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Memória, territorialidade e migração compulsória: a reação dos agricultores familiares à instalação da
hidrelétrica Itá (SC/RS)
Maria José Reis – UFSC/UNIVALI
O presente texto1 tem como objetivo interpretar o trabalho de memória (Bosi, 1983)
realizado por agricultores familiares da região do Alto Uruguai, antes de terem sido
deslocados compulsoriamente devido à instalação da hidrelétrica Itá (SC/RS), no final da
década de 1990. Este trabalho está voltado basicamente para a rememoração, por parte dos
agricultores auto-referidos como colonos2, do processo de ocupação e construção de seu
território3 na referida região, a partir de 1920, tendo em vista viabilizar sua reprodução social,
com a garantia do acesso a terra a todos os membros das unidades familiares de produção.
Levando em conta, conforme apontam diferentes autores, a íntima relação entre
memória e identidade social e memória e cognição4, o que se constata, através do processo de
rememoração, é a reafirmação de valores identitários constitutivos da identidade de colonos,
bem como aspectos elucidativos de seu modo de perceber a eminente contingência de migrar,
com uma evidente ressemantização da própria concepção de migração. Percebida e
naturalizada, no movimento migratório inicial, como voluntária e com um caráter
estruturante, parte de um projeto familiar e tendo como objetivo sua reprodução social e sua
territorialização, passa a ser vista, sobretudo pelos colonos proprietários da terra, como uma
ameaça a esta reconstrução territorial e conseqüente reprodução social, diante da eminente
migração compulsória decorrente da instalação da UHE Itá.
1 Trata-se de uma versão modificada de um dos capítulos de minha tese de doutorado (Reis, 1998). 2 Conforme Seyferth (1993, p.38), essa identificação social é presidida por uma condição de camponeses – denominação que em parte da literatura antropológica é atribuída genericamente aos produtores familiares ou pequenos produtores rurais - mas apresenta, também “um conteúdo étnico irredutível, que pressupõe uma distintividade cultural e, em certa medida, também racial, em relação àqueles brasileiros denominados de caboclos”. 3 Nos termos propostos por Haesbaert (2002, p.131), isto é, de espaços que além de serem a base econômica e política de determinados grupos sociais são fontes de identificação cultural, referência simbólica que em um processo de desterritorialização perdem sentido e se transformam em um não lugar. 4 Veja-se, entre outros, Pollack (1989); Connerton (1992); Meneses (1992) e Frentress;Wickmam( 1992).
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Vale ressaltar que a ocorrência de migrações compulsórias tem sido um dos aspectos
recorrentemente destacados na ampla literatura nacional e internacional, sobre a instalação de
usinas hidrelétricas. No caso do Brasil, considerando-se apenas os oito maiores reservatórios
brasileiros construídos, calcula-se que tenham sido remanejadas um número superior a 300
mil pessoas, havendo, ainda, a previsão da Eletrobrás (1990) de deslocamento compulsório de
um contingente maior de 150 mil pessoas, como nos casos anteriores, a grande maioria de
agricultores familiares e populações indígenas..
A hidrelétrica Itá, por sua vez, provocou o deslocamento de aproximadamente 16 mil
pessoas (Eletrosul, 1997). Destas, cerca de 90% eram pequenos produtores rurais, a grande
maioria deles identificada como colonos, - dentre os quais os entrevistados cujos depoimentos
deram o substrato para a elaboração deste texto - e os demais como brasileiros ou caboclos5,
ocupantes de espaços de onze municípios no Alto Uruguai, quatro deles localizados no Rio
Grande do Sul e os demais em Santa Catarina.
No final dos anos 1970, assim que vieram a público os resultados dos estudos sobre o
potencial hidroenergético da bacia do rio Uruguai propondo a construção de cerca de 22
usinas hidrelétricas nesta bacia, teve início a reação e mobilização política dos pequenos
produtores rurais da região, dando origem ao “Movimento dos Atingidos por Barragens”
(MAB). Este Movimento teve, sem dúvida, um importante papel tanto nas percepções dos
agricultores familiares em relação à essa problemática, como nas várias conquistas que este
segmento social obteve em relação a diferentes aspectos relativos aos efeitos decorrentes do
processo acima referido, de modo especial quanto às formas de compensação a serem
garantidas pelo setor elétrico em relação a seu deslocamento compulsório dos espaços
ocupados.
O passado: migrar para permanecer
A colonos que ocuparam o Alto Uruguai, a partir da década de 1920, eram provenientes
de outras localidades do Rio Grande do Sul ou, em menores proporções, migrantes vindos
5 Seyferth (1993, p.38) observa que “O substantivo caboclo é registrado nos dicionários de língua portuguesa como indicativo de mestiço de branco e índio, de cor acobreada e cabelos lisos, tendo como sinônimo mameluco, sertanejo, caipira, etc. Na literatura antropológica e sociológica tem mais ou menos este mesmo sentido, prevalecendo como elemento característico a mestiçagem, próxima ou remota, de brancos e índios”.
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diretamente da Europa. Se, por um lado, a vinda desses europeus, desde as últimas décadas do
século XIX, para colonizar as áreas florestadas do Brasil Meridional atendia a interesses
geopolíticos e econômicos do Estado brasileiro e de empresas privadas de colonização, a
emigração ou enxamagem (Roche, 1969), realizada por seus descendentes dentro dos limites
territoriais brasileiros, foi decorrente de vários outros fatores.
Esse deslocamento interno ocorria, em parte, devido à política de colonização que
diminuiu o tamanho original dos lotes coloniais6, limitando as possibilidades de partilha
diante das pressões demográficas decorrentes da própria reprodução biológica das unidades
familiares. Em outros termos, como afirma Lovisolo (1989:97), a escassez das terras, que teve
como pano de fundo o processo que a converteu em mercadoria, em meados do século XIX, e
especificamente a fragmentação e a pressão demográfica, inibiam a reprodução social das
unidades familiares de produção.
Entretanto, a emigração dos colonos no sul do Brasil esteve presa, também, a razões
internas à própria realidade camponesa específica dos colonos, da qual faz parte um valor
fundamental, a propriedade da terra, enquanto requisito para sua reprodução social. Esteve
intimamente associada, ainda, a outro aspecto cultural, o emprego da técnica agrícola da
derrubada e queimada, seguida do plantio, associada à rotação de terras para evitar seu
esgotamento a curto prazo. O fato concreto é, como afirma Seyferth (1990:30), que o lote
colonial de 25 hectares não permitia o pousio das terras por um período longo ou ao menos
suficiente. Isto trouxe como resultado o esgotamento rápido que, associado, em certos casos,
ao parcelamento dos lotes por herança, impediu o acesso à terra das novas unidades familiares
de produção, limitando as possibilidades de reprodução das unidades familiares originais.
Considerando que em cada unidade familiar o casamento dos filhos demandava a
constituição de uma nova família e, freqüentemente, a necessidade de formação de uma nova
unidade de produção que não poderia mais se constituir por fragmentação da propriedade
(Woortmann,E., 1995:116), fizeram-se necessárias soluções, fossem elas coletivas ou
individuais, de curto ou de longo prazo, para viabilizar a reprodução social dos colonos
enquanto tal.
6 Os lotes coloniais no sul do Brasil tinham, inicialmente, 75ha, passando, posteriormente, a 50ha. Quando deixaram de ser concessões do Estado, devendo ser adquiridos através da compra, passaram a ter, em média, 25ha.
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Como em situações similares, a curto prazo, de acordo com Almeida (1986:67), algumas
das respostas das famílias de agricultores familiares poderiam ser a intensificação do trabalho
(mais membros da família trabalhariam e mais cedo), a redução do consumo (o que
evidentemente significaria piora na qualidade de vida familiar), o assalariamento integral ou
parcial de um ou mais membros da unidade, a dedicação exclusiva ao estudo ou o início de
outra atividade, geralmente urbana (comércio etc.). A longo prazo, uma outra alternativa seria
a aquisição de novas terras para toda a unidade original ou para as novas unidades.
Levando em conta, contudo, que “a capacidade de acumulação da unidade originária é
limitada por um conjunto de fatores (principalmente pela produtividade e pelo nível de
preços), que a torna uma variável dependente da política econômica e da acumulação do
sistema no qual está inserida” (Lovisolo, idem:98), a busca de novas terras, mais baratas, em
região de fronteira, acabou sendo uma das alternativas possíveis para viabilizar a reprodução
social dos colonos.
A migração apresentou-se, portanto, como uma das saídas para viabilizar a referida
reprodução, tanto dos que ficaram - quando a migração foi parcial em relação à unidade
técnica original - como daqueles que partiram.
Em outros termos, mudar-se ou migrar em busca de acesso à terra pela via de sua
apropriação jurídica foi um movimento que, paradoxalmente, teve como objetivo permanecer.
Não se constituiu, portanto, em uma fuga; foi antes uma busca (Martins, 1973:26), visando a
renovação das possibilidades de manutenção, não apenas de determinada maneira de produzir,
mas de um modo de viver que implicava, além dos aspectos já mencionados, um modo
também específico de ocupação do espaço, ou seja de territorialização, e de organização das
relações comunitárias.
O tempo da territorialização no Alto Uruguai: a memória do
tempo e os espaços da memória
Apostando nas possibilidades acima apontadas, as famílias que migraram para o Alto
Uruguai, vieram algumas sozinhas, outras acompanhando grupos domésticos aparentados,
reproduzindo, de acordo com Woortmannn (1995), um padrão mais ou menos constante em
situações similares.
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Se, por um lado, não faltaram dificuldades durante o processo de migração e instalação
das novas linhas coloniais7, por outro, a rememoração de alguns de seus protagonistas, ou as
narrativas de segunda mão, de seus descendentes, nada têm de épico no que diz respeito à
presença de heróis fundadores, responsáveis por eventos extraordinários.
Constituem, antes, uma saga presa à vida de cada grupo doméstico, experimentada à
cada dia. São, portanto, pedaços do cotidiano, relações sociais entre pessoas e entre elas e seu
novo espaço físico que compõem os relatos, centrados em alguns aspectos reiteradamente
invocados.
São exatamente estes aspectos - aqueles que recriaram objetivamente os colonos e seus
territórios - que, no momento de crise em que se encontravam, atualizaram sua identidade,
como referencial de resistência às mudanças diante da perspectiva, naquele momento, de uma
migração compulsória, em função da implantação da hidrelétrica de Itá. Migração que,
pensada em seu limite extremo, poderia ameaçar a continuidade de sua própria trajetória
histórica enquanto colonos.
Deste modo, embora os temas recorrentes nas falas de meus entrevistados sejam, em
parte, constitutivos da memória social dos colonos do sul do Brasil, chamam a atenção, em
suas narrativas, determinadas diferenças de “tom”, de conotações e de ênfases que as
distanciam, sobretudo de versões laudatórias nas quais o que se destaca é o papel pioneiro e
civilizatório do colonizador.8
Na verdade, são versões emocionadas do passado, revisitado a partir da incerteza do
presente e da antecipação negativa do futuro, carregadas de melancolia e de indignação moral,
freqüentemente mal contidas durante o trabalho de memória. Nele há pouco lugar para
lembranças alegres e prazerosas que só são esporadicamente recuperadas, de modo especial,
por aqueles que se sentem menos ameaçados em relação às conseqüências advindas da
instalação da barragem em questão.
Os espaços privilegiados da memória são aqueles basicamente colados à recriação
objetiva das pré-condições destinadas a garantir a sobrevivência e a reprodução biológica e 7 Localidades fixadas longitudinalmente através da abertura de picadas, na mata, acompanhando, de um modo geral, os cursos dos rios, ao longo dos quais eram demarcados os lotes coloniais. 8 As versões laudatórias, via de regra, enaltecem não apenas a capacidade de trabalho dos colonos, como ressaltam o seu papel civilizador, responsável pelo progresso das áreas coloniais, através do trabalho que enobrece e produz riqueza. Como afirma Pesavento (1980:76), “tal forma, sem dúvida ideológica, de apresentar as coisas não aponta para a acumulação de capital via comércio, assentada por sua vez na exploração do camponês, mas sim para a figura do pequeno artesão, imigrante, que do nada atingiu a riqueza na indústria.”
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social dos membros de cada unidade familiar, bem como à restauração de relações
comunitárias. Não é de estranhar, portanto, que o trabalho forneça o fio condutor da
rememoração, voltada, em primeira mão, para a construção dos espaços físico e social.
Em resposta à indagação de “como foi a vida quando chegaram aqui”, o que se tem são
lembranças das experiências vividas no cotidiano, organizadas pelo trabalho. É ele que marca
o tempo, esquadrinha os espaços e integra toda a narrativa, configurando na memória um
campo associativo completo (Bosi, idem, p.394), entrelaçando pessoas, ambiente físico e
coisas, confundindo-se com a própria essência da vida.
Assim é que os relatos se iniciam, evidenciando o primeiro obstáculo a vencer, a floresta
que, dona de todos os espaços, envolvia tudo. Vencer as árvores para fabricar a terra 9, foi
um dos primeiros desafios a enfrentar, de acordo com os colonos entrevistados, através do
trabalho árduo, limitado especialmente pela precariedade da tecnologia para enfrentá-lo.
Tudo aqui era puro matão, mata virgem. E no meio do mato fomos
morar, perto do rio. Cortamos o mato, roçamos o mato, passamos miséria
(Agricultor de Engenho Velho/ Concórdia).
(...) era tudo no meio do mato, e tudo a muque, só com foice, machado,
serrote. (Agricultor da Linha Meneghetti/ Concórdia).
A gente sofreu, fazer o quê? Arrastando madeira, serviço pesado,
perigoso... dia de chuva, tudo trabalho de peão, puro mato.(Agricultor da
Linha Fátima/ Itá).
A floresta, contudo, não apenas encobria a terra, sendo obstáculo à sua apropriação
como meio de produção. Mais que isto, ela própria foi percebida como fonte de uma riqueza
incalculável, com seus cedros, pinheiros, imbuías, canelas, perobas, entre várias outras
espécies igualmente valorizadas, geralmente exploradas pelas próprias Empresas
Colonizadoras ou por Empresas Madeireiras. Este tipo de atividade produtiva contou,
também, com a participação dos colonos, em suas diferentes etapas. Tanto no árduo e perigoso
9 Conforme Roche (1969:53), o colono adquiriu uma reputação de ser um excelente fabricante de terra, uma vez que “desbravar a floresta nos novos estabelecimentos impunha ao colono do século XX a mesma tarefa e a mesma técnica de seu bisavô, quando este emigrara da Alemanha”.
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ofício da derrubada das árvores, como no preparo dos troncos ou tábuas, em forma de balsa
ou, ainda, no seu transporte pelo rio Uruguai, com destino à Argentina.10
Apesar de longo, vale a pena acompanhar o depoimento de um colono da Linha Fátima
(Itá), que recorre, para reforçar as lembranças, ao suporte e testemunho de uma foto de
meados da década de 30, focalizando uma balsa com seus balseiros.
Nós éramos colono, só que certa época nós também trabalhávamos nesse
ramo. Nós levávamos a madeira pelo rio. O meu serviço era cozinhar no
mato, enquanto derrubavam a madeira e cuidar dos bois que puxavam a
mesma madeira prá beira do rio. Fazia um rancho e nós acampávamos.
Assim até 15 ou 16 anos; dali já comecei a viajar. Casei com 25 anos e aí
comprei terra. Viajar dava um dinheirinho. Levava, eu me lembro, seis
dias daqui até a Argentina; 5 noites e 6 dias; com mais água era mais
rápido. As toras eram muito grossas. ‘A senhora está vendo aqui na foto,
comparando com o tamanho do peão?’ A gente fazia balsa de tora, assim
umas 12 ou 15 toras, nós amarrávamos com cipó, o gaimbé 11. Em cima
fazia dois ranchinho prá gente dormir e cozinhar. Se fazia, também, balsa
de tábua, empacotada uma com a outra e amarrado os pacotes. Quando
tinha enchente, a gente chamava ponto de balsa, pelo mínimo 6 metros de
cheia, se levava a madeira pelo rio, os peões e o prático.12
A participação integral, por certo período de tempo, na condição de assalariado, nas
tarefas de extração e comercialização da madeira, oferecia a possibilidade de auferir uma
renda para a aquisição de terras, como no caso desse último informante, ou rendimento
complementar à atividade agrícola, via de regra destinado ao mesmo fim, conforme relato de
uma agricultora da Linha Alvorada(Itá).
10 Para uma descrição minuciosa deste tipo de atividade, veja-se, especialmente, Bellani (1988 e 1991). 11 O cipó ou gaimbé, parasita que se aloja nos troncos das árvores, destinava-se a amarrar as madeiras, tanto nas balsas como nas carroças que as transportavam até o rio. Conforme Bellani, (1991:116-117), normalmente os madeireiros compravam esse tipo de amarra dos “caboclos” que exerciam essa atividade complementar de coletá-la nas matas. 12 Segundo, ainda, Bellani (1988:20) o prático conhecia tudo, desde a formação da balsa, à época certa para o início da viagem, o nível do rio, os perigos das corredeiras, ressorjos (estouração de água), ilhas e os chamados chefradores (pontas de mata que avançavam sobre o rio). Os peões eram os auxiliares do prático, sendo suficiente um prático e 10 ou 15 peões para conduzir uma balsa de 150 toras.
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Difícil era pagar a terra... Meu marido também lidava com balsa; cortava a
madeira de valor; puro mato. Puxava com os bois pro rio, aí amarrava
com cipó e fazia a balsa. Ganhava um dinheirinho. Ele inventou de tudo
prá enfrentar a vida.
Um outro tipo de trabalho assalariado referido pelos colonos foi aquele destinado à
abertura de estradas de rodagem, cuja remuneração era igualmente destinada ao pagamento
das terras ou das despesas necessárias à subsistência das unidades familiares, no período da
instalação das colônias.
À medida que falam sobre seu passado, como é possível perceber através dos
fragmentos das narrativas selecionadas, os colonos vão decompondo a paisagem, cenário do
drama cotidiano e revelando os personagens e as cenas, em cuja remontagem não faltam
apreciações sobre o que foi rememorado.
Aos poucos, o que era só natureza, passa a ser, também, percebido e apropriado
cognitivamente e simbolicamente pela cultura. O que era puro mato que encobria a terra,
revela-se como preciosa fonte de matéria-prima e, mais adiante, aparece nas narrativas
abrigando, também, animais, fonte de perigo e medo, eventualmente de lazer e alimentação.
Valendo-se de suas próprias vivências ou daquelas contadas pelos pais, as lembranças se
sucedem, falando sobre os bicho do mato, bicho feroz ou bicho de caça.
Nós íamos no mato arrastar a madeira e assim, dia de chuva, ficava o
rastro dele, o tigre. 13 Assim como se diz, bicho feroz, mesmo, assim, eu
não vi. Só o rastro, mas que tinha, tinha. Meu pai matou duas antas.
Bicho, assim, de caça, tinha à vontade. Cotia, graxaim, veado, gato do
mato, jacu, tucano, quati... Quati, ih! Se a gente não fazia a roça meio
assim, quem comia eram os bichos. (Agricultor da Linha
Meneghetti/Concórdia).
No tempo da minha mãe, tinha tigre que tocava os cachorro prá debaixo
da casa. Os tigres matavam os cachorros. E eles (os pais) sem porta !!
Ficavam acordados de noite, cuidando. Eles faziam armadilha, rede. No
13 Trata-se, provavelmente, de outro tipo de felino brasileiro, já que os tigres são felídios que têm a Ásia e Índia como seu ambiente natural.
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meu tempo14 tinha porco do mato que vinha em tropa. Eles faziam
armadilha; era armadilha de madeira com corda. Eu cansei de ver
armadilha no Uruguai. (Agricultor da Linha Alvorada/Itá).
A mãe falava de um tigrezinho baio que gritava em volta da casa. Aí
faziam fogo porque eles tinham medo (Agricultor de Água Verde/
Marcelino Ramos).
Do mesmo modo, o rio Uruguai, que pelo menos por três décadas foi utilizado como
importante caminho por onde corriam balsas e balseiros levando sua preciosa carga,
traiçoeiramente escondia, também, seus perigos. Com suas muitas cachoeiras e corredeiras,
seus ressorjos, suas ilhas e chefradores, com a constante neblina acumulada em seu vale,
ameaçava desmanchar as balsas e engolir práticos e peões.
Acontecia muito acidente nesse rio. Aconteceu um, muito triste, que eu
me recordo. Não aconteceu na nossa viagem, foi na de um colega. Ele
perdeu um companheiro, de noite, no rio. Chefe sempre tem um, um
prático. Então ele pediu pros peões que estavam na frente se retirar; ele
era um homem de coragem, não viu o perigo. Ele ficou lá; daí o remo
atirou ele fora e ele ficou lá; não acharam mais ele (Agricultor da Linha
Simon/Itá).
O rio uma vez afogou dois. O rio estava aumentando e eles estavam
recolhendo a madeira, assim, de caíque,15 essas coisas. O rio ficou valente
e eles caíram e se afogaram. (Agricultor de Linha São Francisco/ Itá).
Em contraste com a dura pintura do trabalho ou dos perigos que o rio apresentava, como
diria Corbin (1989:150), a cena de costumes abre-se à evocação de ritos populares. Assim é
14 Bosi em seu “Memória e Sociedade”(idem:342), observa que “Curiosa é a expressão meu tempo usada pelos que recordam. Qual é meu tempo se ainda estou vivo e não tomei emprestado minha época à ninguém, pois ela me pertence tanto quanto a outros, meus coetâneos?” Por outro lado, “um tempo que fosse abstrato e a-social nunca poderia abarcar lembranças e não constituiria a natureza humana”(idem:idem). 15 Caíque ou caíco é uma pequena embarcação de madeira, movida a remo, de proa e popa elevados.
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que o rio é invocado, ainda, como caminho e local para manifestação da religiosidade popular
regional, através da realização anual da Procissão dos Guedes:
Era na barca que eles faziam a procissão da Nossa Senhora dos
Navegantes, dia 2 de fevereiro. Eles faziam navegação, no rio Uruguai.
Tinha porto de barca (balsa) e esse lugar aqui ficou por ‘Porto Guedes’,
devido a essa barca. Os Guedes tinham a devoção de Nossa Senhora dos
Navegantes. Reunia mais de mil pessoas; tinha missa em cima da barca. A
enchente levou a barca embora, se acabou (Agricultora da Linha Boa
Esperança/ Concórdia).
A memória encontra, também, o rio Uruguai como o lugar onde todo mundo aprendeu
a nadar, ou como um espaço de brincadeiras dominicais.
Domingo, metade do tempo estava na água. Nós queríamos ver quem
cruzava mais vezes o rio sem botar o pé no chão. (Agricultor da Linha São
Francisco/Itá).
Encontra-o, ainda, - principalmente enquanto suas águas estiveram livres da poluição
industrial que já se fez notar a partir da década de sessenta, ou enquanto não estava batido -
explorado demais - como o habitat de dourados, surubis, jundiás, cascudos e traíras.
Quando nós entramos prá cá, peixe tinha à vontade. Quando a gente tinha
um tempinho, se a gente tinha uma linha, ia botar ali uma com milho ou
minhoca. Nós cevávamos o peixe com uma espiga de milho; amarrava a
espiga de milho, cercava, fazia uma mangueira com madeira e ficava
esperando. De noite, ficava escutando os peixes, tchá, tchá !!! Ascendia o
facho, abria um pouquinho a mangueira e ficava esperando e matava o
peixe com o facão. Peixe bom era o dourado, traíra. Alguns não gostavam
de milho. Até matavam galinha prá fazer isca, ou usavam minhoca.
(Agricultor da Linha Meneghetti/ Concórdia).
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A par da retirada da floresta, indispensável para o preparo das roças, que implicou,
também, em queimar, tirar os tocos e as pedras, outra empreitada que as lembranças
recuperam é a construção dos espaços domésticos, de moradia e de atividades complementares
ao trabalho agrícola. São estes os objetos privilegiados na memória das mulheres, uma vez
que enquanto as atividades de desbravar a mata eram realizadas basicamente por homens, o
processo de construção desses espaços contou com a participação feminina. Várias
entrevistadas fazem referência a sua participação neste processo, narrado detidamente, por
uma agricultora da Linha Engenho Velho (Concórdia): Limpamos tudo, fizemos a casa, meu marido e eu. Com a foice e o machado. Os
buracos do cepo fui eu que fiz com a piconeta (picareta). E a casa nós cobrimos
de tabuinha; e eu grávida! Eu tinha que ajudar a serrar tora dessa altura e partir
tabuinha e carregar nas costa morro acima. No meio do mato, tinha que tirar.
Derrubava tudo a serrote. Nós éramos pobres, a serraria era longe, nós não
podíamos levar lá. Então a gente derrubava árvore, serrava tudo as torinhas,
assim, e depois tinha que partir com a cunha e com o ‘maio’ (marreta de madeira)
e depois fraquejar com machadinha. Mas olha: eu não queria mais nascer de novo
prá fazer tudo aquilo! A casa era pequeninha, com bastante coisa velha. Aí, com o
tempo, sabe, bem devagarinho, nós compramos telha. Ai que alegria o dia que
cobrimos aquele rancho de telha! Aí não chovia mais dentro, mas a fresta era
assim, ó !!! Até veio uma tia minha, até chorou; ela achou que nós íamos morrer
no inverno de frio. Fizemos chiqueirinho, paiozinho, tudo. Horta, fazia de taquara
do mato. Botava ripa e amarrava tudo. O tanque de lavar a roupa era de madeira
roliça, do mato. Tinha o riacho, o forno... assim era. Mas a participação feminina não acabou nas tarefas de construção dos espaços
domésticos. O que as narrativas reconstrõem é uma dupla jornada diária de trabalho e as
dificuldades vivenciadas pelas mulheres para conciliar o trabalho 16 na roça com os afazeres
domésticos, tanto maiores quanto menor a idade dos filhos. O trabalho aparece, nas
lembranças, deste modo, invadindo e absorvendo todos os espaços e todos os tempos da rotina
cotidiana.
16 Apesar da importância do trabalho feminino nas atividades agrícolas, algumas das entrevistadas fazem referência a sua participação nestas atividades como uma ajuda que complementa as tarefas ditas masculinas, o que tem sido, igualmente, registrado por diferentes autores, entre os quais Eigenheer (1982).
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Ai meu Deus do céu! Ma me tocava também de trabalhar na terra; cuidar
dos filhos, da casa; a hora que dava, costurava, quando chovia.
(Agricultora da Linha São Francisco/Itá).
Meu marido quando clareava o dia já estava na roça; eu ia levar café com
um neném no colo de um lado, outro na barriga, e no outro lado a coberta
prá botar ele no chão. Ia ajudar depois... (Agricultora da Linha São
Francisco/Itá).
Ma olha: eu sou velha assim, ma não sei de um serviço que eu não
enfrentei: trabalhar na roça com arado, com os bois, costurar, lavar tudo,
fazer chapéu... (Agricultora de Engenho Velho/ Concórdia).
Pela riqueza de detalhes, é interessante, ainda, acompanhar o relato de uma agricultora
da Linha São Francisco (Itá):
Se tu não ia na roça com teu marido tu não dava de comer pros teus filhos
pequenos; e tudo a muque .Chegamos as vezes a levantar duas horas da
manhã, de tanta loucura de trabalho. Quantas vezes que me tocava de
dormir de volta porque não dava ainda prá clarear o dia. Iluminava com o
chiareto (lamparina de querosene), acendia o fogão, amassava o pão,
tirava o leite, depois ia prá roça. Daí chegava meio dia em casa, da roça:
tudo apagado! Casa não dava prá limpar, senão tu não ía prá roça.
Ascendia o fogo, colocava a comida e ia lá pegar as vacas, levava água,
tudo amarrado nos tocos, ou outro pasto. Lavava roupa, mas tudo no
tempo (sem abrigo); a gente não tinha rancho, lavava a roupa no riacho;
até na cintura, as vezes, na água; com quinze, vinte dias que eu tinha
neném.17 Assim era... A gente não podia nem cuidar dos filhos, levava as
criança prá roça.
17 Eigenheer (idem, ibidem), observa que o trabalho da mulher na roça é marcado por uma descontinuidade, em parte fruto das diferentes fases do seu ciclo de vida. A gravidez e a amamentação interrompem, na maioria das vezes, suas atividades extradomésticas. Entretanto, a necessidade extrema impede que seja poupada no trabalho pesado quando atravessa esses períodos.
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Enquanto, por um lado, as mães se queixam de que o tempo para dedicarem aos
cuidados com os filhos lhes era roubado pelo trabalho produtivo, por outro, desde muito cedo,
assim que podiam pegar na enxada, as crianças tinham seu tempo de “brincadeiras” e da
própria escola requisitado para o desempenho de atividades agrícolas e domésticas. Isto é, a
criança desde cedo se preparava para o futuro, mas o fazia na condição de adulto, trabalhando
(Martins, 1991:79).
Lavrar a terra com o arado e os bois: pequenininhos! Eu tinha 11 anos e
meu irmão 9, e lavrava a roça com os bois e o arado, era duro. Bater
feijão, tudo a manguá 18 e criar os bichos. Nós éramos trabalhar, minha
gente, na roça! (Agricultora da Linha Alvorada/ Itá).
A gente começava com seis, sete anos a trabalhar na roça. Eles botavam a
gente no meio e para prá ti vê! Nós fazíamos açúcar, cachaça, também. A
gente tinha que ficar cuidando, com aquele frio, quando ficava
lambicando. Era triste, era sofrido!! (...). Arroz, socava no pilão. Nos
moinhos íamos a cavalo. Os cavalos corcoveavam por esses morros...
Quando chovia, a gente ralava mandioca. Meu pai fazia farinha, nós
espremíamos a mandioca enrolada em pano ralo, torrava no sol.
(Agricultora da Linha Suzana/ Marcelino Ramos).
Domingo tinha igreja e depois tinha roça. A única coisa que tive foi uma
boneca de milho. (Agricultora de Linha Entre Rios/ Concórdia).
Ao mesmo tempo, o trabalho árduo e constante dos colonos, desenvolvido com maior
intensidade nos tempos difíceis da colonização, não foi sem conseqüências para a manutenção
da saúde, provocando um desgaste do corpo, percebido especialmente pelas mulheres.
A gente se estragou de tanto trabalhar. A Gente se acabou plantando
nesses morros aí. Lavar roupa, ferver a roupa e botar a mão na água fria.
Agora eu quero andar em volta, visitar minhas amigas, meus conhecidos, mas
18Trata-se de um instrumento elaborado a partir de dois pedaços de madeira roliços, atados por um pequeno pedaço de couro. É utilizado para separar os grãos de feijão, trigo, etc., de suas vagens ou palhas.
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eu caminho 30 metros e tenho que parar. (Agricultora da Linha Engenho
Velho/Concórdia)
O desgaste do corpo pelo trabalho, a dificuldade de acesso ao atendimento medido, tanto
pelas distâncias a percorrer como pela falta de recursos foram também razões apontadas para
a ocorrência de mortes precoces, evocadas com freqüência pelos colonos, em relação ao
período de sua instalação no Alto Uruguai.
Memória, identidade e cognição
Três outros aspectos importantes que acompanham os relatos das adversidades e
privações, bem como da luta para superá-las, através do trabalho desgastante, devem ser,
ainda, sinteticamente ressaltados. O primeiro deles é o fato de que as narrativas remetem,
freqüentemente, a um “nós”, no qual se identificam, se reconhecem e reconhecem os outros
colonos como iguais, em relação aos obstáculos encontrados, ao trabalho investido, às
carências e privações. Mas, além destas recorrências, identificam também a concretude de um
“nós”, no sentido de compartilhar da tessitura de uma rede de relações sociais, com base no
parentesco, na vizinhança, na afiliação religiosa, entre outros aspectos. Essa pertença aparece
nas lembranças através das ações solidárias que se manifestam em situações de doença, nos
mutirões para o trabalho nas roças, nas empreitadas para a construção de bens comunitários
como igrejas e escolas, na participação em festas ou outras atividades culturais como os das
sociedades de canto ou agremiações esportivas. As experiências comunitárias acabam por
abrir pequenas brechas na memória, marcada pela melancolia, fazendo com que as narrativas
assumam um tom menos amargo e, em certas situações, até prazeroso.
Quando meu marido morreu, os vizinhos ajudaram. Costurava prás
mulheres e elas me mandavam os homens prá lavrar a terra. As vezes
pegava uma amiga prá se plantar junto um pedaço... (Agricultora da Linha
Alvorada/ Itá).
O meu marido ficou doente e os vizinhos que ajudaram aqui a tocar a
roça; meus filhos eram pequenos. Levaram ele prá Marcelino num lençol
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em duas varas; quatro homens, prá consultar o médico” (Agricultora da
Linha Meneghetti).
Meu pai ajudou a criar o coral da Barra do Veado. Naquele tempo já se
fazia o Kerb19 aqui (Agricultora de Entre Rios/ Concórdia).
Um segundo aspecto que merece ser destacado é a constatação, freqüentemente
reafirmada pelos colonos, de seu estado ou condição de pobreza; a percepção de que nós
éramos pobres. Quando chegamos aqui todo mundo era igual: pobre.
A condição de pobreza, causa e efeito de suas privações, é vista, na verdade, como mais
um obstáculo a ser vencido, apesar da aparente resignação, expressa em observações como:
fazer o que? Escapar a onde? É freqüente, assim, nas narrativas, a preocupação com o fazer
futuro, negada aos caboclos. Essa preocupação aponta na direção da perspectiva de superar
sua condição inicial, pela via da dedicação ao trabalho, garantindo, deste modo, sua
reprodução social enquanto colonos, incluindo nesta condição a possibilidade de, no mínimo,
garantir a propriedade da terra para os filhos.
Aponta, também, na direção da possibilidade de acumulação, implicando em uma
perspectiva projetiva diante do porvir, no sentido de “previsão”, como conjectura, e
“poupança”, como parcimônia nos gastos.
O difícil era pagar a terra... A gente passou, viu? Ma, escapar onde, fazer
o quê! A gente era pobre, minha família era pobre. A gente passava
antigamente, assim, porque eles vendiam fiado, os comerciantes lá de Itá
(Colono de Linha São Francisco/ Itá).
Ganhei uma sandália quando fiz a primeira comunhão. Meu primeiro par
de sapato, eu tinha 18 anos; meu padrasto comprou tão grande, prá não
comprar o ano que vem, que acho que até hoje não me servia. (Agricultor
da Linha Fátima/ Itá).
19 Trata-se de uma festa de origem alemã, cuja designação é uma abreviatura de “Kirchweihfest”, ou seja, festa da inauguração da igreja, ou comemoração anual deste evento.
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Começamos com um ranchinho de chão batido. Nós começamos a vida
assim; embaixo de quatro estepos, trabalhando, batalhando. Nós éramos
pobres. (Colono de Engenho Velho/ Concórdia).
O terceiro aspecto a que fiz referência diz respeito à percepção, por parte dos colonos,
do tempo de sua emigração e instalação no Alto Uruguai, como um “tempo de sofrimento”.
Ma, nós sofremos; nós passamos a minhoca, ou a gente passou cada eito, a gente sofreu, são
algumas formulações sintéticas que, à guisa de conclusão, dão por encerrada a reconstituição
de uma ou mais cenas presentes nas narrativas.
O sofrimento foi, em primeira mão, produzido pelo trabalho, uma vez que o trabalho
que a memória encontra não é apenas aquele que enobrece e dignifica, como parte de uma
ordem moral que dá créditos e marca a identidade de colono. Na verdade o que é rememorado
é o trabalho árduo como experiência vivida, trabalho como parte da luta pela sobrevivência.
Trabalho que traz a fadiga e desgasta o corpo, rouba e ocupa tempos e espaços. Ao trabalho
como razão de sofrimento, soma-se toda sorte de privações, carências e dificuldades pelas
quais se passou para enfrentar a vida. E para enfrentá-la, no afã de conquistar a terra, construir
sua comunidade, demarcar “seus lugares”, definir seus territórios, localizando os homens e as
coisas, foi preciso lutar para vencer as árvores, para aprender a lidar com os perigos da
floresta e do rio, com as intempéries e com as distâncias.
O trabalho como labuta e as adversidades experimentadas quotidianamente remetem,
portanto, invariavelmente, ao sofrimento que, por sua vez, dá força e consistência à percepção,
embora nem sempre verbalizada, de que a construção e a consolidação dos espaços no Alto
Uruguai foi uma conquista. O sofrimento constituiu, assim, o preço adicional do direito de
ocupar e usufruir desses espaços, agora ameaçados. À legalidade do acesso a terra pela
compra, soma-se a legitimidade da conquista através da luta e do sofrimento experimentado e
vivenciado como parte de sua trajetória histórica.
Deste modo, as trajetórias de luta para garantir a propriedade das terras que ocupavam,
por parte dos donos da terra, foram invocadas e evocadas pelos colonos, no momento de crise
e instabilidade diante da ameaça representada pela instalação da hidrelétrica de Itá,
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transformando-se em instrumento de luta política, por direitos que ultrapassam os limites
legalmente definidos em situações similares20.
Muitas das falas de lideranças do Movimento dos Atingidos e dos colonos, expressas em
manifestações públicas e documentos, faziam referências a que os pequenos produtores rurais
do Vale do Uruguai iriam perder sua história com a implantação das barragens. Era o próprio
presente destes colonos, portanto, com os olhos voltados para o futuro que solicitava revisitar
o passado.
Entretanto, o que me guiou em busca das impressões sobre o passado, através do
registro do trabalho de memória, não foi a tentativa de recuperá-lo, na perspectiva de
combustível para aquele Movimento Social. Foi, sim, em primeiro lugar, o pressuposto de que
há íntima relação entre memória e identidade social. Ou seja, de que “a memória como
construção social é formadora de imagem necessária para os processos de constituição e
reforço de identidades” (Mauss, idem: 22) o que, sem dúvida, foi possível constatar no que
acabamos de registrar.
À luz do que precede, conforme as expectativas apontadas observa-se, em primeira mão,
a atualização da identidade de colono, uma vez que nos depoimentos dos colonos proprietários
sobressai a percepção de sua própria participação enquanto sujeitos do processo de migração e
colonização do Alto Uruguai, sua maneira de evocar o evento e nele se colocar. Expressões
fundamentais da identidade de colono foram invocadas, salientando-se a dedicação ao
trabalho, vivenciado e pensado como luta para a conquista da propriedade da terra; a
participação da família neste trabalho, incluindo todos os membros do grupo doméstico; e a
constituição e a importância das redes de sociabilidade locais.
Em segundo lugar, recorri à memória apostando em outro pressuposto formulado pelos
autores referidos, de que a memória social é uma fonte de conhecimento. Isto é, que “ela
fornece quadros de orientação e assimilação do novo” (Meneses, idem: 25). Nesta perspectiva
parece oportuno, ainda, acrescentar que reconhecer a função cognitiva da memória significa
admitir, conforme Fentress e Wickmam (1992:25), que ela, mais do que providenciar um
conjunto de categorias através das quais experimenta-se o ambiente, fornece ao grupo material
para reflexão consciente. Isto quer dizer que devemos situar os grupos em relação as suas
20 Como afirmei em outro lugar (Reis, 1998), a partir de Vainer e Araújo (1990), o setor elétrico brasileiro privilegiava, pelo menos até a primeira metade da década de 1980, as indenizações em dinheiro, destinadas exclusivamente para os proprietários das terras requisitadas para a produção de hidreletletricidade.
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próprias tradições, indagando como eles interpretam seus próprios “fantasmas” e como os
usam como fonte de conhecimento. Conhecimento que, em nosso caso específico, contribuiu
para a compreensão dos colonos em relação à futura migração, esboçando um tempo futuro
ameaçador, diante da perspectiva da migração compulsória, interpretada sobretudo como
possibilidade de desterritorialização, em outros termos, de danos e perdas.
Portanto, além de reafirmarem sua auto-identificação ou, através dessa reafirmação, é
possível extrair do trabalho de memória, conforme as sugestões teóricas referidas, orientações
cognitivas. Isto é, foi possível localizar na reconstrução do passado, elementos que, ao mesmo
tempo, contribuiram para pensar sobre o futuro. Sendo assim, a partir das percepções colhidas
através do registro deste trabalho de memória e de outros depoimentos colados às vivências
dos colonos, experimentadas desde sua chegada ao Alto Uruguai, autorizo-me a afirmar que o
fenômeno da migração foi ressemantizado. De seu caráter estruturante, como estratégia de
reprodução social, passou a ser percebido, com seus desdobramentos, como uma ameaça a
esta reprodução e à manutenção do modo específico de vida destes pequenos produtores
rurais.
Várias são as evidências capazes de demonstrar que migrar ou, como diziam os colonos,
ter que sair, era pensado por estes atores sociais como uma ameaça à sua sobrevivência nos
moldes anteriores à migração compulsória decorrente da instalação da UHE Itá. A própria
expressão utilizada pelos colonos para referir-se à migração em questão – ter que sair - já dá
conta de sua percepção enquanto algo indesejável, uma vez que o ter não dá lugar ao querer.
É um não querer. Como se trata de uma migração compulsória, restavam, ainda, para os
colonos, muitas outras indagações. Indagações que suscitavam dúvidas, de início, sobre qual a
melhor escolha a fazer entre as alternativas acordadas entre o Movimento dos Atingidos e a
ELETROSUL.
O que a rememoração da migração passada parecia estar dizendo é que migrar em busca
de outra terra, além de deslocar-se espacialmente, implicava dela apropriar-se, socializando-a,
construindo os novos espaços de moradia, de trabalho e de vida comunitária. Implicava e
significava testar saberes e fazeres, adaptando-os às novas condições ambientais, tecer novas
redes de sociabilidade local e retomar o fluxo rotinizado do cotidiano familiar. Migrar
significava, pois, recomeçar. Mas recomeçar onde, em que condições e contando com quem?
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Recomeçar, no passado, na perspectiva de parte de meus entrevistados, implicou em
privações, trabalho árduo e sofrimento. Parecia ser este modo de recomeçar que estava, em
primeira mão, servindo de espelho para orientar as decisões sobre o que fazer em relação ao
deslocamento imposto pela implantação da barragem de Itá. Entretanto se, por um lado, este
movimento especular em relação ao passado ocorreu em relação àqueles aspectos nos quais
ambos os processos de migração se aproximam - na perspectiva de ter que recomeçar - por
outro lado, a própria condição compulsória da futura migração colocou certos
constrangimentos que a diferenciavam da anterior.
Assim é que, no passado, para os colonos proprietários das terras, a migração ocorreu
sendo decidida e administrada pelo grupo doméstico em relação a quem deveria migrar,
quando e para onde. O deslocamento para o Alto Uruguai ocorreu por parte de certos
membros do grupo doméstico ou mesmo no caso de sua totalidade, contando sempre com
casais jovens, começando a vida e com energia e disposição para o fazer. Além do mais, a
região procurada era, em termos geográficos, em tudo semelhante às áreas deixadas para trás.
Quanto ao futuro, além, e especialmente, do deslocamento não estar inscrito em seus
projetos de vida - afinal, passados os anos, os que lá se encontravam eram os que optaram ou
lograram permanecer na região - a notícia da implantação das barragens surpreendeu a todos
os colonos, indistintamente, em diferentes momentos do desenvolvimento dos grupos
domésticos. Isto é, com diferentes composições - alteradas, inclusive, com a notícia da
implantação das barragens pela saída de jovens, - em termos de número, idade e gênero de
seus componentes. E, por último, tanto o Alto Uruguai, quanto às áreas florestadas do sul do
Brasil tinham já suas fronteiras agrícolas esgotadas.
Implícita ou explicitamente, a rigor, estes aspectos apareceram nos depoimentos dos
colonos proprietários entrevistados que, somados a outros “danos e perdas”, pareciam compor
um doloroso exercício de contabilidade, pesando custos e eventuais benefícios, visando
orientar a escolha de uma das opções quanto à desapropriação das terras. Esta contabilidade, a
que não faltou racionalidade, mas onde sobejavam emoções, gerou, entretanto, muita incerteza
e insegurança, ao contrário das migrações anteriores, acompanhadas de expectativas positivas
e de esperança em relação ao futuro processo de reconquista e reconstrução de seus territórios.
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