O teatro como fonte histórica no ensino e na pesquisa
RODRIGO SEIDL*
Se perguntássemos a um grupo de pessoas quais são os elementos importantes para a
realização de uma performance teatral, certamente a lista seria imensa. Incluiria, muito
provavelmente, vários elementos, como o figurino, a iluminação, os atores, os elementos de
cena, um palco, um teatro, uma plateia, etc. Mas, se perguntássemos ao mesmo grupo sobre a
necessidade absoluta da existência de cada um desses elementos para a performance teatral,
possivelmente a maioria do que foi listado seria eliminado dessa lista. Por exemplo, uma
encenação teatral não precisa necessariamente de um figurino elaborado, pois pode ser feita
com roupas comuns. Tampouco precisa de um palco ou um edifício exclusivo para esse fim,
pois podem acontecer em qualquer lugar, como de fato ocorrem, nas performances de rua ou
happenings. Se continuássemos esse processo de questionar os elementos do teatro,
chegaríamos a um mínimo absoluto de um ator e um membro da plateia. Isso significa que
tudo o que originalmente fora colocado na lista do que se espera de uma performance teatral
é, essencialmente, opcional. Portanto, diferentes contextos pedirão diferentes elementos dessa
performance, mas o que nunca muda é que alguém precisa atuar e um outro assistir.
Já utilizei o exercício acima mencionado em workshops sobre a natureza do teatro. Ele
foi desenvolvido a partir da leitura de The Empty Space, de Peter Brook. Escrito em 1968,
esse livro, que se tornou talvez o trabalho mais conhecido de Brook, propôs importantes
questões sobre o que é a essência do teatro - ou, pelo menos, o que deveria ser. A própria
sentença inicial do livro comunica claramente a principal proposição teórica do autor: "Eu
posso pegar qualquer espaço vazio e denominá-lo de palco. Um homem atravessa esse espaço
vazio enquanto outro o observa, e isto é tudo que é preciso para que um ato teatral seja
estabelecido (BROOK, 1990: 11)."1 Portanto, o que constitui o teatro é uma conexão especial
entre o ator e seu público. Desenvolvendo essa ideia, podemos dizer que todos os outros
elementos da performance teatral são escolhas, que podem variar de acordo com as
necessidades de cada situação. Para aqueles que fazem teatro essa é uma ideia fundamental,
pois o que Brook declara é que o teatro pode criar poderosas conexões se o foco for mantido
Professor de História e Teatro da St. Paul's School (Escola Britânica de São Paulo), mestre em História Social
pela PUC-SP. 1 "I can take any empty space and call it a bare stage. A man walks across this empty space whilst someone else
is watching him, and this is all that is needed for an act of theatre to be engaged" (tradução nossa).
2
na ligação entre o ator e seu público, ao invés de em elementos do palco que não
necessariamente precisam estar presentes e podem ser apenas distrações. Para os historiadores
e outros pesquisadores da área das ciências sociais, investigar as razões por trás de certas
escolhas pode revelar muito não apenas sobre a prática artística de determinado tipo de teatro
ou performance, mas também sobre o contexto histórico-social no qual existiu a performance
estudada.
Portanto, o que propomos aqui é a análise do teatro como fonte histórica que leva em
conta sua essência como performance. Isso quer dizer que investigamos e questionamos todos
os elementos dessa performance bem como os processos que a envolvem. Esse tipo de
investigação é um desafio porque o teatro é, essencialmente, uma forma artística efêmera. Isso
é especialmente verdadeiro quando lidamos com períodos distantes no tempo, nos quais as
apresentações de teatro não podiam ser registradas através do filme ou da fotografia.
Frequentemente, tudo o que temos da encenação original é seu texto. Ainda assim, a análise
do texto teatral não é suficiente para captar a totalidade da natureza dessa performance em um
determinado contexto. Ele é um elemento importante, mas há muitas pessoas diferentes
envolvidas no processo que transforma o que é sugerido na escrita em ação ao vivo na frente
do público. De acordo com Anatol Rosenfeld:
...o texto apresenta apenas um sistema de coordenadas que deve ser preenchido
pela música dos movimentos, pelas inflexões de voz, pelas mil nuanças indefiníveis
da mímica e do gesto. Isto explica o fato de haver só um texto de Hamlet e centenas
de Hamlets diversos. [...] A grande flexibilidade do teatro vivo permite preencher os
vãos e vácuos de mil maneiras, conforme a época, a nação, a concepção e o gesto
(ROSENFELD, 2000: 22).
Portanto, uma análise do texto teatral certamente revelará informações sobre um período
histórico, mas isso seria, essencialmente, uma análise literária. Um estudo do teatro em
contextos diferentes requer uma análise da performance que leva em consideração o fato de
que o texto é, apenas, um dos pontos de partida para que aconteça o fenômeno teatral.
Um grande desafio que vem com a análise da performance é saber o que procurar. É
importante estar familiarizado com os processos do teatro para ser capaz de entender os
diferentes elementos do mesmo e como esses se unem para dar forma à encenação. Mais do
que isso, é necessário um pensamento criativo para ser capaz de reunir fontes adicionais que
3
preencham as eventuais lacunas do que o texto por si só não pode informar-nos, como a
configuração do espaço teatral ou o funcionamento interno das companhias teatrais no
passado.
Em relação ao primeiro problema, Raymond Williams delineou muitos modelos
eficazes para criar um método de análise da performance teatral. O interesse do autor no
teatro esteve presente ao longo de toda sua carreira e, já em 1954, começou a desenvolver um
método de análise do teatro como performance, e não literatura, em seu livro Drama in
Performance. Nele, o autor chamou atenção à importância de se reconstruírem as "condições
da performance" e então ler o texto tendo essas condições físicas em mente. Isso nos
possibilita a imaginar como era a performance tal como a que o dramaturgo teria tido em
mente originalmente (WILLIAMS, 1995: 16). Mais tarde em sua carreira, Williams
desenvolveu ainda mais essas ideias e apresentou o modelo para análise de processos sociais
em seu livro The Sociology of Culture (1981). Nesse, ele sugeriu diversos pontos de vista a
partir dos quais podem ser estudados diferentes processos sociais e culturais, como suas
formações internas, as relações com instituições de poder, com as formas estéticas, entre
outros. Muito do que Williams escreveu é útil como exemplo de análise do teatro e de outros
meios culturais, mas os dois livros acima mencionados são especialmente bons para isso e
formam a base de minha abordagem metodológica.2
O segundo desafio de reconstruir as condições de uma performance que não são
evidentes no texto é um pouco mais complicado. Esse requer do historiador procurar por
pistas em diferentes lugares, o que pode tornar-se mais difícil com peças teatrais mais
distantes temporalmente. Isso é possível, no entanto, e encontrei alguns exemplos bem
interessantes nesse respeito. Por exemplo, muito do que hoje é conhecido do funcionamento
das companhias do teatro da era Elisabetana foi revelado através da descoberta do diário de
Philip Henslowe. Ele era um dos principais empresários teatrais da época e guardava registros
detalhados dos negócios de sua companhia, a Admiral's Men, tais como os custos de compra
de materiais para o figurino, contratos com atores, os lucros diários de cada apresentação e até
mesmo uma agenda das apresentações marcadas para cada temporada de teatro. No caso do
teatro grego, uma referência essencial têm sido as pinturas em cerâmicas nas quais podem ser
vistas as diferenças entre os atores e o coro em relação a suas máscaras, por exemplo
2 SEIDL, Rodrigo. O Negócio do Ócio: o teatro profissional londrino (1576-1603). Dissertação de mestrado -
História, PUC-SP, São Paulo. 2009.
4
(WILES, 2000: 128-130). Embora isso requeira um pouco mais de trabalho e criatividade
durante a investigação, é possível reconstruir o contexto no qual a performance teatral foi
originalmente criada e realizada e também auxiliar a construção de uma suposição mais
adequada sobre como a ação apresentada no texto pode ter sido encenada dentro de tais
condições de performance.
Para o historiador, analisar o teatro como processo social pode fornecer muita
informação a respeito do período histórico sendo estudado. Isso faz do teatro uma fonte muito
útil, tanto como pesquisa histórica como na sala de aula. Para demonstrar como funciona essa
análise, examinaremos um exemplo prático. A partir da ideia de Peter Brook de que qualquer
espaço pode ser um palco para um ato teatral, usaremos o "espaço" como ponto focal da
análise da prática teatral em Londres durante o período final da era Elisabetana (1576-1603).
Devemos poder, assim, evidenciar o quanto é possível descobrir sobre tal período através do
estudo de um aspecto bem específico do teatro da época.
O teatro como fonte na pesquisa histórica
Uma mudança muito importante aconteceu em 1576 em relação à prática do teatro em
Londres. Pela primeira vez desde o período Romano, um edifício especificamente destinado
às apresentações teatrais foi construído para que elas ocorressem regularmente ali. Essa foi a
primeira vez em um longo tempo que os artistas do teatro tiveram seu próprio espaço. Antes
disso, na era Medieval, exatamente como Brook menciona em sua famosa citação, qualquer
espaço poderia ser utilizado como um espaço teatral. Portanto, é importante refletir sobre
esses espaços que foram de fato escolhidos como locais destinados a essas apresentações.
As primeiras formas do teatro medieval aconteciam ao redor de igrejas e catedrais.
Essas peças eram frequentemente escritas e realizadas por membros do clero e eram baseadas
em relatos bíblicos ou da vida dos santos. O propósito de tais apresentações era, obviamente,
auxiliar o ensino religioso através do uso da arte dramática. Mais tarde, ainda que a Bíblia
continuasse sendo a fonte principal para as narrativas das peças, tais apresentações passaram
também a ocorrer ao redor das cidades medievais e em suas praças e ruas principais e não só
nas igrejas ou diante delas. Essas peças eram organizadas pelos próprios conselhos municipais
para ocorrerem durante os principais festivais religiosos e toda a comunidade local
participava. Vemos mais uma vez a importância do contexto religioso mas também da
5
presença laica da cidade exercendo seu poder. Ao mesmo tempo, também já na Baixa Idade
Média, grupos de atores se formam sob a proteção dos senhores feudais como seus patronos,
ainda inseridos no sistema feudal. Em troca da proteção recebida, os atores forneciam
entretenimento na residência do senhor feudal e para seus convidados mas também viajavam
pelo país carregando o nome de seu patrono. Isso era, claro, uma forma de propaganda e
demonstração de poder por parte do senhor feudal (DILLON, 2006a: 17). Entretanto, tais
apresentações ocorriam em qualquer espaço que os atores pudessem encontrar. A encenação
medieval era flexível e os grupos de atores podiam adaptar-se às condições que encontrassem.
Por esse motivo, o teatro medieval podia acontecer numa variedade de espaços, como o salão
principal da casa do senhor feudal ou no paço municipal; dentro de uma igreja ou catedral, ou
até no pátio de frente ou detrás das mesmas; em um palco improvisado no pátio de uma
taverna; ou na praça principal de uma cidade. O mais importante a ressaltar é que esse teatro
não tinha seu espaço próprio nem seu tempo específico, já que as apresentações ocorriam em
conjunto com outros eventos, como as celebrações religiosas. Ademais, o teatro servia aos
interesses específicos de seu patrono.
Em 1576, entretanto, tudo isso começou a mudar com a construção do primeiro espaço
fixo para apresentações teatrais em Londres. Este novo espaço era simplesmente chamado de
Theatre (Teatro) - uma clara indicação da influência clássica na Renascença, pois o nome
havia sido tomado da palavra grega "Theatron", que significa um lugar onde espectadores
podem assistir a alguma coisa. Foi construído por James Burbage (o pai da futura estrela
londrina Richard Burbage, ator que trabalhou com William Shakespeare) e por seu cunhado
John Brayne. Ficava na estrada principal para dentro de Londres a partir do norte no bairro de
Shoreditch. O propósito do novo edifício era ser um local permanente de apresentações para
a companhia teatral de James Burbage - Leicester's Men (Companhia do Conde de Leicester)
- e que também podia ser alugado para outras companhias que viessem a Londres. O teatro
agora tinha seu espaço exclusivo, o que significava que as companhias teatrais não
precisavam mais dividir palcos improvisados com outros tipos de performance. O sucesso do
Theatre foi tamanho que outro teatro público, chamado Curtain (Cortina), foi construído no
ano seguinte. Logo, muitos outros teatros públicos seriam construídos em Londres e mais
6
tarde outros espaços fechados3 seriam criados para uma plateia dos membros mais ricos da
sociedade. Portanto, a prática do teatro tinha agora seus espaços exclusivos dentro da cidade.
Isso levaria a transformações radicais dessa forma artística, bem como nos evidencia
importantes mudanças sociais que estavam ocorrendo na época.
Uma importante mudança que o espaço fixo de apresentação trouxe foi a inversão da
relação entre os atores e a plateia. No período medieval, as apresentações teatrais ocorriam em
conjunto com outros eventos, como a missa religiosa ou um festival cívico, ou então uma
companhia teatral tinha de viajar em busca de locais e público para apresentar-se. Com os
locais fixos para essas apresentações, isso não era mais necessário. A partir dessa época, era o
público quem tinha de ir aos teatros e escolher dentre as várias opções de peças, pagando para
ter acesso ao local de apresentação que agora pertencia às próprias companhias de teatro. Essa
inversão significou a transformação do teatro em produto, ou de acordo com Janette Dillon,
uma commodity, que seria vendida junto com as demais no mercado de Londres (DILLON,
2006b: 43-44).
A configuração interna dos teatros públicos dá ainda mais evidências da ideia de
comoditização do teatro. O design básico de tais edifícios consistia em um palco cercado pelo
público que assistia aos espetáculos de pé. Isso pode ser considerado uma continuação da
herança medieval, quando a plateia geralmente ficava ao redor de plataformas improvisadas
nas praças das cidades ou, de fato, em qualquer lugar aberto que os atores pudessem
encontrar. Ao redor dessa área onde ficava o público em pé havia uma estrutura grande onde
ficavam as galerias para sentar-se, que podia ser circular, hexagonal ou mesmo quadrada.
Estas galerias eram geralmente divididos em três níveis, cada um com um valor diferente. Os
lugares mais baratos eram, claro, os da área em que se ficava em pé, na qual se podia entrar
pagando apenas um penny. Os lugares sentados eram mais caros, e, quanto mais alto o nível,
mais caro ficava a entrada. Almofadas também podiam ser adquiridas por um valor extra.
Todo esse sistema nos mostra como o teatro era, de certa forma, organizado de forma a atrair
um grande número de pessoas por atender às suas necessidades ou às expectativas específicas
de cada classe social. Os teatros públicos recebiam os membros das classes mais ricas e mais
pobres da sociedade londrina. Podemos notar aqui que havia a clara preocupação de lucrar
3 Os teatros públicos eram fisicamente abertas e, portanto, limitados pelo tempo e estação do ano. Alguns salões
abandonados eram convertidos em teatros fechados para atender exclusivamente aos membros ricos da
sociedade. Outra vantagem destes era que não dependiam do tempo instável de Londres.
7
com a apresentação, diferentemente do teatro anterior a essa época, que servia ao propósito de
outros, como auxiliar no ensino da doutrina bíblica ou como agente de propaganda do poderio
da nobreza. Tal lucro foi tornado possível depois da criação desses espaços fixos de
apresentação e da profissionalização da prática teatral no fim do século XVI. Um exemplo
disso é William Shakespeare, que foi capaz de comprar uma propriedade em sua cidade natal,
Stratford-upon-Avon, e um brasão para seu pai, elevando assim seu status ao de gentleman.
A criação de tais espaços fixos para apresentações teve mais repercussões na prática
teatral da época. Por exemplo, o espaço permanente garantiu uma renda fixa às companhias
de Londres que, por sua vez, poderiam contratar mais atores e empregar elementos cênicos
mais elaborados (GURR, 1994: 67). Mas para o propósito deste artigo, vamos nos ater ao
tema do espaço. Tendo discutido as mudanças relacionadas à construção de um local
específico para os propósitos do teatro, observemos agora onde esses locais foram construídos
em Londres e a razão que motivou tal localização.
Por causa de uma grande resistência por parte das autoridades de Londres, as
apresentações teatrais só podiam ocorrer nas chamadas liberties (áreas livres). Essas eram
parte da área urbana de Londres, mas não eram consideradas parte da Cidade, e, portanto, não
estavam sob o controle direto das autoridades de Londres. As liberties eram áreas fora dos
antigos muros medievais de Londres. Elas começaram a desenvolver-se depois que as terras
da Igreja ao redor da cidade foram confiscadas por Henrique VIII durante a Reforma e
vendidas aos membros da nobreza e da burguesia. Tais áreas não haviam sido integradas ao
que se conhecia então como sendo Londres. Estavam, portanto, sob o controle dos senhores
feudais locais, e não sob as autoridades de Londres. Como seu próprio nome sugere, havia
maior liberdade dentro dessas chamadas liberties, e era lá que todas as práticas ou pessoas
indesejáveis do ponto de vista das autoridades da Cidade encontravam morada. Isso incluía, é
claro, o teatro. Todos os novos teatros públicos foram construídos dentro das liberties, porque
a Cidade de Londres não os permitiria dentro de seus muros. É de importância histórica
perceber, assim, que o teatro era uma prática indesejada para alguns, e só poderia encontrar
seu lugar junto com as tavernas, os bordéis e todas as diferentes formas de jogatina.
Era fonte constante de frustração para a Cidade o fato de não poder controlar o
crescente movimento do teatro profissional. Apesar das muitas petições dirigidas diretamente
à Rainha Elizabeth I, as companhias de teatro eram protegidas por seus patronos e permitidas
a continuar apresentando-se apesar dos melhores esforços por parte do Prefeito de Londres e
8
outros líderes puritanos. Mas o que exatamente no teatro, enfim, causava tanta oposição por
parte das autoridades de Londres? Há muitas respostas para essa pergunta. Pesquisando
documentos da época, percebemos que muitos tomaram uma posição crítica em relação ao
teatro, considerando-o a raiz de todos os diversos problemas que então afligiam à cidade de
Londres.
As fontes mais úteis da época sobre esse assunto são as teses antiteatrais escritos ao
longo desse período. Eram textos curtos que traziam uma ampla gama de argumentos contra
as companhias profissionais de teatro, mas a maioria das críticas eram relacionadas à questões
morais. Stephen Gosson foi um dos mais ferrenhos opositores ao teatro, e baseou-se no ponto
de vista religioso para escrever seus textos. Um de seus argumentos principais afirmava que o
teatro era o instrumento do Diabo:
O diabo [...] sentindo um golpe tão forte no seu peito, por causa da mudança de
religião [Reforma protestante – Anglicanismo] e da ascensão da sua Majestade
[Elizabeth I], tem jogado de forma maliciosamente divertida desde então. Ele nos
trata bem agora [...] Primeiro, ele mandou vários livros devassos italianos que,
sendo traduzidos para o inglês, têm envenenado nossos hábitos antigos com
prazeres estrangeiros. Eles têm endurecido tanto os corações dos leitores que
escritores mais sérios são atropelados [...] Portanto, o diabo, não contente com o
número que ele tem corrompido com a leitura de obscenidades italianas, tendo em
vista que nem todos conseguem ler, ele nos apresenta comédias também obscenas
que trazem consigo um rabo monstruoso que é capaz de varrer cidades inteiras
para seu colo (GOSSON, 2004: 90).4
Outros autores viam o teatro como uma prática que espalhava padrões de comportamento
indesejáveis, como desviar os trabalhadores de "ocupações profissionais úteis" para o mundo
das artes, que era, em sua visão, um fardo para os demais "trabalhadores honestos" da
Inglaterra:
4 “The devil [...] feeling such a terrible push, given to his breast by the change of religion, and by the happy entrance
of her Majesty to the crown, hath played wily beguily ever since. He deals with us favorably now […] First he
sent over many wanton Italian books which, being translated into English, have poisoned the old manners of our
country with foreign delights. They have so hardened the readers’ hearts that severer writers are trod under foot
[…] Therefore the devil, not contented with the number he hath corrupted with reading Italian bawdry, because
all cannot read, presenteth us comedies cut by the same pattern, which drag such monstrous tail after them as is
able to sweep whole cities into his lap.” (tradução nossa). A mudança de religião se refere à Reforma religiosa
que deu origem à Igreja Anglicana; a ascensão de “sua Majestade” se refere à ascensão de Elizabeth I.
9
Quando elas [peças] são usadas [...] para manter um grande número de indivíduos
ociosos, fazendo nada a não ser atuando e vagabundeando, conseguindo seu
sustento pelo suor da testa de outros homens, assim como zangões devorando o mel
doce das pobres abelhas trabalhadoras, então elas não são exercícios de forma
alguma permissíveis (STUBBES, 2004: 117).5
Outra objeção era em relação ao comportamento promíscuo que acontecia dentro e ao redor
dos teatros públicos:
Nos teatros de Londres é uma moda dos jovens irem primeiro ao pátio e olhar todas
as galerias; então, assim como corvos quando veem um cadáver putrefato, para lá
voam e se pressionam o quão perto que consigam ao lado da mais bela [...] eles
brincam com suas roupas para passar o tempo, eles conversam em todas as
oportunidades, e as levam para casa mesmo não se conhecendo bem, ou vão para
as tavernas quando as peças terminam (GOSSON, 2004: 109).6
Apesar da grande variedade de reclamações, possivelmente todos os críticos era
unânimes em uma preocupação específica. Jean Howard argumenta que o teatro era o símbolo
de todas as mudanças sociais que estavam desafiando a ideologia dominante da época. O que
agravava a situação era ainda o fato de que essa forma artística popular estava localizada
numa área que não podia ser controlada, onde se era livre para “incorporar e negociar com
uma variedade de interesses ideológicos rivais, ao invés de ser prisioneiro de apenas um”
(HOWARD, 1994: 12).7 O teatro era visto como um perigo real. As peças não apenas tinham
o poder de formar opiniões por meio de suas poderosas encenações vivas, mas também era
possível observar os novos padrões de comportamento que surgiam dentro e ao redor dos
5 “When they [plays] are used [...] to maintain a great sort of idle persons, doing nothing but playing and
loitering, having their livings of the sweat of other men’s brows, much like unto drones devouring the sweet
honey of the poor laboring bees, then are they exercises at no hand sufferable”. (tradução nossa). 6 “In the playhouses at London, it is the fashion of youths to go first into the yard and to carry their eye through
every gallery; then, like unto ravens where they spy the carrion, thither they fly, and press as near to the
fairest as they can […] they dally with their garments to pass the time, they minister talk upon all occasions,
and either bring them home to their houses on small acquaintance, or slip into taverns when the plays are
done.” (tradução nossa). 7 “[…] (the stage was able to) embody and negotiate among a variety of competing ideological interests, rather
than being the captive of only one”. (tradução nossa).
10
novos teatros públicos. Tudo isso acontecia logo ali fora dos muros da cidade, e não havia
nada que as autoridades conservadoras pudessem fazer.
Portanto, a partir da observação do espaço do teatro e sua localização na cidade somos
capazes de refletir a respeito de vários elementos históricos. Primeiro, através da criação dos
espaços fixos para a performance teatral, pudemos observar a transformação da prática teatral
em um produto ou commodity. À essa mudança seguiu-se a profissionalização dessa forma
artística e sua transformação em um próspero negócio. Isso indica claramente as primeiras
raízes do capitalismo na sociedade inglesa, embora, é claro, ainda houvesse um longo
caminho a ser percorrido antes de que esse de fato tomasse forma. Ademais, a configuração
dos teatros públicos e das áreas nas quais foram construídos sugere-nos uma cidade num
estado de transformação, entre o período Medieval e a era Moderna. Os novos edifícios do
teatro, ainda que lembrassem as configurações das performances medievais, como um palco
cercado de um espaço aberto para um público que assistia de pé, também apresentavam novos
elementos, como as galerias de assentos divididos em categorias que não se baseavam em
uma hierarquia social, mas em quanto as pessoas podiam pagar. Estavam localizados em uma
cidade organizada à maneira medieval e, providencialmente, foi precisamente por isso que
encontraram seu lugar nas chamadas liberties dessa cidade. Ainda que fossem parte de
Londres, estas áreas estavam sob a jurisdição dos proprietários de terra locais e, por isso, o
teatro profissional pôde desenvolver-se sem muita interferência de seus oponentes da Cidade.
Essa configuração peculiar urbana é um exemplo concreto do que Lewis Mumford comentou
sobre o processo histórico envolvido na evolução das cidades:
Culturas humanas não morrem num determinado momento, como organismos
biológicos. Embora elas muitas vezes pareçam formar um todo unificado, suas
partes podem ter tidos uma existência independente antes de entrarem no todo, e da
mesma forma podem ainda ser capazes de continuar existindo depois que o todo, no
qual uma vez floresceram, pare de funcionar. [...] Esta mistura do velho e do novo é
visível por toda a Europa. Uma boa parte da nova construção no século XVII,
praticamente toda a construção “renascentista” do século anterior, ocorreu em
cima de planos de rua medievais, dentro de muros de cidades essencialmente
medievais, realizado por ofícios e guildas ainda organizados em linhas medievais.
Entre o século XV e XVIII, um novo complexo de traços culturais se formou na
Europa. A forma e os conteúdos da vida urbana ambos foram, em consequência,
alterados radicalmente. [...] Até o século XVII todas estas mudanças eram confusas
11
e tentativas, restritas a uma minoria, efetivas apenas em algumas áreas
(MUMFORD, 1989: 344-345).8
Por último, o grande número de ataques à prática teatral nos revela que esta era mais
do que apenas um reflexo da transformação social, mas também um agente modificador da
mesma. Por exemplo, o teatro era um exemplo de mobilidade social, pois pessoas comuns
podiam ganhar muito dinheiro por meio de sua carreira profissional no teatro e pertencer a
classes sociais mais altas. Era um lugar onde críticas políticas podiam ser feitas de forma
visualmente poderosa e vistas tanto por ricos como por pobres. Era também o lugar onde
novos padrões de comportamento podiam desenvolver-se. Tudo isso fora do alcance das
autoridades de Londres e protegido pelos patronos que apoiavam essa forma artística. O teatro
era muito popular na era Elisabetana, atraindo a enormes plateias para as liberties, onde todas
aquelas práticas indesejadas e pecaminosas aconteciam. Dado que apenas o teatro era atacado
como a raiz de todos os "pecados" que contaminavam a sociedade daquela época, podemos
concluir que estava, de fato, causando impacto naquela sociedade.
O valor da abordagem ilustrada nesse artigo é que essa provê um panorama
contextual completo para a análise histórica de diferentes obras ou tradições teatrais. Através
da análise de apenas uma elemento, o espaço, já fomos capazes de realizar várias descobertas
sobre a sociedade Elisabetana dos fins do século XVI e ainda há outros aspectos da
performance teatral que poderiam ter sido analisados.
Essa análise nos ajuda não apenas a entender o contexto das apresentações teatrais,
mas também a interpretar mais eficazmente os textos teatrais. A análise contextual nos leva a
um melhor entendimento das condições físicas da performance. Isso por sua vez nos permite
uma leitura do texto teatral mais precisa com um maior entendimento das intenções originais
por trás de certas cenas e até de como essas foram recebidas pelo público por causa de suas
8 “Human cultures do not die at a given moment, like biological organisms. Though they often seem to form a
unified whole, their parts may have had an independent existence before they entered the whole, and by the
same token may still be capable of continuing existence after the whole in which they once flourished no
longer functions […] This mingling of the old and the new is visible everywhere in Europe. A good part of
the new building, even in the seventeenth century, practically all of the ‘renascence’ building before this
century, took place on medieval street plans, within the walls of essentially medieval cities, erected by crafts
and guilds still organized on medieval lines […] Between the fifteenth and eighteenth century, a new
complex of cultural traits took shape in Europe. Both the form and the contents of urban life were, in
consequence, radically altered. […] Until the seventeenth century all these changes were confused and
tentative, restricted to a minority, effective only in patches.” (tradução nossa).
12
expectativas específicas. Por exemplo, uma leitura de "Noite de Reis" (Twelfth Night) de
Shakespeare, que tem como figura central uma garota que se disfarça de homem ao tentar
conquistar o amor de um Duque (que pertence a uma classe social acima da sua), é muito
mais impactante ao sabermos que ela foi apresentada em uma sociedade na qual alguns
membros pensavam assim:
A lei de Deus proíbe, de forma direta, homens a vestir roupas de mulheres. As
roupas estabelecem signos distintos entre cada sexo; usar as roupas que são do outro
sexo é falsificar, fabricar, e adulterar, o contrário das regras expressas da palavra de
Deus [...] devem ser perdoados aqueles que usam tanto a roupa quanto o modo de
caminhar, os gestos, a voz, e as paixões de uma mulher? (GOSSON, 2004: 102).9
Ainda que o tema do uso de roupas do sexo oposto possa ser apenas um artifício para o
enredo da trama, mesmo assim é uma declaração poderosa por ter sido apresentada ao vivo no
palco, diante de um grade público que incluía os membros mais pobres e mais ricos da
sociedade, em uma área de Londres na qual as pessoas tinham maior liberdade para
comportarem-se de maneira transgressora, fora do alcance das autoridades, que estavam cada
vez mais alarmadas pelas mudanças sociais que desafiavam suas posições de dominância.
Tudo isso não seria evidente se apenas tivéssemos lido o texto teatral isolado como uma fonte
histórica. Mas, com uma análise da performance, podemos dar vida ao texto e a tudo o que o
rodeava, especialmente para um jovem estudante.
Teatro como fonte histórica na educação
Tendo visto o exemplo acima da análise do teatro como um processo social, podemos
agora considerar como este seria usado em sala de aula. Tal uso não apenas pode dar vida ao
contexto de determinada peça teatral, mas também pode ensinar o conteúdo programático de
História de forma engajante e desenvolver as habilidades analíticas dos alunos. A estrutura
desta aula deve fazer um paralelo entre os estágios do processo investigativo do historiador;
9 “The law of God very straightly forbids men to put on women’s garments. Garments are set down for signs
distinctive between sex and sex; to take unto us those garments that are manifest signs of another sex is to
falsify, forge, and adulterate, contrary to the express rule of the word of God […] shall they be excused that
put on, not the apparel only, but the gait, the gestures, the voice, and the passions of a woman?” (tradução
nossa).
13
mas deve obviamente prover o suporte necessário para que o aluno possa acessar o conteúdo e
ao mesmo tempo desenvolver seu próprio raciocínio. Talvez não seja possível programar
sempre uma aula desta maneira ao longo de um curso de História, mas inserir ocasionalmente
uma atividade como esta pode trazer grandes benefícios ao processo de aprendizagem. Vamos
agora examinar um modelo de aula que adapta a discussão que apresentamos acima para o
contexto de sala de aula do ensino do Fundamental II.
Nesta atividade, o objetivo de aprendizagem deve ser o de identificar e explicar as
mudanças históricas entre o período Medieval e o início da era Moderna. O resultado
esperado é que os alunos sejam capazes de compreender que o processo histórico é complexo,
e que as mudanças entre um contexto e outro não são claramente divididas. Ou seja, a aula é
estruturada a partir do conceito de ruptura e permanência. Outro resultado esperado é que os
alunos desenvolvam suas habilidades de análise, que serão usadas ao longo desse processo de
aprendizagem.
Pressupõe-se que, como conhecimento anterior, os alunos tenham sido expostos aos
aspectos-chave do período Medieval, e que assim já compreendam a estrutura da sociedade
feudal. A essa exposição pode seguir-se uma aula sobre as mudanças introduzidas pela
Renascença, mas também é possível, e talvez até mais eficaz, que isso ainda não tenha sido
feito antes dessa aula. Pode ser muito marcante permitir que os alunos tenham a oportunidade
de fazer suas próprias descobertas genuínas, dando-lhes um senso real de que
verdadeiramente investigaram os tópicos dados pelo professor como autênticos historiadores,
o que lhes daria uma experiência mais concreta de aprendizado.
É efetivo estabelecer logo de início que os alunos desempenharão o papel de
historiadores durante essa investigação. Essa forma simples de encenação pode gerar uma
atmosfera positiva, pois os alunos são designados como os especialistas que farão as
descobertas, dando-lhe um senso de importância e colocando-lhes como responsáveis por seu
aprendizado. Depois dessa introdução, a classe deve conhecer o foco da investigação, que é
examinar as mudanças que estavam ocorrendo durante o fim do século XVI na Londres da era
Elisabetana por meio de uma análise das mudanças na prática teatral da época.
Uma vez que o cenário da aula foi estabelecido, o primeiro passo é formular uma
hipótese, como em qualquer processo histórico de pesquisa. Isso pode ser feito por
simplesmente pedir que os alunos leiam o trecho de Lewis Mumford (citado acima) sobre a
evolução das cidades ao longo do tempo. Os alunos devem ler o texto e discuti-lo em grupos,
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para relatar ao professor quais são as partes mais importantes, em sua opinião, dessa citação.
Depois de uma breve discussão com a classe, o professor deve então direcionar os alunos ao
ponto central de Mumford: que o processo de rupturas e permanências na História não é
claramente dividido; que diferentes aspectos das sociedades humanas mudam e desenvolvem-
se em ritmos diferentes.
O próximo passo seria então passar à investigação propriamente dita e à coleta de
evidências. Para tanto, o professor pode utilizar materiais já prontos, disponíveis em páginas
da Internet ou em livros didáticos, ou tomar tempo para preparar de antemão dois textos
curtos sobre o teatro Medieval e o Elisabetano. Pessoalmente prefiro fazer isso, pois permite
controlar melhor a informação a qual os alunos serão expostos, o que faz a aula ficar mais
focada e eficiente. Enquanto leem esses textos, os alunos devem também completar uma
tabela contendo questões centrais cujas respostas estão nos textos. Essas questões também
devem ter sido previamente preparadas pelo professor e são semelhantes ao que foi discutido
acima. Por exemplo, elas podem indagar sobre onde ocorriam essas apresentações teatrais,
por que ocorriam, quando ocorriam, e assim por diante. Para desafiar alunos com mais
facilidade de aprendizado, pode-se pedir que eles mesmo formulem as perguntas a serem
respondidas, com a orientação do professor.
Depois de os alunos terem lido os textos e respondido ao exercício de verificação
factual, eles deverão então categorizar essa informação. Pode-se fazer isso por se designar um
código de cores para a informação contida na tabela que eles completaram sobre o teatro
Elisabetano: uma cor que eles devem usar para marcar para os elementos de caráter medieval
e outra para os "novos" elementos. Por fazer isso, os alunos marcarão claramente a distinção
entre as rupturas e as permanências. Por exemplo, poderão observar que mesmo que os grupos
teatrais ainda precisassem da associação a um senhor feudal, essa relação havia mudado para
o status de reconhecimento legal, e não mais suporte financeiro, pois cada grupo naquela
época já podia manter-se com seu próprio dinheiro.
Assim como no processo do historiador, a tarefa final seria apresentar as conclusões
obtidas, o que pode ser feito de várias formas, em um exercício de escrita ou uma exposição
oral, dependendo do que a classe precisa. O mais importante é relacionar essas descobertas e
conclusões à hipótese inicial, mostrando as rupturas e permanências que estavam presentes
em Londres no final do século XVI. Os alunos devem ser capazes de perceber que, ainda que
as formas medievais remanescessem, a sociedade em si estava modificando-se. As antigas
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formas medievais já não possuíam os mesmos significados de antes. Como atestou Mumford,
as formas humanas não desaparecem repentinamente. Por meio dessa aula, os alunos devem
ser capazes de entender melhor como os períodos históricos não estão claramente seccionados
e como as transições entre eles são complexas. Eles também terão alguma ideia do
Renascimento, que pode então ser melhor desenvolvido na próxima sequência didática, se não
tiver sido apresentado até então.
O grande ganho dessa proposta é o fato de que o aprendizado acontece de maneira
prática, na qual o aluno está construindo seu conhecimento e desenvolvendo habilidades
importantes ao longo desse processo. Também é uma abordagem multidisciplinar, pois não
estamos lidando apenas com a disciplina de História, mas também com a Sociologia e as
Artes. Os alunos terão provavelmente a grata surpresa de ter aprendido algo em História
através do uso de outra matéria, como o teatro. Além disso, serão ajudados a ver que a
História é importante para entender o mundo à nossa volta. Muitas vezes os alunos deixam de
perceber como as matérias escolares estão relacionadas entre si e podem ser aplicadas ao
mundo em que vivemos. A proposta didática apresentada pode contribuir para uma melhor
consciência por parte dos alunos quanto à análise de cada processo social, como o teatro, por
parte do historiador e ao uso que fazemos desses processos para construir um melhor
entendimento da sociedade humana ao longo do tempo.
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