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Fátima Alice Rodrigues Moniz

O Olhar do Falcão:

Para Uma Análise do Pormenor e da Visão na Poesia de Ted Hughes

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Outubro 2001

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Agradecimentos:

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Rui Carvalho Homem

por todo o seu trabalho de orientação desta dissertação, por todos os seus valiosos comentários

críticos e por toda a disponibilidade demonstrada. Em segundo lugar, gostaria de agradecer à Dra

Glória Vasconcelos pelos seus conselhos, pela sua persistência e amizade. Ainda uma palavra de

agradecimento à Secretaria Regional de Educação - Centro de Formação Profissional da Madeira

por todo o apoio financeiro prestado.

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Ao Belarmino e aos meus pais

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índice

I - Introdução 5

II - A questão do Ambiente: A Causa e a Escrita 26

III - Retratos de Pormenor 47

IV - Conclusão 106

Bibliografia 118

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I - Introdução

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O Olhar do Falcão

I.

Esta tese ocupar-se-á da representação visual de pequena escala na poesia sobre animais

da autoria de Ted Hughes. Nas páginas que se seguem dedicarei algum espaço à legitimação do

aparelho conceptual que adoptarei no tratamento da referida temática. Sublinho, contudo, que

não o farei de forma exaustiva, já que não é propósito primordial desta dissertação examinar

posições conceptuais, mas sim 1er a poesia hughesiana de uma perspectiva que por elas se deixe

informar.

Por dedicar todo o terceiro capítulo desta tese à análise das formas assumidas pela

representação visual de pormenor tendo em vista os textos por mim escolhidos, parece-me

necessário desde já aqui esclarecer que o sentido de "representação" em que este trabalho se

apoiará se reporta à transmissão de uma imagem mental e individual relativa a um dado objecto

ou fenómeno apreendido do meio circundante de um indivíduo. Mas representar é também

oferecer a outrem um contributo do nosso entendimento individual e subjectivo do mundo já que,

para essa representação, contribuem, sem dúvida, os nossos gostos pessoais, anseios e vivências.

Desta forma subscrevo aqui as palavras de Helena Carvalhão Buescu:

[...] toda a questionação moderna da percepção sublinha o

carácter eminentemente selectivo, compósito e produtor de sentido.

1 Este entendimento apoia-se, em particular, nas seguintes referências: Helena Carvalhão Buescu, Incidências do Olhar: Percepção e Representação (Lisboa: Editorial Caminho, 1990); James A. W. Heffernan, Museum of Words: The Poetics ofEkphrasisfrom Homer toAshbery (Chicago: The University of Chicago Press, 1993) e ainda Salim Kemal, and Ivan Gaskell, eds, Landscape, Natural Beauty and the Arts (Cambridge: Cambridge University Press, 1993).

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Perceber é sempre optar por "ver" alguns elementos, em detrimento de

outros; perceber é uma actividade sempre determinada pelo

conhecimento prévio do mundo e pelas expectativas por ele

condicionadas; perceber é, afinal conceber o mundo como entendível

pelo sujeito, através do estabelecimento de uma estrutura de sentido

formulada no interior da própria percepção.2

A expressão "representações visuais", tal como será usada ao longo deste texto, referir-

se-á à forma como Hughes percepciona a realidade que o circunda bem como à forma assumida

pelos enunciados verbais que o poeta adopta para representar o mundo exterior. Atentarei, em

especial, na condução do olhar do autor para o pormenor. Em mais do que um momento o

estudo desses processos na poesia de Hughes aproximar-se-á do que, noutro enquadramento

genérico, poderíamos designar por "ponto de vista"3. Contudo, a incidência quase exclusiva dos

estudos de "ponto de vista" ou "focalização" no texto narrativo4 leva-me a não invocar este

conceito num estudo cujo corpus é exclusivamente de poesia lírica, optando por me apoiar em

2 Buescu, Incidências do Olhar, 226. Sublinhado meu.

3 Há uma discussão acesa entre os especialistas em teoria da literatura relativamente à terminologia a usar no campo da perspectiva do narrador; entre outros termos, ora falamos de ponto de vista, ora de focalização. Gérard Genette, por exemplo, substituiu a terminologia "ponto de vista" por "focalização" por achar que este último termo é mais rigoroso. Não obstante, a sua substituição não deixa de ser discutível, uma vez que este autor advoga que não existe diferença alguma de focalização numa história contada por um autor omnisciente e numa em que é a própria personagem principal que conta a sua história. Aguiar e Silva alerta que "[...] num caso e noutro, é bem diversa sob o ponto de vista psicológico, ético e ideológico." (Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 8a ed. (Coimbra: Livraria Almedina, 1996) 767.)

4 Em jeito de corroboração desta minha afirmação cito Helena Buescu quando esta defende que o ponto de vista é uma questão "[...] estruturadora de uma determinada forma de organização romanesca" (Buescu, Incidências do Olhar, 71.), assim como Aguiar e Silva, que afirma: "Um dos elementos mais importantes da estruturação da diegese é constituído pelo ponto de vista, ou foco narrativo, ou focalização. A focalização compreende as relações que o narrador mantém com o universo diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico), o que equivale a dizer que representa um factor de relevância primordial na constituição do texto narrativo." (Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 765. Sublinhado meu.)

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expressões como "referências visuais" ou "condução do olhar", não vinculativas a um quadro

teórico tão específico.

Hughes vê a poesia como fruto das experiências individuais, experiências essas que

produzem mudança momentânea ou permanente no comportamento do sujeito que as vive. E o

próprio Hughes quem revela: "Poetry is not made out of thoughts or casual fancies. It is made

out of experiences which change our bodies, and spirits, whether momentarily or for good."5 Para

essa apreensão da realidade é fundamental o papel dos sentidos, pretendendo este trabalho

demonstrar a centralidade da visão para os desígnios autorais de Hughes.

Etimologicamente, o substantivo visão deriva do verbo latino "vedere" e o seu

significado implica não só ver a forma exterior de determinado objecto ou corpo como ainda ver

para além da configuração que esse objecto ou corpo ostenta.6 É por isso que o acto de ver pode

ser entendido como um processo que está longe de ser passivo. Autores como John Berger, por

exemplo, defendem que a visão humana das coisas é incessantemente activa, recriada e

reproduzida e que a leitura de uma imagem varia consoante o contexto em que aparece e

consoante aquilo que o leitor anteriormente viu, ouviu ou sentiu. Partilhando da mesma opinião

quanto à actividade que o acto de ver implica, Gyorgy Kepes advoga: "[...] to perceive an image

is to participate in a forming process; it is a creative act."7 O papel da visão assume ainda maior

5 Ted Hughes, Poetry in the Making: An Anthology of Poems and Programmes from 'Listening and Writing' (London & New York: Faber and Faber, 1967) 32.

6 Ver Nicholas Davey, "The Hermeneutics of Seeing", ed. Ian Heywood, and Barry Sandywell, Interpreting Visual Culture: Explorations in the Hermeneutics of the Visual (London: Routledge, 1999) 3 - 29.

7 Gyorgy Kepes, Introduction, Education of Vision by Gyorgy Kepes (New York: George Braziller, 1965) i. Também o capítulo intitulado "Individual, Social and Cultural Variations in Perceptual Organisation" inserido na obra Paul Rookes, and Jane Willson, Perception: Theory, Development and Organisation (London: Routledge, 2000) dá conta do processo criativo que o acto de ver implica bem como dos factores que poderão ter influência

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relevância na concepção do mundo exterior quando associado à verbalização desse mundo

apreendido. Berger, uma vez mais aqui mencionado, defende que o acto de ver antecede

imperativamente a verbalização8 oferecendo para tal uma justificação muito simples: "The child

looks and recognizes before it can speak."9

Para melhor se entender a capacidade de criação associada à visão é necessário perceber

como funciona o complexo mecanismo fisiológico da visão10. Este é descrito pelos físicos como

envolvendo uma série de etapas. O olho, cujos elementos básicos são a lente e a retina, recebe

através da lente a luz emitida ou reflectida pelos objectos no ambiente. A retina, uma estrutura

nervosa complexa, converte essa luz em energia química e activa os nervos que conduzirão as

mensagens captadas pelo olho até ao centro da visão, no cérebro. Uma vez que os olhos estão

colocados numa posição ligeiramente diferente um do outro, a imagem de um objecto em ambas

as retinas é também distinta, mas o cérebro combina-as de tal forma que essa distinção parece

ser inexistente.

A fotografia, uma forma de registo do mundo externo que se revela como tendo um

funcionamento semelhante ao mecanismo da visão, é tida em regra como um meio "fidedigno"

no sujeito que percepciona.

8 Pode ler-se no original "Seeing comes before words." [John Berger, Ways of Seeing (London: Penguin Books, 1972) 7.]

9 Berger, Ways of Seeing, 7.

10 Ver Rookes, and Willson, Perception: Theory, Development and Organisation. A leitura desta obra é, no meu entender, fundamental para quem pretenda um conhecimento mais alargado do funcionamento do mecanismo fisiológico da visão. Recomendo, igualmente, a leitura de Semir Zeki, Inner Vision: An Exploration of Art and the Brain (Oxford: Oxford University Press, 1999) e ainda Martha J. Farah, The Cognitive Neuroscience of Vision (Oxford: Blackwell Publishers, 2000).

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e privilegiado de representar o real.11 O fotógrafo, ora desenvolvendo vim trabalho de perícia e

agilidade, ora beneficiando de acasos, tem plena consciência de que a fotografia é resultado do

momento certo na hora certa. Hughes, através das palavras, como ficará evidente na análise dos

poemas por mim escolhidos, apresenta e representa o mundo e a realidade que o circunda de uma

forma que se oferece produtivamente à analogia fotográfica, o que constitui uma das formas de

o seu discurso poético construir um sentido do verídico. Acrescente-se ainda que essa

apresentação e representação, em muitos casos, é ajudada por procedimentos comparáveis a uma

objectiva que permite a ampliação das imagens.

É esse um estímulo importante para que o meu objecto de trabalho seja constituído

pelos poemas hughesianos que incidem particularmente no pormenor da natureza visualizada.

Esta incidência na particularização guia o leitor para um mundo que, devido às suas dimensões,

passa habitualmente despercebido. Mas Hughes, que mais parece retratar o contemplado com

o auxílio de uma lupa, transforma o usualmente inobservado em objecto primordial de

representação. Refiro-me, naturalmente, a alguma poesia, porque considero que nem todos os

poemas hughesianos se oferecem a esta leitura. Assim, não referirei nem incluirei no corpus

poemas que apenas nalguns momentos assumam as características apontadas, uma vez que

11 Esta não é somente a minha opinião. A fotografia oferece uma leitura extremamente próxima da existência que retrata e, por este motivo, muitos são os críticos que a elegem como a mais importante forma de representar o mundo externo. Rudolf Arnheim, por exemplo, defende: "Recording by photography, the most faithful method of image-making, has not really supersed human craftsman, and for good reasons. Photography is indeed more authentic in the rendering of a street scene, a natural habitat, a texture, a momentary expression. What counts in these situations is the accidental inventory and arrangement, the overall quality, and the complete detail rather than formal precision." [Rudolf Arnheim, Art and Visual Perception: A Psychology of the Creative Eye (Berkeley: University of California Press, 1974) 157.] Roland Barthes, referindo-se à veracidade da fotografia, também declara: "[...] a fotografia traz sempre consigo o seu referente." [Roland Barthes, A Câmara Clara, trad. Manuela Torres (Lisboa: Edições 70,1980) 18,19.] Para o leitor que defenda o filme como o meio mais fidedigno para representar o real, relembro que este não é mais que um conjunto de fotografias passadas a uma determinada velocidade, criando a ilusão de movimento.

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somente me importam os poemas que consistentemente têm esse cariz. Poderá parecer

surpreendente o facto de a particularização visual ser o que mais cativou a minha atenção e a

questão primordial do estudo aqui apresentado, mas parece-me ser um aspecto da obra de Ted

Hughes até agora insuficientemente estudado.

II.

Os críticos que tomam como epicentro do seu estudo as questões biográficas vêem em

Ted Hughes o seu trabalho grandemente simplificado, uma vez que o percurso individual de

Hughes é por ele mesmo delineado em muitas das suas entrevistas e nalguns dos seus livros.

Edward James Hughes, de seu nome completo, nasceu a 17 de Agosto de 1930 em

Mytholmroyd, uma zona rural de Inglaterra. Desde muito novo Hughes aponta uma relação entre

o visual e o verbal nos seus esforços de representação das formas animais. Isto é particularmente

evidente quando em Poetry in the Making afirma:

[...] my interest in animals began when I began. My memory goes back pretty clearly to my third year, and by then I had so many of the toy lead animals you could buy in shops that they went right round our flat-topped fender, nose to tail, with some over.

I had a gift for modelling and drawing, so when I discovered plasticine my zoo became infinite, and when an aunt bought me a thick green-backed animal book for my fourth birthday I began to draw the glossy photographs. The animals looked good in the photographs, but they looked even better in my drawings and were mine. I can remember very vividly the excitement with which I used to sit staring at my drawings, and it is a similar thing I feel nowadays

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with poems.12

Quando tinha cerca de oito anos de idade mudou-se, com a família, para uma zona

industrial em South Yorkshire, mas a sua ligação ao meio natural não é de todo relegada para

um plano inferior. Graças a uma quinta que descobriu nas proximidades do local onde habitava,

Hughes vivia repartido entre o mundo rural e o mundo industrial, mas o importante para ele era

não perder o contacto com a natureza que até à mudança de residência havia sido constante na

sua vida.13 É ainda por este motivo que Hughes caracterizou as suas vivências desta fase como

sendo pertencentes a uma vida de carácter duplo.

A descoberta da escrita por parte de Hughes ocorreu igualmente neste período, no

espaço escolar, quando constatou que os seus textos faziam o deleite dos seus colegas e até,

nalgumas ocasiões, dos professores. A escrita deste estádio é qualificada por Hughes como

consequência directa das leituras de revistas na época categorizadas como sendo para rapazes

e que estavam disponíveis na loja que os seus pais mantinham. Paralelamente, Hughes lia livros

de carácter mais científico sobre a vida animal no seu estado selvagem, ou melhor, no seu

habitat.14

12 Hughes, Poetry in the Making, 15, 16.

13 É Hughes quem, uma vez mais, relata: "I soon discovered a farm in the nearby country that supplied all my needs, and soon after, a private estate with woods and lakes. My friends were town boys, sons of colliers and railwaymen, and with them I led on my life, but all the time I was leading this other life on my own in the country. I never mixed the two lives up, except once or twice disastrously." ( Hughes, Poetry in the Making, 16.)

14 Ted Hughes, em jeito de exposição autobiográfica, fala daquilo que podemos designar como sendo as suas origens como poeta bem como do seu variado percurso até 1957, altura em que publicou aquele que é o seu primeiro livro e que estampa a sua entrada no mundo da poesia inglesa do século XX: The Hawk in the Rain. Assim, numa fase inicial marcada pelo interesse pelos animais, Hughes informa o leitor acerca das suas preferências formais: "I found that rhymes were more satisfying to write. They were more special. But for two or three years they were no more than an occasional game." [Ted Hughes, Winter Pollen: Occasional Prose, ed. William Scammel (London: Faber and Faber, 1995) 4.] Essa simpatia pela rima manteve-se e, durante algum

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A sua atitude relativamente aos animais sofreu, contudo, uma alteração quando aos

quinze anos começou a ver-se como elemento perturbador dessa vida animal que tantas vezes

anteriormente observara. Deixou de contemplar os animais como até então fizera e principiou

o processo de condução e educação do seu olhar com o intuito de haver uma exploração de

empatias e uma projecção do poeta nos animais observados.

Hughes virá a surgir no meio literário em 1957 com a obra The Hawk in the Rain e,

desde logo, se distingue dos poetas do chamado Movement, que grande destaque encontrara na

década de cinquenta. O Movement é um movimento literário que surgiu cronologicamente em

1954 com a publicação de um artigo intitulado "In the Movement". Neste artigo dava-se atenção

a um grupo de escritores britânicos - essencialmente os poetas Donald Davie e Thorn Gunn e os

romancistas Kingsley Amis, Iris Murdoch e John Wain - que surgiam no mundo literário como

tendo preocupações novas face àquelas até ao momento apresentadas pelos escritores britânicos.

Nos dois anos seguintes, através de antologias poéticas, novos nomes - nomeadamente Elizabeth

Jennings e Philip Larkin - eram mencionados, alargando-se, assim, a lista inicial. Blake Morrison

argumenta que existiam divisões dentro do próprio grupo e que, por este motivo, estava muito

longe de ter uma poética homogénea. Alguns sectores da crítica não pouparam ataques ao

movimento e A. Alvarez, embora de uma forma mais branda, referiu que os poetas ligados ao

tempo, o seu interesse poético estava circunscrito a "[...] long lines, a rhythmical heavy beat, and deadlock rhymes." (Hughes, Winter Pollen, 5.) Numa outra rase, graças à descoberta da obra de Yeats, Hughes começa a interessar-se pelas lendas e mitos do folclore irlandês e, simultaneamente, descobre as obras de Eliot e Hopkins. Todos estes vultos da literatura são, certamente, apontados como influências na obra hughesiana. Não me debruçarei em particular sobre estes temas pois considero-os suficientemente vastos para informarem outras dissertações. Para uma leitura mais detalhada acerca das diferentes fases do percurso poético inicial do autor veja-se Hughes, Winter Pollen, 4-1.

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Movement pareciam não conseguir lidar com as pressões do mundo moderno . E neste contexto

que a poesia de Hughes irrompe com um sentido de novidade: enquanto a escrita dos poetas do

Movement se pautava por um registo de urbanidade e de contenção emocional, a escrita de

Hughes é sensorialmente intensa e virada para estados naturais e selvagens. A. Alvarez também

se refere a Hughes como sendo um poeta que se distingue dos poetas do Movement e comenta:

"Hughes was more self-assured, a man who knew where he was coming from, solidly based, and

in the world he inhabited wild animals figured a great deal more prominently than people."16

Como constata Keith Sagar, o crítico que mais tempo e espaço dedicou à publicação

de estudos sobre Hughes, este é constantemente rotulado pela crítica literária como poeta da

natureza ou, mais particularmente, como poeta que escreve sobre animais. Aliás, os próprios

títulos dos poemas deixam antever ao leitor que, salvo algumas excepções - nomeadamente os

poemas aqui em estudo, caracterizados pela natureza olhada num pormenor quase microscópico

-, estará em presença de textos sobre animais predadores. Não obstante, a crítica hughesiana

defende que esses seres são muito mais que meras imagens da natureza animal observada no seu

habitat e fala dos poemas que os representam como metáforas da vida. De facto, quase sempre

esses animais são metáforas para a representação da força interior do poeta que poderá ser

estendida à força interior e contraditória de todo o ser humano. Sagar, por exemplo, fala dos

poemas como boletins da batalha das forças interiores não só de Hughes como do homem em

geral. Muitos dos poemas deixam transparecer, para além do fascínio pelos animais - presente,

15 Sobre o Movement ver Blake Morrison, The Movement: English Poetry and Fiction of the 1950s (Oxford: Oxford University Press, 1980).

16 Nick Gammage, ed. The Epic Poise: A Celebration of Ted Hughes (London: Faber and Faber, 1999) 208.

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por exemplo, em "Hawk Roosting"- a quase inveja do autor relativamente à simplicidade da

existência animal. É que o mundo destes oscila unicamente entre a vitalidade ou luta pela

sobrevivência e a morte, enquanto que o mundo do ser humano é muito mais complexo e a

realidade é quase sempre objecto de questionação ou insatisfação por parte deste.

Pela escolha dos animais, quase sempre predadores, sendo os mais emblemáticos da sua

obra o falcão, a raposa, o lobo e o jaguar, a poesia hughesiana é frequentemente adjectivada de

violenta. Em entrevista a Ekbert Faas e questionado sobre a violência da sua poesia, Hughes

afirmou:

The role of this word 'violence' in modern criticism is very

tricky and not always easy to follow. (...) poetry is nothing if not that,

the record of just how the forces of the Universe try to redress some

balance disturbed by human error.17

Ainda relativamente à questão da violência, Terry Gifford e Neil Roberts declaram em tom de

defesa de Hughes:

The reason for the problem about 'violence' in Hughes's work

is his determination to acknowledge the predatory, destructive

character of nature, of which man is a part, and not to moralise about

it.18

Apesar de este trabalho se debruçar sobre um outro aspecto da poesia hughesiana é inevitável

abordar aqui a questão da violência, já que esta surge, embora de forma menos evidente, em

17 Ekbert Faas, Ted Hughes: The Unaccommodated Universe (Santa Barbara: Black Sparrow Press, 1980) 197, 198.

18 Terry Gifford, and Neil Roberts, Ted Hughes: A Critical Study (London: Faber and Faber, 1981) 14.

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alguns dos poemas do corpus. Não obstante, saliento que, ainda que da minha leitura da obra de

Hughes resulte inegável que alguma poesia oferece uma imagem violenta da natureza animal,

se me afigura que essa aparente violência não é mais que a descrição de um mundo em que, de

facto, a sobrevivência é uma questão que a todo o momento se coloca. Penso que a violência de

que Hughes é acusado está perfeitamente equilibrada por um sentido de fragilidade e

vulnerabilidade nos seres observados, nomeadamente na delicadeza de uma borboleta ou de uma

libelinha, figuras de destaque em alguns poemas que neste trabalho serão objecto de estudo.

Podemos conjecturar, por aquilo até aqui exposto, que a obra de Hughes gira em torno

de um único assunto: os animais. Mas falar de Hughes não é só falar da sua poesia sobre animais.

Irene Worth, designadamente, entende que Hughes não escreve sobre a Natureza, mas que fala

de dentro dessa Natureza.19 Por outro lado, Michael Schmidt afirma:

Hughes is hardly an animal poet. His animals, sometimes

accurately portrayed, are usually out of focus, or rather, refocused to

illuminate some specific metaphorical rather than complex natural

truth. They are emblems, analogues, images, the quintessence of the

poetic fallacy.20

Outros temas ganham ainda evidência na obra poética de Hughes, tal como a mitologia oriental

presente em Wodwo (1967), fruto dos conhecimentos adquiridos aquando do seu estudo de

19 A este respeito veja-se o que diz a autora: "The poet deals with emotion and words alone. Ted's words and the way they lie on the paper nourish us as nature nourished him. He does not write about nature but within nature. He picks up a badger's tooth, bleached and beautiful, is bitten by a mosquito, understands the law in the country of the cats." (Gammage, ed., The Epic Poise, 157.)

20 Michael Schmidt, An Introduction to Fifty Modern British Poets (London: Pan Books, 1979) 385,386.

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antropologia em Cambridge, ou a mitologia da criação patente em Cave Birds (1975). Também

o xamanismo faz parte da lista dos temas presentes na obra poética deste autor. Para Hughes

existe uma ligação profunda entre as experiências poéticas e as experiências xamânicas. O

xamanismo é assim definido por Hughes:

[...] it's the whole procedure and practice of becoming and performing as a witch-doctor, a medicine man, among primitive people. The individual is summoned by certain dreams. The same dreams all over the world. A spirit summons him... usually an animal or a woman. If he refuses, he dies... or somebody near him dies. If he accepts, he then prepares himself for the job... it may take years.21

Durante a entrevista a Ekbert Faas, Hughes acrescenta que, habitualmente, o poeta recusa esse

chamamento, e menciona Edgar Cayce como um dos raros poetas que o aceitou. Creio que

Hughes também entende ter recebido um chamamento para um desempenho como xamã já que,

se atentarmos no seu relato acerca de como surgiu o seu primeiro poema sobre animais - "The

Thought-Fox" - este é, certamente, o sonho que evidencia as características do apelo para a

admissão no mundo xamânico. Hughes não aceitou, porém, esse chamamento e a sua escrita

parece ser marcada pela convicção de que a não aceitação desse mesmo chamamento terá sido

duramente paga, já que o próprio autor interpreta desastres da sua vida pessoal - nomeadamente

o suicídio de Sylvia Plath, sua esposa do primeiro casamento - desse modo22.

Keith Sagar aponta os meados da década de sessenta como correspondendo a uma

21 Faas, Ted Hughes, 206. 22 Ver Leonard M. Scigaj, ed., Critical Essays on Ted Hughes (New York: Macmillan, 1992) 21 e Keith

Sagar, ed., The Achievement of Ted Hughes (Manchester: Manchester University Press, 1983) 44.

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mudança de intuito na obra de Hughes no que diz respeito à representação da Natureza: esta

começa a ser vista de uma perspectiva ecológica. Sagar aproxima a posição do autor da posição

dos ambientalistas que defendem e elegem a educação do ser humano como meio predilecto para

alcançar a valorização e respeito do espaço natural.23 Apesar de esta posição se manter desde

então como um dos traços mais evidentes na poesia de Hughes, creio que a obra que melhor

espelha as preocupações ecológicas deste autor é River. Datada de 1983, em co-autoria com o

fotógrafo Peter Keen, River coloca o leitor em presença de poemas acompanhados de fotografias

de um mundo ainda virgem relativamente à presença humana e que levam a afirmar com todo o

sentido que Hughes é um autor com preocupações ambientalistas. Aliás, os patrocinadores da

obra foram o Countryside Commission e o British Gas - apresentado num pequeno texto nas

páginas introdutórias da obra como uma empresa que se esforça por manifestar preocupação

quanto às questões do ambiente.24 As preocupações ecológicas de Hughes são também apontadas

por Leonard M. Scigaj25 que descreve a forma como desde a década de sessenta Hughes escreveu

poemas ecológicos, assim como permitiu leilões de alguns dos seus manuscritos como forma de

angariar fundos para salvar plantas e animais em vias de extinção.

23 É Sagar quem afirma: "Hughes's poetry shares a basic premise with ecologists and environmentalists: the only way to save this planet is to change the perceptions of its human inhabitants about Nature." [Keith Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes (New York: St. Martin's Press, 1994) 160.] Sagar declara, ainda, sobre a obra poética de Hughes: "Though there are wonderful poems from both before and after, the body of work on which Hughes' reputation should stand (his equivalent of what Shakespeare got into his plays) is almost everything he wrote in the seventies and early eighties - the poems collected in Season Songs (1974), Cave Birds (1975), Gaudete (1977), Remains of Elmet (1979), Moortown (1979) and River (1983). These books contain the inestimable healing gifts which are Hughes' legacy to us all." [Keith Sagar, The Laughter of Foxes: A Study of Ted Hughes, by Keith Sagar (Liverpool: Liverpool University Press, 2000) xi.]

24 Ver Ted Hughes (Poems), and Peter Keen (Photographs), River (London & Boston: Faber and Faber, 1983)4.

25 Ver Leonard M. Scigaj, Critical Essays on Ted Hughes (New York: Macmillan, 1992.)

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As preocupações ecológicas são, contudo, uma das vertentes de uma personalidade

poética que nem sempre fez de Hughes uma figura querida de todos os auditórios. A dimensão

institucional e pública da sua condição de Poeta Laureado parecia talhada para uma imagem de

afabilidade que Hughes soube cultivar. Mas a relação que a crítica feminista com ele estabeleceu

não poderia oferecer maior contraste. Numa perspectiva radical adoptada pelas feministas,

Hughes é apontado como responsável pela morte de Sylvia Plath e todo o seu mérito pessoal e

poético parece desaparecer face a esse acontecimento. O que me parece, e não querendo alongar-

me relativamente a este assunto pois não é uma das áreas eleitas pelo meu trabalho, é que a

crítica feminista parece esquecer que, a acreditar em Ekbert Faas, pelo menos uma parcela da

obra de Plath se deve à convivência com Hughes. Faas entende mesmo que Hughes ensinou a

Plath a forma de desprender a sua imaginação e, em consequência, tê-la-á ajudado a libertar-se

de alguns dos seus maiores pesadelos26. Aliás, o relacionamento de Hughes com Plath foi sempre

um assunto gerador de questionações tanto no público como na crítica: só com a publicação de

Birthday Letters (1998) Hughes afastou o véu sobre aquele que foi o primeiro casamento do

autor.

O percurso de Hughes no mundo literário passa também pela escrita de livros infantis.

São cerca de dezassete os livros para crianças. De entre estas obras constam títulos como The

26 Faas declara ainda: "Apparently unfamiliar with similar creeds held by American poets, Sylvia Plath for a time became the disciple of her husband. Her letters abound with praise of all the things she learned in this all-absorbing working partnership: how she sharpened her impressionistic perceptions according to Hughes' photographic vision, how she enriched her imagination [...] or how she learned to break through a writing block". (Faas, Ted Hughes, 41.) Também Keith Sagar refere sobre este mesmo assunto: "[...] the most important effect Hughes had on her [Sylvia] was to increase her concentration on poetry and to supply her with a fully worked out belief in the poetic mythology of Robert Graves' The White Goddess." [Keith Sagar, The Art of Ted Hughes (Cambridge: Cambridge University Press, 1975) 11.]

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Earth Owl (1963), How the Whale Became (1963), What is the Truth (1984), Frangs the

Vampire Bat and the Kiss of Truth (1986), The Cat and the Cuckoo (1987), Meet My Folks!

(1987), entre outros. Alguns dos poemas que serão objecto de estudo nesta dissertação foram

originalmente publicados em volumes destinados ao auditório infantil.

Para além disto, Hughes também se dedicou ao drama, tendo publicado dezoito peças

de teatro, aproximadamente, entre 1960 e 1971. Porém, o próprio Hughes não se considera um

dramaturgo e, tal como declara Fred Rue Jacobs27, a opinião da crítica parece ir de encontro à

do autor quando este último afirma que as suas peças só têm valor pelos poemas que lá surgem

ou então pela forma como, de algum modo, deram origem a outros textos poéticos.

Um outro papel que Hughes assumiu foi o de crítico literário e este apresenta já uma

posição mais importante.28 Foram muitos os textos de Hughes acerca de autores do seu tempo

ou de outros, como é o caso de Shakespeare. A partir de 1964 Hughes inicia o processo de

familiarização com a obra de alguns poetas da Europa de Leste. Assim, em 1966 publica na

revista Critical Survey um artigo sobre Vasco Popa no qual apresenta a obra deste ao público

britânico29. Três anos mais tarde, poetas de todo o mundo vêm a Londres participar no então

chamado "Poetry International", uma espécie de congresso que, juntamente com outras entidades

do meio, teve o cunho e o forte empenho de Ted Hughes no que diz respeito à sua organização

27 Ver Fred Rue Jacobs, "Hughes and Drama", The Achievement of Ted Hughes, ed. Keith Sagar, 154 -170.

28 Keith Sagar, referindo-se à importância de Hughes como crítico literário, afirma: "The versatility of Ted Hughes does not end with poetry, fiction and drama; he is also a very fine literary critic. His criticism is scattered through numerous introductions, essays and book reviews. When the best of them are collected, the rare quality of his critical sensitivity and expression will appear." [Keith Sagar, Ted Hughes (London: Longman, 1972) 43.] "

29 Ted Hughes, "The Poetry of Vasco Popa", Critical Survey Summer 1966: 211 - 214.

20

Page 22: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

e realização. Foi graças a Hughes, e em consequência dos artigos por ele publicados, que muitos

poetas da Europa de Leste viram o seu trabalho divulgado na Inglaterra e, posteriormente,

noutros países da Europa Ocidental. Com estes poetas Hughes partilhava a consciência profunda

dos malefícios da guerra, malefícios esses que o seu pai lhe havia relatado e cuja consequência

poética pôde encontrar também nas obras de Wilfred Owen e de Keith Douglas, poetas

respectivamente da I e II Guerra Mundial. Michael Parker, ainda debruçando-se sobre o

relacionamento Hughes - Plath, reforça a importância da obra poética dos autores da Europa de

Leste no período pós-suicídio de Plath:

His discovery of the poets of eastern Europe was crucial at this

time in providing models for survival, through whose experience he

was able to come to terms with his own experience and his sense of

responsibility.30

Além disso, Hughes assimilou de tal forma a escrita destes poetas que, nomeadamente em Crow

(1970), é visível a sua influência no que diz respeito à criação de fábulas e mitos31.

Hughes é nomeado Poeta Laureado a 19 de Dezembro de 1984. A notícia desta sua

consagração originou uma subida ciclópica no que diz respeito à venda dos seus livros e, em

muitos jornais e revistas do meio literário, é desenhado o seu perfil como poeta. E ainda na

semana que é nomeado Poeta Laureado que Hughes publica o conhecido poema "Rain-Charm

Sagar, ed., The Achievement of Ted Hughes, 44.

31 Sobre este assunto leia-se o artigo de Michael Parker intitulado "Hughes and the Poets of Eastern Europe" inserido na obra Sagar, ed., The Achievement of Ted Hughes, 37-51.

21

Page 23: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

for the Duchy: A Blessed, Devout Drench for the Christening of Prince Harry" .

III.

Até ao momento, embora muito superficialmente, apresentei algumas das temáticas mais

discutidas da obra e da personalidade poética hughesiana. O trabalho que aqui se segue é fruto

da minha leitura da obra poética de Hughes e de algum conhecimento da sua recepção. E meu

intuito mostrar os processos pelos quais este autor direcciona o olhar do leitor para uma natureza

animal considerada ao nível do pormenor.

A escolha de Ted Hughes, bem como o interesse pessoal por este mesmo autor, vêm

na sequência de um Seminário de Mestrado sobre Literatura Inglesa do Século XX. Devo aqui

revelar que o fascínio que agora a obra do poeta Ted Hughes exerce sobre mim não foi imediato.

De início fiquei pouco encantada com as suas descrições violentas dos animais pois parecia-me

um mundo demasiado cruel para ser registado em versos. Contudo, encontrei algum tempo

depois numa estante aquele que é, graficamente e visualmente falando, um dos seus mais belos

trabalhos: River. As fotografias de Peter Keen, habilmente seleccionadas para a ilustração dos

poemas, captaram de imediato a minha atenção. Ao 1er os poemas não tive qualquer dúvida de

que estava perante o retrato da Natureza na sua existência eternamente cíclica. O herói - o

salmão - mais não me evocou que o próprio homem na sua incessante luta pela sobrevivência.

Ao aprofundar algumas leituras de poemas e recorrendo à leitura de alguns textos críticos, pude

32 Ted Hughes, "Rain-Charm for the Duchy: A Blessed, Devout Drench for the Christening of Prince Harry" Observer 23 December 1984: 7.

22

Page 24: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

modificar a minha primeira impressão: não era somente o salmão a oferecer-se-nos como

projecção do ser humano; todos os animais predadores sobre os quais havia lido e cuja descrição

havia considerado demasiado acre eram uma metáfora da força interior humana.

Apesar de me agradar a obra hughesiana em geral, resolvi somente tomar como objecto

de estudo os poemas que incidem no pormenor, uma vez que achei cativante a forma quase

microscópica com que Hughes leva o leitor a visualizar a Natureza, em geral, e a natureza animal,

em particular. Além disso, como já referi, pretendo com este trabalho abordar um aspecto da

obra de Hughes que me parece que até ao momento não foi devidamente discutido. Contudo,

surgiram-me algumas dificuldades, primeiramente de foro bibliográfico, devido a uma quase

inexistência de bibliografia em Portugal tanto da obra de Hughes como da crítica hughesiana e,

seguidamente, dificuldades relacionadas com a própria localização dos poemas. Deparei com o

facto de Hughes publicar muitas vezes os mesmos poemas em obras diferentes, chegando até a

alterar os seus títulos. A tarefa de localização da obra em que foram originalmente publicados

tornou-se um trabalho exaustivo, só facilitado quando algum tempo depois tive acesso à

bibliografia organizada por Keith Sagar e Stephen Tabor33 que considero indispensável para

qualquer estudioso da obra de Hughes.

Tendo em conta o número de estudos publicados recentemente e a atenção dedicada

pelos críticos à vida e obra de Ted Hughes, a projecção da obra poética deste autor continua a

um nível elevado. Para além de alguns nomes já neste texto referidos, quero salientar as opiniões

de Nick Gammage, nomeadamente, que comenta o sentimento de profunda perda que o mundo

33 Keith Sagar, and Stephen Tabor, Ted Hughes: A Bibliography 1946 -1995, 2nd ed. (London & New York: Mansell, 1998.)

23

Page 25: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

literário experimentou com a morte de Hughes em 1998. No entender deste crítico e estudioso,

essa perda é marcante precisamente pelas suas características singulares: "[...] the unique force

of his poetic imagination, his reverence for language, and his super-sensitive way of seeing and

feeling."34 Também Ann Skea, um nome igualmente importante dos estudos hughesianos,

comenta:

Hughes' descriptions are precise and vividly sensual; the

images and symbols which he uses most powerfully are those which

derive directly from his own experience; and his creatures have a

characteristic energy even whilst they serve symbolic purposes.35

Nas páginas em que desenvolverei a temática já apresentada, encontrará o leitor um

primeiro capítulo em que abordarei uma questão já aqui na introdução mencionada e que é fulcral

quando se fala da poesia hughesiana: a importância dada pelo autor às questões de defesa e

preservação do meio ambiente. Assim, numa primeira secção do capítulo, referir-me-ei à

importância da paisagem natural na poesia de Hughes, importância essa justificada tanto pelos

críticos como pelo próprio autor; numa segunda secção exemplificarei e mostrarei, com algum

pormenor, algumas das obras hughesianas em que o tema da paisagem natural é central. Uma

primeira secção do segundo capítulo deste trabalho será dedicado à apresentação das figuras

animais em destaque no corpus por mim seleccionado e, numa segunda secção, de dimensões

mais extensas e de cariz mais analítico, apresentarei ao leitor as estratégias de representação

visual adoptadas por Hughes no corpus escolhido. Devo desde já referir que o corpus desta

34 Gammage, Editor's Note, The Epic Poise, by Gammage, ed., xiii.

35 Ann Skea, Ted Hughes: The Poetic Quest (Armidale: The University of New England Press, 1994) 10,11.

24

Page 26: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

dissertação é composto por vinte e três títulos.36

36 Os poemas que fazem parte do corpus são: "Bees", "The Honey Bee", "Buzz in the Window", "The Fly", "Mosquito", "Gnat-Psalm", "Caddis", "The Mayfly is Frail", "Saint's Island", "A Cranefly in September", "Dragonfly", "Performance", "In the Likeness of a Grasshopper", "Eclipse", "Spider", "Two Tortoiseshell Butterflies", "The Red Admiral", "Sandflea", "Ants", "Ragworm", dois poemas sob o título de "Worm" (um publicado em What is the Truth? e outro que surgiu em 1987 na obra The Cat and the Cuckoo) e "Snail".

25

Page 27: O Olhar de Ted Hughes

II - A Questão do Ambiente: A Causa e a Escrita

Page 28: O Olhar de Ted Hughes

Hughes's work is a landscape.

Yehuda Amichai37

Hughes ' [England] is a primeval landscape where stones

cry out and horizons endure.

Seamus Heaney31

When something abandons Nature, or is abandoned by

Nature, it has lost touch with its creator, and is called an

involuntary dead-end.

Ted Hughes39

37 Gammage, ed., The Epic Poise, 212. 38 Sagar, ed., The Achievement of Ted Hughes, 15.

39 Hughes, Winter Pollen, 129.

Page 29: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

I.

Para entendermos a obra hughesiana existe, na minha opinião, um aspecto da poesia

deste autor de abordagem imperativa: a importância dada por Hughes ao meio ambiente. E por

este motivo que, antes de apresentar e analisar o corpus que está na génese da definição temática

desta dissertação, apresento este capítulo cujo primeiro propósito é mostrar momentos em que

Hughes se referiu explicitamente à defesa do meio ambiente e, num segundo momento, mostrar

como essa importância por ele dada ao meio ambiente é a temática principal de algumas das suas

obras.

Poetry in the Making (1967), obra que discute e que propõe algumas respostas a

questões que se prendem com a escrita de poesia40, é um dos textos em que Hughes evidencia

a importância do espaço natural e o fascínio que este exerce sobre o homem. É nele que afirma:

"Who is to say that we are not all secretly in love with grass and trees, preferably out of sight of

houses, or if there are houses then they have to be a country style house, a cottage or a manor."41

Será igualmente em Poetry in the Making, num capítulo intitulado "Writing About

Landscape", que Hughes apela para a necessidade de o ser humano se refugiar na Natureza por

breves períodos de tempo. Esse refúgio torna-se para este autor imprescindível quando se fala

daqueles que habitam nos meios urbanos, justificando Hughes esta sua posição da seguinte

40 Hughes anuncia na Introdução que Poetry in the Making poderá ser usado "as a text and anthology for the class, or as a general handbook for the teacher." (Hughes, Poetry in the Making, 13.) Keith Sagar refere acerca deste: "Poetry in the Making is the best book I know about the writing (and reading) of poetry in schools. It is about poetry as a natural and common activity; about the fun, but also the seriousness, the centrality, of this activity". (Sagar, Ted Hughes, 19.)

41 Hughes, Poetry in the Making, 75.

28

Page 30: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

forma: "It is only there that the ancient instincts and feelings in which most of our body lives can

feel at home and on their own ground. It is almost as though these places were generators where

we can recharge our run-down batteries."42 Esta afirmação leva-me a concluir que o refugio do

ser humano no meio natural funciona para Hughes como a expressão de um desejo de regresso

às comunidades humanas primitivas em que o contacto com a Natureza era mais forte. Do meu

ponto de vista, este refúgio no meio natural é para este poeta uma espécie de ritual cujo

propósito é a purificação humana de toda a confusão e poluição dos ambientes citadinos. Em

forma de conclusão desta sua posição Hughes adopta uma postura que acarreta alguma

esperança na Natureza como uma orientadora persistente: "Nature's obssession, after all, is to

survive. As far as she is concerned, every new baby is a completely fresh start. If Westernized

civilized man, the evolutionary error, is still open to correction, presumably she will correct him.

If he is not open enough, she will make the attempt."43

Adoptando um tom exclamativo, Hughes constata ainda em Poetry in the Making:

"What a curious fascination landscape must hold for us, if so many of our very greatest painters

have spent their lives trying to capture in paint the essence of one landscape after another."44 A

verdade é que não podemos circunscrever aos pintores esta tentativa de captura da Natureza uma

vez que está também evidenciada na escrita de Hughes e na de tantos outros escritores. Hughes,

porém, distingue-se de alguns destes autores uma vez que não se limitou a retratar a Natureza,

como se evidencia na sua adopção de uma postura de tipo ambientalista patente na sua reflexão

42 Hughes, Poetry in the Making, 76.

43 Hughes, Winter Pollen, 135.

44 Hughes, Poetry in the Making, 75.

29

Page 31: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

crítica sobre The Environmental Revolution de Max Nicholson.

Hughes inicia o seu texto oferecendo ao leitor uma clara definição daquilo que é para

ele "Environmental Revolution"45 para, seguidamente, traçar uma breve resenha histórica na qual

mostra a razão pela qual a relação homem/Natureza é considerada catastrófica no momento da

escrita deste seu texto:

The subtly apotheosized misogyny of Reformed Christianity is

proportionate to the fanatic reflection of Nature, and the result has

been to exile man from Mother Nature - from both inner and outer

nature. The story of the mind exiled from Nature is the story of

Western Man. It is the story of his progressively more desperate search

for mechanical and rational and symbolic securities, which will

substitute for the spirit-confidence of the Nature he has lost.46

Hughes, após ter denominado Max Nicholson de profeta precisamente por prever o estado de

declínio na relação homem/Natureza,47 formula a seguinte crítica: "The public ignorance is also

a deep resistance, of course. We have a biologically inbuilt amnesia against the fears of

extinction. And hunger and greed will always sacrifice almost anything."48 Mas as críticas não

45 Pode ler-se no original: "Basically, it is a history of Conservation, worldwide and from the beginning. It includes a detailed survey of the movement in modern times in the US and in Britain, where most of the pioneering work was done." (Hughes, Winter Pollen, 128.)

46 Hughes, Winter Pollen, 129.

47 Hughes alerta o leitor para o facto de Nicholson ter escrito durante toda a sua vida como um cientista, apoiado em métodos científicos e mantendo sempre uma fé inabalável na tecnologia. Relativamente a este assunto Hughes termina advogando: "Yet he is actually a prophet, and all his dedication has been based on a sure intuition of what language would finally carry the weight, when he came to tell his vision." (Hughes, Winter Pollen, 134.)

48 Hughes, Winter Pollen, 129.

30

Page 32: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

são apenas dirigidas aos cidadãos e, mais adiante no seu texto, revestem-se de um tom

profundamente acusatório contra os governos:

In so far as the earth's life is being murdered, it is in the hands

of Government and departamental committees. If Government could

feel the crisis of it, or if the public could make Government feel the

experience of it, the industrial poisoning of the water-systems in and

around England, for instance, could be cut to something negligible

very quickly. A crash programme of legislation and subsidies, of

applying technological means already well researched, would cost no

more than a few strikes, and would not require much more

Government time and attention than did Rhodesia.49

Pelas leituras por mim efectuadas creio ser correcto afirmar que Hughes, tal como

Nicholson, acredita que o ser humano, em geral, e o súbdito britânico, em particular, precisa de

ser educado na forma como olha para a Natureza, e que esta será a única maneira de resolver os

problemas de cariz ambiental.50 Contudo, para que essa educação seja possível, e referindo-se

explicitamente ao caso inglês, Hughes apela à mudança no sistema educativo do seu país,

mudança essa que, do seu ponto de vista, não acontecerá enquanto os economistas da sociedade

industrial revelarem ignorância e não oferecerem incentivos ao conhecimento da Natureza. Em

jeito de conclusão desta sua reflexão da obra de Nicholson, Hughes, tal como anteriormente

49 Hughes, Winter Pollen, 131. 50 É de salientar que Nicholson defende a educação não só da sociedade em geral como dos próprios

agricultores. É por este motivo que Hughes declara: "He [Nicholson] emphasizes the urgent need to educate farmers. Not just our food, but the life of that nine inches of soil, and of much else, is in their case." (Hughes, Winter Pollen, 131.)

31

Page 33: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

aquele o havia feito, lança um alerta quanto à urgência em salvar o meio ambiente e evitar, assim,

não só a sua destruição como a de toda a humanidade. O final deste texto de Hughes dá ênfase

ao tom esperançoso com que Nicholson termina a sua obra:

He [Nicholson] makes it very clear that we may well be too late,

that our civilization may be too strong for us for too long. In spite of

that, he leaves the reader feeling that the wonderful thing might be

possible, that the earth can be salvaged, that we are hopelessly in the

grip of our abstractions, our stupidity and greed, and our shiftless,

imbecile governments.51

II.

Esta importância elevada que Ted Hughes dá à Natureza faz com que autores como

Leonard M. Scigaj52 o caracterizem como tendo uma visão biocêntrica da Natureza, ou mesmo

que o rotulem como autor da Natureza. Scigaj aponta como factores determinantes para esta

visão o facto de Hughes ter passado grande parte da sua infância no Yorkshire bem como ter

51 Hughes, Winter Pollen, 134. Sublinhado meu.

52 Para uma análise mais detalhada desta posição de Scigaj leia-se "Ted Hughes and Ecology: A Biocentric Vision", capítulo inserido em Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes. O autor refere que a visão biocêntrica, contrariamente à visão antropocêntrica, se caracteriza pelo facto de ver o homem como apenas mais um dos muitos elementos que existem dentro de um ecossistema. Scigaj advoga que Hughes, como se poderá concluir após análise das suas obras, passou por várias etapas: a questionação do antropocentrismo em Wodwo, a crítica desse mesmo antropocentrismo em Crow e, finalmente, desde Gaudete até Wolfwatching, um desenvolvimento e amadurecimento da visão biocêntrica da Natureza patente nas publicações que se seguiram. Scigaj defende que essa visão biocêntrica é particularmente evidente em Moortown Elegies, Remains ofElmet e River.

Outros autores também evidenciam a importância da Natureza na obra hughesiana e chegam a metaforizar esta naquela, como podemos verificar através das epígrafes que estão no início deste capítulo. Para uma exploração desta posição veja-se o estudo "Ted Hughes's Poetry", de Yehuda Amichai, inserido em Gammage, ed., The Epic Poise, 212, 213.

32

Page 34: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

estudado antropologia aquando da sua passagem por Cambridge. Seja por um ou outro motivo,

o que daqui importa evidenciar é que os estudiosos da obra hughesiana não podem deixar de

referir o papel de destaque que a Natureza ostenta na maioria dos seus poemas.

Nem todos os estudiosos se concentram na vertente ecológica e biocêntrica da poesia

hughesiana; há aqueles que, após análise detalhada da obra poética deste autor, nela encontram

outros tratamentos da Natureza. Neil Corcoran, por exemplo, enquadra a produção poética de

Hughes em dois tipos fundamentais:

Hughes writes, essentially, two separable kinds of poem. The

first, running through his entire career, and reaching its apogee, to my

mind, in the "Moortown" sequence (1979), is the individual lyric

which revises a tradition of English "nature" poetry, and specifically

animal poetry, towards a discovery within the natural world of forces,

energies and instincts which always implicitly, and sometimes

explicitly, criticise the rational human intellect.

[...] the second type of characteristic Hughes poem, [is] the

longer sequence with mythical or metaphysical ambitious, of a kind

possibly encouraged by Vasko Popa's long poem-cycles.53

Como anteriormente nesta dissertação já foi lembrado, é em 1957, com a obra The Hawk in the

Rain, que Hughes começou a publicar. Seguiram-se outros títulos de igual modo importantes,

como é o caso de Lupercal (1960) e Wodwo (1967). Estas obras iniciais são sobretudo marcadas

por uma Natureza quase em estado selvagem e cujos animais se encontram em luta pela

sobrevivência. Esta impetuosidade da Natureza é adivinhada nalguns dos títulos dos poemas

53 Neil Corcoran, English Poetry Since 1940 (London: Longman, 1993) 116, 117.

33

Page 35: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

desta fase - como "The Jaguar", "Vampire", "Hawk Roosting" ou "Second Glance at a Jaguar"-

e Keith Sagar, por exemplo, refere-se à temática desta poesia declarando:

In nearly all his poems Hughes strives to find metaphors for his

own nature. And his own nature is of peculiar general interest not

because it is unusual, but because it embodies in an unusually intense,

stark form the most typical stresses and contradictions of human

nature and of Nature itself.54

É Keith Sagar quem aponta a década de sessenta como o ponto de viragem na poesia

hughesiana, defendendo este crítico que o poeta começa então a preocupar-se em descrever a

Natureza de uma perspectiva ecológica. Esta mudança é igualmente acentuada por outros

autores, como é o caso de Leonard M. Scigaj que sustenta: "Hughes's poetry since the mid-

1960s has been intimately concerned with viewing Nature from an ecological perspective."5'

Sagar advoga ainda que esta "nova" Natureza hughesiana passa a ser celebrada como deusa56 e

54 Sagar, Ted Hughes, 4. 55 Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 160. Mais adiante neste mesmo capítulo, Scigaj prossegue:

"Hughes in his poetry has been suggesting such a change for the past twenty years. Reverence for the nurturing powers of organic Nature and respect for the intrinsic worth of all of Nature's creations have led Hughes to adopt a biocentric vision." (Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 179.) Jonathan Bate também se refere a este assunto declarando: "[...] Hughes in his later years became increasingly angry about the violence wrought by man upon nature. He cared deeply about the pollution of the countryside and the decimation of Britain's wildlife population." [Jonathan Bate, The Song of the Earth (Cambridge & Massachusetts: Harvard University Press, 2000) 27.]

56 Dennis Walder, num capítulo intitulado "Back to Mother Nature", fala também desta viragem da poesia hughesiana. Walder fala de "(...) [a] delightful, vividly sensual celebration of the goddess Nature in Season Songs". [Dennis Walder, Open Guides to Literature: Ted Hughes (Philadelphia: Open University Press, 1987) 82.] O autor prossegue defendendo Hughes perante a crítica que o aponta como poeta da violência e argumenta: "In effect what he [Hughes] was doing, was taking us back to the goddess Nature: the aggressive, masculine, satiric view so forcibly embodied in these sequences [Crow, Gaudete and Cave Birds]is countered by a lighter, gentler and more feminine strain, which emerges with the publication of Season Songs". (Walder, Open Guides to Literature, 80.)

Também Craig Robinson caracteriza a Natureza hughesiana chamando-a: "[...] the goddess we meet everywhere in River and in Hughes' later vision of nature." [Craig Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being

34

Page 36: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

como elemento criador em detrimento de uma caracterização da Natureza como elemento

masculino e destruidor que havia apresentado até então.

III.

Apesar de a Natureza ser um tema recorrente na produção poética de Hughes, existem

quatro obras em que os críticos - e daqui destaco Leonard M. Scigaj - são unânimes em afirmar

que a Natureza é vista especificamente de uma perspectiva biocêntrica ou ainda ecológica:

Season Songs (1976), Remains ofElmet (1979)57, River (1983) e Flowers and Insects (1986).

Essa abordagem do tema é feita de dois modos distintos: ora pela divinização da Natureza em

oposição à quase insignificância da presença humana nos espaços naturais, ora ainda pelo

lamento dos malefícios causados pelo ser humano sobre aqueles.

Season Songs, a colectânea primeira deste conjunto e pelos críticos catalogada como

literatura infantil, exemplifica a posição biocêntrica que a Natureza por vezes ocupa na obra

hughesiana. Brian Patten destaca-a relativamente a outras construções poéticas de Hughes,

valorizando no poeta a sua capacidade de observação dos espaços naturais e a transmissão aos

menos atentos daquilo que foi observado:

(New York: St. Martin's Press, 1989) 207.] 57 Esta obra foi posteriormente publicada sob outro título: Elmet. Fay Godwin, num capítulo intitulado

"Ted Hughes and Elmer traça a história da publicação de Elmet: "In 1994, in spite of Faber's reluctance, because of the cost of reproducing the photographs, a completely new edition called Elmet was published, with about one-third new pictures and poems, much better designed and produced." (Gammage, ed., The Epic Poise, 106.) E ainda Godwin, no mesmo artigo, quem relata a posição de Hughes relativamente a Elmet: "that's our classic so we'll keep it in print."

35

Page 37: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

In Hughes's nature poems - specially those in Season Songs -

there is an intensity of seeing (...)• To see the natural world so closely

and to be able to pass this information on to the less observant in a

way that is memorable is one of his major gifts, and one that those of

us whose vision is blunted by hurry or enclosed in an urban

environment ought to be grateful for.58

Também Craig Robinson realça essa mesma capacidade de observação de Hughes e refere:

"March Morning Unlike Others", in Season Songs (1976),

offers a mood new in Hughes. It starts with the poetry of observation,

simple registrations, aiming only to offer up such particulars as seem

noteworthy and necessary to the definition and evocation of the

essence of this day.59

Do meu ponto de vista, de facto Season Songs oferece retratos pormenorizados de uma Natureza

pouco ou nada hostil, como na primeira fase da obra poética hughesiana, e evidencia uma

Natureza com características singulares em quatro momentos distintos - na Primavera, no Verão,

no Outono e no Inverno. Esta divisão em momentos desiguais foi feita pelo próprio autor que

se preocupou em agrupar os textos líricos tendo as estações do ano como delimitadoras e

diferenciadoras desses momentos. Os poemas divinizam a Natureza, em geral, ou certos

elementos desta, em particular, de forma a mostrar toda a sua magnitude face ao homem. Há

ainda a sobrelevar o facto de os elementos naturais se encontrarem em harmonia e a Natureza

evidenciar uma capacidade de regeneração sublime, nomeadamente no poema "March Morning

Unlike Others", do qual cito a última estrofe:

58 Gammage, ed., The Epic Poise, 72.

59 Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being, 199.

36

Page 38: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

The earth invalid, dropsied, bruised, wheeled

Out into the sun,

After the frightful operation.

She lies back, wounds undressed to the sun,

To be healed,

Sheltered from the sneapy chill creeping North wind,

Leans back, eyes closed, exhausted, smiling

Into the sun. Perhaps dozing a little.

While we sit, and smile, and wait, and know

She is not going to die.60

Também a importância da união harmoniosa do ser humano com a Natureza não foi esquecida

e esta última é vista como figura maternal ou como fonte de vida para com o primeiro. E isto que

expressa, por exemplo, o poema "The Golden Boy":

In March he was buried

And nobody cried

[...]

But the Lord's mother

Full of her love Found him underground

And wrapped him with love As if he were her baby

Her own born love She nursed him with miracles

And starry love And he began to live

And to thrive on her love61

60 Ted Hughes, Season Songs (London & Boston: Faber and Faber, 1985) 17. Versos 13-22.

61 Hughes, Season Songs, 51, 52. Versos 1 - 20.

37

Page 39: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

De resto, relativamente à presença humana, esta é quase inexistente, exceptuando algumas

referências num número reduzido de poemas. É o caso do final da obra através de "The Warm

and the Cold". Este poema, cujo título anuncia um contraste que será desenvolvido no seu

corpus, retrata um entardecer invernal - "Freezing dusk"62 - e enumera quase exaustivamente

animais e outros elementos do espaço natural enquadrados de forma harmoniosa na Natureza.

Os três versos finais, antagonicamente ao até então referido no poema, expressam: "The sweating

farmers/Turn in their sleep/Like oxen on spits."63 Como se pode concluir após leitura do excerto,

há aqui uma certa sugestão da insignificância e impotência da presença humana relativamente ao

espaço natural. O sono desassossegado destes agricultores contrasta com o aconchego

encontrado pelos animais na Natureza e, através da comparação "Like oxen on spits", revela-se

um certo desenquadramento por parte do homem no espaço natural.

A segunda obra deste conjunto - Remains of Elmet64 - também é objecto de referência

como exemplificativa da Natureza tratada de forma biocêntrica e ecológica. Uma vez mais cito

62 Hughes, Season Songs, 88. Verso 1.

63 Hughes, Season Songs, 88. Versos 41 - 43.

64 O título escolhido por Ted Hughes é objecto de estudo por parte de alguns críticos. Elmet é um topónimo particularmente importante pois é uma antiga designação celta para uma parte do West Yorkshire, local onde Hughes passou muito tempo da sua infância (ver Sagar, ed. The Challenge of Ted Hughes, 171.) O próprio Ted Hughes, em notas a Ted Hughes (Poems), and Fay Godwin (Photographs), Elmet (London & Boston: Faber and Faber, 1994) 9 e Ted Hughes, Three Books: Remains of Elmet, Cave Birds, River (London: Faber and Faber, 1993) 181, explicou: "Elmet is still the name on maps for a part of West Yorkshire that includes the deep valley of the upper Calder and its watershed of Pennine moorland. These poems confine themselves to the upper Calder and the territory roughly encircled by a line drawn through Halifax (on the east), Keighley (on the north-east), Colne (on the north-west), Burnley (on the west), and Littleborough (on the south-west): an 'island' straddling the Yorks-Lancs border, though mainly in Yorkshire, and centred, in my mind, on Heptonstall. Elmet was the last independent Celtic kingdom in England and originally stretched out over the vale of York. I imagine it shrank back into the gorge of the upper Calder under historic pressures, before the Celtic survivors were politically absorbed into England."

Leonard M. Scigaj refere-se ainda ao significado de "Elmet" para Hughes ao afirmar: "Elmet [...] became in Hughes's imagination a live ecological system that imprinted its landscape and weather upon all inhabitants." (Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 171.)

38

Page 40: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Leonard M. Scigaj que salienta:

In Remains of Elmet the ecology of the Pennines, not the

human observer, is the protagonist. A main theme concerns the hope

that the decomposition cycle in the ecosystem will one day turn all

evidence of the Industrial Revolution and its penurious culture into

fertile soil for future renewal. [...]

In Remains of Elmet Hughes expresses the hope that the strong

base of Nature's pyramid can outlast the ecologically unsound myths

that direct contemporary Western culture.65

Contrariamente a Season Songs, o que Hughes oferece em Remains of Elmet é um lamento pela

ascensão da Revolução Industrial e, resultante desta, o declínio das indústrias tradicionais e

colapso das comunidades que eram responsáveis por essas mesmas indústrias. O poema

"Shackleton Hill", o qual evidencia imagens de abandono das quintas e consequente inactividade

nas mesmas, exemplifica esta posição hughesiana:

Dead forms, dead leaves Cling to the long Branch of world.

Stars sway the tree Whose roots Tighten on an atom.

The birds, beautiful-eyed, with soft cries,

The cattle of heaven,

Visit

65 Sagar, ed., ne Challenge of Ted Hughes, 171.

39

Page 41: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

And vanish.'

"The Sheep Went on Being Dead" também se aproxima tematicamente do poema supracitado.

Como o próprio título anuncia, este texto lírico é um relato de morte no espaço natural, morte

essa descrita da seguinte forma:

It was a headache To see earth such a fierce magnet Of death. And how the sheep's baggage

Flattened and tried to scatter, getting flatter

Deepening into that power And indrag of wet stony death.

Time sweetens The melting corpses of farms The hills' skulls peeled by the dragging climate -67

De forma semelhante, outros poemas vão mostrando vestígios de um espaço natural que foi

gradualmente morrendo devido à acção humana. É o caso de "First, Mills" que se refere

explicitamente aos danos provocados pelo comboio sobre a Natureza:

[...] Then the bottomless wound of the railway station

That bled this valley to death.

66 Hughes, Three Books, 41. Versos 1-10. 67 Hughes, Three Books, 31. Versos 9 -17. Em Elmet o poema é ilustrado com uma fotografia do cadáver

daquilo que aparenta ser uma ovelha. Ver Hughes (Poems), and Godwin (Photographs), Elmet, 62.

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Page 42: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

The fatal wound.

[...]

Then the hills were requisitioned

For gravemounds.

The towns and the villages were sacked.68

Antagonicamente a Remains ofElmet, a terceira obra de destaque neste capítulo - River

-, celebra a vida e a renovação da Natureza sobretudo centrada no espaço fluvial69 e, como

aponta Craig Robinson, essa Natureza é descrita como sendo um elemento feminino : "The female

personification of the landscape is frequent, especially in River (1983)".70 Outras considerações

se tecem em torno de River: Leonard Scigaj defende que a obra é fruto de duas décadas de

meditação por parte de Hughes sobre o significado e a importância da Natureza nas vivências do

ser humano71; outros estudiosos da obra hughesiana apontam apenas os interesses comerciais do

patrocinador de River no uso da imagem ambientalista deTed Hughes. É o caso de Tom Paulin

que advoga:

68 Hughes, Three Books, 8. Versos 4 - 12. Em Elmet, Fay Godwin ilustrou este poema com uma fotografia de um espaço que lembra unicamente a morte: túmulos cobertos de neve. [Hughes (Poems), and Godwin (Photographs), Elmet, 23.]

69 A corroborar esta minha afirmação leia-se o que Leonard M. Scigaj constata: "The sequence celebrates ecological renewal in the hydrological cycle as well as the conservation and renewal of spiritual energy in the life-and-death cycle shared by all Nature. [...] Each poem in River contains images of unspoiled Nature." ( Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 173.) Outro crítico - Craig Robinson - advoga que River tern as suas origens nas primeiras obras hughesianas já que o fascínio deste autor pela água se fez sentir ao longo da consolidação do seu papel como autor (Veja-se Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being, 203.)

Dennis Walder fala de River como tendo na sua génese uma expedição ao Alaska - feita por Hughes e pelo seu filho - com o objectivo de pescar. (Ver Walder, Open Guides to Literature, 87 - 88.)

70 Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being, 201.

71 Scigaj, ed., Critical Essays on Ted Hughes, 27.

41

Page 43: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

This ambitious wish to draw together history, the natural

environment and human enterprise can be seen most clearly in River, a collection of poems by Hughes which was published in 1983 with

funding from British Gas and the Countryside Commission. The

volume is a commercial for British Gas's environment friendliness,

though it also celebrates fish-farming, a process now regarded as

ecologically damaging. The glossy appearance of River and the colour

photographs it contains make it resemble a coffee-table book.72

Penso que, de facto, a obra pode ter sido usada com o propósito que acusa Paulin, mas, no que

concerne à posição do seu autor, ela assume-se como materialização das preocupações

ambientais do cidadão Ted Hughes.

Embora de forma menos evidente - porque o autor não efectuou uma divisão dos

poemas tal como havia feito em Season Songs - em River a vida é semelhantemente celebrada

de forma cíclica. A agitação no rio e nas suas margens é retratada nas diferentes estações do ano,

iniciando-se e tenriinando no Inverno. A exaltação da capacidade de renovação da Natureza faz

com que esta se apresente ao leitor como eterna e o poema "The Vintage of River is Unending"

testifica esta minha afirmação:

Grape-heavy woods ripen darkening

The sweetness.

Tight with golden light

The hills have been gathered.

72 Tom Paulin, "Ted Hughes: Laureate of the Free Market?", The Kenneth Allott Lectures, Liverpool, 1 Nov. 1990, 18. Sublinhado meu.

42

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O Olhar do Falcão

Granite weights of sun.

Tread of burning days.

Unending river

Swells from the press

To gladden men.73

É ainda de destacar que é no poema de fecho da obra - "Salmon Eggs" - que Hughes inclui o

tantas vezes citado verso que caracteriza River. "Only birth matters". O final mostra também o

triunfo da Natureza na entidade personificada do rio. A acompanhar "Salmon Eggs" está uma

fotografia de Peter Keen e, nas últimas páginas da obra, em jeito de notas explicativas das

fotografias, um pequeno texto revela que é possível a convivência homem/Natureza sem qualquer

malefício mútuo74. Ann Skea refere-se a esta fotografia final como: "[...] a fitting conclusion to

the River sequence, Keen's photograph of the unscarred serenity of the River Exe [...] beautifully

demonstrates that people can work in harmony with Nature".75 Contudo, a crítica não é unanime

relativamente a este assunto. É o caso de Dick Davis que advoga: "[...] the Peter Keen color

photographs [...] contribute little to the reader's appreciation or understanding of the poems,

unlike the Baskin drawings of the flayed, afflicted spirit in Cave Birds or Fay Godwin's austere,

brooding black-and -white photographs in Elmet."76

73 Ted Hughes (Poems), and Peter Keen (Photographs), River (London & Boston : Faber and Faber, 1983) 66. Versos 1 - 9.

74 Na nota que acompanha a fotografia pode ler-se o seguinte: "The River Exe at a British Gas pipeline crossing. In this case, as with all other river crossings, no scars are evident in the landscape and great care is taken not to disturb the life-cycle of the river bed." [Hughes (Poems), and Keen (Photographs), River, 128.]

75 Skea, Ted Hughes, 234.

76 Scigaj, ed., Critical Essays on Ted Hughes, 27.

43

Page 45: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Relativamente à última das obras deste conjunto - Flowers and Insects77 - há igualmente

a concepção da Natureza vista de uma perspectiva biocêntrica apontada, designadamente, por

Scigaj.78 Porém, quando comparada com outras obras, há algo que a distingue e que autores

como Craig Robinson apontam: "In Flowers and Insects the blooms, like animals in other

collections, function as the representatives of the goddess [Nature]."79 É o que mostra o poema

"Sketch of a Goddess" que, tal como em outras obras poéticas hughesianas, também retrata

relações de força entre seres:

We have one Iris. A Halberd Of floral complications. Two blooms are full, Floppily opened, or undone rather.

Royal Seraglio twin sisters, contending For the Sultan's eye. Even here One is superior. Rivalry has devastated Everything about them except The womb's temptation and offer.80

77 A edição aqui usada foi Ted Hughes (Poems), and Leonard Baskin (Drawings), Flowers and Insects: Some Birds and a Pair of Spiders (London & Boston: Faber and Faber, 1986.) Tal como anteriormente aconteceu noutras obras, Hughes faz acompanhar dos poemas desenhos de Leonard Baskin que, como se indica na capa desta edição oferecem uma visão paralela e complementar dos textos: "The sequence of drawings by Leonard Baskin expresses an equally powerful vision, parallel and complementary to that of the poems it accompanies."

78 "[...] in recent collections his [Hughes's] biocentric vision remains strong and unwavering. The poems of Flowers and Insects (1986), [...], do not relegate Nature to a function of human perception [...]. Instead the humble inquiry into the survival struggles ofNature' s non-human species continues." ( Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 175.)

79 Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being, 211.

80 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 36. Versos 1 - 10.

44

Page 46: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Não se quer com isto afirmar que em Flowers and Insects a Natureza deixa de ser representada

por animais, até porque são anunciados no próprio título da colecção; o que se pretende afirmar

é que as flores têm nos poemas um papel de maior destaque: elas são os elementos naturais

preferidos para celebrar a vida no espaço natural e para mostrar a Natureza como deusa.

Os críticos referem sobre os poemas aquilo que pode ser visto como caracterizador da

obra: "The poems express intimate connections between human personae and non-human species,

most often to reveal a community of joy, suffering and mortality without condescension or

sentimentality."81 O espaço natural é celebrado em toda a sua plenitude, sem quaisquer vestígios

da intervenção humana, como demonstra, por exemplo, o poema de abertura "Narcissi":

The Narcissi shiver their stars In the green-gold wind of evening sunglare.

Their happiness is weightless. Their merriment is ghostly.

[...]

The Narcissi are untouchable

They will never be hurt.82

Este tratamento ecológico e biocêntrico a que se oferece a leitura das obras hughesianas

mencionadas leva alguns críticos a reconhecê-las como tendo vima importante componente

81 Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 176.

82 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 9. Versos 1-21.

45

Page 47: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

didáctica, a apontar-lhes a ambição de intervir na formação humana. É por este motivo que

Scigaj declara: "His [Hughes's] poetry, a beacon directing us towards ecological and spiritual

renewal, is vitally important for the survival of our planet."83 Neste contexto, a obra de Ted

Hughes atinge o objectivo a que se propos o autor numa segunda fase da sua obra poética:

sensibilizar e educar o leitor para as questões ecológicas e de preservação do meio ambiente.

Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 179.

46

Page 48: O Olhar de Ted Hughes

Ill - Retratos de Pormenor

Page 49: O Olhar de Ted Hughes

7/ is one of those curious facts that when two things

are compared in a metaphor or simile, we see both of them

much more distinctly than if they were mentioned separately

as having nothing to do with each other.

Ted Hughes84

Hughes seems happy simply to let his eyes rest where

they are drawn and then to list what he has seen.

Craig Robinson85

84 Hughes, Poetry in the Making, 44.

85 Robinson, Ted Hughes as Shepherd of Being, 200.

Page 50: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

I.

Como anteriormente se indicou, esta dissertação tem como objectivo estudar na

poesia hughesiana a representação visual de um real considerado nas suas formas animais

mais diminutas. Não obstante, antes de fazê-lo optei por introduzir uma secção breve cujo

propósito é apresentar aquelas presenças animais que são as figuras de destaque dos poemas

que constituem o corpus desta dissertação, bem como caracterizar o tipo de relação

estabelecida entre estas e o espaço natural em que são retratadas. Assim, centrar-me-ei nesta

secção numa apresentação do corpus, para seguidamente dirigir a minha atenção para a

representação desses animais.

Para proceder à apresentação já aqui mencionada optei, quando possível, por formar

pequenos grupos de poemas. Esta formação de grupos, preparando embora a leitura de

pormenor nas páginas que se seguem, não terá de ser observada de modo rigoroso e

absoluto no estudo particularizado dos poemas: o meu propósito nesta secção introdutória

é, tão somente, apontar grandes vectores da leitura.

As presenças animais nos poemas do corpus são, para além de dimensionalmente

diminutas, bastante variadas. O leitor está em presença de animais das mais variadas espécies

começando pela borboleta - nos poemas "The Red Admiral"86 e "Two Tortoiseshell

86 A edição usada foi Ted Hughes (Poems), and Chris Riddell (Illustrations), The Iron Wolf '(London & Boston: Faber and Faber, 1995) 31. Devo referir que este foi um poema originalmente publicado em Ted Hughes (Poems), and R. J. Lloyd (Paintings), The Cat and the Cuckoo (s. 1.: Sunstone Press, 1987).

49

Page 51: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Butterflies"87 - e terminando, por exemplo, na abelha - "The Honey Bee"88 e "Bees"89 -, mas

sem deixar de passar pela libelinha e outros dos seus parentes - "Dragonfly"90,

"Performance"91, "A Cranefly in September"92, "Saint's Island"93 e "The Mayfly is Frail"94

-, pelo gafanhoto - "In the Likeness of a Grasshopper"95-, pelo caracol - "Snail"96 -, pela

formiga e a pulga - "Ants"97 e "Sandflea"98 -, pela mosca e o mosquito - "Caddis"99, "The

87 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 19-21.

88 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 39.

89 Ted Hughes (Poems), and Lisa Flather (Illustrations), What is the Truth? (London & Boston: Faber and Faber, 1995)51,52.

90 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 31. Poema primeiramente publicado em Hughes (Poems), and Lloyd (Paintings), The Cat and the Cuckoo.

91 Ted Hughes, A March Oz//(London & Boston: Faber and Faber, 1995) 70, 71. Este poema é uma versão ligeiramente alterada do poema "Last Act" [Hughes (Poems), and Keen (Photographs), River, 96.] Esta versão aqui por mim usada foi primeiramente publicada em Hughes, Three Books.

92 Hughes, A March Calf, 84, 85. O poema foi pela primeira vez publicado em Ted Hughes, Season Songs (London: The Rainbow Press, 1974).

93 Hughes, (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 26-31.

94 Hughes, A March Calf, 94. Poema publicado inicialmente em Hughes, Three Books.

95 Hughes, (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 41.

96 Hughes, (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 30. Poema pela primeira vez publicado em Hughes (Poems), and Lloyd (Paintings), The Cat and the Cuckoo.

97 Hughes, (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 58, 59.

98 Hughes, (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 6. Poema originalmente publicado em Ted Hughes (Poems), and R. J. Lloyd (Watercolours), The Mermaid's Purse (s. 1.: Sunstone Press, 1993).

99 Hughes, A March Calf, 48. Publicado primeiramente em Ted Hughes, Three River Poems (s. 1. : The Morrigu Press, 1981).

50

Page 52: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Fly"100, "Buzz in the Window"101, "Gnat-Psalm"102 e "Mosquito"103-, pela aranha -

"Eclipse"104 e "Spider"105 - e, finalmente, pela minhoca - dois poemas sob o título de

"Worm"106 e "Ragworm"107.

Relativamente ao primeiro grupo de poemas mencionado - sobre a borboleta - esta

é sobretudo louvada pela sua beleza física, mas não deixa também de ser engrandecida num

momento particular da sua existência: em todo o processo de sedução que se desenrola em

torno do acto de acasalamento. Esta união entre dois seres e o erotismo envolvido é

retomada no poema "Eclipse" sendo, desta vez, duas aranhas as entidades escolhidas. A

união chega ainda a tomar forma no casamento que se metaforiza no poema "Bees", em que

Hughes usa a imagem do casamento para celebrar o congregar das abelhas no processo final

do fabrico de mel, celebração essa uma vez mais recuperada no outro poema sobre este

mesmo animal.

100 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), What is the Truth?, 61-63.

101 Hughes, A March Calf, 89, 90. Poema pela primeira vez publicado na obra Ted Hughes, Moortown (London & Boston: Faber and Faber, 1979).

102 Ted Hughes, The Thought-Fox (London & Boston: Faber and Faber, 1995) 7 - 9. Este poema foi pela primeira vez publicado em Ted Hughes, Wodwo (London: Faber and Faber, 1967).

103 Hughes, A March Calf, 14. Este poema surgiu pela primeira vez em 1980 e foi publicado isoladamente; a segunda vez que veio a público foi através da obra Ted Hughes (Poems), and Leonard Baskin (Drawings), Under the North Star (New York: The Viking Press, 1981).

104 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 46- 51. Este poema foi originalmente publicado isolado.

105 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 81.

106 Este título refere-se a dois poemas distintos: Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 25 [a sua primeira publicação ocorreu em Hughes (Poems), and Lloyd (Paintings), The Cat and the Cuckoo] e Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), What is the Truth?, 111,112.

107 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 14. Primeiramente publicado em Hughes (Poems), and Lloyd (Watercolours), The Mermaid's Purse.

51

Page 53: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Nos poemas que dizem respeito à libelinha e aos seus parentes, há a evidenciar,

para além da beleza destes seres, a sua capacidade de metamorfose e o deslumbramento do

sujeito poético perante o engenho de sobrevivência de seres aparentemente frágeis num

ambiente natural deveras hostil. Este deslumbramento manifesta-se na valorização desses

animais, não só na forma como são descritos, mas também na própria aparência gráfica,

como os substantivos redigidos com letra maiúscula, prática esta pouco usual em língua

inglesa. A temática da capacidade de sobrevivência de seres aparentemente frágeis é ainda

retomada no poema "Mosquito" no qual as transmutações e os ambientes hostis são

obstáculos superados no final do texto lírico.

Não obstante, nem sempre as descrições dos seres se limitam a salientar a sua

beleza, chegando a existir circunstâncias em que Hughes se preocupou em descrever figuras

deselegantes. É o caso do poema "In the Likeness of a Grasshopper" bem como do poema

"Caddis", onde as figuras animais descritas são retratadas como desajeitadas ou mesmo

obstáculos à sua própria existência.

Sobressaem ainda do corpus desta dissertação alguns momentos em que a surpresa

resulta da representação como belo do que habitualmente é visto como incomodativo. Se

pensarmos nos movimentos importunos do mosquito e no poema "Gnat-Psalm" esta

afirmação faz todo o sentido, já que a agitação desta presença animal é representada

simultaneamente como dança e como cântico. Também por vezes o autor parte do que em

regra é desagrado - como o facto de a maioria das pessoas sentir vima certa repugnância

por aranhas - para contrariar esse juízo e a correspondente expectativa. "Spider" exemplifica

esta afirmação centrando-se, a dada altura do poema, naquele que é considerado como um

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Page 54: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

dos artefactos naturais mais belos: a teia da aranha. Outras vezes há ainda um tom irónico,

mas simultaneamente inovador, na forma como determinada presença animal é descrita. E

o caso do poema "The Fly", o qual inverte aquele que é o retrato do inspector sanitário

comummente aceite e o projecta no animal que dá título ao poema enquanto vai

enumerando alguns aspectos que justificam a analogia.

Noutros momentos do corpus há uma valorização de um mundo no qual os mais

fortes se sobrepõem aos mais fracos. Este assunto é claro no poema "Buzz in the Window"

o qual mostra a morte como consequência da intrusão de uma mosca no território de uma

aranha, bem como um certo êxtase por parte desta última quando o seu instinto predador

é concretizado.

Ted Hughes centra-se, por vezes, nos movimentos frenéticos de alguns seres no seu

ambiente natural, como acontece no poema "Ants" e, pela escolha dos verbos e adjectivos,

o próprio poema assume um tom frenético. Noutros momentos, os poemas são meros relatos

de algo harmonioso no reino animal presenciado pelo eu poético. Isto é visível num poema

publicado em What is the Truth? - que intitulei "Worm". Outras vezes, o autor dá voz aos

animais retratados e o poema é, nestes casos, percepcionado como a canção desse animal.

Isto é particularmente evidente em "Sandflea", um canto de tons exacerbados e alegres, em

"Worm" e "Ragworm", poemas que contrastam com o anterior por adoptarem um tom de

lamento, tristeza e mesmo alguma melancolia.

Algo de recorrente na obra hughesiana e nalguns poemas do corpus, em particular,

é o recurso a elementos gigantescos do reino animal para contrastar com as figuras

reduzidas descritas. Isto é particularmente notório em "Snail" que, logo de início, aproxima

53

Page 55: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

o caracol da baleia estabelecendo o autor semelhanças entre a pele destes dois animais de

dimensões antinómicas. Este elemento de comparação causa de imediato estranheza no leitor

pois, como é do conhecimento geral, o caracol é um de entre um grupo restrito de animais

que não têm pele.

Embora variadas, todas estas formas de apresentação e representação animal

evidenciam a capacidade de Hughes em retratar minuciosamente um mundo que

habitualmente é inobservado e usá-lo como representativo da Natureza. Os animais dos

poemas do corpus distinguem-se sobretudo pelas suas características singulares, mas também

pela relação que estabelecem com o espaço natural. Essa relação toma contornos muito

distintos nos vários poemas. Existem alguns - "Eclipse", "Buzz in the Window" e "The Fly"

- nos quais o espaço onde os animais estão inseridos não é natural, mas sim criado pelo

homem, tal como antecipa o segundo destes dois títulos. Contudo, este espaço em nada é

prejudicial à actividade das figuras dos poemas e a presença humana não é vista como

elemento perturbador. Mas esta não é a posição predominante nos textos do corpus e, por

vezes, a presença humana é perturbadora da harmonia da relação animal/Natureza. É o que

evidencia o poema "Worm":

And I was like Satan, for they suddenly took fright.

Their loving was chilled at the touch of my stare -

O I almost could hear it, their cry of despair108

Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 112.

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Page 56: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Outros poemas existem nos quais o espaço no qual as presenças animais se

movimentam nem sequer é nomeado ou referido. E o caso de "The Red Admirai",

"Ragworm", "Spider", "Ants" e "Bees". Isto porque o mais importante nestes textos líricos

é o louvor atribuído à beleza destes animais ou a algumas tarefas particulares por eles

efectuadas. O espaço natural surge, por vezes, como acolhedor, um espaço no qual as

entidades representadas no poema estão em harmonia e completamente inseridas. São disso

exemplo os poemas "Two Tortoiseshell Butterflies", "Worm", "Snail", "The Honey Bee" e

"In the Likeness of a Grasshopper" nos quais, do meu ponto de vista, a Natureza é vista

no seu papel de mãe e protectora.

Outras configurações da Natureza há ainda aqui a destacar: por vezes, o espaço

natural retratado é um local muito específico. Em "Dragonfly", "The Mayfly is Frail",

"Caddis" e "Performance", por exemplo, o espaço escolhido foi o rio; outras vezes a

Natureza é retratada como agressiva, mas, face à capacidade de sobrevivência do ser, este

rende-se àquela - "Mosquito"; outras vezes ainda é o próprio animal que desafia as forças

naturais, mas no final é revelada a sua inferioridade - "Sandflea"; também por vezes a

Natureza é vista como o local predilecto para recuperar energias - "A Cranefly in

September".

Apresentadas estas caracterizações e formas distintas de ver os animais no espaço

natural, passo a desenvolver, já de seguida, as diferentes formas usadas por Hughes para

representar esses mesmos animais.

55

Page 57: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

II.

Esta segunda secção deste capítulo tem como propósito oferecer, de uma forma mais

sistemática, uma leitura dos poemas que compõem o corpus desta dissertação na perspectiva da

representação das figuras em destaque nos poemas, perspectiva esta que mais parece ser

auxiliada por uma câmara. Não obstante, o tratamento que darei aos poemas não visa esgotar

a sua leitura, e a forma como foram agrupados é uma das possíveis num vasto leque de escolha.

Devo alertar, porém, que, do meu ponto de vista, estes poemas não podem ser estudados

isoladamente, uma vez que uma leitura atenta mostra que existem assuntos e perspectivas de

representação recorrentes: os animais, para além de serem de dimensões reduzidas - devo

acrescentar que, por vezes, são quase invisíveis a olho nú - estão quase sempre inseridos num

espaço e num tempo específicos. A minha preocupação nesta secção é unicamente a de agrupar

os poemas e mostrar as técnicas de representação adoptadas por Ted Hughes.

Hughes adopta várias estratégias para representar os animais de dimensões mais

diminutas. Num primeiro grupo de poemas constituído por "Eclipse", "Buzz in the Window" e

"Two Tortoiseshell Butterflies", o leitor está perante descrições tão pormenorizadas que podem

até ser vistas como produto da ajuda de uma lupa ou da focagem de uma câmara que ora se vai

aproximando, ora distanciando da cena observada. "Eclipse" revela, desde o seu início, um eu

poético que observa, não tendo as figuras observadas consciência da presença do observador:

"For half an hour, through a magnifying glass,/!'ve watched the spiders making love

undisturbed,/Ignorant of the voyeur, horribly happy." (1 - 3). O poema constrói-se, então, em

torno daquilo que foi observado. A descrição evidencia a preocupação do autor em mostrar ao

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O Olhar do Falcão

leitor a ordem exacta dos acontecimentos que foi presenciando. Isto é particularmente evidente

na forma como inicia a representação: "First in the lower left-hand corner of the window/I saw

an average spider stirring." (4, 5)109 Há depois o desvio do olhar do sujeito poético e a

concentração no ambiente de onde surge uma das presenças animais, chegando este ambiente

a lembrar mesmo um cemitério:

There

In a midden of carcases, the shambles

Of insects dried in their colours,

A trophy den of uniforms, reds, greens,

Yellow-striped and detached wing-frails, last year's

Leavings, parched a winter, scentless-heads,

Bodices, corsets, leg-shells, a crumble of shards

In a museum of dust and neglect, there

In the crevice, concealed by corpses in their old wrappings,

A spider has come to live.110

Não esquecendo, porém que o número de animais referidos neste poema é dois, a estrofe

seguinte dá conta do aparecimento da outra figura em destaque no poema: "I saw her moving.

Then a smaller,/Just as ginger, similar all over,/Only smaller. He had suddenly appeared." (1-3).

Introduzidas as figuras animais no cenário há seguidamente uma descrição minuciosa dos

movimentos que se assemelham a uma dança, como refere o próprio poema:

Upside down, she was doing a gentle

109 Sublinhado meu.

110 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 46. Versos 5 - 14.

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O Olhar do Falcão

Sinister dance. All legs clinging

Except for those leading two, which tapped on the web,

[...] Upside down, head under, belly towards her.

Motionless, except for a faint And just-detectable throb of his hair-leg tips.

She came closer, upside down, gently,

And enmeshed his forelegs in hers.111

Apesar de esta descrição ser já, do meu ponto de vista, extremamente meticulosa, o

verso 39 revela uma maior aproximação da cena por parte do sujeito poético: "I got closer to

watch." A explicação para tal atitude prende-se com a dificuldade de percepção por parte do

observador face ao observado: "Something/Difficult to understand, difficult/To properly observe

was going on." (39 - 41) É então que surge, uma vez mais, a descrição de algo quase impossível

de observar a olho nu, dirigindo-se o olhar, ora para os gestos da fêmea, ora para os do macho:

Her two hands seemed swollen, like tiny crab-claws.

[...]

He convulsed now and again.

Her abdomen pod twitched - [...]

Under his abdomen he had a nozzle -

Presumably his lumpy little cock,

As soon as she had it

A bubble of glisteny clear blue

Ballooned up from her nipper, the size of her head,

Then shrank back, and as it shrank back

She wrenched her grip off his cock

Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 46, 47. Versos 21-37.

58

Page 60: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

As if it had locked there, and doubled her fistful

Of shining wet to her jaw-pincers

And rubbed her mouth and underskin with it,

Six, seven stiff rubs, while her abdomen twitched,

Her tail-tip flirted, and he hung passive.

Then out came her other clutcher, on its elbow,

And grabbed his bud, and the gloy-thick bubble

Swelled above her claws, a red spur flicked

Inside it, and he jerked in his ropes.112

É importante ainda aqui destacar no poema a combinação de horror e sedução, de fascínio e

repulsa perante a fêmea devoradora. Esta leitura torna-se particularmente importante se

pensarmos nas relações complexas de Hughes com a feminilidade e na sua reputação de

misoginia.113

Tal como adiante é referido no poema, toda esta acção teve uma duração de meia hora.

No entanto, o real significado de toda esta agitação ainda é pouco claro para o observador: "It

was still obscure/Just what was going on."(83, 84) Quando, finalmente, o acto de acasalamento

parece ter chegado ao fim é com uma certa ansiedade que o eu poético deseja ver a famosa cena

de assassinato do macho protagonizada pela fêmea. Não obstante, o que realmente acontece não

se aproxima sequer do esperado: a fêmea, adoptando um procedimento de concentração do olhar

semelhante ao do observador, concentra-se num outro ponto particular - "she was

112 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 48,49. Versos 42 - 77.

113 Edward Larrissy fez um estudo minucioso da misoginia na obra de Hughes e concluiu:"There is much mysoginy in Hughes's earlier writings. It is in mysoginy that the misanthrope of 'Soliloquy of a Misanthrope' (from The Hawk in the Rain) finds the best reason for welcoming death." (Edward Larrissy, Reading Twentieth-Century Poetry: The Language of Gender and Objects (Oxford: Basil Blackwell, 1990) 127.) Mais adiante, Larrissy destaca: "The attitude to women remains markedly negative right up to the time, however, when Gaudete was written. Hughes's horrified fascination is well represented by 'Fragment of an Ancient Tablet', from Crow." (Larrissy, Reading Twentieth-Century Poetry, 129.)

59

Page 61: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

concentrating/On a V of dusty white" (97, 98). Desiludido, há um afastamento por parte do eu

do poema em relação a tudo aquilo que havia observado atentamente, mas apenas por breves

momentos: "So I stopped watching./Ten minutes later they were at it again." (123, 124)

Os últimos dez versos do poema, propostos como uma reflexão que decorre em

simultâneo com a limpeza dos vestígios da acção no cenário junto à janela, revelam uma

estratégia diferente de representação, pois concentram-se apenas nas interrogações do sujeito

poético: "Is she devouring him now?/Or are there still some days of bliss to come/Before he joins

her antiques." ( 128,130) É de salientar que, apesar de o poema ser o produto de algo observado,

há sempre a inclusão das reacções e juízos do sujeito poético face àquilo que vai descrevendo.

Isto está evidente em expressões como: "I thought" (24 e 88), "I imagined" (38). A acompanhar

este texto lírico, o desenho da autoria de Baskin mostra, de forma idêntica àquilo que foi

revelado no poema, aquele que parece ser um retrato ampliado e pormenorizado da figura

minúscula que é na realidade uma aranha.

Figura 1 '

Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 47, 49.

60

Page 62: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Num cenário semelhante ao do poema anterior, tal como o título deixa antever, "Buzz

in the Window" inicia-se com o olhar do sujeito poético centrado no cenário onde tudo irá

ocorrer e transmitindo ao leitor a ideia de que está perante algo que lembra um cemitério: "Fly

down near the corner/The cemetery den." (2, 3) Dirigindo o olhar para um ponto particular, é

então apresentada uma primeira presença animal do poema: "A big blue-fly/Is trying to drag a

plough, too deep" (3,4) Seguidamente, uma segunda presença animal é chamada à acção e, com

uma estratégia de representação semelhante à do poema anterior, o olhar do sujeito poético

concentra-se unicamente nas figuras em destaque no poema e uma descrição pormenorizada do

que se segue é oferecida:

The spider has gripped its anus. Slender talons Test the blue armour gently, the head Buried in the big game. He tugs Tigerish, half the size of his prey. A pounding Glory-time for the spider.115

À medida que o leitor vai avançando na leitura do poema descobre que este não é mais que a

descrição minuciosa do aprisionamento e consequente morte de uma mosca que é vencida por

uma aranha. Está Hughes neste poema a relatar algo que é comum na Natureza em geral, e no

reino animal em particular: a derrota dos mais fracos pelos mais fortes; mais do que isso, a

cedência do mais fraco, a sua entrega ao despedaçamento e à morte. Esta entrega salienta a

terrível sedução do ser predatório - a aranha - que, neste caso específico, é mais pequeno que a

presa - a mosca. Esta sedução e entrega pode ainda ser articulada com a relação proposta para

115 Hughes, A March Calf, 89. Versos 8 - 12.

61

Page 63: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

macho e fêmea evidenciada no poema anterior. Também a coberto de uma descrição e de um

relato aparentemente objectivos, Hughes projecta nestes poemas uma leitura das forças naturais -

e, indirectamente, das relações humanas - que atravessa toda a sua obra, como mostra o seguinte

excerto, no qual tem lugar a imputação aos insectos de atitudes humanas:

The blue-fly,

Without changing expression, only adjusting

Its leg-stance, as if to more comfort.

Undergoes ultimate ghastliness. Finally agrees to it.

The spider tugs, retreating. The fly

Is going to let it do everything. Something is stuck.

The fly is fouled in web. Intelligence, the spider,

Comes round to look and patiently, joyfully,

Starts cutting the mesh.116

O final do poema revela a satisfação do ser mais forte por, certamente, uma vez mais ter provado

a sua superioridade e ter consumado os seus instintos predatórios: "Returns/To the haul -

homeward in that exhausted ecstasy" (30, 31).

Enquanto nestes dois poemas o sujeito lírico se preocupou em retratar, logo de início,

as presenças animais no espaço físico, o último dos poemas deste grupo inicia-se mostrando ao

leitor a referência temporal: "Mid-May" (1). A expectativa primaveril que esta referência

comporta é contrariada pelos vestígios de uma austeridade invernal: "after May frosts that killed

the Camellias,/After May snow. After a winter/Worst in human memory, a freeze" ( 1 - 3). E após

esta descrição gélida do cenário que surge a apresentação das figuras em destaque no poema -

116 Hughes, A March Calf, 89. Versos 22 - 30. Sublinhado meu.

62

Page 64: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

"Now two/Tortoiseshell butterflies" (11,12)117 - que mais adiante o autor anuncia como sendo

um casal: "She drunk with the earth-sweat, and he/Drunk with her"( 13,14) 'I8. Há seguidamente

a adopção de uma estratégia de representação diferente; é como se o sujeito poético, ajudado por

uma objectiva, se centrasse nos espaços particulares por onde o casal apresentado vai circulando,

seguindo-o:

She prefers Dandelions,

Settling to nod her long spring tongue down

[...]

He settling behind her, among plain glistenings

Of the new grass119

É a partir daqui que ao leitor é oferecido um retrato bastante pormenorizado daquele que é o

ritual de cortejo de duas borboletas, para o qual o sujeito poético parece ter recorrido à técnica

cinematográfica de aproximação da câmara com o propósito de concentrar a atenção do leitor

em determinada cena:

Quivering to keep her so near, almost reaching

To store her abdomen with his antennae -

Then she's up and away, and he startingly

Swallowlike overtaking, crowding her, heading her

Off any escape. She turns that

117 A borboleta em destaque neste poema é uma Aglais urticae. Esta borboleta cujas cores são o preto, o laranja, o amarelo e o vermelho é a mais conhecida das borboletas coloridas na Grã-Bretanha pois é uma presença assídua nos jardins. Ver Michael Easterbrook, Butterflies of the British Isles: The Nymphalidae (Aylesbury: Shire Publications Ltd, 1987) 2 - 4.

118 Sublinhado meu.

119 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 19, 20. Versos 15 - 20.

63

Page 65: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

To her purpose, and veers down

Onto another Dandelion, attaching

Her weightless yacht to its crest.120

A fêmea escolhida não se deixa render a este macho que tenta galanteá-la tão pertinazmente:

"She ignores him" (34). Há aqui a evidenciar a capacidade de sedução desta fêmea que, de forma

semelhante à apresentada nos poemas anteriores, faz com que o macho não dê quaisquer sinais

de desistência, mas sim de insistência:

Where he edges to left and to right, flitting

His winds open, titillating her fur With his perfumed draughts, spasming his patterns,

His tropical, pheasant appeals of folk-art,

[.»] Trembling with inhibition, nearly touching -121

Uma vez mais o macho é rejeitado pela fêmea - "And again she's away, dithering blackly." (41)

Persistentemente continua o macho a cortejar a fêmea quando esta subitamente muda de local

-" [...] she clamps to/This time a Daisy." (43, 44) Apesar de não ser referido directamente, ao

final do poema subjaz a ideia de que a fêmea acaba por aceitar aquele parceiro que lhe foi

sorteado aleatoriamente pela natureza - "She's been chosen,/Courtship has claimed her. And he's

been conscripted" (44, 45) - e os preparativos desta última para acolher uma nova união: "[...]

the first/Caresses of the wedding coming, the earth/Opening its petals" (51 - 53). A dimensão

120 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 20. Versos 23 - 30.

121 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 20. Versos 35-40.

64

Page 66: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

visual desta presença animal ganha mais significado e é complementada com a ilustração colorida

de Baskin que prende de imediato a atenção do leitor.

Figura 2

III.

Se os poemas que agora considerávamos parecem, pela sua própria extensão, textos

bastante elaborados, creio ser importante destacar que, por vezes, Hughes recorre a formas

simples para representar os animais. Há poemas em jeito de cantigas construídos de maneira

bastante singela e facilmente memorizáveis pelo leitor. "The Red Admiral", "Dragonfly" e

"Worm"123 são os títulos que corroboram esta minha afirmação. O primeiro destes textos líricos,

um louvor à mais comum das espécies de borboletas nos jardins britânicos124, é composto por

122 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 19, 20.

123 O poema não tem qualquer título no original, mas no Volume 2 da colectânea intitulada Collected Animal Poems que a Faber and Faber publicou em 1995, ele surge com o título "Worm" no índice de Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?.

124 A figura em destaque neste poema tem como nome científico Vanessa Atalanta. Esta é uma borboleta que ostenta três cores: o preto, o vermelho e o branco. Destas, a que predomina é o preto, uma vez que parece servir de pano de fiindo para as outras cores apenas visíveis em pequenas manchas ou nos extremos das asas

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Page 67: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

quatro dísticos que retratam as capacidades ornamentais desta borboleta, primeiro no passado -

"This butterfly/Was the ribbon tie/On the Paradise box" (1 - 3) - e, já no final do poema, no

presente, quando a borboleta é justaposta à figura humana.

O where's the girl

Who wouldn't go bare

As a thistle to wear

Such a bow in her hair?125

Esta aptidão ornamental parece ser também a função mais importante da borboleta se atentarmos

na ilustração que acompanha o poema (Figura 3)m, ilustração esta que capta o olhar do leitor

e que pode ser vista como uma outra forma de representar aquilo de que se ocupa o texto lírico,

ou mesmo uma extensão do próprio poema.

Figura 3

(como é o caso do branco) ou a meio destas em manchas de dimensões um pouco superiores (como é o caso do vermelho). Ver Easterbrook, Butterflies of the British Isles, 6.

125 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 31. Versos 5 - 8.

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 31.

66

Page 68: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

O segundo poema deste grupo, tal como o anterior, constrói a sua sonoridade sobre

rima emparelhada, o que ajuda a dar-lhe condições lúdicas. "Now let's have another try/To love

the giant Dragonfly" (1,2) são os versos de abertura daquele poema que é, uma vez mais, um

louvor a uma presença animal - a libelinha - e que acarreta alguma ironia na caracterização inicial

deste insecto pois, antagonicamente ao seu tamanho real, é caracterizado como gigante. Após

a personificação desta libelinha - através da grafia do substantivo com letra maiúscula - Hughes

estabelece o cenário - "beside the peaceful water" (3) - e parte para o louvor da agilidade de

movimentos da figura em destaque no poema: "Suddenly he's gone. Suddenly back. A/Scary

jumping cracker -" (9, 10) O olhar do sujeito poético acompanha os movimentos ágeis da

libelinha que se movimenta em torno da segunda pessoa que o poema interpela - "Here! Right

here!/An inch from your ear!" (11, 12) -, entidade esta directamente desafiada a ter voz no

poema quando no final deste texto lírico é referido: "Now say: 'What a lovely surprise!'" (16).

Da descrição da presença animal no poema há ainda a salientar a incidência do sujeito poético

nas componentes físicas da libelinha que são de dimensões muito pequenas. Um dos elementos

que chama a atenção do leitor consiste nos olhos: "and his eyes pop" (6); "Out of the huge

cockpit of his eyes -!" (15). O outro elemento, embora não referido directamente, é constituído

pelas asas, como podemos verificar nalguns versos: "he whizzes to a dead stop" (5); "Sizzling

in the air/And giving you a stare" (13, 14). Devo ainda destacar que, como exemplifica este

poema, apesar de esta dissertação se concentrar na representação visual de figuras animais de

dimensões reduzidas na obra poética de Ted Hughes, por vezes a representação auditiva se

relaciona com a visual de fornia a complementar o retrato apresentado de alguns animais. Assim,

torna-se importante referir o valor onomatopaico das sibilantes - particularmente de IzJ e /s/ - em

67

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O Olhar do Falcão

relação ao voo da libelinha, presente nos seguintes vocábulos: "whispy", "whizzes", "snaky",

"stripes", "sting", "scary", "sizzling". A figura que ilustra o poema dá realce aos olhos e às asas

deste insecto e, desta forma, parece uma extensão do próprio poema.

Figura 4 w /

Em "Worm", tal como em "The Red Admirai", o poeta retira efeitos particulares do uso

da rima emparelhada. Ao leitor é dada inicialmente a referência temporal, técnica esta já usada

em "Two Tortoiseshell Butterflies" - "O early one dawn I walked over the dew" (1). Tal como

acontecera no poema anterior, é também de destacar que a entidade leitor é nomeada

directamente no poema quando o sujeito poético declara: "And I saw a strange thing I will now

tell to you."(2)128 Este relato inicia-se oferecendo ao leitor a referência ao espaço físico: "Where

mud had been trampled at a trough by the cattle/[...] Till it looked like the field of the famous

Somme battle" (3,4). Devo referir que, este excerto particular do poema, alude a uma batalha

que decorreu na Flandres, um dos piores episódios da I Guerra Mundial, e no qual morreram

milhares de soldados. O início do poema é característico da balada popular e a justaposição do

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 29.

Sublinhado meu.

68

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O Olhar do Falcão

registo idílico - "dawn", "dew" - à evocação da lama do Somme é, do meu ponto de vista, uma

mescla perturbadora. Técnica recorrente é depois a preocupação do sujeito poético em descrever

detalhadamente ao leitor os contornos exactos daquilo que foi presenciado: "I saw two bare

creatures, stark naked were they/Full length in the mud [...]./They were big blue-nosed

lobworms" (5 - 7). À medida que ao leitor vai sendo oferecida a descrição do observado há uma

inveja implícita nas palavras do eu do poema, inveja essa pelo facto de não haver qualquer tipo

de preocupação naqueles seres observados: "And they had not a care for the world and its

wrongs." (10) Há também a manifestação de um certo êxtase por parte do eu do poema: "And

that was a wonder to watch in the dawn/In the world wet with dew, like a garden newborn." (13,

14)

A estrofe seguinte metaforiza a cena observada através da alusão ao episódio bíblico da

queda do homem: "It was Adam and Eve in the earliest light -/And I was like Satan, for they

suddenly took fright." (15,16) Só a partir deste momento é que há a consciência nas figuras em

destaque no poema que estão a ser objecto de observação. O poema adquire novos contornos

e a perturbação destes seres reflecte-se no seu comportamento:

Their loving was chilled at the touch of my stare -OI almost could hear it, their cry of despair

As like snapping elastic, they whipped back apart And I can still feel it, the shock and the smart129

129 Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 112. Versos 17-20.

69

Page 71: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

O final do poema, com o olhar do sujeito poético sempre centrado nas minúsculas presenças

animais, mostra a separação das duas entidades "As they vanished in earth, each alone to its den."

(21). Há igualmente um enlevo expresso na afirmação do sujeito lírico que singulariza a cena

observada: "And I've never seen such a marvel again." (22)

IV.

Continuando com presenças animais de dimensões diminutas e que habitualmente

passam despercebidas, o terceiro grupo de poemas mostra outra estratégia de representação por

parte de Hughes: como forma de atribuir uma peculiar veracidade à representação ou como

forma de engrandecer estes seres de formas reduzidas, Hughes personifica as figuras de alguns

poemas e é o próprio discurso destas que maior relevo tem na construção poética. Gostaria de

aqui sublinhar que essa peculiar veracidade passa pela sensação do contacto imediato com a

"consciência" dos seres em causa, que assim são constituídos na(s) máscaras, através das quais

a enunciação se nos propõe. É precisamente isto que acontece em "Sandflea", "Snail", "Worm"

e até mesmo "Ragworm", este último com características um pouco distintas dos primeiros,

como mais adiante neste texto se verificará. O primeiro destes poemas, composto por apenas

duas estrofes, poderia ser dividido em duas partes, sendo a primeira a correspondente à cantiga

desta figura animal. Esta cantiga com tons exacerbados - "The Sandflea cries" (2) - espelha um

certo narcisismo:

'O see my eyes!'

70

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O Olhar do Falcão

[■■■]

'So beautiful,

So blue, they make

The sea seem dull.'130

Para além do narcisismo que esta canção expressa, há ainda a referir que o início desta canção

leva o leitor a se centrar num pormenor particular desta pulga marinha: os olhos.O início da

segunda estrofe, através da conjunção adversativa "But", contrasta com a exaltação do eu

oferecida no início da primeira. O sujeito lírico mostra ao leitor que uma espécie de medo se

apodera da figura em destaque no poema: "But then she hides/Beneath the wrack." (6, 7). Será

a cantiga de tom narcisista anteriormente citada que dará origem à resposta do mar naquela que

é a segunda estrofe do poema e aquela que, em meu entender, é também a segunda parte deste

texto lírico: "Give back/That China blue/I lent to you" (9-11). Esta segunda parte leva ainda ao

desvio da concentração do olhar do leitor: do pormenor particular inicialmente apresentado no

poema - os olhos da presença animal - passa-se ao espaço físico e, portanto, mais geral, de onde

tudo aconteceu: "Across the sands." (14) A ilustração do poema ironiza as pretensões

manifestadas na voz do insecto, uma vez que realça a sua insignificância - enquanto que a voz

do sandflea exulta no que entende ser a superioridade da sua beleza:

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 6. Versos 1-5.

71

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O Olhar do Falcão

Figura 5 131

"Snail", tal como havia acontecido no poema anterior, personifica não só a sua figura

de destaque, mas também os elementos naturais que à sua volta se encontram. O início do poema

poderá causar alguma estranheza no leitor devido à forma como é apresentado o caracol. É que,

tal como havia acontecido no poema anterior, é estabelecida uma comparação entre dois seres

de dimensões opostas - o caracol e a baleia:

With skin all wrinkled

Like a Whale

On a ribbon of sea

Comes the moonlit Snail.132

Esta aproximação é ainda singular pelo elemento de comparação - a pele - visto que este não é,

na realidade, pertencente ao caracol. Não obstante, o que aqui importa vincar é que, embora a

131 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 6.

132 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 30. Versos 1 - 4.

72

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O Olhar do Falcão

informação zoológica a contrarie, esta comparação é permitida pela semelhança visual que, à

partida, pode ser estabelecida entre um caracol e uma baleia.

O observador começa por mostrar ao leitor um pormenor da figura em destaque no

poema - a pele - para de seguida deslocar o seu olhar para o espaço físico. Pelo meio, vai dando

voz aos elementos naturais e registando as diferentes reacções provocadas pela deslocação do

caracol: primeiro na couve - "The Cabbage murmurs:/T feel something's wrong!"' (5, 6) - e

depois na rosa - "The Rose shrieks out:/' What's this? O what's this?'" (9,10). O final do poema

mostra, uma vez mais, uma nova deslocação do olhar para mostrar como que um plano geral do

espaço físico onde tudo ocorreu - "[...] the whole garden" (13). É como se o poeta recorresse

a uma câmara com a qual registasse, em alternância, grandes planos e imagens em close-up. A

todos estes elementos há ainda a acrescentar um auto-engrandecimento do eu do poema pois

as suas respostas mostram que ele se afirma como individualidade que partilha do divino:

'"Shhh!/I am God's tongue.'" (7,8) e ainda "'Shhh!/I am God's kiss.'" (11,12) A grandiosidade

com que é apresentado este caracol é paralela à ilustração que o acompanha, já que esta ocupa

quase metade da página do livro em que o poema está impresso.

73

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O Olhar do Falcão

Figura 6

A última estrofe - "So the whole garden/[...] / Suffers the passion/Of the Snail." (13 - 16)134 -,

pela escolha verbal do autor, mostra a aceitação desta figura, que se apresenta como divina, por

parte do espaço natural e dos seus elementos.

A celebração do eu até aqui evidente nos dois primeiros poemas deste grupo contrasta

com a humildade cantada pela figura em destaque no poema "Worm". De realçar que, nos três

breves primeiros versos, o autor se concentra de imediato na descrição física da presença animal

do poema - "A pink, wet worm" (2) -, informa o leitor daquilo que está a efectuar e desloca o

seu olhar para situá-la espacialmente - "Sings in the rain" (3) - e ainda descreve a forma como

o lamento desta é efectuado - "Lowly, slowly" (1). Logo de seguida dá voz a esta minhoca, voz

essa que é um lamento pela sua fealdade e a expressão de uma procura intensa de alguns

elementos capazes de proporcionar elegância e beleza a si própria:

133 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 30.

134 Sublinhado meu.

74

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O Olhar do Falcão

I'm searching hard.

If I could find

My elbow, my hair,

My hat, my shoe,

I would look as pretty

As you and you.'135

Este final tem um tom triste pois este desejo da figura em destaque no poema é algo impossível

de alcançar, tal como se exprime pelo uso do segundo condicional: "I'd look". Contrariamente

ao texto lírico que dá ênfase ao lamento da figura em destaque no poema pela sua fealdade, a

ilustração concentra-se no destaque ao espaço físico - mencionado no terceiro verso - no qual

se desloca a entidade aqui retratada.

Figura 7 136

135 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 25. Versos 7 - 12.

136 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 25.

75

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O Olhar do Falcão

"Ragworm" - poema que mostra a fixação do olhar daquele que observou unicamente

na presença animal em destaque - está incluído neste conjunto de poemas porque, apesar de não

evidenciar graficamente o discurso directo através das aspas, pela leitura do poema entende o

leitor que este é também proposto na voz da figura nomeada no título. Isto é particularmente

manifesto na última estrofe: "Return the world/To me, the Worm." (15, 16) O poema mostra

ecos da grandiosidade da figura em destaque numa época passada - "Ragworm once/Was all the

rage." (1, 2).0 texto lírico prossegue com o lamento desta minhoca marinha pela existência de

novas modas ou tendências - "rage" (2), "age" (4) e "fashion" (6) - e o facto de ter sido

substituída por outra figura: "This foolish age/Offish is in." (4, 5)137 Devo aqui acrescentar que

as relações de força entre animais, tema recorrente na poesia hughesiana, estão aqui patentes na

forma como o sujeito poético retrata o sucumbir do mais fraco perante o mais forte - neste caso

ragworm e os peixes, respectivamente - espécies estas pertencentes ao ambiente marinho.

O poema é, simultaneamente, um retrato saudosista que a figura principal oferece de

uma época passada e um grito de esperança numa época futura que trará novamente domínio:

Let future time Be soon unfurled.

Bring all such schools To end of term.

Return the world

Sublinhado meu.

76

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O Olhar do Falcão

To me, the Worm.'38

A ilustração - Figura 8 m -, que funciona aqui como que sendo um complemento do texto pois

concentra-se na descrição visual desta presença animal, retrata os elementos que distinguem este

ser de outros da mesma espécie e que facilitam a sua deslocação: os anéis e as patas.140

Figura 8

V.

Uma característica recorrente dos poemas hughesianos, como já foi visto nalguns

poemas do corpus desta dissertação, é o facto de o seu autor louvar e engrandecer as figuras

representadas. "Mosquito", "Spider" e "The Mayfly is Frail" evidenciam esta característica de

forma bem explícita. Recorrendo o autor ao uso de pleonasmo, o início do poema "Mosquito"

fala de sucessivos actos de renascimento: "To get into life/Mosquito died many deaths." (1,2)

138 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 14. Versos 11-16.

139 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 14.

140 The Oxford English Dictionary, 2nd ed., Vol. Ill (Oxford: Clarendon Press, 1989) 1113.

77

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O Olhar do Falcão

O avançar da leitura mostra a adopção de um tom irónico por parte do sujeito poético aquando

da enumeração das dificuldades do meio natural pelas quais a figura em destaque no poema teve

de passar:

The slow millstone of polar ice, turned by the galaxy,

Only polished her egg.

Sub-zero, bulging all its mountain power,

Failed to fracture her bubble.

The lake that squeezed her kneeled,

Tightened to granite - splintering quartz teeth,

But only sharpened her needle.141

O clímax deste tom irónico é atingido no décimo verso quando o sujeito lírico, recorrendo uma

vez mais ao uso de relações de força, mostra a Terra como elemento que sucumbe à presença

animal do poema: "Till the strain was too much, even for Earth." (10) Há novamente a

enumeração de relações de força entre os elementos naturais e mosquito, assim como a

personificação daqueles: "The stars drew off, trembling./The mountains sat back sweating./The

lake burst." (11 - 13) O final do poema, deixando de lado toda a referência até então dada a

alguns elementos naturais, mostra a atenção do sujeito poético e a do leitor centrada unicamente

no mosquito. Segue-se, então, a celebração da grandiosidade desta entidade de dimensões

minúsculas, entidade esta que é metaforizada na figura de um astro e cujos movimentos são

Hughes, A March Calf, 14. Versos 3 - 9.

78

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O Olhar do Falcão

descritos da seguinte forma: "Mosquito/Flew up singing, over the broken waters -/A little haze

of wings, a midget sun." (14 - 16)

"Spider" tece igualmente louvores à figura retratada, mas diferencia-se do poema

anterior tanto por não adoptar um tom irónico, como por incluir no seu texto a admiração

expressa da voz autoral pela figura do poema. Assim, este inicia-se com uma constatação: "On

the whole, people dislike spiders." (1) Esta posição é imediatamente distinguida da posição do

eu do poema que se apresenta como alguém coleccionador e devoto deste ser: "[...] a passionate

heart" (3), "[...] dedicated priest of the spider." (4) A segunda estrofe enumera os motivos para

tamanha admiração, motivos estes que, graças ao olhar atento do sujeito poético, se prendem

com a própria anatomia deste ser de dimensões reduzidas. A admiração passa também pela

perícia da aranha na construção do artefacto que é a teia, artefacto este que, comparativamente

ao seu criador, pode atingir extensões colossais:

The anatomy - so prodigal in wonders! And the strategies for reproduction, For gratifying the hungers, beggar belief.

The web is part acronym, part phone, Part boutique front for the real business -A sparkle of his virtuoso wit Cast over triffles, to beguile fools.142

A última estrofe -

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 81. Versos 5-15.

79

Page 81: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Even so, he's ignorant of his best art,

Which is to dangle, on his invisible harness,

On to my page, from my hair.

Then the thought 'Thank God - I'm in for some luck!'

Really startles me.

And for a whole hour after, I feel much better

And, though he doesn't feel it, I love him.143 -

alude àquela que o sujeito poético designa como "a melhor das suas artes" e esta afirmação

poderá ter, na minha opinião, duas leituras: uma delas está relacionada com o livro de que fala

o coleccionador de aranhas mencionado no início do poema. Neste caso, estaria assim justificada

a última afirmação do poema - "I love him." - pois este sentimento prende-se com o facto de ter

conseguido mais um exemplar para a colecção; a outra interpretação poderá estar relacionada

com as questões da escrita e, neste caso, a página referida poderá significar a página em que está

impresso o poema e o louvor à teia poderá ainda estar relacionado com o facto de ser motivo

para a redacção de um poema. Além disso a teia poderá ter um sentido metapoético: se

atentarmos na impressão gráfica do texto e na gravura que o acompanha, o que me parece ser

retratado é que o próprio poema é a teia na qual está presa a aranha, como se pode constatar ao

olhar para a página.144

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 81. Versos 16-22

Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 81.

80

Page 82: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Spider

On the whole, people dislike spiders. Where is my hoc* of spiders? A book of devotions Penned by a passionate heart, By a dedicated priest of the spider.

The anatomy - so prodigal in wonders! And the strategies for reproduction, For gratifying the hungers, beggar belief. Web-weaving Is the slightest of the spider's talento Compared to the feats of prestidigitaBon That usher his offspring to their independence. The web is part acronym, part phone, Part boutique front for the real business - .. c ( A sparkle of his virtuoso wit Cast over trifles, to beguile fools.

Even so, he's ignorant of his best ai%,t „ > Which is to dangle, on his Invisible" harness, On to my page, from my hair. Then the thought Thank God - I'm in for some

luck!' ,,. Really startles me. And for a whole hour after, I feel much better And, though he doesn't feel ft, 1 love him.

W

Figura 9

Relativamente à técnica de representação usada neste poema, é importante destacar que, o início

do poema mostra o olhar do sujeito poético centrado na aranha, e o final revela um desvio desse

mesmo olhar que deixa de parte a presença animal e passa a se centrar no próprio sujeito poético,

como se pode verificar através da leitura dos últimos versos do poema:

On to my page, from my hair.

Then the thought 'Thank God - I'm in for some luck!'

Really startles me.

And for a whole hour after, I feel much better

81

Page 83: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

And, though he doesn't feel it, I love him.

Certamente devido à própria vivência da efémera que, após atingir o estado adulto, vive

apenas algumas horas porque deixa de se alimentar146 e igualmente devido às dimensões pequenas

deste parente da libelinha, a fragilidade anunciada no título de "The Mayfly is Frail" pode, à

primeira vista, induzir o leitor em erro. Isto porque, enquanto no título e no primeiro verso o

olhar do sujeito poético se centra na libelinha e fala da sua fragilidade, a partir da segunda

estrofe aquele centra-se numa outra descrição: "Erupting floods, flood-lava drag across

farms,/Oak-roots cartwheeling -/The inspiration was seismic." (2 - 4) O poema prossegue

fazendo referência a um artista - "Some mad sculptor" (5) - que, do meu ponto de vista, não é

mais que a metaforização da figura animal em destaque no poema. Segue-se uma descrição

daquela que foi a actividade deste escultor, ou melhor, da efémera:

In frenzy remaking the river's rooms

Through days and nights of bulging shoulders

And dull bellowing - cooled with cloudbursts -

Needed all his temperament.147

O verso décimo demarca duas partes distintas no poema, graças ao uso do advérbio de tempo

"Now". Este marca uma primeira parte no poema com o olhar do sujeito poético centrado na

actividade, um tanto ou quanto duradoura - "Through days and nights" (7) -, da efémera, e uma

145 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 81. Versos 18-22.

146 Ver Discovery Channel, Insects and Spiders (London: Discovery Books, 2000) 82.

147 Hughes, A March Calf, 94. Versos 6 - 9.

82

Page 84: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

segunda parte que transporta o leitor para o presente - "Now he sprawl" (10) - e que mostra o

olhar do sujeito lírico que se desloca e se centra no espaço onde a efémera se movimenta: "[...]

the river's opened side." (18) É ainda de realçar que, porque inicialmente neste poema se falava

de fragilidade, este final revela uma entidade antagónica àquela que o título do poema apresenta:

"A shimmering beast" (17).

VI.

Ao famiïiarizarmo-nos com a obra de Ted Hughes notamos, por vezes, que o autor

também mostra o lado caricato e irónico das figuras em destaque nos poemas. Antagonicamente

aos poemas até agora analisados, nos quais as dimensões físicas minúsculas contrastavam com

a grandiosidade do ser, neste grupo de construções poéticas Hughes continua a representar

animais de tamanho diminuto, mas esse tamanho é agora retratado como caracterizador da

própria existência dos seres representados. É o que acontece em "Caddis","In the Likeness of

a Grasshopper" e "The Fly".

A figura inicial apresentada no poema "Caddis" surge perante o leitor como débil e,

simultaneamente, de traços estranhos e até depreciáveis:

Struggle-drudge - with the ideas of a crocodile

And the physique of a foetus.

Absurd mudlark - living your hovel's life -

83

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O Olhar do Falcão

Yourself your own worst obstacle.148

Estes primeiros versos mostram um sujeito poético cujo olhar está centrado na descrição da

figura em destaque no poema. Não obstante, o sétimo verso - "Under the river's hurricane." -

evidencia que o seu olhar também não deixa de lado o espaço onde esta mosca-de-água se

movimenta. O sujeito poético prossegue e continua retratando este insecto, primeiro proferindo

uma espécie de juízo de valor carregado de desalento - "You should have been a crab. It's no

good." (8) - e, de seguida, centrando o seu olhar num aspecto físico particular: "Wasp-face"

(11). O tom de desalento é nos versos catorze e quinze substituído por um tom afável, diria

mesmo que quase paternal - "You can nip my ringer but/ You are still a baby.", - justificado pela

criação de analogias aparentes entre esta figura de dimensões reduzidas e outras figuras de forças

grandiosas: "Your alfresco Samurai suit of straws,/Your Nibelungen mail of agates, affirms/Only

fantasies of fear and famine." (16 - 18) Este quadro adquire um cenário diferente no final do

poema quando o sujeito poético, após a apresentação deste ser pequeno, frágil e fraco, faz um

apelo dirigido à participação na abundância da Natureza. Esta chamada acarreta um sentido

imperativo conforme com o modo verbal escolhido: "Hurry up. Join the love-orgy" (19).

Antagonicamente ao início do poema que mostra o olhar do sujeito lírico centrado na figura

animal, o final revela esse mesmo olhar, igualmente concentrado no pormenor, mas desta vez do

próprio espaço natural: "Up here among leaves, in the light rain,/Under a flimsy tent of dusky

wings." (20, 21)

Hughes, A March Calf, 48. Versos 1 - 4.

84

Page 86: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

O segundo poema deste grupo - "In the Likeness of a Grasshopper" - deixa antever pelo

seu próprio título que irá retratar algo que ostenta a forma de um gafanhoto. Esta será, aliás, a

única vez que a figura em destaque no poema é referida directa e expressamente neste. O início

do poema mostra o olhar do sujeito poético centrado em algo ainda pouco definido num espaço

físico: "A trap/Waits on the field path." (1, 2) O avançar da leitura esclarece que este é um

dispositivo pouco consistente, devido aos seus traços físicos: "A wicker contraption, with

working parts,/Its spring tensed and set./So flimsily made" (2- 4) Tal como em "Dragonfly" em

que Hughes recorre à representação auditiva, também aqui se mostra um apelo a outros sentidos

que não exclusivamente a visão: primeiro o olfacto e, seguidamente, a audição:

Along comes a love-sick, perfume-footed Music of the wild earth.

The trap, touched by a breath, Jars into action, its parts blur -

149 And music cries out.

A parte final deste poema mostra uma mudança de tom por parte do eu poético que aqui

abandona a descrição da figura em destaque no poema como sendo desajeitada e chega mesmo

a descrevê-la positivamente: "the beautiful trapper" (16). Mantém-se, porém, o apelo à audição

e chega-se a metaforizar os sons produzidos por esta armadilha no campo: "And takes out the

Song, adds it to the Songs/With which she robes herself, which are her wealth." (18, 19) O

149 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 41. Versos 9-13.

85

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O Olhar do Falcão

poema termina, de forma semelhante ao início deste, como olhar do sujeito poético concentrado

no dispositivo e no espaço físico onde este está inserido: "Sets her trap again, a yard further on."

(20) A contrastar com o tamanho real deste insecto, Baskin ilustrou o poema com uma figura

de dimensões grandes, que ocupa duas páginas do livro.

Figura 10 o u

O poema "The Fly", profundamente carregado de ironia e uma vez mais descrevendo

ao pormenor, causa no leitor alguma estranheza logo após a leitura dos dois primeiros versos:

"The Fly/Is the Sanitary Inspector." (1,2) Segue-se, no poema, a explicação para esta afirmação

surpreendente: "He detects every speck/[...]/Detects it, then inspects it" (2 - 4) Dos versos

subsequentes, é de salientar a alusão directa à própria anatomia da mosca e às partes que são

usadas para auxiliar na detecção de sujidade: "Through his multiple spectacles. You see him

150 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 42, 43.

86

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O Olhar do Falcão

everywhere/Bent over his microscope."(5, 6)151 Esta capacidade da mosca em fixar a atenção

no pormenor em tudo se revela semelhante àquela que será usada mais adiante no poema pelo

eu poético que parecerá ajudado por instrumentos para ampliar o real considerado. A ironia aqui

já anunciada cresce com a progressão do poema pois o sujeito poético, criticando questões

económicas, quiçá criticando a própria sociedade capitalista, advoga o baixo custo deste

inspector sanitário.

He costs nothing, needs no special attention, Just gets on with the job, totting up the dirt.

All he needs is a lick of sugar

Maybe a dab of meat -Which is fuel for his apparatus. We never miss what he asks for. He can manage

With so little, you can't even tell

Whether he's taken it. 152

Será a partir do décimo quinto verso que, tal como anunciei anteriormente, o sujeito lírico,

centrando o seu olhar na presença animal do poema, esboça o retrato físico e minucioso deste

ser, dando particular evidência a aspectos que lhe permitem ser bem sucedido na execução da

sua tarefa. Repare-se que a descrição minuciosa em tudo parece ter sido ajudada por uma lupa

ou um outro instrumento para ampliar:

Sublinhado meu.

Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 61. Versos 7 - 14.

87

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O Olhar do Falcão

In his black boiler suit,

With his gas-mask,

His oxygen pack,

His crampons, He can get anywhere, explore any wreckage,

Find the lost -153

A estrofe seguinte continua a descrição de um retrato detalhado e que, à partida, parece

nauseabundo - "[...] the rot, the stink, and the goo" (25) - da acção deste inspector sobre os seres

mortos: "He'll leave you the bones and the feathers - souvenirs/Dry-clean as dead sticks in the

summer dust." (26, 27) Porém, o que estes dois últimos versos transcritos revelam é que a

mosca, efectivamente, anula o que é nauseabundo, deixando, com a sua passagem, tudo limpo.

Tal como aconteceu anteriormente nos poemas pertencentes a este grupo, o final deste texto

lírico mostra uma mudança de tom por parte do sujeito poético parecendo implicar, em

simultâneo, uma acusação ao ser humano e uma defesa da mosca: "Panicky people misunderstand

him -/Blitz at him with nerve-gas puff guns,/Blot him up with swatters." (28 - 30) O desfecho

do poema, centrando uma vez mais o olhar do sujeito poético em pormenores físicos da mosca,

mostra o engrandecimento e a aceitação plena desta presença animal por parte daquele: "Just

let him be. Let him rest on the wall there,/Scrubbing the back of his neck. This is his rest-minute."

(39, 40) Há ainda a destacar o apelo à visão do leitor na apresentação da beleza, grandiosidade

e magnitude que o retrato final salienta:

Once he's clean, he's a gem.

Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 61. Versos 15-19.

88

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O Olhar do Falcão

A freshly barbered sultan, royally armoured

In dusky rainbow metals.

A knight on a dark horse.154

VII.

Como já várias vezes referi, a presença da paisagem natural é uma característica

fundamental da obra hughesiana e, algumas vezes, a atenção que lhe é dedicada por Hughes faz

com que adquira o mesmo grau de importância dos animais. Isto é visível em "Performance" e

"Gnat-Psalm".

O primeiro destes poemas centra-se inicialmente no cenário em que a acção irá decorrer

e metaforiza o espaço natural da beira-rio na imagem do teatro, em cujo palco actuará a figura

principal do poema: "Just before the curtain falls in the river/The Damselfly, with offstage,

inaudible shriek/Reappears weightless." ( 1 - 3 ) Concentrando o seu olhar num aspecto mais

pormenorizado, parte depois o sujeito lírico para a descrição minuciosa deste insecto:

Hover-poised, in her snake-skin leotards,

Her violet-dark elegance.

Eyelash-delicate, a dracula beauty,

In her acetylene jewels.

Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 63. Versos 41 - 44.

89

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O Olhar do Falcão

Her mascara smudged, her veils shimmer-fresh -

Logo de seguida, porém, o olhar do sujeito poético retoma a sua atenção na Natureza. Começa

por situar temporalmente - "Late August" (9) - para em seguida descrever todo o ambiente do

final do Verão e indícios da chegada do Outono:

Some sycamore leaves

Already in their museum, eaten to lace.

Robin song bronze-touching the stillness

Over posthumous nettles. The swifts, as one,

Whipcracked, gone. Blackberries.156

Depois de referido o cenário há uma concentração do sujeito poético num aspecto particular da

paisagem. É então que aquele se dá conta de uma metamorfose da presença animal, metamorfose

essa que parece ser justificada pela intervenção do insecto numa peça particular: "still in her

miracle play" (17).157 É talvez ainda devido a esta metamorfose que, no início do poema, a figura

em destaque é anunciada como "Damselfly" (2) e após a transformação é referida já sob outra

designação - "Phaedra Titania" (21)-, designação esta que nada tem a ver com o nome científico

deste insecto.158 O que esta designação particular parece revelar é a capacidade criativa de

155 Hughes, A March Calf, 70. Versos 4 - 8. 156 Hughes, A March Calf, 70. Versos 9-13.

157 O chamado "miracle play" é considerado uma vertente tardia do chamado "mystery play". Este tipo de teatro retratava a vida dos santos e lendas de acções milagrosas ou até mesmo milagres feitos pela Virgem Maria. O final da peça mostra sempre uma intervenção milagrosa. Veja-se A. C. Cawley, ed., "Everyman" and Medieval Miracle Plays (London: Everyman Paperbacks, 1993).

158 Ver Dan Powell, A Guide to the Dragonflies of Great Britain (Essex: Arlequin Press, 1999) 46-73.

90

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O Olhar do Falcão

Hughes que, ao juntar duas acepções distintas - Fedra/fragilidade e Titânia/força - traça, assim,

o retrato de características antinómicas do damselfly que, apesar de alguma força até aqui

evidenciada, o final do poema revela caminhar para a sua morte: "Stepping so magnetically to

her doom!" (25) Através do relato do observado pelo eu poético, ocorre então uma nova

deslocação do seu olhar para um outro cenário, não sendo especificado qual - "Switches her

scene elsewhere." (29) Contudo, uma leitura atenta dos últimos quatro versos do poema revelam

um olhar atento ao pormenor, como já vem sendo habitual nos poemas do corpus desta

dissertação:

(Find him later, halfway up a nettle, A touch-crumple petal of web and dew -

Midget puppet-clown, tranced on his strings,

In the nightfall pall of balsam.)

"Gnat-Psalm"160 inicia-se, como o próprio poeta esclarece, com uma epígrafe que é

simultaneamente um excerto de um provérbio hebraico: "The Gnat is of more ancient lineage

than man." O início do poema situa o leitor temporalmente pois fala das acções da figura em

destaque num tempo específico: "[...] at evening" (1). Essas acções são então listadas e

159 Hughes, A March Calf, 169. Versos 31-34.

160 Peter Redgrove fez um estudo comparativo e aproximou tematicamente este poema a "The Thought-Fox" (Ver Gammage, ed., The Epic Poise, 47 - 51.) Redgrove concluiu: "I think of the 'Gnat-Psalm' as the flip side of 'The Thought-Fox'. The fox is bone and flesh before it is a printed page, it is concentrated, intense, egoistic; the gnats are horny ampoules, brimming with elixir; self-forgetful, they have the sun running in their veins and by kinship with the sun are a portion of deity. They, like the thought-fox, are writing, but writing as a cabala of improvisation in their dance. The fox is a stealthy phallus; the gnats are starting a contmual orgasm of life. As an animal, the fox can live and die, insects however metamorphose continually and these are rapidly becoming the sun itself." (Gammage, ed., The Epic Poise, 49.)

91

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O Olhar do Falcão

apresentadas de forma minuciosa, como já vem sendo habitual, recorrendo o autor ao uso do

gerúndio de forma a atribuir uma certa duração à acção e, pelo meio, intercalando essas mesmas

acções com descrições do espaço físico:

Scribbling on the air, sparring sparely,

Scrambling their crazy lexicon,

Shuffling their dumb Cabala,

Under leaf shadow

Leaves only leaves

Between them and the broad swipes of the sun

[...]

Dancing

Dancing

Writing on the air, rubbing out everything they write

Jerking their letters into knots, into tangles161

O leitor é seguidamente levado a desviar o olhar deste espaço e a centrar-se naquela que é vista

como a canção da presença animal do poema, canção esta marcada pelo manifesto egocentrismo

desta:

singing

That the cycles of this Universe are no matter

That they are not afraid of the sun

That the one sun is too near

[...]

That they are their own sun

161 Hughes, The Thought-Fox, 7. Versos 2 - 1 3 . Sublinhado meu.

92

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O Olhar do Falcão

Their own brimming over

At large in the nothing

[...]

That they are the nails

In the dancing hands and feet of the gnat-god

That they hear the wind suffering

Through the grass And the evening tree suffering162

O olhar do observador e, consequentemente do leitor, concentra-se depois no ambiente que

circunda todo este cenário movimentado : "The wind bowing with long cat-gut cries/And the long

roads of dust/Dancing in the wind" (31 - 33). A estrofe seguinte louva a agilidade deste ser e

antecede uma concentração na descrição de pequenos pormenores físicos: "Their little bearded

faces/Weaving and bobbing on the nothing/[...]/And their feet dangling" (45 - 48). O final do

poema, continuando a descrever os movimentos quase estonteantes da dança, louva a figura em

destaque e atribui-lhe dimensões divinas: "And God is an Almighty Gnat!/You are the greatest

of all the galaxies!" (53,54) Há ainda a salientar a referência explícita à relação eu poético/figura

do poema através dos pronomes possessivos:

My hands fly in the air, they are follies My tongue hangs up in the leaves My thoughts have crept into crannies

Your dancing

Your dancing

162 Hughes, The Thought-Fox, 7, 8. Versos 16 - 30.

93

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O Olhar do Falcão

Rolls my staring skull slowly away into outer space.163

O final, como podemos concluir pela leitura do excerto anterior, confirma um certo estado de

êxtase demonstrado pelo sujeito poético. Além disso, o olhar do sujeito poético que havia

observado e retratado minuciosamente a dança da figura em destaque no poema, desloca-se para

um local menos restrito e mais amplo como o espaço referido nas palavras com que se encerra

o poema: "[...] into outer space."

VIII.

Ted Hughes usa por vezes figuras animais de dimensões reduzidas como uma espécie

de pretexto para discutir questões relacionadas tanto com o ser social como com o indivíduo

isolado - "Ants"e "Bees'VThe Honey Bee", respectivamente - ou então para falar de

nascimento e morte - "Saint's Island" - ou até representar o fim da vida no meio natural, como

acontece em "A Cranefly in September".

O início do poema "Ants" lança questões -

Can an Ant love an Ant?

Can a scissor-face

Kiss a scissor-face?

Can an Ant smile? 164 -

163 Hughes, The Thought-Fox, 8, 9. Versos 55 - 60.

164 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 58. Versos 1 - 4.

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O Olhar do Falcão

às quais o quarto verso responde: "It can't." Seguindo a mesma estratégia, a estrofe seguinte

também se inicia com uma questão, questão esta que se prende com a agitação de um

formigueiro: "Why all that coming and going?" (5) Há seguidamente uma concentração do olhar

no formigueiro e o resultado é a descrição dos movimentos das formigas. Nesta descrição o autor

recorre ao uso de verbos que vêm reforçar a ideia de constante agitação no formigueiro - "They

run, they wave their arms, they cry -"l65 (6) - e todo este formigueiro, embora dando destaque

a um único elemento, é ilustrado no poema, apresentando-se como pano de fundo.

Figura 11

Os versos 7 e 8 oferecem ao leitor uma metáfora - "The Ants' nest is a nunnery/Of holy

madwomen." - que será entendida e completada na estrofe seguinte: "They race out, searching

for God./They race home: 'He's not there!'" (9, 10). É importante perceber que se alude aqui

à procura de Cristo no sepulcro por um grupo de mulheres [São Mateus (28:1) fala de "Maria

165 Sublinhado meu.

166 Hughes (Poems), and Riddell (Illustrations), The Iron Wolf, 59.

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O Olhar do Falcão

Madalena e a outra Maria"], no terceiro dia após a sua morte.167 O não encontro da entidade

divina provoca uma reacção primeiro de negação e depois de desespero: "And their mad heads

nod, nod, nod,/And they stagger in despair." (11,12) As dimensões do desespero são elevadas,

mas servem também para descrever um ser, por um lado, a tender para o frágil - "[...] a body

that's / Part hard little knots" (18,19) - e, por outro lado, com um valor dilacerante e incendiário

metaforizado na gota de cobre: "And part a scalding blob/Of molten copper trickling/Through

a burning house." (20 - 22) Após a atenção centrada nos movimentos particulares deste

formigueiro, o final do poema, a contrastar com toda a agitação anteriormente descrita expressa

pela conjunção adversativa "But", mostra que o olhar daquele que observou e o do leitor recai

agora no ambiente terreno. Este ambiente revela-se calmo, um tanto ou quanto indiferente a toda

aquela agitação: "But the Sun's great yokel, Earth, only yawns and/scratches the tickling." (24,

25)

"Bees", poema que não é mais que o louvor ao produto de uma colmeia - o mel - e a

valorização do trabalho feito em comunidade para atingir este fim, retrata, tal como o poema

anterior, uma comunidade em constante movimento e agitação num momento muito particular

e especial:

At a big wedding

The bees are busy.

Everywhere there are bridesmaids

167 A este respeito ver São Mateus, 28:6 ("Não está aqui: ressuscitou como disse. Vinde e vede o lugar em que ele repousou"), São Lucas, 24:6 ("Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos do que ele vos disse, quando ainda estava na Galileia") e ainda São Marcos, 16:6 ("Ele falou-lhes: 'Não tenhais medo. Buscais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou, já não está aqui. Eis o lugar onde o depositaram.'") Sublinhados meus.

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O Olhar do Falcão

Almost brides.168

O espaço físico em que se concentra o olhar do sujeito poético também é sintomático de agitação

e dos ruídos circundantes: "And the air/All round the May hive/Twangs" (5 - 7). Há,

seguidamente, uma imagem de submissão e reverência - "The bees fall/On to their knees, and

humbly head-down crawl" ( 13 -14) - e a configuração da colmeia como um local sagrado : "[...]

crammed church" (15). Este templo tem papel importante para as abelhas, como refere de

seguida o sujeito lírico: "Where they are fattening/With earth's root-sweetness" (16, 17). O

poema refere ainda a figura mais importante para esta comunidade que, inicialmente, é vista

como "The One" ( 19) para no final do poema, através da deslocação do olhar do eu poético para

um cenário minucioso, ser nomeada de forma mais explícita:

The orchard is dizzy with bells. [...]. The rumbling, mumbling

Priestly bee, in a shower of petals, Glues Bride and Groom together with honey.169

O tecer de elogios ao fabrico do mel, embora indirectamente, é um dos assuntos

retomados em "The Honey Bee" e este surge sob a forma da figura da comparação - "The Honey

Bee/Brilliant as Einstein's idea" (1, 2). Este louvor contrasta com aquilo que transmite, de

168 Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 51. Versos 1 - 4.

169 Hughes (Poems), and Flather (Illustrations), What is the Truth?, 51, 52. Versos 21 - 24. Sublinhado meu.

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O Olhar do Falcão

seguida, o verbo modal na forma negativa: "Can't be taught a thing" (3).170 Tal como já

aconteceu, nomeadamente em "Snail", o autor recorre à comparação entre dois seres de

dimensões antinómicas: a abelha e o sol - "Like the sun, she's on course forever." (4) -, sendo

esta comparação sobretudo um pretexto para celebrar aquele ser dimensionalmente pequeno.

Recorrendo à técnica da concentração do olhar em determinado pormenor tantas vezes neste

texto referida, a segunda estrofe mostra, desta vez, não o olhar do sujeito poético, mas sim o da

abelha centrado naquelas que podem ser vistas como fornecedoras da matéria-prima para o

fabrico do mel: as flores.

As if nothing else at all existed

Except her flowers. No mountains, no cows, no beaches, no shops. Only the rainbow waves of her flowers

[...]

A flying carpet of flowers

- a pattern

Coming and going - very loosely woven -

Out of which she works her solutions.171

A centralidade das flores no mundo da abelha contrasta com a importância que usualmente é

atribuída ao sol, o outro elemento em destaque no poema, e que é tido como fonte de vida. É por

170 Sublinhado meu.

171 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 39. Versos 4 - 13. Sublinhado meu.

98

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O Olhar do Falcão

este motivo que o sujeito poético declara: "But the Honey Bee/Cannot imagine him [the Sun],

in her brilliance" (17, 18). Apesar desta afirmação, o final do poema mostra o reconhecimento

da presença do Sol no mundo natural - sobretudo sobre as flores - por parte do sujeito lírico:

"Though he's a stowaway on her carpet of colour-waves" (20). As dimensões pequenas da

abelha são esquecidas quando o leitor atenta na ilustração minuciosa de Baskin, concebida

particularmente para este poema. É que à ilustração foi reservada uma página do livro, espaço

este quase por inteiro preenchido.

Figura 12 m

"Saint's Island" é um poema cuja temática poderá ser apresentada numa frase simples:

o nascimento e o anúncio da morte das efémeras. Este nascimento é apresentado de forma

indirecta, mas com conotações positivas - "This is a day for small marvels." (1) - e o motivo é

logo apontado: "The Mayflies are leaving their Mother" (2). O sujeito poético centra então a sua

atenção no ventre que alberga estes seres - o lago -, como mostra o seu relato sobre este espaço

172 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 38.

99

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O Olhar do Falcão

observado: "The ridgy Lough/Weird womb." (4, 5). As efémeras são, de seguida, descritas

como pequenos monstros que em conjunto são aqui chamados "The Green Drake" (8) e cuja

única vontade é a de nascer: "But today - it wants to be born." (15) Continuando com o olhar

centrado no lago, há a partir do nono verso uma associação da vida à matéria grosseira que é a

lama e que também se encontra no mesmo ventre de onde irão nascer as efémeras. Salienta-se

depois, naquele que é uma espécie de refrão do poema, a temática central: "The Mayflies are

leaving their Mother." (27)

Com o objectivo de descrever ao leitor este nascimento de forma mais pormenorizada,

o sujeito poético, utilizando de forma explícita no seu discurso a analogia fotográfica, aproxima-

se um pouco mais de toda a cena: "I glimpse one labouring - a close-up/In the brow of a wave./I

glimpse the midget sneeze -" (28 - 30)173. Esta aproximação parece também ter sido efectuada

por Baskin que ilustrou o poema com uma figura bastante pormenorizada e de dimensões

grandes já que ocupa quase por completo duas páginas do livro.

Sublinhado meu.

Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 28, 29.

100

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O Olhar do Falcão

Esta aproximação relembra ao sujeito lírico algo passado, cuja contemplação o poema regista

entre parêntesis, como um aparte:

(One time I found one had failed.

It wallowed in the oil of light.

I saw through my lens a tiny leech

Corkscrewed into its head.)175

Após análise do excerto, uma vez mais podemos verificar a referência explícita tanto à analogia

da câmara como, através do adjectivo "tiny", a alusão às dimensões reduzidas dos elementos

observados. É então que ocorre finalmente o nascimento que até aqui havia sido anunciado: "And

there they go. The Lough's words to the world./This is what it thinks./This is what it aspires to,

finally." (44 - 46) Tendo em mente a curta vida das efémeras logo após o seu nascimento, o eu

poético interroga-se sobre este desprendimento da efémera relativamente à Natureza ser ou não

uma libertação que conduzirá à vida: "Into life?" (49). É a partir daqui que um poema que era

aparentemente sobre o nascimento e, por isso, celebração da vida, passa a ser um poema que fala

de morte. Há seguidamente uma preocupação do sujeito poético em indicar o rumo seguido pela

figura em destaque no poema: "Toward the Island" (58). Será neste espaço físico que as

efémeras se amontoarão - "They crowd in under the boughs,/Keels under every leaf (60, 61) -

e a resposta à questão apresentada no verso 49 - "Into life?" - será oferecida, com referência

explícita à morte:

Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 27. Versos 34-37.

101

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O Olhar do Falcão

this isn't their world

Their world is over.

Their feastings are complete. Their jaws are tied up.

This is their underworld,

Their beach-head in death, because they are already souls -176

É com esta referência à morte que o sujeito poético desvia o seu olhar das efémeras e passa a

centrar a sua atenção em outros pormenores do espaço natural, espaço esse que evidencia traços

de decomposição e que, por isso, caminha para a morte: "Everywhere under the leaves/You see

their mummy moulds" (86,87) Esta imagem, anunciada através da conjunção adversativa "But",

contrasta com a imagem oferecida no verso seguinte, novamente com o olhar do eu poético

centrado nas efémeras: "But they've gone up into sunlight, a wet shimmer" (91). É de salientar

que o retrato de morte até então anunciado deixa de ser mencionado e, após se apontar no poema

a referência temporal - "All day till evening" (95) - é mencionado o poder do sol, fonte de vida,

naquela que é uma espécie de ressurreição da figura em destaque no poema:

And they are coming out!

But now like Dervishes, truly they are like those,

Touched by God,

Drunk with God, they hurl themselves into God -

[■■■]

They are casting themselves away, They abandon themselves, they soar out of themselves,

176 Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 29. Versos 65 - 69.

102

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O Olhar do Falcão

Space can't hold them.177

No final, e porque o objecto de observação do sujeito poético desapareceu deste cenário - "The

wind carries them out." (129) - há o desvio do olhar do eu do poema que passa a concentrar-se

num outro ser desta paisagem: "The big trout" ( 131 ). O poema termina com uma partilha entre

o eu poético e o leitor. Trata-se do lançamento de uma questão existencial - "(What are we doing

on earth?)" (135) - e termina retratando o espaço natural onde tudo ocorreu: "All round

us/Fanatics faint and wreck shuddering, gently,/Onto the face of evening." (136 -138) Este final

sumaria também as temáticas discutidas ao longo de todo o poema: na Natureza há, lado a lado,

espaço para a vida e para a morte.

O título "A Cranefly in September" oferece ao leitor duas referências: a entidade do

poema e a referência temporal. O início deste mostra o olhar do sujeito poético centrado na

actividade e no espaço por onde se desloca essa entidade que depois é nomeada como "she":

She is struggling through grass-mesh - not flying,

[...] Rocking like an antique wain, [...] Across mountain summits (Not planing over water, dipping her tail)

But blundering [...]

Aimless in no particular direction178

Hughes (Poems), and Baskin (Drawings), Flowers and Insects, 31. Versos 114 - 126.

Hughes, A March Calf, 84. Versos 1 - 9.

103

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O Olhar do Falcão

Após a descrição dos movimentos errantes que o título do poema apresenta como sendo de uma

típula, há a partir do verso 18 uma concentração do eu poético na presença animal do poema.

É então que ocorre um retrato físico minucioso desta recorrendo aquele ao uso de analogias

tanto do meio natural - plantas e animais -, como do meio já com vestígios da passagem humana:

Her jointed bamboo fuselage,

Her lobster shoulders, and her face Like a pinhead dragon, with its tender moustache, And the simple colourless church windows of her wings.

[...] The monstruous excess of her legs and curly feet179

As analogias estabelecidas no poema espelham o olhar do eu poético centrado primeiramente no

corpo do insecto - visto como uma carcaça e aproximado visualmente do bambu - e, de seguida,

dirigido para a descrição de pormenores particulares: primeiro os ombros - com analogia à

lagosta -, depois a face - comparada a um dragão - e, particularizando ainda mais, há uma

aproximação da face para ter lugar a alusão ao bigode. Distanciando-se, de seguida, um pouco,

as asas tornam-se então no objecto de concentração do olhar do sujeito poético. Tendo como

elemento comum a cor, ou melhor, o facto de não ostentarem qualquer cor, é estabelecida uma

afinidade entre as asas e os vitrais de uma igreja. Todos estes elementos descritos são usados

com o propósito de expressar uma certeza do sujeito lírico: " [It] Will come to an end, in mid-

search, quite soon./Everything about her, every perfected vestment/Is already superfluous." (22 -

Hughes, A March Calf, 84. Versos 19-25.

104

Page 106: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

24) Após a referência do caminhar para a morte por parte da típula há, uma vez mais, o olhar do

eu do poema centrado no corpo do animal para, desta vez, falar das pernas e das patas.

Abandonada a descrição física deste ser, há novamente a atenção centrada no espaço

natural, espaço este que evidencia abandono e também traços de morte: "The frayed apple leaves,

the grunting raven, the defunct tractor" (29) O final do poema mostra a figura em destaque

abandonada pela própria Natureza: "The sky's northward September procession, [...]/Abandons

her" (32 - 34). Este abandono é, do meu ponto de vista, a libertação deste ser para cumprir

aquilo que ao longo do poema foi anunciado: a morte.

105

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IV - Conclusão

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There are no words to capture the infinite depth of crowiness in the crow's flight. All we can do is use a word as an indicator, or a whole bunch of words as a general directive.

Ted Hughes1

Capturing the object was Hughes's earliest aim.

Edward Larrissy"

180 Hughes, Poetry in the Making, 119.

181 Larrissy, Reading Twentieth-Century Poetry, 125.

Page 109: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

A julgar pela primeira epígrafe aqui transcrita, Hughes parece ser de opinião que as

palavras se revelam insuficientes para a captura e consequente representação de um real.

Sublinho parece porque, se atentarmos na poesia hughesiana e em particular na temática desta

dissertação, esta afirmação de Hughes não fará qualquer sentido. Um dos louvores tecidos pela

crítica literária à obra poética de Ted Hughes é precisamente a sua genialidade na capacidade de

observar e representar o real bem como a sua perícia na forma como conduz o olhar do leitor e

o leva a centrar-se unicamente naquilo que deseja colocar sob observação. As palavras com que

Hughes prossegue a afirmação em parte transcrita na epígrafe contrastam igualmente com os

conteúdos da afirmação uma vez que na escolha do vocabulário nada foi deixado ao acaso e em

tudo se revela mestria verbal:

But the ominous thing in the crow's flight, the bare-faced,

bandit thing, the tattered beggarly gipsy thing, the caressing and

shaping yet slightly clumsy gesture of the down-stroke, as if the wings

were both too heavy and too powerful, and the headlong sort of

merriment, the macabre pantomime ghoulishness and the undertaker

sleekness - you could go on for a very long time with phrases of that

sort and still have completely missed your instant, glimpse knowledge

of the world of the crow's wingbeat. And a bookload of such

descriptions is immediately rubbish when you look up and see the crow

flying.182

É técnica recorrente na poesia hughesiana o autor oferecer ao leitor descrições tão

pormenorizadas que se cria neste a ilusão de estar a presenciar a cena no momento em que tudo

Hughes, Poetry in the Making, 119, 120.

108

Page 110: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

ocorre. Este tipo de descrição em que nada parece ser esquecido tem ainda como objectivo fazer

com que o leitor como que visualize aquilo que o olhar de Hughes outrora registou. Esta prática

ganha ainda maior evidência por centrar-se quase exclusivamente no observado, como que

elidindo do poema a instância autoral e os sinais de um propósito face ao leitor.

Ao longo desta dissertação procurei mostrar que, em determinados momentos, esta

condução do olhar leva o leitor a fixar a sua atenção em realidades de dimensões reduzidas e que

habitualmente não são objecto de qualquer atenção. Começo, então, por destacar aquele que foi

o primeiro grupo de poemas analisado no segundo capítulo: "Eclipse", "Buzz in the Window"

e "Two Tortoiseshell Butterflies". Neste conjunto há o olhar do sujeito poético que observa e

descreve minuciosamente duas aranhas na consumação do acto de acasalamento, uma aranha e

uma mosca - predador e ser devorado, respectivamente - num acto instintivo de sobrevivência

em que se estabelecem relações de força, e duas borboletas no acto de cortejo onde, tal como

no primeiro poema deste grupo, se referem as capacidades sedutoras da fêmea. Esta

concentração nas figuras animais em destaque nos poemas feita de forma exaustiva pelo eu

poético e em que se mostram pormenores físicos quase invisíveis a olho nú, é o motivo pelo qual

reafirmo que Hughes adopta um procedimento que parece só ser possível graças ao uso de um

instrumento de ampliação.

A acompanhar estas estratégias de captura e condução do olhar do leitor não pode ser

esquecida a particular eficácia do autor no uso da linguagem. A linguagem é, de acordo com o

próprio Ted Hughes, a ferramenta usada para pôr em prática as suas técnicas de representação

do real. Hughes advoga sobre a linguagem: "Words are tools, learned late and laboriously and

easily forgotten, with which we try to give some part of our experience a more or less permanent

109

Page 111: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

shape outside ourselves."183 A linguagem usada na poesia hughesiana revela-se quase sempre

simples e clara, propondo-se persuasivamente como se fosse uma apropriação linear e literal do

real que representa. Esta minha apreciação da simplicidade da linguagem hughesiana é partilhada

por Keith Sagar, por exemplo, que fala da linguagem poética usada pelo autor em estudo nesta

dissertação da seguinte forma: "The West Riding dialect has remained Hughes' stable poetic

speech, concrete, emphatic, terse, yet powerfully, economically eloquent. It is a speech in which

a spade is called a spade."184 Sobre o mesmo assunto, também Nick Bishop salienta: "[...] the

common denominator [of Hughes's language] is an obsessive preoccupation with words-as-

words, with the expressive resources of language - language almost as world-unto-itself."185

Assim, devo aqui destacar dois grupos de poemas do corpus nos quais a já referida eficácia do

autor no uso da linguagem é preponderante. O primeiro - composto por "The Red Admirai",

"Dragonfly" e "Worm" - evidencia uma construção linguística simples à qual a sonoridade da

rima emparelhada ajuda a dar condições lúdicas; o segundo - "Sandflea", "Snail", "Worm" e

"Ragworm" - personifica as próprias presenças animais que, através do discurso directo,

celebram a sua beleza física ou lamentam a sua fealdade. Claro que estes aspectos não podem

deixar de ser referidos em conjunto com a técnica de representação recorrente de particularização

ou concentração do olhar no pormenor. Por vezes até, o autor usa outras formas de dimensões

gigantescas para, através do contraste, evidenciar estes seres dimensionalmente pequenos. É isto

visível neste conjunto de poemas nomeadamente em "Sandflea" e "Snail".

183 Hughes, Poetry in the Making, 119.

184 Sagar, The Art of Ted Hughes, 7.

185 Sagar, ed., The Challenge of Ted Hughes, 1.

110

Page 112: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

Como pudemos constatar, a poesia de Ted Hughes - sobretudo nos poemas do corpus -

tem como objecto dominante de apreensão o reino animal. Gifford and Roberts justificam: "[...]

animal vitality is seen to be part of the same cycle of conflicting forces at work in the landscape.

The creative - destructive tension in animals is a natural part of the larger cycle of the forces in

the universe."186 É por este motivo que uma das temáticas recorrentes em alguns dos poemas do

corpus é a representação de relações de força no espaço natural e, enquanto se retratam essas

mesmas relações de força, o sujeito poético louva as presenças animais em destaque. Exemplifica

esta minha afirmação o quarto grupo de poemas analisado no segundo capítulo: "Mosquito",

"Spider" e "The Mayfly is Frail". Nestes - em particular no primeiro e no terceiro poemas - há

a valorização das capacidades de sobrevivência e da força destes seres aparentemente frágeis -

se pensarmos nas suas dimensões pequenas - que se revelam capazes de superar fenómenos

gigantescos do meio natural. Outras vezes, tal como evidencia o segundo poema deste grupo,

há a admiração pela capacidade de construção de artefactos - por exemplo, a teia.

Mas a concentração na anatomia destes seres dimensionalmente pequenos nem sempre

é usada para os louvar; por vezes serve para mostrar as suas limitações ou, através da ironia,

fazer com que o leitor reconheça a sua importância. É isto que acontece em "Caddis", "In the

Likeness of a Grasshopper" e "The Fly". Os dois primeiros poemas deste conjunto retratam as

presenças animais como geringonças frágeis e inseridas no seu próprio habitat: o ambiente da

beira-rio e o campo. Esta opção é justificada com o concentrar do olhar do sujeito poético

seguido de descrição física , uma vez mais minuciosa, destes insectos. Já o terceiro poema,

Gifford, and Roberts, Ted Hughes, 75.

I l l

Page 113: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

igualmente centrando-se em partes específicas da mosca - em particular aquelas que ajudam na

sua excelente capacidade de detecção de sujidade - e metaforizando-a na figura do inspector

sanitário, procura incutir no leitor a importância de um animal associado à sujidade na limpeza

da Natureza. Quero aqui ainda vincar que o reino animal retratado na poesia hughesiana por

vezes é muito mais que uma mera descrição ou louvor daquele já que, como anteriormente nesta

dissertação foi referido, os críticos são unânimes em afirmar que os animais funcionam na obra

poética de Hughes como uma extensão da força e vitalidade interior humana. É por isso que o

conjunto que formou o sétimo grupo de poemas analisado no segundo capítulo funciona como

uma espécie de pretexto para discutir questões sobretudo relacionadas com a valorização do

trabalho na comunidade animal que pode ser estendido às comunidades humanas, ou para discutir

questões que se prendem com a existência humana - como as questões da vida e da morte. E o

que revelam os poemas "Ants", "Bees", "The Honey Bee", "Saint's Island" e "A Cranefly in

September". O primeiro destes poemas retrata a agitação habitual no formigueiro, agitação esta

necessária à sobrevivência deste; também o segundo poema descreve, de forma semelhante, os

movimentos das abelhas na colmeia de modo a obter o mel; o terceiro mostra a centralidade do

olhar da abelha nas flores devido à sua importância para o fabrico do mel; o quarto e quinto

poemas apresentam retratos minuciosos do meio natural que apresenta vestígios de morte,

vestígios esses sintomáticos da própria morte destes insectos.

Hugh Underbill, referindo-se ao real apreendido e retratado por Ted Hughes, constatou

o seguinte: "It seems a general problem in the world of Hughes's poetry that the human

communities implicated are almost always those of farm or village, not the communities in which

112

Page 114: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

most modern people live."187 De facto, nos raros momentos em que Hughes fala de comunidades

humanas na sua poesia, estas situam-se sempre no espaço da quinta, aquele que segundo

Underhill é o espaço por excelência para o homem e a Natureza se encontrarem.188 Isto deve-se

ao facto de haver uma preocupação por parte deste poeta em aproximar o homem da Natureza

tal como acontecera no passado, antes mesmo da Revolução Industrial ou do desabrochar da

época moderna. Aliás, num dos grupos de poemas analisados - "Performance" e "Gnat-Psalm" -

a atenção dedicada às figuras animais em destaque nos poemas atinge o mesmo nível de

importância que o ambiente natural por onde se deslocam e o olhar do sujeito poético dá

destaque a pormenores dos animais e da paisagem. Há ainda a percepção do ambiente como

responsável pela metaforização da presença animal na figura do actor - como mostra o primeiro

poema -, ou sintomático da alegria e agitação que caracterizam a presença animal retratada no

segundo poema. Como igualmente mostrei nesta dissertação, a causa ambientalista é uma outra

vertente da personalidade de Ted Hughes e o corpus aqui apontado mostra uma chamada de

atenção do autor para a beleza do meio natural, beleza essa também presente nos seus elementos

mais minúsculos.

Esta apreensão da beleza do reino animal evidenciada na poesia de Hughes remonta à

captura de animais a que o autor se dedicou inúmeras vezes durante a sua infância, como ele

mesmo recorda e reconhece: "There are all sort of ways of capturing animals and birds and fish.

187 Hugh Underhill, The Problem ofConsciousness in Modern Poetry (Cambridge: Cambridge University Press, 1992)288.

188 Pode ler-se no original: "[...] the farm is the place where man and nature most intimately do meet." (Underhill, The Problem of Consciousness in Modern Poetry, 296.) Esta concepção da quinta é quase exaustivamente discutida por Craig Robinson quando se refere à obra Moortown Elegies, capítulo inserido em Sagar, ed., The Achievement of Ted Hughes, 257 - 284.

113

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O Olhar do Falcão

I spent most of my time, up to the age of fifteen or so, trying out many of these ways and when

my enthusiasm began to wane, as it did gradually, I started to write poems." 189 Aliás, o próprio

Hughes aproxima a escrita de um poema da captura de um animal, como é evidenciado em

Poetry in the Making no capítulo intitulado "Capturing Animals".190 Esta mudança no método

de captura - abandono das armadilhas para uso das palavras como forma de prender esses

mesmos animais e o espaço no qual se movimentam - só posteriormente foi reconhecida pelo

autor:

Now I have no doubt. The special kind of excitement, the slightly mesmerized and quite involuntary concentration with which you make out the stirrings of a new poem in your mind, then the outline, the mass and colour and clean final form of it, the unique living reality of it in the midst of the general lifelessness, all that is too familiar to mistake. This is hunting and the poem is a new species of creature, a new specimen of the life outside your own.191

Por retratar sobretudo a vitalidade animal como extensão do dinamismo humano, é

comum os críticos falarem da poesia hughesiana estabelecendo comparações entre esta e os

animais. Contudo, esta analogia foi originalmente criada pelo próprio autor que afirmou:

189 Hughes, Poetry in the Making, 15. Após estudo da obra hughesiana, Keith Sagar concluiu que o primeiro animal capturado num poema por Ted Hughes foi o jaguar: "The jaguar [...] was the first of Hughes' beasts to be captured in all its vivid otherness in a poem." (Sagar, The Art of Ted Hughes, 9.)

190 Ver Hughes, Poetry in the Making, 15-31.

191 Hughes, Poetry in the Making, 17. Sublinhado meu.

114

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O Olhar do Falcão

[...] I think of poems as a sort of animal. They have their own

life, like animals, by which I mean that they seem quite separate from

any person, even from their author, and nothing can be added to them

or taken away without maiming and perhaps even killing them. And

they have a certain wisdom. They know something special...

something perhaps which we are very curious to learn.192

Hughes, mostrando alguma empatia com o leitor, questiona posteriormente esta analogia para

logo de seguida explicá-la:

How can a poem, for instance, about a walk in the rain, be like

an animal? Well, perhaps it cannot look much like a giraffe or an emu

or an octopus, or anything you might find in a menagerie. It is better

to call it an assembly of living parts moved by a single spirit. The

living parts are the words, the images, the rhythms. The spirit is the

life which inhabits them when they all work together. [...] So, as a

poet, you have to make sure that all those parts over which you have

control, the words and rhythms and images, are alive. [...] Words that

live are those which we hear, like 'click' or 'chuckle', or which we

see, like 'freckled' or 'veined', or which we taste, like 'vinegar' or

'sugar', or touch, like 'prickle' or 'oily', or smell, like 'tar' or 'onion'.

Words which belong directly to one of the five senses.193

A leitura deste excerto evidencia a materialidade da linguagem na poética hughesiana, mas para

que ela complete os seus objectivos, os cinco sentidos - e, para os propósitos desta dissertação,

192 Hughes, Poetry in the Making, 15.

193 Hughes, Poetry in the Making, 17.

Page 117: O Olhar de Ted Hughes

O Olhar do Falcão

em particular a visão - adquirem igualmente contornos elevados. Esta importância da visão está

presente não só nos poemas como também nas figuras que acompanham alguns desses poemas

a que aludi quando no segundo capítulo as usei como exemplificativas da representação visual

do detalhe. Estas ilustrações dos textos líricos podem ser importantes por vários motivos: por

evidenciar pequenos aspectos mencionados nos poemas, por complementar a leitura dos mesmos,

para contrastar com a leitura, ou ainda para engrandecer o papel da visão. Obviamente os outros

sentidos também têm papel de destaque nalguns momentos, mas esses aspectos poderão ser

objecto de estudo num futuro trabalho de investigação.

A questão da representação visual a nível do pormenor foi usada como perspectiva

orientadora da selecção do corpus e da sua leitura. Enunciei ao longo desta dissertação, e em

particular no segundo capítulo, as várias formas eleitas por Ted Hughes para representar

visualmente a nível da minúcia muitos dos animais por ele eleitos, assim como aquelas que podem

ser designadas como técnicas usadas pelo autor para capturar o real. No que diz respeito às

questões de representação muito mais havia a referir, até porque é uma concepção complexa e

geradora de questionações e problemáticas entre os estudiosos, mas o propósito desta

dissertação foi apenas mostrar como em certos momentos da poesia hughesiana a representação

visual e em particular do pormenor visual ganha um destaque que a torna de abordagem

imperativa. Esta abordagem revela-se necessária para ummelhor entendimento e um alargamento

da compreensão de alguma poesia de Hughes e da sua riqueza retórica, estilística e semântica.

Anthony Thwaite descreve da seguinte forma o mundo retratado na poesia de Hughes:

"The Hughes' world was one that was turbulently full of predatory animals, primitive violence,

116

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O Olhar do Falcão

and moments of extreme human endurance - a bloody world ruled by impulse and instinct."194

Nesta dissertação procurei demonstrar que nem sempre a poesia hughesiana pode ser

caracterizada desta forma. É inegável que por vezes demonstra estes traços, mas o que aqui me

importou evidenciar foi a forma distinta como Hughes retrata o meio natural e a centralidade da

visão para tal. Por tudo isto afirmo que, recorrendo à estratégia de condução do olhar do leitor

para a singularidade e para a beleza das presenças animais de dimensões minúsculas, o grande

propósito da poesia hughesiana é engrandecer a Natureza.

194 Anthony Thwaite, Twentieth-Century English Poetry: An Introduction (London: Heinemann, 1978) 111.

117

Page 119: O Olhar de Ted Hughes

Bibliografia

Page 120: O Olhar de Ted Hughes

1 - Bibliografia Primária

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