Ana Teresa Jardim
No fio da noite
A bola, um mosaico de cacos de espelhos, girava lentamente no
teto. A luz da rua refulgiu na superfície facetada, ferindo-me de
leve os olhos.
Naquele momento ouvi o grito furar as paredes frágeis do
sobrado, atravessar as portas fechadas e espalhar-se pelos cor-
redores. A princípio era um grito fino. Então a dor sufocou a pu-
reza do tom.
O grito se tornou grave, quase mudo. Em seguida, retomou
sua expressão de horror. Era contínuo, demorado, rouco, e di-
feria de forma assustadora dos gritos e gemidos ouvidos na-
quela casa. Um silêncio atento o envolvia, como um mar de
veludo.
Levantei a cabeça do travesseiro, apoiando-me nos coto-
velos. Tinha ido ao quarto para fumar e ficar sozinha durante
alguns minutos. Sentei-me na cama, sem querer me alarmar,
achando que o grito tinha uma explicação. Ia passar desaper-
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cebido, nunca mais alguém se lembraria. Fiquei olhando para o
poste de luz, indolente e desperta diante da janela larga.
Então ouvi ruídos misturados. Primeiro, as portas dos quar-
tos se abrindo; alguém descendo as escadas. A seguir, os clamo-
res estridentes das mulheres. Apaguei a cigarrilha fumada pela
metade, levantei-me e adentrei o corredor escuro. A porta do
quarto de Irena, ao fundo, estava entreaberta. De onde eu es-
tava, podia vê-la deitada de bruços sobre a cama. A silhueta de
uma faca enorme encravada em suas costas imóveis se destaca-
va contra a parede. Fui caminhando lentamente até ela.
Sonya, Iracema, Olenka, Soledad, Perla e Muriel estavam
em pé, chorando, falando ao mesmo tempo. Sonya amparava
Dona Berta. Quando me viram, as meninas intensificaram seus
lamentos. Dona Berta jogou os braços para o alto, deixando cair
o xale que cobria a camisola.
— Nena! — e repetia: — Nena! — Como se não soubesse
mais o que dizer.
Não é que não fosse incomum que prostitutas fossem assas-
sinadas. Mas não assim, numa segunda-feira. Não Irena, que
era tão jovem que não tinha dinheiro nenhum, nem bem ne-
nhum que lhe pudessem roubar. Quem teria entrado ali para
fazer tal coisa, e por quê?
Era preciso chamar a polícia. Desci as escadas. Um único
cliente, naquele dia normalmente parado, de segunda-feira,
num horário de movimento ainda escasso — 11:30 da noite —
ressonava numa poltrona no salão, tendo certamente tomado
uns copos a mais.
Consultei os números rabiscados na parede, ao lado do te-
lefone: hospitais, bombeiros, o necrotério. — Boa noite. Posso
falar com o delegado? É um assassinato. Corrêa Vasquez, 25. É,
no Mangue.
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Vi logo que aquilo ia demorar. Resolvi eu mesma procurar
um policial na rua. Vesti, por cima do corpete de renda preta e
as meias finas, a única coisa que achei à mão: um impermeável
pendurado, ao lado de um chapéu de feltro, no cabide do ves-
tíbulo. Pertencia ao cliente que dormia sentado, e tão cedo não
ia acordar. Andei até a esquina, de chinelos, por entre as fracas
luzes e a neblina da noite úmida.
Ouvi o ruído de um motor de carro mas não pude distinguir
se vinha de perto ou de longe. A névoa afetava a percepção de
proximidade e distância. Finalmente, reconheci o vulto de um
policial fazendo a ronda.
— Como? Assassinato? No vinte e cinco?
— É lá mesmo onde o senhor está pensando. Vamos, lhe dou
um café quente. Um conhaque.
— Gripado? Eu também. Há de ser a umidade destas ruas.
Não, eu não tenho tuberculose. Graças a Deus. Ora, tossir todo
mundo tosse, é bom pra quando falta assunto, não é mesmo?
Grandes pigarros. Mas então, o senhor venha fazer o seu traba-
lho. Existe uma moça morta, a alguns quarteirões daqui. E uma
faca comprida enterrada tão fundo em suas costas que nenhu-
ma de nós conseguirá tirá-la.
O policial foi andando devagar. Ah, da Argentina, de onde
eu vinha, era tudo um pouco diferente: um policial era uma
criatura prestativa, expedita, audaz. Este guarda parecia estar
sonhando acordado. Aliás, todos pareciam ultimamente andar
sonhando naquela cidade...
O sobrado tinha um ar silencioso, visto assim de longe. Os
moradores das outras casas da rua boêmia se haviam recolhi-
do mais cedo. Só uma mulher com ar cansado, ainda maquia-
da, regava uma fileira de vasos de gerânio numa janela térrea.
O guarda escalou lentamente os íngremes degraus de madeira
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que levavam ao segundo andar. Sentadas ao redor da cama,
Dona Berta e as meninas choravam e rezavam com estrepitosa
comoção. O corpo de Irena estava virado de lado e arrumado,
um lenço de seda cobrindo a faca. O quarto havia se transfor-
mado numa bizarra mistura de altares improvisados com ima-
gens religiosas de procedência variadas. Ícones russos ao lado
de santos católicos poloneses, portugueses e espanhóis, can-
delabros judaicos, uma Iemanjá metade sereia metade mulher
com manto de cetim azul. As luzes apagadas e as velas ardendo.
Dona Berta, quando me viu, emocionou-se novamente.
— Nena! — recomeçou.
Providenciaram um banquinho para o policial. Ele sentou-
-se, mas ficou pouco tempo. Primeiro, tomou nota da ocor-
rência num bloquinho amarfanhado que tirou do bolso. Fez as
perguntas de praxe. Não aceitou o café. Finalmente, destacou
uma tira de papel e entregou-a a Dona Berta, que a guardou sob
a imagem de Nossa Senhora da Conceição.
— Aí está o número da ocorrência. De posse dele, a senhora
pode acompanhar o andamento do caso na delegacia.
Dona Berta perguntou-lhe quem iria tirar a faca das costas
de Irena para que a pudessem virar de costas. O guarda disse-lhe
que ela mesma, já que não havia contingente policial suficiente
naquela noite para que fossem enviados homens especializa-
dos. Ele próprio não saberia fazê-lo.
— Pois saiba que é um absurdo, a falta de consideração com
que são tratadas as prostitutas. E fique o senhor sabendo também
que, apesar de sermos estrangeiras, temos os nossos direitos.
Nossa pensão de mulheres, no Mangue, abrigava prostitu-
tas mais humildes, e não as famosas “francesas”, que cobravam
mais caro, tinham clientes mais ricos e viviam em relativo luxo.
Essas francesas, muitas vezes, nem de fato o eram, mas fingiam
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serem amostras das notáveis cortesãs que tanto incendiavam a
imaginação dos cavalheiros locais.
O fato foi que acabamos ficando com a sinistra incumbência.
Mirtes lembrou-se de que conhecia um dentista, antigo cliente,
que poderia ser encontrado no Café Trianon àquela hora. Dona
Berta catou na gaveta do criado-mudo de Irena alguns trocados
para que Mirtes pudesse pagar um táxi e ir buscá-lo.
Dona Berta tinha um plano. Havia pensado nisso enquanto
eu fora buscar o guarda. As outras todas já sabiam, a essa altura,
e estavam de acordo.
— Não, Nena, não tire a capa — disse ela. Você vai sair e in-
vestigar a morte de Irena. A polícia é cúmplice de todos os mar-
ginais desta cidade. Temos que nos proteger a nós mesmas. O
assassino não pode continuar solto. É preciso fazer justiça.
A nossa vida era mesmo uma difícil vida fácil. Geralmente,
éramos enganadas, muito cedo, por algum noivo ou paren-
te inescrupuloso e traficadas para lugares distantes. E na nova
terra, tínhamos que lutar sozinhas pelos nossos parcos direitos,
sem proteção das autoridades. Muitas vezes éramos oprimidas
por cáftens cruéis, e vítimas constantes de toda sorte de infelici-
dades que acometem a quem vagueia pelo submundo.
Deixamos o cadáver só e descemos até a cozinha. Passamos
pelo salão sem fazer barulho para que nosso hóspede, entregue
a Morfeu, dos seus braços não se apartasse. O dono da capa de
chuva dormia com um sorriso beatífico nos lábios, e de vez em
quando murmurava palavras doces, como se tomado de um en-
cantamento inquebrantável e dulcíssimo.
Acomodamo-nos na cozinha do sobrado. Tito, filho da finada
Elzinha, também ela assassinada muitos anos antes em condições
dramáticas, morava conosco. Tinha treze anos, e além de incum-
bir-se de pequenas tarefas relacionadas com o funcionamento
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do bordel, dirigia uma carrocinha puxada a bicicleta que vendia
quitutes dia e noite. Eram os então famosos Quitutes Paraíso. Só
que nessa noite fria de agosto, ele havia esquecido o boné de fel-
tro em casa, e tinha voltado rapidamente para buscá-lo. Quando
estava a ponto de subir, viu um homem sair de um dos quartos e
descer desabaladamente as escadas, ofegante e apressado. Reco-
nheceu-o de pronto, mas teve o cuidado de esconder-se num vão
debaixo da escada, na sombra. Foi dali que avistou perfeitamente
Filhinho, o filho adotivo de Jorge Maneta, famoso gângster do Rio
de Janeiro naqueles idos anos da década de 20. Filhinho ia com
pressa. Mas Tito não ouvira o grito de Irena, que ressoara exata-
mente alguns segundos antes dele chegar. Só foi entender o que
havia ocorrido quando subiu e juntou-se às mulheres que acor-
riam ao quarto da vítima. Soledad fez um café forte.
— Chá para nós — pedimos Muriel, a inglesa, e eu.
Sentadas ao redor da mesa, conversamos sobre o que fazer.
Tito fez umas torradas e preparou uma grande frigideira de ovos
com toucinho.
Dali a pouco chegava o Dr. Soares, o cliente dentista de Mir-
tes. Consternado, sentou-se e comeu antes de subir para retirar
a faca das costas da morta. O dentista achou uma temeridade
a ideia de Dona Berta e das meninas, de investigarmos o crime
por conta própria.
— Crime não é coisa de mulher. Vocês vão é se meter numa
bruta enrascada.
Mas nossa comoção era, também, uma espécie de insurrei-
ção tardia. Havíamos finalmente nos cansado de nos sentir des-
protegidas. Eu havia sido escolhida por ser considerada a mais
corajosa e mesmo um pouco fria. Realmente, nunca me haviam
visto envolvida em complicações emocionais. Era jovem, inte-
ligente e um pouco destacada de tudo. Dona Berta dizia que as
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mulheres graciosamente pequenas como
eu tinham uma têmpera de aço, ela pró-
pria uma baixa que havia arredondado as
suas formas até que restasse pouco da dis-
posição férrea que me atribuía.
— Nena é sagaz, vai descobrir a ver-
dade. Vá, filha, não há tempo para se ar-
rumar. Ponha-se a caminho enquanto os
fatos ainda estão frescos, e a noite jovem
mal esconde os assassinos.
— Mas eu não posso ir de chinelos.
Calcei uns sapatos de salto e foi assim
que ganhei as ruas, ao som de exortações
e lamentações, as mulheres levando-me
até a porta dos fundos, Dona Berta tra-
zendo nas mãos um ícone russo, as outras
desfiando terços, recomendando e ace-
nando.
Lá fui eu, pelas ruelas desertas e úmi-
das. Não podia ir direto atrás do Filhinho
e interpelá-lo, ou mesmo dar queixas dele
sem prova nenhuma. Precisava descobrir
porque ele havia feito aquilo — e só então
dar parte à polícia. Minha ideia inicial era
tentar obter alguma informação com os
malandros que jogavam pôquer na Praça
Tiradentes. Mas para isso, dissera Dona
Berta, era preciso levar comigo um passe,
ou jamais me receberiam. E era isso que
eu ia buscar, no cemitério das prostitutas,
cáftens e marginais.