OS SENTIDOS DO CORTEJO DE CONGADO NO CONTEXTO URBANO
OLIVEIRA, ROSÂNGELA CRISTINA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Mestrado do Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável – Linha de Pesquisa: Conservação
Rua Paraíba, 697- Funcionários – Belo Horizonte – MG [email protected]
RESUMO
Este artigo apresenta uma abordagem do conjunto das representações simbólicas e estéticas e suas mediações culturais percebidas na manifestação cultural do congado na cidade de Belo Horizonte-Minas Gerais, na perspectiva da paisagem cultural. Partindo da noção de que bens materiais carregam consigo uma força simbólica e estética. Essa riqueza irá caracterizar o bem cultural como único, proporcionando, uma concepção mais rica e ampla sobre patrimônio cultural, não mais centrada no valor de determinado objeto e sim numa relação da sociedade com a sua cultura. Palavras-chave: patrimônio imateral; a festa de congado; paisagem cultural.
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INTRODUÇÃO
No final do século XX, o tema patrimonio cultural assume um papel particularmente importante
nas questôes referente à memória coletiva e as identidades nacionais e regionais. Assim,
partindo de um discurso patrimonial que se resumia aos monumentos artísticos e históricos, o
conceito de patrimônio caminhou para uma concepção mais ampla, nas quais os conjuntos
culturais pssaram a ser reconhecidos e valorizados, conforme destaca Abreu: Delineava-se a
ideia de que havia um patrimonio cultural a ser preservado e que incluía não apenas a história
da arte de cada país, mas um conjunto de realizações humanas em suas mais diversas
expressôes (ABREU, 2003, p.33).
Desse modo, a partir de uma reflexão sobre a concepção mais ampla de patrimônio cultural,
passa a se mover não mais centrada no valor de determinado objeto e sim numa relação da
sociedade com a sua cultura, a festa, como expressão de significados e espaços de vivencias
sociais, mostra-se uma área de investigação importante para a análise das formas de
apropriação da cidade e de compreensão das práticas sociais e culturais, contribuindo com a
noção de patrimônio como um bem coletivo, que contempla as diversidades culturais, onde a
noção de cultura inclui hábitos, costumes, tradiçôes, crenças; em fim, um acervo de
realizações, materais e imateriais.
Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo principal analisar as representações do
conjunto estético e simbólico presente na manifestação do Congado, na cidade de Belo
horizonte - Minas Gerais. O Congado é uma manifestação cultural que tange o patrimonio
imaterial. Devemos acentuar que os ritos e celebrações religiosas afro-brasileiras
representam meios de sobrevivencia dos vetígios da memória africana, que na análise da
paisagem simbólica, por meio da visita in locus, essas evidências são apreendidas e em muito
contribuem para a explicação da festa como significado e identidade de grupos imprimindo
uma dada paisagem cultural.
NOTAS SOBRE AMPLIAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Quando falamos em patrimônio cultural, estamos aludindo direta ou indiretamente ao
passado, no qual a exemplo do que ocorre com a tradição, é sempre construído a partir do
presente. O termo “patrimônio” – em inglês, heritage – refere-se a algo que herdamos e que,
por conseguinte, deve ser protegido.
O patrimônio cultural num mundo globalizado, no processo de mudança vertiginoso, crescem
as preocupações com o patrimônio cultural e a questão das identidades culturais locais.
Movido pelo temor da perda de referências importantes com relação ao acervo cultural do
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patrimônio materiais e imateriais, o conselho executivo da UNESCO1 tem se preocupado em
definir ação e programas de valorização através de políticas de preservação,
Em 1972, foi realizada pela UNESCO em Paris a significativa “Convenção Sobre Proteção do
Patrimônio Mundial Cultural e Natural”, que consistia em discutir e deliberar sobre a do evento
era a salvaguarda dos bens tangíveis, de modo à comtemplar uma espécie de acervo cultural
da humanidade. A UNESCO torna-se o centro mundial de referencia para o desenvolvimento
das bases técnicas e conceituais de preservação, destacando a noção de patrimônio da
humanidade, juntamente com a noção de diversidade cultural, de nodo a preservar um acervo
de bens materiais e imateriais, destacando a multiplicidade cultural de cada conjunto nacional.
Assim, percebe-se que, em1989, como resultados de estudos a fim de se propor um
instrumento internacional de proteção das “expressões populares de valor cultural”, por meio
da Conferência Geral da UNESCO aprova a “Recomendação sobre Salvaguardar da Cultura
Tradicional e Popular”, com o novo do documento a “cultura tradicional e popular forma parte
do patrimônio universal da humanidade e é um meio de aproximação entre povos e grupos
sociais existentes e de afirmação da identidade cultural”. Um novo elemento do patrimônio
cultural, desde então passou a fazer parte dos objetivos de preservação das entidades
governamentais: o bem cultural imaterial2.
Neste contexto, de estudos internacionais, surge a noção de patrimônio imaterial ou
intangível, aludindo à ideia de uma produção, não apenas material, mas também simbólica.
Assim, a UNESCO define como patrimônio imaterial as práticas as representações,
expressões, conhecimentos e técnicas, bem como utilização de instrumentos, objetos,
artefatos e lugares comuns constituem o fundamento da vida comunitária e são, portanto,
parte integrante do patrimônio cultural. Para muitos, em especial a minoria étnica, o
patrimônio imaterial é uma importante fonte de identidade que constrói sua história.
No Brasil a legitimação sobre o patrimônio cultural é da década de 1930 do século XX, quando
o país passou por um processo de integração nacional de “Brasilidade”. A ideia de que o
patrimônio não se compõe apenas de edifícios e obra de arte, mas também no produto
popular, retoma ao projeto que Mário de Andrade elaborou para o Serviço do Patrimônio
Artístico Nacional (SPHAN), em 1936. Como afirma Sant’anna (2003), Mário de Andrade foi,
na prática, um pioneiro do registro dos aspectos imateriais do patrimônio cultural, pois
documentou sistematicamente manifestações dessa natureza ao longo de sua vida, deixando
para posteridade fotografias, gravações e filmes que realizou em suas viagens ao Nordeste3. 1 Conferencia Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
2 Podendo também ser denominado como “bem imaterial”, “patrimônio imaterial” ou “bem intangível”.
3 Esse acervo encontra-se reunido em instituições, como a Discoteca Oneyda Alvarenga, em São Paulo.
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Já na década de 1970, período denominado “fase moderna” e que teve como precursor
Aloísio Magalhães – com as experiências de registros culturais, realizadas no Centro Nacional
de Referencia Cultural (tendo o CNRC e a Fundação Pró-Memória). Desse período a principal
herança foi à introdução, na Constituição Federal de um conceito mais largo de patrimônio.
No final de década de 1980 mais precisamente a promulgação da Constituição de 1988 que
tal ideia foi tratada com expressivo avanço, em seu artigo 216, é dado um grande destaque
aos bens culturais de caráter imaterial, entende como patrimônio cultural brasileiro:
Os bens de natureza material e imaterial, tomados em individualismo ou em conjunto, portadores de referencia e identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados ás manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2003, p.97)
Figura 01: Guarda de congos.
Fonte: da autora, 2014.
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Em seu artigo 215 da mesma carta magna, atribui à valorização ás “culturas populares”,
“indígenas”, “afrodescendentes” e de outros os grupos participantes do processo civilizatório
nacional, como parte do patrimônio cultural da nação.
A partir deste passo da Constituição brasileira uma intensa mobilização para a formulação de
instrumentos e meios de implementar políticas eficazes pata a área foi iniciada. O decreto nº
3. 551, de 4 de agosto de 2000, implementado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), que instituiu dois instrumentos de salvaguarda e proteção do patrimônio
imaterial: a Instituição do registro de bens Culturais de Natureza Imaterial (PNPI). O novo
registro compreende o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro como saberes, os ofícios, as
festas, os ritos, as expressões artísticas e lúdicas, que, desenvolvidas na diferentes
manifestações culturais, tornam-se referencias indenitárias na visão do próprio grupo que as
participam. Os bens culturais de natureza imaterial estariam incluídos, ou contextualizados,
nas seguintes categorias que constituem o Livro do Registro:
1) Saberes conhecimentos e modos de fazer enraizado no cotidiano das comunidades. 2) Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. 3) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho. Religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. 4) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas.
4
É interessante compreender que essa atenção para os bens de natureza imaterial é fruto de
uma conjuntura internacional, impulsionada pelo maior órgão da cultura, a UNESCO. Através
das ações políticas de preservação cultural do IPHAN, o interesse institucional em identificar e
registrar através de ferramentas específicas, as diversas formas de culturas que se integram a
identidade de cada localidade, contribuindo para a valorização do patrimônio cultural da
nação.
Festa e o patrimônio cultural
No Brasil existem inúmeras festas populares religiosas conhecidas nacionalmente. Sob as
mais diversas motivações, elas são espaços de celebrações e, ao mesmo tempo em que se
constituem lugares de memória, preservam e revitalizam o patrimônio cultural de grupos
sociais através de rituais festivos. “Festas, ritos e celebração” foram examinados os
significados da qual alimentam as narrativas. Tradição, devoção, subversão, sistema de
trocas e sociabilidade são alguns conceitos que permeiam as reflexões de alguns autores.
4 Decreto nº 3.551, 4 de Agosto de 2000, in; http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=295 Acesso em
14 de agosto de 2014
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As festas estão presentes sem dúvida em todas as culturas a manifestação de uma vida
diferente, de uma vida presenteada. Assim pessoas na celebração reanimam suas próprias
identidades. Nesse sistema valorativo, coletivamente, os aspectos abstratos e invisíveis,
como a relação com os espaços de cultura, as estruturas indenitárias, a memória – tudo isso
articulado ao imaginário social – irão fomentar a elaboração, a reprodução e expressão do
patrimônio cultural.
A festa dessa maneira revela-se desempenhando um importante papel entre o sujeito e o
meio, pois estas manifestações sempre refletem o modo como os grupos sociais, percebem e
concedem seu ambiente, valorizam mais ou menos certos lugares. Nesse sentido “a festa
torna-se também lugar da memória de construção e atualização de um passado que não
pertence apenas aos seus cidadãos, mas mostrou-se capaz de atribuir identidade a setores
ampliados da sociedade” (CAVALCANTI, 2001, p.74).
As festas são fenômenos primordiais e indissociáveis da civilização, porque nelas os homens
sempre alcançam os mais altos níveis de sociabilidade. A afirmação de Durkheim toda festa
tem características religiosas, pois aproxima as pessoas causando um estado de
efervescência pelas manifestações apresentadas pelos participantes:
Toda festa, mesmo que puramente leiga por suas origens, tem certos traços da cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os indivíduos pôr em movimento as massas e suscitar, assim, um estado de efervescência, às vezes até delírio, que não deixar ter parentesco com o estado religioso. O homem é transportado fora de si, distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias. Por isso, observam-se em ambos os casos as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, busca de estimulantes que elevem o nível vital, etc. (DURKHEIM, 2003 p. 417 – 418).
Figura 02: Guarda de Moçambique, Figura 03: Guarda de congo.
Fonte: da autora. 2014. Fonte: da autora. 2014.
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Rita Amaral, em sua tese de doutorado afirma que as festas oscilam entre dois polos: a
cerimônia e a festividade; podendo se distinguir dos ritos cotidianos por sua amplitude e do
mero divertimento pela densidade. Para ela, este caráter misto poderia ser tomado como um
primeiro termo da definição de festa:
Toda festa ultrapassa o tempo cotidiano, ainda que seja para desenrolar-se numa pura sucessão de instantes. Toda festa acontece de modo extra-cotidiano, mas precisa selecionar elementos característicos da vida cotidiana. Toda festa é ritualizada nos imperativos que permitem identificá-la, mas ultrapassa o rito primeiro de investigação nos elementos livres (AMARAL, 1998, p.38 -39).
Portanto, existem tipos de festas em que estes aspectos aparecem dissociados e até opostos.
A razão dessas dissociações, segundo Amaral, aparece relacionada ao caráter simbólico da
festa; “a função do simbólico aparece não estar então, simplesmente, em significar o objeto, o
acontecimento, mas em celebra-lo, em utilizar todos os meios de expressão para fazer
acontecer o valor que atribui a este objeto” (AMARAL, 1998, p.39).
As festas não têm sido utilizadas somente para afirmar a coesão dos habitantes nas cidades
e, portanto, das relações hegemônicas, mas também foram utilizadas para construir uma
unidade e ressignificar e identificar a identidade de grupos subalternizados historicamente, a
manifestação cultural religiosa, abre brechas para o exercício de denúncias expressando uma
resistência cultural que indica o início da construção do longo processo de afirmação
étnico-sócio-cultural desse grupo na cidade, a exemplo da população negra do período
colonial do Brasil.
Para falar de identidade, principalmente na atualidade, é falar em diversidade. De acordo com
as ideias de Hall (2003), a identidade cultural de um indivíduo é marcada pelos aspectos que
determinam seu pertencimento a determinada cultura étnica, religiosa, racial etc. Segundo o
autor, com a pós-modernidade, observa-se uma fragmentação do sujeito em diversas,
assumidas em momentos diferentes, de acordo com a noção de sujeito sociológico, temos:
[...] a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou ausência interior que é “o eu real”, mas é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que este mundo oferecem (HALL, 2003, p.11).
Esse sujeito “dividido” em várias identidades encontra no momento festivo a oportunidade de
compartilhar com sua comunidade o que tem em comum, sua unidade. Através dos ritos eles
se renovam em partes da sociedade, como seres sociais, renovando, assim, as forças do que
nos une. São compartilhados símbolos, histórias, crenças e a memória coletiva fundamentada
as representações. Percebemos tal fato claramente na história do povo negro no Brasil
quando, ainda durante a escravidão encontravam-se para relembrar e celebrar ao modo da
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terra de origem. As diferenças culturais entre os escravos eram amenizadas pela situação
comum da opressão a que eram submetidos, sendo seus encontros, com fins religiosos ou
festivos, a oportunidade para a troca de símbolos, o que resultou, com outras influências
posteriores, na tão vasta e múltipla cultura brasileira.
Também vale destacar o que Roberto Da Matta (1983) chama de ritual de inversão, quando
há quebra de papéis rotineiros. Percebemos em muitos ritos um jogo entre as identidades
cotidianas e os festivos, quando aquelas que estão numa condição de subalternos,
dominados, exercem domínio e poder simbólico sobre os demais participantes. Há até mesmo
uma valorização do sujeito por participação, principalmente quando há destaque para o
evento perante a toda a cidade, fato comum no interior do Brasil, quando grupos
marginalizados ganham mais espaços e são mais “valorizados” por serem agentes de ritos
religiosos e/ou comemorativos importantes no local.
Outro aspecto importante no que diz respeito das identidades é a relação com o espaço onde
a festa teve de origem e de onde ocorre no memento presente. “Nascer é nascer num lugar,
ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar de nascimento é constitutivo da identidade
individual [...]” (AUGÉ, 2003, p.52). Com esse pensamento, temos o lugar de nascimento e de
morada não só como pano de fundo para os acontecimentos, mas como fator influente no
processo ritual. Os aspectos sócio-geográficos podem, ao longo do tempo, alterar
características dos ritos, assim como esses também influenciamos espaços onde atuam. A
escolha do local ocupado pelos agentes de uma cerimônia festiva não se faz por acaso.
Concorrem para tal a história do lugar, os símbolos ali encontrados, as possibilidades que
oferece para deslocamento e fixação, a proximidade ou não de centros urbanos. E fixando-se
nesse espaço, a festa adquire os traços locais, e podem, então, serem observadas diversas
trocas entre a festa e a cidade.
O cortejo religioso no contexto urbano
As guardas ou ternos de Nossa Senhora do Rosário5 , ou irmandade é uma das mais
representativas expressões religiosas (ou catolicismo popular) e da cultura afro-brasileira com
forte expressão em Minas Gerais. A cada ano, pessoas das grandes cidades e do interior das
5
Festa Nossa Senhora do Rosário popularmente conhecida como congados, congadas ou reinado. A diferenciação entre as guardas é feita em algumas cidades, caracterizando o reinado como uma estrutura mais complexa que incluí a presença de das “guardas” ou “ternos” (dançantes) missa, cortejo, e Coroação de reis do Congo. Já Congado refere-se também, especificamente às guardas de Congo, que pode existir
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mesmas encontram-se para cantar e sua fé e coroar Nossa Senhora do Rosário. Cada
irmandade ou grupo a sua maneira.
Histórias compartilhadas pelos os praticantes do Congado que se organiza através de
irmandades ou grupos nesses mais de 300 anos de comemoração se recriam continuamente,
no ir e vir da memória, deixando marcas significativas em suas vidas. Muitas delas sentidas de
forma muito intensa, movidas pela dor, pelas incertezas e, sobretudo, pela esperança de
conseguir superar as agruras vivenciadas. Muitas histórias do Congado se encontram ainda
presentes na memória dos praticantes sendo o marco do recomeço, de uma trajetória de fé e
comemoração, dentre os quais muitos acontecimentos se firmaram como marca histórica
interligando o sentir sagrado ao festivo.
Entretanto, são vários sentidos assumidos pelas comemorações da Festa do Rosário em Belo
Horizonte- MG, na tentativa de perceber como eles foram recriados, principalmente por parte
de seus praticantes. São eles, que percebem a festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário
como espaço de materialização de sua fé, de sua religiosidade: como ruptura do cotidiano;
sinônimo de vida e alegria; de reencontro com sua ancestralidade e de atualização da
memória coletiva.
O Universo simbólico das celebrações religiosas e seu significado expresso nas festas dos
santos, por sua vez, revelam códigos próprios, metáforas e linguagens locais. Por meio das
performances ou alegorias, a festa dos santos apresenta uma dimensão estética, é um
sistema de trocas, momentos de devoção e sincretismo.
Sentidos do cortejo
O cortejo de congado, em Belo Horizonte, confere a Igreja Santa Efigênia e o seu entorno um
“lugar de festa”, transformando o espaço cotidiano em espaço festivo e sagrado. Espaço este
que se apresenta como palco das representações das memórias coletivas na qual uma
comunidade dividida e heterogênea se expressa de forma única, através de gestos, símbolos,
cores e sons, neutralizando seus conflitos e diferenças.
Festas para serem vividas – o cortejo, a união e expansão dos grupos. A manifestação cultural
do congado perfaz um ciclo anual de progressiva expansão do dos ternos no movimento
“bairros ao centro”, e de um auto de representação da cultura popular “autêntica” da cidade de
independentemente dos reinados. Neste texto utilizei os dois termos como sinônimos, já que são aceitos como tal, ao reportar a festa em questão.
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Belo Horizonte. O cortejo é sempre realizado no terceiro domingo do mês de novembro,
quando acontece à tradicional missa Conga, reunindo além das guardas da cidade e
arredores e de cidades vizinhas. Os dançantes ocupam os espaços das ruas centrais em
direção à celebração e a própria invenção criativa e expressiva da cidade e nos aproxima da
construção de determinadas formulações das sensibilidades urbanas transformando o que é
expresso em paisagem.
A marcha dos cortejos segue inspirados nas procissões e romarias, onde se anda pelas ruas,
se exibindo. Nesses espaços, expõem-se comemoram permitindo interações vivenciadas,
entretanto propõe um enquadramento espaço-temporal específico, capaz de promover uma
determinada sociabilidade da festa, vivida especialmente e potencializada nesse evento. O
“cortejo” cria molduras de imagens e sensibilidade da cidade. Ao lidar com o fluxo no espaço
constitui uma forma significante privilegiada de apropriação das ruas onde quem desfila quer
se conceber sendo visto e quem assiste quer olhar e se conceber sendo parte da relação.
Há aqueles que participam, há aqueles que visualmente os acompanham e participam
aqueles que os avaliam. Todos são provocados a participar da celebração. No momento do
”cortejo”, marcam-se espaços diferenciados para quem não dá escola ou marcha, ainda que
essa separação não seja estanque.
Para o Congadeiro, não resta dúvida que o cortejo é uma experiência única, afinal é o
momento esperado durante todo o ano. É o momento, como lembra Glaura Lucas, de
ritualização da memória. “O tempo em que o homem comum se transforma em participante do
Congado, subordinado às leis deste sistema social” (LUCAS, 1999, p.70).
Esse mesmo “tempo” assume durante o cortejo um lugar virtual proporcionado pela música,
que evoca e organiza memórias coletivas, e proporciona experiências intensas àqueles que
participam. Além de favorecer esta sensação de deslocamento espaço/temporal, a música
que emana dos instrumentos ajuda a comunicar como o mundo divino, preenchendo os
espaços sagrados multiplicando em todas as direções dando sentido a paisagem cultural da
cidade.
Durante esta comemoração, destacamos a presença do Congado de Belo Horizonte, que
representa a fé e a Nossa Senhora do Rosário e a devoção a outros santos, através de suas
cantorias e danças. O cenário musical é carregado de sons e imagens que constroem uma
atmosfera rica, encantadora, quase onírica para o espectador. Cantos e danças parecem
indissociáveis, o canto é elemento vinculador de textos que impulsionam os movimentos
corporais.
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A paisagem sonora do congado, assim, multiplica uma excitação específica e, ao mesmo
tempo, experiências coletivas. Partindo da dimensão afetiva marcada nas manifestações,
vamos perceber como se formaram as representações coletivas. Tentaremos perceber
algumas nuances deste quadro materializado, considerando o espetáculo que se mostram do
cortejo do congado, são carregadas de representações do que nossos olhos podem
apreender. Como lembrou Foucault (1987, p.18), o espetáculo libera o seu volume, mas não
antes de um sutil sistema de rodeios:
O espetáculo que ele observa é, portanto duas vezes invisível, pois não está representado no espaço do quadro e se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial em que o nosso olhar se subtrai a nos mesmos no momento em que olhamos. E, no entanto, como podemos nós evitarmos ver essa inviabilidade, aí nossa vista, se ela tem, no seu próprio quadro, o seu equivalente sensível, sua figura selada? (FOUCAULT 1996, p.18).
Esta forma de conhecimento, baseada na construção de uma realidade comum, definida por
Jodelet (2001) como representações sociais, apresenta sua funcionalidade enquanto sistema
de interpretações que regem nossas relações com o mundo e com os outros.
Figura 04: Bandeira de Nossa Senhora do Rosário
Fonte: da autora, 2014.
O simbólico do Congado compreende também uma gama de objetos singulares, produzidos
especialmente para o mento festivo sagrado e que foram um conjunto estético que merece um
olhar apurado. Muitos desses objetos passam despercebidos entre tantos sons e danças, mas
são fundamentais para o bom procedimento do rito. São os bastões, as coroas, as imagens de
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santos, os próprios instrumentos musicais, mastros, estandartes, bandeiras, adornos
corporais e indumentárias, São artefatos imbuídos de religiosidade.
Como todos os fenômenos religiosos da Festa do Rosário, possui dimensão estética inerente
ao ritual, através da qual são identificados os símbolos sagrados e adorados que ligam os fiéis
as suas crenças. A concretização e a materialização dos mitos ocorrem através de diversos
elementos utilizados durante a cerimônia ou mesmo fora delas e não estão isentos de valores
estéticos e artísticos. Utilizando a ideia de Mauss (1967) para compreender este processo ao
dizer que os fenômenos estéticos são inerentes à vida social e que a estética contribui de fora
significativa para a eficácia religiosa. Sendo o objeto estético algo que possa ser
comtemplado, é possível nele encontrar o valor estético bem como nas atividades aqui
referindo do jogo dança, música etc.
Entre os fenômenos estéticos e religiosos há conexão, fica evidente quando se pensa na
origem comum de arte e religião, ambas retratos da sociedade em que aparecem indissolúvel
do cotidiano nas sociedades tradicionais, a arte são é e sempre foi essencial nos processos
de simbolização adoração e confecção de materiais litúrgicos, sendo o canal de comunicação
com o divino, instrumento auxiliar para tal contato ou apenas ornamento das peças usadas na
liturgia.
Objetos rituais, danças, indumentárias, cantos e instrumentos musicais entregam esse acervo
mágico-religioso repleto de sentidos múltiplos e portadores de valores estéticos, plásticos e
artísticos.
A Festa do Rosário ao compreender como fenômeno estético é conferir-lhe o caráter de arte
reconhecendo seu valor como ação simbólica. Para decifrar seus símbolos, faz-se necessário
conhecer a estrutura social do grupo que os produzem para então chegar aos códigos de seus
fenômenos estéticos. Na concepção de Geertz “A semiótica deve ser uma ciência social”
(GEERTZ, 1994, p.144).
Assim uma infinidade de significados pode ser retirada do conjunto estético presente na festa
em questão. A arte feita pelo povo em louvor aos santos transforma-se em um belo espetáculo
pelas as ruas da cidade, palco para celebração da fé. O Catolicismo e o africanismo
encontram-se na diversidade de formas e cores expressões corporais e musicais que
conferem a identidade própria ao congado. E é nesse momento de comunicação que vemos
sua arte e sua criatividade no ato de adorar. Os festejos fazem parte da vida dos congadeiros
e, distante dela seus símbolos não podem ser lidos, Diversos elementos que constituem a
paisagem visual da festa é o resultado da construção dinâmica da cultura.
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Conclusão
O Cortejo religioso em Belo Horizonte no torno da paróquia é uma marca na paisagem urbana
e aglutinam em seu redor as práticas rituais católicas. Portanto o cortejo do Congado, com
suas características religiosas e profanas, representa o patrimônio cultural da cidade,
mostrando que o patrimônio não é usado para apenas simbolizar, representar ou comunicar,
mas também para criar sentidos e significados além de revigorar suas identidades. O cortejo
dos congadeiros é um encontro de iguais, que promove por meio de suas alegorias um
espaço para encontro de diferentes.
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