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APRESENTAÇÃO D urante o ano de 2011, o IPAC promoveu algumas “Conversas sobre Patrimônio”, no Auditório do Conselho Estadual de Cultura, visando colher elementos para ba- lizar suas ações voltadas para a preservação do patrimônio cultural na Bahia, em áreas que ampliam a atuação histórica da autarquia estadual. Cinco dessas conversas foram destacadas para iniciar esta nova série de publicações do IPAC. No mês de maio, as conversas foram voltadas para a salvaguarda do patrimônio afro-brasileiro, com destaque para os terreiros de candomblé, a partir das contribuições dos professores Fábio Velame e Márcia Sant’Anna / UFBA, com a moderação de Frede- rico Mendonça / IPAC. Junho foi dedicado à troca de ideias em torno das relações entre patrimônio e festas populares, com a participação dos professores Jânio Castro / UNEB e Paulo Miguez / UFBA e do produtor cultural e presidente da Fundação Cultural do Santo Antonio Além do Carmo, Dimitri Ganzelevitch, contando com a arquiteta Carmita Baltar / IPHAN como moderadora. Em Julho, as conversas giraram em torno do Patrimônio Material e Imaterial do Cortejo do Dois de Julho, envolvendo a Soledade e a Lapinha, locais fortemente rela- cionados com as lutas pela Independência na Bahia, contando com os professores Lula Cardoso, Mariely Santana e Ordep Serra / UFBA e a moderação da arquiteta Elisabete Gándara / IPAC. A construção de um Sistema Estadual de Patrimônio, tomando como base a expe- riência do ICMS Cultural de Minas Gerais, foi o tema abordado em setembro, com as participações de Marília Palhares / IEPHA, Milena Andreola / PERMEAR-MG, Tatiana Scalco / SEPLAN e Licia Cardoso / IPAC como moderadora. Outubro teve como tema os Circuitos Arqueológicos da Chapada Diamantina, reu- nindo os depoimentos do professor Carlos Etchevarne / UFBA, Idenor Borges/ Serra das Paridas e Ednalva Queiroz / IPAC, com a moderação de Carolina Passos / IPAC. Com esta série, objetiva-se contribuir para o conhecimento e a discussão dos diver- sos aspectos do patrimônio cultural baiano e, assim, aprimorar sua salvaguarda. Con- versas que podem ser lidas como apostilas, “nota breve que se acrescenta geralmente à margem de uma obra, para esclarecê-la ou complementá-la”, uma “coletânea de aulas ou preleções, para distribuição, em cópias, entre os alunos” (HOUAISS), aspecto reforçado pelo Dicionário AULETE: “Conjunto impresso de aulas, capítulos ou temas para uso de alunos”. GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA Jaques Wagner SECRETÁRIO DE CULTURA DA BAHIA Antônio Albino Canelas Rubim DIRETOR DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA – IPAC Frederico A. R. C. Mendonça ASSESSORIA TÉCNICA - ASTEC Margarete Abud ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO - ASCOM Geraldo Moniz DIRETORIA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL - DIPAT Elisabete Gándara COORDENAÇÃO OPERACIONAL – ASTEC Igor Alexandre Souza TRANSCRIÇÃO DE GRAVAÇÃO EM AUDIOVISUAL Urano Andrade PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO Zeo Antonelli e Beto Cerqueira (2Designers Ltda.) REVISÃO E NORMATIZAÇÃO Aparecida Nóbrega Assessoria Técnica Tel.: (71) 3117-6464 / 3117-6492 E-mail: [email protected] Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural Tel.: (71) 3117-7496 / 3117-7498 E-mail: [email protected] Coordenação de Articulação e Difusão Tel.: (71) 3117-6945 E-mail: [email protected] Ouvidoria Tel.: (71) 3117-6461 E-mail: [email protected] Assessoria de Comunicação Tel.: (71) 3117-6490 / 3117-6673 E-mail: [email protected] www.ipac.ba.gov.br Rua 28 de Setembro, nº15 CEP: 40.020-246 Centro Histórico de Salvador - BA Tel.: (71) 3117-6480

Patrimônio material e imaterial do cortejo do 2 de Julho

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Page 1: Patrimônio material e imaterial do cortejo do 2 de Julho

ApresentAção

Durante o ano de 2011, o IPAC promoveu algumas “Conversas sobre Patrimônio”,

no Auditório do Conselho Estadual de Cultura, visando colher elementos para ba-

lizar suas ações voltadas para a preservação do patrimônio cultural na Bahia, em

áreas que ampliam a atuação histórica da autarquia estadual. Cinco dessas conversas

foram destacadas para iniciar esta nova série de publicações do IPAC.

No mês de maio, as conversas foram voltadas para a salvaguarda do patrimônio

afro-brasileiro, com destaque para os terreiros de candomblé, a partir das contribuições

dos professores Fábio Velame e Márcia Sant’Anna / UFBA, com a moderação de Frede-

rico Mendonça / IPAC.

Junho foi dedicado à troca de ideias em torno das relações entre patrimônio e festas

populares, com a participação dos professores Jânio Castro / UNEB e Paulo Miguez /

UFBA e do produtor cultural e presidente da Fundação Cultural do Santo Antonio Além

do Carmo, Dimitri Ganzelevitch, contando com a arquiteta Carmita Baltar / IPHAN como

moderadora.

Em Julho, as conversas giraram em torno do Patrimônio Material e Imaterial do

Cortejo do Dois de Julho, envolvendo a Soledade e a Lapinha, locais fortemente rela-

cionados com as lutas pela Independência na Bahia, contando com os professores Lula

Cardoso, Mariely Santana e Ordep Serra / UFBA e a moderação da arquiteta Elisabete

Gándara / IPAC.

A construção de um Sistema Estadual de Patrimônio, tomando como base a expe-

riência do ICMS Cultural de Minas Gerais, foi o tema abordado em setembro, com as

participações de Marília Palhares / IEPHA, Milena Andreola / PERMEAR-MG, Tatiana

Scalco / SEPLAN e Licia Cardoso / IPAC como moderadora.

Outubro teve como tema os Circuitos Arqueológicos da Chapada Diamantina, reu-

nindo os depoimentos do professor Carlos Etchevarne / UFBA, Idenor Borges/ Serra das

Paridas e Ednalva Queiroz / IPAC, com a moderação de Carolina Passos / IPAC.

Com esta série, objetiva-se contribuir para o conhecimento e a discussão dos diver-

sos aspectos do patrimônio cultural baiano e, assim, aprimorar sua salvaguarda. Con-

versas que podem ser lidas como apostilas, “nota breve que se acrescenta geralmente

à margem de uma obra, para esclarecê-la ou complementá-la”, uma “coletânea de

aulas ou preleções, para distribuição, em cópias, entre os alunos” (HOUAISS), aspecto

reforçado pelo Dicionário AULETE: “Conjunto impresso de aulas, capítulos ou temas

para uso de alunos”.

GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA

Jaques Wagner

SECRETÁRIO DE CULTURA DA BAHIA

Antônio Albino Canelas Rubim

DIRETOR DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO

ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA – IPAC

Frederico A. R. C. Mendonça

ASSESSORIA TÉCNICA - ASTEC

Margarete Abud

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO - ASCOM

Geraldo Moniz

DIRETORIA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

CULTURAL - DIPAT

Elisabete Gándara

COORDENAÇÃO OPERACIONAL – ASTEC

Igor Alexandre Souza

TRANSCRIÇÃO DE GRAVAÇÃO EM AUDIOVISUAL

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PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO

Zeo Antonelli e Beto Cerqueira (2Designers Ltda.)

REVISÃO E NORMATIZAÇÃO

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Assessoria Técnica

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Rua 28 de Setembro, nº15

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Page 2: Patrimônio material e imaterial do cortejo do 2 de Julho

Figura do Caboclo, símbolo dos heróis que lutaram na independência da Bahia.

Page 3: Patrimônio material e imaterial do cortejo do 2 de Julho

PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL DO CORTEJO DO

2 DE JULHO

A discussão acerca das dimensões material e imaterial do Cortejo do Dois de Julho mobilizou o IPAC desde 2007, quando foi celebrado o Convênio de Cooperação

Técnica, Cientifica e Cultural junto à Faculdade de Arquitetura da UFBA para diagnosticar a situação da poligonal de tombamento estadual no trecho Soledade

– Lapinha, em Salvador. A apresentação dos resultados deste trabalho, no Auditório do Museu Eugênio Teixeira Leal, em março de 2011, inaugurou o projeto

“Conversando sobre Patrimônio”, que retoma o tema em julho do mesmo ano.

Elizabete Gándara - arquiteta, Diretora de Preservação do Patrimônio Cultural do IPAC, moderadora do encontro;Lula Cardoso - arquiteto e Professor da UFBA;Mariely Santana - arquiteta e Professora da UFBA; Ordep Serra - antropólogo e Professor da UFBA.

Page 4: Patrimônio material e imaterial do cortejo do 2 de Julho

PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIALDO CORTEJO DO DOIS DE JULHO

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Igor Souza: Boa tarde a todos. Sejam bem-vindos a mais essa etapa do “Conversando sobre Patri-mônio”. Antes de começar, eu vou passar a palavra à Presidente do Conselho Estadual de Cultura, Lia Robatto (palmas).

Lia Robatto: Boa tarde a todos. Sejam bem-vindos, mais uma vez, a essa reunião conjunta entre o Conselho Estadual de Cultura e o IPAC. Eu e o Frederico estamos aqui fazendo uma dobradinha, e nós agradecemos muito pela importância da discussão das questões desse seminário todo que está haven-do. Por ora, tem pouca gente. Mas, na última reunião, o pessoal não acabava de perguntar, de discutir e pontuar e apresentar suas ideias, o que tem sido muito interessante. E, justamente, a questão do Dois de Julho é uma questão que está em pauta na Fundação Pedro Calmon. Com vocês e conosco, sempre no Conselho, a gente vem discutindo muito, o que é importante. Do pouco que vi esse ano, achei que está esvaziando, que é preciso haver uma intervenção para um reforço dessa festa tão importante, simbolicamente, pra nós. Bom seminário para todos nós.

Igor Souza: Bem, então, pra compor a mesa, eu vou chamar Elisabete Gándara; será a nossa moderadora de hoje. Bete é arquiteta especialista em conservação e preservação de monumentos e conjuntos históricos, no CECRE – UFBA; tem MBA em Gerenciamento de Projetos e Obras de Engenharia; atualmente, é Diretora de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural do IPAC, tem experiência em projetos de arquitetura, com ênfase em restauração, atuando principalmente nos segmentos de preservação do patrimônio cultural, salvaguarda, arquitetura e gestão. Chamo para compor a mesa o Professor Lula Cardoso, da UFBA, por favor. Lula possui Doutorado em Arquite-tura e Urbanismo pela UFBA, com estágio doutoral, por dois meses, na Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente, é Professor Assistente da Universidade Federal da Bahia, foi Coordenador do Curso de Especialização do CECRE; tem experiência em Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em conservação e restauro, atuando principalmente nas áreas de história da cidade, do urbanismo, preservação do patrimônio cultural; história, teoria e projeto de arquitetura; foi coordenador do dossiê que será apresentado. Gostaria de chamar, por favor, a Professora Mariely Santana, que tem Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA; atualmente é técnica da UFBA, tem experiên-cia na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em história da arquitetura e do urbanismo, atuando, principalmente, nos seguintes temas: patrimônio cultural, história da cidade, arquitetura, religião, preservação e contemporaneidade. E, por fim, o Professor Ordep Serra, por favor, professor, com doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, Professor Doutor, Doutor em Antropologia pela USP, Professor da UFBA; principal produção em Antropologia da Religião, Antropologia das Sociedades Clássicas, Etnobotânica, Teoria Antropológica; tradutor de textos científicos. O profes-sor Ordep já foi Diretor Geral do IPAC, também. Então, passo a palavra a Elisabete Gándara, por favor, Bete. (Palmas)

Elisabete Gándara: Boa tarde a todos. É grande a satisfação de estar com vocês aqui. Nós estamos dando continuidade ao projeto “Conversando sobre Patrimônio”, do IPAC. Hoje, nós vamos conversar sobre o imaterial e o material no cortejo do Dois de Julho. Nós temos a presença de três professores, que têm uma capacidade muito grande nesse assunto, que dominam bastante esse as-sunto. E esse Conversando sobre o Dois de Julho, como a professora Lia já falou, é um assunto que hoje é importante. Nós tivemos aí o cortejo desse ano, que aconteceu agora no dia dois e, realmente, eu concordo com a senhora, achei que teve um esvaziamento, ele estava diferente. Convido, então, a professora Mariely pra iniciar; ela vai falar sobre o patrimônio imaterial, relacionado ao Cortejo do Dois de Julho.

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CONvERSANDOSObRE

PATRIMÔNIO

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Mariely Santana: Boa tarde. Primeiro eu gostaria de agradecer o convite para estar aqui conver-sando com vocês um pouco sobre estas questões. Na realidade, a proposta não é conversar sobre a relação do patrimônio imaterial no cortejo, mas quando Frederico me fez o convite para falar, foi, na realidade, para discutir um pouco a relação entre o patrimônio material e o patrimônio imaterial. Com certeza, depois, tanto o professor Ordep quanto Lula vão apresentar a discussão e o foco maior desse recorte, dessa análise do material, dessa análise do imaterial, nas festas, não só do Dois de Julho, mas em outra importante festa que acontece neste lugar, que é a Festa da Lapinha, que é a festa dos ternos dos Reis, que acontece no Largo da Lapinha, e que dá exatamente essa possibilidade de discussão sobre essa relação entre o patrimônio material e o patrimônio imaterial.

Está muito em voga a discussão do patrimônio imaterial. Nós estamos ouvindo falar muito a respei-to do patrimônio imaterial, principalmente a partir dos anos 2000, quando foi instituída, efetivamente, a legislação de proteção do patrimônio imaterial no âmbito nacional. E, logo depois, a legislação de proteção do patrimônio imaterial, no âmbito estadual. Só que quando essa legislação foi promulgada e começou a entrar em vigência, e começaram a acontecer os primeiros registros, pouco foi divulgado sobre o processo de construção desse conceito de patrimônio, sobre o conceito do patrimônio imaterial e, efetivamente, no que ele consistia. Eu me lembro, mais ou menos em 2004, quando nós tivemos o registro do ofício das baianas de acarajé, e a mídia alastrava nos jornais e na televisão que “o acarajé na Bahia foi tombado”. E eu ficava imaginando o bolinho na mão da gente apodrecendo, porque, na realidade, as pessoas não conheciam e nem sabiam efetivamente o que era este conceito e em que persistia essa relação.

Então, o que eu gostaria de conversar um pouco com vocês, aqui, é sobre a construção desse conceito e a relação intrínseca entre o construído e o simbólico, do qual é apropriado esse patrimônio cultural. Para poder começar essa conversa, havendo uma plateia tão eclética, eu acho que seria im-portante nós falarmos um pouco sobre o conceito de patrimônio. Então, o conceito de patrimônio vem muito na relação de uma herança, uma herança paterna que, apesar de ser construída em um tempo passado, nos chega através de transformações, de permanências, de modificações que vão sendo acu-muladas e apropriadas ao longo do tempo.

A legislação brasileira, até os anos 2000, na realidade, até 1988, se dirigia ao patrimônio, efetiva-mente, apenas ao patrimônio material. E, mais sério ainda, esse patrimônio imaterial tinha um recorte específico de uma produção artística ou histórica. Óbvio que toda essa leitura feita sobre patrimônio, e aqui eu não estou julgando essa relação no sentido de se é bom, se é ruim, se foi certo ou se foi errado, mas essa relação. E essa discussão sobre conceito de patrimônio imaterial, ela não dava conta da dinâmica cultural do nosso país. Ela não dava conta das transformações, das tensões que existiam nas relações culturais, nas diversas camadas e nessa pluralidade, nessa diversidade de patrimônio. Essa discussão vem crescendo ao longo do século 20; nos anos sessenta, com a Carta de Veneza, nós temos a ampliação do conceito de monumento, qunado não se entende mais o monumento como algo excepcional. Essa ampliação chega aos anos setenta. Nós temos toda a discussão trazida por Aloizio de Magalhães, do conceito de referência cultural, e chegamos a 1988, à Constituição, quando, efetiva-mente, surge a palavra patrimônio imaterial na Constituição. Então, a partir desse momento, tivemos que nos debruçar para estudar, entender e ver como atuar nessa legislação.

E aqui pra nós, eu gosto muito de falar sobre essa questão. Nós não podemos esquecer o papel da arquiteta Márcia Santana no desenvolvimento, na luta por essa preservação do patrimônio imaterial, ali nos anos noventa. Ela faz uma grande reunião em Fortaleza, conhecida como Seminário de Forta-leza do Patrimônio Imaterial, que vai dar origem, em 1996, à Carta de Fortaleza, em que se estrutura a primeira equipe que deverá estudar como fazer a legislação de proteção do patrimônio imaterial. Sabia-se muito claramente que ela não poderia estar pautada nos mesmos princípios do Decreto-Lei 25, por conta da questão das modificações, por se trabalhar com a cultura. Então, dentro dessa referên-cia, a gente precisa discutir um pouco, entender como é que esse processo vai ser construído. E dentro desse entendimento de cultura, uma das coisas mais importantes que existem é que, assim como a linguagem, a cultura é essencialmente simbólica e construída de signos. E ela precisa de um suporte onde esses signos vão ser absorvidos e vão ser entendidos.

Dentro dessa perspectiva é difícil dissociar a relação do patrimônio material da relação do patrimô-nio imaterial. Onde é que se consiste essa grande diferença? Na relação de permanência. O patrimônio imaterial, ele tem um valor imenso no processo de produção, no processo de transmissão, no processo de construção, mas, na grande maioria, ele tem um tempo em que isto acontece. E um dos exemplos

Está muito Em voga a discussão do patrimônio imatErial. nós Estamos ouvindo falar muito a rEspEito do patrimônio imatErial, principalmEntE a partir dos anos 2000, quando foi instituída, EfEtivamEntE, a lEgislação dE protEção do patrimônio imatErial, no âmbito nacional.

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PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIALDO CORTEJO DO DOIS DE JULHO

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é exatamente a festa. Nós temos um processo de produção da festa, sempre muito maior do que o processo efetivo em que ela acontece, o tempo em que ela acontece. E uma das grandes características do patrimônio imaterial é exatamente essa reprodução a cada ano. E onde se estrutura a relação do construído e do espaço da cidade?

Ora, se a gente entende que a cultura é uma forma de representação em um determinado tempo e um determinado lugar, de um determinado grupo, essa representação se estrutura através do material, através do construído, e as suas manifestações – principalmente as festas, quando acontece no espaço público, no espaço aberto, elas trazem carregadas em si, a relação individual de cada um, seja pela sua crença, quando das festas religiosas, seja pelos seus valores históricos, cívicos, quando das festas cívicas, e elas trazem também, nesse momento, o sentido de coletivo. É o momento onde todos se reúnem, em prol do entendimento ou da manutenção de festejar algo.

E o que é festejar? Festejar é comemorar, é trazer a memória periodicamente. Então, a grande importância dessas festas está calcada essencialmente, ou umas das grandes referências das festas, na possibilidade de se trazer a memória de algo que foi importante. Essa memória pode ser construída através de feitos heróicos, ela pode ser construída por um determinado grupo de pessoas, dentro desse significado ou ela pode ser trazida como um grande viés dentro da estrutura religiosa; e, muitas vezes, essas estruturas cívicas passam a assumir um valor, também, de conotação religiosa.

Quando eu entrei aqui, estava brincando com Fred e eu chorei, literalmente, no pé do caboclo. E essa expressão que nós vemos hoje de se ter adquirido essas figuras, um valor de mito, um valor simbólico, que dão para muitos uma conotação quase que religiosa, de crença efetiva. Estava no Campo Grande, no domingo, vendo uma série de pessoas indo lá, acendendo vela, colocando fita, amarrando coisas, decorando, chegando, encostando, pegando. Essa relação religiosa em cima de algo que não tem efetivamente um valor religioso construído dentro dessa cidade. E esses espa-ços da cidade, eles não são congelados, esses espaços onde as festas acontecem estão sujeitos a transformações.

Essas transformações podem acontecer de duas maneiras: transformações lentas ou transfor-mações muito rápidas, muito ferozes. Isso no processo, exatamente, que nós chamamos dos proces-sos de modernização. As transformações lentas – e aí eu tive a oportunidade de acompanhar isso amiúde, na festa do Senhor do Bonfim – elas são trazidas pelos próprios grupos, na grande maioria, aqueles que produzem a festa. E uma festa nunca é igual no outro ano porque quem participa da festa, quem organiza a festa são às vezes pessoas muito distintas. E é impressionante como essa dinâmica entre festa e lugar vai se construindo ao longo do tempo. Se uma festa se apresenta de uma forma diferenciada, o espaço responde de outra maneira. Se você interfere no espaço, a festa é outra, porque não é o mesmo espaço, o mesmo lugar que você encontrou anteriormente. Então, essa relação entre o patrimônio imaterial, que é aquele impalpável, que diz respeito às dinâmicas culturais, diz respeito a processos, torna-se vinculado às festas, está vinculado a celebrações, está vinculado a lugares de permanência, como feiras, como lugares sagrados, santuários; está ligado a expressões ou a formas de expressões. Eles todos tem um rebatimento material e a manutenção da estrutura material é que faz com que essa relação simbólica, essa estrutura do imaterial, ela também permaneça. A quebra de uma, automaticamente, compromete a continuidade de outra.

Então, qual é o grande perigo pelo qual nós passamos mais recentemente dentro das nossas cida-des? São os grandes projetos que acontecem no espaço urbano, que desarticulam as relações entre as comunidades, entre os grupos que participam, que produzem essas festas ou essas manifestações, ou ainda, um risco maior, a apropriação dessas manifestações para serem transformadas em processo de espetacularização. Este risco se torna maior quando, não apropriado ao seu lugar de produção, ao seu lugar de construção, essas festas são deslocadas para espaços de espetacularização ou apenas espaços de palco, onde passam a não ser vistos como uma referência da cultura local, da estrutura do lugar, da comunidade que a produz, como algo que é visto pelo outro e não é absorvido.

Então ela deixa de ter esse processo de continuidade, e ela rompe com uma relação de espon-taneidade, de transformação, de modificação, de adequação, que acontece entre os grupos, porque nós, enquanto seres humanos, não somos congelados. Então, nós aderimos, agregamos, retiramos, incorporamos valores a essas manifestações. Qual é o principal papel nosso, trabalhando com essas manifestações e entendendo essa dinâmica entre o material e o imaterial?

A primeira coisa que eu acho que nós teremos que ter cuidado nesta discussão é identificar quais são os elementos que são fundamentais para a permanência dessas manifestações. Depois de iden-

E é imprEssionantE como Essa dinâmica EntrE fEsta E lugar vai sE construindo ao longo do tEmpo. sE uma fEsta sE aprEsEnta dE uma forma difErEnciada, o Espaço rEspondE dE outra manEira. sE você intErfErE no Espaço, a fEsta é outra, porquE não é o mEsmo Espaço [...].

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CONvERSANDOSObRE

PATRIMÔNIO

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tificados os elementos importantes dessas manifestações, o que é importante saber é quem está vin-culado a essas relações – quem produz? Quem organiza? Quem ainda tem esse processo de geren-ciamento, de direção? E o cuidado maior é com o lugar onde essas manifestações ocorrem, porque o impedimento do lugar, ou seja, empecilhos para esse lugar ou a destruição destes lugares estão fadados à destruição da própria estrutura da manifestação cultural. Então, essa relação da produção com o lugar e quem produz, a relação se rompe, e ela deixa de ser uma relação, efetivamente, da es-trutura de conhecimento entre o patrimônio material e o patrimônio imaterial. Então, esta construção é totalmente imbricada dentro desses dois temas.

Eu acho que agora seria muito mais interessante nós conhecermos um pouco essa dinâmica, e nas discussões, então, voltarmos um pouco a aprofundar essas questões a partir dessa leitura. Eu não quero entrar exatamente nem na festa da Lapinha, nem na do Dois de Julho, porque foi feito todo um processo, todo um projeto. Daí, eu sei de todo o conhecimento que o Professor Ordep também tem dentro dessa área e depois, então, que a gente pudesse fazer um diálogo entre essas três leituras, de um diagnóstico que foi feito recentemente entre essa perspectiva da relação simbólica, da relação que é importante no conceito de cultura imbricado dentro desse espaço construído.

Gostaria apenas de salientar que o caminho do Dois de Julho, que vai ser acrescido só no final do século 19, para o Campo Grande, efetivamente, marca e se torna um espaço sagrado e simbólico, a partir do momento da passagem do cortejo. Uma coisa importante para se lembrar é que esses espaços assumem dois tempos e duas temporalidades: a do cotidiano, que é a da cidade, e a da festa. E no momento da festa, esses espaços, que são do cotidiano, que são do dia a dia, que são espaços do transeunte, que é o espaço da rotina da cidade, esses espaços sacralizados tomam uma dimensão diferente na cidade. Mas eles adquirem uma importância tão grande que esse único dia em que ele é sacralizado justifica a sua manutenção durante os outros 364 dias, porque a ruptura dele faz com que se rompa essa relação do espaço com a festa. Obrigada. (Palmas)

Elisabete Gándara: Obrigada, Mariely. Agora eu vou pedir ao professor Lula, que fale sobre esse diagnóstico que a Mariely acabou de colocar.

Lula Cardoso: Boa tarde a todos. Eu também gostaria de agradecer o convite feito pela direção do IPAC, para estar aqui hoje e para poder passar um pouco do trabalho resultante da pesquisa que a gente coordenou e que envolvia um universo bem maior do que, na verdade, este universo que a gente está trabalhando aqui hoje. O trabalho, coordenado por mim, tinha inicialmente como objeto específico a área da Soledade, buscando avaliar e diagnosticar questões relacionadas com a preservação dessa região e, eventualmente, incorporar dentro das políticas de preservação outros bens, outras manifes-tações culturais, quer fossem materiais ou imateriais, que tivessem relação com essa zona específica e que não teriam sido contempladas com o tombamento da Soledade, efetivado no início dos anos oitenta, mais especificamente 1981.

A partir do desenvolvimento da pesquisa, do mergulhar, do buscar entender esse universo, logo de cara nos pareceu estranho o conjunto da Lapinha (nem a Igreja, nem o Largo da Lapinha e nem o próprio corredor) não estar inserido dentro das poligonais delimitadas para a preservação, através do ato político que foi o tombamento da Soledade. Já que dentro do imaginário da cidade, mesmo que contemporaneamente com menor intensidade, essa área também faz parte das referências culturais soteropolitanas de um modo bastante expressivo. Não se pode esquecer que duas manifestações culturais bastante fortes em Salvador têm como espaço de reificação a Lapinha. O próprio Cortejo do Dois de Julho, que hoje aqui é o objeto maior de discussão, se inicia na Lapinha e, diante do Pavilhão ao Dois de Julho, aí localizado, tem um dos seus pontos rituais mais importantes, abrindo o desfile. Aí também ocorre a própria Festa da Lapinha que, na realidade, congrega basicamente as celebrações da folia de Reis ou Reisado, que acontecem no período imediatamente posterior ao Natal, tendo seu ápice no dia 6 de janeiro, no largo em frente da igreja.

Outras observações, outras justificativas, também, nos levavam a buscar outro olhar sobre a La-pinha, não só sob essa perspectiva do significado simbólico que essa área teria, em função dessas

não sE podE EsquEcEr quE duas manifEstaçõEs culturais bastantE fortEs Em salvador têm como Espaço dE rEificação a lapinha. o próprio cortEjo do dois dE julho sE inicia na lapinha E, diantE do pavilhão ao dois dE julho, aí localizado, tEm um dos sEus pontos rituais mais importantEs, abrindo o dEsfilE.

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PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIALDO CORTEJO DO DOIS DE JULHO

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manifestações de caráter imaterial, que lá têm o seu lugar de reificação. E entre elas estava a própria necessidade de preservar a ambiência do lugar, marcada pela presença de um conjunto edificado com características típicas da urbanização das primeiras décadas do século passado.

Uma constatação que fizemos era a de que, apesar de todo um processo de degradação, ou melhor, de descaracterização da área, este processo era muito mais em decorrência de tentativas de “melhoria do seu conjunto edificado” do que, efetivamente, do seu abandono. Estas “melhorias” (muitas reali-zadas pelo próprio poder público), na verdade, implicaram em perdas significativas dessa paisagem urbana, dessa ambiência construída.

Contudo, esse princípio de vislumbrar a questão da preservação da área ainda em cima de uma perspectiva de preservar materialmente aquilo que constrói uma imagem significativa de um tempo específico, como uma característica específica, não nos pareceu o mais indicado. A Lapinha, não neces-sariamente tinha ou resguardava, até então, valores característicos que induziam à adoção de medidas que, em princípio, poderiam “congelar” o seu processo de desenvolvimento. Isto nos fez refletir e con-cluir por um encaminhamento da questão a partir de outros pressupostos. Para a gente entender isso, eu acho importante falar um pouquinho da história do lugar e de como esse lugar se vincula a essas manifestações culturais (Dois de Julho e Reisado) e, ao mesmo tempo, como essas manifestações, de certa maneira, vão contribuir para definição da própria configuração física do lugar.

A urbanização dessa área data do segundo quartel do século XVIII, quando começa a ocupação efetiva da zona da Soledade. A ocupação dessa zona decorre, provavelmente, da expansão do vetor Norte da cidade, por conta da própria geografia e da lógica de ocupação do território pela expansão urbana de Salvador, que vai se definir a partir do seu centro original, tomando como referência a Praça Municipal, em um sentido linear, na direção Norte-Sul. Em direção ao Sul, o vetor determinado pela es-trada que ligava a cidade à Vila Velha do Pereira, a primeira povoação, onde existia a sede da Capitania da Bahia de Todos os Santos. E o vetor de expansão em direção ao Norte, determinado por conta da acessibilidade que, a partir dele, se tinha ao sertão e ao Recôncavo, por terra, através da Estrada das Boiadas, que, posteriormente, vai receber o nome de Estrada da Liberdade.

A ocupação da Soledade, então, vai se dar como parte desse processo de expansão, como um pro-longamento da ocupação da zona de Santo Antônio Além do Carmo, mais especificamente, tendo no século XVIII, como um dos principais catalisadores, a criação de um Recolhimento, que daria origem ao Convento da Soledade. Historicamente, a construção de estabelecimentos religiosos em áreas periféri-cas ou ermas, sempre se configurou em elementos catalisadores do processo de ocupação e expansão urbanas. Desde o período medieval que a proximidade de um convento ou de outro estabelecimento religioso, construía, tanto do ponto de vista imaginário quanto prático, uma situação de segurança que propiciava e favorecia a ocupação dos territórios imediatamente vizinhos, especialmente por segmen-tos de despossuídos. A sensação de segurança era garantida tanto pela força da fé quanto, efetiva-mente, por conta da constituição de pequenos exércitos, de grupos armados, que buscavam assegurar essa proteção na prática.

Aqui em Salvador, observa-se a mesma situação, como se fosse uma persistência de uma tradi-ção que se repete ao longo do século XVII, ou seja, os estabelecimentos religiosos também vão ser pontos de atração na cidade, incentivando a população a se fixar na sua vizinhança imediata. E isso vai acontecer na Soledade, mas só que com uma característica bastante interessante, é o que tudo leva a crer: desde o seu primeiro momento, vai ser uma área de ocupação de segmentos de elite e, não necessariamente, fica claro o porquê disso. O padrão construtivo que vai ser aí registrado, que vai ser observado nas construções presentes na vizinhança imediata da Soledade – tanto pela questão

A ocupação da área da Soledade se deu a partir de meados do século XVIII, e foi diretamente vinculada ao processo de expansão urbana de Salvador, em seu vetor Norte, tendo em vista o eventual esgotamento de terrenos urbanizáveis nas áreas mais centrais e a consolidação da antiga Estrada das Boiadas como o principal acesso terrestre à cidade, via que foi posteriormente chamada de Estrada da Liberdade, por conta da sua vinculação geográfica com diversos acontecimento relacionados ao processo de conquista da independência da Bahia.Contudo, também não se pode deixar de reconhecer como elementos catalisadores desse processo de expansão urbana, a criação, ainda em 1738-1739, do recolhimento de Nossa Senhora da Soledade, construído ao lado de uma primitiva ermida dedicada à mesma invocação, assim como a existência, em suas proximidades, de um dos mais importantes mananciais de água potável de Salvador: a Fonte do Queimado. Sem dúvida, a construção deste recolhimento inicialmente voltado para o abrigo de mulheres arrependidas do meretrício, atendendo ao ideal defendido pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida, desde a sua chegada a Salvador, em 1736, constituiu-se em um evento de grande relevância histórica, desdobrando-se numa autorização régia para sua transformação em casa de professas, datada de 1751, o que foi efetivado cerca de um ano depois.

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A origem da ocupação urbana da Lapinha, possivelmente, decorre da fundação da igreja do mesmo nome, em 1771, e à expansão da zona da Soledade em direção ao Norte, efetivada a partir do final do século XVIII. Ao contrário desta última – onde desde meados do século XVIII registros apontam para a presença de edificações de porte mais grandioso, ocupadas por representantes de segmentos de renda elevada –, na zona da Lapinha, o conjunto edificado apresenta-se mais modesto e a malha viária dá origem a ruas estreitas e irregulares e ao largo onde foi construída a igreja que lhe dá nome. A zona da Lapinha e seus arredores, ao que tudo indica, foram desde sempre ocupados por segmentos menos abastados.Embora no conjunto edificado possam ser identificadas construções com algum mérito arquitetônico, nenhum destes exemplares se destaca pelo seu porte ou pela presença daqueles elementos arquitetônicos ou artísticos que foram, de certo modo, comuns na arquitetura civil das camadas mais abonadas, ao longo dos séculos XVIII e XIX.

da dimensão e da monumentalidade observada em grande parte do conjunto edificado, quanto pela presença de elementos artísticos e de materiais de valor – induzem a uma leitura de que a população que vai se fixar na Soledade, desde os seus primeiros momentos, será uma população relacionada aos segmentos de elite da sociedade baiana.

A ocupação da Lapinha vai se dar cerca de meio século depois, trinta, quarenta, cinquenta anos depois, e vai ser também demarcada pela construção de uma edificação religiosa, que vai ser a Igreja da Lapinha.

Nas imagens da página anterior, a gente pode ver, à direita, uma gravura do final do século XIX que mostra os fundos de edifícios existentes na Soledade, mais especificamente, os fundos do Solar Bandeira, que é um dos edifícios tombados estadualmente, hoje, e que atestam a monumentalidade e a opulência, digamos assim, que caracterizaria esse conjunto ou parte desse conjunto que consolidou a ocupação ur-bana dessa região. Ao centro, a gente vê a Igreja e o Convento da Soledade, onde se destaca um mirante bastante peculiar e um dos mais belos da cidade. E a imagem à esquerda é um cartão postal, possivelmente do final do século XIX e que mostra o Largo da Soledade, ainda sem nenhuma ocupação, sem urbanização, no sentido de paisagismo ou ajardinamento, mas que já mostra o contexto bastante ocupado e por edifica-ções de grandes dimensões, sobrados, prioritariamente, de dois e até três ou mais pavimentos.

A Lapinha vai ter a sua ocupação determinada, também, a partir da criação de um templo reli-gioso (Igreja da Lapinha), em 1781, contudo com a fixação de uma população de menores posses. Esta igreja, fundada por um grupo de devotos e um padre, tinha como referência a adoração à Natividade, o nascimento de Jesus, o culto ao Jesus Menino, que anteriormente acontecia numa capela vinculada à Igreja do Convento do Carmo. A partir da segunda metade do século XVIII, o crescimento desta devoção ganhou uma dimensão que justifica a construção de um templo, especi-ficamente voltado para isto.

Lapa ou lapinha, originalmente, significa uma pequena gruta. Dentro da própria história da religião cristã, se vincula o nascimento de Cristo a uma lapa: o nascimento em uma pequena gruta. Essa de-voção está, então, diretamente vinculada justamente à celebração, ao culto do nascimento de Cristo. E este, desde há muito tempo, vai determinar, vai incentivar a realização de festejos relacionados com a data. Entretanto estas comemorações não necessariamente se realizariam através das festas de Reis, a visita dos três reis magos, que levam incenso, mirra e ouro ao menino Jesus, constituindo-se em uma ritualização que se transforma em festa. Contudo, no mundo português e no Brasil, em especial, o Reisado será uma das celebrações que adquire maior popularidade dentro do culto cristão, sendo especialmente assimilada entre as camadas mais populares da população – perdoem a redundância. Existem informações de que, pouco tempo depois de construída a Igreja da Lapinha, já se registrava a celebração de festividades relacionadas ao Reisado, em suas imediações. Esta tradição vai crescendo de modo que, no final do século XIX, ao fomentar a realização dessa festa, a própria paróquia conse-guiu recursos para obras de ampliação do templo, fazendo com que essa área se consolidasse como o espaço primordial de celebração dessa festividade, em Salvador.

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A Professora Hildegardes Vianna, de uma maneira muito poética, faz uma analogia direta entre a noite de Reis e a Lapinha. Ela destaca que, para o povo, Lapinha e Reisado são quase sinônimos, e observa que é no Largo da Lapinha, na noite de 5 para 6 de janeiro, que se encontram todos, senão a maior parte dos ternos de Reis da cidade, e aí fazem a grande celebração dessa festa. De certa manei-ra, a gente vai observar que essa tradição, esse uso, muito provavelmente contribuiu na conformação físico-espacial desse espaço.

Mais claramente, a gente vê isso numa das primeiras obras de urbanização do largo, que está ali representada na imagem inferior, à esquerda, junto à foto acima. Nela observa-se a urbanização do largo sob a forma de um amplo espaço aberto frente à igreja, onde se destaca uma plataforma que, possivelmente, era apropriada como um palco, justamente para a realização, para a apresentação dos ternos de Reis. É bom a gente lembrar que a tradição da festa de Reis não era específica da Lapinha; os ternos de Reis existiram em diversos pontos da cidade, em diversos bairros, desde bairros da Ci-dade Baixa, da Península de Itapagipe, até o Rio Vermelho. Mas o grande local de concentração e de celebração da festa, fazendo com que, inclusive, muitos desses ternos se deslocassem até este ponto específico, era o largo e a igreja da Lapinha. Por conta de ser ela dedicada a essa devoção específica, que estava voltada diretamente para a celebração, para a festa, a comemoração desse fato fundamen-tal para o cristianismo, que é o nascimento de Cristo.

A Lapinha também vai ser um lugar de apropriação de uma outra festa da maior importância para a gente, que é o Cortejo do Dois de Julho. O início da realização do cortejo se dá de uma maneira espontânea. Registros dizem que a celebração do Dois de Julho acontece já um ano depois de decla-rada a Independência da Bahia, ou seja, em dois de julho de 1824, e transcorre em função da própria iniciativa popular. Surge quase como uma coisa não planejada, não necessariamente organizada por nenhuma instituição e muito menos pelo poder público, pelas representações do Estado. E a celebração se inicia na Lapinha porque, nesse momento, era aí o local em que se demarcava o final da área urba-na, do que era área citadina de Salvador. Aí, de certa maneira, ficava o principal ponto de entrada de quem vinha por terra para a cidade, e onde tinha início aquele acesso fundamental para o Recôncavo, e daí para o Sertão, a até então chamada Estrada das Boiadas, que, justamente, a partir da Indepen-dência da Bahia, vai receber o nome de Estrada da Liberdade, por ser justamente o caminho utilizado pelas tropas vencedoras para entrar na zona urbana, e então celebrar e reafirmar a Independência da Bahia dentro da Cidade de Salvador.

Essa celebração, que se inicia espontaneamente em 1824, logo ganha força entre a população, passando a ter respaldo popular cada vez mais intenso, o bastante para fomentar o surgimento de uma agremiação voltada especificamente para relembrar o fato e, de certa maneira, para organizar as comemorações de modo compatível com a magnitude do que seria o marco da Independência da Bahia: a chamada Sociedade Dois de Julho. Paulatinamente, a ritualização do cortejo vai incorporando outros elementos simbólicos como, por exemplo, a escultura do próprio caboclo, que, posteriormente, viria a ser acompanhada pela da cabocla, ambas simbolizando, caracterizando, a presença firme e

Noite de Reis e Lapinha são quase sinônimos para o povo. É ali que os ternos e ranchos se apresentam na noite de 5 para 6 de janeiro, desde quando não se sabe ao certo. Os ternos e ranchos simulam uma marcha de pastores para o Oriente em busca do lugar onde nasceu o Messias. Tem por finalidade a Adoração. Embora pareçam simples, exigem uma organização mais ou menos complexa. Entre os elementos já consagrados pela tradição, encontramos, além dos magos e pastoras, anjos, samaritanas, ciganas, saloias, porta-cajados e um mundo de personagens nem sempre facilmente identificáveis. A porta-estandarte tem a responsabilidade de fazer a adoração perante o presépio, com o pavilhão abaixado em sinal de humildade.

VIANA, Hildegardes. Noite de Reis na Bahia. Revista da Bahia, n. 38, Salvador, mai 2004. Fundação Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB, 2006.

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forte do povo brasileiro e o próprio sentido de brasilidade no percurso, buscando relembrar a grande participação popular nessas lutas fundamentais para se chegar à Independência. A Sociedade Dois de Julho, visando melhor organizar a ritualização da festa, inclusive com a incorporação desses novos elementos simbólicos, vai propugnar a adoção de medidas que chegam a demandar a existência de um espaço físico, onde esses elementos poderiam vir a ser guardados, armazenados e cuidados, de modo a serem reincorporados à realização da festa a cada ano, reapropriados pela população em um processo contínuo de consolidação e de demarcação do próprio rito celebrativo.

Inicialmente o espaço destinado a esse fim vai ser uma casa alugada na Rua Maciel de Baixo, no Pelourinho. O carro, o caboclo, a cabocla, durante um bom tempo serão então armazenados lá, até que a persistência da tradição da festa em manter o seu ponto de partida sempre no Largo da Lapinha mobiliza a Sociedade Dois de Julho para arrecadação de recursos destinados à compra de um imóvel, de um abrigo definitivo, no mesmo Largo. Isto vai acontecer por volta de 1859, 1860, quando se compra esse imóvel no Largo da Lapinha, sendo que as obras para sua construção-adequação, visando o armazenamento do carro do caboclo e da cabocla, se prolongam por cerca de onze, doze anos, ou seja, até 1871.

Não é preciso dizer que as comemorações ao Dois de Julho se iniciam com um grande cortejo, que, partindo da Lapinha, vai percorrer uma grande parte do centro da cidade. Inicialmente o cortejo findava na Praça Municipal e, posteriormente, com a inauguração da Praça Dois de Julho, em 1895, foi esten-dido até aí, ou seja, até o Campo Grande. Todo esse cortejo, em todo o percurso, era demarcado pela ornamentação de diversas edificações, sendo um costume resultante da livre iniciativa dos moradores que, sem contar com qualquer fomento de nenhuma instituição especifica, ornamentavam o trajeto do desfile. Livremente, as pessoas, os moradores do percurso por onde passava o cortejo ornamentavam as fachadas, ornamentavam suas casas, usando toalhas bordadas ou rendadas, fitas, guirlandas de flores e folhas, constituindo uma tradição que ainda persiste hoje, embora de maneira mais frágil, bem mais incipiente.

No próximo diapositivo, a gente vê três imagens: na primeira, à esquerda, o que seria o primeiro projeto da edificação do Pavilhão do Dois de Julho, que não chega a ser construído com todo esse requinte estilístico, explicitado inclusive pela presença da estátua do caboclo ao alto, coroando a com-posição. Ao centro, a gente vê o que teria sido o antigo pavilhão, possivelmente inaugurado por volta da década de 1870; à direita, a gente vê o mesmo pavilhão em uma imagem atual, depois de obras de reforma que implicaram na incorporação de linhas mais ecléticas e mais elaboradas, já no início do século XX, potencializadas pela adoção desse cromatismo intenso com o verde e o amarelo, bastante forte, que dão esse sentido de força, colocando-o em destaque no conjunto da praça de uma maneira bem pitoresca.

Uma coisa que deve voltar a ser destacada é a forte articulação formal do espaço do largo com as manifestações, tanto com os festejos de Reis, quanto com o Cortejo do Dois de Julho. Além do espaço público, edifícios aí existentes também estarão vinculados às dinâmicas de efetivação do ritual festivo. No caso do Dois de Julho, a gente vê o pavilhão existente no Largo da Lapinha, ou seja, ele também se incorpora à festa como elemento físico material; e com os festejos de Reis, a igreja da Lapinha, onde, anualmente, se faz o presépio. Grande presépio que, de certa maneira, faz com que convirjam para a Lapinha os ternos de Reis de diversas partes da cidade. Não se pode deixar de observar que o Largo da Lapinha constitui-se em um espaço que é apropriado, porque permite o desenrolar de toda a dinâmica que caracteriza as festas: a aglomeração, a chegada das pessoas e a concentração do cortejo. A festa do Dois de Julho se inicia na Lapinha depois de um momento de concentração, de chegada das autoridades, de hasteamento das bandeiras e de homenagem ao General Labatut, um dos heróis da Independência que tem aí uma estátua. O cortejo vai percorrer o corredor da Lapinha, em toda sua inteireza, e então

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atinge o Largo da Soledade, onde para e celebra – antigamente de modo muito mais intenso – a presença de outros ícones do processo da Independência, simbolizados na estátua de Maria Quitéria e na Igreja da Soledade. O Convento da Soledade, durante muito tempo, também participava ativamente da realização da festa do Dois de Julho, a partir do incentivo, da organização e expedição de elementos decorativos, além da incorporação ao cortejo de grande parte da comunidade que aí vivia ou estudava.

Entretanto, apesar da nítida vinculação desses espaços públicos com manifestações culturais tão importantes, observa-se que grande parte deles não se encontra protegida por nenhum instrumento legal de preservação. Na imagem acima, essa linha do mapa que está demarcada em marrom ou vinho, a depender de onde vocês estejam, demarca a área que está protegida pelo tombamento de 1981, não ne-cessariamente como área de proteção rigorosa, mas como área de proteção ambiental. Isto faz com que, de uma maneira ou de outra, já exista, do ponto de vista da presença de instrumentos legais, algo que permite a manutenção de um controle específico sobre este trecho, dando suporte legal às instituições de preservação, mais especificamente ao IPAC, para que possa intervir, buscando assegurar a manutenção dessa ambiência, desse cenário e da sua importância enquanto paisagem física ou mesmo simbólica.

Entretanto, a área que está delimitada pela linha azul – incluindo o largo e grande parte do corredor da Lapinha – não está protegida por nenhum instrumento legal. É justamente esse trecho que a gente propõe que venha a ser protegido, não pelo tombamento, mas que venha a ser registrado como um lugar vinculado à realização de manifestações culturais de grande importância para o patrimônio imaterial da Bahia. Essa opção se deu justamente porque a materialidade deste conjunto urbano está prejudicada por conta dos processos de transformação a que esteve submetido nos últimos trinta anos; inclusive por conta de intervenções públicas aí realizadas, como a última reforma do próprio largo, que compromete a realização das festas, devido à quantidade de elementos aí colocados (vide imagem a seguir).

O corredor da Lapinha, nos anos 70, foi objeto de uma obra de alargamento que destruiu prati-camente todo o conjunto de fachadas, no lado direito de quem vai do Largo da Lapinha em direção à

A área do mapa demarcada pela linha azul assinala a área de proteção ambiental, tombada em 1981. A linha vermelha delimita a área não protegida, objeto de proposta de registro como lugar vinculado à realização de manifestações culturais de grande importância para o patrimônio imaterial da Bahia.

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Soledade. Então, praticamente, todo esse trecho foi seccionado, mutilado, o que obviamente não justi-ficaria a sua preservação rígida, sob a perspectiva de um tombamento. Em resposta a essa situação, a gente propõe a adoção do instituto de registro do lugar, e propõe o inventário de uma série de edifícios que ainda testemunham a ambiência que a Lapinha teve, até a realização dessa obra, efetuada nos anos 70, a partir da inventariação daqueles edifícios que a gente acha que são mais expressivos; isso totaliza mais ou menos dezoito imóveis que seriam inventariados. O inventário de imóveis, assim como o registro de lugar, hoje, também é um instrumento legal, previsto na legislação de patrimônio estadu-al, que não necessariamente tem a mesma rigidez, a mesma dureza do tombamento, mas que permite inclusive ao próprio Estado, ao próprio órgão de preservação, se posicionar a propósito da preservação definitiva do bem inventariado ou registrado, ou então da sua liberação para alteração frente a outras dinâmicas, a outros usos, a outras justificativas.

Como a gente pode ver nessas próximas imagens, existem ainda, do final do século XIX e início do século XX, edifícios que testemunham a ambiência característica do lugar. Quer dizer, estes seriam,

Estas imagens mostram que existem ainda, do final do século XIX e início do século XX, edifícios que testemunham a ambiência característica do lugar. Estes seriam, segundo a nossa proposta, bens a serem inventariados, como medida complementar à adoção do instituto do registro de lugar para a Lapinha e o seu corredor.

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segundo a nossa proposta, bens a serem inventariados, como uma medida complementar à adoção do instituto do registro de lugar para a Lapinha e o seu corredor.

Bom, eu paro por aqui, e depois a gente pode voltar a conversar sobre algumas dessas colocações, caso seja de interesse para o debate. Obrigado. (Palmas)

Elisabete Gándara: Bom, eu agradeço a Lula pela explanação. Ele colocou neste final alguns pon-tos bastante importantes sobre a questão da salvaguarda do espaço físico. E, agora, eu queria passar a palavra para o professor Ordep, que vai falar sobre a dimensão cultural e fazer esta ligação entre a celebração e o espaço.

Ordep Serra: Boa tarde, amigos. Eu queria primeiro agradecer também o convite que me foi feito. Uma honra, uma alegria. Estou revendo muita gente aqui que há tempo não via, e isto é sempre muito bom. Eu vou colocar o meu foco principal numa questão bastante aguda que é um esvaziamento, um enfraquecimento das festas populares da Bahia e, em particular a do Dois de Julho. Pra isso eu também tenho que considerar a própria estrutura da Festa do Dois de Julho. E vou logo dizer a vocês que tudo isto está relacionado com a péssima estrutura que vive a Cidade de Salvador, hoje em dia; uma cidade brutalizada, violentada, que está sendo desurbanizada da maneira mais cruel. Eu quero falar, em pri-

Estas imagens mostram que existem ainda, do final do século XIX e início do século XX, edifícios que testemunham a ambiência característica do lugar. Estes seriam, segundo a nossa proposta, bens a serem inventariados, como medida complementar à adoção do instituto do registro de lugar para a Lapinha e o seu corredor.

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meiro lugar, lembrar a vocês os índices alarmantes de concentração de renda, de segregação urbana, de miséria; que a Bahia tem ainda o maior número de miseráveis. Os números absolutos de Salvador fazem dela a campeã de déficit de qualidade de vida, e a segregação acontece em todos os níveis, só naqueles nichos; empurrar as populações pra nichos, para guetos, onde a vida é absolutamente insu-portável, mas em segregação também com a própria vida cultural; uma população que é cerceada nos seus direitos, que se torna subcidadã e que é mutilada, inclusive na sua cultura. Essa é uma das razões desse empobrecimento que nós vivemos hoje.

Salvador é uma metrópole que não é tratada como uma metrópole. Fizemos um PDDU que não leva em conta a região metropolitana, não há planejamento metropolitano nessa desgraça de cidade. Por isso, no ano passado, estive com o Senhor Governador à frente do Movimento Voz de Salvador, de que eu participo, coordeno. E participo também do Fórum A Cidade também é Nossa. E fomos, a sociedade civil organizada, conversar com ele sobre essa tragédia que nós estamos vivendo. E falamos de frente: precisamos de planejamento! O colapso. O planejamento urbano entrou em colapso aqui, não é verdade? Não faz mais, não faz mais. E ele concordou, não temos planejamento há muito tempo. Agora, imaginem o que é uma cidade desse tamanho, com os problemas que ela tem! É por isso que eu digo que existe um processo de desurbanização que agrava a miséria do cidadão. Estamos à frente, aliás, à frente é a forma errada de se dizer, estamos de costas, de costas para o mar. Não nos damos conta de que temos a Bahia de Todos os Santos e o que se pensa para Salvador, hoje, não leva em conta a cidadania.

Quem é que faz o planejamento de Salvador, hoje? São grandes empreiteiras. Aparecem projetos como esses megaprojetos de nomes ridículos “Salvador, capital do mundial”, que ninguém é ouvido, o cidadão não é ouvido. São apenas os empreiteiros que vão lucrar com esses projetos, que os elaboram e os empurram goela abaixo dos governantes? Quando a gente chega a esta situação há um perigo pra tudo. Perigo pra qualidade de vida, perigo para a cultura, para a produção cultural, para a consciência cultural. Não é possível comparar consciência cultural com consciência política. Então, nós temos esse déficit, temos uma depauperação da nossa cidade! Não sei se vocês estão de acordo, mas quem não estiver de acordo, por favor, conteste com argumentos, me dando números, porque os que eu tenho, fornecidos pelo CREA, pelo Centro de Recursos Humanos, pelo IAB, os dados que temos são alarman-tes, mostram essa desurbanização, essa depauperação.

Eu não sou tradicionalista nem saudosista, no sentido velho do termo. E de muita coisa a gente não pode ter saudade. Quando falo das festas populares, não estou falando do ponto de vista saudo-sista: “preservar, porque na minha juventude elas eram belas” etc.; “que eu tenho saudade da minha infância, da minha juventude, portanto, quero voltar praquele tempo”. Nada disso! Há muita coisa que eu não gostaria que voltasse. Mas há alguma coisa que eu gostaria que permanecesse, porque, dentro do seu bojo, havia real inspiração, real produtividade cultural, beleza, força. Havia a antecipação de um possível futuro. O Dois de Julho, a Festa do Dois de Julho traz tudo isso.

Então, quem se preocupa agora com a preservação cultural, preservação do patrimônio construído ou do que se chama, com muita infelicidade, de patrimônio imaterial? Só pra imitar uma bobagem francesa, nós embarcamos nessa qualificação espantosamente inadequada. Eu participei dessa reu-nião em Fortaleza e lá estava presente, também, meu irmão, que é antropólogo. E ele protestando contra esse nome, disse: “Olha, eu vou dar aqui a definição. Eu perguntei, não sabia a quem perguntar, como é que pode haver patrimônio imaterial. Perguntei pra minha sobrinha – que era minha filha, que nesse tempo era pré-adolescente – o que é patrimônio imaterial? Ela disse: pensamento de fantasma”. É a definição perfeita. O único tipo de patrimônio imaterial que existe é esse: pensamento de fantasma. Mas enfim, é um nome. Eu critico o rótulo, não critico a ideia, a coisa, a instituição.

Agora, eu tenho que lembrar, eu fui amigo de Antonio Magalhães, discuti esse assunto com ele, aqui no IPAC. Na minha breve passagem pelo IPAC, a gente criou um projeto chamado Projeto Legis-lação, o coordenador era o Carlos Amorim. Hoje, ele é Superintendente da 7ª CRF. Estava lá Márcia Santana, que, também, foi Diretora do IPAC e trabalhou justamente nessa área de patrimônio imaterial, lá em Brasília, no IPHAN. E a gente já estava preocupado: como fazer, como proteger essas práxis tra-dicionais. Outros tipos de investimentos simbólicos não resultam necessariamente numa construção, numa edificação. Estávamos debatendo ainda, não tínhamos nome, mas depois os franceses arranja-ram esse, nós imitamos. Nós tendemos a imitar tudo de errado, tudo que fazem de errado, os ameri-canos e os franceses, não sei por quê. O que eles fazem de certo, que é muita coisa, não imitamos ou imitamos mal.

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Mas, enfim, eu quero tomar esse ponto de partida. Vamos abrir os olhos! A cidade está sendo brutalmente desurbanizada. A sua miséria cresce, a violência se torna exponencial. Nessas condições de vida, nos atam, nos tolhem e nos limitam, porque elas vêm associadas com o empobrecimento da consciência política, o empobrecimento da consciência cultural.

O Dois de Julho é uma festa singular. Vamos para o Dois de Julho. É uma festa singular. Onde é que está a singularidade dela? Em primeiro lugar, ela é multidimensional. Meu amigo Roberto da Mata escreveu um livro em que ele tentava falar dos ritos públicos do Brasil, usando três grandes categorias. Ele dizia: “bom, dos ritos públicos, a gente tem procissão, a gente tem parada e a gente tem carnaval, três grandes modelos de ritos públicos”. Eu escrevi uma resenha sobre esse livro e o Roberto passou dez anos sem falar comigo. Mas um argumento que eu desenvolvi, depois de um outro livro, eu pegava o Dois de Julho como exemplo. Há um elemento processional, os caboclos, no Dois de Julho... Há festas nos grandes terreiros de Salvador para os caboclos – eles são divinos, inclusive, aqueles dois. O caboclo e a cabocla são considerados, por muita gente do nosso povo negro, seres divinos.

Por isso se reza eles, por isso se chora aos pés dos caboclos, por isso se pede a eles alguma vitória da seleção brasileira, uma namorada nova, qualquer coisa, mas fazem-se esses pedidos. Se a gente observar, como etenógrafo, eu mostrei isso. Então, são seres divinos, o Te Deum é chamado pelo povão de Missa do Caboclo. Nesses dias, se fazem festas religiosas para os caboclos. Muita gente vai vestida de caboclo naqueles afoxés, ou crianças. Vocês já devem ter visto, trajam-se como índios etc. Estão reverenciando seres divinos, que são os caboclos dos nossos terreiros. Então, tem o elemento processional, vocês concordam? Sim, tem o elemento de parada, alguma coisa de parada tem, e tem de carnaval. As três coisas estão misturadas. Há muita fantasia, há muita folia, muita alegria, muita exuberância. É exuberante, é espontânea, o popular se manifesta ali. É esta fantasia que está sendo tolhida.

E tem mais outro elemento que eu acrescentaria: sempre foi uma festa de debate e de contesta-ção. No começo, havia aqueles que eram resistentes, queriam por limites à Independência do Brasil que, às vezes, era o próprio governador. Tivemos um governador português que colaborou com a festa sem querer. Ele quis substituir o caboclo por uma cabocla. Ele estava muito irritado com aquela coisa. Português é representado por um dragão. O índio, a lança... Aí, então, vamos trocar, botar uma cabocla, coisa mais suave. Muitos portugueses aqui se casaram com caboclas etc. O povo não acei-tou. Pegou o carro da cabocla e associou também ao do caboclo. Resultado: casaram-se, na visão do povo, como um casal sagrado, um casal divino, símbolos da nossa liberdade. Muito bonito. Eu confesso que rezo pros dois logo, para não ter problema, rezo pro marido e pra mulher, pro caboclo pra cabocla. Enfim, são símbolos.

Reparem agora. Num primeiro momento já tem essa tensão; segundo momento, vocês devem saber pela crônica que não usa; o Movimento Abolicionista usou o Dois de Julho. E havia confusão, por-que os abolicionistas reclamavam o fim da escravatura e os escravistas desciam o pau. Havia tensão, conflito. E sempre houve. Foi um espaço, sempre, de contestação! E um movimento contra a Ditadura! Quantas vezes foi gente da oposição, foi gente de movimentos sociais para o Dois de Julho, protestar. Eu me lembro de episódios, talvez alguns aqui tenham na memória, de, por exemplo, Luis Inácio Lula da Silva, cercado num canto pela Polícia Militar, até que passasse o cortejo com os governantes à frente. Todo grande, todo governante da Bahia vai para o Dois de Julho com medo. Isto é uma coisa linda! Porque sabe que vai haver protesto, sabe que vai haver vaia, sabe que às vezes as claques, a claque do prefeito, a claque do governador, podem entrar na porrada, podem se chocar; o povo pode vaiar os dois, e assim por diante. Este é um elemento belíssimo, tinha que ser conservado. Mas incomoda e se faz de tudo para se esvaziar. Nós estamos vendo hoje, é um esforço deliberado para esvaziar a festa do Dois de Julho, da parte de gente que não suporta crítica, não suporta contestação.

A exemplo do nosso ilustre prefeito, que é o principal responsável pela ruína de Salvador. Não só pela ruína financeira, mas pela ruína geral dessa cidade (palmas). Então, ele deu um golpe no Dois de Julho; nesse último Dois de Julho ele deu um golpe. Ele foi pra lá constrangido; ele sabia que ia ser vaiado, passou rápido e celeremente e procurou esvaziar a segunda metade da festa – inventou uma Marcha para Jesus, na Barra. Ora, um prefeito que faz isso não tem o menor respeito pelas tradições da cidade! Ele merecia a condenação de todos aqueles que se preocupam com a preservação do pa-trimônio simbólico de Salvador, porque isto é uma falta de vergonha, uma traição, uma safadeza! Em primeiro lugar, uma agressão para a Bahia, assim, com toda razão, uma agressão para o Brasil, porque, ao contrário do que disse meu colega Albergaria, estou convencido, a Independência do Brasil foi aqui!

o dois dE julho é uma fEsta singular. Ela é multidimEnsional. mEu amigo robErto da mata EscrEvEu um livro Em quE ElE tEntava falar dos ritos públicos do brasil, usando três grandEs catEgorias: “a gEntE tEm procissão, a gEntE tEm parada E a gEntE tEm carnaval”. no dois dE julho há um ElEmEnto procEssional, os caboclos do dois dE julho – ElEs são considErados, por muita gEntE do nosso povo nEgro, sErEs divinos [...]...

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Se nós perdêssemos essa luta do Dois de Julho, o Brasil não seria independente, não se enganem. Leiam bem a documentação da época, vão ver isso. Então, este esvaziamento é perigosíssimo! Perigoso para o nosso sentimento de liberdade, perigoso para a nossa cidadania.

Depois, reparem bem, a beleza, até estética, do Dois de Julho. É realmente impactante, extra-ordinária! Eu me casei com uma paulista, filha de italianos; ela não conhecia a Bahia. Quando chegou aqui viu o Dois de Julho pela primeira vez (foi comigo, inclusive, para uma festa de cabo-clo, em um terreiro, Terreiro de Mãe Hilda, a finada mãe Hilda, mãe do Vovô do Ilê Ayê), ela ficou fascinada. Agora eu entendo os filmes, o colorido dos filmes de Glauber. Foi de onde ele tirou aquele tom forte, terrivelmente forte que ele usa, por exemplo, naquele filme do Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade; é de uma beleza estética, essa fantasia exuberante, esse colorido vivíssimo, essa maneira espontânea como o povo decora suas casas. O Dimitri tem estimulado muito isso; pela permanência, por tentar proteger a permanência dessa tradição, o Dois de Julho, faço uma homenagem ao Dimitri.

Isso é de uma beleza fantástica e merece ser protegida. Agora, como é que nós vamos poder conservar isso? Nas condições de desurbanização de Salvador, de humilhação da cidade, de humi-lhação da cidadania? É o grande problema. E não basta fazer o registro, é preciso lutar para abrir possibilidades para que estas coisas aconteçam. Este povo está sob ameaça. O esforço de segrega-ção e de exclusão continua e atinge essa população de maneira brutal. Salvador está perdendo suas festas populares, não é verdade? Está perdendo porque elas são hostilizadas, são maltratadas por uma burrice administrativa. Inclusive, não é só a má fé, é a burrice administrativa. Vejamos o que aconteceu com as festas de largo, com a retirada dos “arraiás” de barracas. Um arbítrio estúpido, por pura incapacidade de compreender essa estética de que falei. Porque esses administradores têm como padrão estético o Mc Donald, não vão além disso, não sabem compreender a beleza dessa arte popular. Hoje, quem quiser ver o que eu vi na minha juventude – não sou saudosista, mas disso eu tenho saudade, a beleza do arraial de barracas – tem de recorrer aos livros de fotografias feitos pelo Mario Cravo Neto e assim por diante, pelo Orlando Ribeiro, por essa gente. É um sentimento de arrogância, de incompreensão, de soberba e indiferença para com uma estética popular extre-mamente rica. E isso traz consigo, também, um sentimento. Isso deriva, aliás, de um sentimento, de uma espécie de elitismo bárbaro, como é que eu posso dizer uma coisa dessas, de um preconceito classista, um preconceito racista, que é extremamente difundido aqui na Bahia, e que está arrasando as nossas tradições.

Eu fui convidado esse ano pela Mairie, pela Prefeitura da Cidade de Lyon, para estar lá nos ”Dialo-gues de l’Humanité”, mas tenho contato aqui com meus colegas da Universidade de Lyon, e um deles me contava do esforço da Prefeitura de Lyon para recuperar grandes festas populares que já se per-deram, porque eles sentem a chaga dessa mutilação, da perda de grandes festas populares que havia em grandes cidades francesas, como em Lyon. Mas nós corremos esse risco. Nós estamos perdendo o carnaval, não é? O Carnaval da Bahia está cada vez mais feio, estúpido, grotesco, racista, segregador, violento e imbecil. A imbecilidade carnavalesca é qualquer coisa, na Bahia; cada vez cresce mais, mas mais vazio fica. Não sei se vocês têm essa mesma opinião.

Então, corremos o risco de perder o Dois de Julho, por pura desconsideração de quem deveria zelar por ele, pelas tradições baianas e pela coisa da Bahia. Eu não engulo essa história de passar de Aeroporto Dois de Julho para Aeroporto defuntinho do papai; isso não tem desculpa, é sinal de cinismo e de desrespeito pra com a Bahia; quem mantém isso tem uma responsabilidade muita séria nessa depauperação cultural que eu estou lamentando aqui e explica também porque coisas como o Dois de Julho estão hoje tão desfiguradas a ponto de nos entristecer; não é Fred? A ponto de nos entristecer. Enfim, é isso. A gente tem que lutar por cidadania, aqui na Bahia. Até pra recuperar o Dois de Julho. Uma cidade desfigurada, desurbanizada, humilhada, pisada, brutalizada, tratada da pior maneira possível; uma cidade sem planejamento, sem gestão, arruinada, em que o prefeito impõe sua preferência religiosa à custa do Dois de Julho; isso é o que a gente não pode aceitar. Se a gente continuar aceitando o que acontece com Salvador a gente vai perder muito na área cultural, inclusive vamos nos condenar a uma miséria cultural arrasadora, aplastadora. É o que eu tinha a dizer, por enquanto (palmas).

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Elisabete Gándara: Eu agradeço ao professor Ordep. Ele colocou fortes pontos para nossa reflexão, como cidadãos de Salvador e da Bahia. Agora nós vamos ter um intervalo, e no retorno teremos, realmente, o “Conversando”, que é vocês colocarem suas posições e os questionamen-tos pra mesa.

Cláudia: Boa tarde a todos. Meu nome é Cláudia Patrícia Diniz Correia. Eu sou Coordenadora da Ouvidoria da Câmara Municipal de Salvador e queria parabenizar, primeiro, esse evento, que é uma discussão que interessa não só a técnicos, mas à população em geral e a todos os cidadãos que têm amor a essa cidade tão degradada, como já foi colocado aqui. Bom, minha questão para a mesa é com relação à política municipal. Foi traçado aqui esse cenário tão preocupante com relação à cidade e aí eu queria aproveitar para colher um pouco, já que eu estou na Ouvidoria, ouvir sugestões com relação à legislação, com relação à política de preservação dos sítios históricos de Salvador; minha questão é essa, e aproveitar, e convidar a todos para a Audiência Pública sobre a revisão da Lei Orgânica do Município, exatamente no capítulo da Cultura. Era isso.

Elisabete Gándara: Teríamos mais alguma? Então, eu vou passar para a mesa fazer as colocações.

Lula Cardoso: Bem, Cláudia, eu achei ótima sua proposta, para que a gente fale sobre isso. Por-que uma das coisas que eu venho colocando, em alguns fóruns de que tenho tido a possibilidade de participar, é a necessidade de, efetivamente, a Prefeitura Municipal entrar nessa briga, nessa labuta, pela preservação da cultura da cidade. E me parece que existe – por conta do próprio processo histórico de como as políticas de preservação cultural foram implementadas aqui na Bahia – uma estratégia do Município de não entrar nessa briga, de modo que, quando acionado, possa transferir a responsabilidade para outras instâncias, no caso o Estado e a União. Eu tomo como exemplo uma entrevista feita com o Secretário de Desenvolvimento Urbano, se não me engano, Antonio Abreu, um ex-secretário dessa atual gestão, que entrevistado pelo Terra Magazine, à época de um projeto de desapropriação de grande parte da península itapagipana, ao ser questionado, e colocada a questão da eventual destruição de uma série de testemunhos de preservação da cultura da cidade, ele disse que a Prefeitura não tinha um instrumento legal para preservação disso; a Prefeitura não tem um instrumento de tombamento. Alegando que não precisava, porque tinha o Estado e a União para fazer isso, como se não fosse também responsabilidade da esfera municipal entrar em campo e batalhar pela implementação de políticas de preservação da cultura local. Ele, inclusive, usava argumentos que explicitavam seu total desconhecimento acerca dessa responsabilidade e, ao ser questionado sobre a eventual destruição de remanescentes da Vila e da Fábrica de Luis Tarquínio, falava que, para ele, era mais importante preservar um campinho de futebol.

Pode-se preservar também o campinho de futebol, desde que isso tenha valor coletivo, digamos assim, e a construção desses valores, a hierarquização dessas ações, seria extremamente bem vinda. Se a gente for ver, por exemplo, na Cidade de São Paulo, a atuação do município, observa-se que é fundamental na preservação dos valores que, efetivamente, dão à Cidade de São Paulo uma identi-dade cultural. Ou seja, a ação municipal na Cidade de São Paulo, no campo da preservação cultural, é muito mais importante do que a do próprio CODEPHAT ou do IPHAN (respectivamente os órgãos estadual e federal de preservação). Então, eu acho que, primeiramente, é fundamental a criação de uma legislação municipal voltada para a preservação. O fato de trabalhar com decretos não tem a mesma dimensão. A gente aqui falou muito de simbolismo etc. E o tombamento, digamos assim, o instituto do tombamento já adquiriu um significado simbólico que faz com que a população entenda que aquilo é voltado para a preservação; é diferente de um decreto – como existem decretos muni-cipais – que delimitam áreas a serem preservadas na cidade, mas cujo resultado fica dissociado dos seus objetivos. A população em si não entende que aquilo ali seria ou teria efetivamente o mesmo valor de um tombamento.

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Eu acho que seria fundamental a construção de um corpo de leis, um corpo de institutos jurídicos que permita efetivamente inserir a ação da Prefeitura na preservação do patrimônio cultural do mu-nicípio, quer seja somando com as ações já adotadas pelo Estado ou União, quer seja identificando e preservando outros bens que não teriam sido protegidos por estas instâncias, tendo em vista o fato de possuírem significação apenas na escala local. Óbvio que não é apenas isso que vai assegurar a preservação de nada, não é bem assim... Mas, sem dúvida, já seria um bom começo.

Ordep Serra: Bom, eu queria ir direto ao ponto. Tem uma proposta de Lei Orgânica da Prefeitura de Salvador. São quatro: um, dois, três, quatro; tem aqui uns quatro artigos tratando do carnaval, quase tudo carnaval. Já começa o erro por aí. Cultura não é só carnaval. Isso é uma maluquice! Isso é uma loucura! Então, um parágrafo trataria do Conselho Nacional de Cultura, bem seco e simples: órgão normativo, deliberativo e fiscalizador das ações culturais; o artigo 258 é o seguinte: fala da revitali-zação dos sítios históricos e só diz que o Município observará alguns pontos como prioridade básica: compromisso e desenvolvimento com as comunidades locais; estimulo à permanência e locação de grupos que desenvolvem atividades culturais, comerciais, artesanais, dentre outras. Isso é uma maneira muito primária de tratar do problema de preservação cultural em Salvador, pelo amor de Deus!

Salvador já era pra ter uma legislação de patrimônio. Eu passei pelo IPAC no século passado, no milênio passado. A gente preparou uma Lei de Preservação Cultural pra Salvador; previa tombamento, registro, essas coisas todas; isso foi engavetado, até hoje. Agora, os outros artigos: a gestão do carna-val. O Conselho Municipal de Carnaval tem representantes, todo mundo está envolvido com o negócio do carnaval, mas não tem representações da sociedade civil organizada. É lamentável que a gente continue pensando isso, na Bahia. Eu conheço muitos cientistas importantes, urbanistas, arquitetos, gente especializada na gestão da memória; tem uma produção cultural interessante na área de litera-tura, na área das artes etc. Nada disso é contemplado. Isso aqui traduz a ignorância que prevalece no pensamento sobre cultura em Salvador. Não é possível isso! Nenhuma sociedade científica contem-plada? Nós passamos por cima de tudo isso. Ciência? Não é cultura em Salvador; Arte? Não é cultura; Literatura? Não é cultura; preservação de alguma coisa? Não é cultura, Urbanismo? Não é cultura; e, aliás, cada vez menos, o que é que é cultura? Sair sambando por aí! Pelo amor de Deus, eu sempre gostei de carnaval, mas... Não sou inimigo de festa, pelo contrário, já escrevi sobre o carnaval, sobre o carnaval da Bahia. Recentemente, escrevi sobre a agonia do carnaval da Bahia. Mas, essa história de dizer que na Bahia cultura é carnaval, é humilhante; reduz-se cultura a carnaval. Isso é humilhante, gente! Isso é barbárie, isso é tolice, isso é ignorância! Vamos usar os nomes certos, vamos pensar cultura de uma maneira mais séria! Separar cidadania, por exemplo, sem separar de reflexão científica, de criação artística, de preservação de memória. Estamos num péssimo caminho, seguindo por aqui. E eu não vou nessa audiência.

Frederico: Boa tarde, [eu sou] Frederico Mendonça, do IPAC. Eu acho que eu vou ter que falar algumas coisinhas que eu estou sentindo falta, em que pese o conhecimento desse conjunto, desse quarteto que está aí na mesa, onde a única pessoa que não passou pelo IPAC foi Mariely, mas, durante anos, coordenou o CECRE. Eu tinha comentado com a mesa que fiquei imensamente entristecido e angustiado nesse Cortejo do Dois de Julho; foi o cortejo mais leve dos que eu participei e eu acho que parte da leveza estava no esvaziamento. Embora fosse um sábado, quando eu comentei com as minhas companhias o esvaziamento, disseram: “talvez por ser sábado”. Mas acho que, justamente por ser sábado, poderia haver mais gente.

Impressionou-me muito o descolamento. Primeiro, uma alienação muito grande dentre as pes-soas no meio das quais eu estava, entre a simbologia do cortejo, o que seria comemorativo de lutas da independência estava meio ausente das temáticas de todas as conversas de que eu participei; e mais descolado ainda do espaço físico. Várias pessoas brincavam comigo, que eu devia estar avi-sando às pessoas: cuidado com os prédios para não caírem. De fato, o IPAC está fazendo uma ação emergencial em dois imóveis – na verdade, quando você olha parece um só, mas são duas portas, duas numerações, o 131 e o 133, onde, há alguns dias atrás, desabou um pedaço, um trecho do

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131, provocando a morte de um dos ocupantes; isso nos fez adotar medida extrema pra nos apro-ximarmos do problema.

O IPAC fez esse tombamento em 1981 e, durante 30 anos você não sabe que medidas Estado e Município fizeram naquele bairro. Acho que Lula terminou ficando no histórico e não mostrou uma par-te importante do trabalho que foi feito, o grau de transformação das residências, dos imóveis; já está num nível de desfiguração muito grave. O que revela uma alienação muito grande daquelas pessoas, elas não estão nem aí, nem sabem desse tombamento. Eu não sei quem foi que falou que as pessoas já vinculam tombamento a conservação. Eu acho que não, as pessoas têm medo do tombamento, as pessoas desconhecem esse instrumento e, aliás, ficam querendo que, em função de uma certa ausência do poder municipal, uma pressão muito grande sobre o poder estadual e federal, no sentido de fazer tombamentos de edificações ou de espaços, como um forma de reverter esse grande problema que temos na cidade, de perda do seu patrimônio edificado.

Este debate é uma oportunidade que os técnicos do IPAC têm de, junto com o Conselho Estadual de Cultura e outros estudiosos e lideranças sociais, de conseguir vislumbrar os balizamentos com essa ação de política pública. Um deles é o seguinte: a Soledade, hoje, é um bairro profundamente empo-brecido e esvaziado. Se ele foi um bairro de elite nos idos de antigamente, nas suas origens, hoje ele é um bairro que está em grande medida esvaziado. Assim como a área central, que a gente chama de Pelourinho, também está muito esvaziada. Então, ela faz parte dessa antiga área central, está sofrendo e deverá sofrer mais fortemente, nos próximos meses, um impacto muito grande por uma obra viária de grande impacto na Cidade de Salvador, que é a Via Expressa.

E a população que ali reside, uma população que não tem muito dinheiro... Nós participamos, na semana passada, de uma reunião no DESENBAHIA. Estamos buscando alternativa de como ajudar os proprietários a concertar os seus imóveis. Isto cabe à Ouvidora do Município ou da Câmara; ela pode nos ajudar sim! Porque os vereadores precisariam desempenhar o papel para o qual foram eleitos. Um deles é tomar consciência do que existe e tomar atitudes. Eles não são os gestores, mas eles podem propor ao Poder Executivo medidas que favoreçam os proprietários, para que eles não se considerem vítimas de uma medida de cerceamento por parte do Poder Público. Porque o tombamento cerceia a propriedade individual sim, em nome do interesse coletivo. Mas nós não criamos nenhum organismo para que esses proprietários sintam-se realmente ocupantes de imóveis valorizados; não se valoriza isso, não se valoriza, na prática, o patrimônio. A gente discursa muito sobre o assunto, mas não temos medidas efetivas.

Então, primeira coisa, que medidas efetivas nós podemos criar no território da Liberdade, da Lapinha, que é o primo pobre do Centro Histórico. O Centro Histórico de Salvador tem toda a mídia, porque ele foi objeto de uma operação midiática que, hoje, chama toda aquela região, que vai des-de a Praça da Sé até o Carmo, de “Pelourinho”. Então, detona essa geografia: acaba-se o Maciel, acaba-se o Terreiro, acaba-se o Carmo, o Passo e vira tudo Pelourinho, que é um nome midiático; nós temos realmente que dar uma prioridade, porque é área de maior visibilidade internacional de Salvador, sim! Mas nós temos a continuação desse Centro Histórico, que é justamente esse trecho da Soledade, que está profundamente ligado à história da Independência do Estado da Bahia; as lutas, as edificações que geraram uma ocupação, a Fonte do Queimado; é uma região que está meio esquecida e que as unidades de pesquisa, as organizações sociais e as representações mais formais – digamos vereadores, deputados – precisariam, junto com os órgãos de patrimônio, ver que medidas se pode adotar; porque nós temos nos batido muito com situações que extrapolam a temática da cultura stricto sensu.

O Professor Ordep citou as questões do PDDU e tudo mais. Nós temos uma profunda desordem urbana aí, uma profunda desordem urbana. O Estado, através do IPAC, sozinho, não vai poder dar conta disso. Nós já notificamos o Secretário de Infraestrutura do Município e o Secretário da SEDHAM, o Dr. Paulo Damasceno, que já foi Procurador do IPAC, inclusive na sua época, exatamente. Então, já o notificamos para buscarmos, junto à Prefeitura, como vamos atuar, porque nós não vamos conseguir atuar sozinhos; como, também, já notificamos a CONDER. Eu queria colocar essas questões pra gente descer um pouco, pra ver que o intangível – para fugir do imaterial – que está na lembrança dessas pessoas, desses resistentes que ainda moram no lugar. Particularmente, sou muito afeiçoado a essa edificação (foto mostrada na página 14, à direita, embaixo), que é um estilo Art Déco; era uma pa-nificadora que funcionou até alguns anos atrás e, hoje, está completamente fechada; então, acabou. Você vê: os negócios e as pessoas vão desaparecendo. Como vamos reverter isso? O DESENBAHIA nos

EstE dEbatE é uma oportunidadE quE os técnicos do ipac têm, dE junto com o consElho Estadual dE cultura E outros Estudiosos E lidEranças sociais, dE consEguir vislumbrar os balizamEntos com Essa ação dE política pública.

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pediu: qual o plano de negócios que vocês têm para a área? Nós não temos um plano de negócio para a área, porque é uma população de baixa renda e, realmente, como você viabiliza a ocupação do Solar Bandeira, que foi tombado individualmente pelo Estado? Como viabiliza? Porque a grande questão para o patrimônio é o uso. Nada que não tenha uso consegue se manter; você tem que dar uso às coisas porque, senão, vão embora mesmo. Estou aproveitando a oportunidade, para compartilhar as minhas preocupações. Obrigado. (Palmas)

Araken vaz Galvão: Vou me colocar assim, meio de lado pra mesa e o auditório. Eu sou Araken Vaz Galvão. Nasci em Jequié, moro em Valença, sou escritor e membro do Conselho Estadual de Cultu-ra. Vou me colocar de lado. Não quero fazer uma palestra porque aprendi muito com esses trabalhos. Muito interessantes. Apesar de curto e sintético, aprendi muito. Mas a minha indignação passa pelo lado da história. Então, nós estamos falando do Dois de Julho e eu me pergunto: o esvaziamento do Dois de Julho não começa na escola? Quando se proibiu cantar e comemorar o Dois de Julho? Eu cantei muito “Nasce o Sol ao Dois de Julho” e quando eu falo isso, as pessoas se assustam. Eu moro em Valença e, pelo meu passado, a cidade tem assim um certo respeito comigo e, às vezes, me visitam e vão alunos fazer entrevistas. Nessa semana passada, foram três alunas do curso de Turismo me per-guntar sobre o trabalho cultural que eu faço na região. E aí eu perguntei assim: e vocês vão participar do Dois de Julho? Ficaram me olhando. Porque Valença participou – mandou tropa, mandou alimento – da luta de libertação do Brasil. Eu digo do Brasil, também, porque o que seria o Brasil sem a Bahia, na hipótese de ficarmos com Portugal? E digo isso com muito orgulho. Bom, aí as meninas me olharam; jovens, do curso técnico de Turismo. Eu disse: Dois de Julho, vocês não sabem o que é o Dois de Julho? É dia de Iemanjá (risos). Aí eu disse assim: olha, eu canto muito mal, mas dia 2 de fevereiro é dia de festa no mar e coisa e tal; mais perplexidade ainda, vocês já ouviram falar em Dorival Caymmi? Não senhor! Bom, então, eu me convenci aí de que o esvaziamento do Dois de Julho pode roubar tudo; começa na escola. E elementos, como o alcaide da nossa capital, ficam querendo puxar o Dois de Julho dois dias pra cima, eles querem comemorar é o Quatro de julho, é isso que eles querem. Ninguém é criança. Já no Rio de Janeiro, um imbecil lá que foi governador queria fazer o dia de ação de graças, o Halloween que fazem por aí; e a gente ouve lá pelo Rio dizer assim, Halloween o escambau, viva o folclore nacional etc. Então, é preciso também haver resistência da cidadania. Eu só vou ao Aeroporto Dois de Julho, eu pego o táxi, quando o cara ousa dizer que é o nome do filho de papai, eu desço do táxi! Eu desço! (risos, palmas).

Eu diria a jovens como vocês, que pintaram a cara, porque não vão todo dia lá e escrevem “Dois de Julho” na parede do aeroporto? Eles vão prender, vão soltar, não vai dar nada, porque o jovem faz isso mesmo. Eu fiz a minha parte, entende? Eu sinto falta de um itinerário turístico histórico da Bahia. Eu queria dizer a um turista: aqui pregou Antonio Vieira; você sabe quem foi Antonio Vieira? Eu queria dizer:, aqui morreu Joana Angélica; eu queria levá-lo ao Largo da Lapinha e depois à Soledade, e falar dos heróis do Dois de Julho. Então, se nós não apelarmos para nossa juventude, por interesses outros, inclusive pseudorreligioso, todas as manifestações de brasilidade, de baianidade vão sendo relegadas e nós ficamos indignados em casa. Por que não ensinam nas escolas literatura de autores baianos? Porque, não me venha com história de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, eu falo autores baianos, nós escritores que somos ignorados; onde estão as Secretarias de Cultura, de Educação de Estado e do Município? Então, eu quero pedir desculpas à mesa por não ter feito uma pergunta. Eu quero é felicitá--los por ter feito uma exposição brilhante, particularmente aqui, ao meu companheiro, porque eu sou assim como você, de briga. Um abraço, muito obrigado. (Palmas)

Lia Robatto: Eu fiquei muito surpresa de nunca ter pensado no que Mariely Santana falou sobre a relação do suporte físico do espaço das manifestações tradicionais. Porque eu sempre pensei, fiz a relação entre o patrimônio material e o imaterial, com desculpa da palavra, mas eu achei muito im-portante reconhecer que o suporte do espaço é um dos monumentos que preservam, ajudam a pre-servar a manifestação. Gostaria de falar um pouco sobre a importância das manifestações populares tradicionais sofrerem a dinâmica natural que toda sociedade sofre, como foi chamada a atenção aí,

Eu sinto falta dE um itinErário turístico histórico da bahia. Eu quEria dizEr a um turista: aqui prEgou antonio viEira; você sabE quEm foi antonio viEira? Eu quEria dizEr: aqui morrEu joana angélica; Eu quEria lEvá-lo ao largo da lapinha E dEpois à solEdadE, E falar dos hEróis do dois dE julho.

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e o quanto isso, invés de caracterizar, é o que garante a preservação. Só se preserva aquilo que se transforma e que se atualiza; só que tem de haver alguns elementos básicos que caracterizem, que sejam referência da manifestação original. E o que fazer quanto a esse esvaziamento? Essa degra-dação que está havendo? Eu estou chamando mais atenção para parte das manifestações populares nossas, Dois de Julho e terno de Reis; terno de Reis está morrendo.

Quando cheguei à Bahia, Sílvio [Robatto] me levava para ver as festas que não terminavam, quan-do começavam à meia noite e varavam a noite com um grupo atrás do outro, se apresentando. E naquela época, a Prefeitura também promovia, não sei se alguém aqui se lembra – não tem ninguém da minha idade? A Prefeitura montava um tablado na Praça Castro Alves e os ternos de Reis que vi-nham dos diversos bairros da cidade, antes, passavam por lá, se apresentavam no tablado – mas não era a mesma coisa – e depois iam, a pé ou de ônibus, fosse como fosse, e chegavam tardíssimo lá na Lapinha, onde rolava a festa. O bairro todo era uma festa só, mil barracas e tudo. Acabou. Apesar de Padre Pinto fazer, manter aquilo. Então, o que a gente vê? A gente vê que nos ternos de Reis, hoje, só têm pessoas da minha idade, os jovens já não estão mais interessados, as crianças não estão mais interessadas; qual é a forma de revitalizar isso? Nem a Escola, é a televisão, é a única. A sensibilidade atual da nossa população só se toca com o que sai na televisão; sem televisão não tem valor, é o que dá o aval. Então, ali, seria o projeto do IRDEB, que infelizmente saiu da cultura; teve aquele programa que valorizava, e registrava, e divulgava as manifestações por todo o Estado da Bahia; fantástico. Isso ajudou. E se sabe que os jovens começaram, a partir dali, a se interessar e a começar a aprender com os avós, com os pais.

Então, o que precisa haver é uma divulgação. A não ser que, também – essa é uma parte que eu também não consigo entrar direito –, nos facebooks da vida, pela internet, que é o que o jovem vê, que o jovem se liga. Se não fizer essa divulgação, não vai haver a mobilização para que essas manifesta-ções continuem. Porque manifestações só valem por iniciativa do povo, como o Dois de Julho, como a procissão do Senhor dos Navegantes; essas festas que acontecem se o povo quiser, não adianta impor, a não ser que vire show, megashow, pago pelos governos. Então, eu sugiro que se faça um apelo ao IRDEB para que se registre regularmente, que divulgue, que chame a atenção, se está morrendo. Então vamos chamar a atenção daquele índio; eu vi, eu cheguei a ver, apesar de estar muito esvaziado o Dois de Julho, eu vi gente vestida de índio, de pena; ainda vestem, ainda tem essa ingenuidade de vir assim; então, pega esse sujeito, entrevista, valoriza, mostra a cara dele, pergunta por que ele está ali. Então essas coisas vão estimular um pouco a população; as fanfarras ainda saem, com suas balizas, ainda se mostram, têm orgulho daquilo. Então, vamos valorizar essa parte viva. Não adianta escola. O professor vai me dizer, se o professor vê na televisão, daí ele vai falar pros alunos, mas por decreto não funciona.

Elisabete Gándara: Agora, eu gostaria de passar pra mesa, que é pra eles poderem fazer as ob-servações sobre essas colocações. Depois, nós continuamos.

Lula Cardoso: Embora o mote dessa reunião seja um único bem, a questão do Dois de Julho, ele abre um leque de reflexões. Enfim, é um universo muito mais complexo do que, efetivamente, a gente pode, num primeiro momento, pensar. Aí, às vezes, as ideias e as colocações surgem meio estanques, uma coisa que, de certa maneira, reforça um pouco o que eu vou defender agora. Foi um depoimento da colega Yveline, que está chegando de uma outra área; ela trabalhava mais na questão de planejamento e está se envolvendo agora com políticas da preservação, do ponto de vista das rotinas do trabalho etc. Ao encontrar-se comigo, falou: “ah, eu estou com medo, que eu estou chegando e tal”, como se, efetivamente, a questão da preservação fosse algo restrito ou atri-buições específicas de um núcleo, quase que um gueto profissional ou distanciado das outras coisas. Eu cheguei pra ela e falei assim: você não vem daí? Você, possivelmente, se emociona com diversas referências culturais, materiais ou não, que deveriam ser preservadas, que mereceriam. Então, na verdade, eu acho que, sobre essas questões, deve-se buscar que elas tenham eco em diversos cam-pos de ação dos poderes públicos, da própria sociedade, do Poder Público, enquanto representante da sociedade; eu acho que, óbvio, se a sociedade não quer, não preserva. Depois, a sociedade,

só sE prEsErva aquilo quE sE transforma E quE sE atualiza; só quE tEm dE havEr alguns ElEmEntos básicos quE caractErizEm, quE sEjam rEfErência da manifEstação original; E o quE fazEr quanto a EssE EsvaziamEnto? Essa dEgradação quE Está havEndo? Eu Estou chamando mais atEnção da partE das manifEstaçõEs popularEs nossas, dois dE julho E tErno dE rEis; tErno dE rEis Está morrEndo.

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efetivamente, hoje, qual é a sua força? Eventuais representações construídas nessa sociedade que têm hoje, do ponto de vista da implementação de anseios, de desejos etc.? Eu acho que a gente vive hoje um mundo, digamos assim, em que as corporações, efetivamente constroem ideias, vendem ideias, influenciam pessoas.

Enfim, eu acho que é fundamental, eu defendo como fundamental a participação do Estado me-diador, como um agente que, efetivamente, possa intervir nesse processo, implementando políticas públicas, não apenas no âmbito da cultura, mas vinculando a cultura a outros campos de ação da própria dinâmica da sociedade. Eu defendo a ideia, eu concordo, por um lado, com a professora que acabou de falar, Lia, que não é só a Escola, mas qual é a política de educação que a gente vê hoje, esboçada no plano estadual ou mesmo federal? Ou seja, eu não sou exatamente uma pessoa da área de educação, mas eu acompanho as informações do que está acontecendo. O que está sendo proposto em termos de política de educação? Não apenas enquanto novas metodologias de ensino, mas enquanto discussão do próprio conjunto de conteúdos. Então, eu acho que passa também pela inserção nas políticas de ensino, nas políticas de desenvolvimento e políticas culturais. Acho que não dá pra dissociar uma coisa da outra. E a questão do IRDEB é fundamental. Agora, que audiência tem o IRDEB? Ou tinha o IRDEB? Era um trabalho respeitabilíssimo, um trabalho importantíssimo, mas ele só não é suficiente.

Assim, eu acho que o que tem de ter mesmo é uma vinculação com a determinação de políticas de ensino, não só de ensino público, mas até no âmbito do ensino privado. O que a gente vê a parti-cipação, por exemplo, no Cortejo do Dois de Julho, de estudantes etc., são muito mais estudantes de escolas públicas; você não vê uma vinculação das particulares. Eu tenho filhos que estudaram em esco-las privadas; não tem nenhum vínculo lá. Se não se discute a importância do Dois de Julho no ensino público, menos ainda no privado. Então, o que é que determina? Quais são as lógicas que determinam o que vai ser ensinado, o que deve ser aferido, avaliado etc.? Acho que passa por aí também, é muito mais complexo; quando eu defendo, por exemplo, que é o Município que tem que ter um instrumento de preservação, eu não estou dizendo que só isso assegura, mas precisa ter, e isso precisa ser assimi-lado como algo que permeia todo um conjunto de políticas, que envolve desenvolvimento, educação, cultura, etc., etc.

Mariely: Eu gostaria de fazer só uma complementação. Eu acredito que a gente só valoriza aquilo que a gente conhece. Você só respeita, você só vivencia, só valoriza aquilo que você conhece. Então, eu acho que – não quero dizer com isso que é só papel da escola – eu entendo muito mais o papel do trabalho do IRDEB, que foi uma valorização maior, para os próprios atores daquelas manifesta-ções, do que para um público ou para uma difusão; eu me lembro, uma vez, com Josias, ele falando do dia que foi apresentar uma dessas manifestações, o orgulho que as pessoas sentiam disso. Mas eu acho que esse processo de educação, não é que é fundamental. Acho que nós conhecemos muito pouco a nossa história. Nós conhecemos, inclusive muito pouco, quais são os marcos simbólicos dessas referências culturais das quais nós estamos falando. Então eu acho que, neste sentido, a escola tem um papel fundamental, que vai fazer com que a criança possa participar, o jovem possa participar. Outra coisa que é muito importante, nessa minha curta caminhada trabalhando com essa temática, é a questão que muitas dessas festas, sempre foram vistas como festa de alguém mais pobre ou de um grupo da sociedade que não era reconhecido por uma determinada camada, e isso afastava. E a gente percebe até na escola. Por exemplo, eu ficava chocada quando meus filhos não falavam em manifestação cultural, falavam em folclore, falavam na comemoração do folclore, mas não vivenciavam as relações das manifestações culturais que a cidade tem; muitas crianças nunca foram ao Centro Histórico de Salvador, e quando eu questionava isso na escola, era porque era pe-rigoso. Então, essa relação de, também, você estar com a cidade. Hoje, a gente vê o Shopping Barra ser assaltado, às cinco horas da tarde. Então, essa relação que você tem também com os espaços da cidade, com a história da cidade, com as referências culturais da cidade, isso é muito importante.

Com relação à questão do tombamento e com relação à questão da preservação, eu acho que, durante muito tempo, nós recebemos essa decisão pronta: é isso que é importante preservar, é isso que é importante tombar, é isto que é tombado e, muitas vezes, a comunidade, a sociedade não tinha nenhuma referência, nenhuma ligação com aquilo que era tombado, que era preservado. Então, eu

Eu dEfEndo, por ExEmplo, quE o município tEm dE tEr um instrumEnto dE prEsErvação, E isso prEcisa sEr assimilado como algo quE pErmEia todo um conjunto dE políticas, quE EnvolvE dEsEnvolvimEnto, Educação, cultura Etc.

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acho que há uma necessidade de se ter um maior conhecimento sobre as referências, sobre as ques-tões de valor da cidade, de entendimento de que cada grupo reconhece como valor. Porque, aí sim, eu acho que esse respeito, essa manutenção, essa valorização, ela vem. Acho muito arriscado a questão do discurso público, político no cercear as festas, acabar com as barracas por questões de higiene, por questões de segurança, que vão fazendo com que isso seja tolhido quando, na realidade, a gente sabe que não é bem isso que está por trás desse discurso da higiene. Então, eu acho que são questões que precisam ser consideradas.

Mas, trazendo à tona a questão que o Fred levantou, a questão de como trabalhar ou como fazer, eu acho que é uma questão muito séria, mas eu vejo uma vertente muito incipiente participando das discussões, dos levantamentos que Lula fez lá no centro, e a gente estava sempre coversando; esse viés muito forte sobre a valorização de um espaço de educação nessa região, que deveria ser, talvez, uma das vertentes a serem valorizadas; a própria relação da Escola Parque e das Escolas Classes, a própria estrutura dessa vivência, a relação de espaço, de moradia, de vivência de bairro, onde essas atividades culturais pudessem ser trabalhadas, serem vivenciadas nas próprias escolas e valorizadas pelos grupos jovens.

O ano passado, fazendo um trabalho em São Luis do Maranhão, uma coisa que me chamou muito a atenção foi a comemoração da Festa do Boi, em São Luis. Ela tem um forte reconhecimento por um público muito jovem; você vê a participação, tanto de adultos como de jovens e crianças que são pre-paradas para essa comemoração, para toda a participação dos ritos durante aquela festa, e o sentimen-to de pertencimento àquela festa, que eles têm. Eles não são simplesmente atores daquela festa; eles entendem aquilo como um elemento que faz parte da história deles. Então, eu acho que esse papel na escola, esse papel de pertencimento, esse papel de você sentir que é algo seu, é fundamental pra que a gente continue, que a gente tenha manutenção dessas manifestações, dessas culturas, que é óbvio, não serão as mesmas de que o professor Ordep participou, não serão as mesmas de que eu participei, mas terão um viés com uma cara atual, como das pessoas que estão lá, desde que resguardada essas referências.

Eu trabalhei a Festa do Bonfim durante dez anos e nesses dez anos ela não foi a mesma. Enquanto eu estava acompanhando a pesquisa, cada ano você tinha coisas muito diferentes acontecendo e aquilo que já tinha desaparecido e que estava voltando em alguns momentos, pelos jornais, voltava de outra forma, com uma outra fisionomia dentro dos valores daquele grupo que, naquele momento, estava retornando. Então, eu acho que esses valores ainda precisam ser arraigados e é por isso que eu acho que é importante essa relação de reconhecimento e isso a gente só aprende e vivencia e vai aprendendo pra poder dar valor. (Palmas)

Ordep Serra: Bom, eu acho que falta desenho de uma política cultural, e uma política educacional para o Estado da Bahia e para Salvador; não tem isso ainda. Reparem bem, o Estado pode sim, fazer muita coisa. Há pouco tempo, quer dizer, uns dois ou três anos atrás, eu estive em Oslo, que é uma cidade ultramoderna. Todo mundo sabe, a Noruega é vanguarda em termos de qualidade de vida, é ci-dade de ponta; então, no dia da Festa Nacional da Noruega sai o pessoal vestido com todo tipo de traje típico, que já se usou na Noruega, espontaneamente. Se você quiser ver o vestuário dos noruegueses ao longo dos séculos você vê nesse dia. Agora, há um trabalho educativo; há também um belíssimo trabalho de educação patrimonial na Noruega; nas escolas, os meninos visitam aquela famosa réplica que eles fizeram dos tipos de habitação que existiram na Noruega, ao longo de séculos, aquilo cheio, cheio de crianças, de jovens, de adultos, não é só turista; o pessoal de lá tem uma política educacional voltada para isso, também, e combinada com a política cultural, o que nos falta aqui.

A educação do Brasil está arrasada e da Bahia pior ainda. Escola, hoje, é um lugar muito peri-goso. Se for escola pública, escola de pobre, escola de negro, é lugar extremamente perigoso, onde não se aprende praticamente nada. A política educacional nossa, o grande objetivo da política educacional que a gente tem, é forjar estatísticas. Por isto nós produzimos analfabetos funcionais em série; quando aparece emprego qualificado, nós começamos a importar mão de obra de fora, porque as nossas pessoas têm diploma, mas não têm a qualificação que lhe é necessária para esse tipo de coisa. Há uma violência crassa, contínua, contra a população pobre da Bahia; ela não tem estímulos; ela tem hostilidades. A hostilidade que se manifestou contra as festas populares, que

com rElação à quEstão do tombamEnto E da prEsErvação, Eu acho quE, durantE muito tEmpo, nós rEcEbEmos Essa dEcisão pronta: é isso quE é importantE prEsErvar, é isso quE é importantE tombar, é isto quE é tombado E, muitas vEzEs, a comunidadE, a sociEdadE não tinha nEnhuma rEfErência, nEnhuma ligação com aquilo quE Era tombado.

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resultou no fim dos “arraiás” de barracas, resultou numa série de outras limitações; os espaços das festas culturais foram conquistados duramente, mas o pessoal perdeu a briga. A Lavagem do Bonfim nasceu praticamente no movimento de resistência. Todo mundo sabe que o pessoal foi proibido de fazer a lavagem, mas achou uma solução, enfrentando a polícia, enfrentando o diabo a quatro, para continuar a lavar o adro.

Veja a história do carnaval da Bahia; é uma história de luta de classes. Não se podia fazer bloco de preto, era proibido; afoxé era proibido, os chamados blocos de índios, na verdade, eram blocos de negros; eles eram reprimidos; eu fui apacheiro, todo mundo se lembra do que é a coisa, qual é o caso. Hoje, você tem essa expressão racista, estúpida, repetida toda hora, o carnaval de “gente bonita”, que é privilegiada; tem o carnaval do camarote, que é uma tremenda idiotice, a meu ver, mas tudo vem subvencionado, fortemente subvencionado; por isto que eu estudo essa agonia do carnaval. Não tem respeito pelo público, falta isso, esse elemento básico de respeito.

Fred, eu acho que a situação é complicada, porque você vai conversar com o Paulo Damasceno, que deve ser o 17º Secretário dessa pasta – o Prefeito troca de secretários de Planejamento, minha gente, como é que eu posso fazer planejamento trocando de Secretário todo dia? Isso é óbvio, que se eu faço isso, eu não estou preocupado com planejamento; ele não faz planejamento nenhum. Paulo Damasceno não tem nada pra lhe dizer; eu não quero lhe desanimar, você vai, mas vai perder tempo, me desculpe, mas vai perder tempo. Está faltando gestão, não tem prefeito em Salvador, tem lá um ca-marada fazendo negociata com o espaço público, privatizando o espaço público, trocando de partido, como se troca de camisa, buscando o quê? Lucro para um pequeno setor, é só isso.

Então, a gente tem que ter consciência disso. Vamos ver, olhar a desgraça nos olhos, porque só assim a gente pode encontrar alguma solução. Fazer um diagnóstico positivo não adianta; estamos em uma situação extremamente perigosa. Salvador está desgovernada e é por isto que ela está sen-do desurbanizada, não sei se existe esse termo aí, mas é extremamente adequado, desurbanizada, desfigurada, está perdendo a sua face, seu rosto, e a cada dia a coisa piora; os atentados são con-tínuos ou constantes. Aquela beleza na paisagem do Comércio pode desaparecer, os atentados são constantes; vocês se lembram do decreto de hiperdesapropriação que o prefeito tentou empurrar pela garganta abaixo, pessoal? Lá, na Cidade Baixa, ele está desapropriando – até porque o pessoal, os seus áulicos, os auxiliares não são esses gênios, quando dizem assim, caridosamente, publicaram--se as coordenadas, vocês se lembram dessa história? Publicaram as coordenadas somente da área desapropriada; estão desapropriando até o Hospital de Irmã Dulce, uma área do Exército e mais não sei o quê; e quando se perguntou ao Secretário daquela altura, não me lembro do nome do tarado, Abreu, o famoso Abreu, o que é que ia ser feito lá? “Ah, vamos fazer um shopping center”; depois, questionaram a ele, porque que ele recebeu um pacote pronto, de projetos feitos pelo pessoal da Su-arez, “o senhor nem se preocupou de olhar a qualidade desses projetos?” Ele respondeu: “a cavalo dado não se olham os dentes”; eu acho que ele não vai a dentista há muito tempo (risos). Então, é essa situação. A pressão foi grande, trocou, botou outro de plantão. O pobre Damasceno foi meu assessor, é meu amigo e tudo mais, não tenho nada contra ele, a não ser um pouco de raiva (risos); ele é apenas mais um, e eu lamento pelo meu pobre sucessor que vai ter que ir até lá conversar com ele sobre uma coisa que, pra ele, não está contando nada, porque pro prefeito não conta nem um pouco; a Cidade de Salvador não interessa a ele.

Henrique barreiro: Eu sou Henrique Barreiro, sou do IAB, Instituto de Arquitetos do Brasil, e eu vou só ilustrar, falando aqui sobre esquizofrenia e alzheimer. O que caracteriza o alzheimer? Você perde o registro de uma memória. O professor aqui do meu lado falou uma coisa que é fundamental: o que é que se dá dentro da escola? Registram-se as memórias de uma cidade. Antes que eu me esqueça de dar essa informação aqui pra todos, há uns dez anos atrás ou um pouco mais, quando Edivaldo Boaventura assumiu a direção do jornal A Tarde, por ocasião do Dois de Julho, ele publicou um caderno, bastante volumoso, onde se falavam das 43 revoltas que foram resultar na Indepen-dência da Bahia e do Brasil, das quais, dizia então, 34 não estão nos livros de história, porque foram feitas por mulatos, cafuzos, caboclos e mestiços e negros, diga-se de passagem. Então, o mesmo racismo que faz com que se celebre, hoje ainda, o Sete de Setembro. Por quê? Porque não foi pros li-vros das escolas, porque não foi registrado na memória. O que é o órgão de patrimônio? É o registro

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de memória? Mas a escola é quem implanta a memória registrada no cidadão. Eu acho que se não passar antes pela escola, não vai passar por televisão nenhuma o poder de ler, mas o que a televisão vai, sim, é vivenciar na cabeça – “ah, foi aquilo que se falou na escola”, “olha aí, a imagem do que era” – e aí se processa. Então, essa coisa do alzheimer dá isso, você perde o registro de memória, então, você tem que apelar para a memória pregressa; eu cuidei da minha mãe praticamente dez anos e a gente teve sempre que apelar para a memória que se encontrava na cabeça dela. Então, a Prefeitura está implantando um alzheimer dentro de Salvador e nós corremos o risco de deixar que isso se transfira para a Bahia.

E a esquizofrenia é de um diretor de um órgão da Prefeitura, como recentemente, no episódio do Acupe, que o vereador Jambeiro se propôs a fazer uma audiência pública a título de criar com-pensações para a população de lá, mas dando respaldo a uma construtora que queria implantar certo empreendimento. O Cláudio Silva, nessa audiência, ocupou a mesa e se referia ao direito do cidadão de construir, defendendo o direito de um cidadão de construir, como se fosse uma pessoa física e quando questionado a respeito da supressão de vegetação, disse: “não, isso foi outro órgão que autorizou, não foi a SUCOM, foi a SMA, foi outro órgão”; além de outro órgão, quando o Co-mandante da Polícia da área diz que, hoje, antes desse empreendimento, já não consegue atender aos pedidos de socorro do Acupe, porque não consegue entrar, porque tem carro estacionado dos dois lados. Ora, o Acupe vem de trinta, quarenta anos atrás, quando as famílias de classe média tinham um automóvel só, comumente, então, só precisavam construir uma garagem. Coloca-se hoje o segundo, terceiro automóvel na rua, aí ele diz, “não, mas isso se resolve, porque a TRANSALVA-DOR pode, vai baixar uma norma e vão recolher todos os carros que estão lá”. Poxa, para o direito de construir de um único cidadão, vai se tolher o direito de milhares de cidadãos que moram ali e que, há quarenta anos, botam seus carros na rua e não vão poder botar mais; porque esse cidadão OAS chegou, que não vai construir para os diretores da OAS morarem, porque não vão morar num pardieiro daqueles. “Ah, se fosse um shopping ou se fosse um centro comercial, eu não autorizava”. Mas aí é que o senhor deveria autorizar, Doutor Cláudio, porque ia evitar que essa população tivesse que se deslocar, engrossar tráfego.

Eu digo a Cláudio, você fala de SMA como outro órgão, de TRANSALVADOR como outro órgão, que esquizofrenia é essa? Porque, na realidade, é tudo Prefeitura, é tudo uma personalidade jurídica só. Paulo Damasceno, Presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente, tem sete votos dele, da Prefeitura, dentro do COMAN, e saiu aprovando Via Atlântica, saiu aprovando uma série de coisas, que a gente teve que fazer um trabalho...

Ordep Serra: Tudo ilegal, porque não existe Conselho da Cidade, o Estatuto da Cidade, essas coisas só podiam sair com aprovação do Conselho Municipal da Cidade; é um Prefeito da ilegalidade, tudo isso é ilegal.

Henrique barreiro: Somente pra concluir, como sugestão, que se tente resgatar, começar resga-tando, registros como essa edição de A Tarde, para que isso se transforme num caderninho de escola pública e privada, a respeito de festas, de atividades da Bahia e se transforme isso em coisa que possa ser elemento de divulgação. Tirar dos arquivos do jornal A Tarde, trazer pro Governo; o Governo, como responsável por tudo isso que a gente está discutindo aqui, que ele tente olhar a coisa chamada pri-vatização das telecomunicações aqui na Bahia ou no Brasil, com INTERSAT I, INTERSAT II, na mão da Fundação Roberto Marinho; são dois satélites que poderiam estar em operação pelo Governo e pode ser, a qualquer momento, desapropriada a operação disso aí, basta vontade política. (Palmas).

Elisabete Gándara: Obrigada Henrique, é uma colocação muito importante, mas vamos voltar para o patrimônio, para o Dois de Julho.

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Igor Souza: Eu levantei a questão de ser imprescindível uma política de educação para a Soledade, referente ao itinerário do Dois de Julho. Temos uma grande dificuldade de trabalhar com as pastas de Educação; inclusive, foram todos convidados a estar aqui hoje, do âmbito estadual e municipal; inclusive, com as Câmaras Temáticas do Legislativo e da Câmara de Salvador, temos dificuldade de tra-balhar com municípios, nessa parte específica; eles não dão conta nem das ciências clássicas, que por obrigação têm que dar – colocaram Filosofia e Sociologia e não têm professores pra dar essas pastas. E nós queremos, de certa forma, com apoio da educação patrimonial, que os professores não têm essa expertise; eu imagino que, nesse momento, e conversando com vários especialistas em patrimônio, há um consenso de que a formação fora do ambiente escolar, e aí não é abrindo mão da educação formal, mas num ambiente, como por exemplo, academias da Polícia Militar, os seminários, como o João Maria Vianey, na Federação. Se nós formos ver no IPHAN e o IPAC, é evidente que grande parte dos bens tombados pertencem ao clero, são da Igreja; por sua vez, é um público alvo, o clero baiano, o clero brasileiro é um público alvo como parceiros na preservação do patrimônio.

Então, é imprescindível que nós tenhamos projetos muito pragmáticos voltados pra esse público alvo, não abrindo mão da educação formal. Porque os gestores estão sendo educados a posteriori, porque tiveram uma base que foi falha. Se nós não temos uma legislação específica para a educação patrimonial, nós temos educação ambiental, e educação patrimonial é educação ambiental, patrimônio cultural socialmente construído. Então, nós temos que ser pragmáticos; temos poucos recursos huma-nos, temos recursos financeiros limitados, temos dificuldades em interlocução com alguns municípios e algumas pastas, mas não é por isso que nós não vamos trabalhar. Temos, então, que focar para termos resultados mais rápidos; precisamos de resultados rápidos.

Ana Maria Siman: Boa tarde, eu sou Ana Maria Siman, trabalhadora do Turismo. Vou apenas fazer um comentário ratificando a questão da educação. Outro dia, eu fui chamada de utópica por colocar que a educação será sempre fundamental pra que possamos elencar e chegar a um objetivo. Bom, trabalhando com um grupo de cerca de cinquenta pessoas, brasileiros – o que não é habitual, eu tra-balho mais com estrangeiros –, próximo ao Dois de Julho, fiz o comentário histórico daquela data, e as pessoas se chocaram e verbalizaram pra mim: “é assim que vocês aprendem história na Bahia”? “Dois de Julho, Independência?”; “A Independência do Brasil é Sete de Setembro!” Bom, eu tornei a explicar a questão, inclusive, falando da luta armada acontecida na Bahia e eles estavam possessos comigo, porque eles não aprenderam; pelo menos, aquele grupo que estava naquele ônibus, a respeito do Dois de Julho. Então, o meu questionamento seria: não está faltando ao baiano, conhecimento e acolhi-mento dessa data? Eu participei, este ano, do Dois de Julho e vi o esvaziamento, vi que as casas não estavam decoradas como antigamente etc. Então, não seria necessário que nós, baianos, fizéssemos um movimento para esclarecer ao Brasil a repeito do Dois de Julho, sob o ponto de vista educacional? Uma coisa mais ampla e não somente localizada na Bahia, porque, de repente, no próprio Brasil, faz-se uma divisão da História do Brasil e da Bahia e eu não consigo entender, haja vista que, a concretização da Independência se fez no Dois de Julho, na Bahia. Obrigada.

Maísa barboza: Sou Maísa Barboza, trabalho com o Igor, na ASTEC do IPAC. Somente queria dar um adendo à palavra de Mariely Santana, em relação a essa divisão que existe, não somente em rela-ção aos grupos; também temos que perceber que as manifestações populares ou festas populares são de grupos. Eu não sou uma pessoa tão idosa, eu tenho vinte e sete anos hoje, e eu nasci e cresci numa comunidade que é considerada periferia de Salvador, na Chapada do Rio Vermelho. Eu estudei em uma escolinha de bairro, que era uma escola privada, mas era de bairro, escolinha pequena; e eu estava comentando que até a 7ª série do ensino fundamental, para entrarmos na escola, a gente se reunia na frente do colégio, cantava o Hino Nacional e o Hino ao Dois de Julho, para depois assistirmos aula. Para comemorarmos o Dois de Julho, nós nos reuníamos na frente do colégio, hasteávamos a bandeira, cantávamos o Hino, e no Sete de Setembro também. Só que eu acho que o problema da educação, pelo menos naquela época, é o que eu vejo em alguns livros ainda hoje, é que muitos dos nossos livros didáticos vêm da Região Sudeste; quando eu pego um livro didático, geralmente ele tem uma abran-

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gência enorme em relação ao Brasil, mas trazendo pontos dos estados do Sul. Eu senti muita falta, quando eu fui pra Universidade, eu fui perceber que a educação que eu tive foi um pouco falha, talvez nem tanto pela questão da escola onde eu estudei, mas sim pelos livros nos quais nós nos baseávamos. Eu fui pegando alguns livros daquela época, que hoje eu tenho alguns guardados, e percebi que os meus livros de História tinham capítulos imensos sobre o Sete de Setembro e apenas um parágrafo sobre o Dois de Julho; como igualmente, eu tinha capítulos imensos sobre a Inconfidência Mineira e um parágrafo ou simplesmente nenhuma citação sobre a Conjuração Baiana. Então, quando eu fui para a faculdade e foi quando eu tive essa abertura, eu sempre tive vários questionamentos, até por isso eu fui fazer História. Então, é isso que eu sinto falta, a gente tem que, sim, ensinar aos nossos alunos; eu também já fui professora, e fui professora de Filosofia e Sociologia, e ouvi muito “pra que servem essas disciplinas?” A gente tem que passar para os nossos alunos a nossa história, independente do que está escrito no livro. Hoje, estudei muito a Conjuração Baiana, foi um dos meus temas de faculdade, e fico muito triste quando vejo que a única representação que a gente tem é uma Praça da Piedade acabada, com bustos, que eu passei lá e não tinha nenhum nome, e as pessoas mal sabem o que foi. Então, a gente precisa, como Igor falou, chamar; sim, pessoas de educação, tanto da área municipal, quanto da área estadual, porque eu acho que para discutir patrimônio, temos que chamar representatividades da cultura, da educação, da segurança pública, em âmbito estadual e municipal. Então, é isso. (Palmas)

Henrique barreiros: Durante a fala de Lula, ele estava, me pareceu, com certa dificuldade de se expressar, eu sei que vocês todos que estão trabalhando dentro do Estado, ficam com certa dificuldade de falar sobre as coisas que vocês acham certas, sem comprometer, digamos assim, a sua condição de empregado de um governo que está atuando de uma certa forma, dando respaldo a iniciativas de empresários, como o próprio Ordep colocou, e isso é uma posição incômoda. Mas eu sei que o IPAC, eu sei que o IPHAN etc., são cheios de profissionais de alto valor e de alta capacidade de produção; existe o trabalho do ERCAS. Eu vou fugir um pouquinho do imaterial, mas me perdoem, existe o trabalho do ERCAS, que precisa resultar em medida prática. Vocês já devem estar acostumados a ver tombar e deixar tombado lá. E essa coisa do tombamento está no ideário do povo, do público, como uma coisa ruim; é isso, de tombar e não restaurar, tombar e não chegar a um fim da coisa; só que isso deve ser feito de acordo com o planejamento geral. Você tem uma coisa de centro antigo que engloba não só o Centro Histórico, sai daquele paradigma de um Pelourinho e vai para um paradigma muito mais amplo, que envolve toda uma área a ser preservada, digo em termos humanos. Então, que isso seja feito com base em algum planejamento, o plano urbanístico do centro antigo.

Elisabete Gándara: Vou passar pra mesa dar as palavras finais.

Lula Cardoso: Bem, a palavra final. É difícil sintetizar. Foi tanta informação, tantas questões que se abrem. Eu queria só aproveitar a deixa e mostrar uma última imagem que, durante a minha primeira fala, eu não pude mostrar, para justificar o porquê da adoção de algumas medidas de preservação do tipo aplicação do instituto de registro de lugar. Lapinha; isso aí é a obra de reurbanização do Largo da Lapinha; comparem com aquela primeira obra de urbanização do largo e vejam qual a mais adequada para a manutenção da festa, a festa no sentido das celebrações, ou seja, obviamente, os ternos de Reis, principalmente, no que restam deles hoje em dia – perdem-se totalmente nessa ambiência aí poluída por todos esses elementos. Óbvio que eu não acredito que apenas essas medidas legais ve-nham assegurar a preservação, enfim, de tudo que a gente acha que deva, mas é fundamental que elas existam e que possibilitem que o Estado, como representante de corporações, mas como representante da sociedade, cumprindo o papel que lhe deve, possa efetivamente mediar, intervir, participar desse processo de implementação de uma política cultural. Meu receio é que, hoje, isto também vá para as corporações. A gente vê, hoje, a cidade, o planejamento da cidade sendo atributo, digamos assim, das corporações; o projeto ”Salvador, Capital Mundial” mostrava claramente isso. Enfim, que se possam

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assegurar que as instâncias representantes do Poder Público possam atuar no sentido de assegurar essa preservação. Óbvio que essa unanimidade não existe. A agente vive numa cidade plural, numa cidade formada por grupos diferentes, com interesses, com raízes diferentes, mas que essa identidade venha a ser preservada, que isso não venha a ser homogeneizado.

Mariely Santana: Acho que muita coisa foi colocada aqui, que vai dar para poder, pelo menos, pensarmos mais um pouco sobre essas questões. Eu acho fundamental nesses encontros parabenizar mais uma vez o IPAC por essa iniciativa, a possibilidade dessa discussão chegar mais próxima de outras pessoas que não só os técnicos; das pessoas da sociedade poderem também pensar um pouco sobre uma série de pontos que são levantados nessas discussões, que são pontuados e que, muitas vezes, não chegam de uma maneira mais fácil nesse interlocutor. E eu queria aproveitar exatamente para concluir essa fala aqui, hoje, aproveitando um pouco esse gancho da imagem que o Lula colocou aí no final, de quando nós estávamos discutindo a relação do suporte e da cidade em relação às manifesta-ções. Aí, não sei se vocês se lembram da fase, uma foto antiga que Lula apresentou também no início, você tinha o Largo da Lapinha com um promontório que permanecia quase como um palco, ou seja, a valorização da manifestação, o espaço abraçando; e nessa imagem, a gente vê que a festa não é essa confusão que está aí nesse espaço, nesse suporte físico; a festa agora foi levada a um plano mais baixo do que o próprio plano da praça.

Então, essa possibilidade que se tem dentro da estrutura, essa possibilidade de se trabalhar, e aí a questão, muitas vezes, de como os arquitetos, como nós podemos trabalhar os materiais, a própria configuração do espaço, para não só a questão da festa. A gente vê isso em todos os espaços, a gente anda pelo Shopping Iguatemi, a gente percebe claramente cada piso, como é que se circula, quem vai a cada piso, até os sanitários do próprio Shopping Iguatemi, especificamente, você tem uma relação des-sa; de que a gente possa pensar bem e olhar essa cidade com esses marcos. Como é que a gente pode valorizar essa cidade, o que é que a gente vai olhar dentro, não só desse aspecto histórico, artístico do patrimônio, mas também, da vivência. E outra coisa que eu acho importantíssimo, é a gente deixar de se preocupar com esse patrimônio para o outro, visto somente para o outro; que nós possamos também usufruir desse patrimônio, porque ele é essencialmente nosso. (Palmas)

Ordep Serra: Bem gente, obrigado pela conversa toda. Vocês perdoem aí os elogios que fiz, não só ao Prefeito e outros, mas eu queria chamar a atenção para uma coisa muito importante, um problema sério para quem faz hoje, quem se empenha em conservação cultural, preservação de patrimônio de qualquer tipo que seja. É o fato de que nós termos uma cidade e um estado cada vez mais distantes, em relação à cidadania; nós não temos o Conselho Municipal da Cidade, os Conselhos Estaduais tam-bém têm sido limitados, tolhidos, barrados; não é por acaso que a devastação ambiental de Salvador se estendeu pelo estado todo; um Conselho de Direitos Humanos está desativado até hoje; então, quem está no Conselho de Cultura tem a responsabilidade, acho eu, de zelar pela participação cidadã, no Estado e no Município. Então, eu vou terminar com essa cobrança aos Senhores Conselheiros. Ou nós vamos fazer democracia ou vamos renunciar a ela; se é para fazer democracia, não pode ser mais só democracia representativa, tem que ter participação da sociedade civil organizada – sem isso não se faz nada, nada! Então, eu acredito que os Senhores Conselheiros devem se empenhar em revalorizar todos os Conselhos, e o Conselho de Cultura está no meio de todos eles, ele pode mobilizar todos. Então, é preciso dar força para o CEPRAM, do Conselho Estadual da Cidade, o Conselho de Direitos Humanos. É preciso ouvir a sociedade civil organizada, que não é ouvida; ela não tem participação na gestão e quando ela não participa da gestão, nada funciona, a verdade é essa. Preservação para se fazer desse jeito, numa sociedade como a nossa, onde o planejamento urbano entrou em colapso, para que mais barbárie do que isso não seja possível.

Eu pergunto aqui, onde há grandes especialistas no tema preservação, é possível preservação, política de preservação sem planejamento urbano? Pelo amor de Deus, alguém vai afirmar uma coi-sa dessas? Então, temos que ter essas linhas de combate, temos que lutar por essa participação da sociedade civil no planejamento, e fazer ter planejamento; sem planejamento urbano é impossível; a

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PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIALDO CORTEJO DO DOIS DE JULHO

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Prefeitura não faz, o Estado também não faz, isto nos é dito pelo próprio governador. Então, vamos sair desse estado de barbárie senão some tudo, some o Dois de Julho e some a liberdade que o Dois de Julho representa. É isso. (Palmas)

Elisabete Gándara: Eu queria agradecer a presença dos professores e a presença de todos vocês. Então, até o próximo “Conversando”. (Palmas)

Caboclo vestido como guerreiro, portando lança que esmaga a serpente sobre seus pés, símbolo da vitória.