidade é a superfície. Na pele, a pena é eterna. O flagelo mal se vê.
E havia o outro lado: o paraíso. Ou quase. Ele o tomou sem meios- -tons como a benção
divina quando conheceu o pátio da prisão. A fazendinha. O diretor criava cabras, patos, galinhas e
porcos. Vira- -latas supervisionavam o estabelecimento rural. O simulacro de sí tio ocupava o centro
de um pequeno vale e se esticava até o aclive bem-capinado — e ornado de pontos verdes — no
morro baixo que emoldurava os prédios da unidade. Maravilha. Bicho, pasto, cheiro de mato. Lukas
encantou-se. Na lateral, a roça com legumes e verduras. Depois de tantos anos cercado de aço, no
frio inóspito da Inglaterra, onde alguns raríssimos deslocamentos lhe permitiam o vislumbre de
paisagens austeras, aquele recanto acolhedor em Bangu era sublime. Lukas estava nas alturas.
Suportava melhor as condições do cárcere
Tudo ou nada 215
durante as noites, porque antecipava o passeio matutino pelas trilhas daquela versão idílica
do Brasil. É verdade que o esgoto a céu aberto corria do outro lado, no interior dos domínios da
unidade. Não importava. Afinal, nada é perfeito. Nem fora da prisão.
216 Luiz Eduardo Soares
43
ARMADILHA, MORTALHA E GLADIADORES
Em sua primeira penitenciária brasileira, Lukas viu muita coisa. Duas grampearam sua
memória e não desgrudam.
Passava pela galeria que desembocava no pátio.
Alguns presos estavam parados no umbral. Não era comum — entravam ou saíam, parados
ali não costumavam ficar.
Lukas cruzou com eles e entrou no pátio. Observou que outros presos foram chegando e se
agrupando junto à saída, onde os corredores que vinham das galerias se encontravam, formando
uma espécie de átrio bastante largo.
Ele voltava da caminhada e o pessoal não arredara pé. Intuiu que alguma coisa estranha
estava para acontecer. Apertou o passo para cruzar logo o átrio e retornar à cela — na tribo dos
coroas estaria seguro. Justamente quando se aproximava do umbral, um preso, depois outro e logo
um terceiro jogaram lençóis sobre o preso que andava quase ao lado de Lukas. Foi a senha para que
o grupo que se reunira naquele espaço saltasse sobre o homem coberto por lençóis como cães
hidrófobos. A presa enrodilhou-se nos panos e emitiu o ronco do animal que antecipa o abate.
Estiletes em punho, os caçadores sangraram a vítima por todos os ângulos. Espetaram toda a
superfície que se movia — onde os panos ondulavam, exibindo contornos do corpo —, até que o
relevo cedeu e estacou. Os lençóis rasgados, embutidos na massa orgânica, empapados, vermelhos,
eram armadilha e mortalha. O cadáver verteu todo o sangue antes que os guardas apa recessem —
dóceis, nenhuma surpresa. O acerto dos caçadores com os representantes da instituição era evidente.
O corpo foi removido.
Tudo ou nada 217
Lukas virou a cara. Mesmo assim, nunca se livrou da cena. Jamais conseguiu neutralizar os
uivos da matilha amotinada, apunhalando o homem até fatiá-lo em nacos de carne.
Arrastou os setenta quilos de sua própria matéria até a cela e tombou na cama, banhado num
oceano de suor resistente a água e sabão. Tremeu de febre o dia inteiro. Não dormiu à noite. Tentou
lembrar-se do rosto da vítima. Ele o viu antes que o despedaçassem. Não conseguiu recuperar o
rosto do homem. Melhor assim.
Testemunhara a segunda morte em poucos meses de Brasil, em poucos meses enfurnado nas
prisões brasileiras.
Algumas semanas depois, assistiu a um combate romano. Dois gladiadores descalços no
confronto de vida e morte, em Bangu. Coisa de cinema, não fossem os apetrechos de que se
serviram os guerreiros: em vez de escudo, bueiro, tampa de bueiro; no lugar da espada, vergalhão.
Branca, branca, branca; leon, leon, leon: a armada de Brancaleone, em pleno século XXI.
Xingaram-se, encresparam-se, ameaçaram-se, amaldiçoaram-se. Esgotadas as preliminares,
estavam excitados o bastante para matar ou morrer.
O menor dos dois era baixo e forte, mas infinitamente menos forte do que o sujeito que
vibrava o vergalhão no ar com as duas mãos como um açoite mitológico. A iniciativa coubera ao
maior. Lukas preparou-se para uma carnificina, mas o outro esquivou-se e puxou do chão a tampa
de um bueiro. Desprendê-la parecia impossível. Tendo- -o feito, levantá-la era improvável. Erguida
contra o vergalhão, movê- -la de um lado para outro em velocidade seria impraticável. O toco de
amarrar onça, apelido do rapaz, fez tudo isso. E fez com que tudo isso parecesse fácil.
Digladiaram até que as forças se exaurissem. Estafaram-se ao mesmo tempo, abaixaram em
sintonia as armas, arfaram em uníssono, afastaram-se um do outro xingando, ameaçando,
amaldiçoando.
A luta que prometia descambar para um açougue depravado regrediu para o acordo tácito,
celebrado sob as mútuas agressões verbais. Restringiriam a guerra às agressões verbais. A
correlação de forças estabeleceu o equilíbrio tenso que dissuadiu hostilidades físicas uni laterais.
218 Luiz Eduardo Soares
Ninguém se feriu. Lukas saiu pasmo e com a interpretação benigna: nenhum dos dois se
machucou. No dia seguinte, cruzou com um e com outro. As mãos de ambos estavam inchadas,
roxas, os punhos e os braços cobertos de hematomas. Caminhavam protegidos por asseclas.
Mantinham o olhar injetado e vago do transe da véspera. O ápice do uso dos próprios recursos
mobilizara químicas naturais que os intoxicaram com descargas excepcionais de adrenalina.
Conexões neuronais provocadas pela iminência da morte desligaram seus navegadores usuais e
produziram estados alterados de consciência. O circuito permanecia imantado 24 horas depois. Os
caras trafegavam em um mundo possível paralelo. Circulavam noutra dimensão.
Lukas descrevia a situação nesses termos. Seu momento ficção científica. Concebeu a teoria
e logo a desmontou com o riso sardónico: de certo foi ele que viajou.
A crônica do semestre em Bangu gira em torno de seis eixos: a solidão voluntária; as pragas
invisíveis; o festim sanguinário dos lençóis; a batalha dos gladiadores de bueiro e vergalhão; a
ordem pacífica na cela dos coroas; e a expectativa suscitada pela última tranca, que Lukas digeriu
com ansiosa paciência ou com paciente ansiedade, seja lá o que isso signifique.
A contagem regressiva inclinava cada plano e refratava o sentido de cada circunstância.
Imperava o ponto de vista da esperança que infundia em tudo um frescor de fonte.
O futuro ia tomando forma na medida em que as horas rolavam. Lukas planejou o primeiro
dia no Rio de Janeiro. Em liberdade. Pelo menos das sete da manhã às sete da noite. Doze horas.
Era o que o regime semiaberto permitia. Meio dia, todo dia. Não era tudo, mas era muito. Bastaria
para beijar a filha, a mãe, ligar para o filho na França, correr para o Arpoador e aspirar a maresia de
cara para o sol. Mergulhar no mar do Arpoador. Andar na beira da praia até o Leblon. Rever a
amiga que lhe escreveu, quem sabe? Tomar água de coco e mergulhar n’água fria do Leblon. Abrir
os braços no meio do mar, o rosto voltado para as ilhas. Espreitar entre as pálpebras semicerradas o
sol cravejado de cristais de sal. Molhar a boca. Encher a boca d’água. Verter a espuma. Bater os
braços como toda criança. Fazer barulho como qualquer criança. Chorar feito criança. Ninguém por
perto. Nenhuma vergonha. Sem culpa.
Tudo ou nada 219
Era preciso gastar as solas dos sapatos no passo ancestral da pena para começar a vida nova
com os pés no chão.
O futuro ia tomando forma na medida em que as horas rolavam.
No dia 30 de dezembro de 2006, às quatro horas da tarde, foi transferido para o Instituto
Penal Cândido Mendes, onde ficavam os presos cumprindo pena em regime semiaberto. Na
primeira terça- -feira de 2007, saiu para seu primeiro dia de semiliberdade no Rio de Janeiro. O
júbilo foi logo frustrado quando descobriu que, tanto quanto para os internos, o tempo é caprichoso
para os que vivem cá fora. Em nenhum caso, é linear. Medi-lo engana, ilude. A partir do meio-dia,
sua curvatura vai se achatando, progressivamente, diluindo a espessura das primeiras horas da
manhã, porque pesam sobre seu curso os intervalos cada vez menores e mais tensos — pois, aqui,
menos é mais: mais tensão, urgência, alarme, mais expectativa. Não sendo tolerado o atraso no
retorno, é necessário planejar com precisão a volta. A que horas tomar qual ônibus? Como lidar
com a impre- visibilidade do trânsito? As três da tarde, faltam quatro horas para a entrada na
unidade; às quatro, faltam três. E já não há paz quando o avesso da liberdade se infiltra nos poros
das horas.
220 Luiz Eduardo Soares
44
UMA CARTA MUDOU SEU DESTINO
Quatro anos depois, em 2010, depois de passar ao regime semiaberto e após o período de
liberdade condicional, a pena de Lukas foi declarada extinta. Ele voltou a ser um homem livre,
talvez mais livre do que antes, tendo aprendido a revalorizar o significado desta palavra, liberdade.
Quando recebeu de seu advogado o documento que lhe garantia a alforria, leu-o com dupla
emoção: os olhos postos no futuro e o coração ainda conectado ao passado. Abrindo o envelope
timbrado, lembrou-se de outro, mais simples, amarfanhado, que lhe trazia notícias do Brasil, em um
tempo no qual, sem que ele se desse conta, as cartas de seu destino estavam sendo jogadas. Sem que
ele tivesse plena consciência, aquele capítulo de sua vida seria decisivo.
A carta que Lukas recebeu no Caribe, mais de vinte anos antes da extinção da pena, abalou-o
profundamente. Um velho amigo, amigo de vida inteira, recomendou-lhe que voltasse de imediato.
Sua ex-mulher não estava bem de saúde, não andava com a cabeça no lugar, não parecia em
condições de cuidar da filha ainda criança. Esforçava-se, mas não conseguia. Tinha voltado para o
Rio de Janeiro com a parcela do dinheiro que lhe coubera pela venda das terras no Pantanal. A
dependência química se aprofundara e ampliara o cardápio de tentações. Além de sua antiga
compulsão alcoólica, a cocaína entrara em sua vida com força total e devastadora. Graças ao
temperamento alegre e hospitaleiro, ela tinha o costume de abrir a casa aos amigos. Os visitantes se
aproveitavam da gentileza festiva da anfitriã e tomavam a liberdade de estender a hospitalidade a
terceiros, convidando seus
Tudo ou nada 221
próprios amigos e conhecidos, alguns dos quais oportunistas mal- -intencionados. A
sociabilidade franca e generosa, porém privada de consciência crítica pelo alcoolismo, expunha a
casa aos mais diversos riscos. Nessas ocasiões, a menina ficava vulnerável. Ninguém poderia
garantir que não houvesse no grupo um ou outro intruso, nem que entre esses desconhecidos
houvesse algum perverso, disposto a tudo quando turbinado pelo pó e perturbado pelo álcool. Na
ausência de quem lhe impusesse limites, do que ele não seria capaz? A filha de Lukas estava
exposta.
Ele próprio — autor da carta — se intrometera numa daquelas noites intermináveis para
evitar a tragédia. Botou o filho da puta para fora, representando o pai, representando Lukas. Deu-
lhe uma surra antes que tocasse a menina — era óbvia a intenção, tendo aberto a porta do quarto da
criança, quarto que o intruso sabia a quem pertencia, quarto em que dormia a filha da dona da casa.
E havia mais detalhes desprimorosos a confirmar a pretensão do cafajeste.
Não chamou a polícia porque as consequências seriam ainda mais desastrosas do que
simplesmente deixar o boçal depravado seguir seu caminho. Isso mesmo, mais desastrosas: alguns
convidados poderiam ser presos em flagrante por consumo de substâncias ilícitas. E a provisão
sendo farta, haveria ainda o risco de que alguém tivesse de responder por tráfico de drogas.
Certo ou errado, o fato é que não chamou a polícia. Deu umas porradas no safado e o jogou
no olho da rua.
Que Lukas se acalmasse: nada tinha acontecido. Absolutamente, nada. Sua filhinha sequer
despertara. Mas que viesse logo. A menina precisava do pai. A ex-esposa merecia cuidados
especiais. Cuidados médicos. Não lhe faltava amor pela filha, nem senso de responsabili dade. Em
seu coração, em suas intenções, nunca deixara de ser a melhor das mães. Era a si mesma que não
estava conseguindo devotar o cuidado necessário para que se credenciasse a canalizar esse amor por
meios mais adequados. O obstáculo lhe escapava ao controle. Removê-lo superava suas forças. A
dependência química não é uma impostura, fraqueza de caráter ou deficiência moral. É uma doença.
Lukas pensou em pegar o primeiro avião. Perdeu as estribeiras. Procurou um telefone
público, ligou para o amigo que lhe escrevera, abriu o coração, destemperou-se e implorou que o
parceiro não
222 Luiz Eduardo Soares
desgrudasse da ex-mulher e da filha enquanto ele não chegasse, e prometeu embarcar no
primeiro voo para o Rio.
O velho parceiro tranquilizou-o. Voltasse, sim, mas não era necessário largar tudo à deriva,
o barco, os compromissos eventualmente assumidos no Caribe, a vida organizada, pondo em risco o
único patrimônio que lhe restara, o veleiro, e a estabilidade do novo casamento. Ele tomaria conta
da menina. Daria um jeito. Envolveria a mãe de Lukas e a tia da menina. Enfim, montaria uma
estrutura provisória que garantisse a segurança da criança.
Lukas comprometeu-se a providenciar de imediato a venda do barco. Passaria a preparar o
retorno naquele mesmo dia. A venda poderia demorar. Ele não tinha como prever. Mas se
apressaria. E manteriam contato regular. Se o esquema provisório não funcionasse, mandaria o
veleiro à merda e embarcaria para o Brasil. A esposa o acompanharia. Era parceira. Compartilhava
com ele o desespero que o tomara de assalto com aquelas notícias chocantes. Malucas. Absurdas.
Miami. Lukas correu de volta para o veleiro onde deixara a mulher. Iriam para Miami já —
em nenhum outro lugar se venderia um veleiro mais depressa por um preço honesto. Contou-lhe aos
tropeços o que prometera fazer, o que julgava imprescindível fazer, o que considerava sua
obrigação fazer. Como pai. Como homem. Se não fosse sua filha, se fosse qualquer outra criança, a
revolta seria a mesma, deveria ser a mesma. Um filho da puta desses não merece viver. Ain da que
nada tivesse ocorrido, alguma coisa poderia ter ocorrido. De fato, quase ocorreu. E ele não estava.
Não estava ao lado da filha para encher o pervertido de cacete, jogar o bandido pela janela, linchar
o estuprador pedófilo.
Lukas descontrolou-se. Ódio do canalha. Ódio de si. Culpa. Que vida levava? Que vida o
levara para longe da filha, joia de sua vida? A mulher nunca o havia visto daquele jeito. Não disse
quase nada. Entendeu. Abraçou o marido bem forte. Iriam para Miami já.
Ficaram ali abraçados.
Três dias depois, tudo arranjado, despediram-se da comunidade de amigos, pagaram contas
penduradas, encheram a despensa do barco e contrataram dois inglesinhos para acompanhá-los a
bordo — apesar de jovens, eram navegadores razoavelmente experientes. Os contatos em Miami
lhes ofereceram um atracadouro e uma casa à beira-mar
Tudo ou nada 223
por um aluguel excelente. Dispuseram-se a divulgar nos círculos de compradores potenciais
as virtudes do veleiro. Tudo dando certo, quando atracassem o barco no litoral norte-americano, ele
já estaria negociado. Voariam para o Brasil com o dinheiro no bolso.
O plano foi suspenso em cima da hora, porque voltaram a chegar notícias desencontradas e
ambíguas do Rio de Janeiro. O quadro voltara a ser preocupante. Marguerite se prontificou a
antecipar o retorno e descobrir, in loco, o que, de fato, estava acontecendo, qual a gravidade da
situação e, inclusive, no limite, se havia necessidade de que Lukas deixasse o veleiro e embarcasse
no primeiro voo. Miami aguardaria mais uma semana ou duas.
O diagnóstico menos passional era tranquilizador. Mesmo assim, Marguerite preferiu
permanecer no Brasil e preparar a volta definitiva do casal. A escolha de um apartamento para
alugar não seria fácil. Ambos haviam se transformado em bichos do mato e do mar. Baru lho,
poluição, densidade demográfica, horizonte bloqueado por paredes de concreto, Lukas não
suportava nada disso, tanto que hibernara no Pantanal ao fim da primeira temporada no mar, nos
últimos anos em que estivera casado com sua segunda esposa, mãe de sua filha.
A reação de Marguerite não era diferente: o cenário urbano lhe parecia intolerável. Onde
localizar, por um preço acessível, uma sucursal de Saint Barths na metrópole brasileira?
A rotina da enteada se normalizara tão segura e rapidamente que o casal se convenceu,
pagando contas altíssimas pelos intermináveis telefonemas internacionais, que nem sequer seria
preciso morar no Rio. Por que não algum lugar doce, verde e quieto no litoral da Bahia?
Lukas respirou aliviado e animou-se a retomar os planos adiados. Mais que isso: já que
estava provisoriamente solteiro, convidou uma amiga do casal a acompanhá-lo até Miami.
Mercedes era uruguaia, mas vivera no Brasil antes de aventurar-se mundo afora. Tinha saudades da
experiência carioca e não perdia oportunidade de treinar o português no veleiro de Lukas e
Marguerite, compartilhando um baseado nos fins de tarde. Sonhava com uma vida nova nos Estados
Unidos. Tinha esgotado o ciclo hippie, dizia. Cansara-se da confecção que lhe rendia menos do que
esperava, em Saint Barths. E temia a facilidade de acesso às drogas de que desfrutava. Achava que
estava na hora de botar um ponto final em seu tesão por pó. Sabia
224 Luiz Eduardo Soares
que estava brincando com fogo e que as chamas já se alastravam, prenunciando o incêndio.
Aceitou o convite de Lukas porque o tesão era extensivo a ele. Além disso, seria um modo
festivo de dizer adeus à era caribenha, celebrando o fim da fase dionisíaca de sua vida. Claro, havia
a motivação utilitária: tratava-se de um meio razoavelmente seguro de driblar o controle da
migração. E o motivo mais óbvio: Mercedes não precisava de motivos. Afinal de contas, ninguém é
de ferro.
Tudo ou nada 225
45
QUANDO A VIDA ERA UMA VIAGEM
Lukas e Mercedes navegaram na companhia dos inglesinhos, dos mantimentos, do
combustível e de um quilo de cocaína para consumo próprio. O que sobrasse financiaria o aluguel, a
passagem de volta ao Brasil em primeira classe, a estada em Miami e o estipêndio acertado com os
dois jovens marujos. O resto, se houvesse resto, ele daria aos amigos da Flórida. O mimo
compensaria a generosidade. A turma estava sendo muito prestativa. Merecia um agradecimento
simbólico.
A relação de Lukas com a cocaína era recente. Os anos dourados da circum-navegação
tinham sido tempos de paz e amor, sem lugar para estimulantes. Nem álcool nem pó. Nem
compromissos. Por isso a escolha do veleiro e dos oceanos como modo de vida. Nada no bolso ou
nas mãos. Renúncia à instituição financeira, à grana como um fim em si mesmo, à profissão, à
propriedade, à gravata, às instituições, ao formalismo. Reinavam a maconha e o haxixe, absolutos.
Ervas angelicais. Repasto vegetal para abluções contemplativas. Relax. Sem estresse. Coca era
careta: a droga do engajamento, da ligação, do frenesi competitivo. O pó brochava; a maconha
fluidificava o prazer e o exponenciava.
Além disso, a cocaína era inseparável da imagem de cartéis abarrotados de dinheiro e armas.
O verdadeiro capitalismo selvagem. Pó sempre esteve associado a dependência. Dependência
sempre esteve associada a escravidão e sofrimento, o oposto da liberdade evocada pela maconha e
pelo haxixe, os quais, por sua vez, eram vistos como chaves para o crescimento pessoal e a
harmonia cósmica. Chaves que abririam as portas da percepção, expandindo a consciência.
Tudo ou nada 227
Viagem não era a experiência de fumar a marijuana, diriam os críticos. Viagem eram as
filosofias nativas dos usuários porras-loucas, alienados, místicos alternativos, anarquistas
românticos, para os quais tudo era um barato. De toda forma, não se poderia atribuir às tribos
hippies e neo-hippies o apreço pela violência ou a apologia a práticas violentas. Menos ainda
quando recorriam aos cogumelos, à psilocibina e ao ácido lisérgico, cujos efeitos eram transes
solipsistas, em cujo processo o viajante visitava mundos de sonho ou de pesadelo, mas sempre em
postura autorreferida, passiva e receptiva. Os arautos da era de Aquário resumiam sua pregação ao
lema paz & amor. Justamente por isso a cultura psicodélica irritava os militantes de esquerda,
adeptos de movimentos sociais, lutas sindicais, protestos de massa, insurreições armadas e
revoluções.
Os que puseram o pé na estrada desde os anos 1950 apoiavam as lutas pelos direitos civis
dos negros, dos deserdados da terra e das mulheres, mas eram sobretudo pacifistas. Opunham-se ao
american way of life; ao consumismo que virou religião laica nos países desenvolvidos, depois da
Segunda Grande Guerra; às hipocrisias da classe média; à Guerra Fria; à vontade de poder que
movia o mundo material e seus conflitos sangrentos; ao capitalismo idólatra do lucro e ao
comunismo estadista e repressor.
Se não eram exatamente individualistas, no sentido liberal do termo, cultuavam o
desenvolvimento pessoal, nos planos da mente e do espírito, nas dimensões do corpo e da existência
emocional. O aperfeiçoamento da vida coletiva adviria do crescimento individual, que não
prescindiria da fidelidade à natureza, em especial à natureza humana — fidelidade cuja
manifestação conspícua era o culto à espontaneidade. Para respeitar os verdadeiros sentimentos,
livres dos entraves impostos pelas convenções, era preciso que cada pessoa se desarmasse, rasgasse
couraças e preconceitos, e se rendesse com coragem ao encontro consigo mesma, ou seja, agisse
com plena espontaneidade, mesmo e sobretudo quando exercê-la violasse padrões morais.
Nada mais babaca, para os cultores da natureza e da autenticidade, do que a vergonha do
corpo nu — sintoma de apego a princípios hipócritas. Nada mais velho e repulsivo do que o ciúme e
o controle possessivo da pessoa amada. O casamento era visto como uma farsa
228 Luiz Eduardo Soares
melancólica, portanto. Natural era a abertura às infinitas possibilidades mutantes,
inclassificáveis e volúveis, do amor e do desejo, essencialmente contingentes e imprevisíveis.
O amor livre era a contrapartida da cosmologia panteísta predominante na tribo.
As normas sociais eram consideradas retratos da subserviência humana à propriedade
privada e aos sentimentos de posse que sua institucionalização difundia, por um lado, e expressava,
por outro. Consequentemente, a errância predominava: as tribos eram nômades, as pessoas eram
viajantes, o ser estava, permanentemente, em trânsito — em todos os níveis da existência.
Cada pessoa reproduzia em escala individual o verdadeiro destino da espécie humana,
quando harmonizada com sua raiz, com sua natureza. Pensar e agir segundo esses valores
significava ser autêntico. A pedra de toque no vocabulário da época era autenticidade. Esse era o
critério de juízo sobre a verdade, a beleza e a justiça.
Se o prazer comanda o desejo, se a espontaneidade rege a nova moral, por que não trocar a
ética protestante do trabalho e da acumulação pelo hedonismo, o culto ao prazer e ao momento?
Na cultura hippie, a utopia social é a comunidade, ou melhor, é a comunhão, sem sacrifício
da individualidade. A comunhão que resulta da empatia espontânea. Empatia que corresponde à
emanação da natureza comum a todos os seres humanos, desde que essa natureza seja em comum
respeitada e, portanto, sua essência seja autenticamente realizada. Portanto, a compaixão inscreve-
se no centro da cultura aquariana, libertária e pacifista.
Jean-Jacques Rousseau era o herói da turma, mesmo que tantos ignorassem sua existência.
A maconha acomoda-se bem a esse ambiente, reforça suas linhas mais marcantes e estimula
a reprodução de seus valores.
A marijuana doura essas pílulas, no invólucro de sua doce e serena fumaça. As substâncias
que alteram a consciência e evocam a experiência que se denominou psicodélica suspendem
fronteiras e contornos. A maconha e o haxixe criam um mundo pastel, suave, vaporoso, intoxicante,
mas leve, confortável, prazeroso. Dentro dessa nebulosa inebriante, o planeta era, segundo a cultura
hippie, a casa do homem
— e da mulher. Por isso, o pé na estrada do nômade não significava
Tudo ou nada 229
exclusão, marginalidade, desamparo, perda de referências ou raízes, falta de acolhimento
afetivo ou carência de integração social. O ser sobrepujava o ter, inclusive quando o verbo ter
remetia a um lugar. Os arautos da tribo hippie e pós-hippie iriam mais longe: diriam que, antes do
ser sobrepujar o ter, o estar soprepuja o ser. Carpe diem. Curta o momento. Viva.
230 Luiz Eduardo Soares
HIPPIES CONTRA YUPPIES NA TERRA DO SOL & NOS MARES DO SUL
A comunidade marítimo-caribenha de porras-loucas e desbundados, maconheiros e neo-
hippies, dropouts e outsiders compartilhava muitos desses valores. Nas ilhas ensolaradas do Caribe,
a vaga ultraconservadora dos anos 1980 capitaneada por Reagan e Tatcher
— missionários de um liberalismo extremado de inspiração darwi- nista — não tinha
passado o rolo compressor em cima dos valores que um dia haviam sido caros não apenas aos
hippies e místicos new age, não apenas aos saudosistas do welfare state, não só aos religiosos leais
às tradições humanistas: a compaixão, por exemplo, e a solidariedade. A despeito de seus efeitos
colaterais, nocivos ao cérebro e aos pulmões, a maconha — menos talvez como objeto de fruição e
mais como suporte de práticas e símbolo de identidades e valores — funcionou como antídoto à
ideologia yuppie, que não passava de adaptação fashion à nova ordem. Pelo menos n’algumas ilhas
caribenhas.
Lukas permaneceu a bordo do veleiro; a bordo da nebulosa cultural que adotou ao renunciar à
fortuna no mercado financeiro e à terra firme. Lukas permaneceu a bordo da nave mitológica na
grande navegação de seus sonhos juvenis, enquanto o barco de sua geração ia a pique. Não se deu
conta de que seu mundo particular também adernava. Seu modo de vida sofria gradual mutação. Sua
viagem rumo à eterna juventude fazia água. A fantasia da navegação perpétua foi se perdendo aos
poucos, na medida em que os métodos de sobrevivência foram cedendo terreno para o jogo pesado
do mercado clandestino de drogas. O processo de degradação começou com passos tímidos, na parte
final da primeira série de viagens ao redor do mundo. Prosseguiu, anos depois, com atos hesitantes
no período final do segundo
Tudo ou nada 231
46
ciclo das aventuras marítimas. Culminou com a rendição total ao tráfico, convertendo o
tripulante da navilouca libertária em operador do subcapitalismo feroz de um cartel colombiano.
Um dia, o dinheiro acabou.
Em terra firme, aos vinte e poucos anos, a grana foi ganha com rapidez e facilidade graças
ao talento de Lukas, conjugado à conjuntura econômica brasileira e à oportunidade que lhe foi
confiada. Era muita grana. Ele era muito jovem.
O tombo foi muito grande e veio muito cedo: casamento frustrado, amor traído, decepção
com o projeto Lukas-o-financista-vitorio- so, morando muito bem, casado com a belíssima mulher
por quem se apaixonara ainda na adolescência, cercado de amigos e parentes queridos, seus
admiradores. A seus pés.
Na sequência, a depressão foi derrotada — a depressão pelo amor perdido, o casamento
interrompido, a autoestima destroçada, as esperanças exauridas. Foi derrotada graças a um lance
arrojado: Lukas transformou a vida em um experimento lúdico. Isso mesmo: transfor mou a vida em
um experimento lúdico.
Foi do buraco ao paraíso num veleiro. Do buraco em que caíra, sentindo-se um lixo: a
mulher nos braços do melhor amigo seis meses depois de um casamento cinematográfico, no
outeiro da Glória, ante mil convidados. Ele jogou para o alto o que até então constituíra sua
biografia. Comprou o veleiro, como seu pai um dia fizera; e o fez navegar, como seu pai jamais
ousara fazer. Conquistou os mares, a confiança em si mesmo, no amor, na amizade. Montou uma
equipe estável e eficiente. Casou-se de novo. Fez amigos para sempre. Mudou e mudou-se para o
mar.
Um dia, a grana acabou.
O que estava à mão? O que poderia ser trocado por dinheiro, por meio do qual se
comprassem combustível, alimentos, peças de reposição para o barco, enfim, o indispensável para
seguir navegando?
Nos anos 1970, as mercadorias mais valorizadas entre as acessíveis a Lukas eram biquínis e
maconha. Biquínis e maconha brasileiros. Por que não? Veio ao Brasil, fez uma boa provisão desses
produtos cobiçados no Caribe e nas áreas em que circulava, vendeu- -os aos conhecidos e aos
amigos dos conhecidos e a terceiros interessados. A comunidade de consumidores das mercadorias
providas por
232 Luiz Eduardo Soares
Lukas era também a sua, porque compartilhava com seus membros ideias, valores e hábitos.
Sobretudo, compartilhava a paixão pelo mar e, portanto, pelos territórios adjacentes ao mar, as
ilhas, a orla dos continentes, o litoral dos países, as praias, em particular as praias desertas ou
semidesertas dos trópicos escaldantes, onde a comunidade pudesse viver com menos risco e pudor a
liberdade que cultuava, sem atritos e repressão. A maconha era produto nesse pequeno comércio
inocente, mas era também totem e tabu.
Totem para a comunidade, maconha significava acesso a um estado superior de conexão com
a natureza, consigo mesmo e com os outros, estado em que barreiras se dissolvem, padrões se
revogam.
Tabu para os de fora da comunidade, que a viam como antro de perdição, pecado, desvio e
crime. Para esses, maconha era signo do mal. A simbologia supera qualquer consideração objetiva
sobre seus reais malefícios.
O círculo formado por consumidores de maconha coincidia quase exatamente com o grupo
dos compradores de biquínis. Por isso, compreende-se que os negócios de Lukas eram percebidos
por ele e por seus clientes como trocas benignas entre coisas de valor, que ser viam para manter o
modo de vida coletivo e, subsidiariamente, para manter o modo de vida de Lukas e sua esposa. O
clima era francamente sociável e os preços se ajustavam com flexibilidade a cada caso. O dinheiro
só entrava na história porque não se conhece meio mais prático. Era consequência e apêndice, não a
causa ou a motivação. Tratava-se antes de um jogo puro de reciprocidade do que, propriamente, de
negócio ou comércio, artimanhas que visam o lucro. Todos eram testemunhas de que o lucro estava
fora de questão. Lukas, sua esposa, o barco, o grupo eram os mesmos e viviam da mesma manei ra.
A venda apenas permitia que vivessem da mesma maneira, que continuassem levando a mesma
vida, a qual não diferia em nada que fosse significativo daquela que os demais não nativos levavam.
A comunidade apresentava características curiosas: era sazonal e se reencontrava nos locais
prediletos da galera, em diferentes partes do mundo — portos, ilhas e balneários, frequentemente
estranhos ao mapa turístico. Sazonal porque o sedentarismo era provisório. Os contratos com as
seguradoras dos barcos previam a suspensão de suas obrigações nos meses de junho, julho e agosto.
Era e é o período
Tudo ou nada 233
dos cataclismos naturais: tornados, furacões, maremotos, tempestades fortíssimas. Nessa
fase do ano, as embarcações zarpavam rumo ao sul — Trinidad e Tobago, por exemplo — e à costa
europeia. No mês de setembro ainda há riscos, mas os problemas são bem mais raros. A migração
de iates segue o ritmo das estações do ano.
Os tripulantes dos veleiros costumavam participar das grandes regatas e aproveitavam os
portos para celebrações comuns. Eventualmente, estendiam a estada e a camaradagem entre as
equipes prosperava.
Algumas ilhas caribenhas eram, entretanto, muito especiais — pela beleza, a segurança que
as condições naturais ofereciam aos barcos atracados nas baías e enseadas, a facilidade de acesso a
bens de consumo, a receptividade da sociedade local aos visitantes, a tolerância com as diferenças
nos estilos de vida e a liberalidade das autoridades. A polícia passava ao largo. Não bisbilhotava os
usos e costumes dos visitantes. Ou negociava o preço da liberdade em condições módicas. Nada de
extorsões.
Com a repetição dos encontros, a comunidade, na ilha de Saint Barthélemy, mesmo
provisória, alcançou, internamente, um grau elevado de intimidade e confiança. Suriname,
Martinica, Jamaica eram pousos da galera, mas Lukas se deslumbrara com Saint Barthélemy, que
passou a figurar em seu mapa afetivo como o paraíso na terra: Saint Barths.
Os primeiros negócios com maconha tangenciavam o mundo das margens, mas de um modo
entendido por Lukas e por sua comunidade como francamente benigno. A ilegalidade da maconha e
do haxixe sinalizava o caráter obtuso dos legisladores e não a malignidade das substâncias, de seu
uso ou do toma lá dá cá em que trocava de mãos por dinheiro ou outros produtos e favores,
conforme o caso. Não se tratava, portanto, de comércio em sentido estrito. Pelo menos, quem o
realizava nas duas pontas, adquirindo ou fornecendo, não definia esse exercício de reciprocidade
como uma prática econômica, vinculada a estratégias de ganho e acumulação de riqueza. O toma lá
dá cá — que fazia a maconha e o haxixe circularem no interior da comunidade e em seu entorno —
se superpunha à própria dinâmica da sociabilidade. Nada de culpa, portanto, ou de acusações. Nada
de medo. O namoro com as margens foi ingênuo e coberto pela aura da liberdade, que tudo
abençoava.
234 Luiz Eduardo Soares
47
TERRA À VISTA
A filha de Lukas nasceu, ele e sua segunda esposa julgaram que era hora de voltar à terra
firme, estabeleceram residência na fazenda que ela herdara do pai, no Pantanal. Passaram cinco
anos no interior, cuidando de gado e curtindo o esplendor de rios, matas e animais silvestres. A
exuberância biodiversa do Brasil central aquietou a vocação nômade de Lukas. A criança cresceu, o
casamento atravessou tormentas, as visitas a Angra dos Reis, a Búzios, ao litoral da Bahia, a
Fernando de Noronha ampliavam as oportunidades de experiências extraconjugais, até que a espiral
sedutora e desgastante cumpriu seu curso. Separaram-se amigavelmente. A mulher manteve a
guarda da menina. Mudou-se para Campo Grande. Lukas vendeu a fazenda. O dinheiro foi
destinado à ex- -esposa, herdeira legítima das terras. A ele coube apenas a importância obtida com a
venda do gado, no qual investira, do qual cuidara.
Ele correu para o litoral, viajou, pesquisou, mobilizou a velha rede de parceiros, foi aos
Estados Unidos, até que encontrou um veleiro em boas condições, na Espanha.
Transferiu-se, sozinho, para o barco, atracado num porto, e o equipou, aos poucos, enquanto
resistia, residindo nele, aos últimos meses de inverno, na expectativa de zarpar para inaugurar o
segundo ciclo de voltas marítimas ao redor do mundo. Dessa vez, já com Margueri- te, sua terceira
esposa. Assim como se casara com a mãe de sua filha ao lançar-se ao mar no primeiro veleiro —
depois de uma depressão arrasadora, provocada pela separação da primeira mulher —, repetiu o
enredo, voltando ao mar e se casando com a terceira esposa, que viria a ser mãe de seu único filho
homem.
Tudo ou nada 235
48
O SEGUNDO CICLO DE NAVEGAÇÕES E O NEGÓCIO DAS DROGAS
Quando a grana voltou a faltar, nos capítulos finais desse segundo ciclo de viagens, Lukas
retomou as atividades que garantiram a ele e à segunda esposa — no primeiro ciclo de navegações
— uma sobrevivência razoavelmente confortável, nos padrões franciscanos que sempre foram os
seus. Maconha e biquínis mantiveram o casal e o barco, no Caribe, por um bom tempo, alguns anos
antes. Na segunda vez, Lukas desistiu dos biquínis. Especializou-se na maconha. E aceitou uma ou
outra tarefa especial. Prestou serviços eventuais, digamos assim, a conhecidos que navegavam pelo
mundo, trafegando para além da fronteira da legalidade. Já que estava no negócio inocente e be -
nigno da maconha, informalmente, ocasionalmente, circunstancialmente, aproveitando
oportunidades, mobilizando contatos quando a necessidade apertava, por que não avançar um pouco
mais, fazer mais dinheiro e se livrar de obrigações por um período maior?
Avançar um pouco mais significava aceitar algumas encomendas e apoiar uma ou outra
investida comercial numa escala que já não seria classificável como empreitada individual no varejo
pulverizado e irrisório. Três exemplos corresponderam a experiências marcantes. O risco deu as
caras nos três. As três histórias prenunciavam e, em certa medida, realizavam a ultrapassagem de
uma barreira importante, ainda que pouco visível para quem avança o sinal. A barreira que separa
dois universos: de um lado, a inocência benigna e a reciprocidade comunal; de outro, a zona de
perigo, focalizada por holofotes, ras- treada por cães farejadores, cercada pelos Estados e patrulhada
pelas políticas de segurança e de defesa. No primeiro lado, estão o prazer e
Tudo ou nada 237
o convívio, o cotidiano distraído e hedonista, o barquinho que vai, a tardinha que cai. No
outro lado, estão os negócios mais lucrativos do planeta, crimes, guerras, assassinatos, poderes
globais e a geopolítica dos impérios.
Barreira, de fato, importante.
Ao sabor das pequenas decisões, no dia a dia, sem cálculos sofisticados, sem avaliações
isentas e profundas, vai-se atravessando a muralha, driblando sinais fechados, transgredindo uma
regra aqui, outra acolá, brincando com a irresponsabilidade como um artista de circo ou um atleta
do risco. Sem perceber que essas decisões miúdas, minúsculas, contêm potenciais explosivos e são
cruciais, às vezes irreversíveis. É sutil a passagem. Constrói-se em nuances. Um ato, um gesto, um
passo, um arranjo, uma troca, um pequeno movimento, uma tarefa modesta, uma palavra, um
convite, um ganho, a enganosa sensação de triunfo, de conquista fácil, a onipotência que vai se
alimentando de si mesma, de suas vitórias momentâneas, insidiosamente, na falta de tropeços que a
questionem.
A passagem dispõe suas etapas numa ordem à primeira vista in- discernível para quem
explora suas vias e seus métodos. Essa ordem compõe-se como um arpejo de semitons, evolui em
gradações quase imperceptíveis, avança por mediações e sinuosidades obscuras. É as sim,
exatamente assim, a passagem clandestina da inocência ao crime. A passagem capciosa entre a
ingenuidade e o engajamento nas correntes da violência, entre o jogo e o delírio paranoico, entre o
blefe e a tragédia. Pelo menos no caso de Lukas. Não se trata de teoria geral, mas da trajetória de
um homem.
O mais grave é que o passageiro só enxerga a passagem a posteriori, quando ela já foi
cumprida e já cobrou seu preço — quase sempre ela o faz roendo o sujeito por dentro ou o
atingindo como a tempestade devora um veleiro.
Lukas não era um criminoso natural. Não há criminosos naturais. Não nasceu criminoso.
Ninguém nasce criminoso. Não decidiu solenemente, numa determinada hora e lugar, praticar
crimes, tornar-se criminoso. O processo pontuado por múltiplas pequenas decisões, nas mais
diversas oportunidades, foi transformando o sentido do relacionamento com drogas ilícitas até que
esse relacionamento passasse a ocupar posição de destaque em sua vida, primeiro por uma
.
238 Luiz Eduardo Soares
dolorosíssima dependência de heroína — que recobriria sua vida com a tampa claustrofóbica
e imaterial do crepúsculo em seu segundo retorno ao Brasil —, depois por uma aposta na solução
mágica para suas dificuldades financeiras no Rio de Janeiro.
Observando, retrospectivamente, o relato de sua história, há situações extremas e pontos de
virada, esquinas cruciais da biografia, mas os marcos narrativos são identificáveis quando seus
efeitos já foram vivenciados e, portanto, já são conhecidos. Dificilmente, as mutações que são
constantes alcançam a superfície e se deixam apanhar pela consciência. O sujeito, qualquer um, não
é senhor de seu destino, nem mesmo de suas decisões-chave, até porque ignora quais, entre as inu -
meráveis que é instado a tomar no dia a dia, são chave, ou melhor, mostrarão, um dia, no futuro,
terem sido essenciais.
Em que momento uma dose a mais desencadeia o salto de qualidade e causa a inundação? A
dependência se constrói, tecendo-se elo a elo a cadeia. O engajamento no tráfico, a partir de que
momento se realiza, na profundidade em que passa a representar a grande virada no percurso
biográfico de um cidadão? Haveria algum ponto depois do qual a dinâmica de envolvimento se
tornaria irreversível? A pergunta é inútil. Quem fosse lúcido o bastante para formulá-la,
provavelmente, não precisaria fazê-lo, não teria ido tão longe nesse caminho que transmite a falsa
impressão de linearidade e continuidade. Estaria consciente de que a continuidade linear, que
suscita a sensação de controle da caminhada e de previsibilidade do caminhar, é apenas uma ilusão
de ótica.
Tudo ou nada 239
49
CUBA, JAMAICA E O CARGUEIRO COLOMBIANO
Pois bem, um dia a grana acabou, no segundo ciclo de viagens, e Lukas aceitou brincar com
fogo. Os três episódios seguintes foram os mais sugestivos da lenta e contraditória passagem de
Lukas pela barreira da ilegalidade.
O primeiro passo foi saltar da economia de subsistência — ou do mero exercício de
reciprocidade — para o mercado, digamos assim, embora lidando exclusivamente com maconha.
Nas ações que envolvem o mercado, transita-se do varejo para o atacado, inclui-se a
participação de terceiros, externos à comunidade dos usuários, e perde-se o controle sobre o
processo em seu conjunto. O abastecimento, o lucro, a qualidade do produto, a fonte de inves-
timentos, os interesses, a metodologia adotada em cada operação, todos esses aspectos centrais
escapam ao domínio de quem, como Lukas, limita-se a trocar por dinheiro — e uma determinada
quantidade do produto — o seu trabalho, a sua coragem e a sua expertise de marujo. Seu futuro e
sua liberdade também seriam incluídos nesse escambo, um dia. Não naquela oportunidade. Não
ainda.
O primeiro episódio exigiu sangue-frio e competência técnica.
Lukas tripulou o iate até o limite das águas territoriais da Jamaica e aguardou cinco noites
pelos pesqueiros que trariam a provisão de maconha: quinhentos quilos. O produto seria vendido na
costa leste. Durante os dias, afastava-se em direção a Cuba. Fazia a volta e retornava. Não se podia
saber com certeza quando os barcos jamaicanos lograriam escapar ao cerco da guarda costeira, ou
quando conseguiriam chegar ao litoral numa região acessível para os responsáveis pelo
Tudo ou nada 241
transporte terrestre da carga e que fosse, ao mesmo tempo, viável para a aproximação das
embarcações. Tampouco seria possível descobrir se a demora indicava dificuldades intrínsecas à
operação ou surpresas desagradáveis. Nesta última hipótese, Lukas e a pequena equipe que o
acompanhava estariam em perigo. Caso os intermediários fossem presos, quem garantiria que se
recusariam a delatar a localização do iate comandado por Lukas? Poderiam oferecer aos presos
alguma coisa na linha da delação premiada. Como também lhes poderiam oferecer perspectivas
menos promissoras. Sabe-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não baniu a tortura
da face da Terra. Infelizmente. Porque não bastam palavras e documentos.
Lukas esteve todo o tempo ciente dos perigos envolvidos naquele plano mal-ajambrado, mas
o pagamento compensava a insegurança e o temor. Tudo dando certo, lhe caberiam dólares
suficientes para ele e a mulher sobreviverem muito bem durante meio ano, no Caribe. Além disso,
receberia em mercadoria parte do pagamento. Ou seja, teria maconha bastante para fumar por quase
um ano ou para promover as melhores festas das ilhas, ou para aumentar suas reservas financeiras,
vendendo a parte do estoque economizada.
Era bom demais para dispensar, Lukas avaliou.
Os pesqueiros se atrasaram mais do que o plano previra. O comandante preparou-se para
voltar com o porão vazio. Esticou a corda, pagou para ver, apostou alto. Na undécima hora, a frota
jamaicana pintou no horizonte, piscando luzes conforme combinado. Até o final, Lukas temeu uma
armadilha. Sossegou quando testemunhou o transbordo do carregamento precioso. Sossegou e
regalou-se.
* * *
Na segunda empreitada, o glamour de comandante singrando mares caribenhos foi
substituído pelo trabalho braçal, literalmente. Um cargueiro colombiano trazia fumo. O estoque da
maconha deveria ser dividido em cinco veleiros, que levariam a droga para seu destino. A tarefa
coletiva e pesada era carregar os veleiros. Transferir a carga. Cada pacote pesava 25 quilos. A
baldeação teria de ser clandestina. Era arriscada. Na região, havia muitos radares. Os colombianos
eram excelentes marinheiros. Conheciam a topografia submarina e
242 Luiz Eduardo Soares
as marés como as palmas das mãos. Atracaram o cargueiro atrás de um rochedo onde não
seria detectado por radar e, à noite, não seria visto. O grupo foi recrutado na comunidade que vivia
e curtia Saint Barthélemy e as ilhas vizinhas. Homens fortes, dispostos a trabalhar, audaciosos. Ou
melhor: nem tão entusiasmados assim a pegar no pesado, mas sem dúvida excitados pela chance de
fazer seis mil dólares numa noite. Lukas estava entre eles. Candidatou-se e foi convidado a integrar
o time.
Escolheram uma noite sem lua. A treva espessa era indispensável. Os homens puseram-se a
receber e repassar os sacos de juta numa corrente longa, organizada em cinco linhas, na direção de
cada um dos veleiros receptores. Horas a fio, quase sem enxergar, movendo-se ao lume de lanternas
foscas, propositalmente fracas, o pessoal esgotou até a última gota de sua energia. A carga foi
transferida antes do amanhecer, sem sustos e sobressaltos.
O exército de carregadores voltou para suas casas e seus barcos. O repouso dos guerreiros
estendeu-se até o começo da tarde. Da metade para o final da tarde, deu-se um fenômeno
curiosíssimo. Homens cansados invadiram os bares e restaurantes, bebendo e gastando mui to mais
do que costumavam fazer, todos eles de bermudas e camisetas, os braços e as partes desnudas das
pernas raladas e sem pelos. Quem, vindo de fora, não soubesse o que ocorrera à noite, o que
pensaria? Os homens da comunidade teriam participado de algum ritual de escarificação? A nova
moda local fez com que os mais afoitos ou desajeitados, ao raspar os pelos de braços e pernas, se
ralassem e ferissem? A adesão à moda bizarra se dera coletiva e simultaneamen te? A população
masculina teria sido recrutada para gravar um filme
— um filme estranho — como figurante?
Tudo ou nada 243
50
DO FUNDO DOS MAIS TENEBROSOS PESADELOS
O terceiro episódio levou Lukas mais longe e mais fundo no mundo da ilegalidade e do
medo. Ele estava em Saint Barthélemy e aceitou a proposta de buscar na Jamaica uma quantidade
relativamente pequena de maconha. O mar do Caribe é uma galáxia de pequenas ilhas, colônias e
ex-colônias britânicas, francesas, holandesas, espanholas, e países ilhéus, uma profusão
incomparável de paisagens deslumbrantes, ligadas por inúmeras ramificações de contatos que
formam as redes mais variadas, inclusive conexões diretas com os grandes países vizinhos.
Colômbia, Venezuela, Guianas, Trinidad e Tobago, Jamaica, Antilhas, Cayman, Granada,
Martinica, Guadalupe, República Dominicana, Haiti, Porto Rico, o Golfo do México, Cuba, as
Bahamas até Miami. A região fervilhava: desejos, turistas, piratas pós-modernos, máfias, tripulantes
das mais diversas viagens, varejistas e atacadistas de drogas várias, belezas naturais de tirar o
fôlego, jogos de azar, prostituição transnacional.
Lukas aportou numa baía de águas claras, pedras angulosas e areia farta. Não havia grandes
problemas, dessa vez, porque o carregamento era modesto. Seu veleiro foi mais do que suficiente.
Por precaução, na volta, navegou em direção ao sudeste, como se fosse para uma das Guianas. Seu
propósito era fazer um arco e virar para o norte. Avaliou que uma linha mais direta Jamaica-Saint
Barths talvez desse muita bandeira e chamasse a atenção de eventuais patrulheiros que vigiassem a
área.
A guerra às drogas norte-americana não respeitava o mar internacional, nem fronteiras
nacionais. Muito menos as normas e os proce-
Tudo ou nada 245
dimentos estipulados pelos tratados transnacionais. Alguns conhecidos tinham desaparecido,
não fazia muito tempo. As histórias eram de arrepiar. Sem mais nem menos surgiam do nada
agentes americanos; sequestravam alguém; um helicóptero de grande porte era visto decolar de
algum descampado remoto, próximo ao local do sequestro, e nunca mais se tinha notícia do
suspeito. O cerco começava a apertar. Houve um caso aqui, outro ali. Eram absolutamente inéditos.
Tramas extraordinárias e escabrosas. Meio inverossímeis. Depois que se repetiram, cada vez com
mais assiduidade, os céticos se convenceram. O temor não foi suficiente para suspender as
atividades do tráfico, mas tornou os operadores do grande escambo menos amadores e desatentos.
São os paradoxos da repressão: geram-se efeitos contrários às intenções que a motivam.
Lukas ainda era um amador, um tarefeiro circunstancial, cujos vínculos com os negócios das
drogas eram regidos pelos princípios da camaradagem comunitária e do amplo circuito da
reciprocidade. Mesmo assim, ficou preocupado e redobrou a atenção, como todo mundo. Por isso, o
percurso longo e caprichoso.
Quando subia de volta ao norte deparou-se com silhuetas assustadoras no horizonte. Era uma
frota de navios de guerra. Provavelmente, um exercício militar mobilizando as marinhas das
Américas. Ele sabia que esse tipo de treinamento não era tão raro, mas nunca imaginara que viesse
algum dia a cruzar seu caminho, coincidindo com um momento seu tão peculiar, em circunstâncias
tão problemáticas. Era um azar tremendo. Sentia-se como o sujeito picado pela agulha perdida no
palheiro.
Virou o leme para a direita — que os navegadores chamam boreste —, buscando seguir uma
trajetória paralela à fila das embarcações que se dirigiam para o leste. Aos poucos, imporia uma
inclinação mais acentuada para sudeste, descendo mais à direita, quer dizer, a boreste, até afastar-se
o bastante, escapando ao raio dos radares potentes da frota.
Tarde demais.
Um dos navios embicara a boreste, e já descia veloz rumo ao veleiro. Lukas gelou. Mandou
que seus cinco auxiliares fingissem uma pescaria. Era o número ensaiado para ocasiões imprevistas.
Naquela posição, entretanto, pouco crível. Não faria sentido pescar ali por
246 Luiz Eduardo Soares
razões diversas, relacionadas às marés, à época do ano, à distância dos destinos
potencialmente consumidores, ao tipo do veleiro. De todo modo, era a desculpa mais plausível ou,
pelo menos, a menos implausível.
Preparou-se para a abordagem, congelado. O coração saindo pela boca.
A diferença entre as dimensões e as velocidades respectivas era imensa. O navio cresceu na
medida em que se aproximava. A rapidez contrastava com a primeira impressão de Lukas a
propósito da distância em que as primeiras silhuetas foram divisadas. Ele sabia, mas tinha de
reaprender sempre: o que se vê em mar aberto ilude; o horizonte em meio às ondas engana.
O navio crescia, aproximava-se. Finalmente, estabeleceu contato por rádio, solicitando
identificação e informações sobre origem e destino. Na sequência, a voz de comando ordenou a
Lukas que desligasse os motores e abaixasse as velas. O navio alcançava o ponto-limite a partir do
qual colocaria em risco a segurança do veleiro. Deteve-se aí. O comandante avisou que seria
enviada uma balsa com militares para uma inspeção de rotina. Agia representando a autoridade
delegada dos Estados americanos, em nome da frota em exercício. Nem seria necessária a
explicação. O poder prescindia de palavras. A assimetria física era suficientemente eloquente.
A beira de um ataque de nervos, Lukas esforçou-se por não permitir que o interlocutor
percebesse o abalo nervoso em suas palavras. Contudo, foi inevitável regredir em alguma esfera
profunda de sua psicologia. Nesse caso, por algum motivo neuronal, somático e linguístico, a língua
inglesa foi afetada. O inglês fluente de Lukas, do qual ele se orgulhava, degradou-se e arrastou-se
numa sintaxe penosa, numa pronúncia pastosa, progressivamente carregada. Em algum lugar, o
pavor tinha de aparecer. Apareceu na linguagem.
— Você é brasileiro? — perguntou o comandante do navio desgarrado. Em português.
Lukas antecipou o golpe fatal, mas não teve como mentir:
— Sou. O senhor também?
— Também.
Claro que a indagação era uma idiotice, mas daquele tipo de que ninguém escapa. Tentou
consertar:
Tudo ou nada 247
— Desculpe. Que bobagem. Claro que o senhor é brasileiro. É que foi uma surpresa tão
grande... Nunca poderia imaginar.
Lukas intuía que estava seguindo um caminho perigoso. Que estava se entregando, porque o
que dizia era a mais pura verdade, só que referida a outras causas. Estava mesmo surpreso. Mais
que isso, óbvio. Estava chocado. E nunca poderia imaginar, realmente, não que o comandante fosse
brasileiro ou inca-venuziano, mas que uma frota internacional de navios de guerra fosse emergir do
fundo dos seus mais tenebrosos pesadelos. Melhor parar. Se continuasse a falar, aca baria se traindo
e se entregando. Sem querer, estava prestes a confessar, a compartilhar com o brasileiro do outro
lado, dono da voz de comando, o terror que sentia.
O responsável pelo destróier interrompeu as divagações de Lukas:
— Que isso, cara? Tem nada que pedir desculpa. Não é incrível?
— É mesmo.
— Eu acho incrível. Dois brasileiros no meio do nada, no meio desse mundão de Deus.
Essas coisas me impressionam, sabe?
— É, sim, impressionam. Eu me impressiono. Fico impressionado.
— Pensa bem. A gente está no meio do oceano. Mar aberto. Faço contato com um
barquinho solitário, navegando tranquilo... sem ofensa, viu? Sem ofensa.
— Não, que é isso?! Entendi, entendi perfeitamente o que o senhor quis dizer.
— Deixa o senhor de lado. É o mínimo que a gente tem de fazer depois de uma
coincidência dessas, não é?
— Realmente. Impressionante, não é? Dois brasileiros. — Lukas tinha esgotado sua cota
de improviso e começava a se sentir um canastrão. Mas seu interlocutor brasileiríssimo não deixava
a peteca cair:
— Você é de onde?
— Do Rio.
— Que maravilha, hein? Saudades do Rio?
— O senhor também é carioca?
— Sou não. Sou do Recife.
Lukas pensou em dizer: puxa, que máximo. Terra do frevo, de João Cabral, a ilha vermelha.
Mas engoliu a frase a tempo. Ilha vermelha? O comandante era da marinha. Da marinha. Como
“ilha vermelha”?
248 Luiz Eduardo Soares
Falar de Olinda não cabia. Vai ver existe uma disputa entre as duas cidades. Falar dos
holandeses pegaria mal. Sobretudo para um militar. Os militares são nacionalistas. O comandante
devia ser um patriota daqueles. Falar em frevo poderia parecer desfeita. O sujeito poderia achar que
frevo é folclore e subestimar a cultura popular. De João Cabral? O cara poderia não conhecer o
maior poeta brasileiro e, de repente, se sentiria meio humilhado, até ofendido. Ou poderia achar que
poesia é coisa de viado.
Enquanto Lukas elucubrava suas fantasias paranóicas, o interlocutor não se inibia com seu
silêncio:
— Mas adoro o Rio. As duas cidades são parecidas. Têm muita coisa parecida.
— É verdade.
— Pronto. Uma pena, mas não vai dar pra matar saudades da ter- rinha. Tenho que
retomar rápido a minha posição. Você está transportando alguma mercadoria ilegal? Desculpe a
pergunta, mas é, sabe como é...
— É a praxe.
— Pois é, justamente.
— Não, estou curtindo uma temporada numas ilhas para relaxar um pouco. Não resisti a
uma pescaria em alto-mar.
— Olha, não esquenta. Tudo bem. Vou retomar a posição. Estamos num exercício
militar. O Brasil e os demais países do continente. Trabalho bonito, importante, mas estafante. Às
vezes a gente tem necessidade de descontrair. Invejo você, viu? Boa viagem. Felicidades.
— Pro senhor também. Prazer falar com o senhor. Você.
O destróier bateu em retirada.
Lukas ainda perplexo, suando frio, preferiu seguir a rota de fuga para o sul até ter absoluta
certeza de que se livrara do sufoco.
Tudo ou nada 249
51
O PÓ TEM PRESSA
Os três episódios sinalizam uma escalada, mas ainda no universo exclusivo da maconha, do
qual faz parte o haxixe. O próximo passo, este mais radical, não apenas adiciona componentes de
mercado na equação ingênua e comunitária do período inicial — romântico, talvez se o pudesse
denominar — como gira o alternador de voltagem e muda a qualidade de todo o processo, ao
introduzir a cocaína no repertório de consumo, troca e comércio. Neste ponto, a metamorfose é de
gênero, número e grau. É de natureza. Mudam os valores, as crenças, as percepções do que está
acontecendo, os parâmetros morais, os comportamentos, as emoções preponderantes, o regime
simbólico e prático de organização da sociabilidade, os critérios de definição de prioridades, as
relações com a economia e com a legalidade.
O universo nebuloso da maconha e do haxixe, orientado para a sensibilidade e o prazer, a
contemplação e o devaneio, vizinhos das experiências lisérgicas e dos transes psicodélicos, cede
lugar a outra constelação, que seria melhor descrita pelo substantivo plano, onde a verticalidade das
mirações e das explorações autorreflexivas não tem vez. O plano da coca é a plataforma rasteira da
ligação, da adrenalina, da hiperatividade ansiosa, do engajamento febril na ação e no risco.
Enquanto a maconha repousa e adormece, independentemente dos danos à saúde, conduzindo o
sujeito da fruição e do delírio ao relaxamento e à prostração, induzindo-o a indispor-se com o que
for agitado e violento, a cocaína acende todos os faróis do corpo e apaga as luzes do espírito, na
medida em que energiza a impetuosidade e reduz a autonomia da vontade, submetendo-a
crescentemente ao
Tudo ou nada 251
círculo vicioso da retroalimentação do barato, cuja celeridade exige sua contínua e perpétua
extensão. O repouso sendo sucessivamente adiado, o corpo se exaure e a vontade se escraviza. O pó
é o império da ligação e, portanto, o reino da libido, entretanto, paradoxalmente, condena o homem
— não a mulher —, repleto de desejo, ao vácuo exasperante da impotência. Por isso, o pó frustra.
Para reparar a frustração, o cheirador corre impaciente atrás de mais uma carreira. A frustração
repetida e redobrada interpela o usuário a cobrir o buraco que ela cava. O consumidor mais uma vez
atraiçoado pela inversão de expectativas investe todas as forças para reparar a frustração renova da,
o que o leva a cavar ainda mais fundo sua decepção e sua angústia, porque a plenitude novamente
se furta. A intensidade aumenta, a voltagem da corrida atrás do próprio rabo se eleva, a cada
rodada, a cada noite, a cada sessão, ampliando a fome de ser, a fome de preencher a ansiedade, até
que ela se torna maior que o sujeito e come aquilo que, nele, tem essa fome. A fome, assim, toma
conta do sujeito e o substitui. A fome passa a ser o sujeito. Passa a ser.
Adeus, sujeito. Adeus, autonomia e liberdade. Adeus, planos e possibilidades de paz e amor.
Paz e amor dançam quando a sutil arquitetura hippie é despedaçada pela máquina hiperativa da
cocama- nia. O sentido comunitário já era. Compaixão e empatia evaporam. O cheirador não tem
tempo para frescuras românticas, ornamentos místicos, metafísica barroca e ecomoralismo
aquariano. Não tem tempo. Não tem espaço mental para fantasias idílicas e enredos sinuosos de
ritmos pausados. O pó tem pressa. A coca é expressa. As carreiras são aspiradas por narinas
inquietas. O usuário trafega em fuso horário próprio. Por isso, é com frequência afetado pelo jet lag
e despenca, exausto, exaurido.
O pó tem pressa.
Quando Lukas e tantos parceiros de aventura aceitam a nova experiência, rompem com
muito mais do que provavelmente supunham. A rotação planetária, a mudança de canal, a transição
para a cocaína, esse fenômeno delicado, difuso, complexíssimo, que mobiliza tantas esferas da vida,
é claro que não acontece de uma vez só e irreversivelmente. Quando, entretanto, a transição se
completa e a cocaína se converte na substância mais cobiçada, tornando-se mais e mais o ponto
crucial do cotidiano, o objeto por excelência do desejo, nesse
252 Luiz Eduardo Soares
ponto, e desse ponto em diante, o rosário de consequências e implicações vai se desfiando
até tomar conta.
Em paralelo, e comunicando-se com a transformação do desejo, dá-se um clique. Uma
torção revolucionária, mesmo que, à primeira vista, não pareça. Amadurece uma decisão
fundamental: Lukas e alguns companheiros de viagem — da viagem geracional a que se lançou —
são persuadidos e se persuadem de que não é imoral negociar cocaína. Concluem que é legítimo,
perfeitamente legítimo, a despeito de ilegal. Não passa de mais um, e apenas mais um, business.
Negócio como qualquer outro. Vender, comprar, intermediar são, simplesmente, negócios. O
produto é irrelevante.
Está certo, ele admitiria, não exatamente como qualquer outro. Lukas se recusaria a
comercializar armas ou remédios falsificados se o convidassem a fazê-lo. A tese de que o produto é
indiferente não se sustenta, enquanto regra geral. Não se trata, portanto, de um princípio universal.
Entretanto, naquele caso específico, o produto poderia ser considerado irrelevante. Era o que Lukas
pensava ou foi levado a pensar por si mesmo — isto é, pela evolução ou involução de suas ideias
—, pelo clima da época, na comunidade em que circulava, e por alguns parceiros que lhe chamaram
a atenção para as possibilidades extremamente promissoras de lucro. Os ganhos com os quais
acenavam os colombianos eram muito atraentes.
Pesou bastante a suspensão do veto ao uso recreativo do pó. Antes, a coca era cercada por
uma aura negativa, é bom lembrar. Era uma verdadeira blasfêmia elogiar a cocaína e uma
demonstração de caretice consumi-la. O anátema caiu, a maldição dissolveu-se, o pó entrou no rol
das drogas valorizadas para o consumo. Entrou devagar, com dificuldades, vencendo obstáculos.
Mas entrou. Tornando- -se uma droga entre outras, passou a frequentar também o cardápio das
mercadorias a serem negociadas. Afinal, ela encontrou uma nova realidade: a turma já tinha feito a
passagem do consumo individual e do sistema de trocas dentro da comunidade sem intenção de
lucro para o esquema comercial, em que o dinheiro vale por si mesmo e se torna a motivação
predominante, em vez do desejo de consumir e da vontade de compartilhar. Quando a motivação
principal era o consumo pessoal e da comunidade, claro que a grana importava. Sem ela não haveria
como sobreviver. Contudo, isso é diferente do que
Tudo ou nada 253
acontece no momento posterior, em que a lógica dominante é mesmo a mercantil e o ganho
proporcionado pelos negócios alcança uma verdadeira autonomia, desprendendo-se do prazer do
uso.
A nova conjuntura é marcada por duas novidades: primeiro, a coca é tolerada, depois consumida
e, finalmente, valorizada, o que determinará a readaptação de valores e comportamentos; segundo,
a relação com as drogas deixa de ser exclusivamente de fruição e passa a incluir os negócios, o
trabalho, a grana, para sobreviver e os lucros para acumular.
Entre o passado, em que a maconha e o consumo reinavam absolu tos, e este novo quadro,
continuava a existir uma ponte: o pagamento em espécie, pelo menos parcialmente em espécie. Ou
seja, a introdução da lógica mercantil foi insidiosa e gradual. Infiltrou-se nos poros da realidade
anterior, lentamente. Quando se efetua o pagamento por alguma transação, como o transporte de
carga da Jamaica para as Antilhas, parte em dinheiro, parte em maconha, fazem-se duas coisas
diferentes ao mesmo tempo, ou melhor, produzem-se duas significações diferentes, sob a forma de
mensagens meio conscientes, meio inconscientes, de Lukas para si mesmo e para a comunidade:
diz-se que o trabalho realizado visava atender ao consumo, o que valoriza a curtição, o prazer, o
uso da erva como razão de ser do esforço de Lukas, de seu empenho, de seu investimento de tempo
e energia; mas também se passa a mensagem de que a maconha recebida como parte do pagamento,
sendo parte de um pagamento, é também moeda, é também mercadoria, podendo ser, adiante,
trocada por dinheiro ou por outras mercadorias. Neste caso, valoriza-se a operação mercantil ou
comercial.
Por isso, essas tarefas envolvendo dinheiro e maconha, com pagamentos híbridos, começam a
criar as condições para a passagem mais radical, que se dará, entretanto, apenas depois de concluída
a desobstrução simbólica da cocaína. E superadas as resistências aos colombianos.
Os colombianos eram malvistos. Sua imagem era a pior possível. No imaginário da comunidade
em que Lukas e sua mulher circulavam, colombiano era sinônimo de bandido, mafioso violento, bo-
neco manipulado por chefões de cartéis. Esses manda-chuvas, por sua vez, eram tidos por beócios
sanguinários, capitalistas inescru-
254 Luiz Eduardo Soares
pulosos, vampiros e piratas. Coca era o veneno negociado por essa canalha.
Tendo sido derrubada a demonização da coca, a cadeia de acusações aos colombianos que
comercializavam o produto foi cedendo, pouco a pouco, até que a desqualificação generalizada
perdeu crédito. Por que negociar com jamaicanos pode e com colombianos não? Por que os ilhéus
do Caribe e do golfo do México são melhores do que os colombianos? Por que os brasileiros seriam
melhores? Depende. Cada caso é um caso. Cada pessoa, uma pessoa. Cada esquema, uma fonte de
possibilidades e de riscos. Não dá para bloquear a relação com os colombianos só porque eles são
ligados a cartéis. E os atacadistas de maconha ou de haxixe? São o quê? Monges? Anjos? Santos?
Gente boa? Depende. A única resposta plausível e sensata é esta: depende. Não vamos fechar as
portas, precipitadamente. Vamos examinar cada proposta. Buscar uma carga? De maconha? Por
que maconha pode e cocaína não pode? Onde está a moralidade e a imoralidade se nós estamos
lidando com substâncias que alteram a consciência e representam perigo para a saúde, mas são
prazerosas? A questão está na liberdade e na responsabilidade de cada cidadão. Quem não sabe usar
não merece indulgência. É adulto e vacinado. Que assuma as responsabilidades por seus atos e
segure a onda. Quem vende não força a barra de ninguém. Atende a uma demanda que existe.
Demanda cuja origem é uma pessoa, maior de idade. Por que ser paternalista? Por que pretender
ensinar a cada um, a cada uma, o que é certo e errado? Cada qual sabe de si. Quem vende uma
droga ilícita ganha uma grana mas se empenha, perde tempo e energia para realizar uma tarefa que,
além de laboriosa, envolve riscos. Cumpre uma missão que não deixa de ter um sentido social. A
demanda pela droga existe. Não é uma invenção do comerciante, nem fruto da mistificação de
propaganda enganosa. Atender à demanda corresponde a preencher uma lacuna. Isso é, sim,
realizar uma função, e a natureza dessa função é social. Ambos beneficiam-se do negócio: quem
consome, porque tem acesso ao objeto de seu desejo; e quem vende, porque arrecada uma grana por
meio da venda. Essa grana responde a necessidades de quem vende, mas também do produtor e da
cadeia de intermediários. Há todo um conjunto de pessoas dedicando seu tempo, investindo suas
forças e correndo riscos para suprir a demanda. Por outro lado, se não fosse
Tudo ou nada 255
o desejo do consumidor, esse mundo de gente teria de buscar outras ocupações.
O raciocínio de Lukas não diferia do que passava pela cabeça de seus pares em Saint Barths e
nas ilhas vizinhas. O cálculo era mais ou menos o mesmo em toda a comunidade. Por que não? Que
venham os colombianos.
E fizeram carreira.
256 Luiz Eduardo Soares
O PRIMEIRO QUILO DE COCAÍNA
Foi natural, portanto, levar um quilo de cocaína na viagem a Miami para vender o barco. O quilo
de pó se destinava ao próprio consumo, à venda e aos amigos que, afinal, mereciam um mimo em
reconhecimento pela ajuda generosa que prestaram, conseguindo a casa para alugar em ótimas
condições e identificando possíveis compradores para o veleiro.
O quilo sintetizava o novo momento de Lukas. Ele se tornara o cara que cheira e não tem pejo
em negociar cocaína.
O quilo também era sintoma do grau de envolvimento com a rede da coca. Lukas não teria
dinheiro para comprar tanta quantidade. Ela era parte do pagamento pela participação em alguma
operação patrocinada pelos colombianos.
A boa notícia para quem se preocupasse com a saúde física e men tal de Lukas, e com seu futuro,
era a volta ao Brasil. Ele se desfaria do barco porque decidira retornar. A esposa apoiou sua
decisão. A filha precisava dele. Mesmo que viesse a estabelecer residência na costa baiana, estaria,
em certo sentido, próximo da filha. Poderia visitá-la, recebê-la e chegar rápido, numa eventual
emergência.
Contratados os dois inglesinhos, abastecido o barco, despedidas encerradas, tendo Marguerite
antecipado a volta ao Rio, Lukas, temporariamente solteiro, e a amiga do casal, Mercedes,
zarparam para a Flórida. Navegaram rumo ao norte, num clima de excitação artificial. Na verdade,
era uma viagem crepuscular. A filha já não preocupava tanto, mas exigia atenção, os planos
sofreram uma inflexão inesperada por motivos ingratos, a vida futura no Rio de Janeiro era uma
Tudo ou nada 257
52
incógnita. Ele não gostava da ideia de morar na cidade, sobretudo numa metrópole imensa e intensa
como o Rio. Passaram-se quase quinze anos de quietude e silêncio, sincopados por breves aventu-
ras, entrecortados por alguns sobressaltos. Cinco anos no mar, cinco no Pantanal, outros quase
cinco no mar. A adaptação ao cotidiano urbano exigiria um esforço considerável. Talvez as
gravatas o enlaçassem de novo, tanto tempo depois de seu grito de independência. Que emprego
encontraria? Para fazer o quê? A que estava disposto a renunciar? Até onde sacrificaria seu estilo
de vida? A que preço se daria esse ajuste?
Os desafios à frente não facilitavam a entrega plena de Lukas ao prazer de navegar. O mar evoca
oblívio e apaziguamento. Naquele capítulo de sua vida, não era possível acolher a evocação das
águas. Sintonizar-se com ela. Entregar-se a ela, integralmente. Lukas atravessou o trecho do
Atlântico até a costa dos Estados Unidos dividido entre o encantamento e a angústia. O pó lhe
serviu de remédio e veneno. Animava-o, trazia-o de volta à experiência celebrada no lema Carpe
Diem. No giro do parafuso, incinerava sua felicidade instantânea no inferno astral da fissura —
buraco que se cava a si mesmo, em espiral, moto perpétuo.
No fio da navalha entre altos e baixos, curando a angústia com a ligação do pó, mergulhando na
angústia com o fim da ligação artificial, Lukas transportou consigo uma carga mais pesada que as
anteriores. Com a diferença de que esta não estava no porão do veleiro, nem se prestava a negócios.
A carga era ele mesmo e o abismo vertiginoso de seu futuro. Trafegar sobre a linha tênue naquele
estado de espírito instável era um prenúncio do que estava por vir. De fato, muitos anos depois,
Lukas viria a descrever a chegada a Miami como o trailer dos capítulos subsequentes de sua
biografia. Enquanto vivenciava o que aconteceu, ao longo daquele dia inesquecível, intuía que seu
mundo se aproximava do colapso. O que ocorreu apossou-se de seu espírito com a força de um
presságio. A sensação intensíssima o remeteu à imagem noturna da sombra do veleiro esbatida no
oceano convulsionado.
A manhã de sol era quente. A luz se espelhava n’água, salpicando cintilações ao redor do veleiro
até onde a vista alcançava. Lukas acompanhou o amanhecer, transmitiu instruções a um dos
auxiliares que
258 Luiz Eduardo Soares
o substituiu no comando e desceu para pelo menos uma horinha de sono ao lado da gata que o
acompanhava.
A claridade exaltava os sentidos. O coro fosforescente dos repiques marinhos — as vagas suaves
no casco, o casco cortando a espuma — o deixou tão alegre que ele lambuzou-se daquela
abençoada felicidade matutina. Preparou um café. Desistiu de voltar a dormir. Contemplou a
mulher enrodilhada nos lençóis. Deitou-se a seu lado.
Ficaram ali os dois, desentendidos de tudo que não fosse pele, o corpo e seus espasmos.
Foram sacados da sincronia do arrebatamento pelos gritos do in- glesinho de plantão. Gritos
repetidos, quase histéricos:
— Lukas. Lukas. Você tem de ver isso aqui. Depressa.
O rapaz repetia a ladainha nervosa em inglês. Lukas sussurrou um palavrão. Mercedes
murmurou alguma coisa parecida em sua língua. Ela só xingava em espanhol.
Lukas meteu-se na bermuda pendurada na cadeira ao lado da cama e subiu as escadas aos saltos,
descalço, sem camisa. Que o caso fosse sério, pensava. Talvez dissesse baixinho para si mesmo.
Que fosse mesmo seríssimo. Ou ele jogaria o viadinho ao mar. Ao mesmo tempo, o canal da
lucidez, acionado pela chave do perigo, secretava o contrário: antes seja uma bobagem do marujo.
Melhor que seja uma babaquice do rapaz.
Mal pisou no convés, o jovem apontou o dedo. Lukas virou-se: o iate portentoso da guarda-
costeira deslocava-se com rapidez em direção ao veleiro. Não parecia haver qualquer margem de
dúvida. Vinha ao encontro do veleiro. Os inglesinhos não sabiam nada sobre o quilo de cocaína
escondido na cabine.
Lukas ordenou que o marujo chamasse o companheiro e que agissem com a mais absoluta
naturalidade. Não havia o que temer.
Correu para baixo. Tirou a amante da cama. Pediu-lhe que subisse ao convés antes que a
abordagem se concretizasse. Que ela fosse topless para transmitir uma impressão de tranquilidade a
bordo e para fixar a imagem de um casal curtindo férias com dois ajudantes que fazem o trabalho
pesado.
Lukas nem cogitou a hipótese de perder o quilo de cocaína. Sua companheira, sim. Discutiram a
respeito, brevemente. Ela considerou absurdo que ele sequer tivesse pensado nisso:
Tudo ou nada 259
— Vamos jogar isso fora enquanto é tempo.
— De jeito nenhum. A gente não pode perder o controle. Nesse tipo de situação, a gente tem de
manter a cabeça fria.
— Não perdi o controle. Falo com toda a calma. Estou pensando friamente. Estou sendo
racional. Você é que não está.
— Vai dar tudo certo. Vou pescar. Vou fingir que estou pescando há muito tempo. Você fica
aqui. Dá uma subida, passeia, fala comigo, mostra os peitos, os caras vão ficar loucos, vão ver que
nós somos um casal e pronto. Eles não têm por que entrar no nosso barco, que é nossa casa. Seria
uma invasão. Os americanos acreditam nesse troço: privacidade, propriedade. Não é assim... vai
chegando e vai entrando, vai invadindo.
Lukas não parava de tagarelar porque não sabia o que fazer. Os segundos iam passando e ele ia
sendo tomado por uma sensação terrível de desamparo, impotência, insegurança. Os piores
momentos de angústia desde que recebera a carta do amigo o alertando sobre os riscos a que a filha
estava exposta somaram-se e fundiram-se num coquetel, ali, à espera da visita da guarda-costeira
norte-americana, na costa leste da Flórida, a poucas dezenas de quilômetros de Miami.
A manhã que subiu ao céu tão linda no balão inflado de luz extraviou-se.
Ele tentava se tranquilizar. O que disse a Mercedes, na verdade, dizia a si mesmo. Insistia para
convencer-se. Repetia-se. Falava para ocupar os espaços internos. Vazios, seriam invadidos por
salteadores da guarda-costeira, fiscais, vigilantes e toda a infantaria de fantasmas persecutórios. Por
isso, insistia:
— Não é zona. Não é o Rio. Não estamos no Rio de Janeiro. A guarda costeira não é a polícia do
Rio. Você sabe. Aqui é assim: pra tudo tem de ter lei, licença, autorização. Os caras não podem
chegar e ir entrando. Não vão fazer isso.
— Eu vou subir, Lukas, vou fazer o que você sugeriu, mas vou deixar o saco do pó aqui, bem
aqui, prontinho, ao lado do vaso sanitário. Se eu perceber que eles vão entrar no veleiro, boto tudo
fora.
Lukas subiu ao convés. A embarcação continuava a se aproximar, mas o fazia lentamente. Muito
lentamente. Ele não entendeu. Chegou a duvidar se vinha mesmo em direção ao veleiro. Mas não
havia nenhuma outra hipótese. Nenhum outro barco que ele pudesse ver.
260 Luiz Eduardo Soares
De todo modo, ainda que os americanos não quisessem nada além de observar a distância, o melhor
seria colocar o plano em prática.
O equipamento de pescaria estava armado na popa como sempre, arrastando a linha e cortando a
água, naquela aposta persistente — eficaz pela teimosia — de que os tripulantes almoçariam peixe
fresco. Não custava deixar o barco puxar o fio. De vez em quando a sorte providenciava um
banquete caprichado. Lukas se deliciava quando o animal fisgado esticava a linha com um
solavanco até que o fio sustasse a tração. Seu pai sempre lhe dizia que era uma questão de sorte,
mesmo que a perícia ajude. Essa teoria tinha a vantagem de impedir que se atribuísse à sua
inabilidade os resultados vexatórios de suas constantes tentativas. A paixão paterna era a pesca. Era
mais do que um divertimento lúdico, mais do que paixão: vício. Como há o vício do jogo — caso
em que o jogo, paradoxalmente, perde seu caráter essencial, a ludicidade. Seu pai tinha de atirar a
linha sempre mais uma vez, não importava quantas vezes a lançara antes sem sucesso e quão
cansado estivesse. Compulsão de jogador. Jogador derrotado. Uma sina. Sempre perdendo,
falhando, jogando a linha em vão. Tinha vergonha, mentia, desconversava. Talvez por isso tenha
inventado a teoria complacente da sorte e do azar.
Lukas brincava com o fracasso do pai-pescador. Entretinha-se sem o mesmo humor diante do
veleiro estacionado na garagem da casa de praia, monumento a uma vontade de aventura extinta —
quem sabe?, um desejo de utopia, uma ânsia por transcendência extintos? O barco eternamente
fixado no estaleiro doméstico era um incômodo símbolo de renúncia, às vezes doloroso. O veleiro
adiado chegou a ser, no registro da sensibilidade adolescente de Lukas, uma espécie de me lancólica
declaração de impotência paterna ante os desafios da vida.
O impacto era duplo e ambíguo: a rebeldia própria à idade o incitava a jurar que nunca teria
garagens, que aboliria as garagens de sua vida adulta; a fragilidade do menino em crescimento o
fazia sentir-se desprotegido, solitário, abandonado — solto, perdido, sem norte, à deriva, em mar
aberto. O barco condenado ao porto lhe roubava o porto seguro, o único inteiramente confiável: o
pai. Desgarrava-se da âncora, a referência, o colo mais acolhedor de todo o cosmo.
Rememorando esses fatos e sentimentos, retorna com toda a força à mente de Lukas a imagem
de seu filho, enroscado em seu colo,
Tudo ou nada 261
mergulhado em sono profundo, na prisão de Belmarsh. Mergulhado para conectar-se ao pai no
porão mais remoto da casa de sonhos que guarda sua origem. Selando uma união que Lukas não
logrou construir com seu pai, a despeito de amá-lo e de receber do velho cuidados e afeto.
O equipamento de Lukas para pescaria não era nem um pouco sofisticado. No convés, atento à
aproximação morosa da embarcação policial, ele firmou-se no lado mais estável do estrado na popa
e sentou-se para observar as ondulações da linha no mar. Procurou fixar-se na pesca, concentrando
a atenção nos movimentos oscilantes da vara para distinguir os repuxos provocados pelas ondas dos
que pudessem indicar a luta do peixe fisgado para livrar-se do anzol. Em pouco tempo, rendeu-se à
imobilidade hipnótica da pescaria. Inverteram-se os polos: Lukas tinha sido fisgado; ocupava o
lugar do peixe.
Seja porque orbitava no circuito imantado pela gravitação da pescaria, seja porque a embarcação
policial se deslocara em maior velocidade depois que a esquadrinhara com seu binóculo, o fato é
que Lukas assustou-se quando suspendeu o maxilar e inclinou o pescoço: a guarda costeira
emparelhara com o veleiro, a menos de duzentos metros. O suficiente para ordenar com a voz
metálica de máquina marinha que as velas fossem abaixadas e o motor permanecesse des ligado.
Não chegava a ser um navio, mas era um iate adaptado muito maior, mais alto e potente do que o
veleiro. Guardas uniformizados podiam ser avistados nas laterais. Lukas foi informado de que seu
barco seria abordado para uma busca policial. Não se tratava de fiscalização rotineira. Tinha havido
uma denúncia de que um veleiro transportando drogas dirigia-se a Miami e passaria por aquela área
aproximadamente naquele horário.
Lukas deu o sinal combinado e Mercedes apareceu descontraída, topless, esgueirando-se até a
popa, onde ele permanecia, em seu posto de pescador. Os dois inglesinhos abaixavam as velas,
cumprindo a determinação das autoridades. Lukas representava o papel do pescador zeloso,
indiferente à fiscalização, obcecado pelo peixe por vir.
A embarcação policial aproximou-se até o limite de segurança — menos de cinquenta metros —
e preparou-se para descer a balsa que conduziria os guardas responsáveis pela busca no veleiro.
Lukas intuiu que os machões americanos, loucos por peitos, estariam comen-
262 Luiz Eduardo Soares
do a mulher com os olhos. Ele fitou a esposa, que lhe arregalou os olhos em sinal de que estava
pronta para retornar à cabine e livrar- -se da cocaína. Em sinal de que lamentava informar-lhe, mas
o que era necessário fazer tinha de ser feito. Seu prognóstico estava certo, portanto. O otimismo de
Lukas não tinha passado de wishful thinking, mais desejo do que avaliação sensata.
A mulher mal completara o primeiro passo, Lukas viu a linha ser puxada com violência. Ele
tomou posse do mecanismo que controla a sístole e a diástole da linha: cedia e puxava para exaurir
o peixe. Se a vara não estivesse fixada, se ele a segurasse nas mãos, teria sido arremessado ao chão.
Agarrou o controle com as duas mãos, apoiou-se, plantou os pés com firmeza e deu ao monstro
marinho mais linha, mais espaço e mais tempo de vida. A guerra prometia. Estava só começando.
Seu rosto iluminou-se e seu entusiasmo contagiou os inglesinhos. Alegraria Mercedes se ela não
fosse tão cética relativamente aos esportes que matavam animais, fingindo servir à sobrevivência
humana. Se ela não fosse tão cética relativamente à boa vontade policial. E tão ambivalente com as
drogas de um modo geral. Um lado dela certamente se frustraria se Lukas conseguisse resolver o
problema com a guarda costeira privando-a de livrar-se do pó. Era o que Lukas especulava, nas
frações de segundo de calmaria que lhe restaram antes do segundo puxão.
O peixe devia ser gigantesco. Sua força era descomunal. Ele gritou aos rapazes, pediu ajuda,
vibrou com a confirmação da conquista. O dorso escamado brilhou quando a luta corporal o trouxe
às proximidades da superfície. Lukas entreteve-se na queda de braço, enquanto debatia com os
rapazes a identidade do pobre animal. Seu conhecimento da fauna marinha era muito limitado, mas
no terceiro salto da vítima, que estrebuchava, não teve dúvidas: era um atum enorme, pesadíssimo.
Berrou aos americanos:
— Tuna, tuna, atum, atum.
Ergueu os braços em direção à embarcação policial, celebrando a vitória. Incitava, de certa
maneira, os fiscais ao congraçamento pelo triunfo. Dividia com eles sua felicidade. A balsa estava a
ponto de tocar as ondas. Os guardas permaneciam a bordo. Lukas vibrava e a espontaneidade era
evidente. O atum resistia. Mercedes alcançara os primeiros degraus da escada a caminho da cabine.
Os guardas
Tudo ou nada 263
acompanhavam os lances derradeiros da pescaria. O peixe se debatia. Alguns observavam de
binóculos o confronto. A amante de Lukas vacilou um instante. Lukas temeu que ela se
precipitasse. A linha distendeu-se outra vez. A fera ameaçou desprender-se. Lukas girou a
manivela, enrolou a linha, mediu forças com o atum. O pacote de cocaína já tinha sido aberto. A
coca vinha sendo consumida desde a partida. Lukas dizia, glosando Fernando Pessoa: navegar é
preciso, cheirar não é preciso, mesmo assim vale a viagem. Mercedes lem- brou-se das declamações
de mau gosto e mau agouro, detendo-se para apurar os ouvidos. Rasgou um triângulo no vértice
superior direito do pacote, porque o furinho no alto, à esquerda, por onde Lukas puxava as doses
diárias, lhe pareceu estreito demais para verter tanta quantidade de pó na privada com a rapidez
necessária. Ouviu brados dos rapazes e um uivo guerreiro do marido, e batidas seguidas no casco
do veleiro, e uma salva de urras e onomatopéias e palavrões. Um estrondo final a fez saber que o
atum agora expirava no convés. Deteve-se. Seria a senha decisiva para aplicar ao pacote a pena
capital? Não fazia sentido postergar, ela pensou. Basta de andar na corda bamba e passar sufoco.
Levantou o pacote e o levou à borda do vaso sanitário que já a esperava com a boca aberta.
— Estão indo embora.
Era a voz de Lukas. Ele lhe falava do alto da escada. Não o via, só o escutava. Ela parou onde
estava e perguntou o óbvio, numa espécie de automatismo sem razão:
— A guarda-costeira?
— Para. Não faz nada.
— Foram embora?
— Estão manobrando. Desistiram.
— Vão embora? Tem certeza?
— Não faz nada, entendeu? Deixa as coisas onde estavam.
264 Luiz Eduardo Soares
53
ENCONTRO MARCADO NA COSTA AMERICANA
Por um triz, ela pensou. Um triz. Não sentiu alívio, propriamente. Ou melhor, sentiu um alívio
dúbio. Novamente a ambivalência. Era bom que o susto tivesse passado sem o desperdício. Por
outro lado, livres da carga talvez ela e Lukas reunissem coragem para dispensar a carga que traziam
dentro de si: o desejo do pó. E talvez, assim, Lukas recebesse o estímulo que faltava para dar um
cavalo de pau em sua vida. De sua parte, estava disposta a apoiar o amigo e, agora, amante, numa
virada radical. Não o culpava por nada. Tinha consciência de que eram cúmplices. Em Saint Barths,
todos tinham sido cúmplices. O que faziam era compartilhado pela pequena comunidade de vele-
jadores e viajantes do espírito, para o bem e para o mal. Os gostos, vícios, prazeres, a preguiça
sacrossanta, a fruição saborosa das horas, as delícias do fumo a excitação do pó, tudo era dividido.
Até os negócios, por mais breves e eventuais que fossem, eram em alguma medida partilhados, pois
quem não investia força física investia energia psíquica, medo, ansiedade, preocupação,
insegurança, solidariedade. E, claro, beneficiava-se dos ganhos colhidos pelos outros.
Enquanto guardava o pacote de pó, concluía que tinha sido mesmo melhor assim, porque,
realisticamente, se a coca tivesse ido pelo ralo, Lukas daria um jeito de comprar o suficiente para o
consumo e ainda por cima se meteria em alguma confusão para levantar a grana do aluguel. Ilusão
supor que Lukas se resignaria e aproveitaria a perda para estender a abstinência, torná-la definitiva,
transformá-la num modo de vida, acomodar-se às consequências desse novo estilo e sacrificar o
prazer imediato por uma bela conta bancária e uma gravata
Tudo ou nada 265
de seda pura. Ele simplesmente não era assim. Não fazia o tipo. E a escolhera para amante, assim
como escolhera a esposa, porque elas não esperavam isso dele. Tampouco ela era passiva nessa
história. Não era vítima de um amante toxicômano, assim como Marguerite não era vítima de um
marido autorreferido e desalmado, lunático e nômade. Elas também o escolheram. Mercedes
conhecia a história de Marguerite. Sabia que ela vinha de uma frustração amorosa, um casa mento
desfeito com uma mulher linda e madura, de sua idade, rompido pela rigidez de ambas, pela
imposição de expectativas irrealistas, por um jogo trivial e pequeno de poder, por um duelo
adolescente de vaidades, pela corrosão visceral do ciúme. O amor por Lukas foi a culminância de
uma peregrinação: correspondeu à descoberta de que os planos são a ruína, a ruína antecipada.
Planos dissolvem-se, modelos derretem, objetivos na vida dissipam-se, razão de ser não há — ou se
inventa uma, se for preciso, em cada momento. O que se tem é o que há. Lidar com o que existe e
está ao alcance da mão é o mais laborioso, o mais exigente, pois esta espessura do real, esta
ostensividade do que está aí, na nossa cara, liquida justificativas e caraminholas especulativas com
as quais explicamos a nós mesmos nossa incompetência para a felicidade. Explicações falsas,
bizarras. Artifícios que usamos contra nós mesmos, sob o pretexto de nos consolar. Enganos que
geram enganos e nutrem outros enganos. Rosário de máscaras. De falsidade em falsidade, vive-se
uma vida de mentira. Como uma biografia romanceada. Uma narrativa fictícia que fragmenta a vida
real.
Elas não eram quaisquer mulheres. Tinham ideias e personalidade fortes. Lukas não se
apaixonaria por qualquer mulher. Lukas contava entre suas virtudes naturais o desapreço por
mulheres fracas, vulneráveis a manipulações. Sua mãe sempre foi uma fortaleza e sua filha copiou
o modelo. Marguerite, sua terceira esposa, planava longe, alto, no céu claro, parecia desligada de
tudo, aérea. Mas enxergava o essencial na confusão milionária do supérfluo com olhar agudo. Sua
visão crítica era flecha. Voo de águia. Mercedes também tinha olhos assim, e os aplicava à rival.
Por isso, flagrava sua alma e se inspirava em sua flama. A tal ponto queimava esse enlevo que
chegara a duvidar se não era Marguerite quem ela buscava no amor temporário daquele homem.
266 Luiz Eduardo Soares
Lukas desceu à cabine feliz. Amando o momento. Amando a mulher que não se precipitara,
mantivera a frieza até o fim, não o traíra. Idolatrando a manhã americana que o presenteara com um
atum extraordinário. Reverenciando o oceano abençoado que lhe oferecera a presa formidável —
nem antes nem depois — no tempo preciso. Desceu feliz do convés, amando a mulher cujo topless
só a ele era dado curtir privadamente. Desceu disposto a amar Mercedes.
Amavam-se, ainda, meia hora depois, quando os inglesinhos cortaram o barato do casal.
Gritaram o nome de Lukas, desesperados. Ele mal teve tempo de recompor-se. Enfiou-se na
bermuda e voou escada acima — hormônios e adrenalina fervilhando. Ela puxou o lençol para cima
do corpo e embrulhou-se, entre espasmos e tremores, o susto apagando as reminiscências do prazer.
Lukas ainda teve tempo de sussurrar alguma coisa para a amante, que ela decodificou como um
alerta. Ele balbuciou algo como “voltaram, caralho”. Ela aprumou-se em uma fração de segundo,
eletrocutada por um raio de lucidez. Correu até o pacote e preparou-se para cumprir a missão
interrompida. Se a guarda costeira voltou, desta vez não haveria moleza. Acionou todos os
circuitos. Exorcizou o pânico. Tentou conter-se. Respirou. Maldisse a hora em que aceitara o
convite de Lukas para acompanhá-lo até Miami. Deixou o lençol cair. Concentrou-se no pó e na
audição. Nua ou vestida, que diferença faria? Era preciso descobrir o que estava acontecendo no
convés. Tinha de ouvir o que se passava. Acendeu todos os neurônios conectados à sensibilidade
acústica.
Lukas bufava, perplexo. Tentava entender o que estava acontecendo. O que seus olhos
mostravam não fazia sentido. A cena que via era esta: um barco longo e baixo, de um tipo raro,
velocíssimo, colado à borda do veleiro, batendo na lateral ao ritmo das ondas. De pé, dois homens
com os rostos escondidos por toucas ninjas, armados, falavam em espanhol com os inglesinhos. Os
jovens não eram poliglotas. Olhavam-se, perplexos. Voltaram-se para Lukas, pedindo-lhe ajuda.
Não entendiam bulhufas. Não sabiam o que estava acontecendo. Os homens continuavam a falar
num tom cada vez mais agressivo. Apontavam as armas para baixo, o que já era um consolo. Lukas
perguntou de que se tratava. Recorreu ao seu portunhol, que sempre dera para o gasto.
Tudo ou nada 267
— O que vocês querem?
— Viemos buscar a carga.
— Quem são vocês?
— Temprano en la tierra sin males.
Quando o mais baixo disse essa frase, como o poeta que declama seu poema, Lukas intuiu tratar-
se de uma senha. Por isso mesmo, fez questão de afirmar que não compreendia.
— Não entendi.
— Passa a carga. Viemos buscar.
— Que carga?
— Temprano en la tierra sin males.
Lukas percebeu que o sotaque era diferente. Não eram americanos, mas tampouco colombianos
ou sul-americanos. Talvez fossem porto-riquenhos. Insistiu em seu esperanto latino, o portunhol:
— Não sei de que vocês estão falando. Estou pescando com minha mulher e os ajudantes. Ela
está na cabine. Acabei de pescar um atum. Um atum imenso. Querem um pedaço? O peixe é a única
carga a bordo.
— A latitude é esta, a longitude está correta, a hora é esta.
— Tudo bem, mas há algum engano. Posso estar no lugar errado, na hora errada. É uma
coincidência, entendem? Uma coincidência. Não sou a pessoa que vocês procuram. Este é meu
veleiro. Não é o barco que vocês procuram.
Os dois homens falaram entre si numa rapidez que tornou ininte ligível seu dialeto. Discutiram.
Pareciam discordar. Não paravam de bater boca. Um dos inglesinhos olhou para o patrão,
amedrontado, interrogativo. Lukas desejou que Mercedes viesse ao convés, mas não a chamou,
porque temeu por sua segurança. Sua presença confirmaria a declaração de Lukas: eram apenas um
casal a passeio. Todavia, linda e sedutora, exalando sensualidade, sabe-se lá o que provocaria nos
malucos armados. Procurou manter-se calmo.
Enquanto os loucos de ninja decidiam o que fazer, Lukas teve tempo para pensar. Deduziu por
que ninguém notara a aproximação dos dois sujeitos. Vinham muito rápido e contra o vento. Por
isso surpreenderam. Além disso, não era coincidência. Havia, de fato, um encontro marcado
naquele ponto do mapa. Um encontro entre um barco que transportava o carregamento clandestino e
esses dois malucos, cuja
268 Luiz Eduardo Soares
função era receber a mercadoria e levá-la a outro sócio. Resolveu assustar os ninjas:
— Há pouco tempo, a guarda-costeira abordou meu veleiro. Estavam buscando o mesmo que
vocês. Tinha havido uma denúncia. Vasculharam meu barco de fio a pavio. Não acharam nada e
foram embora, mas devem estar circulando por aí.
Os dois homens se olharam, puseram as armas no chão, um deles postou-se no timão e acelerou,
o outro empunhou o binóculo. Desapareceram em alta velocidade.
Lukas lembrou que a amante ficara na cabine sem noção do que se passava. O pacote de cocaína
poderia estar vazio àquela altura. Repeliu a ideia abominável e correu escada abaixo. A mulher
parecia uma estátua de sal, charmosa e nua: imóvel, o pacote inclinado. Tudo pronto para o ato
final. De novo, a coca foi salva por pouco. A estátua de sal era tão linda que Lukas mudou o canal
interno sem pensar duas vezes. Trocou o thriller de aventura náutica pela sessão em louvor a Eros.
Tinha uma dívida a saldar com o deus do amor.
Tudo ou nada 269
54
DO PÓ À HEROÍNA: A VOLTA AO LAR
Miami acolheu o casal com delicadeza e conforto. Para todos os efeitos, formavam um casal.
Mercedes só se despediu do amante e pôs o pé na estrada para cumprir seu destino americano
quando Lukas voltou ao Brasil.
A casa alugada era excelente em todos os sentidos, do preço à localização. Oferecia um
atracadouro privado que facilitava a rotina. Os pertences podiam permanecer guardados no veleiro.
Ao mesmo tempo, a casa podia ser usada quando conviesse. Era fácil mostrar o barco aos
potenciais compradores. Muitos visitaram o veleiro, mas a venda só foi definitivamente fechada
dois meses depois. No meio- -tempo, Lukas monitorou a situação da filha. O amigo mobilizara avó
e tia, e Marguerite lhe dava notícias diárias. Amigos e parentes mantinham-se em guarda. A ex-
esposa iniciara um tratamento de desintoxicação. Internara-se. A avó e a tia se alternavam nos cui -
dados da menina. Esse quadro era tranquilizador. Lukas respirou aliviado mais uma vez. Relaxou.
Tanto que reviu planos, instado por Marguerite. Voltaria, sim, a seu país, mas não para o Rio. Pelo
menos não de imediato. Faria uma parada de adaptação. Passaria uma temporada no litoral da
Bahia. Quem sabe ele e a mulher não se animariam e abririam uma pousada, n’algum paraíso
natural baiano? Teriam dinheiro suficiente para curtir a ideia e as férias brasileiras, as primeiras
depois de quase cinco anos. Nada de precipitações. Não havia razão para isso. A filha estando bem,
a ex-mulher, mãe de sua filha, convalescendo, por que se preocupar com decisões futuras, que ao
futuro pertenciam?
Tudo ou nada 271
Lukas e a esposa passaram quase três anos no litoral baiano e o período não chegou a ser
propriamente adaptativo ao Brasil ou ao novo modo de vida que o fim das reservas financeiras
determinaria. Esse foi um tempo de festas e dissipações. Festas frequentadas por uma intrusa antes
banida do convívio com a galera de Lukas. Uma intrusa complicada, controvertida, problemática,
sedutora e perigosa: a cocaína. O pó invadira definitivamente o mundo de Lukas e se impusera
como a fonte primordial de prazer e energização da vida.
Era ainda uma fase de abundância. Dinheiro no bolso. Mesa farta. Fartura de pó. Nenhum
envolvimento em negócios escusos foi necessário. O veleiro, mais dia, menos dia, extinguiu-se.
Lukas, as amantes que se multiplicaram, os companheiros das celebrações e sua esposa cheiraram
o veleiro até a última carreira.
Esgotados os recursos, abria-se a estação do trabalho e, quem sabe?, da caretice, da gravata e da
disciplina.
Mudaram-se, finalmente, para o Rio de Janeiro. Lukas recebeu com alegria a guarda da filha.
Em 1990, nasceria seu filho. Tornaram- -se, então, um casal como qualquer outro. Ou quase. A
diferença relativa ao modelo convencional continuava sendo o pó e passara a ser, crescentemente,
a heroína. Maconha e haxixe constavam do cardápio. Nunca foram excluídos. Mas ocupavam o
segundo plano na hierarquia dos desejos. O cigarro era um caso especial. A nicotina sempre foi o
veneno mais fiel. Seu lugar jamais seria contestado. Veneno legal tem status distinto. Nem sequer
frequenta o cômputo das culpas mais fundamente arraigadas.
Lukas recomeçava a vida na grande metrópole com família para sustentar e sem profissão
definida, porque abandonara a economia antes de formar-se — era bom demais no mercado
financeiro para perder tempo com formalidades e diplomas.
A chance que surgiu, ele a agarrou. Não pensou duas vezes. Integrou-se à equipe administrativa
de um estaleiro privado, cuja sede funcionava atrás do grande mercado da região metropolitana do
Rio de Janeiro, onde firmas comerciais compram gêneros alimentícios no atacado para vendê-los
no varejo. O mercado dava um colorido todo especial ao lugar. Os negócios, as mercadorias e os
agentes encontravam-se quase de madrugada, nas primeiras horas da manhã, nesse imenso galpão,
na avenida Brasil. Frutas, legumes, verduras, ovos,
272 Luiz Eduardo Soares
laticínios chegavam, eram exibidos e saíam, em seguida, correndo pelos afluentes que
desembocavam nas bancadas, nos bairros, para o consumidor final. O estaleiro — atrás do
gigantesco circo de negócios e independente de seus cheiros e de sua agitação febril — era apenas
um dos ramos em que atuavam seus proprietários.
Ao contrário da superfeira de tantas cores e cheiros, o estaleiro fedia a ferrugem e maresia, mas
tinha a vantagem de manter Lukas próximo do mar e de seus temas. Ele fez amizade com os
patrões. Eram empresários estrangeiros, recém-chegados ao Brasil, exilados pelo fim das ditaduras
às quais serviram e das quais se beneficiaram. Sem vínculos profissionais estritos, tradição
operacional sedimentada e desprovidos de máquinas empresariais suficientemente implantadas, não
teriam futuro no mundo das embarcações. Embora pouco significasse para seus donos, do ponto de
vista financeiro, a decadência dos estaleiros, que já se insinuava no horizonte, seria sintomática da
derrocada moral e psicológica a que o exílio estaria naturalmente associado.
Lukas divertia-se, por vezes entediava-se, deambulando em meio às tribos que circulavam por
entre as bancadas, no grande galpão popular vizinho ao estaleiro. Ele curtia observar o frenesi da
bolsa de alimentos, que lhe recordava os velhos tempos. Faltava, ali, entretanto, o glamour lúdico
da bolsa de valores, cuja realidade era virtual e, portanto, desconectada da matéria que cheira e
apodrece.
Os novos amigos de Lukas nadavam em dinheiro, mas amargavam o desterro. Picavam-se para
não se desesperar. A heroína edulcorava a ferrugem da paisagem que, gradualmente, se degradava.
As ampolas da droga tornaram possível a metabolização de um enredo de declínio e esvaziamento.
A trajetória de Lukas emparelhou-se à dos parceiros. Espelhavam-se, em certa medida. Vivia
também ele uma sorte de exílio. E de declínio. O amanhã esvaziava-se também para ele.
Os negócios começaram a naufragar na posse de Fernando Collor de Mello. O primeiro
presidente eleito em eleições diretas e livres, depois de 24 anos, acabaria destituído por um
processo de impeach- ment, acusado de corrupção. Tanto quanto aos episódios que conduziram à
perda legal do mandato, sua ascensão e queda meteóricas ficarão na história associadas à mais
radical e desastrosa política econômica de que se tem notícia na história do país. Assim que
assumiu
Tudo ou nada 273
o posto máximo da República, Collor bloqueou o acesso de todos os cidadãos a seus saldos
bancários que excedessem determinada importância — bastante pequena. Assim, todos os recursos
depositados nos bancos, acima do valor de referência, permaneceriam retidos por um longo tempo.
Essa medida inconstitucional e draconiana que visava acabar com a inflação quebrou as empresas
que precisavam de capital de giro, congelou o comércio, inviabilizou negócios, paralisou a
economia, hipertrofiou o autoritarismo do Estado e a desconfiança do cidadão, gerou assimetrias
injustas, aprofundou desigualdades, impôs a recessão e o desemprego, e arruinou muita gente.
Quando o desastre alcançou proporções cataclísmicas e o arrocho desastrado cedeu, a inflação
disparou, revigorada. A tempestade começou a varrer a estrutura na qual Lukas obtivera emprego e
novos amigos. Em mais três anos ele perderia o emprego e o estaleiro enfrentaria dificuldades
extremas. A crise não foi favorável à saúde física, mental e moral da nação e de seus membros.
Particularmente daqueles que, como Lukas, já estavam dependurados na borda do precipício
quando o trator do despotismo econômico os atropelou. Ele perdeu o emprego, gradativamente
afastou-se da turma que o introduziu na quintessência da heroína, mas não perdeu o gosto pelo
encantamento mais recente.
274 Luiz Eduardo Soares
55
A SOMBRA NA COLEIRA
Lukas abrigou-se numa produtora de cinema cujos sócios eram velhos conhecidos. Cumpria seu
horário como todo mundo e fazia hora extra, mas também circulava na rede clandestina onde
comprava um pouco de tudo de que precisava, para si próprio. Nada de lamúrias e moralismos.
Lukas se irritaria profundamente com uma conversa desse tipo, que conduzisse a especulação para
o terreno crítico e ju- dicativo. Abominava esse papo. Até mesmo quando era suscitado por sua
mãe. Especialmente vindo de sua mãe. Que a esposa não ousasse enveredar por esse caminho. O
casamento, que andava mal das pernas, desceria ladeira abaixo. Ela sabia, provavelmente. O pacto
matrimonial não comportava ilusões e hipocrisias. Ela conhecia os limites do marido. Sabia
perfeitamente o que ele estaria disposto a ouvir, até onde ela poderia ir, e o que o ofenderia, lhe
provocaria indignação extrema. Calava-se, então. Compartilhava o estilo de vida, os riscos
envolvidos, andava de mãos dadas com o marido sobre o fio da navalha, mas recuava antes dele,
controlava-se com mais autoridade sobre a própria vontade, sabia ser mais prudente, prezava a
lucidez.
A vida em transe tinha graça até um certo ponto, a partir do qual se tornava monótona,
previsível, essencialmente insatisfatória, mecânica, angustiante e depressiva. Alguém no casal tinha
de segurar a onda. Alguém tinha de organizar o cotidiano das crianças e pagar as contas. Ela
desempenhava bem essa função — ainda que recorrendo ao dinheiro ganho pelo marido, e ganho
decentemente. Ela contribuía, gostava de trabalhar, ter a sua grana, cercar sua autonomia de
garantias materiais, contudo, dadas as circunstâncias, dedicava-se
Tudo ou nada 275
principalmente ao filho e à enteada, à casa e à preservação da ordem doméstica. Por isso,
acompanhava Lukas apenas parcial e eventualmente. Não mergulhou lado a lado com o esposo nas
experiências com a heroína e depois com o coquetel do qual nada ficava de fora, nem o pó nem a
maconha. Haxixe era cobiçado, mas difícil de conseguir, no Rio. Precisava preservar-se do
naufrágio que se avizinhava. Era óbvio que se avizinhava. Em algum nível mais sutil de sua mente,
ela percebia que o naufrágio inundaria sua vida e arrastaria o casamento para o ralo. A crise se
aproximava.
Quando Lukas abria a guarda e lhe oferecia uma brecha, ela ousava dizer-lhe algumas coisas
duras e o alertava. Não queria ser cúmplice por indulgência e omissão. Embora reconhecesse que
lidava com questões delicadas e penetrava um planeta fortemente defendido: a cabeça de Lukas.
Conhecia o arsenal de explicações e racionalizações, e o festival de autoengano com que o marido
se iludia. Ele fingia um autocontrole inexistente. Fantasiava e representava uma autoconfiança
inexistente. Exalava uma serenidade inexistente. Rondava cabisbaixo o abismo, atormentado pelo
tamanho da sombra que projetava. Assombrado pelo que trazia consigo e não era ele. Torturado
pelo que, nele, não era ele.
Ninguém se basta: há o corpo. O corpo e suas extensões: água para beber; alimentos para comer;
ar para não asfixiar; espaço para exercitar braços e pernas, pescoço, mandíbulas; luz para realizar o
sentido da visão; uma temperatura compatível com a fragilidade da natureza humana; outro ser
humano para que a imagem do humano se construa e sirva de espelho para a identificação do
sujeito, que assim recebe nome, ganha rosto e acesso à linguagem; este outro remete a outro, e, por
extensão, a um conjunto humano que ocupa o vértice do triângulo, permitindo à dupla que
dialogue, se relacione e pratique os sentimentos e a sensualidade que formam a musculatura do
espírito. Tudo muda, entretanto, quando adere ao corpo outra fome: a fissura, a dependência. O
vício gasta o fogo do desejo fazendo-o arder em vão, até consumir o óleo da vida. Nenhum
apaziguamento no horizonte. Nenhum porto à mão. Nenhuma terra à vista. Nem mar, nem país,
nem descanso algum. Não há mais nada. Depois do vício não há nada. Enquanto está aí, grudado no
sujeito, inseparável de Lukas — seu duplo, irmão siamês, gêmeo de sua fome —, o vício é o que
existe,
276 Luiz Eduardo Soares
o que há, e é quem manda. A dependência é soberana. É ela quem deseja pelo sujeito. É ela quem
fala e sente por Lukas. Ela reina no vasto deserto do ser. Lukas quer mais. O vício quer mais.
Lukas está exausto. Quer dormir. Apagar. Sumir. Evaporar. Lukas está saturado. Esgotado.
Estafado de tudo. Sobretudo de si mesmo. Exausto da vida. Lukas quer morrer.
A noite anterior atravessou acordado, vigilante como um porteiro diligente. Vigilante para
evitar que alguma janela se abrisse e alguma ideia forte de mudança o derrubasse no contrapé,
num momento de fraqueza. Uma ideia à qual o impulso vital o fizesse agarrar-se. O dependente é
antes de tudo um conservador. Luta por todos os meios e com toda a energia contra o canto de
sereia da mudança, que às vezes se infiltra, seduz, insinua-se e tenta derrubar a defesa cerrada que
protege a velha ordem psicológica: uma terapia, a desintoxicação, um recomeço, a chacoalhada na
bagunça de sua cabeça e de seus dias. Outra noite insone, outro dia perdido. Lukas se arrastava
quando não dormia. A experiência mais dolorosa, embora rotineira, era cheirar a última carreira de
cocaína com o dia amanhecendo, consciente de que não haveria tempo para relaxar e dormir
quando o efeito declinasse. Pelo contrário, coincidiriam os fusos horários: a curva descendente da
excitação artificial cruzava a curva ascendente das obrigações profissionais no ponto crítico. A
consequência era a seguinte: a noite passava o bastão para o dia transferindo-lhe um baixo-astral
pesado e o cansaço cósmico, justamente quando o dia demanda energias re compostas da noite
finda.
Pois, então, Lukas arrastava-se dia adentro. Acrescente-se ao quadro mais uma tonalidade
sombria: a falta de energia, quando não era rebatida por outras carreiras — que adiavam e
agravavam o problema —, Lukas a portava nos ombros como se fosse uma cruz de culpa.
Aconselhava a cabeça a espanar o corvo da culpa. Sabia que a culpa não era boa companhia. Não
lhe faria bem. Não o estimularia a promover as revoluções necessárias — sim, é claro que em
algum lugar de sua mente, Lukas sabia disso. Tampouco lhe permitiria extrair pra zer de suas
escolhas. Liquidaria com o que restava de sua autoestima, o que quer que isso significasse naquela
altura do campeonato. E quando não se tem valor, por que recomeçar? O que é, afinal de con tas,
que mereceria ser salvo por uma mudança, por um renascimento?
Tudo ou nada 277
56
GORDON
Lukas arrastava asas negras como quem traz a sombra na coleira. Chorar, não chorou. Coisa tão
rara, Lukas chorar. Mas era como se chorasse. Como se chorasse copiosamente, torrencialmente,
vertendo rios e mares, inundando a cidade. Até que alguém o avistasse na ilha que se formava sob
seus pés e lhe lançasse uma balsa ou pelo menos lhe acenasse.
Foi o que aconteceu. Exatamente.
Ele se sentara num dos bancos de pedra na marina da Glória. Volta e meia fazia isso na hora do
almoço. Comprava um sanduíche, um refrigerante, municiava-se de dois guardanapos, verificava se
havia cigarros suficientes no maço e caminhava até a marina, o lugar mais próximo do centro, onde
trabalhava, que o fazia sentir-se em casa. E ficava ali, contemplando o mar, os iates, os barquinhos
menores, os veleiros e o movimento das pessoas que cuidavam das embarcações. Quando a
angústia comia sua fome, ia assim mesmo, fumava um, dois, três cigarros, olhava a baía de
Guanabara, o relevo, vagava por ali, esticava o passeio para conhecer melhor um ou outro barco
mais próximo e se deixava ficar imaginando outro veleiro, outras viagens.
Este era um desses dias para jejuar. Sentou-se. Acendeu um cigarro. Observou a marina, o
Museu de Arte Moderna, o monumento aos pracinhas, o aterro do Flamengo, adiante. Testou a
vista e tentou identificar o outeiro da Glória, voltou-se para o lado oposto, pôs-se de costas para o
mar, olhou na direção da Cinelândia, lembrou-se do palácio Monroe, onde funcionava o Senado da
República quando o Rio era a capital, e perguntou-se qual foi o cretino que mandou derrubá-
Tudo ou nada 279
-lo. O cretino, pensou, de fato merecia a forca. Era um criminoso, isso sim, assassino da memória,
da história. Canalha. Encheu-se de cólera, uma estranha ira cívica. Isso era incomum, mas lhe fez
bem. A raiva o despertou, lhe deu um pouco de ânimo. Para odiar é preciso ânimo, concluiu. Ainda
havia algum dentro dele, era bom saber. Era bom sentir. Tanto havia que se mobilizou pela raiva do
filho da puta que demoliu o palácio Monroe. Demorou-se nessas fantasias. Pôs em cena, lado a
lado, o mar atrevido ralando as pedras da avenida Beira Mar, antes de Carlos Lacerda e do aterro
do Flamengo, e o símbolo oval da Esso, no alto do prédio, quase na esquina da rua Senador Dantas,
que Caetano cantou nos tempos da Tropicália.
A nostalgia lhe fez um bem danado. A relação com o Rio de Janeiro era de amor e ódio. Odiava
o ruído, a poluição, a decadência, a sujeira, o improviso, o abandono. Adorava o visual, a
variedade, a presença do mar e a possibilidade de afastar-se que a cidade oferecia a quem a sabia
explorar. Meter-se nas florestas e sumir, meter-se no mar e sumir, subir trilhas íngremes e sumir:
essas hipóteses eram reais. Lukas deleitava-se, inquirindo-se essas e outras saídas que o Rio
proporcionava. Ele é que não estava muito bem-posicionado no planeta para oferecer saídas. Não
havia saídas, portas de saída decentes e viáveis, estratégias de saída realistas. Recusava-se a
considerar soluções extremas. Não faziam seu gênero, por mais deprimido que estivesse.
Voltou-se para o mar. Suspendeu o Rio antigo e as vias futuras do êxodo. Fixou-se no mar.
Namorava a ideia da navegação e do veleiro todos os dias, mesmo sabendo que não fazia sentido.
Tinha os filhos, amava os filhos. Se não fosse por mais nada, que fosse pelos filhos. Eram a âncora
e ele prometera a si mesmo que não trairia o amor que sentia por eles, nem o amor que ambos lhe
devotavam. Era pai, afinal de contas. Isso é o que ele era. Aguentaria firme o rojão. A onda mais
cedo ou mais tarde, de algum modo, passaria. Viria outra, n’outra maré, com ventos diferentes, e
seu destino engataria numa rota mais feliz.
A angústia teimava em sepultar a esperança. Não se tratava de ideias contra ideias. Nada era
mental naquele momento. A angústia era um movimento físico no esôfago, que se espraiava para a
traqueia e o fazia engasgar. Se não se levantasse e respirasse fundo, erguendo o maxilar, asfixiava-
se. Portanto, ele não era vítima de males psicoló-
280 Luiz Eduardo Soares
gicos ou emocionais. A coisa que o atormentava estava em seu corpo, ainda que ele reconhecesse
sua imaterialidade. Ele concordaria que não era uma doença física, mas descartava abstrações.
Achava que a psicologia lidava com abstrações. Abominava abstrações quando o soco na boca do
estômago o fazia dobrar-se, quando o esôfago e a traqueia trincavam seu sistema respiratório e ele
via-se obrigado a saltar e elevar a cabeça para sobreviver. Chamava aquilo de angústia corporal,
desinteressado em fundamentar o nome. Bastava-lhe o nome para afastar de si o mal e percebê-lo
como um objeto ou um inimigo. Libertava-se da culpa e da hipótese de autodestruição, que o
irritava vivamente. Botava o sofrimento no corner, punha-se no outro e esperava o sinal do gongo
para lançar-se ao pugilato. Que vencesse o melhor. Ria das baboseiras com as quais se lambuzava.
Não se iludia nem com as mentiras que contava a si mesmo a seu próprio respeito. Sabia que se
masturbava com os sentimentos desgovernados e as imagens aceleradas que o alucinavam.
— Lukas, Lukas, Lukas.
Por falar em alucinação, pensou... jurava que ouvira seu nome.
— Lukas.
Era seu nome. Era seu nome, sem dúvida. A voz... parecia uma voz conhecida.
— Lukas.
Era, sim, com toda certeza, uma voz conhecida. Voz de alguém conhecido. Mais ainda: íntimo.
Um amigo?
— Lukas.
Mas que diabo. Quem o estaria chamando? Que amigo, ali? O som vinha do mar. A pronúncia
era de um conhecido, provavelmente um amigo, mas um amigo estrangeiro.
Pôs-se a olhar em direção à voz.
Avistou mãos acenando como flâmulas na ponta de mastros agitados, no meio do trançado de
postes e velas enroladas, entre as colunas de madeira do cais.
Sim, era Gordon. Gordon, o amigo querido. Um cara bacana, o Gordon. Adorava o Gordon, que
saudades:
— Gordon, Gordon.
Pulou como criança, agitando os braços feito mastros e as mãos como bandeiras de alegria.
Tudo ou nada 281
— Gordon, oh!, my God.
— Lukas.
— Gordon, is that you?
— Come right here you son of a bitch.
Lukas correu para a estreita plataforma que se estende algumas dezenas de metros mar adentro
até o ponto mais próximo do iate do qual Gordon continuava acenando com os dois braços, que se
cruzavam acima da cabeça. Lukas pôde vê-lo perfeitamente:
— Man, you look great. Great.
— You too, my friend. You too.
— Saudades.
Do português macarrônico que aprendera com Lukas vários anos antes, Gordon retivera poucas
palavras, mas desta não se esquecera. Respondeu na mesma moeda, portanto, em seu sotaque sul-
africano:
— Saudades.
Saudavam-se como dois irmãos. Eram o mais próximo disso, pelo menos para Lukas. Gordon
prosseguiu, em inglês:
— Vem cá. Vem me dar um abraço.
— Como é que eu chego aí?
— Que coincidência, rapaz. Maravilhosa coincidência. Vem.
— Como é que eu faço? Como é que eu chego aí?
— Tem um jeito, mas o mais prático é você pular pra esse barco na sua frente, depois pro outro,
ali. Vem logo, cara.
Lukas olhou para os lados. Certificou-se de que estava só. Pulou para o primeiro, o segundo,
passou pelo terceiro, subiu a escadinha e saltou a bordo do iate formidável de Gordon.
282 Luiz Eduardo Soares
57
VELHOS AMIGOS
Abraçaram-se. Festejaram o reencontro. Gordon abriu um champanhe francês que mantinha na
geladeira para ocasiões especiais. Lukas não bebia, nunca fora do álcool, mas não faria uma
desfeita ao velho companheiro de tantas jornadas. Era hora de recordar e brindar. Duas lindas
moças foram apresentadas a Lukas. Claro que ele fora criado com esmero e era educado o bastante
para não fazer perguntas nem sobre as jovens nem sobre a família de Gordon. Se ele quisesse, que
trouxesse o assunto à baila, nas circunstâncias que julgasse apropriadas e do modo que avaliasse
conveniente. Amigos, sim, até íntimos, mas a privacidade tem seus mistérios e suas sutilezas. Não
fora a privacidade, afinal de contas, o terreno das idiossincrasias. As máscaras sociais variam, mas
são, até certo ponto, intercambiáveis. E na vida privada que as singularidades ganham forma — as
singularidades que distinguem os indivíduos inapelavelmente, irredutivel- mente. As singularidades
incomensuráveis.
Além do mais, fazia tempo. Não se viam havia já alguns bons anos. Nunca brigaram, sequer se
desentenderam. Davam-se muito bem. Foi o acaso que os afastou. O mesmo acaso que promovera
seu primeiro encontro, quando Lukas estava em sua primeira etapa de viagens marítimas. E ainda
ele, o acaso, era também o responsável pelo reencontro naquele começo de tarde, na marina da
Glória.
A empatia recíproca tinha sido imediata e espontânea desde que se conheceram. Gordon era
adolescente. Fugia com a família do regime racista sul-africano para o Brasil. Eram sul-africanos
brancos porém decentes. Não suportavam o convívio com a indignidade do
Tudo ou nada 283
apartheid. Aproveitaram a regata Cidade do Cabo-Rio de Janeiro e vieram de mala e cuia. Lukas
participou da regata e se afeiçoou à família. Simpatizou com o garoto extrovertido, exultante com a
mudança de ares. O espírito de Gordon contrastava com o baixo-astral vigente no resto da família.
Parecia que todos haviam perdido alguma coisa muito importante, ainda que tivessem decidido
emigrar por vontade própria. Menos Gordon. Apaixonara-se pelo mar e o veleiro. Sentia-se em
casa, navegando. Adorava o Rio de Janeiro. Amor à primeira vista.
— Me diga. Conta tudo. Não deixa nada de fora.
— Gordon, como eu gostaria de ficar aqui, com você, botando a conversa em dia, matando a
saudade. Mas tenho de voltar ao trabalho. Aproveitei a hora do almoço pra dar uma caminhada até
a mari- na, mas já está na hora de voltar.
— De jeito nenhum, Lukas. Imagina se eu vou aceitar um troço desses. A gente não se vê há
anos, meu irmão. O destino nos une sem mais nem menos, de repente, e a gente vai desperdiçar
essa oportunidade? De jeito nenhum. Nem adianta insistir. Pode começar. Conta aí. Como é que
você está?
— Tudo bem. Ninguém vai morrer por causa de um atraso. Então, já que estou com crédito, vou
inverter o jogo. Eu fico, mas é você que vai começar contando sua história.
Gordon concordou. Olhou em volta, o céu e as montanhas, e disse:
— Lembra a regata?
— Você era um garotinho.
— Dezesseis anos, cara. Que lindo é esse lugar. Não me acostumo. É deslumbrante.
— Deslumbrante. Mas mora aqui pra você ver.
— Você não gosta? Não está feliz?
— É você que vai falar primeiro. Trato é trato. Conta o que é que você veio fazer aqui. Pelo
jeito, veio curtir o Rio.
Gordon encarou o amigo, sorriu e disse:
— Mais ou menos. Vim a trabalho. Mas ninguém é de ferro. Lukas, as coisas estão indo bem. Os
negócios vão muito bem. Sabe o que são essas malas?
Gordon apontou para malas empilhadas. E completou:
— Lá embaixo tem mais.
Lukas não fazia ideia. Fez cara de interrogação.
284 Luiz Eduardo Soares
— Abre. Pode abrir. Qualquer uma. Abre aquela ali.
Lukas obedeceu. Surpreendeu-se.
— Caralho.
— Pois é. Abre a outra, debaixo dessa. Pode abrir.
Lukas repetiu a operação e mostrou o semblante duplamente atônito. Esperou de Gordon uma
explicação. Mas o amigo se entretinha, sorvendo o último gole do champanhe. Lukas não se
conteve:
— Caralho, é muito dinheiro. Todas as malas estão, assim, iguais a essas duas? Cheinhas?
— Iguais, não. Cada mala tem uma quantia diferente.
— Mas é muito dinheiro, Gordon. Quilos de dólares.
— Cada mala carrega um valor diferente.
— Por quê?
— É a senha.
— Como, a senha?
— Isso mesmo, a senha é a quantia. Cada mala tem uma quantia diferente. Quer dizer, cada uma
tem a sua senha.
— Pra que isso?
— Pois é, você não queria saber o que eu vim fazer no Rio? Vim fazer umas entregas.
— Delivery man.
— Delivery man, exatamente. São uns pagamentos.
— Toma cuidado, Gordon. O Rio não é como as cidades que você frequenta na Europa, no
Caribe e nos Estados Unidos. Sair por aí com malas cheias de grana é um perigo danado.
— Não saio. Essa é a vantagem das senhas. As pessoas vêm buscar.
— E como é que você tem certeza de que não é um golpe?
— A pessoa chega aqui e diz um número, um valor. Cento e vinte e sete mil e treze dólares, por
exemplo. Os números são todos quebrados. Só tem uma mala com essa importância. Cada mala tem
um valor exato. Só não tem centavo.
— Genial.
— Não é? Também acho. Então, tudo certo. Não tem problema. Por enquanto, o protocolo tem
funcionado perfeitamente.
— Que bacana, Gordon. E você fica por aqui, curtindo a vista, o mar, a temperatura, que eu sei
que você gosta.
— E essas gatas maravilhosas.
Tudo ou nada 285
— Principalmente as gatas fantásticas. Não falei nada porque, sa- be-se lá...
— Nenhuma delas é minha filha. Nem esposa. São amigas que me auxiliam. Elas são boas no
trabalho pesado do barco também. Melhor do que viajar com marmanjo. Aqueles marujos
fedorentos e chatos. Você abandonou a navegação? Largou os negócios?
Lukas fez que sim com a cabeça.
— Decisão definitiva?
Lukas balançou a cabeça rapidamente para os dois lados e suspendeu os lábios contraídos,
arregalando os olhos. Disse:
— Definitivo só a morte.
— Mas agora está fora?
— Fora. Totalmente.
Lukas resumiu os últimos anos, justificou a volta ao Rio, falou dos filhos, da mulher, do
trabalho.
— Você não parece muito animado, Lukas.
— Não estou. Não estou nem um pouco animado. Ainda mais vendo você. Meu amigo, tenho de
lhe confessar que estou é morrendo de inveja.
Gordon gargalhou e encheu a taça de champanhe mais uma vez. Lukas agradeceu. Não aceitou.
Tinha uma tarde de trabalho pela frente. Prometeu retornar com mais calma no dia seguinte.
Deixaria os compromissos encaminhados no escritório e passaria umas horas tranquilas com o
amigo.
Gordon lhe fez um pedido:
— Daqui vou pra Cidade do Cabo. Queria levar uma lembrancinha do Rio pros amigos. Uma
coisinha de nada. Só um mimo pra cada um. Será que você me conseguiria um quilo de pó, de boa
qualidade? Eu pago, claro. Se preferir, antecipo a grana. Pode ser?
— Seria melhor mesmo, cara. Não estou nadando em dinheiro. Vou tocando a vida numa boa,
mas sem muita folga. E um quilo de pó, você sabe, vai custar uma grana. Perto dessas malas, não é
nada. Aliás, quanto têm nelas todas, somadas?
— Dez milhões de dólares.
— Caralho. É dinheiro, meu velho. É muito dinheiro.
Enquanto Lukas não disfarçava o êxtase a que a cifra o elevara,
Gordon tirou um maço espesso de notas do bolso de trás da bermuda e pôs-se a contar. Lukas lhe
disse o preço aproximado. Acertaram-se.
286 Luiz Eduardo Soares
— Nesse caso, Gordon, em vez de amanhã, venho depois de amanhã e já trago a encomenda.
Despediram-se. Reiteraram a alegria pelo reencontro. Abraçaram- -se calorosamente.
Tudo ou nada 287
58
INDEPENDÊNCIA OU MORTE
Dois dias depois, por volta das três da tarde, Lukas atravessou a marina da Glória a pé. Olhou
para os barcos, identificou o iate de Gordon, mas não viu o amigo. Continuou andando. Avançou
pela ponte, que era um pequeno istmo de madeira. Uma das moças estava no convés. Ele acenou.
Ela o reconheceu, sorriu e acenou de volta. Enquanto ele refazia o roteiro da primeira visita ao iate
de Gordon, ela fora avisá-lo que Lukas estava chegando. Quando subiu as esca- dinhas do iate,
Gordon já o aguardava, expansivo e afetuoso como sempre.
Cumprimentaram-se. Lukas notou que a pilha de malas diminuíra. Apontou para elas. Gordon
confirmou. A procura vinha sendo incessante e, até o momento, sem falhas. As senhas batiam com
precisão. Nenhum mal-entendido. Nada.
Lukas se deteve, contemplando as malas, o barco e a baía de Guanabara, ausente, consumido por
alguma fantasia distante ou um sentimento absorvente. Gordon talvez tenha imaginado que o
suspense fosse um truque teatral para valorizar o gesto esperado: o amigo puxaria o pacote de
cocaína da mochila que trazia pendurada no ombro, mais ou menos como o mágico tira o coelho da
cartola.
— Missão cumprida.
— Que beleza, Lukas. Superobrigado.
— Não, estou falando das suas malas.
— Quase.
— Você deve estar feliz, hein, Gordon?
— E você?
Tudo ou nada 289
Lukas encarou o velho companheiro pela primeira vez, mas logo virou o rosto. Gordon retribuiu
a pergunta:
— Missão cumprida?
Uma das moças estava a bordo e subiu ao convés. Lukas parecia constrangido. Não respondeu.
Cumprimentou a mulher com um sorriso doce e discreto. Voltou o rosto para Gordon sem apagar o
sorriso. Gordon, provavelmente, entendeu que aquele era o sinal positivo aguardado e atribuiu o
aparente desconforto de Lukas à presença feminina que se intrometia no círculo restrito de
fraternidade entre os dois homens.
Gordon abriu um sorriso mais largo e extrovertido, satisfeito com a mensagem captada. Fez
alguma brincadeira com amigos sul-africanos que Lukas conhecia — ele supunha. Engano. Lukas
não os conhecia.
Lukas divertiu-se com as histórias sobre a viagem que a moça lhe contou. Estavam chegando da
Venezuela, passando pelas Antilhas, o Caribe e o nordeste brasileiro. Em seguida, partiriam para a
África do Sul, como Gordon dissera a Lukas. A segunda moça estava no Pão de Açúcar ou no
Corcovado. Gostava de passeios turísticos e tinha amigos cariocas. Voltaria no dia seguinte,
quando estava planejada a partida.
Gordon pediu à moça que servisse uma bebida. Lukas preferiu o refrigerante ao champanhe e à
cerveja. Ela desceu para a cabine. Voltaria já.
Gordon parecia ansioso. Sua voz soava diferente. Talvez percebesse alguma coisa estranha.
Lukas percebeu de imediato e pensou: seria contagiante o mal-estar que arrastara consigo o dia
todo e trouxera agarrado à garganta? O sul-africano não interrompeu a conversa simpática que
estava em curso, mas o semblante era outro, o astral era outro, espelhando a angústia de Lukas. Ou
seria mera projeção de Lukas, vendo estampado no amigo o infortúnio que lhe seria exclusivo?
Havia alguma energia trincada no ar. Lukas gelou. Temia esse momento. Esse momento chegaria.
Era inevitável. Seria mais sincero antecipar-se, tocar no assunto, chamar para si os raios. Melhor
admitir com franqueza. Ele mesmo — ninguém mais — provocou o maremoto. O desastre
iminente. Por quê?, era a interrogação que qualquer um faria a si mesmo se estivesse em condições
normais de temperatura e pressão. Lukas estava longe de condi-
290 Luiz Eduardo Soares
ções normais. A angústia que, volta e meia, o consumia instalara-se. Investiu todas as forças para
controlar-se. O leve tremor dos lábios e das mãos o denunciaria. Gordon era experiente e o
conhecia bem. Era preciso evitar o tremor. A moça que voltara com o refrigerante sentiu que estava
na hora de deixar os amigos a sós e recolheu-se à cabine. O iate era grande o suficiente para
proporcionar intimidade aos dois amigos. Permaneceram em silêncio. Lukas não teve coragem de
fitar Gordon nos olhos. Seus olhares cruzaram-se, mas Lukas esquivou-se.
O silêncio entre os amigos torturava Lukas, fazia-o sentir-se mais culpado do que vinha se
sentindo desde a véspera. Era eloquente o silêncio. Gordon não disse uma palavra. Lukas despejou
o que represara com esforço. A confissão precipitou-se num jorro passional:
— Não trouxe o pó. Não sei como conseguir um quilo. Também não trouxe o dinheiro que você
me deu. Gastei. Paguei uma dívida e comprei uma coisa pra mim. Não tenho como devolver.
Gordon não respondeu, não interrompeu, não reagiu. Finalmente, disse:
— O que há com você?
Lukas continuava imóvel, olhando para baixo, sem coragem de encarar o amigo, de encarar a
situação que ele mesmo criara. Sem coragem para encarar-se. Olhar sua vida de frente, sem
subterfúgios, discursos, desconversas, justificações que oferecia em sua defesa no tribunal interno.
Não bastava repetir até acreditar que a culpa é má conselheira. Não bastava expulsá-la pela janela
se ela voltava pela porta. E com força máxima. E com boas razões. O que ele havia feito não tinha
explicação, nem desculpa. Era um erro pelo qual se envergonhava. Sentia-se culpado, claro.
— O que está acontecendo com você, Lukas? Estou confuso. Você está confuso e está me
deixando assustado. Não é pela grana. Você sabe que não é pela grana. Eu sempre confiei em você.
Fomos quase irmãos. Aliás, se você não fosse um sujeito honesto, não voltaria para contar o que
aconteceu. Você desapareceria sem deixar rastro. Ou inventaria uma desculpa. Você é um amigo e
merece minha confiança. Só não estou entendendo. Você disse que usou a grana e não tem como
me pagar? Não seja por isso. Pode ficar com os dólares. Um dia você devolve. Mas parece que não
é esse o problema. Qual é o proble
Tudo ou nada 291
ma, Lukas? Você está sendo chantageado por alguém? Está enrolado? Metido em alguma
complicação grave? Fala.
Lukas desabou. Chorar na frente do amigo que traíra não era pior do que traí-lo. Não havia mais
o que esconder. Tinha sido desmascarado. Nunca sentira tanta vergonha.
— Está mal? É fissura? Coca?
Respondeu com dificuldade, numa voz que vinha de algum lugar de seu corpo. Não parecia sua
voz, assim como tirar dinheiro do amigo não se parecia com ele, não era coisa dele, Lukas:
— Heroína. Coca também.
— A coisa está pesada?
— Foda.
Lukas chorava, encobrindo o rosto, desejando sumir. Como desculpar-se? O que dizer? Estava
literalmente perdido. Não sabia o que dizer porque não tinha o que dizer, isto é, não entendia o que
estava se passando com ele. Não se reconhecia.
— Porra, cara, não tem sentido você ficar desse jeito. Caralho, Lukas, somos amigos.
— Não é isso, Gordon. Não...
— Então, a bola está comigo. O que eu vou fazer com você, Lukas? O que você acha que eu
deveria fazer com você, Lukas?
Sem dar-se conta, Gordon estava servindo de espelho para o amigo. As perguntas, Lukas evitou
formulá-las e dirigi-las a si mesmo. No entanto, sabia, no fundo, que eram indagações essenciais e
inadiáveis. A angústia lhe transmitia uma sensação bizarra de urgência. Um pressentimento ruim. A
intuição difusa de que, em Ipanema, na próxima esquina, ele seria surpreendido por uma nave
espacial na contramão ou atingido por um meteorito inexplicável, ou atropelado por um ônibus
acelerado, ou pela última manada de búfalos de Marajó, desgovernada e indiferente à geografia.
Ironizava o medo para domesticá-lo e mantê-lo na coleira. Brincava com as sensações mórbidas.
Mas não conseguia simplesmente suprimi-las. Fitou a silhueta de Gordon projetada no convés.
Lukas estava confuso o suficiente para embaralhar as cartas e estremecer. Decodificou o confronto
com Gordon como um sinal. Lukas não era supersticioso, muito menos dado a metafísicas, mas
estremeceu.
— Você não fala nada, Lukas?
292 Luiz Eduardo Soares
Lukas não respondeu. Sentia-se humilhado não por Gordon, mas por ter descido ao ponto mais
baixo de sua história. É assim que descreve a cena. Nunca voltaria a sentir-se tão profundamente
envergonhado, ou tão arrependido, ainda que lhe repugnassem essas palavras. Embora as
empregasse no diálogo que manteve a frio consigo mesmo.
Um diálogo a frio com seu desespero. A palavra, de novo, lhe causava náusea. Lukas e a
linguagem religiosa eram antíteses; Lukas e o vocabulário psicológico, antípodas. Mundos à parte.
Polos opostos que se repelem. Por isso, a dor era mais inclemente. Descrevê-la mobilizava palavras
abomináveis, de um repertório vexatório, que lhe provocava reação visceral. Esvaziava a
masculinidade. Estilhaçava a identidade. Por quê? Sabe-se lá. O fato é que ali estava um homem
sem palavras, que prezava o destemor, porém tremia, aterrado, com- primindo-se entre paredes
imaginárias até sufocar.
Diálogo interior a seco e a frio, como seria isso? Conversa subjetiva refratária a palavras que se
refiram a sentimentos e a estados de espírito? Conversa introspectiva vacinada contra categorias
que representem intuições e sinais — todavia onipresentes em algum degrau da consciência —,
como seria uma coisa dessas?
Não existe uma coisa dessas. Por isso, Lukas rendeu-se e sussurrou para si mesmo as palavras de
todo mundo — humilhação, vergonha — e municiou-se das categorias que desprezava — culpa, ar-
rependimento — e aplicou os conceitos que não eram seus — ajuda, precisava de ajuda porque a
rota era destrutiva, mesmo sendo escolha sua. Recorreu ao que não era seu, porque o que lhe era
próprio estava gasto e obsoleto. Apodrecera. Perdera vigência. Esgotara o prazo de validade. De
todo modo, não lhe servia mais. Levara-o ao fundo do poço e o arruinara. Fizera-o agir como um
rato. E se os conceitos antigos perderam serventia, que se danassem os escrúpulos. Dessa vez não
recordou o golpe de Estado de 1968, ao contrário do que lhe acontecia sempre que recordava a
palavra horrorosa: escrúpulos. Em sua dor, não cabia o Brasil. As expansões do afeto são generosas
e se abrem, facilmente, ao formidável abraço coletivo. O desamparo, a depressão e a angústia, ao
contrário, são solitários. Menos ainda que solitários: dissipam o sujeito até que não haja vestígio da
pessoa — aquela que, na véspera, ria para si no espelho. Ou enxugava os olhos vermelhos flagrados
no reflexo da vitrine.
Tudo ou nada 293
— Estou fodido, Gordon, me desculpe.
Os dois permaneceram em silêncio. Tinha mais a regurgitar:
— Um rato, cara. É o que eu sou. Virei um rato.
Não segurou mais nada:
— Roubar um amigo, cara. Roubar um amigo querido como você. Caralho, que merda, que
vergonha. A que ponto eu cheguei? Não tenha pena de mim, Gordon. Que coisa horrível eu estou
dizendo, cara. Sou um rato. Estou fodido. Não sobrou nada.
Gordon passou um longo tempo a seu lado sem dizer nada. Lukas chorava feito menino sem
rumo. A cabeça, um turbilhão. A angústia cravava os dentes em todos os órgãos de seu corpo. Doía,
tudo doía.
O sul-africano pediu-lhe que esperasse. Desceu a escada. Lukas ficou sozinho no convés.
Gordon não demorou. Postou-se de pé, estendendo a Lukas alguma coisa que ele custou a
identificar.
— Pra você, Lukas. São cinco mil dólares. Você tem duas opções. Pode gastar tudo em heroína e
cocaína, e se picar até morrer, ou pode comprar uma passagem de avião pra Cidade do Cabo e ficar
comigo, na minha casa, até se curar dessa merda. Se você optar por se curar, vou ficar a seu lado
até você superar essa bosta e dar a volta por cima. Vai ser foda. Já vi o que acontece com o filho da
puta que se vicia. Pra sair, é uma merda. Não subestime a dificuldade. É foda com exclama ção e
letras maiúsculas. Mas está na sua mão. Você é quem sabe. A decisão é sua. A decisão e o dinheiro.
Pega aqui.
Lukas custou a dar-se conta do que tinha acabado de ouvir. As fichas não caíram de imediato.
Pôs-se, atônito, a balbuciar sons à guisa de agradecimento, mas os sons sugeriam palavras que não
se completavam, nem faziam sentido. Ele não sabia quais seriam essas palavras. Continuava
encarando o amigo, cuja mão estendida ainda lhe apontava o maço de notas.
— Não precisa decidir agora. Isso não se decide assim. Pensa bem. Gaste o tempo que for
preciso. Porra, cara, o que está em jogo é sua vida. Pega. Pra você. O dinheiro e a decisão. Se você
quiser ir pra minha casa, se planeje para chegar lá daqui a dois meses, porque eu vou pra lá
navegando e, depois, vou ter de preparar a casa para receber você. Dois meses, cara. É morrer ou
viver. A escolha parece fácil. Eu sei que não é.
* * *
294 Luiz Eduardo Soares
O primeiro impulso de Lukas foi encenar o proverbial ato de orgulho e civilidade. Agradecer e
recusar a doação. Imagina, cinco mil dólares. Ele se satisfaria com a compreensão do amigo. Os
padrões da boa educação e da altivez recomendavam a recusa do dinheiro e até mesmo a inversão
das posições. Ele poderia surpreender o sul- -africano dizendo-lhe que, pelo contrário, era ele,
Lukas, quem lhe devia não apenas a devolução do dinheiro que gastara, mas uma compensação pelo
comportamento lamentável. Lukas lhe pagaria a dívida. Daria um jeito.
Que tolice. Quanta bobagem. Claro que Lukas caiu em si e viu que não tinha como devolver os
dólares gastos, porque estava na lona, cheio de dívidas na praça, apesar de tê-las abatido na
véspera, com os dólares que Gordon lhe dera para que comprasse o quilo de cocaína. Se não
abatesse o débito, ainda que parcialmente, não teria como convencer seu contato a lhe vender a
heroína que precisava para seu uso pessoal. Agora, não tinha mais de onde tirar. Inclusive porque
um gesto generoso e altivo não apagaria a merda que aprontara. Lukas tinha de amargar a realidade,
acomodando-se aos limites que ela impunha. A primeira lição da nova etapa de sua vida — que
talvez estivesse se inaugurando — era esta: cada passo de uma vez e os pés devem firmar-se no
chão, na dura realidade, antes que qualquer passo seja esboçado. Moral da história: ele não tinha
um puto. Estava fodido. Que tivesse pelo menos humildade para ouvir o que o amigo lhe dizia e
considerar a sério a alternativa que o destino lhe proporcionava.
* * *
Lukas tomou o maço de notas da mão de Gordon, olhou com vagar e sem pejo a dinheirama,
guardou os dólares no bolso da calça, ensaiou um esgar que era o projeto de um sorriso
impraticável, abaixou os olhos como convinha, não disse uma palavra, deu as costas ao amigo e
bateu em retirada.
Tudo ou nada 295
59
ACENDER UMA NOITE NO FOGO DA OUTRA? OU O GESTO HEROICO?
Os dois meses seguintes seriam cruciais — ele ousou pensar no instante em que teve um lampejo
feliz. Foram, de fato, cruciais. Desceu as escadas do iate, passou à plataforma, ganhou a terra firme,
caminhou para fora da marina da Glória e um lampejo feliz o salvou da angústia devastadora. Cem
dólares não fariam falta, qualquer que viesse a ser sua decisão crucial, depois dos sessenta dias
cruciais. No bolo de cinco mil, a cédula de cem lhe subtrairia 2% do montante. Não era nada, quase
nada, e o levaria ao paraíso. Mesmo que a visita fosse breve e a aterrissagem, acidentada. Cada dia,
sua agonia. Na aterrissagem pensaria na aterrissagem. Além do mais, pior do que estava não ficaria.
Supôs. Pôs-se em marcha, à cata de pó e heroína. Eram quatro e meia da tarde, mais ou menos. A
noite lhe traria recompensas pelo dia infernal. Os ratos fazem a festa, enfim. Os ratos também
amam. Pronunciou, baixinho, estas frases de péssimo gosto, engolindo o riso, e arrependeu-se.
Temeu a cólera dos deuses. A vingança dos elementos.
Naquela noite, regalou-se. Cheirou à farta, picou-se, arremessou longe as dívidas contraídas com
seu futuro, sepultou promessas que fizera a si mesmo no momento de fraqueza — ou de força —, e
enfiou com gosto o pé na jaca. Deixou-se cair mais fundo no buraco em que se metera.
Os dias seguintes não foram bons. Como previsto, a aterrissagem foi dura. Lukas fez um esforço
titânico para safar-se do redemoinho: “mais droga para suportar seus efeitos.” Ponderou as opções.
Cinco mil, quer dizer, àquela altura, uns quatro mil e oitocentos dólares
Tudo ou nada 297
mais ou menos. O que fazer? Acender uma noite no fogo da outra, até queimar o último neurônio?;
ou resignar-se ao monastério sul- -africano, à remissão dos pecados, a um projeto razoável de vida?
Quando a angústia o ligava ao fio terra, Lukas enxergava o óbvio: a verdadeira escolha não era
essa. A verdadeira escolha era entre a morte e a vida. Difícil nesta frase é entender o significado do
verbo escolher. O mistério reside na escolha, quando os objetos alternativos são vida e morte. Não
entrava na cabeça de Lukas a ideia de que alguém pudesse escolher a morte. A menos que fosse um
suicida, o que ele não era. Portanto, quando preferia a droga à abstinência, privilegiava o prazer
acima de compromissos e, nesse aspecto, admitia que chegava a ser irresponsável, eventualmente.
Era o preço a pagar pela intensificação do prazer. Se os efeitos colaterais das drogas danificavam a
saúde, isso não significava que o cidadão decidisse consumi-las para prejudicar a saúde. O desejo
era beneficiar-se do prazer, e não fazer mal a si mesmo. Esta era uma consequência, da qual Lukas
não duvidava. Ele só não aceitava a interpretação de que, consumindo drogas em grande
quantidade, ele desejasse destruir-se ou que algum lado obscuro de sua mente estivesse
arquitetando um plano macabro para liquidá-lo. O raciocínio aplicava-se também aos cigarros e ao
álcool. Assim como ao açúcar, ao café, ao sal, à gordura e a tudo o que é gostoso e faz mal à saúde
quando consumido em excesso. O cara usa porque gosta, porque é bom. Quando consome, assimila
o pacote todo — o lado A e o lado B. A doença e a morte são o preço que se paga pelo prazer. Mas
o ponto que o obcecava era este: não se consome porque se gosta de doença e de morte, porque se
trama a própria destruição. Lukas abjurava a psicanálise e as teorias que se contrapunham ao que
considerava a pedra angular do bom senso. Sua mulher já o conhecia o suficiente para desviar-se
dos argumentos de viés psicanalítico.
— Ok, Lukas, tudo bem. Você não está se destruindo. Só quero que você pense que os efeitos
colaterais das substâncias psicoativas que você usa estão destruindo sua saúde.
— Nós usamos, querida. Nós.
— Certo. Nós. Acontece que eu uso muito menos que você. Infini tamente menos. E consigo me
controlar. Você, não. Pode escrever em seu caderno de anotações que eu parei. É melhor parar,
senão acabo estimulando você e justificando sua piração.
298 Luiz Eduardo Soares
Ela parou. Ele, não. Apesar da proposta de Gordon. E apesar de a ter levado a sério. Tanto que
acabou concluindo que deveria mesmo ir para a Cidade do Cabo. Como era típico de Lukas, sua
decisão final entre gastar a grana comprando droga e comprar a passagem para a África do Sul,
desistindo, definitivamente, das drogas foi... ficar com ambas as opções. Comprou muita droga nos
dois meses que se seguiram ao encontro com Gordon e comprou o bilhete para o voo. Levou a
ambivalência ao extremo ao viajar para a Cidade do Cabo com uma provisão de heroína. Ia largar o
vício com droga no bolso.
Por isso, considerando o histórico de ambiguidades, a chegada ao aeroporto sul-africano
representou um verdadeiro marco. Atormentado pela invencível dubiedade, Lukas convenceu-se de
que a nova etapa da vida exigia um gesto heroico. Antes de dissuadir-se, entrou no banheiro,
fechou-se no cubículo privativo, abriu a bolsinha que trazia amarrada à cintura, sob o cinto,
desdobrou o papel de seda que envolvia a heroína e jogou o conteúdo no vaso. Feito. Não havia
mais retorno. Sentia-se livre para inaugurar a etapa que o aguardava. Gordon merecia uma atitude
épica, o avesso do rato. Ele mesmo, Lukas, a merecia. Seu futuro, sua mulher, seus filhos
mereciam; sua mãe merecia. A memória de seu pai merecia aquela homenagem. Comoveu- -se ao
encontrar Gordon no saguão do aeroporto. Abraçou-o. Pisou o país do amigo sentindo-se inteiro.
Uma sensação gratificante que não experimentava havia muito tempo. A melhor expressão para
descrever o momento, ele a encontraria anos depois, no relato do filho sobre sua primeira aventura
aérea, no ultraleve do pai de um coleguinha de escola: “um medo feliz.”
Tudo ou nada 299
60
UM MEDO FELIZ
Lukas desembarcou na Cidade do Cabo sem dinheiro no bolso, contando com a generosidade
solidária do amigo. O constrangimento ficou no passado. Misturou-se ao cortejo de atos, elos e
experiências cujo destino era o esquecimento.
Desfez-se do emprego no Rio e planejou com a mulher um jeito de quitar dívidas, conter gastos,
abolir supérfluos, economizar no lazer e fazer face aos compromissos previstos para os próximos
meses, somando a modesta poupança do casal ao salário razoável que o comércio de vestuário
proporcionava à esposa.
O arranjo lhe permitiu viajar razoavelmente tranquilo. Pelo menos do ponto de vista financeiro, a
manutenção da família estava garantida. A educação dos filhos não seria prejudicada. Nem a saúde
ou a moradia. Coberto o fundamental, a prioridade tinha mesmo de ser ele. Obvio que restaurar seu
bem-estar era condição para que tudo mais melhorasse, do casamento às perspectivas profissionais.
Os sacrifícios estavam mais do que justificados.
O que viria a seguir? O medo feliz antecipava medo e felicidade?
O tratamento seria uma trava a seco. Porrada. Gordon não o enganou. Enquanto dirigia para
casa, expôs a ideia a Lukas; era simples e eficiente, dizia. Em suas palavras aproximadas, com a
sutileza que às vezes o distinguia e no inglês sul-africano que Lukas nem sempre compreendia à
perfeição:
— O método é pra macho.
Lukas precisava de alguns dias de convivência com o amigo para assimilar as gírias peculiares, a
pronúncia e a música das palavras.
Tudo ou nada 301
Entretanto, essa sentença ele entendeu sem dificuldade. E soava como uma sentença, no sentido
jurídico. Por isso, Lukas brincou:
— Choque elétrico, cadeira do dragão, pau de arara, camisa de força?
— Nada de violência.
— Melhorou. Estou gostando. Se é pra macho e não tem violência, tem mulher na jogada? Vou
me livrar da dependência substituindo a heroína por outra? Na escola a garotada chamava isso de
surra de boceta.
— Também não é isso. Minha casa não é nenhum spa. Você não veio pra um resort. Não se
iluda.
— Olha que eu já estava me empolgando.
— É pra macho porque é rigoroso, dolorido, exige muita disciplina.
— Nesse caso, você devia ter dito que é pra mulher, coisa de fêmea. Elas é que são capazes
desses sacrifícios.
— Virou feminista, rapaz?
— É a verdade, Gordon, a mais pura verdade. Vai dizer que não? Quem é que aguenta melhor a
dor? As mulheres são foda. Quem é que segue as dietas mais estritas?
— Elas são mais vaidosas, isso sim. Tão vaidosas que suportam regimes, ginásticas, cirurgias
plásticas, implantes, cuidam da pele, seguem as receitas faça chuva ou faça sol.
— Não é só isso.
— Eu sabia que casar com francesa ia dar nisso, Lukas. Você se rendeu. Traiu sua espécie.
— Gênero.
— Tudo bem, gênero. Só falta agora você me dizer que gênero é uma questão de grau.
— Não, mas de número pode ser.
— Como, número?
— Número, sim, senhor. Se um cara está na frente de um monte de homens, vai representar o
papel do macho modelo, o supergara- nhão e o cacete. Se estiver sozinho com a mulher, pode
acontecer de tudo. O modelo machão vai pras picas.
— Vira viado? Na intimidade, todos são viados?
— Que virar viado, rapaz? Nada disso. Você só pensa assim, em duplas, mente digital, feito
computador? Tudo é sim ou não, uma coisa ou seu contrário? Machão ou viado?
302 Luiz Eduardo Soares
— Tem algum intermediário no meio? Gilete? Bissexual? Pra mim, é bicha enrustido.
— Não é disso que eu estou falando, caralho. Deixa pra lá. Explica aí o seu método terapêutico
pra macho.
— Vai ser assim. E pode confiar que dá certo. É eficientíssimo.
— Você já testou?
— Já. Meu irmão, você conhece, passou por isso e saiu da merda.
— Bacana. Vamos lá.
— Você fica lá em casa.
— Fico em sua casa. E daí?
— E daí nada. Fica lá. Só isso.
— Como assim?
— Assim mesmo.
— Não tem mais alguma coisa qualquer, um remédio, alimentação, fisioterapia, banhos de sais,
vapores, saunas, massagens, injeções, sei lá, qualquer coisa?
— Não, senhor. Só isso mesmo.
— Nem regra tem essa terapia?
— Não. Quer dizer, claro que você não vai poder usar droga.
— Heroína. Claro, pra isso é que estou aqui. Parar de usar heroína. E coca, também preciso parar
de cheirar.
— Qualquer droga. Inclusive as legais.
— Nem maconha?
— Não pode. Nenhuma droga. Aliás, maconha não é legal. E eu falei, nem as legais.
— Você quis dizer: nem álcool.
— Justamente.
— Não tem problema. Você sabe que nunca fui de beber. Mas cigarro de nicotina não tem
problema.
— Tem. Nenhuma droga. Esse é o pulo do gato.
— Só se for no precipício, Gordon. Eu, sem cigarro, enlouqueço.
— É pra isso que você está aqui.
— Pra enlouquecer?
— Pra enlouquecer.
— Não entendi.
— Você vai entender, Lukas. Em dois dias. E quando digo ficar em casa, digo: sair de casa é
proibido.
— Nem dar um pulinho na esquina? Esticar as pernas?
Tudo ou nada 303
Gordon balançou a cabeça. Lukas contraiu os músculos do rosto e exibiu sua máscara severa.
Um tremor involuntário ergueu o lábio superior, levemente, deixando os dentes à mostra. O
desconforto transparecia. No entanto, convinha manter o recato, a benevolência, a cortesia, algumas
gotas de autoironia e aquele ar displicente — do qual o humor constituía o apogeu. Gordon lhe
pagara a passagem, lhe abriria a casa e o coração. Lukas não sabia ser ingrato ou mal-educado. Essa
herança familiar grudara-se nele como a tatuagem indelével dos prisioneiros.
— Lukas, você não sabe o que diz.
— Ok, papi, sou seu puppy, seu pet. Seja feita a sua vontade assim na terra como no paraíso,
master. Sou seu discípulo, seu pupilo. Daqui em diante, sigo as instruções. Sargento Mello, às
ordens.
— Você não sabe o que o espera. Ainda bem. Se soubesse, talvez não viesse. Jamais passará por
sua cabeça dar uma voltinha até a esquina para esticar as pernas. Não é assim que funciona.
304 Luiz Eduardo Soares
61
NECROPSIA ANTES DA MORTE
Chegaram à casa de Gordon. Ostentação zero, porém encantadora. Por isso mesmo, talvez,
encantadora. Foi o que Lukas disse ao amigo por delicadeza, embora sincero. Ele não imaginou que
um cenário tão charmoso tornar-se-ia palco do inferno.
Lukas viveu ali o capítulo mais duro de sua vida.
Do medo feliz da chegada transitou para a ansiedade. Vivê-la foi o diabo.
Lukas sentiu-se rasgado em dois, em três, em mil pedaços. Cada parte autônoma em sua dor
lancinante, os nervos expostos, o gelo no dente rachado, o fogo na carne. Necropsia antes da morte,
sem a mansidão da morte. Sofrimento sem pausa e sem termo.
Nesse estágio que durou semanas, o medo tomou o poder — o medo puro, sem adjetivo. É
quando a nau encalha no mar escasso da maré baixa. As bússolas perdem o norte, os mapas
extraviam-se, as palavras que descrevem sentimentos somem do dicionário.
O tempo comprimia-se e espichava, torturante. O momento era um só, longo e interminável. Só
havia presente. Conjugou os verbos indispensáveis e urgentes exclusivamente no presente. Por isso,
pensaria coisas assim:
“Está borrado o limite que separa o homem dos outros bichos. Meu corpo é o campo de batalha da
natureza. Sou eu a arena em que se decide a sorte daquilo que um dia se chamou humano. A fome de
heroína desatendida come as outras fomes e devora o corpo — a carcaça. Os órgãos triunfam sobre a
majestade do espírito e a unidade da consciência. A membrana mais sórdida, a cavi-
Tudo ou nada 305
dade mais vil, a borda pustulenta das lacerações: nenhuma filosofia as supera, nenhuma civilização as
redime. A matéria em decomposição é insuperável.”
Lukas vomitava ao redor de si, vertia sobre o tórax os restos do que o faziam, quase à força,
deglutir — água e sal, polpa, suco, sopa —, asfixiava-se na bílis regurgitada, debatia-se, jogava-se
nas paredes, cagava na cama, no chão, nas paredes, mijava onde estivesse, estirado ou enrodilhado
— apertando os ossos do joelho. Esfregava-se nas paredes até ralar a pele, fazê-la sangrar e
produzir fontes alternativas de dor. Sua esperança residia nessa disputa, porque a competição entre
padecimentos diferentes reduzia o despotismo incontrastável e absoluto da dor. A dor soberana.
Quinze quilos no primeiro mês, de longe o pior, foi o que a guerra contra a dependência lhe
roubou. Outros cinco nos dois meses subsequentes. E isso tinha um significado ainda mais grave,
considerando- -se que Lukas já estava magro, justamente por conta do vício.
A dor cedeu, enfim. O processo mostrou-se gradual e declinante tarde demais para amenizar a
impressão que as primeiras semanas lhe causaram. Impressão que o desesperou e, por isso, terá
contribuído para aumentar as dores físicas e os sofrimentos psíquicos.
Gordon foi mãe, pai, irmão. A família inteira e o Espírito Santo. A benção e a dádiva gratuita, na
contramão da trindade que forjara a personalidade de Lukas: autossuficiência, ceticismo blasé e
virilidade. Esta trindade não foi o retrato do sistema de crenças que fez a cabeça so mente de Lukas.
Marcou os machos de sua geração, depois que a era de Aquarius virou pó.
A desintoxicação a seco funcionou. O paciente sobreviveu. No meio do segundo mês, quis sair
de casa, andar até a esquina, comprar jornais e revistas, tomar um café no barzinho. Enfim,
desembarcar no planeta Terra. Ao longo do calvário, ligou para casa algumas vezes. Os
telefonemas não terminavam bem. Talvez porque não começassem bem. Lukas morria de saudades
e tinha medo de não suportar o con- finamento na casa de Gordon.
As vozes dos filhos e da mulher não aqueciam seu coração; incendiavam o que lhe restava de
bom senso e o desequilibravam. Temia que o esquecessem. Imaginava a hipótese de uma visita
súbita da morte. Às vezes, referia-se a ela como “a outra hóspede” ou “a intrusa”. Gordon pegou-o
conversando com a intrusa de igual para
306 Luiz Eduardo Soares
igual, desafiando-a para um duelo. Perplexo com a cena, seu guardião privou-o de talheres e copos
e checou a firmeza das grades na janela. Apesar dos cuidados, não pôde evitar a esgrima. Noutra
oportunidade, Lukas enfrentou a outra hóspede atirando-lhe o que lhe caía às mãos, fossem
travesseiros, sapatos, fezes ou cadeiras.
* * *
Gordon percebeu que falar com a mulher, qualquer que fosse o conteúdo do diálogo, deixava-o
inquieto. A perturbação evoluía nas horas seguintes, porque pinçava o nervo da insegurança por
alguma razão obscura. Revolvia velhas histórias e o fazia revivê-las. Lukas enlouquecia de ciúme.
Nesses períodos frenéticos, acusava a mulher de tê-lo traído, gritava seu nome, dizia que tinha de
voltar ao Brasil com urgência. Agarrava-se a Gordon, implorando-lhe perdão pelo roubo do
dinheiro que lhe dera para comprar cocaína. Rogando-lhe apoio para retomar a adúltera dos braços
do homem que a conquistara. Essa fantasia acompanhou longas etapas de seu primeiro mês de exí -
lio na residência do amigo.
Vidas em transe não são verossímeis. Narrativas sob influência tampouco. As drogas ilícitas que
afetam a percepção inibem o princípio da realidade. As substâncias que agem na consciência
derrubam a cancela que separa o falso do verdadeiro. E assim o cidadão pode perfeitamente vir
perambulando à toa e, inadvertidamente, ultrapassar a fronteira que a cancela demarcava, e
prosseguir seu passeio desinfor- mado quanto à natureza do terreno que pisa. Tomará gato por
lebre, inconsciente da gravidade de sua inusitada inaptidão classificatória. Curioso é que as drogas
provocam nos usuários confusões desse tipo por tê-las consumido e por não as ter consumido,
quando o uso é excessivo, a ponto de converter-se em hábito — dizem uns —, vício
— preferem outros —, ou dependência — conforme os especialistas.
Estava aí o motivo das fantasias de Lukas. Ele frequentava com displicência o território do
devaneio e atormentava-se com os efeitos do que via nas paragens oníricas. Os efeitos, afinal,
existiam. E podiam ser devastadores.
Gordon não entendia português, de modo que ignorava o sentido de metade das narrações que era
obrigado a escutar. A outra metade, Lukas fazia a gentileza de enunciá-la em inglês e obtinha do
amigo
Tudo ou nada 307
algum consolo. Nelas, o amigo pôs-se a par de desventuras amorosas, recheadas de detalhes
canhestros e maledicentes, que não ousaria repetir. Aliás, fez questão de esquecê-los. Restou o
enredo nuclear do drama delirante que Lukas teimava em reproduzir, de tempos em tempos,
alterando apenas nuances e sutilezas nos afluentes secundários da trama principal. Pois era isso que
causava espécie em Gordon. Não lhe era fácil entender como a fabulação da mente perturbada
poderia ser ao mesmo tempo delirante, pertinaz e coerente.
A trama amorosa com a qual a provisória psicose de Lukas impor tunava o anfitrião tem de ser
artificialmente costurada para que as peças ganhem um mínimo de sentido, ainda que a
verossimilhança porventura alcançada em condições tão acidentadas seja duvidosa. Traduzida para
o português, editada no idioma da racionalidade, ordenada segundo as leis da cronologia e da
causalidade, e complementada por depoimentos de testemunhas e registros de época, a história é a
seguinte.
308 Luiz Eduardo Soares
62
EPISÓDIOS DA VIDA ROMÂNTICA I
Lukas conheceu uma menina deslumbrante quando estudava no colégio Pedro II, no Humaitá,
bairro da zona sul, região afluente do Rio de Janeiro. Os anos dourados — de JK e das garotinhas
românticas do Instituto de Educação, da construção de Brasília e dos cinquenta anos em cinco — já
haviam enferrujado. Os tempos eram outros. O metal mais apropriado para descrever a natureza do
novo momento passara a ser o chumbo. O golpe de 1964 pegara a alegria brasileira no contrapé e a
esperança de calças curtas. A confiança emergente e a audácia criativa, mescladas aos sonhos
democráticos da época, foram expurgadas. Tornaram-se heresias. As marchas da família com Deus
pela propriedade triunfaram, coroando os generais e abençoando a hipocrisia. Os ditadores
revezaram-se no poder representando a farsa ufanista como demiurgos laicos da pátria. Lukas já
não vestia calças curtas. Tampouco era um homem feito. Fingia ser mais velho do que era para
ludibriar o sexto sentido da menina, porque os outros cinco estavam no papo.
Ela morava perto da escola. Na esquina. Os colegas de Lukas passavam todos os dias em frente
à casa da pequena deusa e se detinham, na esperança de flagrar sua silhueta entre as metades esvoa-
çantes da cortina rendada. Quando ela se postava quieta e hipnótica à janela, deixando-se
contemplar como uma aparição sobrenatural, os adolescentes calavam-se, aturdidos e reverentes.
Depois, cem metros adiante, manchavam a devoção que lhe dedicavam com os adjetivos mais
infames. O vocabulário vulgar dissimulava a timidez pueril na máscara do macho. O macho
poderoso, superior, conquistador e vi-
Tudo ou nada 309
ril. Competiam entre si, verbalmente, como galos de rinha, embora nenhum deles tivesse tido
jamais coragem para dirigir uma palavra sequer à mais bela moça de sua geração. Nenhum de seus
colegas; Lukas, sim.
Talvez porque fosse um rapaz bonito ou porque acreditasse nos elogios alheios. Diziam-lhe que
era bonito e charmoso como um ator de cinema. Um ator italiano. As tias o chamavam de
Mastroiani. Desde a pré-adolescência beliscavam-lhe o rosto, enquanto rosnavam:
— Esse vai dar trabalho. Vai ser o terror das meninas. Pobres meninas. Esse vai machucar
muitos corações.
Tias, avós, tias-avós, vizinhas e amigas da mãe assinalavam a veemência de sua convicção
acrescentando às palavras e ao beliscão um tapa na nuca ou um desarrumar de cabelos, que se
produzia com movimentos de vaivém da mão ou a agitando como uma enceradeira na cabeça da
criança. Irritaram-no tanto que acabaram por convencê-lo.
Consciente dos próprios dotes, Lukas se achava irresistível, agia como se o fosse e, graças ao
carisma que a autoconfiança lhe infundia, realizava os desejos, confirmando as suposições
otimistas. Cada vitória realimentava o ciclo virtuoso e aperfeiçoava tanto sua arte quanto os efeitos
de sua aplicação. De triunfo em triunfo, sentiu-se, um dia, apto a ousar mais um pouco. Por que não
o paraíso? Por que não a deusa do bairro, a miniatura de Brigite Bardot? Era assim que a cha mavam
os companheiros de colégio.
Havia muitos obstáculos, claro. Nenhuma conquista épica seria completa sem dragões a vencer,
armadilhas a desativar e enigmas a desvendar. A pequena BB tinha um pai. Sim, todos têm pai, é
evidente. Mas ela tinha um pai gaúcho. Um pai gaúcho militar. Um pai gaúcho militar comunista.
Encerravam-se nesse personagem os desafios. Os demais eram meras ramificações do núcleo duro
da defesa da moça e de sua honra — leia-se: virgindade.
Lukas compreendeu que não bastaria abordar a moça e envolvê-la com seu charme. A guerra
teria de ser travada em pelo menos duas frentes: a primeira batalha era conquistar o coração da
donzela, fortaleza bem-guarnecida; a segunda, a simpatia do pai. Para alcançar esta meta, precisava
exibir boas maneiras e um pedigree familiar que sensibilizasse o almirante. Seria também
necessário, no futuro próxi
310 Luiz Eduardo Soares
mo, quando passasse do colégio Pedro II para a faculdade e cruzasse a barreira da maioridade, munir-
se de um bom emprego e, portanto, de uma renda respeitável, cujo valor correspondesse às pretensões
de Lukas com a lindíssima menina.
Não houve dificuldade em conseguir uma vaga na faculdade de economia da maior universidade
pública do Rio de Janeiro, a UFRJ. A disputa no vestibular era acirrada, havia muitos candidatos por
seca à política, qualquer que ela fosse, quaisquer que fossem suas bandeiras. Claro que se opunha à
ditadura, mas se insurgia contra a repressão por meio de sua resistência individual a fardas,
uniformes, censuras e todas as formas de imposição autoritária. Manifestava o inconformismo como
tantos de sua geração: fumando maconha, trocando o dia pela noite, imaginando para si futuros
inusitados e desviantes das expectativas familiares, frustrando os códigos convencionais,
podia ser trocada por nada, ou tocada por nada menor que a palavra ou o gesto de louvor. Por isso
mesmo, a primeira noite de entrega foi sublime. O pai não soube, ninguém soube, mas a travessura
revestiu- -se de um significado diferente e muito mais elevado do que as experiências similares
anteriores de que Lukas costumava gabar-se. O futuro sogro não compreenderia, mas era verdade. Ela
era a âncora ardente e hipnótica. Tudo o mais se deslocava e balançava, ou escor regava entre os
63
EPISÓDIOS DA VIDA ROMÂNTICA II
Mas Lukas não precisou do surto. Não precisou explodir. Outros ocuparam-se da missão e o
pouparam do protagonismo. Não seria necessário que ele se autodestruísse. Outros tratariam de
destruí-lo, facilitando-lhe a tarefa e precipitando a solução dos impasses que a vida dupla acumulava.
mãos”; viajar de carona, ou viajar clandestino num “cargueiro do Loy- de, cheio de anéis, vestindo um
casaco de general”.
A conjuntura cujo embrião começava a gestar-se trazia o selo de um casamento curioso entre
liberalismo econômico e conservadorismo social, político e moral. Aquilo que se chamava “sistema”
tornar- -se-ia a nova onda. Aderir à fé no mercado seria a próxima voga. De finir o sucesso como
promissos sociais uma extensão dos negócios. Reduzem-se a oportunidades. Os fins de semana não
podem continuar sendo o intervalo hippie na rotina yuppie, o recreio muito louco no cotidiano careta.
A profecia otimista da mãe de Lukas acertou o alvo. A versão burguesa do filho predominou
progressivamente. Estreitava-se com rapidez o campo de manobra para os malabarismos de Lukas
com a dualidade.
com a mais absoluta franqueza, disposto a tomar uma decisão que fosse, efetivamente, consensual.
Parecia-lhe insuportável arcar com os danos do trabalho e, ainda por cima, ouvir reprimendas, como
se a mulher fosse vítima de seu egoísmo. Muito bem, se era melhor renunciar àquela carreira, que
assumissem juntos os ônus e os bônus. Entretanto, se valia a pena seguir adiante, que a escolha fosse
comum aos dois, e que os fardos fossem compreendidos e compartilhados.
64
EPISÓDIOS DA VIDA ROMÂNTICA III
Naquele fim de tarde, Lukas chegou mais cedo. O irmão iria visitá- -lo. Viam-se com tanta
frequência que soou estranho aquele telefonema: “Preciso falar com você.” Estavam sozinhos no
quarto. O irmão lhe falou sobre a mãe, o pai, alguns amigos comuns, seus novos planos. E calou-se.
— Mas é verdade, Lukas.
— Como é que você sabe?
— Eu sei.
— Quem contou?
— Eu vi.
sustentado pelo pai — político de ultradireita que financiava suas loucuras desde que fossem mantidas
longe da mídia. A fissura por todo tipo de droga carbonizou-lhe os neurônios e o condenou à loucura,
depois de algumas tentativas de desintoxicação e de um pouso forçado no terreno profissional do pai,
que lhe valeu uma eleição e o descrédito.
Cansado da culpa, persuadido pelo irmão a exorcizá-la, Lukas pôs- -se a ruminar o ressentimento,
os devaneios, sob pena de terminar seus dias num duelo intempestivo com o usurpador.
Atento ao apelo trivial da razão, ele dirigiu até Búzios com a pis tola no porta-luva. Meteu-se nas
quebradas que exigiam tração nas quatro rodas. Deixou o carro no recuo mais recôndito da alameda
que separa o manguezal do bosque rarefeito, em aclive. Subiu a ladeira lamacenta, a escadaria áspera,
angulosa e irregular, os últimos degraus de madeira. Pisou a varanda leve, quase bailarino. Pulou a
em argumentos alternativos para fundamentar a vingança. A via ar- gumentativa que adotou para si
mesmo girava em torno da amizade traída, que também podia ser entendida como traição da confiança
ou rompimento de contrato. Não qualquer contrato; a amizade corresponde a um pacto muito especial.
Se o ciúme e a honra do macho nada tinham a ver com a decisão de assassinar o antigo amigo, por
que, então, matar o homem e não a mulher? Por que não matar os dois?
Quarenta anos depois, Lukas admite que BB apenas reagiu à rejeição de que se ressentia.
Compreende que Felício jogou o jogo da época, em que ninguém era de ninguém, posto que, segundo
a Bíblia da era de Aquarius, o amor não rimava com propriedade privada nem poderia ser enquadrado
por contratos, promessas ou compromissos institucionais. O reino da liberdade ilimitada, nas relações
pessoais
FLAGRANTES DA VIDA NO MAR: OS TUBARÕES-BALEIA
Graças ao desencanto amoroso, a vida burguesa, a cuja sedução Lukas, a despeito das
ambivalências, sempre resistira, afigurou-se intragável. Definitiva e irreversivelmente intragável. Do
desapontamento, portanto, vieram as navegações. Maíra, namoradinha de adolescência, largou a escola
na Suíça e juntou-se a ele. A persistência do mar e a quase solidão encarregaram-se de transformar a
se navega de Jeda, na Arábia Saudita, para Djibuti, evitando os confli tos entre Eritréia e Etiópia, ao
sul, e a revolução no Iêmen, ao norte. Você prepara a transição no comando do veleiro. Em meia hora,
seu substituto subirá ao convés. Nem sempre seu turno coincide com o amanhecer e raramente o mar
Vermelho, chegando à boca do oceano Índico, está assim calmo e claro. Os marujos o temem e veem
nele um tabuleiro de riscos, em que se joga a vida contra ventos, rochas e minas.
Anderson. Dá vontade de acordar Alexandre, o único guitarrista da tripulação.
Nada a bombordo, nada a estibordo, você gira o arco da inspeção: este é o ofício do marujo
cumprindo seu quarto, seis horas no convés para evitar surpresas.
Certas noites quentes naquela região explicam o nome do Mar. O vento sopra a areia do deserto; o
ar granulado é irrespirável; o corpo pegajoso fede a urina inorgânica, mineral; as velas amanhecem
sais. Há muito todos ansiavam por esse momento. É uma bênção que coincida com um dia tão
límpido, de águas transparentes e pacíficas. O cardume de tubarões-baleia desfila a cem metros, as
bocas abertas dragando plânctons cintilantes. Deslizam como arados marinhos em grande estilo. São
mais ou menos cinquenta animais arrastando suas caudas longuíssimas em silêncio. Não há o que
temer, eles são vegetarianos e pacifistas. Tomando os 12 metros do veleiro como referência, você
idade adulta entrou de licença e a razão saiu de férias. Só Maíra compartilha sua tensão, de pé no
convés, a seu lado. Você não tira o olho de Alexandre, que volta à garupa do monstrinho de estimação
e faz pose para a câmera de Nick. Alba se delicia no parque de diversões temático improvisado pelo
grupo. Enquanto estiver com seu peixinho gigante, Alex será o menos vulnerável. Nenhum tubarão
ousará aproximar-se das baleias.
da mulher, que esteve em jogo. Não se trata de orgulho ferido, portanto. Alba poderia ter morrido, ele
diz. O tubarão ultrapassou os limites. Claro que isso não faz nenhum sentido. Porém, antes que você
argumente, Nick já está no mar, empunhando o arpão, à espera do predador, fazendo barulho para
atrair a caça. Alexandre também está de volta à água, mas com o braço esquerdo agarrado à escada e o
direito, livre para fotografar o duelo de titãs. Invertem-se os papéis.
FLAGRANTES DA VIDA NO MAR: O ALBATROZ DE GIBRALTAR
No meio da noite, você está sozinho. Sua mulher e os três companheiros de viagem dormem nas
cabines. Você cumpre seu turno de quatro horas conduzindo o veleiro para o sul, singrando o oceano
Índico ao longo da costa oriental da África, a centenas de quilômetros do continente para evitar piratas
e revoluções. Os piratas da Somália atacam na curva da ilha de Socotra e as revoluções vão rasgando
Casablanca é mesmo um lugar encantado; não se fazem no cinema condes sicilianos como na Sicília,
cujas orgias não são perigosas como em Jeda e cujos palacetes, protegidos por pescadores, têm, sim,
subterrâneos abastecidos de armas, como nos filmes; pedir licença a um juiz saudita para visitar Meca,
evocando ascendência libanesa, ladeado pela amante ocidental e fingindo naturalidade no ambiente
teo- crático, pode não ser uma boa ideia. Assim como pode ser péssima ideia fazer turismo no campo
salvar-se de uma colisão com o navio. Contudo, a pulsação latejante do oceano, a direção dos ventos,
a velocidade do navio podem surpreender o navegador que conte somente com a audição e a visão.
Por outro lado, um veleiro pequeno como o seu, de doze metros (ou quarenta pés), às vezes sequer é
detectado pelo radar da embarcação maior, à qual faltam flexibilidade, tempo e espaço para desviar-
se, quando ele se torna visível.
careta conservador. Saíram de moda o pé na estrada e o passo fora do compasso da nova ordem
mundial. As viagens perderam encanto; os viajantes, brio e frisson. A odisseia do Ulisses de nossa
época pós- -hippie passou a ser a navegação virtual do nerd voyeur que trocou a experiência pelo
Google. Tempos agitados os nossos, que gravitam em torno da grana e abrem alas para a ligação.
Maconha e haxixe são drogas contemplativas, que reduzem a velocidade e excitam a sensibilidade
nesses oito meses de navegação para distinguir a luzinha de uma jangada perdida no oceano de um
farol ou da iluminação de um navio. Farol está fora de questão porque não há ilhas em um diâme tro de
mil milhas ou mais. Além disso, o lume parece mover-se e é baixo. Não está além da superfície do
mar, como se viesse de uma balsa repleta de náufragos. Você corre a chamar Nick, Alba, Alexan dre e
Maíra. Deve haver gente em risco precisando de ajuda. Você muda a rota, faz a volta e retorna a
bélico —, algumas formas se distinguem, em meio à cólera espumante do oceano revolvido. E pela
primeira vez desde que partiu da Inglaterra, você vê o perfil do veleiro projetado nas ondas, o vulto
negro esbatido no mar como um presságio.
336 Luiz Eduardo Soares
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TRAVESSIA: PLANO B AO SOL DO NOVO MUNDO
Tantos anos depois do primeiro ciclo das navegações e do retorno ao Brasil pelo Pantanal, tantos
anos após o segundo ciclo das viagens marítimas, voltar ao veleiro e cruzar o Atlântico era um
privilégio. Uma bênção. Lukas devia a oportunidade a Gordon. Devia a saúde, a vida recuperada, ao
pessoas. Afinal, nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Bastaria ficar longe da heroína, da coca e do
negócio da droga. O resto se ajeitaria com o tempo, o amor da mulher e dos filhos, a rede solidária de
amigos, a capacidade de trabalho de Lukas e sua força de vontade.
O plano B lhe foi proposto na viagem de volta. Violava uma das cláusulas pétreas do plano A. Em
compensação, poderia ser visto como simples postergação do plano A, visando criar os meios neces-
mais um motivo de prazer. Havia tempo não navegava. Para um bicho do mar, atravessar o Atlântico
não tinha preço. Era uma realização.
Partiram como quem celebra um nascimento. Afastaram-se do porto sob sol forte e temperatura
amena. As tarefas do barco logo se impuseram. Lukas cumpriu seu turno. Um auxiliar o substituiu.
Gordon soube, então, que chegara o momento. Lukas estava livre da fraqueza e do medo. Era todo
— Timidez. Vai ver é inseguro.
— Pelo contrário. Não tem nada de insegurança. Nem de timidez. É um cara tranquilo, na dele, mas
com um puta espírito de liderança e uma senhora inteligência.
— Vai ser um prazer.
— Você vai gostar dele.
— Mas você está falando sobre usar. Eu também acho que você deve ficar longe. Tem gente que
consegue cheirar de vez em quando e curtir. Tem gente que acaba fissurado. Aí é uma merda.
— E tem gente como eu, que faz o casamento do pó com a heroína, e aí é uma merda ao quadrado.
— Ao cubo.
— Justamente.
— É isso aí.
— Por isso, você é a pessoa ideal. Você está limpo, manda no próprio nariz, no próprio
metabolismo. É um homem livre.
— Livre eu sou mesmo. Graças à sua ajuda, Gordon. Sem você, não sei onde eu estaria agora.
— Você é forte, Lukas. O ser humano que se mete num veleiro pra enfrentar o deus Netuno tem
Lukas permanece em silêncio, um leve sorriso que rumina algo como “eu sei o que você vai dizer;
nem precisa perder seu tempo”. Entretanto, balança de novo a cabeça, aquiescendo.
— Há muitos anos não brinco mais, Lukas. Deixei o amadorismo de lado. O pior de tudo é o
amadorismo. A gente acaba ficando no meio do caminho, em cima do muro, meio lá, meio cá, e não
faz nada direito ou, quando faz, rende pouco, não compensa. O risco é o mesmo. No fundo, se você
negaria que se trata de um grande negócio? Um negócio para levar a sério?
— Zerar o risco?
— Tudo bem, Lukas, vamos ser profissionais e falar com precisão: zerar de forma total e absoluta é
inviável; mas é possível praticamente zerar o risco e a incerteza.
— Como é que funciona esse “praticamente” zerar o risco e a incerteza?
curtir a vida com sua mulher, as crianças e o superveleiro que você vai poder comprar. Você viria
comigo e mais alguns ajudantes bem-esco- lhidos, competentes, de toda a confiança. Sua função seria
coordenar a parte financeira da operação, já que você é bom nisso, além de me ajudar na viagem,
nesse veleiro, e me apoiar na entrega aos distribuidores varejistas, na Inglaterra. A gente transporta
uma ou duas toneladas da pura. A metade é nossa. Pode ser em duas vezes. Uma tonelada de cada vez.
— Qual é o jogo, então? Do atacado na Colômbia ao atacado na Inglaterra, qual a variação de
preço? O transporte deve ser caríssimo. Qual o lucro que vocês tiram nisso?
— Muito, muito dinheiro. Grana suficiente para você nunca mais pensar em trabalho na vida.
— Dá em torno de...
— Uma tonelada no atacado, na Europa, na Inglaterra, dá pra nós alguma coisa entre vinte e 22
— Quase oito milhões de dólares pra cada um?
— Mais ou menos isso, Lukas.
— Caralho. Caralho. Caralho.
— Foi o que eu disse, meu irmão.
— Deixa eu tomar um ar, respirar fundo e organizar a cabeça. Eu ia fazer uma pergunta. Agora,
68
FAUSTO
Lukas aceitou o pacto. Dobrou-se ao canto da sereia. Um canto, sem dúvida, poderosíssimo. Voltou
para casa duplamente animado. Estava livre da dependência química — orgulhava-se da vitória con-
quistada com tanto sacrifício — e já não o preocupava o desemprego. Enquanto esperasse o chamado
pela rede que operava na Europa, abastecida pelo transporte marítimo, via Inglaterra.
O problema, no Rio, era o faccionalismo dos grupos armados e o envolvimento de cada um dos três
comandos com segmentos policiais numerosos, poderosos e vorazes, que agiam sem nenhum controle.
Tudo isso provocava instabilidade e tornava o dia seguinte absolutamente imprevisível. O ambiente
para os negócios era péssimo, portanto.
materializando-se num passe de mágica. Lukas especulava sobre sua formação. Não seria absurdo
atribuir-lhe um passado no circo. Talvez tivesse sido mágico no México ou em Miami e empregasse os
truques nas novas funções. Tampouco parecia impossível a Lukas que tivesse sido treinado em alguma
agência policial ou militar de inteligência. Ainda que esses devaneios lhe provocassem desconforto,
porque suscitava a hipótese improvável, embora não de todo descartável, de que Albino permanecesse
NOTAS DO AUTOR
I.Experiência versus mercado
Um finíssimo observador das coisas humanas, pensador brilhante, psicanalista e escritor, cidadão
comprometido com as questões relativas à vida pública, Contardo Caligaris, escreveu: “Meu ideal de
vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas.” Ele não disse:
gem da lei, antes que eles amadurecessem, obedecendo o ritmo ditado pelas normas. Ou melhor: sem
que o processo de amadurecimento que engendra o lucro tivesse de submeter-se às quatro estações do
capitalismo, correspondentes aos crivos legais que estipulam o que pode ser negociado, de que modo,
com quem e sob quais condições.
O argumento de que ele poderia ter sido um lobista da indústria de armas, álcool ou cigarros, sem
violência que se destina a evitar. A proibição, porque é condição sine qua non para a existência do
tráfico. A prisão, porque coloca em marcha instrumentos violentos e apenas amarra o autor a seu ato
destrutivo, obstando mudanças pessoais positivas e saudáveis.
A combinação do proibicionismo com penas privativas de liberdade, cumpridas em instituições
totais, é explosiva. É arma de destruição em massa. Detona mecanismos brutais que, na prática,
Quem narra não é juiz, não pretende sê-lo, não pode sê-lo. Contudo, é responsável. Poderia calar-
se?
II.Meu reino por um veleiro
Em 1972, eu e Lukas morávamos no Rio de Janeiro, mas vivíamos realidades muito diferentes.
Com dezoito anos, eu entrava para a faculdade de Letras, fazia teatro, queria escrever e fazer a
de sangue do Rio de Janeiro subterrâneo, conectado de menos com os canais clandestinos onde
passava a História com H maiúsculo. Do alto de minha pretensão juvenil, eu talvez preferisse que ele
aplicasse seu destemor na defesa das causas coletivas e na resistência à ditadu ra. Companheiros meus
o desprezariam por alienado. Eu não gostava desse papo, que me soava tão careta quanto o realismo
socialista, o machismo e a homofobia, mesmo que, para Lukas, o careta fosse eu. Provavelmente,
tantos invistam todas as energias (com o diligente apoio das instituições e das expectativas coletivas
predominantes) na arte de se reinventar à imagem e semelhança de seu passado. Faço-o por recusar a
identificação dos sujeitos humanos com essências imutáveis ou substâncias morais estáveis, que se
revelariam em seus atos. Segundo esta concepção castradora, as ações manifestariam aquilo que o
sujeito verdadeiramente é e que, portanto, estaria condenado a ser por toda a vida. As metamorfoses
de Lukas, quando me sugeriu que contasse a sua história. Ele mostrou que permanece intacta
aquela velha coragem libertária e generosa do rapaz que trocou a fortuna pela vida no mar.
Tudo ou nada 359
EDITORA RESPONSÁVEL
Cristiane Costa
PRODUÇÃO
Adriana Torres Ana Carla Sousa
PRODUÇÃO EDITORIAL Luana Luz
REVISÃO
Aguiar Silva Eni Valentin Torres Mariana Elia
DIAGRAMAÇÃO Leandro B. Liporage
Este livro foi impresso no Rio de Janeiro, em maio de 2012, pela Edigráfica, para a Editora Nova Fronteira.
A fonte usada no miolo é Iowan Old Style, corpo 10,5/14,5.O papel do miolo é chambril avena 80g/m2, e o da capa é cartão 250g/m2.