O RAPAZ DE BRONZE Libreto de José Maria Vieira Mendes, a partir do conto homónimo de Sophia de Mello Breyner Andresen
Prólogo FLORINDA
Houve um tempo em que criança julguei ter à noite das flores, árvores e fontes escutado o meu nome: Florinda. Mas assim que p’la manhã falou o galo e adormeci o meu pai, jardineiro no dia deste jardim, disse-me ser mentira o que ouvi, uma história sonhada p’los meus olhos infantis.
No meu quarto fechei-me então e com o tempo esqueci o meu nome: Flo...? Hoje volto a abrir a porta do quarto onde tanto tempo me prendi e a pisar as folhas e entre os ramos vejo a lua, estrelas e céu. Esforçando-me para recordar quem fui a ti te peço, jardim na noite ou noite no jardim: dá-me de volta a carne que já tive faz andar o sangue que em mim secou devolve-me o nome que perdi. Diz-me, fonte, diz-me, tronco, diz-me, flor deste jardim é verdade o nome que em criança ouvi. Não vem resposta.
FLORINDA Movem-se as sombras como vultos docemente entre a folhagem. Nada acorda o silêncio. Só o vento passa pesado e quente.
RAPAZ DE BRONZE
Quem vem lá que mal se vê mais escura que a noite e calada que o vento diz palavras que se partem como no ar o sabão. O corpo já de mulher mas de vidro o seu aspecto mais criança que a criança acabada de nascer. Estaca o passo se não queres desfazer-te com o próximo que arriscares e responde-me quem és tu que assim pisas o luar branco dos caminhos.
FLORINDA
Oh oiço! Oiço vivamente quem vive pois só quem vive se pode ouvir!
RAPAZ DE BRONZE
O teu nome? FLORINDA
Sou coisa sem nome. RAPAZ reconhecendo-a: Florinda! Florinda é o teu nome.
Florinda, lembras-te de mim? FLORINDA
Com memória mentirosa, Rapaz de Bronze. RAPAZ Há memória verdadeira? FLORINDA
Sempre todos me disseram ser mentira o que então vi. RAPAZ
Mentira é o que antes se viu não o que agora se vê. Mentira é o que disso hoje se diz não o que então se ouviu.
Vou mostrar-te o que em criança viveste para que recuperes o nome que perdeste. FLORINDA
Oh estátua de bronze, rei na noite do jardim como podem os meus olhos ver em ti vida se a vida em mim não vêem. RAPAZ
Escura e transparente noite faz acordar as magnólias as tílias e os plátanos as glicínias os fetos e as bétulas e os buxos as papoilas as camélias as tulipas e begónias as orquídeas e os nardos e os cravos e o trigo Que todos chamem por ti, Florinda, filha de jardineiro.
FLORINDA
Florinda fui eu, meu pai jardineiro. RAPAZ
Fica Florinda e olha o Gladíolo que no dia que já não recordas aqui nasceu. Vê e escuta para que a mentira volte hoje a ser verdade.
1. O Gladíolo
GLADÍOLO
No dia em que neste jardim nasci eu, o mais mundano dos gladíolos, colhia o jardineiro para uma festa outros gladíolos que diziam: - Vamos para uma festa!, e sorriam. Por isso as minhas primeiras palavras ao nascer foram: - Que inveja! E depois, ao olhar para mim, disse as segundas: - Sou um bonito gladíolo! E só então, ao olhar em volta, acabei por dizer: - Bom dia
TODOS
Bom dia, bom dia, bem-vindo! GLADÍOLO
Que sorte eu ser gladíolo. Que sorte eu ser bonito! Hão-de pôr-me numa jarra para todos me admirarem e ao começar da festa em meu redor vão dançar. Qu’ridas recentes amigas desde já eu me despeço que amanhã, com certeza, serei colhido
TODOS
Bom dia e adeus então, Gladíolo. GLADÍOLO E assim tendo cantado e falado vejo a senhora dona da casa que vem zangada, roxa e acelerada. SENHORA (diz:)
Quero colhas não que onde mais jardineiro este vou gladíolos ano farta de em todas as estou festas gladíolos só gladíolos há gladíolos não quero mais gladíolos nas minhas festas.
GLADÍOLO
O quê?… SENHORA (diz:)
Não quero jardineiro que mais gladíolos colhas este ano farta estou de gladíolos em todas as festas onde vou há só gladíolos não quero mais gladíolos nas minhas festas.
TODOS Que tristeza. Que pouca sorte.
GLADÍOLO
Que raaaiva!
2. O Gladíolo e o Rapaz de Bronze
RAPAZ DE BRONZE
Olá, Gladíolo, então ainda não te colheram?
GLADÍOLO
Não posso ser colhido. Pediram-me para ficar não fosse o mundo deixar de girar.
RAPAZ
Aaah. GLADÍOLO
Faço falta no jardim. Sou fundamental. Sou in-con-tor-nável.
RAPAZ
E vieste espreitar a festa? GLADÍOLO
Vim, mas daqui vejo pouco. RAPAZ
Pede ao vento que te leve para os ramos do carvalho. Sopra o vento. GLADÍOLO
Aaah! Que luxo! Que elegância! Que riqueza! Quem são?
RAPAZ
Pessoas. GLADÍOLO
Como se chamam? RAPAZ
Não têm nome.
GLADÍOLO
Tão bonitas E tão ricas…
RAPAZ
Como sabes? GLADÍOLO
Os vestidos! RAPAZ
Se assim fosse o mais rico era eu com tanto bronze na pele. GLADÍOLO
E não és? RAPAZ
Não tenho um tusto. GLADÍOLO
Oh. Pensativo: Quero dar uma festa. Posso?
RAPAZ
Uma festa? GLADÍOLO
Uma festa de flores igual às festas das pessoas. Vou dar uma festa à noite aqui mesmo no jardim.
RAPAZ
Nós não fazemos festas. Não somos homens, não precisamos de nos divertir.
GLADÍOLO
Ninguém me colheu, Rapaz de Bronze, e eu quero ir a uma festa. RAPAZ resmungando:
Uma festa uma festa uma festa... GLADÍOLO impositivo: Uma festa uma festa uma festa uma festa! Eu quero uma festa! RAPAZ
Faz a festa! GLADÍOLO
Obrigado! Obrigado! Obrigado! Tenho muito que fazer, muitos muitos afazeres.
Preciso de uma comissão! Vento! Vento! Tenho pressa! Já ao fundo: Comissão organizadora!
3. A Comissão organizadora do grande baile de flores
Gladíolo, Rosa, Cravo, Orquídea, Begónia, Tulipa, Rapaz de Bronze RAPAZ DE BRONZE
Junta-se a Comissão organizadora do grande baile de flores, constituída por: O Gladíolo. A Rosa. O Cravo. A Orquídea. A Begónia. A Tulipa. E, a presidir, o Rapaz de Bronze!
GLADÍOLO
Boas noites! TODOS
Boa noite! GLADÍOLO
A Tulipa? CRAVO
Está atrasada. ROSA
Sempre atrasada. CRAVO
Mas vem sempre. ORQUÍDEA protestando:
Vamos começar! BEGÓNIA
Está na hora! GLADÍOLO
Falta a Tulipa. Não podemos. ROSA
Exige-se organização! BEGÓNIA
Forma e certidão! ORQUÍDEA
Assim não! CRAVO
Uma anarquia! BEGÓNIA
Uma imperfeição! GLADÍOLO
Aí vem ela! TULIPA chegando:
Desculpem. Fiquei à espera do vento… GLADÍOLO
Comecemos. Primeiro ponto: famílias a convidar. Eu tenho uma lista de quarenta famílias.
TULIPA
Da minha trinta e seis constam. ROSA
Não se convidam todas as flores. TULIPA
Só as mais bonitas. GLADÍOLO
As mais célebres. TULIPA
As de melhor qualidade. GLADÍOLO
Há flores que não são bem flores. RAPAZ
Todas as flores são flores. Eu sou o rei do jardim. Quero que sejam convidadas todas as flores!
TODOS
Aprovado! Assunto encerrado. GLADÍOLO
Segundo ponto: local da festa. ORQUÍDEA
Na estufa. CRAVO
É quente e abafado.
ROSA
No roseiral. GLADÍOLO
No ténis. TULIPA
Eu tenho uma ideia: na Clareira dos Plátanos. TODOS
Aprovado! Assunto encerrado. GLADÍOLO
Quarto ponto- TODOS
Terceiro! GLADÍOLO
Perdão, terceiro: a orquestra. BEGÓNIA
Rãs. CRAVO
Cucos ROSA
Pica-paus. ORQUÍDEA
Rouxinóis. TULIPA
Melros, moscardos, sapos-tambores. GLADÍOLO
O melhor será cantarem todos. TODOS
Aprovado! Assunto encerrado. GLADÍOLO
Quarto ponto: a decoração da sala. TODOS
Não é uma sala. GLADÍOLO
Perdão, da clareira.
RAPAZ DE BRONZE
As árvores e estrelas não precisam de enfeites. TULIPA
Eu tenho uma ideia: pirilampos à roda do lago. TODOS
Aprovado! ORQUÍDEA
E na jarra de pedra? Não pode ficar vazia, é feio uma jarra vazia. ROSA
Ah! GLADÍOLO
Ah! BEGÓNIA
Ah! CRAVO
Ah! TODOS
Ah! TULIPA
Na jarra, põem-se flores. ROSA
Flores somos nós! CRAVO
É de flores esta festa não de pessoas! TULIPA
Tanta organização... RAPAZ
Eu tenho uma ideia: Se as pessoas nas suas festas põem flores nas jarras, as flores nas
suas põem nas jarras pessoas.
TODOS
Hem? RAPAZ
Pomos na jarra uma pessoa. Uma pessoa que seja como uma flor.
ROSA Não há nenhuma.
GLADÍOLO
A dona da casa. CRAVO
Parece uma corça. BEGÓNIA
O dono então. TULIPA
Parece um peru. ORQUÍDEA
E a filha da dona? ROSA
Parece de plástico. RAPAZ
Eu conheço uma pessoa que é como uma flor. TODOS
Quem? RAPAZ
Florinda, a filha do jardineiro. TODOS
Florinda… Bravo! Bravo! Queremos a Florinda. Bravo! Bravo! Aprovado! Florinda! Florinda!
4. A Festa
FLORINDA Chamaram-me. Tenho de ir. RAPAZ DE BRONZE Chamaram-te para ficar. FLORINDA Faz-se tarde. RAPAZ Devagar, Florinda, que devagar poisa a noite.
FLORINDA “A noite é o lençol dos mortos.” RAPAZ É de noite que se vive. À noite fala quem de dia se cala. FLORINDA Se de noite é que se vive então o que é o dia? RAPAZ O dia esconde a noite como a luz o escuro ou a voz o silêncio. FLORINDA Tenho medo. Ouve-se um rouxinol. FLORINDA O que é? RAPAZ
É o rouxinol da noite. Chama por ti, Florinda. FLORINDA Tenho medo. RAPAZ Do teu nome? Do nome que querias voltar a ouvir? GLADÍOLO entrando agitado: Vai começar a festa! FLORINDA Uma festa? RAPAZ Uma festa. Vem, Florinda. A festa é aqui, e o teu lugar ali na jarra de pedra. FLORINDA Porquê ali? RAPAZ Porque pareces uma flor, bela Florinda, flor das flores
FLORINDA sorri. Perdeu o medo e coloca-se na jarra de pedra. GLADÍOLO Vai começar a festa! RAPAZ Vai começar a festa! Começa a festa. Entram as flores: as rosas, os cravos, os malmequeres, os narcisos, os lírios, as papoilas, os miosótis, os girassóis, as camélias, as urzes, as margaridas, os amores-perfeitos, as glicínias, as orquídeas, as begónias e o Gladíolo. TODOS
A noite é o dia das coisas é o dia das flores, das plantas e estátuas. De dia, imóveis e presos de noite, dançamos livres.
GLADÍOLO
Dança noite em meu redor. TODOS
As estrelas! GLADÍOLO
Dancem flores! Uma festa, todas as noites uma festa e outra! A Tulipa?
A Tulipa chega atrasada. Como sempre. Vem bela, alta e direita com o seu vestido amarelo, liso
e brilhante. TULIPA
Aqui! TODOS
A Tulipa! Vem bonita e atrasada. FLORINDA
Nunca vi festa assim! Tudo aqui é diferente. As flores estão vivas: caminham, falam e dançam. E eu sou uma flor.
TODOS
Florinda! Florinda! FLORINDA
Poiso a minha cabeça na noite e as minhas mãos são frescas e perfumadas. TODOS
A noite é o dia das coisas é o dia das flores, das plantas e estátuas. De dia, imóveis e presos de noite, dançamos livres.
A festa continua até se ouvir cantar o galo.
5. O fim da noite
RAPAZ DE BRONZE
O canto do galo anuncia o fim da noite. FLORINDA
Fogem as flores, elas fogem… A festa... RAPAZ
Cantou o galo, vai nascer o dia. As flores voltam para os canteiros. E tu, Florinda...
FLORINDA adormecendo:
Eu durmo... Já durmo. GLADÍOLO e TULIPA
Já dorme Florinda nos braços de bronze pelo parque escuro a clarear. Da terra nasce a madrugada. Já dorme Florinda no seu canteiro já dorme, já dorme Florinda na noite. RAPAZ DE BRONZE
Florinda, lembras-te de mim? FLORINDA dormindo:
Lembro, lembro-me de mim.