Universidad de Vigo
Departamento de Dereito Público
Facultade de Cc. Xurídicas e do Traballo
Programa de Doutoramento 2 – Bienio 2006-08 (RD778/1998)
Menores en Situación de Desprotección e Conflicto Social
Trabalho para DEA
O Superior Interesse da Criança – O Sangue ou o Afecto?
por Luís Filipe Cervan Pereira Salabert, sob a orientação de
Esther González Pillado, Profesora Titular de Derecho Procesal, Facultade de
Ciencias Xurídicas e do Traballo, Universidad de Vigo
Programa de Doutoramento 2 – Bienio 2006-08 (RD778/1998) – Menores en Situación de Desprotección e Conflicto Social
O Superior Interesse da Criança – O Sangue ou o Afecto? por Luis Filipe Cervan Pereira Salabert
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ÍNDICE
O caso estudo ..............................................................................................................................3
Os direitos do homem no direito universal .................................................................................7
Os direitos do homem no sistema europeu ...............................................................................12
O estatuto da criança.................................................................................................................13
A protecção da criança na lei internacional ..............................................................................17
Direito Internacional Privado 24
A protecção da criança no sistema europeu 24
O Superior Interesse da Criança ...............................................................................................24
Fixação do conteúdo do conceito por via legislativa 24
A interdisciplinaridade na fixação do conceito 24
A criação de laços afectivos......................................................................................................24
Psicanálise 24
Teorias da Aprendizagem 24
Teoria do condicionamento clássico.................................................................................................................24
Teoria do condicionamento operante................................................................................................................24
Teoria da aprendizagem social .........................................................................................................................24
Etologia 24
Teoria do apego/vinculação (Attachment theory) 24
O estabelecimento da relação materno/paterno/filial................................................................24
«As crianças não são adultos em miniatura.» ...........................................................................24
As limitações da lei...................................................................................................................24
Esmeralda, ou Ana Filipa: O Sangue, ou o Afecto? .................................................................24
A decisão à luz dos critérios expostos ......................................................................................24
A noção do tempo da criança............................................................................................................................24
A continuidade da relação afectiva gratificante ................................................................................................24
As limitações da lei e dos órgãos encarregados pela sociedade da sua realização ...........................................24
Terá o Tribunal ponderado os melhores interesses daquela concreta criança? ........................24
Bibliogafia ................................................................................................................................24
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O c a s o e s t u d o
O jornal diário português “O Público” deu à estampa, em 13/05/2008, a seguinte notícia:
«O Tribunal de Torres Novas deu ontem seguimento aos dois pedidos de alteração do
exercício do poder paternal da menor Esmeralda Porto, apresentados pela mãe
biológica da criança, Aidida Porto, e pelo casal Luís Gomes e Adelina Lagarto. A
posição do tribunal dá início a uma nova fase no processo que poderá conduzir à
revogação da custódia da criança que foi atribuída, em 2004, ao pai biológico,
Baltazar Nunes. Após a conferência de ontem, as três partes do processo (os
chamados “pais afectivos” da criança, a mãe biológica e o pai biológico) têm 15 dias
para apresentar os seus argumentos relativamente aos pedidos de alteração do poder
paternal. Tomás de Albuquerque, advogado da mãe biológica, afirma ter ficado
“satisfeito” com a decisão, já que, na sua opinião, dá a entender que o tribunal
“entende que há razões para que a alteração do poder paternal seja reapreciada”.
Quatro anos depois de o Tribunal de Torres Novas ter decidido a entrega da menor
ao pai biológico, Tomás Albuquerque considera que há argumentos “fortes” que
“justificam a alteração” do exercício do poder paternal e que “poderão convencer o
tribunal”. “A decisão ainda não foi cumprida, a menina afeiçoou-se ainda mais ao
casal com quem vive desde os três meses e as próprias condições económicas e sociais
das partes alteraram-se”, afirma, assumindo que a intenção da mãe biológica é fazer
com que Esmeralda permaneça com Luis Gomes e Adelina Lagarto. Ontem, no final
da conferência entre as partes, Luísa Calhaz, uma das advogadas do pai biológico,
afirmou à agência Lusa que “não faz sentido” o tribunal mudar uma decisão “que
nunca foi cumprida efectivamente”. A advogada disse também que a alteração do
poder paternal iria “inviabilizar todo o esforço desenvolvido nos últimos meses no
cumprimento de uma decisão proferida por outras instâncias”. O Tribunal de Torres
Novas adiara por 90 dias a entrega da menor ao pai biológico, período que termina
em Julho. Mas com o processo de alteração do poder paternal, Tomás Albuquerque
admite que então o cenário possa ser outro: “Os dois processos são autónomos e vão
correndo paralelamente. Se [em Julho] ainda não houver uma decisão sobre a
alteração do poder paternal, caberá ao tribunal decidir o que fazer”. Depois das
alegações, o tribunal deverá pedir a uma instituição do Estado um inquérito à
situação social, moral e económica de todos os candidatos para perceber quais as
condições que cada um tem para acolher a menor.».
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Um caso judicial de regulação do poder paternal, aparentemente igual a tantos outros, foi
projectado do recato dos gabinetes para as primeiras páginas dos jornais, tendo mesmo
constituído notícia de abertura nos telejornais.
Este caso foi baptizado pela comunicação social de “Caso Esmeralda”; eis o que, em resumo1
se passou até ao momento presente:
Esmeralda nasceu em 12/02/2002, e foi registada como filha de Aidida, e de pai
incógnito. A Esmeralda é fruto de um relacionamento ocasional e esporádico havido
entre Aidida, cidadã brasileira, ao tempo em situação irregular em Portugal e Baltazar,
este de nacionalidade portuguesa; o Baltazar e a Aidida nunca viveram juntos; quando
a Aidida lhe comunicou que se encontrava grávida — o que ocorreu apenas no final da
gestação —, Baltazar suspeitou não ser o pai da criança, dadas as circunstâncias da
respectiva concepção.
Em Maio de 2002, o casal formado por Luís Gomes e Adelina Lagarto — o qual
estava inscrito, como casal adoptante, nos serviços da segurança social —, teve
conhecimento de que havia uma mãe disposta a entregar uma criança para adopção;
combinaram, então — a Aidida e o casal Luís/Adelina — a entrega da criança, com o
objectivo da sua futura adopção; a entrega veio a ocorrer em 28 de Maio de 2002, por
intermédio de uma pessoa amiga da Aidida. No momento em que o casal recebeu a
menor, era ainda desconhecida a sua paternidade. Em Janeiro de 2003, o casal
Luís/Adelina intentou no Tribunal Judicial da Sertã um processo de adopção.
Ouvido no processo de averiguação oficiosa da paternidade, o Baltazar afirmou que
assumiria a paternidade da Esmeralda, se, efectuados testes, estes indicassem ser ele o
pai. Baltazar foi notificado do resultado dos exames que o davam como pai biológico
da Esmeralda, vindo a perfilhá-la no dia Fevereiro de 2003. Nesse mesmo mês,
Baltazar foi aos serviços do Ministério Público da Sertã, a fim de ser regulado o
exercício do poder paternal da filha, esclarecendo que desconhecia o seu paradeiro.
Após sucessivas insistências junto do MP da Sertã, Baltazar veio a saber que a
Esmeralda se encontrava a residir com o casal Luís/Adelina em Torres Novas,
desconhecendo, contudo, na altura, as circunstâncias e motivos de tal situação. Em
Junho de 2003, o MP abriu um processo administrativo nos Serviços do MP do
1 Cronologia dos factos em “Anexo I”
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Tribunal da Sertã, com vista à propositura do processo de regulação do exercício do
poder paternal referente à menor. No processo de regulação do exercício do poder
paternal, ambos os progenitores pretenderam que lhes fosse atribuída a guarda da
menor Esmeralda.
O Centro Regional de Segurança Social de Santarém (CRSS) passou, em Setembro de
2003, a acompanhar o casal Luís/Adelina como casal candidato à adopção. Em finais
de 2003/início de 2004, o CRSS entendeu que menor estava bem integrada na família
do casal Luís/Adelina, tendo estabelecido laços de afectividade e vinculação, sendo o
casal considerado idóneo para adopção. O CRSS instaurou o processo de confiança
judicial de menor a favor daquele casal em 09 de Março de 2004. Neste processo veio
a ser proferido despacho de suspensão da instância, ordenando que os autos
aguardassem a decisão a proferir no processo de regulação do exercício do poder
paternal.
No Processo de Regulação do Exercício do Poder Paternal, o casal Luís/Adelina foi
ouvido, tendo constituído mandatário; em Maio de 2004 teve lugar a audiência de
julgamento, tendo o Tribunal impedido a participação nos trabalhos da Advogada do
casal Luís/Adelina; foi proferida sentença, em Julho de 2004, que determinou a
atribuição, ao Baltazar, do poder paternal.
O casal Luís/Adelina — que alterara o nome de tratamento da menor Esmeralda para
Ana Filipa, assim a chamando e intitulando-se seus pais —, continuou a recusar a
entrega da Esmeralda ao Baltazar.
Em Outubro de 2004, foi produzido, por um especialista, um relatório que atestava
que: “A criança Esmeralda identifica-se social, cultural, afectiva e psicologicamente
com a família constituída por Luís e Maria Adelina, não apresentando identificação
significativa com os progenitores biológicos, como já seria de esperar cientificamente.
Consequentemente, a ruptura com os padrões de referência da identidade actual e o
impacto de outros padrões, desconhecidos e irreconhecíveis, para a criança, exerce
influência negativa, não só em termos do processo de desenvolvimento habitual, assim
como a possibilidade de fomentar um plano de desenvolvimento psicológico interior
com carácter dissociativo, colocando em perigo a integridade psicológica identitária
da criança”; segundo o mesmo especialista, retirar a menor do seio familiar do casal
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Luís/Adelina – “assume uma exposição grave da Esmeralda ao perigo que me cumpre
assinalar”; na sessão de julgamento, o mesmo especialista entendeu que retirar, sem
mais, a menor do seio familiar onde se encontra “seria dilacerante, não se podendo
branquear 93% da sua vida”.
Notificado da sentença, o casal Luís/Adelina interpôs recurso de tal decisão, o qual
não foi admitido; o casal reclamou da decisão de não admissão do recurso para o
Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, o qual indeferiu a reclamação; o casal
apresentou nos autos requerimento de recurso deste despacho para o Tribunal
Constitucional, mas o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra desatendeu
também esta pretensão; o casal Luís/Adelina reclamou para o Tribunal Constitucional
do indeferimento da interposição do recurso para este órgão jurisdicional; o Tribunal
Constitucional veio a proferir acórdão determinando o recebimento do recurso;
devolvidos os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, o seu Presidente proferiu
despacho pelo qual o recurso foi admitido com subida imediata e efeito suspensivo;
em Janeiro de 2007, o Tribunal Constitucional proferiu acórdão em que declarou, com
força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma processual civil aplicada,
quando entendida no sentido de que aquele que tem a guarda de facto de uma criança
não tem legitimidade para recorrer, no âmbito de um processo de regulação do
exercício do poder paternal. Admitido o recurso, veio a ser proferido acórdão pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, em Setembro de 20072, o qual, confirmando a
atribuição do poder paternal a Baltazar, decidiu que transitoriamente a Esmeralda
continuaria à guarda do casal Luís/Adelina.
Entretanto, o Luís foi julgado em autos de processo crime, acusado de sequestro
agravado e subtracção de menor; em primeira instância, foi absolvido do crime de
subtracção de menor, mas condenado como autor material de um crime de sequestro
na pena de 6 anos de prisão; em recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu
manter a decisão recorrida na parte em que condenou o Luís como autor material do
crime de sequestro, mas reduziu a pena a 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos na sua
execução, com as seguintes condições: (i) de o Luís apresentar a menor aos
pedopsiquiatras e aos técnicos do IRS que acompanham o processo, no prazo a fixar
2 Texto integral in Anexo VI
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por estes, com vista a que estes técnicos promovessem a explicação à menor acerca da
sua real identidade e a dos seus progenitores; (ii) de o Luís apresentar a menor nos
tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua
presença; (iii) de o Luís cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam
tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal, tudo isto acompanhado e
sob controlo do IRS; novamente em recurso, o Supremo Tribunal de Justiça veio, em
Janeiro de 2008, a absolver o Luís da prática do crime de sequestro agravado, mas
aplicou-lhe a pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, pelo
crime de subtracção de menor, subordinada ao cumprimento, pelo arguido, dos
seguintes deveres (i) apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz
competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença; (ii) cumprir todas as
decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício
do poder paternal.
Descurando o aspecto criminal do caso — que não cabe no âmbito deste trabalho —, pode
dizer-se que, no cerne da problemática jurídica que este caso convoca, estão sem dúvida os
Direitos do Homem. Por aí iniciaremos a nossa exploração.
O s d i r e i t o s d o h o m e m n o d i r e i t o u n i v e r s a l
No ocidente e desde o direito romano, admitiam-se já direitos fundamentais3 (segundo os
casos: humanos, públicos, civis e políticos, atribuídos universalmente a classes de indivíduos
determinados pela identidade de pessoa, de cidadão, ou de capacidade de agir); a negação da
identidade pessoal (aos escravos, tidos como coisas), a negação da capacidade de exercício (às
mulheres, aos apóstatas, aos hereges, aos judeus) ou a negação da cidadania, impunham a
exclusão da titularidade dos direitos fundamentais.
Roma legou para a posteridade noções que viriam a moldar a concepção moderna dos direitos
humanos: a noção de Libertas (oposto de servidão) e a noção de Humanitas (vínculo que une
os homens ao ponto de os transcender)4.
O cristianismo, ao ensinar que todos os homens são filhos de Deus, sem distinção de raça,
3 Ferrajoli, “Derechos fundamentales”, pág. 23 4 António José Fernandes, “Direitos Humanos e Cidadania Europeia”, pág. 20
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estatuto ou género5, veio dar uma nova leitura ao conceito de dignidade humana; igualmente
veio temperar o poder de disposição da família sobre as crianças a ela pertencentes, relevando
a permanente solicitude do Pai em relação ao Filho, do criador (aquele que dá a vida) em
relação à criatura (aquele que recebe a vida, como um dom)6.
Na Idade Média — que ficou para a história como “uma noite de mil anos”7 —, dá-se um
retrocesso no que aos direitos do homem diz respeito8; tal deve-se às «contingências políticas,
económicas e sociais, subjacentes à concentração de poderes, à subordinação do poder
político ao poder religioso e à organização económica feudal».
Nesse período, só na Grã-bretanha foi possível aos súbditos imporem ao soberano o respeito
pela liberdade individual; a Charter of Liberties (também conhecida por Coronation Charter),
de 1100, proclamada por Henrique I, e a Magna Charta Libertatum, proclamada em 1215,
pelo Rei João de Inglaterra, são seminais das constituições modernas.
No século XIV, com o advento do Renascimento, opera-se o regresso às fontes clássicas sob o
signo do humanismo9; é exaltada a dignidade do homem e proclamada a igualdade dos seres
humanos (o que não impediu os fenómenos da expansão marítima dos estados europeus e a
subsequente colonização de povos das então remotas África, América, Ásia e Oceania).
O filósofo inglês John Locke (1602-1704), tido como o mais importante dos criadores da
doutrina dos direitos naturais10 ou jusnaturalismo, escreveu — no seu segundo tratado “Sobre
o governo civil”, ao introduzir o discurso sobre o “estado de natureza” — que, para se
entender bem o poder político e apurar a sua origem, deve considerar-se em que estado se
encontravam naturalmente os homens; este era um estado de perfeita liberdade para reger os
seus próprios actos e dispor da sua própria pessoa e da sua propriedade, como considerasse
melhor, dentro dos limites da lei e da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade
de qualquer outra pessoa; era também um estado de igualdade, em que todo o poder e toda a
jurisdição eram recíprocos; e era assim, porque criaturas da mesma espécie e da mesma
categoria, que nascem sem distinção entre elas, com as mesmas vantagens da natureza e com
5 «Não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo» – São Paulo, Carta aos Gálatas, 3:28, apud António José Fernandes, ibidem, pág. 21 6 «Por tanto, já não és servo, mas filho; e se és filho, também és herdeiro, pela graça de Deus.» – São Paulo, ibidem, 4:7 7 António José Fernandes, ibidem, pág. 22 8 idem, ibidem, pág. 24 9 António José Fernandes, ibidem, pág. 26 10 Bobbio, “El tiempo de los derechos”, pág. 38
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as mesmas dificuldades, devem também ser iguais entre elas, sem subordinações ou sujeições.
Neste “estado de natureza”, os direitos do homem eram poucos e essenciais11: o direito à vida,
o direito à sobrevivência (aqui se incluindo o direito à propriedade) e o direito à liberdade
(compreendendo algumas liberdades, essencialmente negativas). Presume-se que o homem
terá permanecido no seu estado natural, de “bom selvagem”, durante séculos, ao longo dos
quais se foram estabelecendo vínculos sociais12: «…primeiro, vínculos de parentesco e de
residência; depois, vínculos de afinidade religiosa, profissional e política…».
Para os jusnaturalistas, a afirmação dos direitos naturais não era mais do que uma teoria
filosófica, com um valor meramente de exigência ideal, de uma aspiração apenas realizável
quando uma constituição os acolhesse e os transformasse numa série de prescrições
jurídicas13.
São as revoluções americana (1776) e francesa (1789) que propiciam o grande salto em frente
no sentido da efectivação dos direitos humanos; o legislador de então, deu forma aos
teoremas14 ou meras proposições filosóficas que vinham de trás e atribuiu-lhes juridicidade,
sob a forma de “declarações de direitos”.
Esta efectividade foi no entanto relativa; os direitos consagrados na lei, eram tendencialmente
universais, mas a titularidade dos direitos humanos conferidos pelas declarações americana e
francesa, era encabeçada pelos cidadãos americanos e franceses; a efectividade dos direitos
humanos assim obtida era relativa: “ao mesmo tempo em que elas ganhavam em
concreticidade, perdiam em universalidade”15.
As revoluções industriais16 — ao implicarem o abandono da actividade primária por massas
de trabalhadores que migraram para as cidades para se tornarem operários fabris — se, por
um lado, criaram condições para a exploração da mão-de-obra, por outro levaram à
organização dos mesmos trabalhadores, em defesa dos seus interesses económicos e sociais17.
11 Bobbio, ibidem, pág. 119 12 António José Fernandes, “Direitos Humanos e Cidadania Europeia”, pág. 16 13 Bobbio, ibidem, pág. 39 14 Ferraz de Campos Mónaco, “A declaração Universal…”, pág. 78 15 idem, ibidem 16 a primeira foi a mecânica (a máquina de fiar foi inventada em 1765, por Hargreaves e a máquina a vapor foi inventada em 1769, por Watt); a segunda foi a eléctrica (Gramme inventou o dínamo eléctrico em 1871 e Parsons construiu o gerador de electricidade em 1884) 17 António José Fernandes, ibidem, pág. 47
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No campo dos direitos humanos, assistiu-se ao nascimento dos chamados “direitos de
segunda geração” ou de “segunda dimensão”.
Enquanto os “direitos de primeira dimensão” são aqueles que atribuem ao cidadão a liberdade
de exercitar o direito que lhe é reconhecido e impõe a todos os outros e ao estado a abstenção
de actos perturbadores daquele exercício, os “direitos de segunda dimensão” são aqueles que,
para serem exercidos pelo seu titular, exigem uma atitude já não abstencionista, mas activa da
parte daqueles órgãos da sociedade sobre os quais recaem os correspectivos deveres18.
Corresponde à conceptualização desses “direitos a” e à sua recepção no direito positivo, o
nascimento do conceito de Estado-Providência, a quem é cometida a tarefa de intervir nos
domínios económico e social, a fim de assegurar a igualdade de oportunidades de acesso à
habitação, ao emprego, à educação, à saúde, à segurança social, etc.
A afirmação da existência de direitos naturais originários, foi recebida nas declarações de
direitos que precederam as constituições dos estados liberais modernos, como visto supra;
assim se converteram em normas jurídicas invocáveis pelos cidadãos, em caso de violação —
pelos particulares ou pelos poderes públicos —, dos efectivos direitos a que se reportavam.
A Grã-Bretanha foi o berço de uma das primeiras acções internacionais em prol dos direitos
humanos, com a fundação da Sociedade contra a Escravidão, em 1839.
Seguiu-se-lhe a Primeira Convenção de Genebra, em 1864, que elevou o direito humanitário à
dimensão positivada; foi também na mesma ocasião fundada a Cruz Vermelha, entidade
independente e apolítica, com vocação de assistência a vítimas militares e civis de conflitos
armados.
Em Janeiro de 1918 teve lugar em Versalhes a Conferência de Paz que ficou conhecida pelo
nome da localidade francesa que a acolheu, e que marcou o final da I Guerra Mundial; o
Presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos da América, apresentou na Conferência um
relatório com 14 pontos, sendo que os 13º e 14º previam, respectivamente, a instituição de
uma organização internacional do trabalho e de uma sociedade geral das nações.
No seguimento da aceitação destas propostas, veio a ser assinado, em Junho de 1918, o
tratado que instituiu a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, em Abril de 1919, o
pacto que instituiu a Sociedade das Nações (SDN).
18 Ferraz de Campos Mónaco, “A declaração Universal…”, pág. 76, nota (142)
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Embora o pacto da SDN não contenha cláusulas específicas de direitos humanos, o seu artigo
23º prescreve obrigações relativas às condições de trabalho (que pretende humanas e
equitativas para homens e mulheres), e ao tratamento equitativo das populações indígenas; o
mesmo dispositivo ainda encarregou a SDN da fiscalização geral dos acordos relativos ao
tráfico de mulheres e crianças19.
Só com a II Guerra Mundial o tema dos direitos humanos ganhou dimensão verdadeiramente
universal.
Reunidos em Moscovo, os representantes da China, dos Estados Unidos da América, da
Grã-Bretanha e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas assinaram, em 30/10/1943, a
Declaração de Moscovo, a qual dava conta da necessidade de estabelecimento de uma
organização geral internacional dedicada à manutenção da paz e da segurança internacionais.
Veio então a ser elaborada e aprovada a Carta da Organização das Nações Unidas20, que
entrou em vigor em 24 de Outubro de 1945.
A Carta das Nações Unidas21 enunciava no artigo 1º, nº 3, o objectivo de «Realizar a
cooperação internacional… promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e
pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião».
Em execução desse objectivo, veio a ser proclamada a Declaração Universal dos Direitos do
Homem22.
Foi com este instrumento jurídico internacional que todos os homens (não já apenas os
cidadãos da Declaração Francesa), passaram a sujeitos de direitos.
Com a integração dos direitos fundamentais na Declaração Universal se atinge o patamar em
que os direitos fundamentais obtêm uma protecção de segundo grau23: — Tendem a ser
19 «Art. 23. Sob a reserva e em conformidade com as disposições das Convenções internacionais actualmente existentes ou que serão ulteriormente concluídas, os membros da Sociedade: 1. esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o homem, a mulher e a criança nos seus próprios territórios, assim como em todos os países aos quais se estendam suas relações de comércio e indústria e, com esse fim, por fundar e sustentar as organizações internacionais necessárias; 2. comprometem-se a garantir o tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à sua administração; 3. encarregam a Sociedade da fiscalização geral dos acordos relativos ao tráfico de mulheres e crianças, ao comércio do ópio e de outras drogas nocivas;…» in http://www.nepp-dh.ufrj.br/sociedade_nacoes6.html 20 em São Francisco, Estados Unidos da América, entre 25 de Abril de 26 de Junho de 1945, pelos delegados de cinquenta países 21 publicada no Diário da República, I Série-A, nº 117, de 22/05/1992 22 aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 10/12/1948, publicada no Diário da República, I Série, nº 57, de 09/03/1978 23 Bobbio, citado, pág. 39
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protegidos não já somente no âmbito do estado, mas também contra o próprio estado, quando
este deixar de cumprir as suas obrigações constitucionais em relação aos seus súbditos:
«Desde a declaração universal, a protecção dos direitos naturais tende a ter em si mesma
eficácia jurídica e valor universal. E o indivíduo tende a converter-se de sujeito de uma
comunidade estatal, em sujeito também da comunidade internacional, potencialmente
universal.»24.
Posteriormente, e por se reconhecer que a Declaração Universal não é mais do que um
documento assertivo, «não é um tratado ou convenção…»25 e, portanto, não vincula os
Estados, foi desde logo reconhecida a necessidade de efectivação dos direitos declarados,
através de um texto vinculativo.
Em 1950, a Assembleia-geral da ONU aprovou uma Resolução em que pedia à Comissão dos
Direitos do Homem, que elaborasse os documentos necessários a essa efectivação.
Assim, foram elaborados e aprovados pela Assembleia Geral da ONU, em 16/12/1966, o
Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos; o
primeiro entrou em vigor em 03/01/1976, e o segundo em 23/03/1976, após o depósito do
trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão.
O s d i r e i t o s d o h o m e m n o s i s t e m a e u r o p e u
Entre 8 e 10 de Maio de 1948 reuniu na Haia o 1º Congresso da Europa, tendo sido aí
decidido criar o Conselho da Europa; os estatutos desta organização internacional de âmbito
regional foram aprovados em Londres, em 5 de Maio de 1949.
O objectivo deste Conselho era (artigo 1º dos Estatutos) o de “realizar uma união mais
estreita entre os seus membros com vista a salvaguardar e promover os ideais e princípios
que são o seu património comum e favorecer o seu progresso económico e social”.
São assim objectivos fundamentais do Conselho da Europa26: “defender os princípios da
democracia e dos direitos do homem; promover os valores humanos e a melhoria da
qualidade de vida dos europeus; favorecer a compreensão mútua entre os povos da Europa;
desenvolver o sentimento de identidade europeia assente no seu património comum”.
24 idem, ibidem 25 Jorge Miranda, Escritos vários, pág. 106 26 António José Fernandes, ibidem, pág. 57
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Para prosseguir esses objectivos (artigo 3º dos Estatutos), “todos os membros do Conselho da
Europa reconhecem o princípio da primazia do direito em virtude do qual toda e qualquer
pessoa colocada sob a sua jurisdição deve usufruir dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais”.
Em 4 de Novembro de 1950, reunidos em Roma, os estados membros do Conselho da Europa
aprovaram a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a
qual entrou em vigor em 3 de Setembro de 195327.
Em 1959 foi instituído o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo sido reconhecida a
obrigatoriedade da sua jurisdição e, pelo Protocolo nº 928, o direito postulatório individual.
Como refere Jorge de Jesus Ferreira Alves29 «Ao contrário de outros textos de direito
internacional, a Convenção garante um controlo jurisdicional efectivo dos direitos nela
consagrados, sendo, portanto, o modelo mais perfeito dessa garantia… A Convenção visa
proteger direitos “não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efectivos”… A Convenção
estabelece um sistema que concede uma protecção credível contra a sua violação, através do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e da interpretação que este faz da Convenção e
seus Protocolos adicionais.».
O e s t a t u t o d a c r i a n ç a
Até à modernidade, a criança foi representada como um “ser” carecido de razão e, portanto,
imperfeito; a carência de entendimento, determinava que a criança não podia ser mais do que
o destinatário da actividade paterna de conformação ou padronização social através da
educação, a qual pressupunha a disciplina; esta, por sua vez, era entendida como compatível
com o uso da força, com intuitos correctivos; as crianças estavam sujeitas à família, cujo
poder de disposição sobre elas era mais ou menos ilimitado, consoante as latitudes culturais.
Até ao século XX, nos países em que foi produzida legislação incidente nas crianças, a
preocupação era a da questão social provocada pela orfandade ou abandono, situações muitas
vezes conducentes a comportamentos anti-sociais, como a mendicidade ou a delinquência.
Assim, as leis produzidas, tinham mais em vista a protecção da sociedade do que
propriamente a protecção das crianças; as leis tinham um cunho marcadamente higienista,
27 aprovada, para ratificação, pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro 28 ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 12/94, de 7 de Março 29 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, pág. 10
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sendo a preocupação maior a de afastar as crianças órfãs, abandonadas e/ou delinquentes do
convívio social.
As leis visavam a educação compulsória das crianças privadas de inserção familiar,
promovendo o internamento em regime fechado até à maioridade; nas instituições acolhedoras
misturavam-se crianças órfãs e abandonadas com crianças delinquentes.
Em 1874, ocorreu em Nova Iorque, Estados Unidos da América, o que ficou conhecido como
o “Caso Mary Ellen”. Mary Ellen Wilson era uma criança órfã de pai e abandonada pela mãe,
que foi entregue, com a idade de dois anos, por uma instituição pública municipal da cidade
de Nova Iorque, Estados Unidos da América, a um casal, cujo membro masculino passou a
arrogar-se a qualidade de seu pai biológico; tendo este morrido, a viúva voltou a casar e
passou a maltratar gravemente a pequena Mary Ellen30. Uma assistente social, que se
30 In http://www.americanhumane.org/site/PageServer?pagename=wh_mission_maryellen_wheeler, American Humane Association: Em 1864, filha de Francis e Thomas Wilson, nasceu em Nova Iorque uma menina a quem foi posto o nome de Mary Ellen. Pouco depois do seu nascimento, Thomas morreu e Francis foi forçada a trabalhar fora de casa. Não podendo tomar conta de Mary Ellen, Francis alojou a criança em casa de uma mulher, Mary Score, mediante pagamento de uma quantia em dinheiro. A situação económica de Francis deteriorou-se e deixou de poder fazer os pagamentos a Mary Score; deixou também de visitar a menina. Sem pagamento e sem notícias de Francis, Mary Score entregou a criança, com dois anos de idade, ao “Department of Charities”, entidade que, na cidade de Nova Iorque, tinha cometida a tarefa, entre outras, de prover às crianças sem família. Este departamento veio a colocar a criança na casa de Mary e Thomas Cormack; após essa colocação, o departamento negligenciou a supervisão das condições de vida da pequena Mary Ellen, de quem Thomas passou a dizer-se pai biológico. Pouco tempo após a colocação da criança, Thomas veio a falecer. Mary Cormack casou com Francis Connolly e o casal mudou para uma nova casa, num prédio de apartamentos. Mary maltratava a menina, o que era conhecido dos vizinhos. Pouco tempo depois, o casal voltou a mudar de casa. Em 1874, um dos anteriores vizinhos do casal, pediu a uma assistente social de uma Missão Metodista, Etta Wheeler — que regularmente visitava os moradores pobres e/ou doentes —, que procurasse saber como se encontrava a pequena Mary Ellen. Etta Wheeler deslocou-se à nova morada de Mary Ellen, onde falou com uma vizinha, Mary Smitt, doente crónica e confinada à casa, a qual lhe referiu que frequentemente ouvia gritos de criança vindos da casa dos Connolly. Sob pretexto de solicitar ajuda para Mary Smitt, Etta Wheeler apresentou-se a Mary Connoly e assim pôde ver por si própria a condição da pequena Mary Ellen, então com dez anos de idade: — A criança estava suja e magra, vestida com roupas velhas e puídas; aparentava não ter mais de cinco anos de idade e no momento da visita lavava, numa bacia pousada sobre um banco, uma frigideira de peso quase igual ao seu próprio. Segundo o relato da própria Etta Wheeler, «sobre a mesa encontrava-se um chicote de fitas de couro torcidas e as magras pernas e braços da criança apresentavam muitas marcas do seu uso». Nesse tempo, alguns estados americanos já tinham leis proibindo o excessivo uso da força na disciplina das crianças; no caso concreto de Nova Iorque, havia uma lei que permitia ao Estado recolher crianças vítimas de negligência por parte dos seus guardadores. Apesar disso, as autoridades de Nova Iorque, baseadas na sua interpretação dessa lei e no relato de Etta Wheeler, mostravam-se relutantes em intervir. Etta não desistiu de ajudar a pequena Mary Ellen e dirigiu-se a Henry Bergh, fundador da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade sobre Animais; foi a sobrinha de Etta quem a convenceu a procurar Bergh, dizendo-lhe que Mary Ellen era seguramente e para todos os efeitos, um pequeno membro do reino animal. Henry Bergh abraçou a causa da pequena Mary Ellen, enquanto cidadão preocupado com o tratamento desumano que vinha sendo dado àquela criança. Etta obteve os testemunhos de vizinhos do casal Connolly segundo os quais a pequena Mary Ellen era frequentemente alvo de maus tratos por parte de Mary Connolly. Henry Bergh deu início a um processo judicial com vista à retirada de Mary Ellen da casa de Mary Connolly, alegando tratamento desumano. A opinião pública foi mobilizada através de extensa cobertura jornalística. No dia em que compareceu perante o juiz, Mary Ellen estava vestida de trapos, com o corpo coberto de escoriações e tinha uma ferida do sobrolho esquerdo à face, onde Mary Connolly a tinha
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dedicava a visitar e assistir membros da comunidade necessitados de auxílio por razões de
idade, doença ou pobreza, tomou conhecimento do caso e tentou que as autoridades retirassem
a criança aos seus guardadores. Apesar de existirem, já nessa altura, na cidade de Nova
Iorque, leis que permitiam a retirada de crianças a quem tivesse a sua guarda, com
fundamento em maus tratos que lhe fossem infligidos, os apelos da assistente social não
foram atendidos; em desespero, levou o caso ao líder do movimento humanista nos Estados
Unidos — Henry Bergh —, até então apenas dedicado à protecção dos animais. Sensibilizado,
Henry Bergh, fez sua a tarefa de conseguir a retirada da criança aos seus guardadores. Com o
auxílio de um advogado, também ligado ao movimento humanista americano, levou o caso a
tribunal onde o juiz proferiu uma primeira ordem que pôs a criança sob protecção do tribunal;
após ouvir a própria Mary Ellen, o juiz acabou por decidir retirá-la definitivamente aos seus
guardadores.
Apesar da dedicação de Henry Bergh ao movimento humanista de protecção dos animais, os
relatos que referem que — na falta de legislação própria de protecção das crianças —, teria
sido invocada em tribunal a lei de protecção dos animais31, não correspondem à realidade:
“…algumas das imprecisões nascem de coloridos, mas erróneos, relatos jornalísticos, outras
de simples má interpretação dos factos, outras ainda da complexidade da história do
movimento de protecção das crianças nos estados Unidos e na Grã-bretanha e as respectivas
ligações ao movimento para o bem estar dos animais…” (In site da American Humane
Association, endereço referido na nota de rodapé “7”); posto ter Henry Bergh desempenhado
um instrumental, porém relevante, papel na retirada de Mary Ellen aos seus guardadores, não
é verdade que o seu advogado — ele próprio ligado ao movimento humanista animal —,
tenha argumentado que Mary Ellen merecia protecção enquanto “membro do reino animal”;
numa audiência do tribunal que julgou este caso, Henry Bergh declarou que não actuava na
sua qualidade de presidente da Sociedade Nova Iorquina para a Prevenção da Crueldade sobre
os Animais — antes enfatizou que actuava neste caso, “determinado, no quadro legal
aplicável, a impedir as frequentes crueldades praticadas sobre as crianças”.
atingido com uma tesoura. O juiz emitiu uma ordem colocando Mary Ellen sob protecção judicial. Em Abril de 1874, Mary Connolly foi condenada a um ano de trabalhos forçados, pelo crime de agressão dolosa cometido sobre a pequena Mary Ellen. Quanto a esta, o tribunal colocou-a num abrigo institucional para adolescentes; entendendo que esta situação não era apropriada para uma criança de dez anos, Etta Wheeler pediu ao juiz que colocasse Mary Ellen à guarda da sua própria mãe, o que foi concedido. Depois da morte da mãe de Etta Wheeler, a pequena Mary Ellen, passou a viver com uma irmã de Etta, situação que se manteve até que, com a idade de 24 anos, veio a casar. 31 Geraldine Van Bueren, “The International Law on the Rights of the Child”, citada em Jacob Dolinger, “A Criança no Direito Internacional”, pág. 81, nota 3
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Este “Caso Mary Ellen”, foi o ponto de partida de um movimento mundial de apoio à criança
maltratada ou negligenciada; nomeadamente nos Estados Unidos da América e na
Grã-bretanha, os membros das já existentes sociedades humanistas de protecção dos animais,
seguiram o exemplo de Henry Bergh e passaram a dar atenção, também, ao problema dos
maus tratos infligidos a crianças.
Em Nova Iorque, em 1874, foi fundada a Sociedade Nova Iorquina para a Prevenção da
Crueldade sobre Crianças (New York Society for the Prevention of Cruelty to Children –
SPCC); esta foi a primeira instituição do seu género.
Em 1877, a SPCC e várias outras sociedades para a prevenção da crueldade sobre animais de
todo o país, juntaram-se para formar a Associação Humanista Americana (American Humane
Association), que se vem ocupando, até à actualidade, do bem estar das crianças e dos
animais. Por todo o mundo, o Caso Mary Ellen espoletou uma vaga de interesse sobre as
crianças, de que resultou o nascimento de muitos movimentos cívicos determinados à sua
protecção.
Em Dezembro de 1946, foi criada a UNICEF – Fundo Internacional de Emergência das
Nações Unidas para as Crianças, com o fim de ajudar as crianças da Europa vítimas da II
Guerra Mundial. No início da década de 50, o seu mandato foi alargado para responder às
necessidades das crianças e das mães nos países em desenvolvimento. Em 1953, tornou-se
uma agência permanente das Nações Unidas, passou a designar-se Fundo das Nações Unidas
para a Infância, mantendo embora a sigla inicial.
Em 29/30 de Setembro de 1990 a UNICEF secretariou a reunião dedicada aos problemas das
crianças, que teve lugar em Nova Iorque; a Cimeira Mundial para as Crianças32 foi o maior
encontro de líderes mundiais, tendo comparecido 71 chefes de estado e 88 outros altos
representantes, a maioria dos quais de nível ministerial. Foram adoptadas a “Declaração para
a Sobrevivência, Protecção e Desenvolvimento das Crianças”33 e um “Plano de Acção para
Implementação da Declaração nos anos 90”34/35.
Entre 8 e 10 de Maio de 2002 teve lugar a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU
32 “World Summit for Children” 33 “Declaration on the Survival, Protection and Development of Children” 34 “Plan of Action for implementing the Declaration in the 1990s” 35 ambos os documentos podem ser consultados in http://www.unicef.org/wsc/plan.htm
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sobre Crianças, na qual participaram mais de 7.000 pessoas36. Nesta Sessão Especial,
participaram crianças como delegados oficiais e quatro governos (os da Holanda, da Noruega,
da Suécia e do Togo) fizeram-se representar por jovens nas suas comunicações à Assembleia
Geral. Do trabalho de construção de consenso, que durou mais de dois anos, resultou uma
agenda para o futuro, focada em quatro prioridades: promoção de vidas saudáveis; promoção
do acesso de todos a educação de qualidade; protecção das crianças contra o abuso,
exploração e violência; combate ao HIV/SIDA. Esta Sessão Especial culminou com a
adopção do documento “Um mundo para as crianças”37. Neste documento, os líderes
mundiais são convocados a completar a agenda da Cimeira Mundial para as Crianças de 1990,
ainda não integralmente cumprida, e a perseguir outros objectivos, em particular aqueles da
Declaração do Milénio38: «Reconhecemos que, ademais das nossas responsabilidades
individuais para com as nossas próprias sociedades, temos uma responsabilidade colectiva
de defender os princípios da dignidade humana, da igualdade e da equidade ao nível global.
Enquanto lideres temos portanto um dever perante todas as pessoas do mundo, especialmente
as mais vulneráveis e, em particular, as crianças do mundo, a quem o futuro pertence».
A p r o t e c ç ã o d a c r i a n ç a n a l e i i n t e r n a c i o n a l
A protecção das crianças por via legislativa internacional, tem os seus primórdios na
Convenção aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, a qual veio
proibir o trabalho nocturno na indústria aos menores de 18 anos (Decreto nº 15.361 de
03/04/1928 , Diário do Governo, I Série, nº 207, de 14/04/1928).
Seguiu-se-lhe a Convenção sobre Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, adoptada em
1921 pela Liga das Nações.
Foi também sob os auspícios da Liga das Nações que, em 1924, veio a ser aprovada a
Declaração de Genebra sobre Direitos das Crianças, que foi proclamada como a “Carta da
Liga sobe a Criança”, assim redigida39:
«Pela presente Declaração dos Direitos da Criança, comummente conhecida como a
Declaração de Genebra, homens e mulheres de todas as nações, reconhecendo que a
Humanidade deve à criança o melhor que tem a dar, declara e aceita como sua
36 http://www.unicef.org/specialsession/ 37 in http://www.unicef.org/specialsession/docs_new/documents/A-RES-S27-2E.pdf, “A world fit for children” 38 in http://www.un.org/millennium/ - Resolução A/RES/55/2 39 texto em inglês no Anexo II
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obrigação que, acima e além de quaisquer considerações de raça, nacionalidade ou
crença:
I – A criança deve receber os meios necessários para seu desenvolvimento normal,
tanto material como espiritual;
II – A criança que estiver com fome deve ser alimentada; a criança que estiver doente
precisa ser ajudada; a criança atrasada precisa ser ajudada; a criança delinquente
precisa ser recuperada; o órfão e o abandonado precisam ser protegidos e
socorridos;
III – A criança deverá ser a primeira a receber socorro em tempos de dificuldades;
IV – A criança precisa ter possibilidades de ganhar seu sustento e deve ser protegida
de toda a forma de exploração;
V – A criança deverá ser educada com a consciência de que seus talentos devem ser
dedicados ao serviço de seus semelhantes.».
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, já contém referências à criança nos
seus artigos 2540 e 2641.
Em 20 de Novembro de 1959, a Assembleia Geral da ONU aprovou, pela Resolução da
Assembleia Geral nº 1386, a Declaração dos Direitos da Criança, a qual proclama dez
princípios42:
«Princípio 1º – A criança gozará dos direitos enunciados nesta Declaração. Estes
direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma,
independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou
social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação.
40 “2 – A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.” 41 “1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.” 42 texto em inglês no Anexo III
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Princípio 2º – A criança gozará de uma protecção especial e beneficiará de
oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa
desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e
normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com
este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da
criança.
Princípio 3º – A criança tem direito desde o nascimento a um nome e a uma
nacionalidade.
Princípio 4º – A criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e
a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à
criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e
pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e
cuidados médicos.
Princípio 5º – A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma
diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados
especiais requeridos pela sua particular condição.
Princípio 6º – A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso
desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os
cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente
de afecto e segurança moral e material; salvo em circunstâncias excepcionais, a
criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe. A sociedade e as
autoridades públicas têm o dever de cuidar especialmente das crianças sem família e
das que careçam de meios de subsistência. Para a manutenção dos filhos de famílias
numerosas é conveniente a atribuição de subsídios estatais ou outra assistência.
Princípio 7º – A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória,
pelo menos nos graus elementares.
Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em
condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu
sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade.
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O interesse superior da criança deve ser o princípio directivo de quem tem a
responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em
primeiro lugar, aos seus pais.
A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades
recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação; a
sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes
direitos.
Princípio 8º – A criança deve, em todas as circunstâncias, ser das primeiras a
beneficiar de protecção e socorro.
Princípio 9º – A criança deve ser protegida contra todas as formas de abandono,
crueldade e exploração, e não deverá ser objecto de qualquer tipo de tráfico. A
criança não deverá ser admitida ao emprego antes de uma idade mínima adequada, e
em caso algum será permitido que se dedique a uma ocupação ou emprego que possa
prejudicar a sua saúde e impedir o seu desenvolvimento físico, mental e moral.
Princípio 10º – A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar
a discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Deve ser educada
num espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade
universal, e com plena consciência de que deve devotar as suas energias e aptidões ao
serviço dos seus semelhantes.»
A declaração faz expresso apelo, no seu preâmbulo, à Declaração de Genebra de 1924 e à
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, assumindo assim a sua natureza
tributária daqueles dois instrumentos43.
Surpreendem-se nesta Declaração de 1959 evidentes novidades, relativamente à Declaração
de 1924.
A criança passa, de mero destinatário dos cuidados preconizados, a sujeito de direito
internacional, logo com capacidade de gozo de direitos e liberdades44;
É reconhecido à criança o direito ao afecto (“amor e compreensão”, princípio 6º);
43 “…WHEREAS the need for such special safeguards has been stated in the Geneva Declaration of the Rights of the Child of 1924, and recognized in the Universal Declaration of Human Rights and in the statutes of specialized agencies and international organizations concerned with the welfare of children…” 44 Jacob Dolinger, “A criança no direito internacional”, pág.83
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É reconhecido à criança o direito de brincar (“A criança deve ter plena oportunidade para
brincar e para se dedicar a actividades recreativas”, princípio 7º, quarto parágrafo);
Introduz o conceito de interesse superior da criança (“best interest”, na versão inglesa;
“l'intérêt supérieur”, na versão francesa; “interés superior”, na versão castelhana; “melhores
interesses”, na versão brasileira).
A este conceito, passa a ficar subordinada a actividade legislativa que tenha a criança por
destinatária (princípio 2º); o melhor (superior) interesse da criança será o princípio directivo
(guiding principle) dos responsáveis pela sua educação e orientação (princípio 7º, terceiro
parágrafo).
Como sucedia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, também esta Declaração
dos Direitos da Criança estava destituída de força legal: tinha apenas «valor moral, histórico e
filosófico, sem maiores consequências jurídicas»45.
Outros instrumentos — além da Declaração Universal dos Direitos do Homem —, vieram a
referir direitos das crianças: o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e
Culturais de 1966 [artigos 10, nº 346; 12, nº 2, a)47; 13, nº 148]; o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 2449).
Em 1 de Janeiro de 1979, o Secretário Geral da ONU assinou a proclamação desse ano de
1979, como o ”Ano Internacional da Criança”.
Sob proposta da Polónia, foi deliberada pela Assembleia Geral da ONU cometer à Comissão
45 Jacob Dolinger, ibidem, pág. 84 46 “Medidas especiais de protecção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras. Crianças e adolescentes devem ser protegidos contra a exploração económica e social. O seu emprego em trabalhos de natureza a comprometer a sua moralidade ou a sua saúde, capazes de pôr em perigo a sua vida, ou de prejudicar o seu desenvolvimento normal deve ser sujeito à sanção da lei. Os Estados devem também fixar os limites de idade abaixo dos quais o emprego de mão-de-obra infantil será interdito e sujeito às sanções da lei.” 47 “As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:… A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança” 48 “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Concordam também que a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar um papel útil numa sociedade livre, promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais, étnicos e religiosos, e favorecer as actividades das Nações Unidas para a conservação da paz.” 49 “1. Qualquer criança, sem nenhuma discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento, tem direito, da parte da sua família, da sociedade e do Estado, às medidas de protecção que exija a sua condição de menor. 2. Toda e qualquer criança deve ser registada imediatamente após o nascimento e ter um nome. 3. Toda e qualquer criança tem o direito de adquirir uma nacionalidade.”
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de Direitos Humanos a preparação de um tratado, que consagrasse legalmente os princípios
proclamados pela Declaração de 1959.
Em 20 de Novembro de 1989, veio a ser aprovada a Convenção dos Direitos da Criança, que
entrou em vigor em 2 de Setembro de 1990, depois de depositado, junto do Secretário Geral
da ONU, o 20º instrumento de ratificação ou adesão. Em 09/06/2004, de todos os membros da
ONU, apenas a Somália e os Estados Unidos não haviam ainda ratificado a Convenção (apud
“Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties”, que pode ser
consultado em http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf).
A “Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de
1990, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, em 8
de Junho de 1990”, foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12 de
Setembro; por conseguinte — e nos termos do disposto no artigo 8º, nº 2, da Constituição da
República Portuguesa50 —, a Convenção vigora na ordem interna desde a data da sua
publicação oficial, a qual ocorreu no Diário da República I Série, nº 211, de 12/09/1990.
Para os efeitos da Convenção, “criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos
termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”51.
A Convenção — tal como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de que se confessa
tributária —, trata de direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos; mas vai mais
longe, quando introduz novos conceitos, como o do “direito à identidade”52; embora implícito
na Declaração (quando no seu artigo 6º afirma o direito de todo o ser humano ao
reconhecimento da personalidade jurídica), aí não se declara expressamente o direito à
identidade pessoal.
No artigo 12º, a Convenção vem instituir o direito da criança a ser ouvida nos processos
judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante
ou organismos adequado; não é fixado qualquer limite de idade, ficando este direito de ser
ouvida apenas condicionado à posse, pela criança, de “capacidade de discernimento” (child
who is capable of forming his or her own views).
50 «Artigo 8. (Direito Internacional)… 2 - As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.» 51 artigo 1º 52 artigo 8º: “Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal.”
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A Convenção instituiu o Comité dos Direitos da Criança53, ao qual ficou confiada a tarefa de
“examinar os progressos realizados pelos Estados Partes no cumprimento das obrigações
que lhes cabem nos termos” da Convenção.
Na primeira sessão do seu 22º encontro, que teve lugar em 15/10/1991 o Comité produziu o
documento “Linhas gerais visando a forma e conteúdo dos relatórios iniciais54”, no qual
instituiu como “Princípios gerais”: «13. Deve ser fornecida informação relevante, incluindo
as principais medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras, em vigor ou previstas,
factores e dificuldades encontradas e progresso alcançado na implementação das disposições
da Convenção, e prioridades de implementação e objectivos específicos para o futuro, com
respeito a: (a) Não-disciminação (artº 2); (b) Melhor interesse da criança (artº 3); (c) O
direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento (artº 6); (d) Respeito pelas opiniões da
criança (artº 12).».
A Comissão de Direitos Humanos da ONU preparou dois Protocolos Opcionais à Convenção,
adoptados e abertos para assinatura, ratificação ou adesão pela Resolução A/RES/54/263, da
Assembleia Geral da ONU, de 25 de Maio de 200055: o primeiro, visando “A venda de
crianças, prostituição infantil e pornografia infantil”, entrou em vigor em 18 de Janeiro de
200256; o segundo, visando “A participação de crianças em conflitos armados” entrou em
vigor em 12 de Fevereiro de 200257.
A Assembleia Geral da ONU adoptou, em 15 de Novembro de 2000, pela sua Resolução
55/25, a Convenção contra Crime Organizado Transnacional e, em suplemento, dois
Protocolos, um dos quais tem o objectivo de “Prevenir, Suprimir e Punir Tráfico de Pessoas,
Especialmente Mulheres e Crianças”58.
Em 20 de Novembro de 2001 o Conselho de Segurança da ONU adoptou a Resolução 137959
em que, recordando várias resoluções anteriores, faz apelo a todos os envolvidos em conflitos
armados para que respeitem as disposições da lei internacional relativas aos direitos e
protecção das crianças.
53 artigo 43º, nº 1 54 in http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/CRC.C.5.En?Opendocument: “General guidelines regarding the form and content of initial reports to be submitted by states parties under article 44, paragraph 1 (a), of the convention” 55 in http://www2.ohchr.org/english/law/crc-sale.htm 56 ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 14/2003, de 5 de Março 57 ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 22/2003, de 28 de Março 58 in http://www.unodc.org/documents/treaties/UNTOC/Publications/TOC%20Convention/TOCebook-e.pdf 59 in http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/651/10/PDF/N0165110.pdf?OpenElement
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Direito Internacional Privado
A Conferência Permanente de Direito Internacional Privado da Haia, produziu diversas
convenções pertinentes às crianças, nomeadamente quanto a alimentos, adopção, sequestro de
filhos; quanto a protecção propriamente dita, sucederam-se três convenções: a de 1902
(Convenção para Regular a Tutela de Menores60); a de 1961 (Convenção Relativa à
Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores61); e a
de 1966 (Convenção da Haia de 1996 Relativa à Jurisdição, à Lei Aplicável, ao
Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e de
Medidas de Protecção dos Filhos)62; segundo o artigo 51º desta última, a Convenção de 1996
substitui as de 1902 e 1961, sem prejuízo do reconhecimento das medidas tomadas na
vigência da Convenção de 1961.
A Convenção de 1996 prescreve no seu artigo 23º que as medidas tomadas pelas autoridades
de um Estado Contratante será reconhecidas ex vi lege em todos os restantes Estados
Contratantes; mas o mesmo artigo, no seu número 2, estipula que o conhecimento será
negado, nomeadamente, se a medida foi tomada no contexto de procedimento judicial ou
administrativo sem ter sido dada à criança (salvo em caso de urgência) a oportunidade de ser
ouvida, em violação da lei do Estado em que o reconhecimento é pretendido; no Relatório
Explicativo da Convenção63, de Paul Lagarde, a recusa de reconhecimento na falta de audição
da criança é explicada nos seguintes termos: «Este fundamento de recusa é directamente
inspirado pelo Artigo 12, parágrafo 2, da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos das
Crianças. Não significa que a criança deva ser ouvida em todos os casos. Foi feito notar,
com boa razão, que não é sempre do interesse da criança ter que emitir uma opinião, em
particular se os dois pais estão de acordo quanto à medida a tomar. É apenas quando a falta
de audição da criança é contrária aos princípios fundamentais do Estado requerido que tal
pode justificar a recusa de reconhecimento.».
60 Carta Régia de 07/02/1907, Diário do Governo º 62, de 12/06/1902 61 Decreto-lei nº 48494, de 22/07/1968 62 assinada por todos os estados membros da União Europeia os quais foram autorizados a ratificá-la ou a aderirem a ela individualmente (Decisão do Conselho (2003/93/CE), de 19 de Dezembro de 2002) 63 http://hcch.e-vision.nl/upload/expl34.pdf
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A protecção da criança no sistema europeu
Em 25 de Janeiro de 1996, foi assinada em Estrasburgo a “Convenção Europeia sobre o
Exercício dos Direitos das Crianças64”, a qual entrou em vigor em 1 de Julho de 2000, após as
três ratificações necessárias, incluindo as de dois estados membros do Conselho da Europa.
A Convenção aplica-se aos menores de 18 anos65 e tem por objecto, no melhor interesse das
crianças («in the best interests of children»), promover os seus direitos, garantir-lhes direitos
processuais e facilitar o exercício desses direitos através da asseguração de que as crianças
são informadas e admitidas a participar, pessoalmente ou por intermédio de outras pessoas ou
instituições, em procedimentos perante uma autoridade judicial que as afectem66; para efeitos
da Convenção, “procedimentos perante uma autoridade judicial afectando crianças” são os
processos de família, em particular aqueles que envolvam o exercício de responsabilidades
parentais, tais como residência e acesso às crianças67.
A Convenção atribui à criança sujeita a procedimento judicial os direitos processuais de ser
informada e de expressar as suas opiniões no âmbito do processo e de solicitar a nomeação de
um representante especial; nos termos do artigo 2º da Convenção, por “representante
especial” entende-se «uma pessoa, tal como um advogado, ou uma instituição nomeada para
intervir perante uma autoridade judicial em representação de uma criança».
O exercício destes direitos está ou pode ser condicionado: (i) no caso do direito a ser
informada e expressar as suas opiniões, depende do reconhecimento, pela lei interna, que é
possuidora de “suficiente entendimento”68; (ii) no caso do direito de solicitar a nomeação de
representante especial, os Estados podem limitar o seu exercício às crianças a que a lei interna
reconheça terem “suficiente entendimento”69.
64 texto em inglês no Anexo V 65 artigo 1, nº 1 66 artigo 1, nº 2 67 artigo 1, nº 3 68 artigo 4º, nº 1 69 artigo 4º, nº 2
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O S u p e r i o r I n t e r e s s e d a C r i a n ç a
Como já vimos supra, a Convenção dispõe, no seu artigo 3º, nº 1, que «Todas as decisões
relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por
tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta
o interesse superior da criança.» (versão portuguesa). A expressão que consta da versão
inglesa da Convenção é “the best interests of the child shall be a primary consideration”; já
quanto à versão francesa a expressão é “l'intérêt supérieur de l'enfant doit être une
considération primordiale”; na versão castelhana “una consideración primordial a que se
atenderá será el interés superior del niño”; na versão brasileira “devem considerar,
primordialmente, o interesse maior da criança”.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança, no seu princípio 2º, estipulava que «Ao
promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse
superior da criança.» (versão portuguesa). A expressão constante da versão inglesa é « In the
enactment of laws for this purpose, the best interests of the child shall be the paramount
consideration.»; a versão francesa prevê «Dans l'adoption de lois à cette fin, l'intérêt supérieur
de l'enfant doit être la considération determinante»; e na espanhola lê-se: «Al promulgar leyes
con este fin, la consideración fundamental a que se atenderá será el interés superior del niño.»;
já a versão brasileira prevê «Na instituição das leis visando este objectivo, levar-se-ão em
conta sobretudo, os melhores interesses das crianças».
Entre as versões inglesa da Convenção e da Declaração, surpreende-se uma evidente diferença
no que toca à consideração que deve ser dada aos “best interests of the child”: enquanto na
Declaração devia ser A consideração mais importante (paramount = more important than
anything else70), na Convenção será UMA consideração primária (a primary consideration).
Parece existir “uma manifesta involução71” que Jacob Dolinger (loc. cit.) reconhece, mas tem
por feliz: «O interesse da criança, individualmente considerada, poderá conflituar com o
interesse da colectividade das crianças ou com a ordem pública, i. e., com algum princípio
fundamental de natureza legal constitucional, com algum compromisso internacional, com
algum princípio moral ou com algum interesse económico inalienável, que, em última
análise, seja benéfico à própria criança cujo problema está sendo examinado».
70 apud Longman Dictionary of Contemporary English 71 Jacob Dolinger, “A Criança no Direito Internacional”, pág. 89
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Por outro lado, constata-se também uma diferença evidente, quer na Declaração, quer na
Convenção, entre as versões portuguesa, espanhola e francesa, por um lado, e as versões
inglesa e brasileira, por outro; enquanto as primeiras elegem o vocábulo “superior”, as
segundas elegem os vocábulos “best”, “maior” e “melhores”. Será porventura despicienda
uma reflexão profunda sobre a escolha das palavras; mas não podemos deixar de ponderar
que, pelo menos em português, dizer “o interesse superior da criança” parece não ser o mesmo
que dizer “os melhores interesses da criança”; de algum modo, fica-nos a sensação que, no
primeiro caso, nos estamos referindo a uma “criança ideal” e a um seu “superior interesse”,
também ideal; enquanto que no segundo já pensamos numa concreta criança, aquela cujo
problema estamos procurando resolver no sentido dos seus melhores interesses.
Seja como for, dúvidas não há de que, com qualquer dos vocábulos — “superior”, “maior” ou
“melhor” —, estamos em presença de uma cláusula geral ou conceito indeterminado; trata-se
de «uma noção em desenvolvimento contínuo e progressivo» face ao qual «o juiz não se limita
a declarar o direito mas procede a uma adaptação deste aos factos e às situações sociais»; ao
utilizar este conceito, o legislador permite que o juiz, vendo reforçados os seus poderes
interpretativos, decida «em oportunidade»72.
Tratando-se de um conceito que se apresenta estreitamente ligado à realidade quotidiana, não
se mostra definível em abstracto, devendo antes «ser investigado, em cada caso concreto,
sempre e sempre de novo»73.
Mas será este um conceito normativo — contendo uma única solução possível, a descobrir por
via de interpretação —, ou será antes um «conceito discricionário, portador de várias
soluções, igualmente válidas, cuja escolha dependeria de um parecer pessoal do juiz»74? A
esta questão responde Maria Clara Sottomayor, defendendo que é possível distinguir, dentro
do conceito, duas zonas: a do núcleo e a do halo; o núcleo pode ser preenchido com recurso a
valoração de factores objectivos, verificáveis e efectivamente verificados, enquanto no halo se
verifica um maior grau de incerteza, impossível de superar mediante o recurso a princípios
jurídicos ou a valores gerais, exigindo do juiz uma decisão pessoal; entre estas duas áreas
extremas existiria uma zona intermédia, na qual o julgador penderia para critérios objectivos
ou para a sua concepção pessoal.
72 Maria Clara Sottomayor, “Exercício do Poder Paternal Relativamente à Pessoa do Filho…”, págs. 51/53 73 idem, ibidem, pág. 54, citando outros autores 74 idem, ibidem, ibidem, pág. 59
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E acrescenta a mesma Autora: «Nas questões de família… a descoberta do “justo” faz apelo
a processos psicológicos de decisão não inteiramente racionalizáveis, o que não significa que
sejam irracionais. No entanto, o julgador não pode seguir acriticamente a conclusão a que o
conduz o seu sentimento jurídico, pois nele poderiam estar contidos os seus preconceitos, a
sua experiência pessoal da vida, a sua visão do mundo»75.
Relativamente ao «interesse do menor» escrevem Rui Epifânio e António Farinha76:
«Trata-se, afinal, de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências
vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas
necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem estar
material e moral».
Almiro Simões Rodrigues77 defende que «O respeito pelo interesse do menor passa
necessariamente pela definição de um direito do menor em que sejam considerados os
diferentes estádios do seu desenvolvimento e as consequentes capacidades de que vai
dispondo, designadamente a de informação e expressão.… A definição daquele direito novo
muito ganhará se for orientada numa perspectiva interdisciplinar: a pedagogia, sociologia,
antropologia cultural, psicologia (social, do desenvolvimento e cognitiva) além de outras,
proporcionarão, certamente, contributos inestimáveis».
O mesmo Autor78 afirma que o “interesse do menor” «só poderá definir-se através da
abordagem e actuação sistémica e interdisciplinar, porquanto apenas este procedimento
garante ao menor a aprendizagem da decisão e escolha de valores e formas de se situar e de
se relacionar com os outros»; e acrescenta: «Interesse fundamental da criança é
desenvolver-se num ambiente familiar, em que possa estabelecer relações afectivas estáveis e
contínuas que lhe permitam dispor de um clima de segurança, indispensável à prossecução
das suas tarefas de desenvolvimento fundamentais.».
Descobrir qual o “interesse do menor” em cada caso concreto pode ser uma tarefa
particularmente difícil. Quando estão presentes factos que se impõem, objectivamente, como
condicionadores da decisão em determinado sentido (os constitutivos do núcleo do conceito),
a questão pode ser resolvida sem angústias especiais; mas quando estes factos não estão
75 idem, ibidem, pág. 71 76 Organização Tutelar de Menores, pág. 326 77 “Infância e Juventude”, nº 1, pág. 20 78 “Infância e Juventude”, nº 4, Outubro-Dezembro de 1986, pág. 15
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presentes e o julgador tem que apoiar-se apenas no halo do conceito, as dificuldades
aumentam.
Fixação do conteúdo do conceito por via legislativa
Uma das vias para resolver estas dificuldades é a de, por via legislativa, indicarem-se factores
a ter em conta obrigatoriamente pelo juiz, assim limitando a discricionariedade da sua
decisão.
Em Portugal, a Assembleia da República, através da Comissão de Assuntos Constitucionais,
Direitos, Liberdades e Garantias (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades), procedeu a
uma avaliação dos sistemas de acolhimento, de protecção e tutelares de crianças e jovens,
tendo sido produzido um Relatório, apresentado publicamente em 02/05/2006.
Entre as “Recomendações” apresentadas por esse Relatório, consta no ponto «2. quanto aos
instrumentos: a. clarificação dos conceitos: superior interesse da criança, urgência,
perigo;».
O Instituto de Apoio à Criança (IAC)79, anunciou em “press release” de 11/04/2008:
«A Direcção e a Presidente Executiva do Instituto de Apoio à Criança serão recebidos
pelo Presidente da Assembleia da República, no próximo dia 15 de Abril, pelas 15
horas, para entrega de um documento propondo a adopção de medidas legislativas
para clarificação do conceito legal de “Superior Interesse da Criança”, elaborado
com o contributo de diversas personalidades credenciadas na área dos Direitos da
Criança e subscrito por pessoas de diferentes áreas profissionais (juristas, pediatras,
pedopsiquiatras, psicólogos, educadores, professores, sociólogos, etc). Neste
documento propõe-se a consagração legal expressa do direito da criança à
preservação das suas ligações psicológicas profundas e à continuidade das relações
79 “O Instituto de Apoio à Criança é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, criada em 14 de Março de 1983, por um grupo de pessoas de diferentes áreas profissionais - médicos, magistrados, professores, psicólogos, juristas, sociólogos, técnicos de serviço social, educadores, etc. É uma associação sem fins lucrativos, que tem por objectivo principal contribuir para o desenvolvimento integral da criança, na defesa e promoção dos seus direitos, sendo a criança encarada na sua globalidade, como total sujeito dos seus direitos nas diferentes áreas, quer seja na saúde, educação, segurança social ou nos seus tempos livres. Pretende estimular, apoiar e divulgar o trabalho de todos aqueles que se preocupam com a procura de novas respostas para os problemas da infância em Portugal, assim como colaborar com instituições congéneres nacionais e estrangeiras. De acordo com os seus estatutos, o IAC promove: 1) Programas de informação e sensibilização; 2) Estudos, seminários, colóquios e outras iniciativas que permitam o debate e a reflexão sobre os problemas da infância na sociedade actual; 3) Pareceres e outras tomadas de posição sobre aspectos de política geral relativas à promoção dos direitos da Criança.” In http://www.iacrianca.pt/
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afectivas gratificantes e de seu interesse, direito reconhecido com base no
aprofundamento dos conhecimentos científicos actuais. Aconselha-se, também,
reafirmar o direito da criança a ser ouvida, a garantir a livre expressão do seu
pensamento e a participação nas decisões que lhe dizem respeito que o artº 12 da
Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece sem qualquer limite de idade, e já
consagrado na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.…».
Pode e deve perguntar-se qual a razão destas iniciativas — uma do órgão legislativo e outra
da sociedade civil —, no sentido da “clarificação do conceito de superior interesse da
criança”.
A resposta é dada no Relatório emanado do corpo legislativo: «Já quanto aos aplicadores do
Direito, nomeadamente quanto os Tribunais, constata-se que os magistrados não estão
convenientemente preparados no âmbito das matérias “ser criança”. É necessário que a
“cultura judiciária” passe a estar atenta aos sinais do interesse superior da criança.».
Será possível, por via legislativa, fixar o conteúdo de um conceito indeterminado?
Maria Clara Sottomayor dá notícia de ordenamentos jurídicos em que tal sucedeu80.
O “Child custody act of 1970” do Estado do Michigan, Estados Unidos da América81, é a lei,
entrada em vigor em 01/04/1971, pela qual foram: declarados os direitos dos menores;
estabelecidos os direitos e deveres relativos à sua guarda, alimentos e visitas em situações de
litígio; estabelecidos direitos e deveres relativos aos alimentos a filhos maiores em
determinadas circunstâncias; regulados determinados processos e recursos; e revogadas outras
leis ou partes delas. Na sua secção 3., é definido o conceito “best interests of the child” para
efeitos da interpretação e aplicação dessa lei: é a soma total dos factores que depois enuncia e
que são os seguintes: (a) amor, afecto e outros laços emocionais existentes entre as partes
envolvidas e a criança; (b) capacidade e disposição das partes envolvidas para dar à criança
amor, afecto e orientação e para continuar a educação religiosa da criança na sua fé, caso
exista; (c) a capacidade e disposição das partes envolvidas para providenciar à criança
alimento, vestuário, cuidados médicos e outras necessidades materiais; (d) o período de tempo
que a criança tenha vivido num ambiente estável e satisfatório e a conveniência da
manutenção da sua continuidade; (e) a permanência futura, como uma unidade familiar, do lar
80 loc. cit., pág. 66, nota 141 81 in http://www.legislature.mi.gov
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de acolhimento existente ou proposto; (f) a boa formação moral das partes envolvidas; (g) a
saúde mental e física das partes envolvidas; (h) os antecedentes da criança no que respeita ao
seu lar, à sua escola e à sua comunidade; (i) a preferência da criança, desde que seja razoável
e o tribunal considere que a criança tem idade suficiente para expressar essa preferência; (j) a
vontade e capacidade de cada uma das partes para facilitar e encorajar um relação próxima e
contínua entre a criança e o progenitor quem não seja confiada ou entre a criança e os
progenitores, no caso de não ser confiada a nenhum deles; (k) violência doméstica,
independentemente de a quem foi dirigida ou de a criança ter a ela assistido; (l) qualquer
outro factor considerado pelo tribunal como relevante para uma situação de disputa de guarda
em concreto.
O “Children Act 1989”, é a lei passada pelo Parlamento Inglês em 16/11/198982, para
reformar a lei relativa às crianças; para providenciar serviços das autoridades locais para
crianças desamparadas e outras; para alterar a lei respeitante ao acolhimento de crianças, em
lares de acolhimento registados, em lares das comunidades locais, em lares familiares
voluntários e em lares institucionais voluntários; para tomar medidas com respeito a famílias
de substituição, creches e infantários e adopção; e para tudo o que ao antecedente respeite. O
nº 1 — intitulado “Welfare of the child” —, da sua Parte I, Introdução, determina que,
quando um tribunal decide qualquer questão relativa à educação de uma criança ou à
administração da propriedade de uma criança, ou a aplicação de qualquer rendimento dela
resultante, o bem estar da criança será a mais importante consideração; em quaisquer
procedimentos nos quais surja qualquer questão respeitante à educação de uma criança, o
tribunal terá sempre em vista o princípio geral de que qualquer demora na decisão da questão
é susceptível de prejudicar o bem estar da criança; quando o tribunal decidir sobre fixação,
alteração ou cessação de regime de visitas e haja oposição de qualquer das partes envolvidas e
quando o tribunal decidir sobre fixação, alteração ou cessação de medida de protecção, deve
ter-se em conta particularmente (a) os desejos e sentimentos da criança em causa que seja
possível apurar (atendendo à respectiva idade e entendimento); (b) as suas necessidades
físicas, emocionais e educacionais; (c) os prováveis efeitos nela de qualquer mudança de
circunstâncias; (d) a sua idade, sexo, antecedentes e quaisquer características da criança que o
tribunal considere relevantes; (e) qualquer mal que a criança tenha sofrido ou esteja em risco
de sofrer; (f) a capacidade de satisfazer as necessidades da criança, de cada um dos
82 in http://www.opsi.gov.uk/
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progenitores ou de qualquer outra pessoa relativamente a quem o tribunal considere a questão
relevante; (g) o quadro de poderes concedidos ao tribunal por esta lei no procedimento em
causa. No nº 5, dispõe que, quando um tribunal estiver a considerar determinar, ou não, uma
ou mais medidas com respeito a uma criança ao abrigo desta lei, não decidirá determinar a
medida, ou qualquer das medidas, a não ser que considere que, fazê-lo, será melhor para a
criança, do que não determinar medida nenhuma.
A interdisciplinaridade na fixação do conceito
Como já vimos, Almiro Rodrigues defende uma perspectiva interdisciplinar; Maria Clara
Sotomayor secunda-o, dizendo que «A dimensão interdisciplinar do conceito de interesse da
criança postula… a assistência da psicologia e em geral de todas as ciências humanas para o
preenchimento do seu conteúdo, atenuando a dificuldade da decisão para o juiz.»83. Mas logo
acrescenta: «…as teorias psicológicas não podem fornecer, devido ao seu carácter hipotético
e genérico, uma resposta certa e indiscutível à questão da atribuição da guarda dos filhos »,
pelo que «Os dados fornecidos pelos peritos ajudarão o tribunal a determinar de forma mais
profunda quais são essas circunstâncias. Mas o parecer por eles emitido quanto à resolução
final terá apenas um valor indicativo…».
A Organização Tutelar de Menores84 prevê no seu actual artigo 147-C que o juiz pode, em
qualquer fase do processo tutelar cível, nomear ou requisitar assessores técnicos a fim de
assistirem a diligências, prestarem esclarecimentos, realizarem exames ou elaborarem
pareceres; as informações, relatórios, exames e pareceres que venham a ser incorporados no
processo são sujeitos ao contraditório das partes, as quais podem pedir esclarecimentos, juntar
outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias.
Como vimos anteriormente, uma das inovações da Declaração de 1959, foi a consagração do
direito da criança ao afecto (princípio 6º); a Convenção de 1989 reconheceu que a criança,
para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente
familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão (considerando 6º).
Parece evidente que a avaliação do ambiente familiar da criança, nomeadamente no que ao
clima de felicidade, amor e compreensão respeita, não pode ser feita pelo juiz com base
83 loc. cit., pág. 74 84 Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro
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apenas em prova testemunhal; e é também evidente que as declarações dos adultos envolvidos
não podem seriamente fundamentar — por si só —, uma decisão: se as questões relativas ao
poder paternal estão sendo resolvidas por via judicial, parece seguro que as partes não vêm os
mesmos assuntos com os mesmos olhos, e não chegam às mesmas conclusões. Pode o juiz
socorrer-se de presunções, mas estas apenas onde a prova testemunhal caiba85.
Pode (deve) o juiz ouvir a criança, posto que a sua maturidade lhe permita formar e expressar
uma opinião. Mas o tribunal será o melhor ambiente para uma criança expressar uma opinião,
caso a tenha formado? A pergunta é retórica.
Pode e deve o juiz socorrer-se da assessoria técnica; os assessores nomeados ou requisitados
são peritos, a quem competirá86 descobrir (através de entrevistas, testes, etc), articular
(perante o tribunal, emoções difíceis de exprimir pelas partes), esclarecer (o tribunal sobre
factores e considerações relevantes) e analisar (aplicando os seus conhecimentos científicos
ou técnicos a fontes de prova, para ajudar a sua revelação ao tribunal).
Almiro Rodrigues constata87 uma coincidência histórica: «No mesmo ano (1959) em que a
Assembleia Geral das Nações Unidas aprovava a Declaração dos Direitos da Criança, John
Bowlby apresentava uma nova concepção de relação afectiva e pela primeira vez empregou o
termo “attachment” para a exprimir.». E interroga: «Terão, nessa altura, os juristas e os
psicólogos feito ou desejado fazer um congresso para, por um lado, com a Declaração dos
Direitos da Criança e, por outro, com as novas concepções de atmosfera afectiva, discutir e
delinear novas alternativas?…».
85 Código Civil, artigo 351 86 Maria Clara Sotomayor, ibidem, pág. 80 87 “Infância e Juventude”, nº 4, pág. 11
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A c r i a ç ã o d e l a ç o s a f e c t i v o s
Psicanálise
Até Sigmund Freud (1856-1939), sempre foi descartado, como cientificamente
incomprovado, que as raízes da vida emocional do adulto pudessem ser surpreendidas na
infância do indivíduo.
Freud interessou-se pelo inconsciente e pelas pulsões88; adoptou como método a associação
livre e fundou a psicanálise; explorou de uma forma sistemática a ligação entre os eventos dos
primeiros anos da vida do indivíduo e a estrutura e funcionamento posterior da sua
personalidade.
A sua teoria do desenvolvimento da personalidade centrava-se na maneira como o indivíduo
satisfaz a pulsão sexual no decorrer da sua vida; segundo ele, à medida que o indivíduo
cresce, a sua líbido89 concentra-se em diversas regiões sensíveis do corpo, designadamente na
boca (18 meses iniciais), ânus (18 aos 36 meses) e genitais (após os 3 anos). As experiências
das crianças em cada uma das fases, moldariam a personalidade do indivíduo adulto; a
privação ou excesso de prazer numa dessas fases, poderia causar a fixação da energia sexual
na parte do corpo correspondente, impedindo a evolução normal do indivíduo, o qual não
alcançaria uma personalidade inteiramente integrada.
Um dos filhos de Sigmund, Anna Freud (1885-1982), dedicou-se também à psicanálise,
tendo-se destacado no campo do desenvolvimento psicológico, a partir do tratamento de
crianças. Defendeu que a psicanálise das crianças devia ser uma forma nova e aperfeiçoada de
pedagogia.
As ideias de Anna Freud vieram a ser objecto das críticas de Melanie Klein (1882-1960),
numa comunicação sobre a psicanálise da criança, por ela apresentada na Wiener
Psychoanalitische Vereinigung em Dezembro de 1918; divergindo de Anna Freud, Klein
entendia que a psicanálise das crianças era uma oportunidade de uma exploração psicanalítica
do funcionamento psíquico, desde o nascimento.
88 impulsos de energia gerados no inconsciente, que levam o indivíduo a agir em determinado sentido, a fim de resolver uma tensão orgânica 89 energia gerada pela pulsão sexual
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Klein tornou-se membro da Bristish Psycoanalytical Society em 1927, dando origem, no
campo da psicanálise, à chamada escola inglesa. Para Klein, os problemas emocionais das
crianças nasciam de conflitos internos entre pulsões de agressão e pulsões de líbido e nunca
de acontecimentos do mundo exterior.
Teorias da Aprendizagem
Estas teorias postulam que o desenvolvimento do indivíduo pode definir-se como a evolução
progressiva da sua personalidade, ao longo de diferentes etapas diferenciadas da sua vida,
através de transformações que se efectuam dentro do próprio sistema da estrutura da pessoa; a
aprendizagem, que leva a modificações do comportamento relativamente estáveis, resulta de
um processo interior à pessoa, sendo fruto das suas experiências.
O desenvolvimento e a aprendizagem influenciam-se mutuamente: por um lado, o
desenvolvimento de determinadas estruturas possibilita a aprendizagem; por outro lado, a
aprendizagem dinamiza o desenvolvimento, proporcionando-lhe maior amplitude; o indivíduo
aprende algo porque atingiu determinado nível de desenvolvimento; ao aprender, ainda se
desenvolve mais.
Teoria do condicionamento clássico
A abordagem clássica (Ivan Petrovich Pavlov, 1849-1936) punha o ênfase no comportamento
observável; a aprendizagem era vista como o estabelecimento de associação entre um
estímulo e a resposta por ele provocada.
São célebres as experiências de Pavlolv com cães submetidos a um estímulo que provocava
salivação; Pavlolv observou que sujeitando repetidamente o cão a dois estímulos
contemporâneos (apresentação de comida, que provoca salivação e toque de uma campainha),
vinha a ser possível provocar a salivação accionando apenas o toque da campainha.
Dessas experimentações, retirou Pavlov os fundamentos da teoria clássica do
condicionamento: enquanto certas respostas são inatas (reflexo incondicionados) outras
respostas comportamentais são reflexos condicionados; ou seja, a aprendizagem processa-se
através da manipulação dos estímulos.
O trabalho de Pavlolv foi fundamental para o desenvolvimento da psicologia comportamental.
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Teoria do condicionamento operante
Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) veio a propor a teoria do condicionamento operante,
que se centrava no papel regulador das consequências do comportamento e nas relações de
contingência entre antecedentes, comportamento e consequências; esta teoria, que é conhecida
como Behavourismo Radical, defende que as diferenças de comportamentos humanos devem
ser explicadas com recurso a evidências refutáveis e não a especulações abstractas, ou seja,
em ambiente laboratorial, com experiências replicáveis, e não em observações feitas na
natureza, sem possibilidade de controlo ou replicação.
A tese da teoria do condicionamento operante é a de que as consequências (e não os
estímulos) são as responsáveis pela eclosão de respostas ou pela supressão delas: — A um
estímulo segue-se um comportamento e este produzirá um resultado; esse resultado definirá a
frequência daquele comportamento; o comportamento pode ser reforçado por um estímulo
reforçador, o qual provocará o aumento de sua frequência; o reforçador pode ser positivo
(fortalece o comportamento devido à adição de algum estímulo) ou negativo (fortalece o
comportamento devido à supressão de algum estímulo).
Teoria da aprendizagem social
Albert Bandura (1925-…), behavourista como Skinner, formulou a questão: — Será que os
mecanismos de aprendizagem do condicionamento clássico e operante conseguem explicar
todas as aprendizagens humanas?
E formulou duas críticas ao behaviorismo no que respeita à aprendizagem humana:
1) O behaviorismo não valoriza o facto de que as pessoas interpretam o seu ambiente de
aprendizagem e, ao interpretarem-no, constroem-no, dando-lhe um significado pessoal que
tem implicações em toda a aprendizagem decorrente;
2) O behaviorismo procura explicar a aprendizagem sem tomar em conta o efeito específico
dos contextos sociais sobre ela; ora, se é certo que um comportamento é aprendido, também é
certo que os processos que levam a essa aprendizagem ou são processos sociais (como a
imitação), ou são processos muito afectados pelos factores sociais (por exemplo, a
aprendizagem dos papéis sexuais). É impossível compreender o comportamento humano e a
aprendizagem sem ter em conta os contextos sociais
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Veio por este caminho a formular a Teoria da Aprendizagem Social, a qual toma em
consideração a influência dos aspectos comportamentais, ambientais e cognitivos na
aprendizagem humana, sem esquecer que esta se faz no meio social.
Segundo Bandura, os seres humanos não se limitam a responder aos estímulos, também os
interpretam. Para se poder compreender o comportamento e a aprendizagem é necessário
prestar atenção a 3 factores: (i) factores ambientais; (ii) factores individuais mediadores que
regulam o impacto das influências ambientais sobre o indivíduo; (iii) à interacção entre
aqueles e estes factores.
Etologia
Konrad Lorenz (1903-1989), fundador da moderna etologia90, formulou o conceito de
“imprinting”. Enquanto determinados comportamentos são inatos (no recém-nascido a busca
da mama, os movimentos natatórios e preênseis) outros comportamentos dependem de
aprendizagem (apertar os atacadores dos sapatos, fazer o nó da gravata). Entre um e outro
tipos de comportamento, existe toda uma variedade de comportamentos, onde se mistura o
inato e o adquirido; as aves canoras nascem com a habilidade de cantar, mas têm que aprender
a fazê-lo com os outros pássaros da mesma espécie, sob pena de os sons que vierem a emitir
não serem reconhecíveis pelos seus companheiros.
Lorenz criou gansos cinzentos ab ovo e observou que eles o seguiam como se fosse ele a sua
mãe, comportamento que mantinham em adultos, preferindo-o até a outros gansos; observou
também que existe uma “janela de oportunidade” para que o fenómeno ocorra, o que o levou a
formular a conclusão de que existem períodos críticos na vida em que é necessário que um
estímulo típico ocorra, para que sobrevenha o normal desenvolvimento do ser. Este e outros
trabalhos valeram a Lorenz o Prémio Nobel para Medicina e Fisiologia em 1973.
90 estudo comparativo do comportamento humano e animal
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Teoria do apego/vinculação91 (Attachment theory)
John Bowlby (1907-1990), graduou-se em 1928 pela Universidade de Cambridge, onde
tomou contacto com a agora chamada “psicologia do desenvolvimento”; trabalhou depois,
voluntariamente, numa escola para crianças desadaptadas, onde as experiências com duas
delas se tornaram no mote para as suas posteriores investigações: uma dessas crianças, que
tendia a isolar-se e parecia incapaz de afectos, tinha sido expulsa da anterior escola por furto e
nunca tinha conhecido uma figura estável de mãe; a outra era um rapaz de 7 anos, em
permanente estado de ansiedade, que seguia constantemente Bolwlby, a pontos de se tornar
conhecido como a sua “sombra” 92.
Simultaneamente com os seus estudos em medicina e psiquiatria, Bowlby treinou no Institute
of Pshycoanalysis, criado no âmbito da Bristish Psycoanalytical Society acima referida. No
período em que Bowlby ali se manteve, preponderava a influência de Melanie Klein.
Apesar dos créditos que lhe reconhece no centrar da sua abordagem objecto-relacional93 da
psicanálise, Bowlby desenvolveu reservas sobre o entendimento de Klein acerca da origem
dos problemas emocionais da criança. Tendo frequentado estudos pós-graduados na London
Child Guidance Clinic, onde treinou com dois experientes trabalhadores sociais, Bowlby veio
a acreditar que as experiências familiares são uma muito mais importante — senão mesmo a
básica —, causa de perturbações emocionais da criança.
No seu primeiro estudo empírico, datado deste período, Bowlby concluiu do detalhado exame
de 44 casos-estudo que existe uma ligação entre os sintomas de desajustamento e histórias de
privação ou separação maternal.
No fim da Segunda Guerra Mundial, Bowlby foi convidado para chefiar o Departamento de
Crianças da Tavistock Clinic94. Na linha das suas ideias sobre a importância das relações
91 as traduções brasileiras da obra de Bowlby escolhem o termo “apego” para a tradução de “attachment”; já a literatura portuguesa prefere o termo “vinculação” (“Psicologia Social”, 7ª Edição, Jorge Vala e Maria Benedicta Monteiro, pág. 523); não nos cabe preferir um dos termos ao outro, pelo que usaremos a expressão “apego/vinculação” para traduzir “attachment” 92 apud Inge Brethrton, “The origins of attachment theory: John Bowlby and Mary Ainsworth”, in http://www.psychology.sunysb.edu/attachment/online/inge_origins.pdf 93 Sigmund Freud desenvolveu o conceito de “relações de objecto” para estatuir que as pulsões se satisfazem através de um meio ou de um objecto; Klein, na sua “teoria de relações de objecto”, desenvolveu a tese de que os objectos — a totalidade do objecto (uma pessoa – a mãe) ou apenas uma parte dele (o seio da mãe) —, desempenham um papel decisivo no desenvolvimento de uma pessoa 94 centro de terapia psicanalítica do Serviço Nacional de Saúde britânico, cujo nome deriva da sua localização original, na Tavistock Square, Londres
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familiares na terapia infantil, renomeou o serviço para Departamento de Crianças e Pais.
Muitas das pessoas que trabalhavam nesse Departamento eram seguidoras das ideias de Klein
e, como tal, encaravam como irrelevante a ênfase conferida por Bowlby, nas suas pesquisas,
às interacções familiares. Bowlby criou então uma unidade de pesquisa direccionada para a
separação criança-mãe, mais fácil de documentar do que outras mais subtis influências
parentais e familiares.
Bowlby foi convidado em 1950 pela Organização Mundial de Saúde95 para elaborar um
relatório sobre a saúde mental das crianças desalojadas na Europa do pós-guerra. O resultado
do trabalho de Bowlby veio a ser publicado em 1951 com o título “Cuidados maternais e
saúde mental” (Maternal Care and Mental Health).
A principal conclusão de Bowlby foi a de que, para crescer mentalmente sã, a criança deve
beneficiar de uma relação íntima, afectiva e contínua, com a mãe — ou, na sua falta, com
quem permanentemente a substitua —, de modo a que ambas encontrem satisfação e prazer.
Esta proposição carecia de um suporte teórico; Bowlby não achava satisfatória a visão
psicanalítica segundo a qual o amor pela mãe provém da gratificação oral, nem concordava
com a teoria da aprendizagem social quando esta defendia que a dependência é baseada no
reforço secundário; Bowlby fixou a sua atenção no conceito de que existem períodos críticos
no desenvolvimento embrionário e procurou evidências de que tais períodos críticos ocorriam
igualmente ao nível do comportamento; foi então que tomou conhecimento da teoria do
“imprinting”, de Konrad Lorenz. 96
No dizer do próprio97, Bowlby interessou-se desde cedo pela contribuição do ambiente em
que uma pessoa vive, para o seu desenvolvimento psicológico.
E refere98: até 1958 podiam ser encontradas quatro teorias, na literatura psicanalítica e
psicológica, que explicavam a natureza e origem dos laços relacionais das crianças — (i) a
criança tem um certo número de necessidades fisiológicas que têm que ser satisfeitas,
particularmente alimento e calor; a criança interessa-se por — e apega-se/vincula-se a —,
uma figura humana (em especial a mãe) na medida em que esta figura satisfaça aquelas
necessidades; a criança acaba por aprender que aquela figura é fonte de gratificação e,
95 autoridade directiva e de coordenação para a saúde, dentro do sistema da Organização das Nações Unidas 96 apud Inge Brethrton, cit. 97 “The Making and Breaking of Affectional Bonds”, pág. 150 98 “Attachment and Loss – Vol. I Attachment”, pág, 178
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portanto, cria com ela um laço; (ii) a criança tem uma propensão congénita para se relacionar
com o seio humano, para mamar nele e possuí-lo oralmente; a criança acaba por aprender que,
ligado ao seio, está uma mãe e assim acaba por se relacionar com ela também; (iii) a criança
tem uma propensão congénita para estar em contacto físico e abraçar outro ser humano; neste
sentido há uma necessidade de um objecto — independente de alimento —, que é tão primária
como a necessidade de alimento e calor; (iv) a criança sente a expulsão da barriga materna e
procura voltar a ela. De todas estas teorias, a mais defendida foi a primeira.
Os estudos que empreendeu — sobre os efeitos negativos da privação de cuidados maternais
no desenvolvimento da personalidade —, fizeram Bowlby questionar a validade do modelo
tradicional99.
Bowlby interessou-se pelo trabalho de Konrad Lorenz e pela sua descoberta de que, pelo
menos em determinadas espécies de pássaros, os fortes laços com a figura da mãe se
desenvolvem durante os primeiros dias de vida, sem qualquer referência a alimentação, mas
simplesmente através da exposição do recém-nascido a uma qualquer figura, com a qual vem
a estabelecer laços de familiaridade. A partir daqui — e considerando que os dados empíricos
relativos ao desenvolvimento do laço da criança à sua mãe, podem ser melhor entendidos em
termos de um modelo derivado da etologia —, Bowlby delineou a sua “teoria do
apego/vinculação” (attachment theory), que o próprio explicitou da forma seguinte100: o
comportamento de apego/vinculação é uma qualquer forma de comportamento, que leva uma
pessoa a conquistar ou a preservar uma proximidade para com uma qualquer outra pessoa,
preferida a todas as outras, que normalmente será apercebida como mais capaz de lidar com o
mundo.
Bowlby enuncia algumas características desta teoria101:
(a) especificidade – o comportamento de apego/vinculação é dirigido a um, ou a uns poucos
específicos indivíduos, normalmente numa clara ordem de preferência;
(b) duração – um apego/vinculação mantém-se normalmente durante uma grande parte do
ciclo de vida; embora na adolescência os apegos/vinculações precoces possam atenuar-se e
ser suplementados por novos apegos/vinculações e, nalguns casos, ser substituídos por eles,
não são facilmente abandonados e costumam persistir;
99 “The making and breaking…”, pág. 153 100 “The making and breaking…”, pág. 154 101 idem, ibidem, págs. 154/156
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(c) empenhamento da emoção – muitas das mais intensas emoções nascem durante a
formação, conservação, ruptura e restabelecimento de relações de apego/vinculação;
(d) ontogénese – na maior parte das crianças, o comportamento de apego/vinculação a uma
figura preferida surge nos primeiros nove meses de vida; quanto mais experiência de
interacção social uma criança tem com uma pessoa, mais provável é que fique
apegada/vinculada a ela; por esta razão, seja quem for a pessoa que, de forma principal,
desempenhe a figura de mãe, será essa pessoa a principal figura de apego/vinculação da
criança; a activação do comportamento de apego/vinculação ocorre rápida e facilmente até ao
terceiro ano de vida; havendo um desenvolvimento saudável, tornar-se-á gradualmente menos
rápida e menos fácil a sua activação a partir daí;
(e) aprendizagem – enquanto que a aprendizagem da distinção entre o familiar e o estranho é
um processo-chave no desenvolvimento do apego/vinculação, o modelo convencional de
gratificações e castigos, usado pela psicologia experimental, desempenha apenas um pequeno
papel; de facto, um apego/vinculação pode desenvolver-se apesar de repetidos castigos da
figura de apego/vinculação;
(f) organização – inicialmente, o comportamento de apego/vinculação é mediado por
respostas organizadas de forma simples; a partir do fim do primeiro ano de vida, passa a ser
mediado por sistemas comportamentais crescentemente sofisticados, ciberneticamente
organizados e incorporando modelos representacionais do ambiente e da própria criança; estes
sistemas são activados por certas condicionantes e desactivados por outras; entre aquelas,
contam-se a estranheza, a fome, a fadiga e qualquer coisa que assuste a criança; estas incluem
a percepção visual ou auditiva da figura maternal e, especialmente, a interacção feliz com ela;
quando o comportamento de apego/vinculação é activado de forma intensa, a sua desactivação
pode requerer o contacto físico ou o colo da figura maternal, ou as carícias dela; quando a
figura maternal está presente, ou a criança tem consciência perfeita de onde ela está, a criança
deixa de apresentar comportamento de apego/vinculação e, em vez disso, passa a explorar o
ambiente que a rodeia;
(g) função biológica – o comportamento de apego/vinculação ocorre nas crias de quase todas
as espécies de mamíferos e em certas delas persiste durante a vida adulta; embora existam
muitas diferenças de detalhe entre as espécies, a manutenção de proximidade de um animal
imaturo a um adulto preferido — quase sempre a mãe —, é a regra, o que sugere que tal
comportamento tem uma utilidade de sobrevivência.
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Uma base segura
Como foi referido em (f), a presença da figura maternal, ou o conhecimento do seu paradeiro,
fazem normalmente cessar na criança o comportamento de apego/vinculação, e a criança
passa a explorar o seu meio ambiente; nessas circunstâncias, a figura maternal pode ser
encarada como “uma base segura” a partir da qual a criança pode partir à exploração do
mundo, e à qual pode sempre voltar, quando se cansar ou no caso de se assustar102.
Qualquer pessoa, criança ou adulto, que sabe que uma “figura de apego/vinculação” está
presente e disponível, desfruta de uma sensação de segurança que a motiva a dar valor e
continuidade à relação; se bem que o comportamento de apego/vinculação seja mais evidente
na infância, pode ser observado durante todo o ciclo de vida, mormente em situações de
emergência103.
O comportamento de apego/vinculação está presente virtualmente em todos os seres humanos
(embora com padrões variáveis); por isso, é visto como uma parte integrante da natureza
humana, a qual, aliás, partilhamos com outras espécies; a função biológica que é atribuída ao
comportamento de apego/vinculação é a de protecção; concebido desta forma — como uma
forma fundamental de comportamento com as sua próprias motivação interna, distinta da
alimentação e do sexo, e não menos importante do que estas para a sobrevivência —, o
comportamento de apego/vinculação e a sua motivação adquirem um estatuto teórico que
nunca lhes tinha sido atribuído, apesar de médicos e pais há muito terem consciência intuitiva
da sua importância.
Há que distinguir, porém, entre “comportamento de apego/vinculação e “apego/vinculação
propriamente dito”; são infinitas as evidências de que praticamente todas as crianças preferem
habitualmente uma pessoa — em regra a figura maternal —, para junto de quem acorrem
quando perturbadas; mas na ausência desta “figura de apego/vinculação”, a mesma criança
valer-se-á de qualquer outra pessoa, preferencialmente uma que a criança conheça bem; nestas
circunstâncias, a maioria das crianças evidencia uma clara hierarquia de preferências que, no
extremo, e na ausência de uma pessoa que a criança conheça, pode levá-la a abordar um
estranho que lhe pareça simpático; portanto, o “comportamento de apego/vinculação” pode,
em diferentes circunstâncias, ser dirigido a diferentes indivíduos.
102 John Bowlby, “The making and breaking…”, pág. 157 103 John Bowlby, “A Secure Base”, pág. 30
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Já o “apego/vinculação propriamente dito” ou “relação de apego/vinculação” está confinado a
alguns poucos. O papel de “base segura” contempla, na essência, estar sempre disponível,
pronto a responder quando chamado, encorajar e por vezes auxiliar, mas intervir activamente
apenas quando realmente necessário; só assim a criança pode explorar o mundo que a rodeia
sem receio, na certeza em que se encontra de sempre poder voltar e ser bem acolhido quando
o fizer.
O processo de apego/vinculação e o desenvolvimento da criança
O processo de apego/vinculação ao longo do primeiro ano de vida está razoavelmente bem
documentado104:
Mary Ainsworth (Salter em solteira)105, canadiana de nascimento, acompanhou o marido, que
foi para Londres em 1950, onde ele foi terminar o seu doutoramento; atraída por um anúncio
de jornal onde se pediam investigadores, Mary acabou por se juntar à unidade de pesquisa
criada por John Bowlby na Tavistock Clinic; no final de 1953, Mary deixou a Tavistock e
partiu com o seu marido para o Uganda, onde aquele conseguira um lugar na East Africain
Institute of Social Research; ali, Mary conseguiu obter fundos com os quais deu início a uma
investigação sobre o desenvolvimento do apego/vinculação entre a criança e a mãe, no âmbito
do povo do Buganda (uma das quatro províncias do Uganda); Mary, tendo trabalhado com
John Bowlby, nem por isso estava convencida do valor da etologia para a compreensão do
apego/vinculação entre a criança e a mãe, que Bowlby defendia; mal começou a recolha de
dados, Mary foi confrontada com a pertinência das ideias de Bowlby; Mary recrutou 26
famílias com crianças ainda não “desmamadas", com idades até aos 24 meses; Mary passou a
observar estas crianças de duas em duas semanas, durante duas horas em cada visita, o que fez
durante cerca de 9 meses; as visitas tinham lugar na divisão da casa onde a família se reunia
na qual as mulheres gandesas (do povo Ganda, anglicismo para Baganda, nome do povo do
Buganda), normalmente descansam após uma manhã de trabalho; Mary observou106 que o
choro para atrair a atenção da mãe e as tentativas para seguir a mãe quando esta se afastava,
surgiam nas crianças, tão cedo como às 15 e às 17 semanas, respectivamente, e que os dois
tipos de comportamento eram comuns até aos seis meses de idade; salvo uma escassa minoria
104 John Bolby, “Attachment and Loss – Vol. I Attachment”, págs, 204 e ss. 105 apud Inge Bretherton, loc. cit. 106 John Bolby, “Attachment and Loss – Vol. I Attachment”, pág, 200
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(quatro crianças, em vinte e cinco), as crianças gandesas apresentavam claramente um
comportamento de apego/vinculação aos seis meses de idade; durante os seguintes três meses,
no entanto, estes comportamentos eram exibidos pelas crianças mais regularmente e com mais
vigor “como se o apego/vinculação à mãe se estivesse tornando mais forte e mais
consolidado”; este padrão de comportamento continuava a manifestar-se durante o quarto
final do primeiro ano e durante todo o segundo ano de vida; cerca dos nove meses, as crianças
já conseguiam seguir a mãe mais eficientemente quando ela abandonava a divisão e, portanto,
o choro diminuía nessas ocasiões; se, na ausência da mãe, outro adulto que lhe fosse familiar
estivesse presente, a criança tendia a segui-lo;
Lois Barclay Murphy e outros107, fizeram uma investigação (1964), nos Estados Unidos da
América, que incidiu sobre um grupo de crianças; numa primeira visita à casa de cada uma
das crianças, foi feito um primeiro contacto entre o investigador e a criança e combinado que
dias depois o investigador voltaria para levar a criança para o centro de investigação; apesar
de as crianças terem sido encorajadas a irem sozinhas com o investigador, não foram feitas
objecções a que a mãe a acompanhasse, em caso de protesto da criança ou de opção da
própria mãe; nos dias aprazados, os investigadores apresentaram-se em casa das crianças; foi
constatado um padrão na recusa das crianças em acompanharem os investigadores sozinhas:
na faixa etária os 4/5 anos, a maioria das crianças aceitou acompanhar sozinha o investigador,
mediante encorajamento materno; na faixa etária dos 2/3 anos, a proporção inverteu-se; não
só a maioria das crianças insistiu que a mãe as acompanhasse, como durante a primeira sessão
fizeram também questão de se manterem em permanente contacto físico com as mães.
John e Elisabeth Newson108 levaram a cabo uma investigação (1966), em Nottingham,
Inglaterra, que incidiu sobre 700 crianças com idades próximas dos quatro anos; à pergunta
“se os seus filhos costumam rodeá-las, agarrando-se a elas, pedindo atenção”, 16% das mães
responderam “frequentemente” e 47% responderam “por vezes”; as restantes responderam
“nunca”; as razões mais frequentemente apontadas para esse comportamento foram a criança
“não estar bem” ou “ciúmes de um irmão/ã mais novo/a”; a conclusão a que o estudo chegou
foi a de que, embora as crianças com mais de três anos mostrassem um comportamento de
apego/vinculação de forma menos frequente, ainda assim constituía uma componente
importante do padrão de comportamento dessas crianças.
107 “Experimental Social Psychology” Harper and Brothers, Publishers 108 “Four Years Old In An Urban Community”, Pelican, 1970
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Em qualquer das latitudes, foi observado nas crianças o surgimento, fortalecimento e
diminuição do comportamento de apego/vinculação, em idades próximas; embora existam
indícios abundantes de que o tipo dos cuidados providenciados pela mãe desempenhe um
papel importante no modo como o comportamento de apego/vinculação se desenvolve, não
deve ser esquecida a grande medida em que a iniciativa da própria criança é determinante no
surgir da relação e na forma que esta assume.
Ansiedade da separação
Porque é que a simples separação de alguém que se ama pode ser fonte de ansiedade foi
objecto de reflexão, tendo sido avançadas explicações várias; John Bowlby, através de uma
aproximação etológica, foi capaz — ou acreditava tê-lo sido —, de esclarecer a questão: o
homem, como outros animais, responde com medo a certas situações, não porque elas, em si
mesmas, acarretem um risco grande de dor ou perigo, mas porque essas situações sinalizam
um aumento de risco; assim como animais de muitas espécies, também o homem está
predisposto a responder com medo a um movimento súbito ou a um marcado aumento do
nível de som ou luz, por tal resposta conter uma utilidade de sobrevivência, também muitas
espécies, incluindo o homem, estão predispostas a responder à separação de um cuidador da
mesma maneira e pelas mesmas razões. Vista a esta luz a ansiedade da separação, torna-se
claro porque é que as ameaças de abandono pelos pais — quando usadas como meio de
controlo —, podem ser tão aterradoras para a criança.
No homo sapiens o programa de apego/vinculação dos restantes primatas está também
presente e activo; mas enquanto nestes o sistema de apego/vinculação é puramente
comportamental, na criança humana o programa de apego/vinculação desdobra-se e essa
desdobragem impregna o seu imaginário. As rupturas do programa de apego/vinculação da
criança são disfuncionais e geradoras de patologia, estando presentes — nas suas
manifestações extremas —, nas esquizofrenias e no autismo infantis.109
109 apud Luís Soczka, in “Psicologia Social”, 7ª Edição, Jorge Vala e Maria Benedicta Monteiro, pág. 524
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O e s t a b e l e c i m e n t o d a r e l a ç ã o m a t e r n o / p a t e r n o / f i l i a l
A estrutura de parentesco fundou-se durante muito tempo na existência de vínculo
matrimonial e na presunção “pater is est”; esta presunção, de que o pai da criança era o
marido da mãe, tinha uma função social, de protecção da dignidade do casamento110; mas
mesmo neste regime a maternidade e a paternidade sempre foram considerados como factos
biológicos; «O sangue foi sempre a expressão privilegiada os vínculos entre as pessoas. “O
sangue é a vida” e quem dá o sangue dá a vida.»111.
A evolução da ciência — por um lado, no que toca à forma de determinação pericial da
paternidade e, por outro, no que toca à diversificação das técnicas reprodutivas artificiais —,
veio de certa forma pôr em crise a “verdade biológica” como paradigma da determinação da
relação paterno-materno/filial112.
No que toca às técnicas reprodutivas, percorreu-se um longo caminho desde a fertilização in
vitro, produzida com material genético dos futuros pais, até à mãe hospedeira, que não
contribui com qualquer material genético, mas apenas “fornece” o acolhimento físico ao feto.
Como é evidente, esta técnica pode levantar — e, de facto, levanta —, problemas jurídicos
que não se compadecem com as soluções que há poucas décadas eram o “estado da arte”;
quem é a mãe: a que doa o óvulo, a que fornece a hospedagem, ou a que contratou uma e
outra para lhe fornecerem um filho?
No Estado da Califórnia, Estados Unidos da América113, os que pretendem vir a ser os futuros
pais devem outorgar, com as outras partes envolvidas, um contrato, previamente à fecundação
do óvulo; antes do nascimento da criança, os futuros pais devem dar entrada, no tribunal com
jurisdição no local onde a criança vai nascer, de uma petição para estabelecimento de
maternidade/paternidade/filiação; logo que os documentos que estabelecem a relação
materno/paterno/filial são despachados por um juiz do Tribunal Superior, a guarda do
nascituro é atribuída aos futuros pais tão logo os médicos consintam na remoção da criança do
hospital de nascimento; o Tribunal também dá ordem ao hospital de nascimento para inserir
no certificado de nascimento os nomes dos futuros pais; assim se elimina a necessidade de
110 Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Vol. II, Tomo I, pág. 23 111 Guilherme de Oliveira, comunicação apresentada no Colóquio “O Sangue e os Afectos, Coimbra, 9/10 de Maio de 2008, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro do Direito da Família 112 Gustavo Ferraz de Campos Mónaco, loc. cit., pág. 201 113 in http://www.conceptualoptions.com/Legal.htm
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uma posterior adopção e se reconhece a relação materno/paterno/filial que as partes tinham
em vista.
O uso da “gravidez de substituição” está longe de ser comum; mas já o não está tanto o
recurso a bancos de esperma ou/e de óvulos, por pessoas que, por natureza ou disposição, não
seguem os métodos clássicos de procriação. Onde fica a verdade biológica nestes casos?
Quem é o pai, quem é a mãe? Quem deu (vendeu) o material genético? Quem desejou a
criança e depois de a ter consigo a considerou seu/sua filho/a e a tratou como tal?
O sangue, ou o afecto?
«Os afectos — por si sós — tiveram sempre uma expressão limitada, no Direito. Na verdade,
os afectos, raramente foram valorizados para fundamentar, ou densificar, uma relação
jurídica. Mas a importância dos afectos tem crescido; o Direito tende a valorizar e a proteger
as relações sociais e afectivas estabilizadas, mesmo com o sacrifício da “verdade
biológica”»114. A sócio-afectividade ganha terreno como “elemento proeminente para o
estabelecimento da filiação”115; o comportamento das pessoas que integram a relação, o
afecto, «em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efectivamente são os pais». Ou
como diz Maria Clara Sotomayor: «Verdadeiros pais são os pais psicológicos, ou seja,
aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem-estar emocional das crianças…
O respeito pela criança como pessoa significa respeito pelas suas relações afectivas. Este
respeito prevalece sobre a empatia que possamos ter, como adultos, com os sentimentos dos
pais»116.
114 Guilherme de Oliveira, comunicação citada 115 Gustavo Ferraz de Campos Mónaco, ibidem 116 Maria Clara Sottomayor, “A Nova Lei da Adopção” in “Direito e Justiça”, Vol. XVIII, 2004, II, pág. 243
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« A s c r i a n ç a s n ã o s ã o a d u l t o s e m m i n i a t u r a . » 117
A criança não é um mero apêndice do mundo adulto, um recipiente passivo dos cuidados
parentais118: ao contrário, a criança interage com o seu meio ambiente, de acordo com as suas
características inatas; esta interacção — e não uma atitude reactiva —, é a responsável pelas
inúmeras variantes do carácter e da personalidade humanas, nomeadamente aquelas
constatadas entre irmãos conviventes no mesmo círculo familiar.
As crianças diferenciam-se dos adultos em várias instâncias: (1) a criança muda
constantemente de um patamar de desenvolvimento para outro; (2) a criança tem um sistema
congénito de sentido do tempo, baseado na urgência de satisfação das suas necessidades; (3) a
criança entende os acontecimentos externos por referência a si própria (o nascimento de um
irmão é interpretado como um acto hostil dos seus pais, a doença de um destes, como
rejeição); (4) na criança, a irracionalidade — correlatada aos desejos e impulsos primários —,
domina grande parte do seu funcionamento; (5) a criança não tem noção da ligação biológica,
a qual é adquirida muito mais tarde.
O adulto desempenha um papel socializador da criança: (i) sujeitando-a a uma disciplina
horária, dá-lhe a primeira noção de que a gratificação imediata não é sempre possível, o que
reforça a capacidade da criança para tolerar o adiamento da gratificação, assim evitando a
frustração; (ii) quando brinca com a criança que exige a inoportuna satisfação imediata de um
qualquer desejo e lhe conta histórias, o adulto ajuda a criança a aguardar pela gratificação do
seu desejo, obtendo gratificação parcial; (iii) o adulto que reage ao comportamento da criança
louvando-o ou censurando-o, lança as fundações do auto controlo da criança relativamente
aos seus próprios impulsos.
A relação da criança com os seus cuidadores (em regra, os pais, rectius a mãe) não é simples;
começa inevitavelmente pela satisfação das necessidades da criança de alimento e calor, mas
se esta satisfação for feita rotineira e friamente pelo cuidador, não se estabelece entre este e a
criança uma relação; esta surge apenas com uma interacção diária mutuamente satisfatória,
com partilha de intimidade física e de experiências.
117 “Joseph Goldstein e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 8 118 idem, ibidem, pág. 9
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A continuidade da relação materno/paterno/filial é essencial para o desenvolvimento saudável
da criança119, pois o crescimento é um processo que cria nela tensões internas; a instabilidade
dos processos mentais presentes na criança, durante todo o percurso do seu desenvolvimento,
exige a exposição a um ambiente que a criança sinta como fornecendo-lhe apoio; a
descontinuidade da relação materno/paterno/filial afecta, na criança em idade pré-escolar (de
idade até aos cinco anos), a sua capacidade de criar laços emocionais, levando a criança a
deixar progressivamente de investir e passando a produzir ligações crescentemente ténues e
indiscriminadas; nestas idades, a descontinuidade provoca também a perda das habilidades
sociais nascidas do intercâmbio da criança com o seu cuidador; Anna Freud, citada em “The
Best Interest…” de Goldstein, relata que as crianças inglesas, removidas das famílias durante
a guerra, desenvolveram frequentemente enurese.
A necessidade de preservar a continuidade das relações afectivas gratificantes, foi
reconhecida pelo corpo legislativo português120: «O superior interesse da criança é
determinado pela prevalência das relações afectivas profundas, e por isso sempre que haja
conflito entre a relação biológica e a afectiva dever-se-á dar prevalência à última (sempre
que seja demonstrado que a relação afectiva é profunda e a criança não desenvolveu
relações profundas com os progenitores biológicos). O não reconhecimento deste princípio
não protege a criança. Torna-se por isso necessário fazer a gestão da vinculação da criança,
enchendo-a de afectos, dando-lhes continuidade, sem que se verifique vazios.… É
fundamental a clarificação e consagração do princípio da prevalência das relações afectivas
profundas como elemento determinante no esclarecimento do entendimento do interesse
superior da criança.».
O sentido do tempo que a criança tem é diferente do que tem o adulto; este, mede o tempo
pelo relógio e pelo calendário; a criança mede o tempo pelas suas necessidades básicas e
respectiva satisfação.
O adulto (se tem o desenvolvimento próprio) aprendeu a antecipar o futuro e, assim, a gerir a
demora na satisfação dos seus desejos121; a criança não tem essa capacidade: quer comer
quando tem fome, dormir quando tem sono e ser limpa quando está suja — e nada isto pode
esperar, seja qual for a hora do dia (ou da noite), seja qual for o dia da semana, seja qual for a
119 “Joseph Goldstein e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 19 120 Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades) apresentado publicamente em 02/05/2006 121 “Joseph Goldstein e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 41
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disponibilidade ou disposição do seu cuidador para fazer o necessário para que aquela
satisfação ocorra.
Só com o decurso do tempo a criança virá a incorporar a forma como o seu cuidador satisfaz
as suas necessidades — directamente ou por substituição (como quando brinca com ela para a
distrair) —, bem como experimentará o desaparecimento e o reaparecimento do seu cuidador
do seu campo de visão; com isso, a criança gradualmente desenvolverá a capacidade de
antecipar o futuro e a tolerar o adiamento da gratificação.
O facto de este desenvolvimento ser gradual, implica que um mesmo tempo de separação,
constitui para uma criança em idade pré-escolar (menos de cinco anos) uma quebra de
continuidade da relação, enquanto que para uma criança em idade escolar teria menos
significado ou nenhum significado, consoante a sua idade fosse menor ou mais avançada.
O modo como a criança tem percepção do tempo, implica que qualquer decisão sobre a sua
situação deva ser tomada rapidamente; a incorporação pelo direito português da consciência
de que o tempo da criança é diferente do tempo do adulto está manifestada, designadamente,
no Novo Regime Jurídico da Adopção, o qual fixa o período máximo de seis meses para o
período de pré-adopção122; esta disposição é reveladora da «consciência de que o decurso do
tempo representa para a criança danos psicológicos difíceis de reparar no futuro»; como o é
da «consideração da importância, fragilidade e delicadeza dos valores a preservar e de como
é difícil superar os efeitos de actos ou omissões traumatizantes para a criança… nos
primeiros anos de vida».123 A aceitação, por um adulto, de uma criança que não é sua, pode
acontecer de uma forma muito mais rápida do que a aceitação dele pela criança; mas quando
um e outro se aceitaram mutuamente, a criança passa a ter um pai/mãe psicológico e o
cuidador/a passa a ter um filho/a psicológico. A nova família deve merecer da lei a mesma
protecção que as tradicionais famílias biológicas ou afectivas merecem e recebem.
122 Maria Clara Sottomayor, “A Nova Lei da Adopção”, pág. 251 123 Armando Leandro, “Poder Paternal: Natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in “Temas de Direito de família”, Livraria Almedina, Coimbra, 1986
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A s l i m i t a ç õ e s d a l e i
A lei pode quebrar uma relação afectiva, mas não pode forçar a sua criação, ou o seu
desenvolvimento. Os tribunais, os órgãos da administração têm o tempo e a capacidade de
causar dano, mas não têm tempo, nem capacidade, para criar, ou controlar, o saudável
desenvolvimento de laços familiares — nas suas funções oficiais, não podem as pessoas que
integram estes corpos ser mães/pais de crianças alheias124.
A lei e os órgãos encarregados pela sociedade da sua realização, não têm a capacidade de
prever eventos ou necessidades futuras, que a ocorrerem, poderão vir a dar sentido ou a
confirmar a bondade das decisões tomadas no presente.
No caso português, o diagnóstico foi feito pelo órgão legislativo125: «Quanto aos Tribunais
verifica-se, desde logo um deficit de Tribunais de Família e Menores. O país deve ser coberto
de tribunais especializados de família e menores, ou pelo menos, quando tal não for possível
nem adequado, por secções especializadas em matéria de crianças e jovens nos tribunais de
competência genérica. Os tribunais têm que ser especializados: têm de ter gabinetes de
psicologia, de mediação/audição familiar, e as próprias instalações dos tribunais precisam
de adaptação, de serem mais acolhedoras. Quanto à formação dos agentes judiciais que
intervêm nas áreas da criança, apontam-se os seguintes constrangimentos: ausência de
formação específica com outras componentes (para além da área jurídica) dos magistrado
que estão nos tribunais de família e menores (a formação especializada dos magistrados tem
de passar a requisito para a colocação e permanência nos tribunais especializadas);
inexistência de assessorias adequadas com formação especializada nas áreas das crianças e
jovens; ausência de formação adequada por parte dos funcionários que trabalham nos
tribunais de competência especializada; insuficiente formação dos agentes de polícia
criminal; inexistência de formação adequada dos técnicos das EMAT (o que dificulta
trabalho em articulação com os tribunais).».
Apenas a atinência a critérios simples pode garantir que as decisões se adequam à ratio das
leis que visam a protecção das crianças: continuidade das relações afectivas gratificantes,
noção do tempo próprio das crianças, consciência das limitações da lei e dos órgãos
124 “Joseph Goldstein e. a. “The Best Interests of The Child”, págs. 46/48 125 Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades) apresentado publicamente em 02/05/2006
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encarregados pela sociedade da sua realização.
Goldstein e. a. propõem126 um quadro de períodos de tempo — durante os quais tenha uma
criança estado sob o cuidado directo e contínuo de um adulto, o qual está disponível e tem
vontade de continuar essa relação —, como intervalos máximos fora dos quais não seria
razoável presumir-se que seriam mais significativos quaisquer laços residuais que pudessem
subsistir na criança relativamente aos seus pais biológicos, do que os laços entretanto criados
com o cuidador de longo-termo: (a) seis meses, para uma criança com idade até um mês ao
tempo do início da relação com o cuidador; (b) doze meses, para uma criança com idade até
três anos ao tempo do início da relação com o cuidador; (c) vinte e quatro meses para uma
criança com idade de três anos ou mais ao tempo do início da relação com o cuidador.
E defendem que, dentro dos parâmetros assinalados, a criança deverá ser mantida — em
homenagem ao princípio da continuidade —, entregue ao seu cuidador de longo-termo, até
decisão final do caso; e que esta decisão — em respeito do princípio da noção do tempo da
criança — deve ocorrer, por razões de urgência, no mais curto prazo possível; pelas mesmas
razões, as diligências para instrução da decisão, de retirada da criança ao seu cuidador de
longo-termo, deverão preceder esta retirada: «Arrancar os laços afectivos entre a criança e os
seus cuidadores de longo-termo, é a espécie de dano que não é totalmente — ou até
substancialmente — compensado, mesmo pela reposição posterior dessa relação. Em termos
de lesão irreparável, uma errada decisão de quebrar os laços afectivos delicados e
complexos que ligam a criança aos seus cuidadores de longo-termo, é um caso muito mais
sério do que o de uma decisão de, intencionalmente, amputar um braço a uma criança, com
um qualquer propósito terapêutico, admitindo-se que uma tal acção, se vier a revelar-se
errada, pode ser corrigida, pela reposição do braço que, apesar das cicatrizes, poderá
crescer tão forte como anteriormente se encontrava».
126 “The Best Interests…”, cit., pág. 105
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E s m e r a l d a , o u A n a F i l i p a : O S a n g u e , o u o A f e c t o ?
O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra127 de 25/07/2007 confirmou — como já se
referiu supra —, a atribuição do poder paternal da menor Esmeralda a Baltazar, seu pai
biológico, embora mantendo a criança transitoriamente confiada ao casal que cuidou dela
desde os três meses de idade.
Este casal — admitido a recorrer da sentença do tribunal de 1ª instância só após acórdão nesse
sentido do Tribunal Constitucional —, alegou em defesa da revogação da sentença (i) que a
menor devia ter sido ouvida e não foi; (ii) que o tribunal desprezou as relações de facto
estabelecidas entre a criança e o casal; (iii) que o desenvolvimento psíquico da criança fica
comprometido com a sua retirada aos cuidados do casal; (iv) que o regime fixado pelo
tribunal não é compatível com o interesse da criança.
Apreciando, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu:
Quanto à inadequação do regime fixado ao interesse da criança: — A Relação de Coimbra
concedeu que a execução da sentença operaria um corte abrupto entre a criança e o casal;
assim, entendeu dever regular o poder paternal da criança tendo em conta a sua idade, o seu
desenvolvimento e personalidade, a sua ligação afectiva ao casal que cuidou dela desde os três
meses de idade, mas também o seu interesse em conhecer e relacionar-se com os pais, «sem
esquecer que a consanguinidade, quando associada a afectos, deve jogar um papel
importante na vida do menor»;
Quanto à falta de audição da criança: — Que, tendo ela 2 anos e 3 meses de idade à data da
realização da audiência de julgamento, não dispunha a criança de condições para formar uma
opinião, já que «acabara de entrar no mundo mágico das palavras que, necessariamente,
repetia sem sinal de julgamento ou de reflexão relativamente ao que dizia»;
Quanto à falta de conhecimento da criança, pelo tribunal: — Que este considerou os relatórios
sociais elaborados pelo Instituto de Reinserção Social e estes confirmaram que a criança vivia
com o casal, beneficiando de condições normais para o seu desenvolvimento; e que, se o casal
tivesse considerado de interesse que o Tribunal conhecesse a menor Esmeralda, disso lhe
daria conhecimento, o que não fez;
127 Texto integral in Anexo VI
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Quanto ao comprometimento do desenvolvimento psíquico da menor: — A Relação de
Coimbra — considerando entrar no ponto fulcral do recurso, o interesse da criança —,
proferiu «breves considerandos sobre este instituto»:
(a) A sentença teve em consideração o percurso da menor desde o seu nascimento e até à sua
entrega ao casal, para de seguida se debruçar sobre qual dos progenitores reunia as melhores
condições económicas e sociais para proporcionarem à criança um harmonioso
desenvolvimento físico, psíquico, intelectual e moral, evidenciando um conjunto de
considerandos que culminaram na opção pelo pai, na medida em que gozava de maior
estabilidade económica, usufruindo do necessário apoio da sua família alargada; ou seja, entre
os requeridos na acção de regulação — os pais biológicos —, o Tribunal optou pelo pai;
(b) A sentença não deixou de ter em consideração a posição do casal que cuidou da criança
desde os três meses de idade, tendo até concluído que, em termos económicos é o referido
casal que oferece melhores condições à menor; concluiu também que não restam dúvidas de
que o mesmo casal dedica à criança um enorme afecto, tratando-a como se sua filha fosse;
(c) A sentença considerou que à criança assistia o direito de viver com o pai biológico, o qual
possuía as condições indispensáveis para lhe propiciar um desenvolvimento saudável e
harmonioso, pelo que veio a decidir neste sentido.
Passando à indagação da lei aplicável, a Relação convocou os artigos 1878º e 1885º do
Código Civil, os quais conferem aos pais — pai e mãe —, no interesse dos filhos, velar pela
sua segurança e saúde, promover o seu sustento, dirigir a sua educação, promover, de acordo
com as suas possibilidades, o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral; e convocou
ainda o artigo 1905º do mesmo Código, segundo o qual o tribunal regulará o poder paternal
— na falta de acordo dos pais —, tendo em conta o interesse da criança.
Interpretando estas disposições legais, a Relação de Coimbra pondera — na senda do Prof.
Antunes Varela, que expressamente cita —, que, não obstante a natureza altruísta do instituto,
a qualificação ou natureza que a lei lhe atribui — de verdadeiro poder jurídico conferido
paritariamente aos pais —, tem inquestionável propriedade. Sendo, portanto, o poder paternal
um poder-dever atribuído aos pais, em primeira linha, só no caso de estes estarem inibidos do
poder paternal ou poderem vir a ser declarados inibidos dele, é que outra hipótese de
atribuição da guarda da criança poderia ser considerada; e acrescenta que um dos princípios
fundamentais na regulação do poder paternal é o de que a criança deve ser entregue ao
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progenitor que mais garantias dê em matéria de valorização do desenvolvimento da sua
personalidade e lhe possa prestar mais assistência e carinho:
Pondera depois que, sendo o interesse da criança um conceito indeterminado, deve ser
preenchido caso a caso e em face da matéria de facto dada como provada; e que o do interesse
da criança é o único critério legal a observar na decisão judicial; citando Maria Clara
Sotomayor: «estando, de resto, aquele normativo em completa sintonia com “as
proclamações internacionais e europeias dos direitos das crianças e que nos vinculam com
valor supra legal, todas pondo ênfase nesse interesse “o superior interesse da criança”
como prevalecendo sobre qualquer outro na “ratio decidendi” das sentenças judiciais».
E conclui que a decisão da 1ª instância não podia ser outra, ao atribuir a guarda da criança ao
pai biológico, tendo respeitado «o tal valor supra legal — o interesse superior da menor
Esmeralda —, ao conferir ao pai a sua guarda».
E isto é assim, porque:
Desde logo, não resulta da matéria de facto que qualquer dos pais se encontra inibido do
exercício do poder paternal ou que deva ser declarado inibido.
Quanto ao interesse da criança, este não foi posto em causa pela decisão: a matéria de facto dá
conta de cinco momentos em que, se tivesse prevalecido o amor pela criança, a situação não
geria evoluído como evoluiu:
Primeiro momento: o casal a quem a criança foi entregue com três meses, mudou-lhe o nome,
de Esmeralda — que lhe foi dado pela mãe no momento do seu registo e pelo qual foi tratada
por ela até à entrega ao casal — para Ana Filipa, pelo qual passou a ser conhecida;
Segundo momento: quando a criança não tinha ainda um ano de idade, o pai biológico teve
conhecimento da sua progenitura e procurou a filha junto da mãe, durante meses, sem
sucesso; se o amor tivesse prevalecido, a mãe da criança teria informado o pai do sucedido;
Terceiro momento: conhecido o paradeiro da criança, o pai procurou-a junto do casal a quem
a mãe a entregara, mas foi impedido de a ver; se o casal tivesse tido em conta os interesses da
criança, toda a litigiosidade teria estado ausente dos encontros com o pai da criança e teriam
todos em conjunto buscado uma solução que defendesse os interesses da criança;
Quarto momento: no dia do aniversário da criança, o pai tentou entregar-lhe uma prenda, do
que foi impedido; também aqui o casal pensou mais nos seus interesses do que nos interesses
da criança;
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Quinto momento: Em Julho de 2004, é proferida sentença que decide confiar a criança à
guarda do pai; o casal optou por não cumprir a sentença, mantendo a menor consigo.
A Relação de Coimbra cita, de Maria Clara Sottomayor, a asserção «Numa situação em que a
criança experimenta uma falta de coincidência entre os vínculos biológicos e os afectivos
devem prevalecer estes últimos», para logo de seguida reconduzir a sua validade, àqueles
casos em que «a consanguinidade é apenas uma realidade friamente objectiva, sem
quaisquer envolvimentos afectivos entre a criança e os seus progenitores»; o que, segundo a
Relação, não é o caso dos autos, pois que pai biológico da criança se mostrou afectivamente
envolvido e empenhado em trazer a filha para o seu convívio, demonstrando em cada passo
um real e efectivo amor pela criança.
Conclui a Relação de Coimbra que as decisões do casal foram tomadas no seu único e
exclusivo interesse, sem ao menos parar para pensar no interesse da menor Esmeralda; e que
foi esta actuação do casal que provocou que o tribunal, chamado a pronunciar-se sobre os
destinos da criança, o tenha efectivamente feito quando a criança tinha 2 anos e 5 meses;
sendo que, hoje, a criança tem 5 anos e 5 meses, tal nova realidade não deixará de pesar na
solução do litígio, a qual deve privilegiar interesse da criança, mas sem esquecer o vínculo
biológico que a liga ao pai, nem o vínculo afectivo que estabeleceu desde os 3 meses com o
casal.
Em nota final, pondera a Relação de Coimbra que o comportamento do casal — antes do
início do processo, durante a sua tramitação e depois da decisão —, se pautou pelo recurso a
uma estratégia de facto consumado, impedindo o contacto da criança com os pais, de tal sorte
que, quando o tribunal viesse finalmente a decidir, acabasse por dar preferência ao vínculo
afectivo versus vínculo biológico; e acrescenta: tal preferência seria aceitável, no interesse da
criança, se os pais, em particular o pai, nunca tivesse manifestado qualquer vontade,
disponibilidade, amor, afecto pela criança, o que sabemos não ter ocorrido.
E adianta: o tribunal não pode ser limitado nas suas decisões pelo facto consumado, pois se tal
ocorresse, mais do que violar os legítimos e superiores interesses da menor Esmeralda,
colocaria em causa os superiores interesses de todos os menores em que um dos progenitores
ou terceiro conseguisse evitar que o menor contactasse com o outro progenitor ou com os pais
e assim vir a defender que a entrega da criança a estes poria em causa a saúde psicológica do
menor. Neste tipo de processos, as decisões dos tribunais devem ter em conta os legítimos
interesses da menor e não quaisquer interesses, mais ou menos egoístas, que orientam e
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definem a estratégia do progenitor ou de quem tem de facto a menor à sua guarda. «No limite,
a teoria do facto consumado poderia levar a que uma criança, vítima de rapto por um dos
progenitores ou por terceiros, nunca pudesse ser entregue ao outro progenitor ou aos pais
com o fundamento na falta de qualquer contacto entre ambos, o que convenhamos não só
seria objectiva e claramente injusto para o progenitor cumpridor ou para os pais, como
trairia o interesse dessa criança concreta e de todas as outras crianças que pudessem ver-se
envolvidas em situações semelhantes».
A d e c i s ã o à l u z d o s c r i t é r i o s e x p o s t o s
A noção do tempo da criança
Como a Relação de Coimbra salienta, a decisão de atribuir a guarda ao pai biológico foi
proferida quando a criança tinha já 2 anos e 5 meses; desde os 3 meses que não tinha qualquer
contacto com a mãe e nunca tivera qualquer contacto com o pai biológico.
O primeiro contacto deste caso com a justiça, ocorreu ainda em 2002, através do processo de
investigação oficiosa da paternidade que correu termos pelo Tribunal da Sertã; este processo
veio a ter o se epílogo já em 2003, com a perfilhação da criança pelo pai biológico.
O segundo contacto deste caso com a justiça, ocorreu em Janeiro de 2003, quando o casal que
cuidou da criança desde os três meses de idade, propôs no Tribunal da Sertã uma acção para
adopção da criança; em Setembro de 2003 o casal passou a ser acompanhado pela Segurança
Social como candidato à adopção da criança; em finais de 2003 a Segurança Social deu
parecer no sentido de a criança estar bem integrada na família constituída pelo casal, tendo
estabelecido laços de afectividade e vinculação e sendo o casal declarado idóneo para
adopção; em Janeiro de 2004 a Segurança Social iniciou um processo com vista à confiança
judicial da criança ao casal; o processo judicial foi proposto em Março, vindo a ser proferido
despacho de suspensão para durar enquanto o processo de regulação não fosse concluído.
O terceiro contacto deste caso com a justiça, ocorreu em Fevereiro de 2003, quando o pai
biológico se apresentou nos Serviços do Ministério Público da Sertã, declarando querer
regular o exercício do poder paternal da filha; o processo administrativo teve o seu início no
mês de Junho; o pai biológico veio a ser ouvido em Julho de 2003.
O quarto contacto deste caso com a justiça, ocorreu em Outubro de 2003, quando o processo
judicial de regulação do exercício do poder paternal foi distribuído; neste processo, o casal
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que cuidou da criança desde os 3 meses, constituiu mandatário; a conferência de pais teve
lugar em Novembro; em Dezembro, o casal foi ouvido; Ministério Público e Juiz entenderam
que a criança devia continuar à guarda do casal até conclusão do processo; em Fevereiro de
2004, a Advogada do casal foi notificada da designação da data designada para a audiência de
julgamento; a audiência teve lugar em Maio de 2004 e a Advogada do casal não foi admitida a
intervir; a sentença veio a ser proferida em Julho de 2004, tendo a guarda da criança sido
entregue ao pai biológico; o casal foi notificado e interpôs recurso, que não foi admitido; o
casal apresentou reclamação para o Presidente da Relação de Coimbra, que a indeferiu, em
Setembro; o casal atravessou um requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, que o Presidente da Relação de Coimbra não admitiu; o casal reclamou desta
não admissão para o Tribunal Constitucional; em Janeiro de 2005, o Tribunal Constitucional
pronunciou-se pela admissibilidade do recurso e ordenou ao Presidente da Relação de
Coimbra que o recebesse; o Presidente da Relação de Coimbra veio a proferir despacho que
admitiu o recurso; o recurso seguiu para o Tribunal Constitucional, que decidiu, por acórdão
de Janeiro de 2007, que a norma em que se baseou a decisão, no sentido em que foi
interpretada, não é conforme à Constituição da República, declarando a sua
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral; o Presidente do Tribunal da Relação de
Coimbra proferiu despacho ordenando a substituição do despacho recorrido por outro a
admitir o recurso e, a Relação de Coimbra veio, finalmente, a pronunciar-se sobre o mesmo,
em Setembro de 2007.
Quanto ao processo administrativo, demoraram 5 meses desde o primeiro contacto do pai da
criança até ser dado início formal ao processo; o processo judicial só teve início 7 meses
depois do primeiro contacto do pai da criança com o Ministério Público.
Quanto ao processo judicial, decorreram 9 meses desde a propositura até à sentença e, desde
esta até à decisão do recurso, demoraram 3 anos e dois meses; no total, desde o início do
processo judicial de regulação do exercício do poder paternal até à decisão final, demoraram 4
anos completos.
Desde o primeiro contacto do pai biológico com o Ministério Público até à decisão final,
decorreram 4 anos e 7 meses.
Este período de tempo tem na vida da criança um significado que não pode ser visto com
ligeireza; o tempo não corre para as crianças como corre para os adultos, como anteriormente
referimos.
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A continuidade da relação afectiva gratificante
A criança esteve entregue aos cuidados do casal desde os 3 meses de idade; ainda neste
momento o está, embora a título transitório.
Os contactos com o pai biológico, a quem o Tribunal atribuiu a sua guarda, só tiveram início
depois de a criança ter completado os 5 anos de idade.
Parece esquecida, neste caso, a consciência de que o decurso do tempo representa para a
criança danos psicológicos difíceis de reparar no futuro; e parece que não foi feita a devida
consideração da importância, fragilidade e delicadeza dos valores a preservar e de como é
difícil superar os efeitos de actos ou omissões traumatizantes para a criança nos primeiros
anos de vida128.
Parece, também, não haver memória, neste caso, da reflexão da Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, de que o
superior interesse da criança é determinado pela prevalência das relações afectivas profundas,
devendo, por isso, sempre que haja conflito entre a relação biológica e a afectiva dar-se
prevalência à última (sempre que seja demonstrado que a relação afectiva é profunda e a
criança não desenvolveu relações profundas com os progenitores biológicos).
Talvez seja mesmo necessário seguir a recomendação, da mesma Comissão, de, por via
legislativa, se fazer consagração do princípio da prevalência das relações afectivas profundas
como elemento determinante no esclarecimento do entendimento do interesse superior da
criança.
Pode até ser que na mesma ocasião se consagre também o princípio, para que fique regente da
actividade administrativa ou judicial incidente nas crianças, de que não deve ser determinada
qualquer medida, a não ser que se considere que fazê-lo, será melhor para a criança, do que
não determinar medida nenhuma, conforme já ocorre em Inglaterra129.
As limitações da lei e dos órgãos encarregados pela sociedade da sua realização
A Relação de Coimbra afirmou que foi a actuação do casal que provocou que o tribunal tenha
demorado o que demorou a decidir com carácter definitivo o processo; e que o
comportamento do casal se pautou pelo recurso a uma estratégia de facto consumado,
128 Armando Leandro, loc. cit. 129 “Children Act 1989”, cit.
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impedindo o contacto da criança com os pais, com o objectivo de, quando o tribunal viesse
finalmente a decidir, acabasse por dar preferência ao vínculo afectivo versus vínculo
biológico; pondera que tal preferência seria aceitável, no interesse da criança, se os pais, em
particular o pai, nunca tivesse manifestado qualquer vontade, disponibilidade, amor, afecto
pela criança, o que se sabe não ter ocorrido.
Ora por um lado, o processo, desde a fase administrativa até à sentença do processo judicial,
demorou de Fevereiro de 2003 a Julho de 2004, 17 meses, portanto; durante todo este tempo a
criança sempre esteve entregue ao casal.
Além disso: a Relação de Coimbra destaca que a relação jurídico-processual se estabeleceu
entre o Ministério Público, que intentou a acção de regulação, os pais biológicos da criança, e
o tribunal; e que para a conferência a que se refere o artigo 175º da OTM, foram citados os
pais biológicos; acrescenta que o casal foi notificado pelo Tribunal para comparecer em
determinado dia, o que o casal fez, acompanhado do seu Advogado, o qual, no início da
diligência, juntou aos autos duas procurações forenses; e pondera que, se o casal quisesse ter
uma «participação activa na regulação do poder paternal da menor Esmeralda, então,
deveria ter invocado a sua legitimidade processual para intervir nos autos, aquando da sua
audição… o que não fez».
Está assente que a Advogada do casal foi notificada, pelo Tribunal, para comparecer na
audiência de julgamento e que, aí se tendo apresentado, não foi admitida a intervir; está
assente que, notificado da sentença da 1ª Instância, o casal interpôs recurso, que não foi
admitido.
Parece que a Relação de Coimbra entende que a junção aos autos — previamente à audiência
de julgamento —, de instrumentos de constituição de Advogado, não produziu o efeito de
declaração, pelo casal, da intenção de intervir no processo e da afirmação da respectiva
legitimidade para tanto; no entender da Relação de Coimbra, a junção das procurações não
teve qualquer mérito processual, não teve qualquer efeito; ora não pode esquecer-se que a lei
processual liga à simples constituição de advogado nos autos, o efeito de tornar operante a
revelia, conforme prescreve o artigo 484º, nº ,1 do Código de Processo Civil: «Se o réu não
contestar,… tendo juntado procuração a mandatário judicial… consideram-se confessados os
factos articulados pelo autor.»; assim, a junção aos autos das procurações tem que ter
significado processual, maxime o de valer como declaração, dos mandantes, de que se
consideram com legitimidade para intervir e de que pretendem fazê-lo. Não tendo sido
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recusada pelo Tribunal a junção das procurações, devia ter-se considerado que a relação
jurídico processual passara a ficar estabelecida entre o Ministério Público, os pais biológicos,
o casal e o Tribunal. Se assim tivesse acontecido, casal teria produzido alegação, defendendo,
seguramente, que a criança lhe deveria ser entregue; teria proposto prova; teria intervindo na
audiência; teria, em caso de irresignação, interposto o recurso competente, que teria sido
admitido de imediato; em suma, o processo não teria demorado mais de 4 anos a ver a decisão
final ser proferida.
Por outro lado: o membro masculino do casal é militar do exército português; como todos os
membros das Forças Armadas Portuguesas, está vinculado às disposições do Estatuto dos
Militares das Forças Armadas130, cujo artigo 14º, nº 2, prescreve que «O militar é obrigado a
comunicar a sua residência habitual ou ocasional»; ou seja, a todo o momento, o Exército,
que é como quem diz, o Ministério Público, o Tribunal, a Polícia, sabiam onde se encontrava
o membro masculino do casal.131 Em qualquer altura os órgãos encarregados pela sociedade
de aplicar a lei podiam ter procurado, encontrado e removido a criança.
Por outro lado ainda: o casal estava inscrito como casal candidato à adopção na Segurança
Social; este organismo deu início a um processo administrativo de confiança da criança ao
casal, produziu relatório atestando que o casal era idóneo e deu início a processo judicial para
confiança; o Ministério Público e o Tribunal, por iniciativa própria, confiaram até Julho de
2004 — e até depois disso —, a guarda da criança ao casal; todas estas entidades, em conjunto
e cada uma delas individualmente, prolongaram por sua iniciativa a situação da relação
afectiva da criança com o casal desde pelo menos Fevereiro de 2003 (quando o pai biológico
foi aos Serviços do Ministério Público da Sertã), até Julho de 2004 (data da sentença em 1ª
instância).
Ainda por outro lado: a Relação de Coimbra declarou aceitável o princípio da prevalência do
vínculo afectivo sobre o vínculo biológico, no interesse da criança, mas apenas se o pai nunca
tivesse manifestado qualquer vontade, disponibilidade, amor, afecto pela criança; e
acrescentou que se sabe que tal manifestação por parte do pai, ocorreu; ou seja, o pai
biológico manifestou amor e afecto pela criança; e a Relação faz a ligação desta manifestação
do pai biológico, com o interesse da criança em conhecer e relacionar-se com os pais, «sem
130 http://www.emfa.pt/www/conteudos/informacaofa/legislacao/EstatCondMilitar/emfar/EMFAR2006versaofinal.pdf 131 Poder-se-á dizer: — Mas não se sabia onde se encontrava a criança! Pois não! — A não ser que se quisesse, mesmo, saber, como é evidente.
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esquecer que a consanguinidade, quando associada a afectos, deve jogar um papel
importante na vida do menor». A prevalência das relações afectivas sobre as biológicas terá a
sua validade limitada àqueles casos em que «a consanguinidade é apenas uma realidade
friamente objectiva, sem quaisquer envolvimentos afectivos entre a criança e os seus
progenitores»; o que, segundo a Relação, não é o caso dos autos, pois que pai biológico da
criança se mostrou afectivamente envolvido e empenhado em trazer a filha para o seu
convívio, demonstrando em cada passo um real e efectivo amor pela criança.
Na Relação de Coimbra foi aditado aos factos assentes, oficiosamente, o facto 33-A:
«Denota-se uma forte ligação afectiva entre o casal e a menor».
Ou seja: de um lado, está o amor e o afecto do pai biológico pela criança; do outro, a forte
ligação afectiva existente entre o casal e a criança (deve entender-se, parece, que esta ligação
afectiva é mútua e recíproca).
Foi valorizada a relação afectiva do pai biológico à criança (a construir) ligada à
consanguinidade; mas não parece ter sido minimamente valorizada a ligação afectiva,
prolongada, da criança ao casal, apesar de esta ter sido a única (ligação afectiva) que a criança
conheceu em todos os seus seis anos de vida.
Foi aqui exercitada, aparentemente, uma capacidade de previsão do futuro da relação entre a
criança e o pai biológico; a decisão de hoje só poderá ser avaliada, quanto ao seu acerto, pelos
futuros desenvolvimentos da relação afectiva a estabelecer (se vier a ser efectivamente
estabelecida) entre a criança e o pai biológico.
Face a uma situação actual certa — a criança está integrada numa família que a ama e que ela
ama, a única que conheceu —, a Relação de Coimbra, optou por uma situação futura incerta e
imprevisível.
A Relação de Coimbra confirma que o Tribunal de 1ª Instância não deixou de atender às
condições do casal, tendo até concluído que, em termos económicos é o referido casal que
oferece melhores condições à menor e que não restam dúvidas de que o mesmo casal dedica à
criança um enorme afecto, tratando-a como se sua filha fosse.
Porém, resulta claro que o Tribunal não considerou, sequer, a hipótese de confiar a criança,
definitivamente, a este casal.
E explica porque não é de considerar essa hipótese: porque não estão os pais biológicos
inibidos do poder paternal, nem há razões para que o sejam; porque a prevalência dos laços
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afectivos sobre os sanguíneos só pode ocorrer na falta de vontade dos pais biológicos.
E será assim, porque os pais — pese embora a característica funcional do poder paternal —
exercem de facto um direito (subjectivo) seu, com o que pretendem obter «a realização plena
de uma das facetas mais ricas da sua personalidade.… É cumprindo o dever de preparar
integralmente os filhos para a vida, que os pais satisfazem um dos mais elevados valores da
sua personalidade — que têm direito de realizar.» (Antunes Varela, cit.)132.
O Tribunal considerou os direitos dos pais biológicos, optando por realizar o direito do pai.
Tomou conhecimento da plena integração da criança na família que dela cuida desde os 3
meses e tomou conhecimento também do afecto mútuo e recíproco que a criança e o casal se
dedicam, não chegando porém a considerar a hipótese da manutenção da situação.
Ora atendendo à idade da criança à data do início da sua convivência com o casal, à
longevidade dessa convivência, à sua continuidade, não podia deixar de concluir-se que entre
a criança e o casal se teria seguramente desenvolvido uma relação de apego/vinculação, aliás
indiciada nos autos, por iniciativa da própria Relação de Coimbra, quando alterou a matéria
de facto pela adição da alínea 33-A.
132 Na continuação da sua anotação ao actual artigo 1878º do Código Civil (Conteúdo do poder paternal), o Prof. Varela virá a informar que a versão da reforma de 1977 do preceito é praticamente coincidente com a versão original do Código, «embora com algumas ligeiras diferenças, puramente formais, de articulação das matérias». A versão original do Código Civil Português, como é sabido, entrou em vigor em 01/01/1967, excepto quanto às regras (artigos 1841º/1850º) do reconhecimento oficioso dos filhos ilegítimos, que só entraram em vigor em 01/01/1968. Sete anos decorridos desde a Declaração dos Direitos da Criança, o artigo 1879º, que prescrevia então a natureza e conteúdo do poder paternal, nenhuma menção fazia do “interesse do menor”: «Compete a ambos os pais a guarda e regência dos filhos menores não emancipados com o fim de os defender, educar e alimentar. Pertence também aos pais representar os filhos, ainda que nascituros, e administrar os seus bens». O Prof. Varela dá pistas para esta opção — desde logo sua, porque Ministro da Justiça ao tempo —, quando critica a opção do legislador de 1977 pela consagração da autonomia do filho menor na organização da sua vida privada: «A terceira nota é já bastante desafortunada, pelo estímulo que pode constituir ao comportamento individualista de cada filho dentro da pequena comunidade social que é a família… o legislador português de 76 caprichou em tomar posições de vanguarda no movimento de rompimento com os quadros tradicionais…». Quais são esses quadros tradicionais, o Prof. Varela se encarrega de explicitar no Prefácio da sua Obra: «Empolgado pelo espírito revolucionário da época, o legislador português acabou por instituir no país um regime que, no seu conjunto, pode ser considerado como um dos mais ousados de toda a Europa, deixando em vários pontos significativos a perder de vista as soluções adoptadas em países sem as profundas raízes cristãs da nação portuguesa, nascida sob a bênção da Igreja e tendo o seu maior colectivo de glória, na obra quinhentista de divulgação do Evangelho pelo mundo.… e não podem naturalmente deixar de ser assinaladas, pelo seu franco sentido negativo, disposições como as… do artigo 1874º que, com o deslocado intento de realçar a igual cidadania de pais e filhos perante o Estado, senta no mesmo patamar da reciprocidade de direitos e obrigações os sujeitos do poder paternal, ligados entre si pelo natural escalonamento hierárquico que une educandos e educadores dentro do recinto familiar.».
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T e r á o T r i b u n a l p o n d e r a d o o s m e l h o r e s i n t e r e s s e s
d a q u e l a c o n c r e t a c r i a n ç a ?
Para responder a esta questão, vamos procurar no acórdão as linhas do pensamento do
julgador.
Quando se debruça sobre a proposição dos recorrentes: «A sentença compromete o seu
desenvolvimento psíquico da menor. O regime fixado pelo Tribunal não é compatível com o
interesse da criança.», o tribunal da Relação de Coimbra admite «ter chegado ao ponto
fulcral do… recurso», daí que passe a «tecer ainda que superficialmente breves
considerandos sobre este instituto» (o interesse do menor).
Começa por salientar que a sentença recorrida teve em conta «o percurso da menor desde o
seu nascimento e até à sua entrega aos apelantes com pouco mais de três meses de idade
para de seguida se debruçar sobre qual dos progenitores reunia as melhores condições —
económicas e sociais — para proporcionarem à menor Esmeralda um harmonioso
desenvolvimento físico, psíquico, intelectual e moral».
Depois pondera que a progenitora decidiu entregar a terceiros a sua filha e consentiu na sua
adopção plena — o que fez sem conhecimento do progenitor —, e que o progenitor depois de
assumir voluntariamente a paternidade passou, como lhe competia, a procurar a filha o que
fez durante meses, primeiro junto da mãe depois junto do casal que acolheu a menor.
Seguidamente dá conta de que a sentença recorrida analisou o casal constituído por Luís
Gomes e Maria Lagarto — apesar de não serem partes na acção de regulação do poder
paternal —, e concluiu que, naquela altura, em termos económicos, era o referido casal quem
oferecia melhores condições à menor, sendo certo, também, que o mesmo casal devotava à
menor um enorme afecto, tratando-a como se sua filha fosse.
Dá finalmente conta de que a sentença recorrida considerando que à menor Esmeralda assistia
o direito a viver com o pai — que possuía as condições indispensáveis para lhe propiciar um
desenvolvimento saudável e harmonioso —, decidiu neste sentido, considerando os interesses
da menor.
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O acórdão sustenta esta decisão, ponderando:
1. Qualquer dos progenitores não se encontra inibido do exercício do poder paternal;
2. A Constituição da República protege e tutela a família natural, não consentindo que os
filhos sejam separados dos pais a não ser quando estes deixem de cumprir os seus
deveres fundamentais para com eles; destaca a família como o elemento fundamental
da sociedade; evidencia a maternidade e a paternidade como valores sociais
eminentes, conferindo aos pais um papel determinante na educação dos filhos;
3. A Constituição da República reconhece as crianças como sujeitos autónomos de
direitos;
4. Em sede de regulação do poder paternal, um dos princípios fundamentais e que deve
assumir preponderância é o «interesse do menor» que deve ser entregue — ao
progenitor — que mais garantias dê em matéria de valorização do desenvolvimento
da sua personalidade e lhe possa prestar maior assistência e carinho;
5. Quando o progenitor teve conhecimento dos resultados do exame hematológico, a
menor Esmeralda ainda não tinha feito um ano de idade e o progenitor passou a
procurá-la, sem sucesso, junto da mãe, no que gastou alguns meses;
6. A mãe da menor deu ao progenitor informações erróneas, levando-o a investir meses
na procura infrutífera da filha;
7. Quando tomou conhecimento de que a menor estava a viver com o casal constituído
por Luís Gomes e Adelina Lagarto, o progenitor tentou junto do casal ver a filha, o
que não lhe foi permitido;
8. Existe uma forte ligação afectiva entre o casal e a menor;
9. Em 13 de Julho de 2004 é proferida sentença que decide confiar a menor à guarda do
pai, mas o casal Luís/Adelina não cumpriu a sentença tendo antes optado por manter a
criança consigo, não permitindo mais uma vez que o progenitor com ela contactasse;
10. O “Parecer” produzido pela Dra. Maria Clara Sottomayor, junto aos autos, defende
que toda a decisão judicial sobre exercício do poder paternal deve ter em conta as
várias fases de desenvolvimento das crianças, das suas necessidades em cada estádio
de desenvolvimento e da importância da estabilidade das suas relações afectivas
profundas e que, numa situação em que a criança experimenta uma falta de
coincidência entre os vínculos biológicos e os afectivos, devem prevalecer estes
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últimos; reconhecendo embora a validade deste entendimento, o acórdão entende que
a situação concreta lhe não é reconduzível, porquanto apenas tem cabimento a sua
aplicação àqueles casos em que a consanguinidade é apenas uma realidade friamente
objectiva, sem quaisquer envolvimentos afectivos entre a criança e os seus
progenitores, ao contrário do que sucede ao caso em análise, em que, o progenitor,
desde o momento que soube o resultado dos exames hematológicos, revelou-se um pai
afectivamente envolvido e empenhado em trazer a filha para o seu convívio,
demonstrando em cada passo um real e efectivo amor pela menor Esmeralda, o que
está objectiva e claramente demonstrado na forma como aceitou as decisões do casal
Luís/Adelina que, por diversas vezes, o impediram de ver/contactar com a sua filha;
11. Foi o casal Luís/Adelina quem começou por alterar, sem qualquer fundamento legal,
um dos elementos estruturantes da personalidade da menor — o seu nome —, sendo
certo que a menina tinha cerca de três meses e meio quando lhes foi entregue e durante
esse período de tempo foi chamada de Esmeralda pela mãe;
12. Foi o casal Luís/Adelina quem, sem razões legais ou outras impediu o estabelecimento
de quaisquer laços afectivos entre os progenitores e a criança;
13. As decisões do casal Luís/Adelina foram tomadas no seu único e exclusivo interesse,
sem ao menos parar para pensar no interesse da menor Esmeralda;
14. A ter sido possível o contacto/relacionamento da menor com o progenitor, o vínculo
biológico e o afectivo podiam fundir-se num único, com vantagens para a menor e sem
qualquer desvantagem para o casal que a acolheu
15. A criança à data da sentença tinha 2 anos e 5 meses, mas hoje (à data da prolação do
acórdão) tem 5 anos e 5 meses o que obriga que a solução não possa deixar de ter em
conta esta nova realidade;
16. Essa solução deve privilegiar o interesse da criança, mas sem esquecer o vínculo
biológico que a liga ao progenitor, nem o vínculo afectivo que estabeleceu a partir dos
3 meses de idade com o casal Luís/Adelina ;
17. A conduta do casal Luís/Adelina, antes da instauração do processo e após a sua
instauração e decisão, pautou-se pelo recurso à estratégia do facto consumado;
18. O facto consumado não pode nem deve ter o condão de limitar as decisões dos
Tribunais;
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19. Se o Tribunal ficasse refém do «facto consumado» mais do que violar os legítimos e
superiores interesses da menor Esmeralda — nada nem ninguém lhe pode negar o
afecto dos pais, desde que sejam pais afectivamente envolvidos e interessados no seu
salutar e normal desenvolvimento físico, intelectual e moral — colocaria em causa os
superiores interesses de todos os menores em que um dos progenitores ou terceiro(s)
conseguisse, com recurso a um conjunto de meios, evitar que o menor contactasse com
o outro progenitor ou com os pais;
20. O Tribunal, tendo por referência o superior interesse da menor, deve regular o poder
paternal tendo em conta a sua idade, o seu desenvolvimento e personalidade, a sua
ligação afectiva ao casal Luís/Adelina, mas também o seu interesse em conhecer e
relacionar-se com os pais, sem esquecer que a consanguinidade, quando associada a
afectos, deve jogar um papel importante na vida da menor;
21. O Tribunal regulou transitoriamente o poder paternal da menor atribuindo o exercício
do poder paternal ao pai, mantendo, no entanto, a menor a residir como o casal
Luís/Adelina, que dela cuidará, único caminho possível e aquele que tem em conta os
reais e superiores interesses da criança — com este regime lança-se um repto ao pai e
ao casal Luís/Adelina e no decurso do seu desenvolvimento perceber-se-á quem ama
verdadeiramente a menor ou quem dela se está a utilizar;
22. Separar a menor do casal Luís/Adelina era dar-lhe uma forte machada nos seus
sentimentos de segurança;
23. Impedir a menor de conhecer os pais, de com eles conviver e de com eles se
relacionar, podia servir interesses mais ou menos egoístas ma nunca serviria o
interesse da menor que tem o direito de conhecer os pais e de com eles se relacionar;
24. O superior interesse da criança não é beliscado pelo facto de contactar com o seu
progenitor, antes pelo contrário, através deste contacto se perceberão as interacções
que se estabelecem entre ambos, a forma como evoluem as suas relações, se estão a
ser gratificantes para a criança;
25. Se os contactos da menor com o pai se traduzirem em sofrimento para a menor,
colocando-a em perigo, o Tribunal intervirá de novo, no sentido de reavaliar o seu
interesse e se for no sentido de alterar o decidido deve fazê-lo tendo mais uma vez em
conta não os interesses da menor;
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26. O caminho encontrado pelo Tribunal é uma manifestação clara do princípio orientador
das regulações do poder paternal, ou seja, considerando o quadro actual deve
atribuir-se ao pai o seu exercício de forma particularmente limitado na medida em que
a menina continuará a viver, durante um determinado período — suficientemente
longo para se perceber como evolui a sua relação com os pais, mas suficientemente
curto para não eternizar a situação — com o casal Luís/Adelina;
27. Não é possível afirmar-se hoje que os contactos com os pais, colocarão em causa a sua
estabilidade, integração e igualdade, antes pelo contrário, ao conhecer os pais
biológicos a criança preenche uma lacuna importante da sua vida;
28. Conhecendo o pai, perceberá os sentimentos que ele nutre por ela, assim encontrando
lastro para a futura integração no seio da família do pai;
29. A menor perceberá que a sua integração na família paterna, não obriga a um corte de
relações com a família que carinhosa e amorosamente a acolheu durante estes anos.
Quais as ideias-força que parecem evidenciar-se das considerações feitas pela Relação de
Coimbra e acima elencadas, ao que cremos exaustivamente?
Primeira: o poder paternal deve ser atribuído a um dos progenitores, salvo em caso de
inibição;
Segunda: a relação de apego/vinculação da criança com alguém que não seja seu progenitor
só deve pesar, em sede de atribuição do poder paternal, nos casos em que nenhum dos
progenitores manifeste disponibilidade para vir a criar, também ele, em relação à criança, uma
relação de apego/vinculação;
Terceira: o progenitor manifesta um real e efectivo amor pela menor;
Quarta: entre o casal Luís/Adelina e a criança existe uma forte ligação afectiva
Quinta: o casal Luís/Adelina agiu em todo o processo apostando na criação do “facto
consumado”, estratégia que o Tribunal não deve tolerar, até porque tal implicaria pôr em
causa os superiores interesses de todos os menores em que um dos progenitores ou terceiro(s)
conseguisse, com recurso a um conjunto de meios, evitar que o menor contactasse com o
outro progenitor ou com os pais;
Sexta : a solução encontrada visa a possibilidade de fusão do vínculo biológico com o vínculo
afectivo e a futura integração no seio da família do pai;
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Sétima: se os contactos da menor com o pai se traduzirem em sofrimento para aquela, deverá
o Tribunal intervir de novo, reavaliando o interesse da menor, alterando o decidido se for caso
disso.
A decisão não refere, sequer, a relação de apego/vinculação da criança com o casal
Luís/Adelina.
Sendo o “interesse superior da criança” um conceito indeterminado que deve ser preenchido
jurisprudencialmente, parece pelo menos insólito que o Tribunal não tenha sentido a
necessidade de ponderar aquela relação de apego/vinculação da criança ao casal Luís/Adelina
e a ausência desse apego/vinculação da criança ao pai biológico.
Parece que se impunha que o Tribunal reflectisse sobre:
O tempo decorrido entre o início da convivência entre a criança e o casal — desde os 3
meses de vida daquela —, e a data da decisão definitiva — proferida quando a criança
já tinha 5 anos e 5 meses,
A manifesta existência de uma relação afectiva gratificante e contínua, da criança,
desde os 3 meses desta, com o casal,
A impossibilidade de prever a evolução da relação, a criar ab ovo, entre a criança e o
seu pai biológico.
A criação de uma relação de apego/vinculação não se produz entre os 3 meses e os cinco anos
da idade de uma criança, da mesma forma que virá a produzir-se se iniciada apenas depois dos
5 anos de idade.
A consideração do “interesse superior da criança” sob a perspectiva da própria criança,
deveria ter levado, parece, a tomar o Tribunal outro rumo, na decisão sobre o destino desta
criança.
O Tribunal pesou o afecto do casal Luís/Adelina pela criança; ponderou o amor do pai pela
criança; privilegiou a possibilidade de fusão entre o laço de sangue e o possível laço de afecto
a estabelecer entre a criança e o pai; atendeu à necessidade de prevenção geral relativamente à
“estratégia de facto consumado”; admitiu a possibilidade de a decisão tomada poder vir a ser
alterada.
O que nos impressiona — além da falta de ponderação da relação de apego/vinculação da
criança com o casal Luís/Adelina —, é a ligeireza com que se admite neste caso a
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experimentação: — Para já, fica assim; se não resultar, primeira forma.
Ora, sendo de uma criança de tenra idade que se trata, a experimentação não pode ser uma
opção (como não poderia ser uma opção o Tribunal autorizar a amputação de um braço à
criança, para experimentação de uma qualquer hipótese científica, sob pretexto de que, se a
experiência não resultasse ou finda ela, o braço poderia ser recolocado, sem perda de
funcionalidade e com retoma da respectiva evolução física, em sintonia com o outro braço).
A nosso ver, o Tribunal deveria ter colocado a criança no centro da sua actividade; ou, para
usar a construção jurídica em que se inspirou, devia ter atendido aos factos que integram o
núcleo do conceito “interesse superior do menor”.
Dada a continuidade e longevidade da relação com o casal Luís/Adelina (independentemente
de como e por acção de quem, ou omissão de quem, foi possível ter ocorrido), a criança tinha
seguramente desenvolvido para com os respectivos membros um laço afectivo profundo, uma
relação de apego/vinculação; a ruptura dessa relação é disfuncional e geradora de patologia,
nomeadamente — nas suas manifestações extremas —, esquizofrenia e autismo.
É esta relação afectiva que constitui o núcleo do conceito.
No respectivo halo, encontram-se: os direitos dos pais biológicos; o interesse do casal
Luís/Adelina; o direito do Estado de punir eventuais comportamentos táctico-processuais
procrastinadores, caso existam; o direito do Estado de, por essa punição, dar sinal à
comunidade de que tais comportamento não dariam os frutos desejados.
Atendendo apenas ao núcleo do conceito, o Tribunal teria feito o que seria melhor para a
criança; atendendo, como atendeu, ao halo do conceito, o Tribunal castigou o casal pela sua
actuação, premiou o pai biológico pela sua perseverança, deu sinal à sociedade; mas não
realizou os melhores interesses daquela concreta criança.
Quando está em causa a decisão sobre o destino da criança, sempre que tal implique uma
alteração importante do seu status quo, a consideração do “interesse superior da criança”
impõe a opção pela alternativa menos nociva133.
Para se apurar qual é — in casu —, essa alternativa, parece impor-se a ponderação dos
critérios acima sugeridos: o sentido de tempo da criança, a necessidade de assegurar à criança
a continuidade da relação afectiva gratificante quando esta exista, a incapacidade de previsão
133 “The Best Interests…”, cit., pág. 50
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a longo prazo.
E, em caso de não ser possível garantir que uma decisão — seja ela qual for —, é melhor para
a criança do que deixar tudo como está, então pondere-se não introduzir alterações à situação
existente.
Porto, Julho de 2008
Luís Filipe Salabert
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