MANUEL JOSÉ LOPES
OS UTENTES E OS ENFERMEIROS: CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS DE ABEL SALAZAR UNIVERSIDADE DO PORTO
PORTO, 2005
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
MANUEL JOSÉ LOPES
OS UTENTES E OS ENFERMEIROS: CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO
Dissertação de Candidatura ao grau de Doutor em Ciências de Enfermagem, submetida ao Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar Orientadora - Professora Doutora Marta Lima Basto Co-orientadora - Professora Doutora Zaida Azeredo
Dissertação de Doutoramento
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o VA
( )s ulciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
Construção de uma relação
0 olhar, O sorriso,
A escuta, As palavras,
As mãos, Os gestos.
O olhar atento, perscruta, indaga, penetra, esquadrinha, inquire, ...
O olhar sereno, é terno, apaziguador, compassivo,...
O sorriso, acolhe, acalma, alegra, ... Complementa o olhar. Converte-se em referência no tumulto do sofrimento. Metamorfoseia-se em esperança no redemoinho do desespero.
A escuta amplia o espaço e o tempo. Dá lugar ao outro. Valoriza o indizível.
As palavras, todas as palavras, tantas palavras ... Indagam o sofrimento,
a dor. Expressam a alegria,
o prazer do reencontro improvável. Explicam o inexplicável,
o indecifrável.
As mãos são de fada, de rigor, de precisão ...
Os gestos são de uma serena harmonia. Quase perfeita.
Os gestos são de partilha, de humana comunhão.
O todo é um concerto de jazz numa noite de verão. (Manuel Lopes, 2005)
Dissertação de Doutoramento
Os utenlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
À Carmo e ao David,
presenças constantes, indefectíveis fãs,
porto seguro das minhas angústias.
Em memória de meus pais,
marcas indeléveis em mim.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
AGRADECIMENTOS
Às Professoras Doutoras Marta Lima Basto e Zaida Azeredo, faróis per
manentes neste meu percurso.
À Doutora Rosemary Crow pelas suas sábias palavras e perspicaz ajuda
e incentivo.
Aos colegas da Academia Europeia de Ciências de Enfermagem, pelos
seus comentários e pelo rasgar de horizontes.
Aos colegas e amigos da UI&DE, companheiros deste percurso, pela
desinteressada e honesta partilha de ideias.
Aos meus amigos e colegas, Professores Gabriela Calado e João Mendes
pelo apoio e incentivo e por partilharem as minhas angústias.
Aos Mestres Fátima Marques, Dulce Cabral, Céu Pinto e João Mendes,
pela sua colaboração no tratamento dos dados.
Á enfermeira Anjos Bento, pelas oportunidades que me proporcionou e
pela arte, humanismo e profissionalismo que, graciosamente, distribui por
todos os que a rodeiam.
Às enfermeiras que participaram neste estudo, pela demonstração diária
e sistemática da sublime arte de cuidar.
A todos os restantes profissionais do serviço onde decorreu o estudo,
co-participantes na arte de cuidar dos outros.
Aos doentes e respectivos familiares os quais, apesar do seu sofrimento,
aceitaram partilhar comigo alguns dos seus sentimentos, experiências e
esperanças.
A todos aqueles que, de uma forma ou outra, contribuíram para a reali
zação deste trabalho ou me ajudaram, incentivando-me, ao longo deste per
curso.
Dissertação de Doutoramento = 5
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
RESUMO
Considerando, as características da vivência do diagnóstico de cancro e do
processo de quimioterapia; que os enfermeiros são os profissionais que mais
perto e mais tempo estão com estes doentes durante aquele processo,' que a
enfermagem enquanto ciência humana prática (Strasser, 1985; Carper, 1978),
está em (re)construção constante a partir do modo criativo como os seus pro
fissionais vão respondendo às solicitações sempre novas de uma realidade
complexa, (e.g., Benner, 2001; Chinn, & Kramer 1999; Schõn, 1998); e o facto
de as teorizações acerca da intervenção relacional dos enfermeiros (e.g.,
Peplau, 1990), não responderem à especificidade da situação atrás apresenta
da, entendi que tal justificava o desenvolvimento de um estudo que permitis
se perceber, qual é a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes
oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
Face à natureza do problema, optei por uma abordagem de natureza qua
litativa e indutiva - grounded theory. As técnicas de colheita de dados usadas
foram a entrevista narrativa a todas as enfermeiras (5) e a 10 doentes e res
pectivos familiares; o focus-grupo ao grupo das enfermeiras; a gravação das
entrevistas de admissão efectuadas pelas enfermeiras; e a observação durante
60 dias, ao longo de cinco meses. Os dados foram analisados de acordo com a
metodologia da análise comparativa constante (grounded theory), daí resul
tando uma teoria de médio alcance constituída por dois componentes, com
plementares e interrelacionadas: a natureza da relação e o processo de rela
ção. O primeiro compreende o "Processo de avaliação diagnostica" e o "Proces
so de intervenção terapêutica de enfermagem". O segundo (i.e., o processo de
relação), compreende três fases sequenciais: Princípio da relação, Corpo da
relação e Fim da relação. O primeiro, tem o seu momento por excelência
durante a entrevista de admissão, onde a enfermeira desenvolve predomi
nantemente o "Processo de avaliação diagnostica". O Corpo da relação é
constituído pelo essencial do "Processo de intervenção terapêutica de enfer
magem". O Fim da relação é a fase de fronteira inicial mais indefinida, mas
é a fase de fronteira final mais definida, correspondendo esta ao fim da rela
ção, imposto pelo fim do tratamento ou pela morte do doente.
Dissertação de Doutoramento
Os ulcntcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
ABSTRACT
Taking into consideration the characteristics of the way the cancer diag
nosis and all the chemotherapy processes are faced, that nurses are the pro
fessionals that accompany closer and longer the patients during the whole
process, tha t nursing as practical human science (Strasser, 1985; Carper,
1978) is under a constant (re)building process due to the creative way the
nursing professionals answer to the new challenges of this complex reality
(e.g., Benner, 2001; Chinn & Kramer, 1999; Schõn, 1998); and the fact that
theorizations regarding the relational nurses intervention (e.g., Peplau, 1990)
do not respond to the specificity of the situation presented, allowed me to un
derstand the importance to develop a survey to allow the comprehension of
which is the nature of the relationship between the nurses and the cancer
patients under chemotherapy in a day hospital.
Due to the nature of the problem, I opted by a qualitative and inductive
analysis - grounded theory. The data were obtained through narrative inter
views to all the nurses (5) and to 10 patients and their families; the focus-
group to the group of the nurses! the recording of the admission interviews
made by the nurses; and the observation during 60 days, throughout five
months. The data were analysed according to the constant comparative
method of qualitative analysis {grounded theory), resulting in a middle range
theory constituted by two complementary and interconnected components^
the nature and the process of the relationship. The first component comprises
the "Diagnosis evaluation process" and the "Nursing therapeutic intervention
process". The second (i.e., the relationship process), comprises three sequen
tial phases: Relationship beginning, Relationship development and the Rela
tionship conclusion. The first is more important during the admission inter
view, when the nurse is mainly working in the "Diagnosis evaluation proc
ess". The Relationship development is predominantly constituted by the
"Nursing therapeutic intervention process". The Relationship end is the
phase with the more undefined beginning border, however, it is the one with
the final border better defined, corresponding to the end of the relationship
caused by the end of the treatment or the patient's death.
= = = = = = = - _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ „ = = = _ „ „ „ „ = = = = _ = _ _ _ „ = „ „ = = „ „ _ _ _ _ 6
Dissertação de Doutoramento
Os ulcntes c os enfermeiros: Construção de uma relação
RÉSUMÉ
En considérant, les caractéristiques de l'existence du diagnostique du cancer
et du procès de chimiothérapie; que les infirmiers sont les professionnels qui de
plus près et le plus de temps sont avec ces malades pendant ce procès; que le
métier d'infirmier entant que science humaine pratique (Strasser, 1985; Carper,
1978), est en (re)construction constante à partir du mode créatif comme leurs
professionnels vont répondre aux sollicitations toujours nouvelles d'une réahté
complexe, (e.g., Benner, 2001; Chinn, & Kramer 1999; Schõn, 1998); et le fait des
théorisations concernant l'intervention relationnelle des infirmiers (e.g., Peplau,
1990), n'ont pas répondu à la spécifié de la situation derrière présentée, j'ai en
tendu que cela justifiait le développement d'une étude qui permettait de com
prendre, quelle est la nature de la relation entre les infirmiers et les malades
oncologiques soumis à la chimiothérapie dans un hôpital de jour.
Face à la nature du problème, j 'ai opté par un abordage de nature quali
tative et inductive - grounded theory. Les techniques de récolte des données
usées ont été à l'entrevue narrative à toutes les infirmières (5) et à 10 mala
des et aux familles respectives; le focus-groupe au groupe des infirmières;
l 'enregistrement des entrevues d'admission effectuées par les infirmières! et
l'observation pendant 60 jours, au long de cinq mois. Les données ont été
analysées en accord à la méthodologie de l'analyse comparative constante
{grounded theory), à partir de là résultant une théorie de moyenne portée
constituée par deux composantes, complémentaires et interrelationées-' la
nature de la relation et le procès de relation. Le premier comprend le "Pro
cès d'évaluation diagnostique" et le "Procès d'intervention thérapeutique du
métier d'infirmier". Le deuxième (i.e., le procès de relation), comprend trois
phases séquentiels^ Principe de la relation, Corps de la relation et Fin de la
relation. Le premier, a son moment par excellence pendant l'entrevue
d'admission, où l'infirmière développe majoritairement le "Procès
d'évaluation diagnostique". Le corps de la relation est constitué par
l'essentiel du "Procès d'intervention thérapeutique du métier d'infirmier".
La Fin de la relation est la phase de frontière initiale plus indéfinie, mais
c'est la phase de frontière finale plus définie, correspondant celle-ci à la fin
de la relation, imposée par la fin du traitement ou par le décès du malade.
_ - - _ - - _ - - - - - - - - - — - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ y Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
SUMÁRIO
0 - INTRODUÇÃO 14
I PARTE: REFERÊNCIAS CONCEPTUAIS 26
1 - JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO 28
1.1-RAZÕES PESSOAIS/PROFISSIONAIS 28
1.2 - RAZÕES CLÍNICAS 32
2 - ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL 48
2.1 - ENQUADRAMENTO EPISTEMOLÓGICO 48
2.1.1 — Critérios de desenvolvimento do conhecimento : revolução,
evolução ou integração 48
2.1.2 - Critérios de percepção: da "visão recebida" à "visão percebida". 55
2.1.3 - Critérios de verdade: da correspondência à verdade múltipla...58
2.1.3.1 -A verdade múltipla na enfermagem 63
2.1 .4-Resumindo 64
2.2 - A ENFERMAGEM ENQUANTO DISCIPLINA/PROFISSÃO 65
2.2.1 — Da natureza da enfermagem: padrões de conhecimento 66
2.2.1.1 — Saber Empírico ou a ciência de enfermagem 68
2.2.1.2 — Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem 69
2.2.1.3 - Saber Pessoal na enfermagem 70
2.2.1.4 - Saber Estético ou a arte na enfermagem 70
2.2.1.5 — Processos para o desenvolvimento do conhecimento em
enfermagem 71
2.2.2 - Resumindo 79
2.3 - ESBOÇO DA ESTRUTURA ESSENCIAL DA DISCIPLINA DE
ENFERMAGEM 79
2 .3 .1-Resumindo 91
3 - PROBLEMÁTICA E QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO 94
II PARTE: INVESTIGAÇÃO REALIZADA 98
_ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = _ ™ . „ = = = = _ „ „ = = = = = = = = „ _ _ _ „ „ = = _ = = „ = g
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
4 - OPÇÕES METODOLÓGICAS 100
4.1 - FASE DO DESENVOLVIMENTO DO DESENHO DE
INVESTIGAÇÃO 112
4.2 - FASE DE RECOLHA DE DADOS 115
4 . 2 . 1 - A entrevista 116
4.2.2 - A observação 122
4.2.3 - Critérios de rigor na recolha de dados 131
4.3 - FASE DE ORDENAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS 133
4.3.1 - Critérios de rigor na ordenação e análise dos dados 141
5 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO DOENTE NO
CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE
HOSPITAL DE DIA 144
5 . 1 - 0 CONTEXTO DA INTERACÇÃO: O ESPAÇO FÍSICO 145
5.2 - O CONTEXTO DA INTERACÇÃO: A COMPLEXIDADE DO
CONTEXTO RELACIONAL 149
5.3 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O
"PROCESSO DE AVALIAÇÃO DIAGNOSTICA" 157
5.3.1 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas
de admissão 157
5.3.2 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir da observação 165
4.3.3 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas
às enfermeiras 173
5.3.4 - O "Processo de Avaliação Diagnostica": Perspectiva global 180
5.4 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O
"PROCESSO DE INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA DE ENFERMAGEM" 191
5.4.1 — 0 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a
partir das entrevistas de admissão 192
5.4.1.1-A "gestão de sentimentos" 192
5.4.1.2-A "gestão de informação" 206
5.4.2 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a
partir dos dados da observação 213
9 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = „ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Dissertação de Doutoramento
Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de unia relação
5.4.3 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Outros
olhares 241
5.4.3.1 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem":
Perspectiva das enfermeiras 242
5.4.3.2 Consciência do processo relacional das enfermeiras 253
5.3.3.3 "Relação com a enfermeira":Perspectiva dos doentes 259
5.4.3.4 — Necessidades expressas pelos doentes: Perspectivas cruzadas270 5.4.4 O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem":
Perspectiva global 285
6 0 PROCESSO DE RELAÇÃO ENFERMEIRODOENTE NO
CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE
HOSPITAL DE DIA 314
6.1 O INÍCIO DA RELAÇÃO 315
6.2 O CORPO DA RELAÇÃO 327
6 .3 O FIM DA RELAÇÃO 330
7 TEORIA DE MÉDIO ALCANCE EXPLICATIVA DA RELAÇÃO
ENFERMEIRODOENTE NO CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE
QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE HOSPITAL DE DIA 336
8CONCLUSÃO 348
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 358
ANEXOS 382
ANEXO I ■ GUIÃO DE ENTREVISTA ÀS ENFERMEIRAS 384
ANEXO II ■ GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E
FAMILIARES 385
ANEXO III GUIÃO DE OBSERVAÇÃO 387
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ÍNDICE DE QUADROS
Quadro 1 - Comparação entre os três processos de desenvolvimento de uma
disciplina:Revolução, Evolução e Integração 54
Quadro 2 - Comparação da visão recebida com a visão percebida das
ciências 58
Quadro 3 - Algumas características dos critérios de verdade de acordo com a
correspondência, coerência epragmatismo 61
Quadro 4 - O Processo de construção de uma teoria fundamentada 109
Quadro 5 - Exemplos de extractos de verbatins com o respectivo memo e
nota 136
Quadro 6 - Exemplo do suporte de análise 137
ÍNDICE DE DIAGRAMAS
Diagrama 1 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com
base nas entrevistas de admissão 158
Diagrama 2 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com
base na observação 166
Diagrama 3 - Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com
base nas entrevistas às enfermeiras 174
Diagrama 4 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" -
Gestão de Sentimentos (entrevistas de admissão) 194
Diagrama 5 - "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" — Gestão da
informação (entrevistas de admissão) 207
Diagrama 6 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —
Intervenção sobre o doente/família (dados da observação). 214
Diagrama 7 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —
Intervenção na interface doente/organização e no grupo de doentes (dados da
observação) 233
n . _ _ » _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Diagrama 8 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —
Perspectiva das enfermeiras 242
Diagrama 9 - "Consciência do processo relacional" - Perspectiva das
enfermeiras 254
Diagrama 10 - "Relação com a Enfermeira"' — Perspectiva dos doentes 261
Diagrama 11-^4 "Vivência do Processo de Doença". 271
Diagrama 12 - "Técnicas de Fuga" usadas pelos doentes durante a
entrevista de admissão 277
Diagrama 13 - "Técnicas de comunicação" usadas pelas enfermeiras durante
a entrevista de admissão 278
Diagrama 14 - "Expressão de Sentimentos"pelos doentes e familiares
durante a entrevista de admissão 279
Diagrama 15 - "Solicitações" dos doentes e familiares durante a entrevista
de admissão 280
Diagrama 16 - Início de interacção por iniciativa dos doentes e/ou familiares
na sala de quimioterapia 282
Diagrama 17 -Actividades terapêuticas na enfermagem 287
Diagrama 18 - Processo de desenvolvimento de uma crise - o efeito dos
factores de equilíbrio 296
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 -Padrões de conhecimento em enfermagem 73
Figura 2 -A disciplina de enfermagem em todas as suas vertentes 80
Figura 3 - Tipologia para o conhecimento em enfermagem 85
Figura 4 -Ligações conceptuais entre variáveis na interacção
enfermeiro-cliente 87
Figura 5 - Os conceitos major do domínio de enfermagem e as suas inter-
relações 89
Figura 6 -Ligações entre níveis de desenvolvimento teórico 111
Figura 7 -Fases do desenvolvimento da ciência de enfermagem 111
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 8 - Croquis do piso onde funciona o hospital de dia — unidade de
quimioterapia do Hospital do Espírito Santo 148
Figura 9 - ^ 4 complexidade do contexto relacional da enfermeira 153
Figura 10 - Perspectivas percebidas no "Processo de Avaliação Diagnostica''. 182
Figura 11-0 "Processo de Avaliação Diagnostica"- evolução considerando
as dimensões- temporal e conhecimento do doente 183
Figura 1 2 - 0 "processo de avaliação diagnostica"- Perspectiva global.... 184
Figura 13-0 modelo do processo de enfermagem baseado na teoria geral
dos sistemas 185
Figura 14 - "Processo de Avaliação Diagnostica" versus "Processo de
Intervenção Terapêutica de Enfermagem - evolução considerando a
dimensão temporal. 192
Figura 15 — Croqui do posicionamento da enfermeira e do doente durante a
entrevista de admissão 196
Figura 16 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"-
Perspectiva da complexidade global 212
Figura 17 - Carácter m ultifocal da actuação da enfermeira 288
Figura 18 - Natureza complexa e dinâmica do "Processo de Intervenção
Terapêutica de Enfermagem". 290
Figura 19 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial
enfermeiro-doente — Início da relação 316
Figura 20 - O início da relação enfermeiro-doente no contexto de um serviço
de quimioterapia em regime de hospital de dia 317
Figura 21 — Categorias de resposta em função da experiência e do foco.... 319
Figura 22 — Perspectiva geral do processo de relação preferencial
enfermeiro-doente - Início e Corpo da Relação 328
Figura 23 — Componentes fundamentais da teoria de médio alcance relativa
à relação enfermeiro-doente no contexto onde decorreu o estudo 336
Figura 24 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial
enfermeiro-doente 341
13 ============================================ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
0 - INTRODUÇÃO
O meu interesse pela relação como forma de intervenção terapêutica, em
prol da ajuda ao outro, existe desde há muito tempo. Este interesse radica
em convicções pessoais que, paulatinamente, fui estruturando, não só como
resultado de simples experiências humanas, mas também das profissionais.
Enquanto ser humano, sei o que significa sentir a presença de outrem em
momentos de grande perturbação. Esse outrem pode até ser um estranho,
contudo, se a sua presença é sentida como autêntica, os seus efeitos são
notáveis. Ainda nesta condição e em qualquer dos múltiplos papéis que pos
sa assumir, reconheço que o outro me é essencial. Aliás, o perfil dos meus
múltiplos papéis é, ele próprio, definido no contexto da interacção com o
outro. Mesmo aquilo que julgamos como intrinsecamente pessoal e intrans-
missível - as nossas ideias - não existiriam sem o outro. Em boa verdade,
nós pensamos com palavras e o acesso à linguagem é feito com os outros.
A presença do outro assume uma importância tal que, mesmo quando
estamos sozinhos, os outros estão connosco. Mesmo depois de mortos conti
nuam connosco. Ou seja, os outros constituenvnos, tal como nós os consti
tuímos, principalmente aqueles para quem nós somos significativos.
A presença do outro é-nos tão essencial que, em determinados momentos,
"desdobramo-nos" e falamos connosco próprios como se fossemos um outro.
Trocamos ideias, discordamos, discutimos, zangamo-nos, solidariamente en
gendramos estratégias, rimo-nos ... e os outros riem-se de nós quando nos
apanham nesta figura.
No contexto profissional, o outro que está perante nós é, neste caso, fre
quentemente, um doente. Nós perante este, somos o outro que supostamente
está investido do poder e do saber de ditar o seu futuro. Será que também
neste caso poderemos equacionar o encontro entre dois seres humanos em
moldes idênticos aos que acabei de referir? Para tentar responder a esta
questão vou recuar um pouco até ao início da minha carreira profissional.
Dissertação de Doutoramento
Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação
O acesso ao papel de profissional é marcado por um conjunto de rituais
mais ou menos institucionalizados, mas marcantes, ainda que indelevelmen
te. Assim, lembro-me da primeira vez que vesti uma bata de profissional de
saúde. Recordo agora principalmente o sentimento : um misto de orgulho e
de responsabilidade. Contudo, naquela altura era essencialmente um senti
mento indefinido, ao qual ia tendo acesso através de pequenos indicadores
vindos dos outros. Certa vez, aluno já com alguma veterania, fui acompa
nhado até ao meu local de estágio por uma colega mais nova. Antes de ini
ciar o período de estágio fui-me "fardar". Ao reaparecer, agora (in)vestido de
profissional, a colega assinalou com estupefacção a metamorfose. Dizia que
parecia um profissional, não só pela farda, mas principalmente pela expres
são. Apesar disto, se então me perguntassem o que era um profissional de
enfermagem, não saberia responder.
As respostas foram-me sendo dadas pelos outros. Basta estar atento e
escutá-los. Basta estarmos atentos e escutarmo-nos. Há muitos anos, ainda
aluno, nos velhinhos Hospitais da Universidade de Coimbra, no contexto de
uma enfermaria surrealista, logo pela manhã, dizem-me que ficaria respon
sável por um doente que tinha entrado durante a noite. Acrescentam depois
a parte aterrorizadora da questão^ o doente estava em coma e t inha um
prognóstico muito reservado, podendo morrer a qualquer momento. Tive um
acesso de sentimentos indefinidos, que se agudizaram dramaticamente
quando deparei com o doente. Era uma pessoa que eu sabia não ser idosa,
mas que se apresentava muito maltratada pela vida. Era também um corpo
abandonado de si próprio, num turbilhão de lençóis, sujos e malcheirosos. O
que fazer? Optei por me agarrar aquilo que me t inham dado como seguro. E
ao longo de toda a manhã, lavei, mudei a roupa da cama, posicionei, dei a
medicação prescrita ... subitamente ao fim da manhã, o doente morreu,
silenciosamente, como sempre o t inha (des)conhecido. Quando a família che
gou e iniciou a expressão dos seus sentimentos perante o sucedido, eu não
tinha nada para lhes dizer. Mas curiosamente, também sentia alguma dor.
Que dor seria aquela se eu nem conhecia o doente, nem a família?
15 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção tic uma relação
As certezas e as explicações médicas da inevitabilidade da sua morte pare
ciam não atenuar a dor da perda daquelas pessoas. Essa era incontornável. E
eu, simples aprendiz de feiticeiro, o que é que podia fazer? 0 que é que pensa
va e sentia? Permaneci ali, simplesmente, nem sei bem porquê e apesar de
sentir bastante incómodo. Tentando à posteriori, perceber as razões de tal
incómodo, pareceu-me que resultavam de uma certa sensação de ao longo da
manhã me ter refugiado nas tarefas que tinha que executar, ou seja, de ter
andado toda a manhã a fugir de mim mesmo e de agora me ver exposto, sem
ter aquilo a que costumamos chamar, "algo de concreto para fazer". Percebi
então que precisava de fazer alguma coisa. Mas o quê?
Só na continuidade do contacto com os doentes, fui encontrando algumas
das respostas para as minhas questões. Aprendi com eles que o que estava
em causa numa situação de doença, não é apenas, nem principalmente um
processo fisiopatológico. É, em primeira análise, uma experiência humana e
enquanto tal, pode ser ou não muito enriquecedora. Porém, esta última face
ta, à semelhança do que acontece com todas as outras experiências huma
nas, não depende só de quem a vive, mas também, de com quem a vive.
Aqui, podem assumir papel de destaque os técnicos de saúde. Foi também
através do contacto com estes, principalmente com os enfermeiros, que
aprendi o que não vinha nos livros, ou seja, que a arte da presença pode
fazer a diferença no contexto da experiência humana de doença. Percebi essa
arte em muitos colegas, mas não consegui que me explicassem como o conse
guiam. Em alguns momentos experimentei a sensação de que a minha pre
sença tinha feito a diferença na experiência de outra pessoa. Aí, precisei de
parar e reflectir, para tentar perceber o que estaria em causa.
Pareceu-me ter percebido que o que estava em causa era eu enquanto
pessoa, mas principalmente o uso que conseguia fazer do meu eu. Ou seja,
como que voltamos ao início da prosa, o que está em causa é um encontro
entre duas pessoas, sejam quais forem os papéis ou o suposto desnível de
poder entre elas, sendo que uma delas precisa de ajuda para ultrapassar
uma dificuldade, mas que em simultâneo tem muito para oferecer. Quem
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ajuda só se tem a si próprio para oferecer. O seu saber pode fazer a diferen
ça, mas apenas no contexto de uma presença honesta e solidária.
A este propósito é curiosa a forma como Heron (2001) se refere aos atri
butos essenciais de um terapeuta. Fálo de tal forma que parece que, em
simultâneo, se refere a características intrínsecas ao ser humano. Assim,
aquele autor entende que esses atributos são^
•S Sincera preocupação e aceitação do outro;
S Abertura e harmonização com a realidade experiencial do outro;
■S Uma compreensão do que a outra pessoa precisa para o seu desen
volvimento e benrestar essenciais;
•/ Uma habilidade para facilitar a realização dessas necessidades da
forma correcta e no tempo correcto;
■S E uma presença autêntica.
Segundo Heron (2001), esta combinação de preocupação, empatia, pré
consciência, facilitação e genuinidade é património da espécie humana.
Apesar de assim ser, subsistem as questões^ como fazer emergir este
património? Como pôlo eficazmente ao serviço do outro? Como profissionali
zálo?
Estas questões ganham particular acuidade no caso da enfermagem,
principalmente por duas ordens de razões: primeiro porque, é o enfermeiro a
pessoa que mais tempo passa junto do doente; segundo porque, dado o está
dio do desenvolvimento do conhecimento em enfermagem, pode esse patri
mónio nem estar claramente organizado. A conjugação destas duas razões
transforma aquelas em questões centrais. Por isso, e no contexto dos meus
papéis de docente e de prestador de cuidados, lanceime na procura de res
postas. Para o efeito, tentei percorrer três vias: a formação, com o estudo
criterioso das teorias relacionais existentes; o desenvolvimento de competên
cias relacionais, através da prestação de cuidados; a investigação e reflexão.
Através da formação percebi que, na enfermagem, a relação enquanto
instrumento terapêutico, era objecto de interesse desde há imensos anos.
Porém, foi nos finais da década de 40 do século XX, que este interesse teve
repercussões práticas assinaláveis. Foi nessa data que, nos Estados Unidos
1 7 _ _ _ . „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
da América, se verificaram duas ocorrências marcantes: o inicio de progra
mas de formação avançada para enfermeiras psiquiátricas em diversas uni
versidades e o aparecimento de publicações em que o papel relacional da
enfermeira psiquiátrica era expressamente referido e feitas tentativas de o
caracterizar (Lego, 1999). Apesar disso, esse papel aparecia ainda de modo
bastante indefinido. Havia no entanto, já alguns autores que defendiam que
esse papel incluia, t rabalhar com as emoções e o espirito do doente, bem
como com outros aspectos intangíveis e abstractos (Robinson, 1950; Render,
1950). Em simultâneo, outros defendiam que a formação avançada deveria
incluir treino de psicoterapia de modo a permitir a inclusão da enfermeira
na equipa psicoterapêutica (Bennet & Eaton, 1951).
Foi neste contexto de alguma ambiguidade e indefinição que em 1952
surge a obra de Peplau intitulada, "The interpersonal relations in nursing".
Esta obra marcou uma nova e definitiva etapa na medida em que, pela pri
meira vez, o papel relacional do enfermeiro aparecia caracterizado e definido
sem ambiguidade e numa base científica. Segundo Peplau (1990), aquele
papel consiste em ajudar o cliente a recordar e compreender totalmente o
que lhe está a acontecer, de modo a que essa experiência possa ser integrada
no contexto da sua experiência de vida. Para dar corpo a este papel o enfer
meiro deve desenvolver relações interpessoais individuais e devidamente
estruturadas através de um processo faseado. Esse processo relacional, no
entender de Peplau (1990), desenvolver-se-á em quatro fases (i.e., Orienta
ção, Identificação, Exploração e Resolução), durante as quais se tentará aju
dar o cliente a-
S observar, descrever e analisar o seu comportamento,
S formular as ligações resultantes dessa análise,
S validá-las com outros,
S testar novos comportamentos,
/ integrar estas aprendizagens num comportamento novo e mais
satisfatório e
S usar esses novos comportamentos em diferentes situações (Peplau,
1990).
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Na sequência da obra de Peplau, foram desenvolvidos diversos estudos
acerca da intervenção relacional da enfermeira em contexto psiquiátrico,
com a consequente publicação. Apesar disso, este tema não era pacífico, nem
relativamente às outras profissões de saúde, nem mesmo entre os enfermei
ros. Contudo, tal não impediu que surgissem novas estruturas conceptuais,
as quais vieram dar força a este movimento. Destas, destaco a proposta por
Orlando (1961). Segundo esta autora, a enfermeira, investida do seu papel
relacional, deve observar as necessidades e as dificuldades do doente, aju
dá-lo a expressar o significado específico do seu comportamento com o objec
tivo de melhor compreender as suas dificuldades, e ajudá-lo a explorar as
suas dificuldades no sentido de averiguar a ajuda de que precisa para as ul
trapassar (Orlando, 1961). Como se pode perceber, não existem diferenças
significativas entre esta proposta e a de Peplau. Existe, porém, uma diferen
ça assinalável: pela primeira vez se entendia que a intervenção relacional
terapêutica não era um exclusivo dos enfermeiros que trabalhavam em con
textos psiquiátricos, mas antes um instrumento útil e necessário em qual
quer contexto.
Apesar deste contributo, as teorias subsequentes, como a de Travelbee,
(1971) e Paterson & Zderad (1988) continuaram a realçar o papel relacional
em contexto psiquiátrico. O conjunto de todos estes contributos teóricos foi
agrupado por Kérouac et ai (1994) sob a designação de "escola da interac
ção". Segundo aquelas autoras, esta escola foi influenciada por teorias tais
como, a terapia centrada no cliente de Rogers (1974), a teoria sistémica de von
Bertalanffy (Moigne, 1977), a fenomenologia e o existencialismo. Os elementos
caracterizadores desta escola residem no modo como definem a pessoa, a
saúde, o ambiente, os cuidados de enfermagem e o processo de cuidados.
Assim:
•S a pessoa é definida como um sistema aberto, delimitado por fron
teiras permeáveis face ao ambiente circundante, com o qual man
tém trocas de matéria, energia e informação. Enquanto sistema,
considera-se que a pessoa é constituída por vários subsistemas,
sendo atribuída atenção especial ao psicológico»'
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
S a saúde é definida de um ponto de vista dinâmico, como a capaci
dade de ajustamento aos "stressores" do ambiente interno e exter
no e pela utilização óptima dos recursos, com o objectivo de a pes
soa aprofundar o seu potencial máximo de vidai
S o ambiente compreende o conjunto das pessoas significativas com
as quais cada um de nós interage. Pode ser definido também como
um supra-sistema com o qual existe uma troca sistemática de
matéria, energia e informação,'
S os cuidados de enfermagem são entendidos como um processo
interactivo entre uma pessoa que tem necessidade de ajuda e uma
outra capaz de lha oferecer. Este último papel é assumido pela
enfermeira que, como forma de se habilitar para ajudar a outra
pessoa, precisa de clarificar os seus próprios valores. Isso permi-
tir-lhe-á usar a sua própria pessoa de modo terapêutico e com-
prometer-se nos cuidados que presta. O fim último dos cuidados de
enfermagem é a criação de condições que permitam o desenvolvi
mento da personalidade da pessoa carenciada de ajuda,'
S o processo de cuidados desenvolve-se por fases, estas, variáveis em
função de cada um dos autores, contudo sobreponívéis. Durante
todo o processo é essencial a manutenção da integridade da pessoa
e ter em consideração que ela é capaz de reconhecer as suas neces
sidades e que tende para a actualização. A subjectividade e a
intuição passaram a ser valorizadas em todo o processo de presta
ção de cuidados (Kérouac et ai, 1994," Lopes, 1999a).
Contudo, e apesar da existência de um conjunto de teorizações especifi
camente centrada na intervenção relacional terapêutica e da proposta de as
mesmas se agruparem sob a designação de "escola da interacção", pode-se
dizer que a problemática relacional enquanto instrumento terapêutico "con
taminou" as restantes teorias de enfermagem. Efectivamente, constata-se
que paralelamente ao desenvolvimento das teorias integradas na "escola da
interacção", se desenvolviam outras, integradas em escolas com designações
diversas (e.g., "escola das necessidades", "escola dos efeitos desejados", "esco-
_ _ _ _ _ _ = = - _ _ _ _ „ _ = = _ _ _ _ _ _ _ = = = „ _ _ = = = „ _ = = _ _ „ = = = _ _ _ „ = _ _ _ _ _ _ _ „ „ _ _ _ _ _ 2 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção tie uma relação
la do ser humano unitário", "escola do cuidar"). Porém, mesmo nessas
outras, constata-se uma presença crescente dos aspectos relacionados com a
intervenção relacional terapêutica. Essa presença é particularmente eviden
te na teoria proposta por Watson (1981, 1985), mas também o é na teoria de
Orem (1987), de Parse (1992), entre outras.
Nos anos mais recentes, apareceram algumas teorizações, sobretudo
francófonas (Lazure, 1994; Chalifour, 1989), as quais, sendo especificamente
sobre a intervenção relacional terapêutica, não estão limitadas aos contextos
psiquiátricos. Estas obras têm tido uma razoável divulgação no nosso país.
Esta referência ajuda, de algum modo a caracterizar a situação em Portugal,
no que diz respeito à intervenção relacional terapêutica em enfermagem.
Durante muitos anos, esta componente dos cuidados foi deixada à boa von
tade e à "bondade" dos enfermeiros. No contexto da formação inicial, era
usada uma expressão amplamente conhecida pelos alunos, que era o "apoio
psicológico". Porém, esta expressão era vazia de conteúdo, pois à mesma não
correspondia qualquer competência concreta. No meu entender, a situação
sofreu alterações apreciáveis com o advento das especializações em enfer
magem, primeiro, e com a formação avançada (i.e., mestrados e doutoramen
tos), mais tarde. No que concerne às especializações, começou por verifr
car-se a adopção da perspectiva clássica, com a área relacional a ser apaná
gio da especialização em enfermagem psiquiátrica. Porém, mais tarde, prin
cipalmente após a autonomização pedagógica e científica das escolas, decor
rente da integração da formação em enfermagem no ensino superior (Deere-
to-Lei 480/88), diversas outras especializações integraram a intervenção
relacional terapêutica como conteúdo programático e como competência a
desenvolver. A formação avançada, inicialmente procurada principalmente
por docentes das escolas, completou este entendimento da intervenção rela
cional terapêutica, bem como a necessidade de se constituir como competên
cia na formação inicial e como indicador da qualidade dos cuidados.
Este encadeamento de alterações gerou repercussões na formação inicial,
mas também na prestação de cuidados e nas publicações de enfermagem. Na
formação inicial a oca expressão "apoio psicológico" está sendo substituída
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uin;i relação
por conteúdos programáticos específicos e por treino de atitudes. Na presta
ção de cuidados, os enfermeiros especialistas que beneficiaram de formação
nessa área, t ransportaram para o seu exercício um conjunto de atitudes
diferenciadoras que, muitas vezes, se constituem como referencial. Final
mente, as publicações são um pouco o espelho de todas estas alterações.
Efectivamente, se consultarmos as bases de dados de algumas das bibliote
cas das escolas superiores de enfermagem nacionais, constatamos uma pro
fusão assinalável de artigos, relativos aos mais diversos contextos de cuida
dos e distribuídos entre revisões bibliográficas, trabalhos de investigação e
outros (e.g., Moreira, et ai, 2003; Coelho, et ai, 2003; Costa et ai, 2003; Cou
tinho, et ai, 2002; Araújo, 2002; Santos, 2000; Queiroz, 1999; Cruz et ai
1999).
Paralelamente à formação no contexto destas realidades teóricas, entendi
desenvolver um projecto através do qual pudesse desenvolver competências
relacionais. Foi nesse sentido que, inicialmente no contexto de uma forma
ção especializada e mais tarde de modo autónomo, desenvolvi um projecto de
intervenção relacional, dirigido aos doentes oncológicos sujeitos a cirurgia
mutilante. Dadas as características daquele, contactei de perto e durante
um tempo razoável, com outros colegas que já prestavam cuidados a doentes
oncológicos há mais tempo que eu.
A reflexão e análise sobre a minha experiência concreta de prestação de
cuidados, bem como sobre a de outros colegas, permitiu-me constatar alguns
factos curiosos :
S A minha intervenção, porque, inicialmente, estritamente relacio
nal, era incompleta. Os doentes, necessitando claramente de inter
venção relacional terapêutica, solicitavam-me mais do que isso.
Enquanto intervenção relacional, na fase inicial do projecto, tinha
muitas semelhanças com qualquer outra, desenvolvida por outros
profissionais. Esta característica forse perdendo à medida que ia
dando outras respostas, solicitadas pelos doentes e que iam para
além da interacção verbal.
========= ============================== . _ _ _ « 22 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
S Como ficou evidente pelo que acabei de dizer, os doentes expressa
vam necessidades de cuidados. Eram necessidades particularmen
te evidentes a nível relacional. Ou seja, tratava-se de dificuldades
vivenciais, as quais resultavam da situação de doença oncológica.
Essas necessidades assemelhavam-se às descritas na literatura
existente (e.g., Benner & Wrubel, 1989; Barraclough, 1999; Corner
& Bailey, 2001) e podem caracterizarse genericamente como uma
vivência de transição (Chick & Meleis, 1986; Meleis & Trangens-
tein, 1994; Meleis, 1997). Também podem ser entendidas a partir
da teoria da crise (Lazarus, 1979; Aguilera, 1998), tendo contudo
algumas características particulares. Efectivamente, esta crise não
se caracteriza por uma vivência isolada, mas antes repetida e,
algumas vezes, com desfecho previsivelmente fatal. Mesmo quando
este desfecho não faz parte do prognóstico, a representação da
doença oncológica impõe a sua presença ao doente.
S Pela observação da intervenção de alguns colegas constatava que
usavam estratégias de natureza diversa, que pareciam ser de ele
vada eficácia. Quando os interrogava acerca desse assunto, nem
sempre era muito bem sucedido nas repostas que obtinha.
Com base nesta reflexão instalaram-se algumas dúvidas^ será que, no
contexto da acção desenvolvemos competências de que não temos uma cons
ciência plena? Como consciencializar esse processo?
Estas dúvidas conduziranrme a procurar literatura, quer de enferma
gem, quer de profissões com características semelhantes, que me ajudassem
a compreender tal fenómeno. Como resultado desta procura encontrei um
conjunto diversificado de autores que, em áreas diversas, se têm dedicado ao
estudo das competências desenvolvidas no contexto da acção. Destes começo
por destacar Benner (2001) e o seu marcante trabalho de identificação e
caracterização das fases de desenvolvimento em relação à perícia e ainda
das competências de perícia dos enfermeiros. Do conjunto deste trabalho
evidencio dois aspectos: o primeiro, o facto de tal trabalho ser feito com base
nas competências desenvolvidas em contexto; o segundo, o facto de, entre
2 3 _ _ _ _ _ » _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ „ — — _ — _ — _ = _ _ _ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
essas competências, se perceberem competências relacionais (i.e., Função de
ajuda) e competências da área da (in)formação (i.e., Função de educação,
orientação). Diversos outros trabalhos (e.g., Alligood, 1991; Rebelo, 1996;
Basto, 1998; Basto et ai, 2000; Beckstrand, 19781,b; Deeny & McGuigan,
1999; Easter, 2000) forneceram-me elementos que me ajudaram a confirmar,
não só o desenvolvimento de competências inerente ao exercício de uma prá
tica reflectida, mas também e especificamente de competências relacionais.
Mas também o contributo de outras áreas se tornou essencial neste per
curso. Destes, destaco os desenvolvidos por Argyris & Schõn (1980), Schon
(1996, 1998), mas também Altet (2000), Bernardou, (1996) Barbier (1996),
Mialaret (1996) e Vergnaud (1996) e Le Boterf (1995), entre outros. Em
todos estes trabalhos se torna patente a defesa de uma epistemologia da
prática. Esta não consiste na defesa do "praticismó\ ou seja, na defesa da
prática enquanto tal, por oposição à teoria, mas antes na defesa de que a
prática é algo sempre diferente e mais complexo do que qualquer teoria pode
captar. Neste contexto, qualquer pessoa que desenvolva a sua actividade
ligado a uma das muitas práticas (e.g., enfermagem, medicina, ensino,...),
precisa da teoria como quem precisa de um mapa para se orientar num local
desconhecido, contudo a realidade com que se depara exigir-lhe-á que desen
volva competências para lidar com as dificuldades e as surpresas que lhe
estão associadas. Trata-se assim de uma redefinição do conceito aristotélico
de praxis, no sentido em que é proposto por Maclntire (1990), mas também
por Bishop & Scudder (1991), Chinn & Kramer (1999), entre outros.
Com base na análise da minha experiência, pessoal e profissional, do
observado junto dos doentes e de outros colegas pergunto-me:
Será que existem competências relacionais desenvolvidas em contexto
que desconhecemos?
Que competências serão? Que características terão? Como se desenvolve
rão?
Será que o contexto tem algum tipo de interferência no desenvolvimento
dessas competências?
As competências relacionais serão independentes das restantes?
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Que relação existirá entre os diversos tipos de competências?
Será que existe um modo de intervenção relacional especifico dos enfer
meiros?
Na tentativa de responder a algumas destas questões propus-me desen
volver um estudo que me permitisse compreender qual a natureza da rela
ção entre os enfermeiros e os doentes oncológicos submetidos a quimiotera
pia num hospital de dia. Este estudo tem como objectivos:
•S Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os
doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
o Identificar intervenções terapêuticas de enfermagem.
S Compreender o processo de relação entre os enfermeiros e os doentes
oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
S Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação enfermei-
ro-doente.
25 — — - — - — - - - - - - - - — — — — — Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
t
I PARTE: REFERENCIAS CONCEPTUAIS
Dissertação de Doutoramento 26
Os ulciitcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
27 ======-====================================: Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
1 - JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO
A primeira parte deste trabalho tem como finalidade justificar a realiza
ção deste estudo e fazer o seu enquadramento conceptual. Um e outro con
tribuirão para a compreensão da problemática de investigação. Para atingir
tal desiderato utilizarei argumentos de natureza pessoal/profissional e clíni
ca. Estes argumentos estão profundamente relacionados entre si e têm a
ver, essencialmente, com a enfermagem enquanto profissão. Contudo e dado
considerar a enfermagem uma disciplina/profissão, considero esta uma das
formas privilegiadas de promover o desenvolvimento de ambas. Dito por
outras palavras, investigando a prática clínica dos enfermeiros, promove-se
o desenvolvimento da profissão na medida em que se desvela o seu modus
operandi, permitindo assim que se discuta; contribui-se ainda para o desen
volvimento da disciplina, na medida em que se fornecem elementos passíveis
de virem a integrar o seu corpo de conhecimentos.
1.1 - RAZÕES PESSOAIS/PROFISSIONAIS
Relativamente às razões pessoais/profissionais que justificam este estu
do, proponho um recuo até ao início da minha actividade profissional. O meu
gosto pela prestação de cuidados começou cedo. Efectivamente, logo durante
o curso de enfermagem e dada a sua natureza (i.e. com uma componente
teórica e teórico-prática e outra de ensino clínico), tive oportunidade de
experimentar essa sensação. Era então ainda uma sensação talvez mal com
preendida, mas, apesar disso, t inha já alguma percepção da importância da
acção e da presença do enfermeiro na vida das pessoas a vivenciarem difi
culdades com o seu processo de saúde. A minha presença junto das pessoas,
associada ao acto da prestação de cuidados, acabava por me dar uma gratifi
cação pessoal, a qual contribuía para a sensação de realização pessoal e pro
fissional.
- _ ™ = = = = = - - _ _ ™ _ = = = = „ _ _ = = = = _ _ _ _ = = „ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 2 g
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
Contudo, também o sofrimento, as dificuldades, as dúvidas e até algum
desconsolo fizeram parte deste meu início de percurso. O sofrimento e as
dificuldades estiveram associados a vivências de situações de vida marcan
tes. Assim, ainda hoje recordo o primeiro doente que, estando sob os meus
cuidados, me morreu. Recordo também o sofrimento e as dificuldades ine
rentes ao contacto com um doente e respectiva família, após um diagnóstico
de cancro.
Mas existiam outras dificuldades, talvez mais prosaicas mas também
bastante presentes, como as que derivavam do facto de não encontrar litera
tura científica que reflectisse a realidade dos cuidados. Esta dificuldade
esteve presente nos primeiros momentos, pois, mesmo durante a formação
inicial, ela era patente, mas manteve-se ao longo do meu percurso. Sentia
que esta era também a origem de muitas das dúvidas do dia-a-dia, uma vez
que, na ausência dessa literatura, não tinha referência para pautar os meus
cuidados. Tudo isto originava também algum desconsolo, na medida em que
conduzia à invisibilidade social e ao não reconhecimento da importância dos
cuidados de enfermagem. A ausência desta l i teratura conduzia também a
um ensino centrado na enfermagem tal como a idealizavam os professores e,
muitas vezes, baseada em teorias importadas de outras áreas de conheci
mento. Era também esta uma das razões da existência de uma linguagem
dupla e quantas vezes antagónica, na enfermagem, com todas as consequên
cias que daí advêm, principalmente para quem está em formação ou em iní
cio de vida profissional.
Assim, fui desenvolvendo o meu percurso profissional, o qual se pode
dividir em duas partes que, embora possuindo características diferentes, são
complementares. A um período inicial de prestação directa de cuidados de
enfermagem, seguiu-se um outro de dedicação ao seu ensino. J á no contexto
deste último período, realizei uma especialização clínica, na área da enfer
magem de saúde mental e psiquiátrica. Na sequência desta especialização
desenvolvi um projecto com algumas características inéditas. Este, inicial
mente, t inha como finalidade a prestação de cuidados, no âmbito da saúde
mental e psiquiatria, a pessoas a quem tivesse sido diagnosticado um cancro
29 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
e em consequência do qual tivessem sido sujeitas a uma cirurgia mutilante.
Posteriormente, e dadas as solicitações, o âmbito do projecto foi alargado a
todos os doentes oncológicos. Estes doentes apresentavam dificuldades de
natureza diversa, mas o denominador comum seriam as dificuldades asso
ciadas à vivência de um processo que, para além dos seus aspectos biomédi
cos, os desafiava de modo radical, dada a conotação da doença.
A medida que ia desenvolvendo esta experiência de prestação de cuida
dos, foi ficando claro que, independentemente do tipo de cancro, todas as
pessoas a quem tal é diagnosticado iniciam a vivência de um processo
extremamente complexo, indutor de mabestar e que, por vezes, é mais grave
que o próprio cancro (Lopes, 1997). A gravidade pode ser de natureza tal que
desorganiza para sempre a vida da pessoa ou poderá até levar à morte. Ten
tei compreender este processo através de teorizações oriundas de áreas cien
tificas diversas e de natureza psicossocial, nomeadamente através da teoria
da crise (Erikson, 1976ab; Caplan, 1980; Cordeiro, 1987), teoria do luto (Wor
den, 1991), entre outras. Porém, ficava sempre com a sensação de que parte
do fenómeno ficava por explicar. Para além disso, verificava que parte da
minha acção não resultava de nenhuma "prescrição" teórica, mas sim de um
saber que ia acumulando, fruto do contacto repetido e reflectido com as
situações referidas. Pela observação da prática dos meus colegas e em con
versa com eles, ia acentuando esta convicção. Aquele saber parecia-me exis
tir na confluência das diversas perspectivas teóricas (e.g., psicossocias, bio
médicas, ...), precisando, porém, de ter necessariamente em consideração a
pessoa na sua totalidade e no seu contexto. Esta experiência foi desenvol
vendo em mim duas certezas:
S que os cuidados que prestava eram extremamente importantes para
o benres tar das pessoas, e por isso elas me procuravam, uma vez que
eram livres de o fazer ou não;
S que, sendo importantes, são ainda mal compreendidos e pouco teori
zados.
„ _ _ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ . . „ „ „ „ _ _ _ „ _ 3 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Esta parca teorização adquiria importância marcante no momento em
que eu pretendia ensinar sobre o que fazia. Nesses momentos, t inha dificul
dades em explicar a minha intervenção recorrendo às teorias conhecidas.
Esta foi uma experiência extremamente enriquecedora, quer do ponto de
vista pessoal, quer profissional. Para além disso e apesar das limitações teó
ricas, forneceume contributos essenciais para o exercício da minha activi
dade docente. Ao mesmo tempo, obrigoume a questionarme sobre a profis
são e sobre a disciplina de enfermagem. O questionamento t inha exactamen
te a ver com a natureza dos cuidados. Ou seja, em que consiste, quais os
elementos concretos que constituem o processo de prestação de cuidados? A
relação enfermeiro/doente é um desses elementos? Qual a sua natureza?
Qual a sua importância? Que relação existe entre estes elementos, tal como
são praticados e a disciplina, tal como é comunicada e ensinada?
E curioso perceber que algumas destas questões agora colocadas são
idênticas às que se me colocavam no início da minha actividade profissional.
Estiveram também presentes no âmbito do mestrado que realizei, em ciên
cias de enfermagem (Lopes, 1998, 1999a) e traduzem ainda hoje as razões
que me conduziram até ao presente estudo.
Assim e apesar de ao longo da minha actividade profissional ter tentado
desenvolver a dupla componente da enfermagem (i.e., a praxis e a discipli
na), processo que vou partilhando (Lopes, 1999b, 2000a), muitas continuam
a ser as questões que se me colocam e para as quais ainda não tenho respos
ta. De todo o modo, tenho também a convicção que são as questões, mais que
as respostas, que me impulsionam. Algumas dessas questões poderseão
formular do seguinte modo:
■S Terão os cuidados de enfermagem a importância para os utentes,
que a minha experiência parece demonstrar?
S Serão os cuidados de enfermagem importantes em todas as situa
ções de saúdedoença das pessoas ou adquirirão uma importância
particular em algumas delas?
S Quais as razões dessa importância? Ou seja, em quê e como é que
contribuem para o benres tar das pessoas?
3 1 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
S Que estruturas teóricas explicam este fenómeno?
S Será que existe uma área de conhecimentos pouco desvendada e que
explicará os cuidados prestados pelos enfermeiros?
•S A existir, terá essa área de conhecimentos características próprias?
S Quais serão essas características?
Este percurso, bem como estas dúvidas constituenrse como argumentos
justificativos deste estudo. Ou seja, o estudo insere-se no contexto de um
percurso pessoal e profissional e constitui-se como uma tentativa de respos
ta a algumas das questões que se me colocam. Estas razões justificativas
para o estudo, entroncam nas de natureza clínica, senão vejamos.
1.2 - RAZÕES CLÍNICAS
Uma das áreas que mais desafios coloca aos prestadores de cuidados é,
no meu entender, a área oncológica. O cancro, doença aparentemente tão
velha quanto o próprio Homem e supostamente comum a muitos seres vivos,
ganhou, na sociedade actual, conotações míticas. Do ponto de vista social,
não se morre de cancro, morre-se de doença de evolução prolongada; não se
tem um cancro, terrrse uma doença ruim. A este propósito é notável uma das
mais conhecidas obras de Sontag (1998) (ela própria doente oncológica), na
qual aborda a problemática da utilização alegórica e muitas vezes culpabili-
zante da doença em geral e do cancro em particular, na nossa cultura. Sobre
o cancro ela diz ser uma "doença incompreensível — numa época em que o
primeiro postulado da medicina é o de que todos os males têm cura" (p. 13).
Do ponto de vista científico, todos os esforços se têm desenvolvido no sen
tido de combater e vencer o cancro, como se este fosse o último e mais terrí
vel dos inimigos. Mesmo a linguagem usada é de características puramente
belicista, atribuindo ao cancro uma natureza tal, como se de uma entidade
se tratasse. Somos levados a crer que esta luta imaginária, traduzida em
palavras, é também, muitas vezes, traduzida em comportamentos. Estes,
tanto são das pessoas a quem foi diagnosticado o cancro como dos técnicos de
saúde. Efectivamente pelos estudos efectuados, a representação social de
uns e outros é muito idêntica (Oliveira, 1999; Pereira, 1994). Existem mes-
Dissertação de Doutoramento
Os ulciitcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
mo diversos estudos que confirmam que dar informação relacionada com o
diagnóstico de cancro é extremamente angustiante quer para os doentes
(Thorne, 1988; Ramirez et ai, 1994; Costello, 1995; Morton, 1996), como para
os profissionais de saúde (Gilholy et ai, 1988; Jones & Jones, 1990! Brewin,
1991; Fallowfield, 1993; Kent et al, 1994; Rosser, 1994; McCue, 1995). De
modo que, enquanto aos doentes, portadores do mal, cabe o papel de vitimas
do destino, aos técnicos de saúde, enquanto "soldados" detentores de podero
sas armas, é atribuído o papel de identificarem e aniquilarem esse ser malé
fico. Assim, usam armas que extirpam, a cirurgia, que bombardeiam, a
radioterapia, que aniquilam quimicamente, a quimioterapia, entre outras.
Mas, apesar de todo este arsenal, prevalece, quer nos doentes, quer nos téc
nicos, uma representação associada a imagens de morte, sofrimento, ameaça
e desorganização, entre outras.
Neste contexto, não questiono a potencial utilidade de todo este arsenal
terapêutico. Questiono, isso sim, a forma como muitas vezes é usado. Muitas
vezes me pergunto o que é que será pior, se o sofrimento inerente à doença
se o inerente ao tratamento. Questiono ainda o parco investimento que tem
sido feito nos cuidados, em contraponto com o investimento nos tratamentos.
Isto porque, seja qual for o resultado final, do ponto de vista dos objectivos
terapêuticos tradicionais, isto é, consiga-se ou não a "cura", uma doença des
ta natureza impõe sempre um processo de transição extremamente comple
xo. Mesmo que o prognóstico médico seja o melhor, os oncologistas rejeitam o
conceito de cura e preferem falar em remissão. Ou seja, na melhor das hipó
teses, essa pessoa, para além de ter sido questionada no que existe de mais
essencial, a própria vida, passará a viver sob a espada de Damócles. Mas, o
mais comum é ter que se habituar a viver com uma situação que tende para
a cronicidade. Em algumas situações a pessoa terá que aprender a encarar a
morte. Assim, o investimento nos cuidados potencia a acção dos restantes
meios terapêuticos.
Por este conjunto de razões é que denominei este como um processo de
transição. Este conceito (i.e., transição) foi proposto por Chick & Meleis
(1986), mas para o seu desenvolvimento, contribuíram diversos outros auto-
33 — _ — — , - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ „ = = - ^ — — - . . . _ _ _ _ = = = „ - = = = = = _ ^ _ . . _____ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de Uma relação
res com inúmeros trabalhos de investigação (e.g., Bridges, 1986," Brouse,
1988; Catanzaro, 1990; Chiriboga, 1979; Clifford, 1989; Gilmore, 1990). Este
conceito será mais à frente explorado mais em pormenor, contudo pode defi-
nir-se de modo abreviado como, a passagem ou movimento de um estado,
condição ou lugar para outro (Schumacher & Meleis, 1994). Assim, o proces
so de doença oncológica pode ser entendido como um processo de transição.
Tal justifica-se porque se verifica uma alteração considerável no processo de
saúde-doença, no papel relacional, nas expectativas e/ou nas capacidades.
Tal implica mudanças nas necessidades de todos os sistemas humanos. A
transição requer da pessoa capacidades para incorporar novos conhecimen
tos, para alterar comportamentos e até para mudar a definição do seu "self
no contexto social (Meleis, 1991). Neste processo o enfermeiro detém já uma
elevada responsabilidade. Efectivamente, de acordo com a minha experiên
cia enquanto prestador de cuidados e com o meu conhecimento relativo aos
contextos de prestação de cuidados, o enfermeiro assume já um papel fulcral
em todos os momentos deste processo de transição. Porém, um dos períodos
em que me parece que esse papel pode ser relevante, é no período posterior
ao diagnóstico de cancro, quando a pessoa inicia o processo de interiorização
de todas as consequências que daí advêm. Esse período poderá ser coinci
dente com a fase da quimioterapia.
De facto, incluído em quase todos os protocolos terapêuticos actuais,
independentemente do tipo de cancro, existe a quimioterapia. Esta consiste
na administração de agentes químicos, citotóxicos, normalmente por via
endovenosa.
O principal objectivo da quimioterapia é a destruição das células neopla
s i a s através do uso de substâncias químicas. Por esta ordem de ideias,
pode-se então dizer que o seu objectivo ideal é a "cura" da doença. Apesar
disso a quimioterapia pode ainda ser usada para, prevenir o aparecimento
de metástases, controlar, tornando mais lento, o crescimento dos tumores e
por último, ser usado com objectivos paliativos, no controlo de sintomas.
De acordo com os protocolos mais recentes, a quimioterapia está nor
malmente associada a outros tratamentos, como a cirurgia e a radioterapia.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Assim, a quimioterapia pode anteceder ou suceder a qualquer um dos outros
tratamentos enunciados, dependendo isso da avaliação concreta da situação
de cada doente, a qual entra em linha de conta com o tipo de tumor, a sua
localização inicial, a sua metastização local e sistémica.
A actuação dos agentes quimioterápicos antineoplásicos tem uma estrei
ta relação com o ciclo de divisão celular. Este é o processo através do qual
uma célula se desenvolve e se divide e é composto por cinco fases (i.e., Go,
Gi, S, G2 e M). Na fase Go, considerada por alguns uma sub-fase de Gi, a
célula é considerada em repouso, ou seja, não está preparada para a divisão
celular. Durante a fase Gi, também denominada como intermitótica, ini-
cia-se a preparação para a divisão celular através da produção de ácido
ribonucleico (ARN) e proteínas. Na fase S, também denominada fase de sín
tese, as células duplicam o seu ácido desoxirribonucleico (ADN). Este, recor-
de-se, contém toda a informação genética necessária ao desenvolvimento e
divisão celular. Por tal razão, esta é a fase em que actuam muitos dos agen
tes quimioterápicos antineoplásicos. A sua acção consiste na interferência
na síntese do ADN, levando à alteração da informação genética e à rotura na
sua síntese. A fase G2 ou fase prémitót ica é uma nova fase de síntese de
ARN e proteínas necessárias à mitose. Por último a fase M ou mitótica, é a
fase durante a qual ocorre a mitose, ou seja, a divisão celular da qual resul
tam duas células filhas com características iguais às da progenitora.
O processo que acabei de descrever é o mesmo, quer a célula seja normal,
quer seja neoplásica. Tal significa que a administração de drogas citotóxicas
interfere com ambos os tipos de células, levando à sua destruição. Contudo,
as células normais parecem ter uma maior capacidade de reparação de
danos, mantendo-se mais viáveis, que as células neoplásicas. Deste modo, a
maior susceptibilidade das células neoplásicas para sofrerem danos irrepa
ráveis, é utilizada para se obterem os efeitos terapêuticos da quimioterapia
citotóxica. De todo o modo, isto não significa que o efeito sobre as células
normais seja desprezível, como mais à frente veremos.
A diferença entre a célula normal e a neoplásica reside essencialmente
na velocidade com que as segundas se dividem. Efectivamente, constata-se
35 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enlermeiros: Construção de uma relação
que as células neoplásicas se dividem descontroladamente e a uma velocida
de muito superior à normal. Portanto, o seu ciclo celular é mais curto. Isto
leva a que, num primeiro momento, o crescimento tumoral seja relativamen
te lento, dado haver ainda um reduzido número de células neoplásicas viá
veis, mas que depois acelere rapidamente, à medida que aquelas células pro
liferam, até atingir um nível mais estacionário. Este nível estacionário pen-
sa-se que seja devido à diminuição de nutrientes e a um certo grau de hipo
xia, o qual resultou do acentuado crescimento anterior (Dougherty & Bailey,
2001). Pensa-se actualmente que a quimioterapia citotóxica é mais eficaz na
fase de maior crescimento. Este aspecto evidencia a importância de uma
detecção atempada das situações de doença neoplásica.
Do ponto de vista farmacológico, a escolha da droga a usar, bem assim
como da dose a administrar a cada doente, depende de um julgamento crite
rioso. Este entra em linha de conta com parâmetros tais como, o estadia-
mento do tumor, estado funcional dos rins e fígado e o conhecimento da far-
macodinâmica do medicamento. O estado funcional dos rins e fígado têm a
ver com o facto de estes medicamentos serem excretados por estes órgãos.
Após aquelas decisões é ainda necessário escolher a via de administração
do medicamento. Também esta depende de um conjunto de factores que ten
tam conjugar a rapidez da disponibilização da droga e as características da
pessoa, nomeadamente o estado geral, o estado das veias, entre outros.
Aquando da administração da quimioterapia citotóxica pode verificar-se
um fenómeno de resistência tumoral. Existem dois tipos básicos de resistên
cia t umora l Resistência Primária, quando não existe qualquer resposta
após a administração dos citostáticos; Resistência Secundária, quando após
um período inicial de resposta se verifica um reaparecimento do crescimento
tumoral. Ainda que raro, podem também verificar-se fenómenos de mul-
ti-resistência a drogas citotóxicas.
Mais a t rás referi que estas drogas agem indiscriminadamente sobre as
células normais e sobre as neoplásicas. Disse ainda que, quanto maior for a
velocidade de divisão celular, maior será a vulnerabilidade a estes fármacos.
Ora este princípio é válido quer para as células normais quer para as neo-
_ _ „ _ = _ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ „ „ _ = = = = = = _ _ _ _ „ « = = = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ = „ = _ 3 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
plásicas. Assim se justifica que os tecidos corporais cujas células sofrem uma
mais rápida divisão sejam os mais susceptíveis aos citostáticos. Tal é o caso
da medula óssea, tracto gastrointestinal, folículos capilares e células germi
nais testiculares.
Pela combinação do que acabei de dizer, bem assim como do que atrás
referi acerca dos órgãos excretores (i.e., rim e fígado), compreendemse a
maioria dos efeitos secundários sistémicos destes medicamentos. Assim, os
mais frequentes são, entre outros^
S Anorexia
•/ Náuseas
•/ Vómitos
S Estomatites
S Hematúria
■S Cistite química
S Diarreia
S Queda de cabelo
S Diminuição da contagem de elementos sanguíneos
S Alteração da função hepática
•S Alteração da função renal.
A quimioterapia tem sofrido avanços consideráveis nos últimos anos.
Como consequência desses avanços, o rigor na administração aumentou con
sideravelmente, quer para protecção do doente, quer dos técnicos de saúde.
Para além disso, como esses protocolos de administração se podem prolongar
por períodos de tempo muito longos, os mesmos tornaranrse problemáticos
na medida em que originavam longos períodos de internamento com todas
as consequências que daí advinham (e. g., de natureza económica, psicosso
cial, ..). Deuse assim início à criação de unidades de quimioterapia a fun
cionarem em regime de hospital de dia. Os doentes deslocamse a estas uni
dades com a periodicidade previamente combinada, para fazerem os seus
tratamentos e regressam a suas casas. Nestas unidades são diversas as vias
de administração e as técnicas que se utilizam. Destas, as mais frequentes
são, a intravenosa, a oral, a tópica e a intravesical.
3 7 _ _ ^ „ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . . „ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A via intravenosa é, de todas, a mais frequente e pode assumir algumas
variantes, as quais são determinadas pela situação do doente. Assim, o mais
comum é proceder-se a uma punção venosa periférica de cada vez que o
doente vem cumprir o seu protocolo de quimioterapia. A escolha da veia
para esse efeito deve ser criteriosa, considerando o elevado potencial corro
sivo de muitos dos medicamentos e a consequente e progressiva degradação
a que as veias vão sendo sujeitas. Dois dos critérios mais usados são a esco
lha de uma veia de calibre adequado, considerando o volume, a velocidade de
perfusão e o potencial corrosivo do medicamento; e uma progressão dis
tal-proximal na escolha das veias.
A administração de medicamentos citostáticos por via intravenosa é feita
de acordo com as indicações especificas de cada medicamento. Contudo, e de
forma geral, num primeiro momento procede-se à avaliação da situação do
doente, quer através da análise dos valores analíticos, quer por observação
directa do doente. Tal, tem como objectivo verificar se o doente tem condição
que permita a continuação da quimioterapia. Ou seja, verificar se, como
resultado da progressão da doença e da reacção ao tratamento, o doente
apresenta condições que permitam continuar a administrar um tratamento
tão agressivo. Após, procede-se à punção venosa e colocação de uma infusão
de soro fisiológico. Esta tem diversas funções. A primeira é testar a viabili
dade da veia. Ou seja, se a punção não foi adequadamente efectuada e se
verificar extravasamento, tal não tem consequências se for com soro fisioló
gico, mas tê-las-á e graves se for com citostáticos. A segunda é promover
alguma hemodiluição que diminua o efeito directo e imediato dos citostáticos
sobre as células sanguíneas. A terceira é proporcionar o intervalo de tempo
necessário à preparação da perfusão de quimioterapia a administrar, a qual
é normalmente feita no momento e em câmara de fluxo laminar.
Durante todo o período de administração de quimioterapia citostática
exige-se uma vigilância sistemática do doente e do sistema de perfusão. Esta
vigilância tem como principal objectivo a detecção precoce de qualquer reac
ção imediata, sistémica ou local. As reacções sistémicas imediatas são diver
sas e podem ir desde a reacção anafilática, aos vómitos, dores de cabeça ou
_ - - — _ _ - _ _ _ _ _ _ - - - - _ _ _ _ _ _ - _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ 3 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação
outras. Das reacções locais, a mais temida é o extravasamento, principal
mente quando se usam medicamentos vesicantes. 0 extravasamento consis
te na infiltração dos tecidos limítrofes à punção venosa com medicamento
citostático. Tal ocorrência provoca uma imediata e intensa inflamação local
que pode progredir para necrose e ulceração.
A administração intravenosa pode assumir algumas variantes, sendo a
mais comum a implantação de um cateter numa veia central, com tuneliza-
ção e implantação subcutânea de um "cuff". Este sistema pode manter-se
funcional durante anos, exigindo apenas uma manutenção periódica. T o r
na-se extremamente cómodo para o doente, porque evita a punção sucessiva
de veias periféricas, com a sua consequente degradação. Assume uma eleva
da eficácia dado que disponibiliza o medicamento directamente numa veia
de grande calibre, aumentando assim a rapidez de acessibilidade ao tumor.
Este sistema permite ainda que se possa acoplar mais facilmente um outro
sistema de infusão ambulatória de quimioterapia. Este consiste num peque
no balão cheio de medicamentos citostáticos, o qual é ligado ao "cuff" atrás
referido, através de um cateter. O medicamento vai sendo libertado na cor
rente sanguínea ao longo de um determinado período de tempo, normalmen
te uma semana. O balão atrás referido pode facilmente ser transportado pelo
doente dentro de uma pequena bolsa de tecido pendurada ao pescoço ou até
dentro do bolso da camisa. Este sistema é de elevada eficácia e comodidade
para o doente.
Pelo que referi, ficou claro que a quimioterapia é um procedimento sem
pre posterior ao diagnóstico, podendo preceder, ser concomitante ou ulterior
a outros tratamentos. Em qualquer caso, e de acordo com a minha experiên
cia, corroborada pela opinião de autores como Kubler-Ross (1991), Israel
(1993), Dolto (1998), Hennezel (1997), Hennezel & Leloup (1998) entre
outros, o doente é já conhecedor da problemática que o afecta, quer lhe
tenha sido dito ou não. Neste contexto, aquando da quimioterapia o doente
está em plena vivência do processo de transição. De acordo com O'Connor et
ai (1990), a resposta ao diagnóstico de cancro está associada com a procura
pessoal de significado de ter um cancro. Na análise feita por esta autora às
3 9 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
entrevistas efectuadas a doentes oncológicos foram identificados seis temas
major:
S olhar para as consequências do diagnóstico de cancro (que é o mais
importante),'
S procurar um entendimento do significado pessoal do diagnóstico!
S viver com o cancro!
•S esperança,'
•S mudança na forma como se vê!
S revisão da vida (O'Connor, 1990).
Existe uma coincidência assinalável entre estes temas e as característi
cas do processo de transição, atrás enunciadas (Schumacher & Meleis,
1994). Por sua vez, Morton (1996), identificou diversos sentimentos e reac
ções em pessoas a quem tinha sido diagnosticado um cancro. Destas destaco,
negação, cólera/vergonha, desespero e depressão e questionamento do com
portamento protector da família. A vivência deste processo inicia-se nor
malmente, durante o internamento num hospital de doentes agudos. Mas,
de acordo com May (1993, 1995), a organização dos cuidados neste tipo de
hospitais não é feita de modo que permita continuidade e facilite uma aten
ção individualizada e a expressão das mais profundas emoções dos doentes.
Torna-se assim, difícil estabelecer uma relação que permita um suporte
emocional, que transmita um sentimento de segurança e que facilite o forne
cimento da informação adequada, aspectos que, de acordo com Palsson &
Norberg (1995), são de grande importância em doentes com cancro. Ou seja,
os cuidados não são planificados de modo a permitirem o desenvolvimento
de relações com carácter terapêutico.
Contudo, durante a quimioterapia, para além da vivência da problemáti
ca emocional associada ao diagnóstico, existe também a associada à quimio
terapia propriamente dita. Esta, num primeiro momento, pode-se caracteri
zar como um misto de ansiedade, medo e esperança (Barraclough, 1999).
Ansiedade e medo pela representação que têm da quimioterapia, e esperan
ça de que, apesar disso, aí encontrem a tão almejada cura. Posteriormente, a
problemática emocional associa-se aos efeitos do tratamento, quer os desejá-
= = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ , . = = = = = _ _ _ _ „ = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ . . _ _ _ _ _ _ _ _ _ . . _ 4 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
veis, quer os indesejáveis. Se os desejáveis prevalecem, parecem funcionar
como lenitivo face aos indesejáveis. Caso contrário, potencianrse mutua
mente. Em qualquer dos casos, o progressivo cansaço e a variabilidade de
estados de saúde em ciclos muito curtos provocam alguma labilidade emo
cional (Barraclough, 1999; Dougherty & Bailey, 2001; Cohn, 1982). Esta
pode caracterizarse por manifestações de tristeza, com choro fácil, isola
mento, ansiedade acentuada, acessos de medo face a qualquer estímulo,
insegurança, entre outros. Face ao exposto, compreendese que a relação que
se possa estabelecer entre o enfermeiro e o doente, durante a quimioterapia,
poderá ser muito importante para este.
Pelo que já foi dito, poderseá concluir que a importância desta compo
nente dos cuidados nos doentes oncológicos é evidente. Mas, apesar disso,
continua a ser evidenciada através de diversos trabalhos de investigação.
Assim, de acordo com Muetzel (1988), o determinante crucial para o cuidado
de enfermagem ser terapêutico é a qualidade da relação entre a enfermeira
e o doente. Por sua vez, os resultados de um estudo realizado por Olson
(1995), indicam uma correlação negativa (r= "0,71, p<0,00l) entre um con
junto de variáveis relacionadas com a empatia e um conjunto de variáveis
relacionadas com a angústia e uma correlação positiva entre a empatia
expressa pelas enfermeira e a empatia percebida pelos doentes (r= 0,37
0,41, p<0,05). Num outro estudo de natureza fenomenológica, cujos partici
pantes foram utentes submetidos a intervenção cirúrgica, Kralik, Koch &
Wotton (1997), encontraram dois temas dominantes como caracterizadores
da atitude da enfermeira durante os cuidados de enfermagem : comprometi
mento/engajamento e separação/descomprometimento. A atitude das enfer
meiras englobadas no primeiro tema era caracterizada da seguinte forma,
no dizer das utentes'■
S nada era demasiado incómodo;
S pergunteme/consulteme;
S carinhosa e uso de humor;
•S compassiva e agradável;
S sabia o que eu queria sem perguntar,'
4, ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
•S sempre disponível;
S Gentil no toque;
S amigável e afectuosa.
A atitude das enfermeiras englobadas no segundo tema era caracterizada
da seguinte forma pelas utentes^
■S t ra tada como um número ou um objecto;
S demasiado eficiente e ocupada,'
S fez sentir como se eu fosse preguiçosa,'
S tem que ir em frente seja o que for que lhe esteja a acontecer!
■S fria/sarcástica na aproximação;
■S rude no cuidado físico,'
■S apenas um emprego
S as enfermeiras fazem aquilo que lhes foi dito para fazerem (Kralik,
Koch & Wotton, 1997).
Apesar de todos estes dados nos evidenciarem a importância da compo
nente relacional dos cuidados de enfermagem, algumas dúvidas continuam a
preocuparme. A primeira reside no facto de, pela teorização da componente
relacional dos cuidados de enfermagem, se criar a sensação de clivagem
entre os cuidados relacionais e os outros. Ora isto não corresponde à prática
dos cuidados uma vez que, é aproveitando a proximidade e o veículo dos cui
dados no geral, que podemos construir uma relação que pode assumir uma
importância marcante para o utente. Acresce que, as características deste
encontro e deste contacto entre a enfermeira e os seus utentes, é radical
mente diferente do encontro e do contacto destes com outros técnicos de saú
de. E é diferente quer pela assiduidade, quer, por vezes, pela imposição, pelo
carácter instrumental, pela grande proximidade e intimidade, entre outros.
E exactamente este conjunto de características que nos conduzem à
segunda grande dúvida que é a seguinte: sendo os modelos teóricos da "Esco
la da Interacção" construídos tendo como referência os contextos psiquiátri
cos e frequentemente, a partir da importação de teorias de outras áreas
científicas e profissionais, até que ponto darão resposta às características e à
estrutura da relação entre a enfermeira e o utente neste contexto? A primei
_ - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = „ _ _ „ = = = = = = . _ „ = = = „ _ _ _ = = „ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 4 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ra parte da pergunta anterior justifica-se porque, ainda que possam haver
elementos em comum na relação desenvolvida num e noutro contexto, have
rá com certeza muitos diferentes. Ou seja, e de acordo com o conceito propos
to por Meleis (1991, 1997), as características da transição de um doente psi
quiátrico são necessariamente diferentes das de um doente a quem foi diag
nosticado cancro. As razões para estas diferenças são muito diversas a
começar pelas características da representação da doença e a acabar no con
texto. Este conjunto de razões é suficiente para introduzir características
específicas no processo relacional.
A segunda parte da questão atrás colocada (i.e., a importação de teorias a
partir de outras áreas do conhecimento) constitui-se também como dúvida
para alguns outros autores. Assim, Morse et ai (1992) questionam a apro
priação por "empréstimo" dos modelos de empatia sem serem questionados,
na inter-relação enfermeiro-utente, particularmente na perspectiva das
necessidades da prática clínica. Efectivamente, se atentarmos nas definições
de empatia produzidas por alguns dos seus teóricos (e.g., Mehrabian & Eps
tein, 1972; Batson, 1992; Eisenberg & Strayer; 1992), percebemos que
naquele conceito coexiste uma dimensão emotiva e uma outra cognitiva. A
primeira dimensão parece estar presente desde momentos muito precoces do
desenvolvimento de qualquer pessoa e pressupõe a capacidade de perceber o
mal-estar alheio e de reagir a ele. Esta capacidade de percepção pode ser
indutora de sofrimento e levar a pessoa a aproximar-se no sentido de meno-
rizar o sofrimento do outro, menorizando assim também o seu,' ou então,
levar a pessoa a afastar-se como forma de menorizar o seu sofrimento.
A segunda (i.e., cognitiva) desenvolve-se à medida que a capacidade cog
nitiva se vai desenvolvendo e pressupõe a compreensão e representação do
sofrimento do outro.
Nesta acepção todos os seres humanos são dotados de capacidade empá
tica. Porém, só por si, tal não significa que todas as pessoas sejam capazes
ou queiram ajudar os outros. Isto porque, tal como mais atrás referi, a capa
cidade empática pode ser geradora de sofrimento e levar ao afastamento.
Todavia, as potencialidades terapêuticas da empatia foram reconhecidas e
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
largamente evidenciadas por diversos psicoterapeutas. Neste sentido,
Rogers (1974, 1995), apresenta a empatia como um conceito central e um
instrumento terapêutico fundamental. Mas, para ser usado como instrumen
to terapêutico, são evidenciados e ensinados diversos pressupostos que evi
tem o sobreenvolvimento do terapeuta. Para além disso, este conceito foi
estudado do ponto de vista psicoterapêutico essencialmente em contextos de
relação dual, a decorrerem em espaços físicos próprios.
Face ao exposto é legítimo questionar, tal como o fez Morse et ai (1992), a
aplicabilidade deste conceito às situações clínicas vividas pelos enfermeiros,
considerando basicamente duas dimensões: o contexto dos cuidados, e o
nível de proximidade/intimidade. Efectivamente o contexto dos cuidados de
enfermagem não é comparável ao contexto da interacção psicoterapêutica
dual e em gabinete. Também o nível de intimidade/proximidade é radical
mente diferente, quer por força da vivência do doente, quer por exigência dos
cuidados que são prestados. Neste sentido e num estudo realizado por Bot-
torff & Varcoe (1995) conclui-se que as actividades desenvolvidas pelos
enfermeiros lhes conferem a permissão de que precisam para entrarem
numa relação de grande proximidade, que lhes dá acesso à intimidade e que
funciona como uma ponte essencial. Os resultados deste estudo suportam
também conceptualizações de enfermagem que reflectem a natureza dinâmi
ca e transacional da interacção em enfermagem, em contraste com aquelas
outras que descrevem a enfermagem como um processo sequencial e linear.
Por último, os resultados deste trabalho evidenciam ainda que a comunica
ção enfermeiro-utente é muito mais complexa que aquela que é capturada
pelos modelos comunicacionais emprestados dos campos da psicologia ou
terapia familiar.
Assim, também Alligood (1991) pensa que existem dificuldades em esta
belecer paralelismo entre a inter-relação enfermeiro-utente e psicoterapeu-
ta-utente. Gould (1990) sugere que estes dois tipos de inter-relação deverão
ter finalidades prometidas muito diferentes, e Egan (1982) declara que o
objectivo do aconselhamento é ajudar os clientes a lidar com as dificuldades
e situações problemáticas e não estabelecer inter-relações próximas. Apesar
_ - - _ _ ~ = = = = = = _ _ _ „ „ = = = _ _ _ _ _ = = = „ _ = = = = = _ _ = = = = = = _ _ „ _ _ „ _ „ = = = . . _ _ „ = = . = 4 4
Dissertação de Doutoramento
mài
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
disto, o valor de uma inter-relação próxima entre o doente e o enfermeiro
tenrse vindo a tornar crescentemente aceite, ainda que, particularmente
através de desenvolvimentos tais como a "enfermagem primária". Benner &
Wrubel (1989) ao mesmo tempo que declaram que o sobre-envolvimento
pode ser prejudicial, afirmam que a separação (desprendimento, despreocu
pação) só é possível se a enfermeira não cuidar. Ou seja, de acordo com
aquelas autoras, o comprometimento e a preocupação são elementos inte
grantes de uma relação de cuidados.
Face a isto, constata-se que a administração da quimioterapia oncológica
é um procedimento que exige grande rigor e que normalmente se prolonga
por várias horas. É também um procedimento que se pode repetir várias
vezes por semana e ao longo de várias semanas, podendo ser interrompido e
reiniciado várias vezes ou repetido, prolongando-se assim por meses. É por
último, um procedimento do qual podem resultar vários e desagradáveis
efeitos secundários. O enfermeiro tem condições para, em todo este processo,
ser a figura pivot. Efectivamente, é ele quem prepara a terapêutica, prepara
o doente para a sua administração, e administra e vigia os efeitos secundá
rios. Mas é ele também que está com o doente durante todo o tempo que este
permanece no serviço, ao longo de várias semanas. É com ele que o doente
priva e estabelece uma relação próxima. E a ele que o doente coloca as suas
dúvidas e apresenta as suas angústias. Esta relação é de tal ordem que
mesmo nos dias em que os doentes não fazem tratamento, por vezes telefo
nam para tirar dúvidas ou aliviar angústias. De acordo com a minha expe
riência e com os contactos por mim desenvolvidos, posso afirmar que o tipo
de cuidados solicitados pelos doentes a estes enfermeiros é de grande com
plexidade e exigência. Isto conduz a uma relação que os doentes frequente
mente referem como essencial para a vivência do seu processo de transição.
Assim e em jeito de resumo, pode-se dizer que os elementos em presença
durante o período de quimioterapia são^
o doente, afectado por uma doença que lhe impôs um processo de
transição radical;
4 5 _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ » . _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
o enfermeiro, que pode assumir um papel autónomo essencial para
ajudar o doente no seu processo de transição, mas que assume
também o papel de coadjuvante no tratamento médico, preparando
e administrando a quimioterapia,'
o contexto, entendendo-se este em duplo sentido^ por um lado, o
contexto em que o doente vive a sua situação de saúde-doença e por
outro, o contexto em que ocorre o processo de relação enfermei-
ro-utente, ou seja, o hospital de dia.
De acordo com os trabalhos de investigação já citados e com a minha
experiência, o papel do enfermeiro pode revestir-se de uma importância
determinante. Porém, nenhum dos trabalhos consultados nos diz qual é a
estrutura do processo de relação que se estabelece entre o enfermeiro e o
doente durante este período de tempo. Face a isso e à insuficiência de outras
áreas de conhecimento para descreverem e explicarem este fenómeno,
entendo que se impõe o estudo deste processo.
Dissertação de Doutoramento 46
Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
4 ? _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
2 - ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL
Este capítulo tem como objectivo essencial, proceder ao enquadramento
da enfermagem enquanto disciplina e profissão, como forma de clarificar a
minha perspectiva epistemológica e de perceber o porquê das opções metodo
lógicas assumidas. Assim, neste capítulo considerarei, num primeiro
momento, os critérios epistemológicos relativos ao desenvolvimento do
conhecimento, à percepção da realidade e à verdade. Posteriormente carac
terizarei a enfermagem enquanto disciplina/profissão, realçando o papel da
prática, nomeadamente através da referência aos padrões de conhecimento.
Por último, farei referência à estrutura essencial da disciplina de enferma
gem.
2.1 - ENQUADRAMENTO EPISTEMOLÓGICO
2.1.1 - Critérios de desenvolvimento do conhecimento: revolução, evolu
ção ou integração
Têm sido vários os filósofos e cientistas que, ao longo do tempo, se têm
preocupado com a questão do desenvolvimento do conhecimento, bem como
da sua organização estrutural, os quais dão corpo aos diversos ramos das
ciências. O que está basicamente em causa é saber quais são os critérios de
desenvolvimento e de organização do conhecimento para que uma determi
nada área se possa considerar ciência. Naturalmente, as respostas encon
tradas variam de acordo com os padrões de que os analistas se servem. Ao
aplicarem padrões mais congruentes com as ciências ditas positivas (e.g.,
ciências físicas e afins), podem chegar a resultados nem sempre muito lison
jeiros para as ciências ditas emergentes ou para as incluídas nos grupos das
ciências sociais e humanas. Por sua vez, se se optar por aplicar critérios que
prevejam a especificidade destas últimas, os defensores das primeiras põem
em causa a sua cientificidade, dando assim corpo a uma polémica que se tem
prolongado no tempo. A este propósito veja-se a polémica nacional entre
_ _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ „ = _ _ _ _ _ _ = = = _ _ _ „ = = „ _ _ „ = „ _ _ _ _ „ _ „ _ _ . . _ _ . „ _ „ „ _ _ „ 4 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Santos (1987, 2003) e Baptista (2002), a qual não é mais que uma réplica
tardia de idêntica controvérsia a nível internacional.
Face a isto, enunciarei as características gerais das diversas teorias
explicativas e aprofundarei um pouco mais aquela que, no meu entender,
melhor explica o que se passa na enfermagem. Assim e de acordo com Meleis
(1991, 1997), há três teorias distintas que tentam explicar o desenvolvimen
to das ciências^ teoria da revolução, teoria da evolução e teoria da integra
ção.
A Teoria da Revolução. Esta teoria foi desenvolvida por Thomas S. Kuhn
(1970, 1975), um físico norte-americano, durante a segunda metade do sécu
lo XX. Este pensador apercebeu-se que as explicações tradicionais que eram
dadas para o desenvolvimento da ciência (e.g., indutivismo, o falsificacio-
nismo) não resistiam à evidência histórica. Através da análise por si desen
volvida, Kuhn defendeu que a ciência não se desenvolve de modo linear, mas
sim através de mudanças repentinas e radicais, durante as quais as teorias
competem entre si até à predominância de uma sobre todas as outras. Este
processo repete-se ciclicamente e a um período de crise, segue-se outro de
tranquilidade, denominado de "ciência normal", durante o qual os membros
de uma dada ciência aceitam a predominância de uma determinada teoria.
O modo como Kuhn entende o progresso científico implica a compreensão de
alguns conceitos fundamentais por si propostos ou redefinidos, nomeada
mente: "paradigma", "ciência normal", "anomalia",e "revolução".
Assim, a fase que precede a formação de uma ciência, é caracterizada por
uma actividade muito diversa e por uma enorme desorganização. Esta só
cessa mediante a adopção de um paradigma que a estruture. No entender
deste autor (Kuhn, 1970, 1975), o "paradigma" será então, uma estrutura
mental assumida, que serve para classificar o real antes do estudo ou inves
tigação mais profunda, e que comporta elementos de natureza metodológi-
co-científica, mas também metafísica, psicológica, etc.
Por sua vez a "ciência normal", será o período em que se actua dentro de
um dado paradigma, que é adoptado por uma comunidade científica. Um
"paradigma" será então, segundo Kuhn (1972) o que os membros de uma
4 9 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ = = = = = = = = „ _ „ _ _ _ . . = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = =
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
comunidade científica parti lham ou seja, um conjunto de suposições teóricas
gerais, leis e técnicas para a sua aplicação. Por sua vez, uma "comunidade
científica" é constituída por pessoas que compartilham um paradigma.
Assim, durante o período de ciência normal os cientistas evoluem, dentro
dos problemas que o paradigma assumido permite detectar. Todavia, podem
experimentar dificuldades ou problemas que o paradigma não consegue
resolver. Estas são denominadas "anomalias". Quando as anomalias se acu
mulam ou adquirem uma significado considerável, instakvse uma crise que
só será resolvida pela emergência de um novo paradigma. Este período de
mudança repentina e violenta é denominado "revolução científica". Na
sequência deste, muda-se a forma de olhar o real e criam-se novos paradig
mas. Curiosamente, Kuhn descreve a adopção individual de um novo para
digma como uma espécie de "conversão" que envolve todo um possível con
junto de razões. Após a adopção de um novo paradigma inicia-se um período
de ciência normal até que uma nova crise se instale.
O autor defende que as crises são inevitáveis para o desenvolvimento de
uma ciência, e que o desenvolvimento científico é não-cumulativo. Ou seja,
os aspectos úteis de uma dada teoria não são utilizados por uma outra se a
primeira foi rejeitada. As ideias de Kuhn levam-nos à crença de que as dis
ciplinas se desenvolvem relativamente a um determinado paradigma aceite
em determinado momento.
Com base na teoria da revolução, a enfermagem e a maioria das ciências
sociais e humanas não poderiam ser consideradas ciências, situando-se ain
da no estádio pre-paradigmático (ver quadro 1).
Teoria da evolução. As ideias de Kuhn foram muito criticadas por alguns
autores (e.g., Laudan, 1977,' Toulmin, 1981). Curiosamente, Kuhn construiu
a sua teoria com base na análise histórica das ciências e com base em idênti
ca análise, estes outros autores criticaram a sua posição. A principal crítica
referia que a teoria da revolução não correspondia à realidade histórica do
desenvolvimento de determinadas ciências. Assim, como alternativa à teoria
desenvolvida por Kuhn, foi proposta a "teoria da evolução' (Toulmin, 1972).
==================================================================== 5 0
Dissertação de Doutoramento
Os utenlcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
Toulmin (1972) identificou quatro principios na teoria da evolução das
espécies de Darwin e usou-os para formular a sua teoria do desenvolvimento
do conhecimento. De acordo com o primeiro princípio, cada disciplina tem o
seu corpo de conceitos, áreas de preocupação, metodologias e objectivos pró
prios, todos eles em processo de mudança. Todavia, este processo de mudan
ça é dotado de continuidade e caminha no sentido de uma maior coerência.
Ou seja, verificar-se-á uma continuidade e uma mudança na direcção do
mais simples para o mais complexo e no sentido de uma maior coerência (ver
quadro l).
O segundo princípio afirma que as ideias, bem como os conceitos e meto
dologias, estão em permanente processo de discussão face às novas descober
tas. Deste processo resulta a retenção de alguns conceitos e a mutação de
outros, numa dinâmica de mudança mas em coerência e estabilidade. Ape
nas as ideias que se ajustam a este processo de mudança na continuidade,
permanecem ao longo dos tempos, conferindo estabilidade e coerência ao
desenvolvimento de uma disciplina.
O terceiro princípio refere que as alterações substantivas em um deter
minado campo de conhecimentos são possíveis desde que um determinado
número de condições estejam reunidas. Entre elas, a existência de pessoas
qualificadas que produzam novas ideias e a existência de espaços de discus
são. Ou seja, mesmo neste caso é pressuposta alguma organização para que
a evolução na continuidade ocorra.
O quarto e último princípio afirma que a escolha das ideias, conceitos e
teorias mais úteis, diz respeito à capacidade para encontrar respostas para
os problemas colocados pela disciplina em determinado momento.
A teoria da evolução do conhecimento pressupõe acordo quanto às áreas
problemáticas e aos critérios de verdade, e ainda quanto à existência de
indicadores de que a disciplina se está a desenvolver cumulativamente.
Com base nesta teoria, as ciências sociais e humanas, onde a enferma
gem se pode incluir, terão dificuldade em ser consideradas disciplinas, sendo
antes tidas como "pretendentes a disciplinas" (Meleis, 199D.
51 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Teoria da integração. Porém e independentemente do que acabei de
afirmar, existe uma realidade comum a diversas áreas do conhecimento que
não é explicada pelas teorias que referi. Tal é o caso de grande parte das
áreas do conhecimento que emergiram a partir de profissões, como é o caso
das ciências da educação, mas também da enfermagem, entre outras. Assim
e tendo em consideração as características específicas da enfermagem e da
sua evolução, poder-se-á afirmar que ela não obedece aos critérios enuncia
dos nas teorias atrás referidas porque está marcada, por um lado, pelo facto
de ter evoluído a part ir de um ofício, e pelo outro, por ter estado à margem
da academia durante tempos consideráveis. No conjunto destas razões não
será despiciendo o facto de ser uma profissão essencialmente feminina e
como tal, estar também marcada pela posição que a mulher tem ocupado na
sociedade ao longo dos tempos (Medina, 1999).
Apesar destas vicissitudes, a enfermagem enquanto área de conhecimen
to tem-se vindo a desenvolver. Todavia, quer por força do que atrás argu
mentei, quer das especificidades inerentes à enfermagem, bem como a
outras disciplinas análogas, não se poderão usar os padrões atrás referidos
para aferir a sua evolução e desenvolvimento. Aquelas especificidades têm a
ver, entre outras, com a sua natureza prática, de que mais à frente falarei.
Meleis (1991, 1997), afirma que na disciplina de enfermagem não se pode
falar de uma determinada matriz linear de evolução, uma vez que a mesma
progride através de cumes, vales, retrocessos, caminhos circulares e crises.
Deste percurso destaca-se:
S O desenvolvimento de uma teoria não está necessariamente baseado
na investigação, nem esta leva necessariamente a uma teoria.
•f Sempre existiram e existem áreas de acordo a par com áreas de
competição e de desacordo. Por exemplo, existem diferentes metodo
logias de investigação, diferentes conceitos sobre cuidar, conforto,
etc. Existem também áreas de acordo no que concerne aos conceitos
centrais da disciplina.
•S Numa disciplina que lida com o ser humano, é pouco credível que
uma única teoria explique, descreva e prediga todos os seus fenóme-
Dissertação de Doutoramento - 52
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
nos (e.g., interacção, doença, saúde, intervenções de enfermagem,
etc.).
S A enfermagem age num sistema aberto e é influenciada e reage à
sociedade em todo o momento.
S Não se pode dizer que existam na enfermagem comunidades organi
zadas que suportem uma teoria em competição com outras.
■S Pode dizerse que existe compromisso entre os antigos e os novos
conceitos na enfermagem.
■S Em situações de mudança, os antigos paradigmas são redefinidos,
mais do que rejeitados.
■S Verificase a existência de debate de ideias, quer à volta de conceitos
já estabelecidos, quer na procura de novos caminhos.
Apesar de este percurso não obedecer aos padrões de desenvolvimento
atrás enunciados, constatase que do mesmo tem resultado um rico e não
desprezível património. Pelo que, qualquer abordagem relativamente à
enfermagem enquanto disciplina terá que o ter em consideração. Terá que
fazer uma valorização cuidadosa dos seus padrões de crescimento e de
desenvolvimento, dos seus marcos, etapas e fenómenos, e terá ainda que
demonstrar a qualidade e significância das questões que colocou e das res
postas que deu (Meleis, 1991). Uma das respostas dadas pela disciplina de
enfermagem foi a perspectiva multiparadigmática. Ou seja, na tentativa de
compreender a complexidade do seu objecto de estudo, foi desenvolvendo
teorias passíveis de serem integradas em paradigmas diferentes. Esta foi a
razão apontada por muitos pensadores, quer pertencentes à disciplina, quer
externos, para não atribuírem à enfermagem o estatuto de ciência. Com
preendese agora que este processo resulta afinal da natureza do objecto de
estudo, bem como da natureza da enfermagem. Ou seja, para dar resposta à
natureza complexa do objecto de estudo, é necessário que esta área de
conhecimento se organize de forma complexa. Aliás, se esta organização
complexa não existir, não conseguiremos desenvolver a perspectiva holística
que dizemos ser característica da profissão e disciplina de enfermagem. Face
a isto, aquilo que aparentemente era uma limitação, é afinal uma virtude.
53 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Quadro 1 - Comparação entre os três processos de desenvolvimento de uma disciplina^ Revolução, Evolução e Integração.
UNIDADE ANALÍTICA REVOLUÇÃO EVOLUÇÃO INTEGRAÇÃO
SENTIMENTO Agressão^ Crises Adaptação Mudança INTERACÇÃO Competição Cumulação Colaboração
OBJECTIVOS Conquista Subversão
Construir Desenvolver
Progredir Compreender
PROCESSO
Substituição Eliminação Descontinuidade
De baixo para cima Selecção Simples para o complexo Continuidade
Abertura Flexibilidade Contemporâneo e tradicional Inovação
PADRÃO DE DESENVOLVIMENTO
Convergência Mutação Lento, de longo alcance
Diversão
RACIOCÍNIO Contraditório Lógico Dialéctico MODO Rejeição Aceitação Compreensão
AVALIAÇÃO Criticar para destruir Analisar para construir
Dialogar para desenvolver
AMBIENTE Crítico Desafio
Restritivo De suporte
OPÇÕES Sem opções durante o período de ciência normal
Opções limitadas Aberto/Opções ilimitadas
UNIDADES DE ANÁLISE
Paradigmas Mudanças
Méritos Competições Exigências Sucesso
História Padrões Desenvolvimento dos membros Número de fenómenos únicos identificados Qualidade das questões respondidas Actualização da relação entre investigação, teoria e prática
ENFERMAGEM Pré-paradigmática Pretendente a disciplina
Disciplina
Fonte: Meleis (1997)
Neste sentido se pronunciam também Monti & Tinge n (1999). No seu
entender, e porque a enfermagem lida com o comportamento humano em
saúde, um único ponto de vista não é suficiente para explicar a variedade de
fenómenos e de relações que se estabelecem neste contexto. A unificação teó
rica funciona como um microscópio, amplifica a visão de um aspecto muito
específico, porém perde-se a noção do todo. Ao contrário, a multiplicidade de
paradigmas permite a visão de diversas facetas de um mesmo problema.
Para além disso, estimula o debate. De acordo com a teoria da integração
^¾
Dissertação de Doutoramento '— 54
Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
(Meleis, 1991), é o debate e a competição de teorias que contribui definiti
vamente para a construção da disciplina de enfermagem.
Ainda de acordo com Monti & Tingen (1999), a existência de múltiplos
paradigmas na ciência de enfermagem indica-nos que estamos perante uma
ciência forte e com potencial de desenvolvimento. A coexistência de para
digmas múltiplos denota uma comunidade científica "saudável", porque esta
realidade encoraja a criatividade, estimula o debate e a troca de ideias e
proporciona uma maior diversidade de pontos de vista (Kim, 1997; Ramos,
1997), promove a produtividade cientifica e deixa abertas várias vias para a
investigação (Donaldson & Crowley, 1997).
Para que todos os aspectos atrás referidos sejam tidos em consideração,
Meleis (1991) propõe a teoria da integração. Trata-se de uma teoria que não
tem subjacente o padrão tradicional de progresso por convergência para um
paradigma, o que não quer dizer que esta teoria advogue a ausência de um
padrão ou um padrão negativo. Defende antes um padrão de progresso no
qual possam estar representadas as realizações de enfermagem e a sua base
teórica sólida. Do referido padrão fazem ainda parte processos como a aco
modação (no sentido piagetiano do termo), o refinamento (no sentido de um
requinte progressivo) e a coordenação entre pensamentos, ideias e indiví
duos. Daqui se pode depreender que esta teoria não subestima a necessidade
de desenvolvimento e de progresso inerente a qualquer ciência. Todavia,
abre a possibilidade de crítica cuidadosa de tudo o que existe e já foi feito,
bem como do que ainda falta realizar (Meleis, 1991). Quando a enfermagem
é analisada nestes termos, a sua aceitação enquanto disciplina parece não
levantar problemas (ver quadro l) .
2.1.2 - Critérios de percepção^ da "visão recebida" à "visão percebida"
Subjacente às três perspectivas de desenvolvimento de uma disciplina,
atrás enunciadas, está a questão da percepção da realidade. Efectivamente,
o modo de perceber a realidade de cada um, determinará, em última análise,
as características do processo de investigação, quer no que concerne à meto
dologia, quer às técnicas de recolha de dados, e consequentemente, o tipo de
5 5 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ _ « « » « _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
teorias que serão desenvolvidas. Fácil será perceber que, se entendermos a
realidade circundante como um mundo objectivo, então só os dados com
estas características serão de considerar, e as teorias tenderão a ser uma
representação fiel daquela. Se, por outro lado, tivermos da realidade uma
visão de realidade vivida e recriada pelo Homem, então a subjectividade ine
rente a essa vivência terá que ser considerada, tanto no processo de investi
gação, como nas técnicas de recolha de dados e nas teorias resultantes.
Estas diferentes perspectivas de percepção da realidade poderão agruparse
sob duas designações : a visão recebida e a visão percebida (ver quadro 2).
A visão recebida é normalmente a perspectiva atribuída ao movimento do
"positivismo empírico" ou ao "positivismo lógico". Este movimento filosófico
teve o seu início no século XIX e está associado ao célebre círculo de Viena.
De acordo com este movimento, só há duas fontes de conhecimento: o racio
cínio lógico e a experiência empírica. O conhecimento lógico inclui a mate
mática, a qual é redutível à lógica formal. O conhecimento empírico inclui a
física, biologia, psicologia, entre outras. A experiência é o único juiz das teo
rias científicas; contudo, os positivistas lógicos estavam cientes de que o
conhecimento científico não brota exclusivamente da experiência'■ as teorias
científicas são hipóteses genuínas que vão para além da experiência (Murzi,
2001).
Face ao exposto, pode então dizerse que este círculo advogava uma
amálgama da lógica com os objectivos do empirismo no desenvolvimento das
teorias científicas. Eram os seguintes os princípios doutrinários do empiris
mo lógico (Ryckman, 2001; Baldwin, 2004)):
1. As declarações que não poderem ser confirmadas por dados sensíveis e por
experiências sensíveis não são consideradas declarações teóricas merecedoras
de serem prosseguidas.
2. Declarações verdadeiras são somente consideradas aquelas que forem a poste
riori. Ou sejam, são baseadas na experiência e conhecenrse a partir da expe
riência.
3. Os positivistas olham para a maioria das tradicionais considerações metafísicas
e éticas como sem sentido. Os positivistas olham para essas questões como pos
suindo significado "emotivo" e como sendo "cognitivamente sem sentido".
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
4. A análise das teorias é baseada na análise de teorias completas e estas são ba
seadas em dados empíricos. O contexto de justificação - isto é, a verificação e
falsificação das preposições da teoria completa - é o único contexto significante
para consideração para estes cientistas e filósofos. Por outro lado, os contextos
de descoberta, tais como resultados conceptuais, contextos nos quais as teorias
são desenvolvidas, lógica no desenvolvimento teórico, e utilidade, devem estar
dentro do terreno de preocupação dos sociólogos do conhecimento1 os psicólogos
e historiadores.
5. Porque a visão recebida considera que a teoria reflecte representações da reali
dade à posteriori, documentada por experiências sensíveis, isto então implica
que as proposições das teorias são apresentadas de uma maneira simbólica,
formal e axiomática. Há lugar para análise à priori, ainda que seja somente de
natureza matemática.
6. A ciência é livre de valores, e há apenas um método para a ciência, que é o
método científico (Cf. Meleis, 1991, p. 89).
De acordo com alguns pensadores (e.g., Winstead-Fry, 1980; Watson,
1981), o método científico baseado na visão percebida é sinónimo de "redu-
cionismo, quantificabilidade, objectividade e operacionalização". Como tal, se
este método científico for adoptado de modo exclusivo na enfermagem, então
alguns problemas holísticos significativos serão ignorados porque eles não
são, nem redutíveis, nem quantificáveis ou objectivos. Isto porque este
método científico reduz os problemas à sua unidade mais pequena ou à sua
mais insignificante forma e extirpa-os do rico contexto do qual emanam.
Winstead-Fry (1980) e Watson (1981), entendem ainda que o percurso da
enfermagem em direcção a uma base científica tem sido dificultado pela
insistência dos seus líderes em usarem um método científico baseado na
visão recebida. Apesar disto, é de referir que, de acordo com uma análise de
141 trabalhos de investigação nacionais e internacionais, feita com base nos
itens, Conceitos Centrais, Perspectivas Teóricas, Metodologias e Principais
Resultados, constatei alguma predominância de metodologias qualitativas
(Lopes, 2001). De referir contudo que todos os trabalhos analisados corres
pondiam a um período de tempo não superior a cinco anos.
A visão percebida contrapõe-se à anterior e tem como correntes filosóficas
de referência a fenomenologia e o existencialismo (Husserl, Heidegger). Os
pensadores pertencentes a esta corrente filosófica tendem a justificar a cog-
5 7 =====================================================================
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
nição (e alguns também a avaliação e acção) como a consciência de algo.
Assim, de acordo com esta perspectiva, não só os objectos do mundo natural
e cultural, mas também os objectos ideais, como os números, e até a vida
consciente, podem tornar-se evidentes e como tal conhecidos.
A visão percebida considera o acontecimento, bem como o contexto em
que ele ocorreu e ainda a vivência dos intervenientes (ver quadro 2). Para
atingir esta visão ampla da realidade usa metodologias de investigação rigo
rosas, mas que considerem não só os dados ditos objectivos, como também os
subjectivos. As conceptualizações resultantes não pretendem ser uma repre
sentação objectiva da realidade, pelo que são baseadas, para além dos dados
sensíveis, nas experiências pessoais, incorporando ideias que são subjecti
vas, intuitivas, humanísticas, integrativas (Meleis, 1991, 1997).
Quadro 2 - Comparação da visão recebida com a visão percebida das ciências
Visão recebida Visão percebida Objectividade Subjectividade
Dedução Indução Uma verdade Verdade múltipla
Validação e replicação Tendências e padrões Justificação Descoberta
Predição e controle Descrição e entendimento Particular Padrões
Reducionismo Holismo Generalização Individuação
Positivismo empírico Historicismo Fonte: Meleis, 1991, 1997
As teorias de enfermagem que nos dão uma visão do fenómeno como uma
totalidade são baseadas nesta segunda perspectiva. O contexto de descober
ta dessas ideias tem sido o tradicional: estudos de caso, histórias pessoais, e
"insights"'de grupo. A aceitação desta visão tem sido lenta, porque as teorias
resultantes têm sido marcadas por alguns como não científicas, uma vez que
a perspectiva dominante ainda é a positivista.
2.1.3 — Critérios de verdade: da correspondência à verdade múltipla
Na construção e desenvolvimento de uma disciplina precisamos de consi
derar também os critérios de verdade. Se atentarmos no que atrás foi dito
Dissertação de Doutoramento ========== 58
Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação
acerca, quer do desenvolvimento das disciplinas, quer da percepção da reali
dade, fácil será perceber que subjacente às diferentes perspectivas estarão
com certeza critérios de verdade diferentes acerca das descobertas da inves
tigação. Face a isto, penso que seja pertinente responder à questão^ de que
critérios nos servimos para aceitar ou rejeitar as descobertas desvendadas
pela investigação? Esta é uma questão que é colocada desde a antiguidade,
tendo sido Platão um dos filósofos que primeiro a sistematizou. Desde então
emergiram basicamente três abordagens distintas^ correspondência, coerên
cia e pragmatismo (ver quadro 3).
Os critérios de verdade segundo a perspectiva da correspondência, estru-
tu ranrse através de um conjunto de regras cuidadosas, as quais apelam aos
dados sensíveis, a um pequeno número de variáveis e a definições operacio
nais. Durante muito tempo esta visão dominou as ciências, a investigação e
a construção teórica nas ciências físicas e naturais. E o método de verdade
no qual a visão recebida está baseada. De facto, vários filósofos das ciências
consideram a verdade por correspondência e a visão recebida como uma e a
mesma coisa. Porém, a visão recebida e a verdade, representam dois proces
sos diferentes. O primeiro conduz o processo de investigação, a metodologia
através da qual os dados são recolhidos e as teorias são desenvolvidas,"
enquanto que o último aplica-se ao exame das realidades e os resultados dos
achados. Enquanto que o primeiro pergunta o que fazer para saber, o último
pergunta como saber (Meleis, 1991, 1997).
Os empiricistas e os racionalistas, defendem a verdade através da cor
respondência, e como tal estabeleceram um conjunto de regras e normas com
base nas quais o desenvolvimento teórico e a investigação se espera que
sejam analisados. Uma das mais significativas é a do truísmo dos factos e a
sua correspondência com as teorias que os cercam (Meleis, 1991, 1997). Ou
seja, os factos são uma verdade que não é necessário demonstrar e como tal
as teorias têm que os reflectir tal como eles são. Com base nisto, natural
mente que uma das mais significativas normas de correspondência é a total
objectividade, advogando-se a separação do observador do mundo observado.
A validação é baseada na congruência entre as proposições e a realidade
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
existente, e não uma realidade como ela pode parecer a diferentes observa
dores. O papel dos teóricos é equiparar o mundo com as asserções e equipa
rar os factos com os conceitos. Os positivistas afirmam que a correspondên
cia da verdade é adquirida através da corroboração pela verificação. Ou seja,
verificar-se tantas vezes, que seja quase impossível aquela teoria não cor
responder à realidade. Popper (1959) modificou substancialmente a visão
positivista e desenvolveu o argumento da falsificação. Ele afirmava que o
conceito central na descoberta científica é "demarcação". O critério de
demarcação requer que consideremos a proposição científica apenas se ela
tiver o potencial de ser falsificada. Mas a sua cientificidade só será provada
quando tivermos esgotado todas as tentativas de falsificarmos as proposi
ções. Ou seja, são tentativas contínuas para falsificar as declarações que tor
nam o processo científico rigoroso. A verificação da declaração oposta pode
ocorrer após muitos incidentes de falsificação da declaração através da expe
riência. Desde que a proposição seja contradita por uma simples exemplo de
falsificação, ela deve ser rejeitada.
Apesar de positivista, no seu limite, esta perspectiva de Popper, levanta
va a possibilidade de nenhuma declaração poder ser declarada científica ad
eternum, uma vez que existe sempre a possibilidade de poder ser falsificada.
Para os teóricos da correspondência, enquanto a verificação ou a falsificação
são o foco, a verdade é alcançada através de dados sensíveis e experiências
controladas. A correspondência da realidade existente, dos factos e das pro
posições, é a meta. Não existe espaço para a metafísica, para a verdade con
ceptual, para realidades múltiplas ou para as percepções da realidade.
A perspectiva da verdade através da coerência difere consideravelmente
da anterior (ver quadro 3). A verdade através da coerência é manifestada na
maneira lógica como se relatam as inter-relações e julgamentos. Enquanto
que as normas para a correspondência são a verificação e falsificação com
dados sensíveis, as normas para a coerência são a integração das inter-rela
ções, simplicidade das apresentações e uma certa beleza das proposições
(Meleis, 1991, 1997).
_ _ _ _ = = = = = _ - _ _ _ _ _ _ „ = = = = = = = = „ „ _ _ „ _ = = = = = = = = = „ . _ „ _ _ _ „ . „ _ „ _ = = _ _ _ _ _ 6 0
Dissertação de Doutoramento
Os ulcnlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
Quadro 3 - Algumas características dos critérios de verdade de acordo com a correspondência, coerência e pragmatismo
PARÂMETROS PERSPECTIVAS PARÂMETROS CORRESPONDÊNCIA COERÊNCIA PRAGMATISMO
NORMAS Corroboração Lógica Experiência
CONTEXTOS Contexto da justificação
Contexto da experiência
Contexto da descoberta e justificação
METAS Aceitação/rejeição Suporte Compreensão REALIDADES Uma Múltipla
PAPEL DOS TEÓRICOS
Aparelhar o mundo com asserções
Viver com o mundo de asserções
Viver com os utilizadores PAPEL DOS
TEÓRICOS Distância Humanismo
Verificação Simplicidade Utilidade AVALIAÇÃO
Falsificação Beleza Resolução de problemas
PROCESSO Fim Processo Processo
VALIDAÇÃO Congruência entre proposições e realidade Tolerância de ideias Consenso dos utiliza
dores Fonte: Meleis, 1991, 1997
Embora as normas da correspondência e da coerência pareçam contradi-
zerenrse entre si, é no entanto, possível considerá-las como complementa
res. Enquanto usamos as normas da coerência para julgar e avaliar teorias,
podemos usar as normas da correspondência para julgar as proposições que
resultam da investigação.
Nos anos trinta do século XX, um terceiro tipo de teoria acerca da verda
de foi avançada por um grupo de filósofos americanos denominados pragma-
tistas (e.g., William James, John Dewey, George Mead). De facto, de acordo
com Armour (1969), há dois tipos de teorias pragmáticas sobre a verdade. De
acordo com a primeira, uma asserção é verdadeira se produz o tipo certo de
influência nos seus seguidores. Por outras palavras, uma proposição é decla
rada como verdadeira quando a sua utilidade for determinada por quem a
usa. A experiência e a habilidade para resolver problemas são duas normas
consideradas nesta visão da verdade. A segunda diz-nos que uma proposição
ou qualquer inter-relação teorizada, é verdadeira se receber confirmação de
uma pessoa ou pessoas que tenham conduzido a investigação correcta ou que
foram designadas como significativas pela comunidade académica. Neste
contexto e de acordo com esta teoria, um consenso entre os teóricos significa
tivos ou investigadores é o que constitui a verdade.
6 j _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Uma teoria pragmática da verdade permite a validação das teorias atra
vés da reestruturação, uso de novas técnicas, ou mesmo melhor conhecimen
to e realizações dos significados das velhas inter-relações. O valor desta
nova inter-relação não está tanto nas respostas que possa providenciar mas
nas perguntas que pode colocar e nas consequências que podem resultar do
seu uso.
Contudo, na enfermagem, bem como noutras disciplinas, existem alguns
problemas conceptuais que não são muito bem resolvidos por qualquer das
teorias de verdade referidas. Laudan (1977) identificou três. O primeiro des
ses problemas é intracientífico, e resulta, por exemplo, da existência de duas
teorias inconsistentes. Um exemplo pode ser a visão de Rogers (1970) do ser
humano unitário como um campo de energia, e a visão de Johnson (1974), do
ser humano como um sistema socio-comportamental, com sete subsistemas e
manifestado em comportamentos observáveis. Por causa da incompatibili
dade teórica entre as duas visões fundamentais do utente de enfermagem, os
enfermeiros podem tender a aceitar uma em detrimento de outra. A rejeição
da concepção de Rogers levar-nos-ia a criar uma escola de pensamento cien
tífico em enfermagem, reducionista. É também possível que a novidade da
enfermagem como disciplina, torne fácil rejeitar ambos os pontos de vista
em competição em favor de um outro mais estabelecido (e.g., a pessoa como
um sistema biológico), e em detrimento de resolver o problema central. Nem
o critério da correspondência nem o da coerência podem resolver este assun
to; apesar de tudo, ele é melhor resolvido através de uma abordagem prag
mática da verdade.
A segunda dificuldade tem a ver com inconsistências filosóficas resultan
tes do facto de as filosofias dominantes na enfermagem clínica serem dife
rentes das que predominam na disciplina a nível académico (Munhall,
1982).
À terceira dificuldade que não pode ser resolvida por nenhuma das teo
rias, Laudan chamou-lhe "dificuldades da visão do mundo prevalente" (Lau
dan, 1977, p. 61). Este fenómeno é observado quando os mitos, as crenças, a
história e a prática estão em oposição com as teorias em desenvolvimento. A
Dissertação de Doutoramento — 62
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
visão de enfermagem prevalente aplicada pelos clínicos é a de que a enfer
magem é prática e orientada para a tarefa e que os seus princípios bem
como as suas tarefas são derivadas de outras disciplinas. A enfermagem não
é teórica nem académica, diz esta visão do mundo.
Existe também tensão entre os investigadores que acreditam que as teo
rias se desenvolvem apenas a partir da investigação e os teóricos que acredi
tam que as teorias são o culminar da experiência, história e intuição, bem
como dos resultados da investigação. Tem havido muitas visões do mundo
na enfermagem, com muito pouca imputação a um visão teórica do mundo.
Para resolver muitos destes problemas na enfermagem é proposta a verdade
múltipla. Esta perspectiva tenta resolver os diversos problemas que nenhu
ma das teorias de verdade é capaz de resolver de modo isolado.
2.1.3.1 —A verdade múltipla na enfermagem
Suppe (1979), em alternativa às normas da correspondência e à visão
recebida, sugeriu que o que é preciso é uma perspectiva diferente a partir da
qual as teorias possam ser analisadas. Essa perspectiva deveria ter a capa
cidade de responder a alguns dos problemas atrás referidos e considerar a
complexidade do ser humano. Na tentativa de encontrar essa nova perspec
tiva aquele autor sugeriu a expressão alemã Weltanschauung que é definida
como "uma visão compreensiva do mundo, especialmente a partir de um
determinado ponto".
Esta visão compreensiva do mundo, enquanto teoria da verdade aplicada
à enfermagem teórica, incluiria uma integração das normas emanadas a
partir de diferentes teorias da verdade. Combinaria rigor e intuição, dados
sensíveis tais como eles existem e tal como eles aparecem, percepção do
sujeito e do teórico e lógica com dados clínicos observáveis.
E porquê este "fato à medida" para apreciação das teorias de enferma
gem? Não estaremos a tentar encontrar normas à medida das teorias para
depois podermos afirmar a enfermagem como disciplina científica? É minha
convicção que tal não é verdade. Efectivamente não são as teorias que são
contraditórias e diversas, ou se o são elas simplesmente resultam da tenta -
63 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
tiva de compreensão de um fenómeno de elevada complexidade. Não pode
mos rejeitar uma teoria simplesmente porque não está de acordo com a nos
sa perspectiva paradigmática. Deveremos antes interrogar-nos se ela ajuda
a compreender alguma faceta do ser humano. A ser afirmativa a resposta,
então a mesma deve permanecer e como critérios de verdade deverão serem
usados os especificos dessa perspectiva paradigmática.
Alguma investigação em enfermagem tem sido guiada pela visão positi
vista e pela correspondência. Algumas teorias desenvolvidas também têm
sido guiadas por estas normas. Por exemplo Orlando (1961) e Johnson
(1974) desenvolveram teorias focadas em comportamentos observáveis e
verificáveis. Por sua vez, Rogers (1970), na conceptualização do ser humano
unitário como um campo de energia, falou de experiências para além dos
cinco sentidos. Com base nisso, não poderia usar as normas da correspon
dência para verificar a sua conceptualização, mas em vez disso usou as nor
mas da coerência. Muitos outros defenderam a necessidade de considerar
mos as normas da coerência na conceptualização em enfermagem e sugeri
ram que a verdade emana da lógica (Batey, 1977; Beckstrand, 1978a, 1978b;
Dickoff, James & Wiedenbach, 1968).
Mais tarde Johnson (1974), introduziu uma perspectiva pragmática e
sustentou que a decisão acerca da adequabilidade do modelo que guia a
enfermagem é social e não exclusiva dos teóricos ou dos investigadores. Isto
porque, se o conhecimento e as acções de enfermagem fazem uma diferença
apreciável na vida das pessoas, então a decisão acerca dos critérios de ver
dade também lhes deve pertencer.
2.1.4 - Resumindo
Terminado este enquadramento epistemológico e em jeito de resumo,
pode-se afirmar que o desenvolvimento da enfermagem enquanto disciplina,
bem assim como de outras disciplinas com características semelhantes, se
compreende melhor se perspectivado a part ir da teoria da integração
(Meleis, 1991, 1997). Tal significa que o processo de desenvolvimento se
caracteriza pela sua flexibilidade, abertura à contemporaneidade e à inova-
^ $ ?
Dissertação de Doutoramento — 64
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ção, ainda que respeitando a tradição. Significa por outro lado que se privi
legia o raciocinio dialéctico na compreensão dos fenómenos.
Por sua vez e relativamente aos critérios de percepção, preconiza-se a
visão percebida. Com base nesta perspectiva podem ser considerados não só
os fenómenos ditos objectivos, mas também os denominados como subjecti
vos, bem como o contexto em que se inserem. Por último e no que se refere
aos critérios de verdade, advoga_se o princípio da verdades múltipla, com
base na qual se pode ter uma perspectiva compreensiva do mundo.
Com o enquadramento conferido por estes três parâmetros de natureza
epistemológica (i.e., critérios de desenvolvimento, de percepção e de verda
de), é possível afirmar a enfermagem enquanto disciplina de conhecimento.
Todavia, tal não é um fim em si próprio, até porque, por força do mesmo
enquadramento, uma disciplina de conhecimento é um processo inacabado.
Uma disciplina de conhecimento será mais um projecto em construção sis
temática que um produto. Tal é particularmente verdade em disciplinas com
as características da enfermagem. Ou seja, disciplinas que se alimentam e
alimentam uma profissão ou disciplinas práticas (Strasser, 1985). Por força
desta circunstância, os problemas colocados à disciplina serão sempre novos
e diferentes.
Através deste enquadramento epistemológico afirmei também uma
determinada perspectiva, a qual define o modo como entendo a enfermagem
e que condiciona as opções metodológicas que mais à frente apresentarei.
Contudo e apesar deste enquadramento, carecem de ser esclarecidas
outras características da enfermagem, nomeadamente as que dizem respeito
à sua natureza de disciplina/profissão e à estrutura essencial da disciplina.
Só a partir do conjunto destes elementos se poderá problematizar o fenóme
no em estudo e as opções metodológicas.
2.2 - A ENFERMAGEM ENQUANTO DISCIPLINA-PROFISSÃO
Este capítulo tem como objectivo apresentar e caracterizar a enfermagem
como disciplina/profissão, ou seja, como uma disciplina que, dada a sua
natureza precisa da profissão para se desenvolver e vice-versa. Esta caracte-
65 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
rística será particularmente evidente na primeira parte, a qual é dedicada à
natureza da enfermagem. Num momento posterior, darei realce à disciplina,
fazendo referência aos principais elementos estruturantes.
2.2.1 - Da natureza da enfermagem^ padrões de conhecimento
Para que se perceba a natureza de uma área de conhecimento, é necessá
rio definir as suas características mais fundamentais e estruturantes, do
ponto de vista epistemológico. Esta definição é útil para os membros dessa
disciplina mas também para todos os outros. Pelo que, estou convicto, é um
processo de grande utilidade na enfermagem dado o seu estádio de desen
volvimento. Ou seja, é aceite pelos membros da disciplina de enfermagem
que esta precisa de ser mais desenvolvida e estruturada enquanto discipli
na. Isto torna-se tanto mais pertinente quanto mais reconhecemos a impor
tância desta área do saber para o benres tar das pessoas. E torna-se tanto
mais difícil quanto mais conhecemos as dificuldades inerentes ao processo
de desenvolvimento de novas áreas de conhecimento e particularmente, se o
seu desenvolvimento estiver associado a uma história com as características
das da enfermagem.
Mas então, qual é a natureza da enfermagem? Esta é uma questão que
está presente pelo menos desde Nightingale. Efectivamente, na cultura oci
dental, esta parece ter sido a primeira pessoa a tentar responder a esta
questão. Após ela, e fruto de contingências várias, seguiu-se um longo inter
regno durante o qual estas questões parecem terem ficado adormecidas ou
esquecidas. Só após os anos cinquenta do século XX se retomou de novo esta
questão. Para além das múltiplas explicações que poderemos encontrar para
este facto, estou convicto que ao mesmo não será estranho a coincidência de
só a part ir desta data haver formação avançada na enfermagem. A favor
desta minha convicção está o facto de as primeiras reflexões sobre esta
temática terem surgido nos Estados Unidos da América, país onde se iniciou
a formação avançada para enfermeiras, exactamente na década de cinquen
ta do século XX.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
As tentativas de resposta à questão atrás colocada (i.e., qual é a natureza
da enfermagem?) têm seguido caminhos diversos, porém, têm uma metodo
logia em comum: observação da realidade da enfermagem. Ou seja, os mais
diversos pensadores tênrse dedicado a observar a realidade da enfermagem
nas suas diversas facetas: na prestação de cuidados, mas também nos traba
lhos de investigação produzidos, nos artigos de opinião, nos construetos teó
ricos, no ensino, entre outras. A partir dessa observação tentam tirar ilações
acerca da natureza da enfermagem.
Um dos primeiros e mais importantes trabalhos sobre esta problemática
foi desenvolvido por Carper (1978). Esta autora, com base na análise da lite
ra tura de enfermagem, entendeu que uma das suas características funda
mentais era os seus padrões de conhecimento. Como tal, propôs quatro
padrões fundamentais e duradouros de saber que os enfermeiros valorizam e
usam na prática:
S Saber Empírico ou a ciência de enfermagem,'
S Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem,'
S Saber Pessoal na enfermagem,'
•S Saber Estético ou a arte na enfermagem.
Após esta autora, mas com base nela, várias outras deram contributos
diversos, das quais destaco: Munhall, (1993), Silva, Sorrell & Sorrell, (1995),
White, (1995), Wolfer, (1993) e Chinn & Kramer, (1983, 1987, 1991, 1995,
1999). A continuidade e perenidade destes trabalhos, parece-me consti-
tuir-se como uma referência fundamental e incontornável.
Esta proposta de classificação do saber em enfermagem, assenta no pres
suposto de que a prática de enfermagem é complexa e exige em cada momento
um leque diversificado de saberes. Ao categorizar os saberes desta forma,
nenhum destes autores pretende transmitir a ideia de fragmentação da práti
ca da enfermagem. Ou seja, apesar da categorização em quatro padrões de
saber, a ideia do saber e da acção como um todo complexo persiste.
Tenho estado a usar sistematicamente termos como: Saber, Conhecimen
to e Prática. Independentemente de todas as possíveis explicações futuras
67 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação
entendo ser adequado definidas desde já, para se perceber melhor o discurso
produzido.
Assim, Saber é definido neste contexto como uma forma de se perceber e
entender a si próprio e ao mundo. É portanto, um processo de mudança
ontológico e dinâmico (Chinn & Kramer, 1999). Por sua vez Conhecimento
refere-se ao que pode ser partilhado e comunicado aos outros. Representa
adicionalmente o que é colectivamente tomado como sendo considerado
razoavelmente exacto do mundo actual, como ele é conhecido pelos membros
da disciplina. No caso da enfermagem, o conhecimento será uma representa
ção do saber que é colectivamente julgada por padrões e critérios partilhados
pela comunidade de enfermagem (Chinn & Kramer, 1999). Assim, que os
padrões de saber atrás referidos, possam também ser entendidos como
padrões de conhecimento. A passagem de padrões de saber a padrões de
conhecimento depende, como adiante se verá, de um processo de nomeação,
de parti lha e de sujeição dos saberes pessoais a critérios aceites pela comu
nidade de enfermagem. Passo então à explicitação de cada um dos padrões
referidos (ver figura l) .
2.2.1.1 — Saber Empírico ou a ciência de enfermagem
O Empírico enquanto padrão de saber, tem a ver com as ideias tradicio
nais de ciência, a partir das quais a realidade é vista como algo que pode ser
conhecido pela observação e verificado por outros observadores. O saber
empírico expressa-se na prática através da competência científica dos enfer
meiros. Ou seja, através do saber encarnado que torna possível uma acção
competente, fundamentada numa teoria científica (Carper, 1978). Portanto,
este saber não tem só a ver com capacidades de investigação, mas também
com a capacidade de resolução de problemas concretos a part ir de conheci
mentos científicos e com base num raciocínio lógico. Pelo que, pressupõe
competências cognitivas que envolvem capacidade de resolução de proble
mas e raciocínio lógico.
Dissertação de Doutoramento
Os ulciilcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
0 conhecimento empírico é formalmente expresso através de teorias
empíricas e o seu desenvolvimento tem a ver com o uso dos métodos científi
cos usualmente conhecidos (ver figura l).
2.2.1.2 — Saber Ético ou a componente moral do saber na enfermagem
De acordo com alguns autores (e.g., Watson, 1985, 1988; Bishop & Scud-
der, 1991; Medina, 1999), a ética será sempre a primeira dimensão da
enfermagem. Isto porque a prestação de cuidados de enfermagem ocorre
sempre no contexto de uma interacção e esta deverá sempre ser entendida e
conduzida por princípios ético-morais. Mas, para além disso, e no contexto
dos cuidados de enfermagem, o enfermeiro precisa a cada momento de fazer
julgamentos morais (Chinn & Kramer, 1999) e tomar decisões baseadas nos
princípios da justiça equitativa (Kohlberg, 1981, 1984). Assim, o saber ético,
sendo um pré-requisito para a prestação de cuidados de enfermagem
(Munhall, 1982), não é um dado adquirido e imutável, resultando antes num
desenvolvimento contínuo e sistemático, fruto da actividade interactiva e
reflexiva do sujeito (Lourenço, 1992). Ou seja, o enfermeiro desenvolverá
sistematicamente este saber, desde que preste cuidados e reflicta sobre os
mesmos (Lopes, 1999). Também este saber pressupõe capacidades cogniti
vas.
O saber ético manifesta-se em comportamentos constatáveis pelos uten
tes e observáveis pelos pares. Ou seja, os utentes serão os primeiros a cons
tatar se tal ou tal comportamento se regeu por princípios éticos, uma vez
que, na prestação de cuidados, estes serão o "objecto" dos comportamentos
dos enfermeiros. Mas o comportamento ético dos enfermeiros não é um
assunto da esfera privada da relação enfermeiro/utente. Sendo a enferma
gem uma profissão autónoma, possui códigos deontológicos (Decreto-Lei
104/98 de 21 Abril - Secção II) que se torna dever de todos cumprir e fazer
cumprir (ver figura 1).
69 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
2.2.1.3 — Saber Pessoal na enfermagem
O saber Pessoal tem a ver com a capacidade que cada enfermeiro tem de
se conhecer a si próprio. Este saber radica, mais uma vez, na característica
de os cuidados de enfermagem ocorrerem no contexto de um encontro entre
duas pessoas. Mas mais do que isso. Se considerarmos que uma das caracte
rísticas fundamentais dos cuidados de enfermagem é o processo de interac
ção entre o enfermeiro e o utente, compreendemos melhor a dimensão deste
saber. Ou seja, se na prestação de cuidados usamos o nosso "eu" como ins
trumento terapêutico, então, para que essa acção seja eficaz, precisamos de
ser detentores de um auto-conhecimento elevado e de possuirmos uma noção
de integração do "eu". Só desta forma conseguiremos expressar o nosso "eu"
genuíno e demonstrarmos comprometimento, o que tornará a nossa acção
terapêutica e eficaz (ver figura l) .
O desenvolvimento do saber pessoal resulta também, em grande parte,
da actividade construtiva do próprio sujeito. Ou seja, resulta das interacções
que estabelecer e da capacidade de reflectir sobre as mesmas, procuran-
do-lhe os significados profundos para si próprio. Este processo poderá ser
facilitado através de reflexões grupais. Uma outra forma de proceder à pro
cura deste significado profundo das vivências poderá ser através da expres
são artística.
2.2.1.4 - Saber Estético ou a arte na enfermagem
Entendo este saber numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, a que
decorre do que atrás acabei de dizer. Ou seja, como resultado da busca de
significado pessoal das vivências do enfermeiro, pode resultar uma criação
artística de elevado valor estético, quer para os pares quer para as pessoas
em geral. E isto é possível, entre outras razões, porque as situações com que
os enfermeiros se deparam, são experiências humanas extremas, de grande
significado para todos os que nelas participam.
Em segundo lugar, o cuidado de enfermagem é artístico em si mesmo
porque é criativo por natureza. Por outras palavras, a enfermagem não é
uma técnica, mas sim uma ciência humana prática (Strasser, 1985). Portan-
» _ _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ _ „ = = = = „ _ _ _ „ = = = _ _ _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ „ _ _ _ „ „ _ _ _ _ _ 7 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
to, não é a aplicação de uma teoria a uma determinada situação, mas antes
a capacidade de reflexão e acção que ocorrem em sincronia e que derivam da
totalidade do Saber e do Conhecimento na prática de enfermagem. Ou seja,
é a capacidade de, perante cada situação, que é diferente da anterior porque
é humana, sermos capazes de dar uma resposta adequada, logo criativa por
que sistematicamente diferente.
Este saber desenvolve-se estimulando tudo o que existe de mais criativo
no ser humano.
2.2.1.5 — Processos para o desenvolvimento do conhecimento em enfer
magem
Em função da distinção anteriormente enunciada entre Saber e Conhe
cimento, torna-se necessário perceber quais os processos que nos permitem
passar do saber ao conhecimento e quais os critérios partilhados pela comu
nidade de enfermagem que permitem julgar o conhecimento. Dito por outras
palavras, sabemos que o Saber é um processo de mudança ontológico e
dinâmico (Chinn & Kramer, 1999); sabemos também que relativamente à
prática de enfermagem a conhecemos mais do que a conseguimos comunicar
ou justificar como conhecimento; então, precisamos que o Saber individual
passe para o dominio da comunidade de enfermagem, ou seja, que cada
enfermeiro partilhe, comunicando (i.e., tornando comum) o seu saber. Preci
samos ainda que as expressões não discursivas da prática encontrem a sua
linguagem para, desta forma, podermos construir o Conhecimento em
enfermagem. Estas razões constituem-se como alguns dos principais argu
mentos justificativos do trabalho por mim desenvolvido. Ou seja, tentar
identificar algum do saber dos enfermeiros e nomear algumas das expres
sões não discursivas por eles usadas.
Os padrões de Saber, atrás enunciados, passam assim a padrões de
conhecimento. A figura 1 ajuda-nos a compreender como funcionam e como
se desenvolvem estes padrões de conhecimento. Aquela, é uma representa
ção de como o processo único e expressões de cada padrão contribuem para o
todo do conhecimento. Na figura 1, cada um dos quatro padrões fundamen-
71 Dissertação de Doutoramento
Os utenlcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
tais é representado num quadrante. Na periferia de cada quadrante estão as
questões criticas que cada padrão coloca. Dirigindo-se ao centro de cada qua
drante, uma seta larga representa as formas de expressão do conhecimento
dentro do padrão. A seta aponta para o centro da esfera, mostrando a práti
ca ou expressão de acção do saber que está associada com o padrão. A esfera
central é vista como um todo, sem quadrantes nem fronteiras, representan
do a visão de que na prática de enfermagem, o saber é experimentado como
um todo e não como um padrão discreto. Ao longo dos eixos verticais, repre
sentados por setas ponteadas, está o processo para o desenvolvimento das
expressões formais de conhecimento. Ao longo do eixo horizontal, represen
tado por setas ponteadas, está o processo colectivo usado dentro da discipli
na para validar ou autenticar o que é conhecido (Chinn & Kramer, 1999).
A área exterior, onde as questões críticas aparecem, e a esfera interior,
mostra a expressão da acção do saber, representa a dimensão ontológica do
saber. Os processos vistos ao longo dos eixos verticais e horizontais repre
sentam a dimensão epistemológica do processo para o desenvolvimento e
autenticação do conhecimento (Chinn & Kramer, 1999).
A partir destes processos, formas discursivas de expressão formal são
criadas e podem ser apresentadas aos membros da disciplina. Na figura 1,
estas são mostradas nas setas largas dirigidas ao centro da esfera. A inves
tigação empírica conduz ao desenvolvimento de teorias, modelos e outras
expressões formais, tais como declarações de factos e estruturas conceptuais.
A investigação pessoal conduz à criação de histórias autobiográficas e
expressões vividas da forma de estar dos enfermeiros em situação de cuida
dos. Estas experiências vividas de ser o que somos é o que se denomina o
"eu" genuíno. A investigação ética conduz aos princípios éticos e códigos e a
outras expressões tais como teorias e preceitos que guiam a conduta ética na
prática. A investigação estética conduz ao criticismo estético que revela sig
nificados profundos incrustados nos actos-arte de enfermagem e trabalhos
de arte que simbolizam a experiência da enfermagem.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 1 Padrões de conhecimento em enfermagem
O que é isto?
Como é que isto funjetema?
EMPÍRICO, A
« t
Replicação
Validação
Diálogo
Justificação -
«U
Explicando 1 Abrindo ^
Estruturando | Centrando
Sei o que estou a fazer? JÉ^^ faÇo o 1 u e sei?
/ IMPESSOAL
^ / \ L^*^~~ ▼
s^^ ; ; ; ;_^^^^ <. Resposta \
competência Uso terapêuticc*x/~~~~~~~^ Reflexão \
científica do Self
Comportamento Actos/arte ético/moral transformativa Apreciação
Inspiração
\ X % \
J > S* /Valorizando! Revendo
>* / Clarificando; Re-ouvindo
ÉTICA Isto está certo?
Isto será responsável?
W^ ESTÉTICA
O que é que isto significa?
Até que ponto é significante?
Fonte: Chinn & Kramer, 1999
Resumindo, podemos dizer que a enfermagem é constituída por uma totalidade de
saberes (empírico, ético, pessoal e estético) que se originam na prática e aí se recriam
em cada cuidado. Estes saberes têm processos próprios de se desenvolverem e se trans
formarem em expressões discursivas da prática de enfermagem, assumindose assim
como conhecimento em enfermagem.
Relativamente ao conceito de Prática, usáloei no sentido praxiológico,
ou seja, e tal como mais atrás já referi, reflexão e acção que ocorrem em sin
cronia e que derivam da totalidade do Saber e do Conhecimento e que se
constituem como actividade construtora do sujeito. O conceito de "prática"
enunciado desta forma, surge desenquadrado face à velha dicotomia teo
ria/prática (Lopes, 1999), pelo que carece de uma explicação mais detalhada.
73 Dissertação de Doutoramento
Os ulcntcs c os enfermeiros: Conslrução ele uma relação
Para o fazer socorrer-me-ei em primeiro lugar da raiz etimológica da
palavra "prática", bem como do seu significado original. Assim, podendo-se
aceitar origens diversas para esta palavra, adopto a que deriva etimologi
camente da expressão grega TtpctÇiç (praxis). Esta foi então definida por
Aristóteles como um dos três grupos em que as actividades humanas podiam
ser divididas. As outras duas seriam Theoria e Poiesis, sendo que cada uma
destas actividades implicava formas de conhecimento distintas. Assim, a
Theoria estava relacionada com Sophia, ou conhecimento teórico; a Praxis
estava relacionada com Phronesis ou conhecimento prático, e a Poiesis esta
va relacionada com Techne ou conhecimento artistico. Também os critérios
de sucesso eram distintos de umas actividades para outras. O fim último da
Theoria era a Verdade, da Praxis a Felicidade, e da Poiesis a Produção de
algo bom (Allmark, 1995).
Neste conceito aristotélico de praxis cabiam actividades como o governo
de comunidades, visto que o seu objectivo era a política e a ética (Allmark,
1995). No entanto, e de acordo com Maclntyre (1990), o conjunto das práti
cas é mais extenso e inclui as artes, as ciências, os jogos, a política, no senti
do aristotélico do termo, a composição e o sustento da vida de família, etc. O
termo "prática" foi redefinido por esta autora (Maclntyre, 1990) da seguinte
forma: com a expressão "prática" pretende-se significar qualquer actividade
humana cooperativa, coerente e complexa e socialmente estabelecida. Todas
as actividades humanas com estas características possuem bens internos e
estes são realizados durante a tentativa de se alcançarem os padrões de
excelência que são considerados apropriados, e parcialmente definitivos,
para essa forma de actividade. Como os padrões de excelência considerados
apropriados nunca são definitivos, a ampliação e a busca constante dessa
excelência tem consequências. Ou seja, a ampliação sistemática da capaci
dade humana para alcançar a excelência e as concepções humanas dos fins e
dos bens envolvidos.
Desta concepção de prática, gostaria de destacar a noção de bem interno
e de excelência que lhe está associada. O bem interno é a meta da competi
ção para a excelência, e "ao ser alcançado transforma-se num bem para toda
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
a comunidade que participa nessa prática" (Maclntyre, 1990, pp. 190-191).
No entanto, a autora defende que os bens internos só poderão ser alcançados
por aqueles participantes que possuírem virtudes, ou seja, por aqueles que
tiverem adquirido uma qualidade humana cujo exercício os capacite para
alcançar esses bens. Por outras palavras, segundo Maclntyre (1990), "temos
que aceitar como componentes de qualquer prática com bens internos e
padrões de excelência, as virtudes da justiça, da coragem e da honestidade"
(p. 191).
Curiosamente e apesar de esta ser uma redefinição face à original con
cepção aristotélica, acaba por, de algum modo, lhe dar continuidade na
medida em que, tal como então, também aqui se considera que as virtudes
são inerentes às acções do sujeito e que estas estão sujeitas a avaliação
moral. A prática, enquanto processo de acção/reflexão do sujeito, é assim
imbuída de uma dimensão ético-moral que pode, ao mesmo tempo, ser pro
motora do desenvolvimento moral do próprio sujeito. Foi também nesta
linha de raciocínio que Kohlberg (1981, 1984) propôs a sua teoria de desen
volvimento do raciocínio sócio-moral, cujo princípio moral por excelência é a
justiça.
Face a isto, poder-se-á então dizer que uma prática consiste num sistema
completo de significados e não numa habilidade particular envolvida numa
determinada actividade (Bishop & Scudder, 1991). Assim sendo, não será
uma prática dar um pontapé numa bola com perícia ou assentar tijolos
numa parede, plantar batatas ou lavar uma pessoa. Mas será já uma prática
o jogo de futebol ou a arquitectura, a agricultura ou os cuidados de higiene.
Apesar disto, se considerarmos a abordagem clássica mais comum, cons
tatamos que a teoria é o que pertence à ordem do universal, do abstracto,
das "terras altas", do dedutivo, do aplicável, do transponível para a prática.
Ao contrário a prática é o que pertence à ordem do contingente, do local, do
efémero, do complexo, do incerto, das "terras baixas", do indutivo, do que se
alimenta da teoria (Barbier, 1998).
Pelo que, na senda de Maclntyre (1990), no campo da filosofia, mas tam
bém de diversos investigadores sociais de diferentes áreas (e.g., Barbier,
75 —-———-—----------—--——————————-—————------—--Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
1998; Schõn, 1996, 1998; Argyris & Schõn, 1980; Le Boterf, 1995; Chariot,
1976; Atlet, 2000), há alguns anos a esta parte, começoirse a olhar de forma
diferente para as competências práticas, os saberes escondidos, os saberes
da experiência, os saberes informais, as habilidades adquiridas na acção e
pela acção, os saberes de acção ou os saberes relativos à transformação do
real. Estes saberes estão associados a qualquer actividade humana, embora
no caso presente me interessem os associados ao exercício de uma profissão.
O novo olhar, bem como o seu estudo, deu lugar, cada vez com mais frequên
cia, especialmente nas suas novas formas de organização, de formação ou de
investigação, à sua enunciação e à formulação, o que tende a consolidados
no seu estatuto de saberes e a aproximados dos saberes teóricos. Estes novos
saberes ao integrarem o corpo de conhecimentos da disciplina associada a
uma determinada profissão, dão corpo e sentido àquilo que alguns designam
como disciplinas-profissão. Este constitui-se como outro importante argu
mento justificativo do estudo que desenvolvi.
Mas em que consistem exactamente estes saberes? De acordo com Bar
bier (1998), Schõn (1996, 1998), Argyris & Schõn (1980), Chariot (1976),
Atlet (2000), entre outros, o exercício de uma actividade profissional exige
aos seus actores uma atitude que lhes permita, em cada momento, respon
der às solicitações, sempre diferentes, que a realidade com que lidam lhes
coloca. Esta atitude tem algumas características interessantes e que têm
merecido a atenção dos pensadores e investigadores. Assim, as situações
com que os profissionais se deparam no seu dia-a-dia são dinâmicas por
natureza e portanto, sempre diferentes, pelo que exigem uma resposta com
idênticas características, a qual não pode ser prescrita por nenhum saber
teórico prévio. Na sua resposta o profissional, precisa de se equacionar
enquanto pessoa e profissional, mas precisa também de considerar e equa
cionar o contexto em que se insere bem como o objecto da sua acção e as suas
características. A esta capacidade de responder de modo complexo e dinâmi
co vários autores chamam de competência (Le Boterf, 1995; Schõn, 1998;
Benner, 2000). O que as competências têm de interessante é que, primeiro,
só podem ser conjugadas na prática, portanto em contexto; segundo, são fru-
Disserlação de Doutoramento
; ' ' Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
to da actividade construtiva do sujeito em interacção consigo próprio e com
os que o rodeiam; terceiro, são constituídas por um conjunto de saberes de
natureza diversa; quarto, os próprios actores podem não ter consciência ple
na de alguns desses saberes.
Neste contexto, o estudo das competências práticas e dos saberes que
lhes estão associados torna-se um aspecto de grande importância, não só
para os investigadores e para as disciplinas, mas também para os próprios
actores, na medida em que estes, através da acção reflexiva sobre as pró
prias práticas, tendem a desenvolver-se.
Na enfermagem, Collière (1990), ao referirse ao processo de profissiona
lização, afirma que "todos os ofícios que têm como base o saber das suas prá
ticas podenrse profissionalizar sem prejuízo, pois têm as suas raízes" (p. 46).
Isto é, considera que a enfermagem tem por base "o saber das suas práticas",
e que a profissionalização se poderá por isso fazer sem receios. Deste modo, é
colocado em lugar central o papel da prática e do saber prático. Para além
desta, também outros autores e investigadores de enfermagem (e.g., Chinn
& Kramer, 1999; Bishop & Scudder, 1991; Benner, 1984; Benner & Wrubel,
1989) atribuem centralidade à prática, reforçando a sua função primordial
na construção e desenvolvimento do corpo de conhecimentos específicos da
disciplina.
Mas também a definição de prática de Maclntyre (1990) poderá ser apli
cada à enfermagem. Senão vejamos. Parece-me que ninguém colocará em
dúvida que a enfermagem é uma "actividade humana cooperativa, coerente
e complexa e socialmente estabelecida". E uma actividade humana, quer
porque é executada por seres humanos, quer porque se dirige a outros seres
humanos. É duplamente cooperativa na medida em que carece de um gran
de sentido de cooperação entre os profissionais, e em que a pessoa necessita
da dos cuidados é também co-responsável e co-prestadora de cuidados. Por
fim, é socialmente estabelecida, pois que, de acordo com Collière (1989),
"cuidar não pode ser um acto isolado, amputado de toda a inserção social....
Cuidar é um acto social.... e implica uma responsabilidade social" (p. 324).
7 7 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Se aceitamos estes aspectos como verdadeiros, então também teremos
que aceitar que esta actividade possui bens internos. Afirmamos isto porque,
de acordo com Maclntyre (1990), todas as actividades humanas com aquelas
características possuem bens internos. A corroborar esta afirmação Benner
& Wrubel (1989), assumem que a prática de enfermagem é um todo sistemá
tico com uma noção de excelência inerente à própria prática: "a excelência
está incorporada na própria prática, e a prática é, por isso, uma arte moral e
não simplesmente uma ciência aplicada ou tecnologia" (Benner & Wrubel,
1989, pp. 19-20). Por sua vez, Watson (1988) define o conceito de "human
care" como um processo entre seres humanos (i.e., enfermeiro e pessoa) que
implica um compromisso moral de protecção da dignidade humana e preser
vação da própria humanidade. Para este compromisso moral ter verdadeira
expressão, não se pode reduzir a mera retórica. De salientar, aliás, que a
própria autora refere que o "cuidar só pode ser verdadeiramente demonstra
do e praticado interpessoalmente" (Marriner, 1989, p. 168). Conjugando isto
com o referido por Benner & Wrubel (1989), jamais se conseguirá algo que é
apresentado como "o ideal moral da enfermagem", se nos limitarmos à apli
cação de um conjunto de técnicas aprendidas. É necessário que o enfermeiro
participe na prática, para que consiga atingir uma excelência que lhe permi
ta pôr a técnica ao serviço da pessoa de forma criativa, transformando assim
a prestação de cuidados numa arte, e preservando deste modo a dignidade
da pessoa.
Não pretendo que daqui se conclua que defendo uma clivagem entre a
teoria e a prática com valorização de uma face à outra. Pretendo, tão só, afir
mar a enfermagem como uma prática e chamar a atenção para o facto de
que essa prática vai além de qualquer saber teórico e/ou técnico que possa
mos considerar, mas não o dispensando. É pressuposto que tais cuidados se
submetam a padrões de natureza ético-moral. Nesta perspectiva, e de acordo
com Benner & Wrubel (1989), a prática é uma constante fonte de novos
dados e de novos saberes que enriquecem de modo progressivo qualquer teo
ria.
Dissertação de Doutoramento
*£Q3
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Assim e em jeito de resumo, direi que a enfermagem é uma prática, ou
seja, reflexão e acção que ocorrem em sincronia e que derivam da totalidade
do Saber e do Conhecimento inerente ao exercício dessa prática.
2.2.2 - Resumindo
Neste capítulo foram caracterizados os diversos padrões de saber em
enfermagem (i.e., Saber Empírico ou a ciência de enfermagem; Saber Ético
ou a componente moral do saber na enfermagem; Saber Pessoal na enferma
gem; Saber Estético ou a arte na enfermagem). Foi também evidenciado que
todos os padrões se exprimem e se alimentam na prática dos cuidados, não
como entidades autónomas mas como partes de um todo complexo que con
siste no exercício da prestação de cuidados. Isto conduz-nos à necessidade de
caracterizar a prática, não por oposição à teoria, mas antes como realidade
que carece de um "mapa" teórico para ser percebida, mas que, todavia, é
mais complexa que o referido "mapa", exigindo portanto respostas sempre
inovadoras. Como tal, é sistematicamente geradora de novos saberes. Estes
novos saberes precisam de ganhar formas discursivas que lhes permitam ser
comunicados para, deste modo, enriquecerem o património de conhecimento
da disciplina de enfermagem.
As características da enfermagem enquanto ciência humana prática, bem
assim como a necessidade de conferir forma discursiva a alguns saberes e
poder contribuir para o enriquecimento do património de conhecimento da
enfermagem, constituenrse também como argumentos justificativos deste
trabalho.
2.3 - ESTRUTURA CONCEPTUAL DA DISCIPLINA DE ENFERMA
GEM
Definidas as problemáticas relativas à natureza do saber em enferma
gem, bem como as relativas aos critérios de desenvolvimento do conhecimen
to, de percepção e de verdade, outra não menos fundamental se coloca^ Qual
a estrutura da disciplina? Ou seja, qual o seu objecto de estudo concreto?
7 9 = = _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = _ _ „ = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = _ _ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Quais os conceitos major? Quais as metodologias de investigação e de inter
venção?
Na tentativa de responder às questões atrás colocadas Meleis (1991,
1997), diz-nos que uma disciplina pode ser definida como, uma perspectiva
única, uma forma distinta de olhar os fenómenos, a qual, em última análise,
define os limites e a natureza da sua investigação. Assim, de acordo com
esta autora, a disciplina de enfermagem inclui os conteúdos e os processos
relacionados com todos os papéis que o enfermeiro desenvolve, incluindo a
administração, ensino, política, clínica e consultadoria. A disciplina de
enfermagem inclui ainda, as teorias desenvolvidas para descrever, explicar e
prescrever, bem como os resultados da investigação relacionados com os
fenómenos centrais da disciplina e o conhecimento de disciplinas relaciona
das (ver figura 2).
Figura 2 —A disciplina de enfermagem em todas as suas vertentes
Tudo isto constitui a disciplina de enfermagem, porém, não é a sua
essência. Isto porque todas as disciplinas são formadas à volta do seu pró
prio domínio de conhecimento, o qual se constitui como a essência da disci
plina. Um domínio de conhecimentos é portanto, o ponto central de uma dis
ciplina. Este constitui-se como um território com limites teóricos e práticos.
= = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ „ _ _ „ = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = „ _ _ . „ _ . . _ _ „ _ . „ 8 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Os limites práticos têm a ver com o actual "estado da arte" e com os interes
ses de investigação dos investigadores, que emergem das questões que são
significantes para os membros do dominio. Por sua vez, os limites teóricos
dizem respeito às questões visionárias formulados pelos membros da disci
plina. Estas questões não estão sujeitas aos limites impostos pelos proble
mas correntes dos membros da disciplina.
De referir ainda que o domínio de enfermagem é uma entidade dinâmica,
pelo que, é sistematicamente revisto e desenvolvido através do saber e da
perícia dos membros da disciplina, da investigação e teoria acumuladas e de
conhecimentos oriundos de outras disciplinas. Todavia, é dotado de determi
nados elementos de estabilidade os quais, de acordo com Meleis (1991), são:
S os conceitos major e os problemas da sua esfera de actividades;
S o processo de avaliação, diagnóstico e intervenção; e os
S instrumentos para avaliação, diagnóstico e intervenção.
De acordo com Meleis (1991, 1997), os conceitos major são:
O cliente. Este será o conceito mais central do domínio de enfermagem.
Dado ser um conceito comum a outros domínios de outras ciências, a sua
especificidade tem que residir na forma como cada uma o define. Na enfer
magem este conceito está amplamente definido pelas diversas teóricas, sen
do um dos que está presente em todos os modelos teóricos e dos que reúne
mais consenso. Apesar disso, notam-se algumas diferenças em função da
escola de pensamento em que cada uma das teorias se insere (Kérouac et ai,
1994; Lopes, 1999, 2000a).
A transição. Este conceito, tal como já referi mais atrás, foi proposto por
Chick & Meleis (1986) e desenvolvido com o contributo dos trabalhos de
investigação de diversos outros autores (e.g., Bridges, 1980, 1992; Brouse,
1988; Catanzaro, 1990; Chiriboga, 1979; Clifford, 1989; Gilmore, 1990). Tal
permitiu a Schumacher & Meleis (1994) desenvolverem um trabalho de
meta-análise em 310 artigos referenciados na Medline, referentes ao período
de 1986 a 1992. Da análise destes artigos concluíram que se poderia falar
em três tipos de transição: de desenvolvimento, situacional e saúde-doença.
Apesar disso, as características presentes em qualquer um deles eram, a
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção! de unia relação
passagem ou movimento de um estado, condição ou lugar para outro (Schu
macher & Meleis, 1994). Este é um processo que ocorre no tempo, que envol
ve desenvolvimento, fluir ou movimento e cuja mudança tem uma natureza
que varia em função do tipo de transição. Através deste estudo identificaram
ainda as condições de transição, nomeadamente :
S significados (i.e., qual o significado que as pessoas atribuem à situa
ção);
S expectativas (i.e., quais as expectativas face à situação);
■S nivel de conhecimento e competências (i.e., quais os conhecimentos
que a pessoa tem acerca da situação e quais as competências que já
tem para lidar com ela);
S ambiente (i.e., em que ambiente físico mas também psicossocial a
pessoa está inserida);
S nível de planificação (i.e., qual a planificação que a pessoa é capaz
de desenvolver face à situação) e
■S benres tar físico e emocional (i.e., qual o nível de bemestar físico e
emocional conseguido na situação) (Schumacher & Meleis, 1994).
Este é um conceito que não está presente com esta denominação nos
modelos teóricos de enfermagem das diversas escolas de pensamento. Ape
sar disso, percebese a influência de teorias semelhantes (e.g., teoria da crise
e do stress) em algumas teorias de enfermagem (e.g., Neuman, 1982).
A interacção. São vários os teóricos que apresentam a enfermagem essen
cialmente como um processo de interacção. Efectivamente, esse é o contexto
no qual todos os cuidados acontecem, pelo que, em boa verdade, podese
dizer que é um conceito que recolhe unanimidade, estando presente em
todos os modelos teóricos, independentemente da escola de pensamento.
Contudo, recebe particular atenção das teóricas da escola da interacção (e.g.,
Peplau, 1990; Orlando, 1961; King, 1968). Este conceito foi pela primeira vez
introduzido de forma consistente na enfermagem por Peplau (1990). Duran
te muitos anos foi objecto de preocupação principalmente dos enfermeiros
ligados aos cuidados aos doentes psiquiátricos. Neste âmbito discutiuse
muito qual a natureza e o papel da relação desenvolvida pelo enfermeiro.
_ = = = = = _ _ _ _ _ = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ „ „ = = = « , _ _ _ _ _ . . _ = _ _ _ _ _ „ 8 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Esta discussão era dominada não só pelos aspectos relativos à natureza e
papel, mas também pelos relativos às relações com as restantes profissões
na área da saúde (Lego, 1999).
Contudo, e dado que a interacção enfermeiro-doente passou a ser reco
nhecida como importante e se tornou extensiva aos cuidados de enfermagem
no geral, impôs-se como necessário reequacionar as teorizações existentes,
dado estarmos perante situações de saúde e contextos diferentes. Tal é o
caso de Hartrick (1997), que propôs um modelo interacção enfermeiro-doente
baseado em valores humanísticos e passível de ser utilizado em contextos
diversificados. Também Hagerty et ai (2003) propuseram uma reconceptua-
lização da relação enfermeiro-doente, cujo objectivo principal é torná-la con
gruente com os actuais contextos de cuidados de saúde. É ainda de referir o
trabalho de identificação descritiva dos conhecimentos clínicos, desenvolvido
por Benner (2000). Com base nesse trabalho a autora identificou diversos
domínios de cuidados de enfermagem, sendo que um deles denominou-o,
"Função de ajuda". Também nos processos de cuidar, identificados por
Swanson (1991, 1998) é perceptível a presença da componente relacional em
quase todos eles. Por último, de referir a presença da componente relacional
de modo expresso ou implícito em diversos dos actuais modelos teóricos de
enfermagem. Tal é o caso de Watson (1988) que propõe a relação de cuidar
como um dos dez factores de cuidado da sua teoria. No entanto, percebe-se a
dimensão relacional em diversos outros.
O processo de enfermagem. Muitas vezes apresentado como um instru
mento, é aqui apresentado como um conceito essencial no domínio de enfer
magem. Tal justifica-se se entendermos que o processo de enfermagem se
constitui como o processo de raciocínio clínico do enfermeiro. Neste caso
compreende-se a sua inclusão como conceito integrante do foco da disciplina
e reconhece-se o seu elevado potencial para gerar teorias (Meleis, 1991,
1997).
As intervenções terapêuticas. São o conjunto de intervenções específicas
de enfermagem e com potencialidades terapêuticas demonstradas. Como
exemplos podemos referir o toque, a suplementação de papéis, a protecção, a
83 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
manipulação focal, o conforto, o uso do "self com fins terapêuticos, etc.
(Meleis, 1991, 1997). Enquanto que esta autora propõe o conceito de inter
venção terapêutica como um dos que integra o domínio da disciplina, McMa-
hon & Pearson (1991), vão mais longe e sugerem o conceito de "enfermagem
terapêutica". Neste conceito incluíram todas as actividades de enfermagem
promotoras de saúde e bem-estar.
O ambiente. Este é um conceito que está presente nas teorizações de
enfermagem desde Nightingale. Também este recolhe a unanimidade de
todas os modelos teóricos, independentemente da escola a que pertençam
(Kérouac et ai, 1994; Lopes, 1999). Apesar disso, no contexto dos cuidados
parece muitas vezes ser relegado para plano secundário. Tal poderá dever-se
à prevalência do paradigma curativo, contudo isso não pode significar que
este conceito não seja importante. Considero aliás que se torna urgente vol
tar a reponderar este conceito independentemente do local onde os cuidados
sejam prestados. Parece ser nesse sentido que a Classificação Internacional
para a Prática de Enfermagem (ICN, 2000) aponta ao propor um grupo de
"fenómenos de enfermagem" pertencentes ao ambiente. Estes fenómenos
incluem dois subgrupos^ a natureza, que inclui o ambiente físico e biológico,'
e o ambiente artificial que inclui, entre outros, as infra-estruturas criadas
pelo homem, de natureza tangível (e.g., sistemas de abastecimento), ou de
natureza intangível (e.g., normas e atitudes).
A saúde. Apesar de referido em último lugar, este é outro dos conceitos
de maior centralidade na disciplina de enfermagem. Contudo e à semelhan
ça de outros conceitos já referidos, também este é central para outras disci
plinas da área da saúde. Por tal razão, a sua especificidade residirá no modo
como é definido. Para além da unanimidade da presença em todos os mode
los teóricos, são ainda unânimes alguns aspectos do conceito, nomeadamente
os que dizem respeito à importância do conforto e bem-estar, mais do que a
ausência de doença
Outros autores se preocuparam com a clarificação daquilo que entendem
ser a essência da disciplina de enfermagem. Contudo, a terminologia usada
nem sempre é coincidente. Assim, Kim (1983, 1997) propôs o conceito de
_ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ „ „ = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
domínio da disciplina, para designar o conjunto de elementos que ela enten
de constituírem a essência da enfermagem. Segundo esta autora, o domínio
de enfermagem deve estar não só clarificado, mas também dotado de uma
estrutura conceptual que facilite a sua compreensão, e o seu desenvolvimen
to. A autora considera que uma estrutura conceptual organizada é um pre
requisite necessário para o desenvolvimento de teorias e modelos concep
tuais (Kim, 1983).
Neste sentido, Kim (1983), começou por propor uma estrutura composta
por três domínios (i.e., cliente, ambiente e acção de enfermagem). Mais tarde
reconsiderou e propôs uma estrutura com quatro domínios'■
■S O domínio do clienteI
■S O domínio do clienteenfermeiro,'
■S O domínio da praticai
S O domínio do ambiente (ver figura 3).
A principal diferença face à anterior, reside no facto de o domínio "acção
de enfermagem" ter sido subdividido em dois. Segundo a autora, apesar des
ta divisão em quatro domínios, poderão, mesmo assim, existir problemas que
exijam a combinação de mais que um domínio ou mesmo a consideração do
domínio de enfermagem como um todo.
Figura 3 — Tipologia para o conhecimento em enfermagem O DOMÍNIO DE ENFERMAGEM
1 ' i ' 0 domínio do
cliente 0 domínio do clienteenfermeiro
0 domínio da prática
0 domínio do cliente
0 domínio do clienteenfermeiro
0 domínio da prática
nte: Kim, (1997) 0 domínio do ambiente
O domínio do cliente. Embora com uma denominação diferente, também
neste caso o conceito de cliente é proposto como central para o domínio da
disciplina de enfermagem. É definido como a área de interesse epistemológi
85 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
co relacionada com o cliente, sendo a ênfase colocada em desenvolver conhe
cimento acerca do fenómeno humano numa perspectiva de enfermagem
(Kim, 1983).
O domínio do cliente-enfermeiro. Este domínio é definido como a área de
estudo em enfermagem relacionada com fenómenos resultantes do encontro
entre o enfermeiro e o cliente. Tendo semelhanças com o anterior conceito de
interacção (Meleis, 1991, 1997), também tem diferenças, na medida em que
este diz respeito a qualquer tipo de encontro e não apenas às interacções
intencionais e terapêuticas. Apesar disso, a interacção enfermeiroxliente é o
aspecto major do domínio cliente-enfermeiro e tem ramificações para variá
veis dependentes e independentes na explicação de muitos fenómenos de
enfermagem (Kim, 1997). No entender desta autora, a interacção é uma das
perspectivas que requer mais atenção neste domínio porque, sendo através
ou no seu contexto que os cuidados são prestados, é necessário compreender
qual o seu contributo para os resultados terapêuticos. Isto porque, os contac
tos entre o enfermeiro e o cliente são ocasiões durante os quais transferên
cias e/ou trocas de informação, energia e afecto/humanidade ocorrem. Estes
contactos são o meio de prestar cuidados de enfermagem e de ajudar os
clientes. Neste sentido, entender a natureza da interacção enfermei-
ro-cliente, aumentará e aperfeiçoará a eficiência e a eficácia das interven
ções de enfermagem, as quais, como consequência, afectarão o estado do
cliente (e.g., o benres tar geral, o estado dos sentimentos e a satisfação).
Ainda segundo Kim (1997), o conhecimento nas áreas da interacção
humana e social, sugere que há pelo menos quatro conjuntos de variáveis
aplicáveis e a ter em consideração quando equacionamos a interacção
enfermeiro-cliente (ver figura 4)-'
•S Actores individuais (cliente e enfermeiro);
S Contexto social da interacção;
S Natureza da interacção - processo e propriedades;
S Metas de saúde do cliente.
Dissertação de Doutoramento 86
Os ulciites e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 4 — Ligações conceptuais entre variáveis na interacção enfermei-ro -cliente. DOENTE ENFERMEIRO
Características físicas; Características físicas; Elementos psicológicos Elementos psicológicos (Motivação, personalidade, (Motivação, personalidade, características..) características..) Elementos cognitivos; Elementos cognitivos; Elementos sociais; Elementos sociais; Atitudes e valores; Atitudes e valores; Elementos comunicativ os. Elementos comunicativos.
Contexto i r i r
INTERACÇÃO ENFERMEIRO-CLIENTE social Processo
Propr iedades
i r
COMPORTAMENTOS E SAÚDE DO CLIENTE Exemplos:
Probabilidade de recuperação Estado dos sentimentos Adesão terapêutica Aprendizagem Experiência de dor Satisfação Stress Saúde
Fonte: Rim, (1997)
O primeiro grupo de variáveis (i.e., actores individuais) está relacionado
com os actores participantes na interacção (i.e., enfermeiro e cliente). Estes
actores levam consigo as características físicas, psicológicas, cognitivas,
sociais e éticas, bem como, atitudes e habilidades e padrões interactivos
desenvolvidos através de experiências sociais passadas. Tais atributos
devem ser considerados os factores predisponentes, capacitantes e/ou impe
ditivos para o processo e propriedades da interacção. Os encontros interacti
vos entre o enfermeiro e o cliente podem ser iniciados, desenvolvidos ou ter
minados de várias formas, de acordo com as orientações que os participantes
trazem consigo para esses encontros (Kim, 1997).
O segundo grupo de variáveis está relacionado com o contexto social da
interacção, as quais têm sido estudadas pela sociologia. Contudo, estas
variáveis podem assumir um papel de grande relevo no contexto da interac-
8 7 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os eníermeiros: Construção de uma relação
ção enferme iro-cliente, influenciando decisivamente o seu processo e interfe
rindo na comunicação terapêutica.
O terceiro grupo de variáveis (i.e., Natureza da interacção - processo e
propriedades) diz respeito à interacção propriamente dita. A interacção
enfermeiro-cliente é considerada ao longo de duas dimensões : o processo de
interacção e as propriedades (qualidades) da interacção. O processo de inte
racção refere-se à sequência, trajectórias, progressão e padrões interaccio-
nais. Por seu lado, as propriedades da interacção refererrrse à qualidade da
interacção em termos dos elementos de troca (e.g., a informação, afectos,
suporte, energia e recursos) e tipos de comunicação. Ambas, enquanto variá
veis independentes, influenciam os objectivos de saúde do cliente e enquanto
variáveis dependentes, são influenciadas pelos dois primeiros grupos de
variáveis. Ainda que a interacção cliente-enfermeiro possa ter uma influên
cia significativa no benres tar do enfermeiro, o foco de interesse principal é o
bem-estar do cliente (Kim, 1997).
O quarto conjunto de variáveis (i.e., Metas de saúde do cliente) diz res
peito ao bem-estar do cliente. De acordo com Kim (1983, 1997), este é um
conjunto de variáveis com o qual qualquer modelo preditivo ou explicativo do
conhecimento em enfermagem tem que lidar. Isto porque o bem-estar do
cliente assume-se como a variável dependente mais importante, uma vez
que a mesma pode ser considerada como a finalidade dos cuidados de enfer
magem.
O domínio da prática. Este domínio inclui fenómenos específicos ao enfer
meiro enquanto prestador de cuidados de enfermagem. O conceito de prática
refere-se aos aspectos cognitivos, comportamentais e sociais das acções pro
fissionais levadas a cabo pelo enfermeiro em resposta aos problemas do
doente (Kim, 1997). Para que se possa compreender a prática de enferma
gem é necessário compreender-se como os enfermeiros pensam, tomam deci
sões, transferem conhecimento para a acção ou usam o conhecimento dispo
nível (universal e pessoal) na sua prática. Assim, os fenómenos importantes
que requerem explicação e compreensão no domínio da prática incluem, o
estilo e processo da tomada de decisão em enfermagem, modos de transfe-
_ _ _ „ . _ _ „ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = _ _ _ _ „ _ _ „ = = _ _ _ _ _ _ _ 8 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
rência de conhecimento para a prática, desenvolvimento de competências,
uso e desenvolvimento de pericia na prática de enfermagem e o modo como
os enfermeiros resolvem problemas éticos (Kim, 1997).
O domínio do ambiente. Também neste caso existe semelhança com a
proposta de Meleis (1991, 1997), bem como com as teorizações das diversas
escolas de pensamento em enfermagem. Contudo, a proposta de Kim (1983,
1997) tem algumas especificidades. Assim, no entender desta autora, o
ambiente inclui três variações: tempo, espaço e qualidade. Apenas o conjun
to destes três elementos nos permite compreender o ambiente do doente. Ou
seja, Kim (1997) tem do domínio do ambiente uma concepção centrada no
cliente e no modo como este vivência o tempo e o espaço.
Mas um domínio de conhecimentos não se define apenas pela enunciação
dos seus conceitos major. De acordo com alguns dos autores que tenho vindo
a citar, é necessário mais do que isso. E necessário, por exemplo, estabelecer
uma relação entre os conceitos e desta forma, construir os pressupostos da
disciplina (ver figura 5).
Figura 5 — Os conceitos major do domínio de enfermagem e as suas inter-
É necessário ainda definir um conceito metaparadigmático. Neste con
texto, Meleis (1991) propõe a seguinte articulação entre os conceitos major:
O enfermeiro interage (interacção) com um ser humano numa situação de
saúde/doença (cliente de enfermagem), o qual é uma parte integrante do seu
contexto sockrcultural (ambiente) e o qual está em alguma espécie de tran
sição ou antecipando essa mesma transição (transição)', a interacção enfer-
8 9 = = = = = = = = = = = = = = _ = = „ = = = = = = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
meiro-cliente está organizada à volta de algum propósito {processo de
enfermagem, resolução de problemas, intervenção holística) e os enfermeiros
usam algumas acções {intervenções terapêuticas) para aumentar ou facilitar
a saúde e o benrestar .
Apesar desta proposta de Meleis, permanece por resolver a definição da
enfermagem de modo sucinto. Ou seja, continuamos sem sermos capazes de
responder de uma forma concisa e precisa à pergunta, o que é a enferma
gem?
Três outras reputadas autoras de enfermagem (Newman, Sime & Corço-
ran-Perry, 1991) tentaram responder a esta questão. Para isso estabelece
ram a analogia com outras ciências, como por exemplo a fisiologia cuja defi
nição sucinta pode ser, o estudo da função dos sistemas vivos! ou da sociolo
gia, que pode ser definida como, o estudo dos princípios e processos que
governam a sociedade humana. Estas são definições genéricas mas facil
mente entendívéis por todos e que limitam em absoluto o objecto de estudo.
Será que somos capazes de apresentar uma definição da enfermagem com
estas características?
Estas autoras utilizaram o conceito de "foco da disciplina" que é parcial
mente sobreponível aos conceitos anteriores de Meleis (1991) e Kim (1997).
No entender de Newman, Sime & Corcoran-Perry (1991), o foco de uma dis
ciplina deriva de um sistema de crenças e valores acerca do compromisso
social da profissão, natureza do seu serviço e área de responsabilidade para
o desenvolvimento do conhecimento. Assim, o foco da disciplina de enferma
gem será o estudo do cuidar (dos cuidados) no contexto da experiência
humana de saúde. Este foco integra, numa declaração simples, conceitos
comummente identificados como sendo da enfermagem a um nível metapa-
radigmático. Este foco implica um mandato social e uma identidade de ser
viço e especifica um domínio para o desenvolvimento do conhecimento
(Newman, Sime & Corcoran-Perry, 1991).
O mandato social e a identidade de serviço são conduzidos pelo compro
metimento de cuidar como imperativo moral. O domínio de investigação é o
estudo do cuidar (dos cuidados) no contexto da experiência humana de saú-
Dissertação de Doutoramento
Os uleiites e os enfermeiros: Construção de uma relação
de. A investigação deverá ter como finalidades, examinar e explicar o signi
ficado de cuidar no contexto da experiência humana de saúde, para averi
guar e confirmar a adequabilidade deste foco para a disciplina, e para exa
minar as questões científicas e filosóficas provocadas pela declaração do foco.
Este foco determina que o corpo de conhecimentos da disciplina de enfer
magem inclui o cuidar (os cuidados) e a experiência humana de saúde. Se
incluir apenas uma destas vertentes já não é conhecimento específico de
enfermagem. Porque, conhecimento sobre saúde são muitas as disciplinas
que o desenvolvem, sobre o comportamento humano também e até sobre o
comportamento humano na saúde. Porém, a conjunção dos cuidados e do
comportamento de saúde é específico da enfermagem.
Contudo, alguns autores (Meleis & Trangenstein, 1994) consideram que
este foco da disciplina tem limitações que importa questionar. Assim, ques
tionam :
■S Se o cuidar é universal e não limitado a uma disciplina, quais os
seus aspectos que são unicamente da enfermagem?
•S Quais os aspectos da experiência humana de saúde que requerem
apenas contribuições da enfermagem?
S Será possível estudar o cuidar numa base empírica?
Com base nas respostas dadas a estas questões entendem que o foco da
enfermagem deve ser definido da seguinte forma: Enfermagem consiste na
facilitação dos processos de transição, no sentido de se alcançar uma maior
sensação de benres tar (Meleis & Trangenstein, 1994). Neste foco assume
centralidade o conceito de transição que já atrás foi referido como um dos
conceitos major do domínio de enfermagem (Meleis, 1991, 1997).
2.3.1 Resumindo
Relativamente à problemática da estrutura da disciplina de enfermagem,
destaco, por um lado, a definição de enfermagem a qual, segundo Meleis &
Trangenstein (1994), consiste na facilitação dos processos de transição, no
sentido de se alcançar uma maior sensação de benrestar . Nesta definição
9 1 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ „ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = = = =
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação
sobressai a centralidade do conceito de transição (Meleis, 1991, 1997), mas
também o papel de ajuda e do benres tar como finalidade dessa ajuda.
Por outro lado e de entre os conceitos major, destaco ainda o processo de
enfermagem, como o encadear lógico das acções destinadas a responder às
necessidades, e as intervenções terapêuticas, como o conjunto dos actos
específicos com potencialidade terapêutica.
Por último e dadas as características deste trabalho, destaco o conceito
de interacção. No entender de Meleis (1991, 1997), este conceito é simulta
neamente, detentor de potencial terapêutico e contexto no qual todos os cui
dados acontecem. De assinalar o contributo de Kim (1983, 1997) para a com
preensão do domínio de enfermagem. Desta contribuição destaca principal
mente os domínios do cliente-enfermeiro e da prática. O primeiro compreen
de a interacção enfermeiro-cliente. Nesta interacção a autora reconhece a
existência de quatro conjuntos de variáveis a ter em conta^ Actores indivi
duais (cliente e enfermeiro); Contexto social da interacção; Natureza da
interacção - processo e propriedades; Metas de saúde do cliente.
Dissertação de Doutoramento ™ 92
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
i
9 3 — Disseartação de Douloramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
3 - PROBLEMÁTICA E QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO
Tal como referi no início, esta primeira parte do trabalho tinha como
finalidade principal, por um lado, a justificação do estudo que pretendo
desenvolver, e por outro, a delimitação epistemológica e conceptual do mes
mo. Assim, impõe-se agora, tendo como referência tudo o que atrás disse,
que proceda à delimitação da problemática, bem assim como à definição das
perguntas de investigação. Este exercício consistirá num resumo integrador
dos diversos argumentos que invoquei ao longo dos capítulos anteriores, o
que permitirá uma leitura mais incisiva sobre o trabalho de investigação
que me proponho desenvolver.
Assim e com base na minha experiência pessoal e profissional, nomea
damente a decorrente do projecto de intervenção relacional já atrás referido,
constato, por um lado, a elevada solicitação daquele tipo de intervenção (i.e.,
intervenção relacional), e por outro, a sua parca teorização.
A elevada solicitação radica essencialmente na natureza clínica da situa
ção e na vivência da mesma. A natureza clínica é variável em função do tipo
de cancro diagnosticado, sendo também variáveis os procedimentos técnicos
a adoptar. Todavia, a sua vivência começa logo por ser marcada pela repre
sentação da doença oncológica. Efectivamente e tal como já referi mais
atrás, todas as pessoas a quem é diagnosticado um cancro, iniciam a vivên
cia de um processo extremamente complexo, indutor de mahestar e que, por
vezes, é mais grave que o próprio cancro (Lopes, 1997; Sontag, 1998). Para
todos os efeitos e independentemente da natureza do diagnóstico, a repre
sentação desta doença funciona como uma confrontação da pessoa com a sua
própria finitude. Ou seja, a pessoa precisa de aprender a viver com a ideia
de morte, precisa de iniciar uma procura pessoal do significado de ter um
cancro (O'Connor et ai, 1990). Esta inquietude gera um conjunto de senti
mentos reactivos e extremamente perturbadores, dos quais destaco, nega
ção, cólera/vergonha, desespero e depressão e questionamento do comporta-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
mento protector da família (Morton, 1996). 0 conjunto destes elementos con
figura a vivência de um processo de transição (Chick & Meleis, 1986).
Este quadro torna_se particularmente evidente no momento em que se
inicia o processo de quimioterapia. Isto porque, nesse momento, o doente é já
conhecedor da problemática que o afecta, quer lhe tenha sido dito ou não
(Kubler-Ross, 1991; Israel, 1993; Dolto, 1998; Hennezel, 1997; Hennezel &
Leloup, 1998). Para além disso, a quimioterapia é, ela própria e à partida,
geradora de ansiedade, medo e esperança (Barraclough, 1999). Este quadro
é, de algum modo, modificado à medida que o processo de quimioterapia
decorre, pois este impõe também um progressivo cansaço e uma variabilida
de polar de estados de saúde, em ciclos muito curtos, o que provoca alguma
labilidade emocional (Barraclough, 1999; Dougherty & Bailey, 2001; Cohn,
1982). Esta pode caracterizar-se por manifestações de tristeza, com choro
fácil, isolamento, ansiedade acentuada, acessos de medo face a qualquer
estímulo, insegurança, entre outros.
Face ao exposto, compreende-se a importância que os cuidados no geral
podem assumir. Todavia, as características da vivência atrás descritas legi
timam que se evidencie a componente relacional dos cuidados. Aliás de
acordo com Palsson & Norberg (1995), neste contexto os doentes precisam de
um suporte emocional que lhes transmitida um sentimento de segurança e
que facilite o fornecimento da informação adequada. Face a isto, o realce
dado à componente relacional da intervenção justifica-se, principalmente,
pela importância que a relação que se possa estabelecer entre o enfermeiro e
o doente, durante a quimioterapia, poderá ter para aquele. Essa importância
radica no carácter terapêutico da intervenção de enfermagem e, dentro des
ta, e de acordo com Muetzel (1988), o determinante crucial para o cuidado de
enfermagem ser terapêutico é a qualidade da relação entre o enfermeiro e o
doente. O resultado daquela intervenção traduzir-se-á no incremento do
nível de benrestar e da qualidade de vida do doente.
A natureza das razões expostas até ao momento justificaria, só por si,
que se investigasse a relação enfermeiro-doente. Todavia, essa justificação
sairá reforçada se atentarmos na natureza da enfermagem enquanto área de
95 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
conhecimento, bem assim como no seu estádio de desenvolvimento. Assim e
relativamente à sua natureza, constatámos ao longo dos capítulos anteriores
que a enfermagem enquanto ciência humana prática (Strasser, 1985), se
desenvolve a partir do conhecimento gerado na própria prática (e.g., Carper,
1978; Bishop & Scudder, 1991). Ora, assim sendo, esta precisa de ser siste
maticamente investigada, dado que a mesma, coloca sempre novos desafios
que exigem novas respostas. Esta sistemática exigência de novas respostas
colocada aos profissionais, levaos a desenvolverem novas estratégias (e.g.,
Argyris & Schõn, 1980; Schõn, 1996, 1998; Altet, 2000; Bernardou, 1996;
Barbier, 1996; Mialaret, 1996; Vergnaud, 1996; Le Boterf, 1995). Contudo,
este processo poderá não ser totalmente consciente, precisando portanto de
um esforço deliberado para o tornar consciente, o qual pode decorrer da exi
gência colocada por um processo de investigação. Este processo conduzirá,
primeiro, à nomeação das estratégias desenvolvidas pelos profissionais e
depois, deverá ser completado com a comunicação (i.e. tornar comum) dessas
estratégias. Tal permitirá que as mesmas se transformem em património do
corpo de conhecimento da disciplina de enfermagem, podendo assim ser
usadas, quer no ensino, quer em novas investigações e ainda contribuir para
o desenvolvimento da qualidade dos cuidados. Paralelamente, promoverá o
desenvolvimento dos profissionais que participarem neste estudo, ao contri
buir para o processo de consciencialização das estratégias usadas.
Ora o desenvolvimento de todo este processo é particularmente impor
tante e até urgente no caso da enfermagem dado o seu carácter emergente,
enquanto área de conhecimento. No caso da intervenção relacional, estas
razões ganham particular relevância porque, as teorizações existentes não
respondem especificamente à intervenção sobre pessoas a vivenciarem uma
situação de doença oncológica.
Conjugamse assim um conjunto de razões de natureza pessoal, discipli
nar, profissional e clínica que me levam a interrogarme '■
S Que elementos concretos integrarão o processo de prestação de cui
dados a doentes oncológicos sujeitos a quimioterapia em regime de
hospital de dia?
Dissertação de Doutoramento
Os ulealcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
S As competências relacionais serão parte integrante desse processo
de cuidados?
S Que competências serão?
S Que características terão essas competências?
•S Como se desenvolverão?
^ Será que existem competências relacionais desenvolvidas em con
texto que desconhecemos?
•S Serão estas competências independentes das restantes?
S Que relação existirá entre os diversos tipos de competências?
S Como se estruturará a relação enfermeirodoente ao longo do pro
cesso de quimioterapia no contexto atrás referido?
S Qual será a natureza dessa relação?
S Será que existe um modo de intervenção relacional específico dos
enfermeiros?
■S Será que o contexto tem algum tipo de interferência no desenvol
vimento dessas competências?
Na tentativa de responder a algumas destas questões formulei o proble
ma de investigação seguinte'■
Qual é a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes oncológi
cos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
Este estudo teve como objectivos:
•S Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os
doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
o Identificar intervenções terapêuticas de enfermagem.
■S Compreender o processo de relação entre os enfermeiros e os doentes
oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia.
S Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação enfermei
rodoente.
97 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
II PARTE: INVESTIGAÇÃO REALIZADA
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
99 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
4 - OPÇÕES METODOLÓGICAS
Equacionadas que foram as razões que me conduziram ao presente estu
do, bem como os referenciais epistemológicos e disciplinares, subsistem por
justificar as minhas opções metodológicas em concreto. Estas hão-de resul
tar, da natureza do problema e dos referenciais epistemológicos e disciplina
res, a trás equacionados.
Para sistematizar as razões justificativas de algumas das opções, optei
por responder a um conjunto de questões propostas por Miguélez (1999). O
objectivo essencial destas questões é ajudarem a decidir, de forma geral,
qual a abordagem mais adequada para estudar um determinado problema
de investigação. A primeira questão é a seguinte : procura-se a magnitude ou
a natureza do fenómeno? Sobre esta questão diz o autor (Miguélez, 1999)
que existem problemas ou áreas de estudo que não se podem desligar do seu
contexto sem as desnaturalizar. Tal será o caso de muitos objectos de estudo
da área das ciências sociais e humanas. Neste caso a opção é por estudos
sobre a natureza do fenómeno, pelo que a abordagem mais adequada é a
qualitativa (Miguélez, 1999). No mesmo sentido se pronunciam diversos
outros autores, nomeadamente Morse et ai (2001), Lessard-Hérbert et ai
(1990), Olabuénaga (1999), Streubert et ai (1995) e Denzin et ai (1994).
No caso do presente estudo e considerando a forma como o problema está
enunciado (i.e. qual a natureza da relação entre os enfermeiros e os doentes
oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia), fácil se torna
perceber qual a abordagem pela qual optei. Efectivamente, no enunciado do
problema, é referido, não só, que se pretende estudar a natureza da relação,
mas também, que se pretende fazê-lo em contexto. A fundamentação desta
opção, quer do ponto de vista clínico, quer epistemológico, já atrás foi produ
zida.
A segunda questão proposta por Miguélez (1999) é'- deseja-se conhecer
uma média ou uma estrutura dinâmica? A decisão deve levar em linha de
_ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = _ = = = = = = = = , „ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ „ „ = = „ . _ _ _ _ _ . . _ „ „ , 0 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
conta se pretendemos trabalhar com um pequeno número de variáveis e per
ceber o seu comportamento num elevado número de sujeitos. Ou pelo con
trário, se desejamos descobrir a estrutura complexa ou o sistema de relações
que dão forma a uma realidade psíquica, social ou humana. É claramente
este último o objectivo deste estudo. Pelo que, esta é mais uma razão que me
conduziu no sentido da opção pela abordagem qualitativa. Também por uma
questão de coerência com a resposta anterior, a opção não poderia ser outra.
Mas a razão fundamental desta opção reside na natureza do problema. Ou
seja, o problema questiona a natureza de um processo complexo e dinâmico,
pelo que, e em congruência com isso, a opção terá que ser por uma aborda
gem qualitativa.
A terceira questão proposta é a seguinte: pretende-se a extensão nomoté-
tica ou a compreensão idiográfical Também neste caso está em causa a dico
tomia extensão-compreensão. Ou seja, é preciso decidir se o estudo tem como
finalidade estudar um elevado número de indivíduos e a partir daí elaborar
leis>' ou então, estudar um número mais reduzido, mas compreendê-lo em
profundidade. Naturalmente a minha opção foi esta última, pelas razões já
atrás referidas. Apesar de um dos objectivos deste estudo ser a elaboração
de uma teoria de médio alcance, tal não significa uma opção pela extensão
nomotética. As teorias de médio alcance, tal como mais à frente explicitarei,
têm como objectivo fundamental a compreensão em profundidade de um
fenómeno no seu contexto (Walker & Avant, 1995). É neste sentido que se
deve compreender este trabalho.
Miguélez (1999) pergunta ainda se pretendemos descobrir "leis" ou com
preender fenómenos humanos. Ele próprio acaba por responder, referindo
que, principalmente nas ciências humanas, para que um saber não fique
despojado das suas próprias raízes, quer dizer, sem sentido, deverá ser to
mado a partir do seu contexto humano pleno, com valores, interesses, cren
ças, propósitos, sentimentos e outras variantes que determinam a sua exis
tência real e empírica nos seres humanos (Miguélez, 1999). Neste mesmo
sentido se pronunciaram Weber (1979) e Dilthey (1951) os quais propuseram
o termo Verstehen, que significa compreender o humano, como o mais ade-
101 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
quado para a investigação em ciências humanas, por oposição a Erklàren
(i.e., explicar reduzindo a leis) o qual é mais adequado para as ciências
naturais . Podese entender este posicionamento como sinónimo de com
preensão hermenêutica. Aliás, foi Dilthey quem propôs a extensão do concei
to de hermenêutica a todas as ciências sociais o humanas. Mais tarde,
Gadamer (1977) retomou este assunto e argumentou que a própria história
do investigador deve ser considerada quando se pretende compreender a
interpretação de um determinado acontecimento. Eis a razão pela qual me
preocupei em introduzir algumas referências de natureza pessoal quando
apresentei a argumentação justificativa deste trabalho.
Deste modo, a resposta à pergunta de Miguélez (1999) orientase no sen
tido da investigação qualitativa, porque tem como objectivo a compreensão
de fenómenos humanos.
Uma outra preocupação que deve estar presente no momento de escolher
qual a opção metodológica, diz respeito ao nivel de adequação entre o modelo
conceptual e a estrutura da realidade (Miguélez, 1999). Dito por outras pala
vras, a conceptualização imposta por uma abordagem quantitativa ade
q u a t e ao fenómeno que pretendemos estudar? Esta adequase preferen
cialmente a "substâncias fixas", ou seja, o objecto de estudo é o mais possivel
"fixado" no tempo e no espaço e o número de variáveis restringido ao máxi
mo. Simultaneamente usa um raciocínio dedutivo. Todavia o que pretendo
estudar é de natureza processual, contendo portanto uma dimensão tempo
ral, tornando difícil o seu estudo através da lógica dedutiva.
Uma outra questão é a seguinte'■ o objectivo é a generalização? Na
sequência das respostas dadas às questões anteriores, a esta só poderei res
ponder, não. Perante um estudo de natureza processual, em profundidade,
compreensivo, não poderei falar em generalização. Tal conceito é mais con
gruente com abordagens de natureza quantitativa. No caso presente poder
seá falar, em transferibilidade (Miguélez, 1999), ou seja, na aplicação dos
resultados deste estudo a uma outra situação que apresente semelhanças
com as que encontrei no contexto onde realizei o estudo.
= _ _ _ _ _ „ = = „ _ _ _ „ _ „ = = = = = = = „ _ ™ = = = _ _ _ „ = = = _ _ „ _ = = _ _ _ _ „ „ „ . „ _ _ „ 1 0 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
0 autor termina a sua série de questões com uma sugestão. Esta faz refe
rência à complexidade dos fenómenos humanos, como forma de justificar a
necessidade de uma abordagem integrada para melhor os percebermos
(Miguélez, 1999). Com esta proposta, o autor faz apelo ao uso de uma ferra
menta heurística a qual, de algum modo, integre aspectos das duas aborda
gens anteriormente referidas (i.e., qualitativa e quantitativa), melhorando
claramente os resultados da investigação. Para atingir tal desiderato é pro
posta a triangulação, a qual consiste na combinação de diferentes formas,
técnicas ou procedimentos de investigação qualitativa e quantitativa.
Dependendo das combinações assim a triangulação assumirá diferentes
designações (i.e., triangulação de métodos, de dados, de investigadores, de
teorias e interdisciplinar). No caso do presente estudo interessou-me sobre
tudo a triangulação de dados. Esta consiste na utilização de uma variedade
de dados, provenientes de diferentes fontes de informação. De acordo com
alguns autores, a referência à diversidade de dados diz respeito à sua natu
reza (i.e., qualitativa ou quantitativa). Contudo, no presente estudo, estamos
predominantemente perante uma diversidade de proveniência dos dados,
relativos ao objecto de análise. Efectivamente, sobre o objecto em estudo
(i.e., a relação enfermeiro/doente), utilizei dados provenientes dos doentes e
familiares (através de entrevista), das enfermeiras, quer através de entre
vistas individuais quer de entrevistas por elas realizadas aos doentes,
enquanto instrumento de intervenção e dados resultantes da observação da
interacção. Assim, poderei afirmar que existiu triangulação de dados relati
vamente à sua origem.
Com base neste conjunto de argumentos, bem como no conjunto de razões
aduzidas anteriormente, fica justificada a decisão da minha opção pela abor
dagem qualitativa, do ponto de vista metodológico, adoptada nesta investi
gação. A adopção desta perspectiva não é um alinhamento ideológico, enten-
dível à luz das polémicas entre os defensores de cada uma das abordagens
possíveis. Trata-se isso sim, de uma decisão racional, fundamentada na
natureza do fenómeno em estudo, bem como da área de conhecimento em
que se insere.
103=™=================—========================================= Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Decidida a natureza do estudo, torna-se ainda necessário justificar qual,
de entre as diversas abordagens qualitativas, aquela por que optei. Também
neste caso a decisão radicou nas características do problema em estudo. Ou
seja, a pergunta que me coloquei foi: qual o melhor caminho para responder
à questão que pretendo investigar?
Considerando que a área em estudo está pouco investigada, na perspecti
va em que o pretendo fazer, que é uma área com intrincados detalhes acerca
de fenómenos tais como os sentimentos, processo de pensamento e emoções,
que são difíceis de extrair ou compreender através dos métodos de investiga
ção mais convencionais (Strauss & Corbin, 1998); considerando ainda que a
grounded theory partilha estas finalidades, mas torna-se particularmente
útil em situações de natureza psicossocial, organizacional, entre outras, que
carecem de teorização, sobre as quais é necessário desenvolver o conheci
mento, particularmente no que diz respeito ao seu processo e estrutura
(Lopes, 2003); então a decisão foi pela grounded theory (Strauss & Corbin,
1998). Esta abordagem metodológica tem como finalidade a teorização a par
tir dos dados sistematicamente recolhidos e analisados e comparados atra
vés do processo de investigação (Strauss & Corbin, 1998). As teorias cons
truídas desta forma e porque foram desenhadas a part ir dos dados, aumen
tarão o entendimento e providenciarão um guia com maior significado para
a acção (Lopes, 2003).
Para compreendermos esta metodologia é necessário ter presente a evo
lução do pensamento das ciências sociais e humanas, nomeadamente duran
te o final do século XIX e século XX. Aquelas afirmaram-se paulatinamente
ao longo deste período de tempo. Apesar disso, até cerca do fim da primeira
metade deste último século, o paradigma dominante ainda foi o positivista,
com base no qual a investigação se construía, predominantemente a partir
de uma perspectiva hipotético-dedutivo e suportada pelos "grandes homens"
das teorias tais como, Weber, Durkheim, Cooley, Mead, entre outros e o tra
balho dos investigadores de então consistia em os testar (Kinach, 1995).
Contudo, paralelamente ia-se construindo um paradigma alternativo. Para
este contribuíam diversos pensadores, desde a área da filosofia (e.g., Hus-
Dissertação de Doutoramento — 104
Os iilcntcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
serl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Gadamer), à área das ciências (e.g.,
Dewey, Thomas, Blumer, Freud, Rogers).
A nível das teorias sociais, o interaccionismo simbólico foi a expressão
mais marcante deste novo paradigma. Esta teoria foi desenvolvido por Her
bert Blumer, embora as suas raízes se possam encontrar em Weber e Mead.
Esta corrente de pensamento teve um profundo efeito na teoria social e na
metodologia. Esta perspectiva repousa em três princípios centrais^ significa
do, linguagem e pensamento. Estes três princípios deram origem às três pre
missas fundamentais da teoria. A Primeira, diz-nos que os seres humanos
agem em relação às coisas com base no significado que aquelas têm para
eles. A segunda defende que esses significados resultam da interacção dos
indivíduos uns com os outros. Ou seja, os significados são construídos por
negociação, através da linguagem. Por último, a terceira premissa sustenta
que um processo interpretativo (pensamento) é usado pelas pessoas em cada
situação na qual elas têm de lidar com as coisas no seu ambiente (Blumer,
1969). Ou seja, o pensamento modifica cada interpretação individual dos
símbolos. O pensamento, baseado na linguagem, é um diálogo mental que
requer "role taking" ou imaginar diferentes pontos de vista.
O interaccionismo simbólico veio centrar a atenção sobre os aspectos sub
jectivos da vida social, mais do que sobre os objectivos e macro-estruturais
dos sistemas sociais. Segundo esta corrente de pensamento, os seres huma
nos são actores pragmáticos que ajustam sistematicamente o seu comporta
mento às acções dos outros actores. Este ajustamento só ocorre porque cada
ser humano é capaz de interpretar as acções dos outros. Este processo de
ajustamento é ajudado pela capacidade das pessoas de ensaiarem imagina
riamente linhas de acção alternativas antes de agir. Assim, o interaccionis
mo simbólico vê os seres humanos como participantes activos e criativos na
construção do seu mundo social.
Deste modo, para os interaccionistas a sociedade consiste em padrões
organizados de interacção entre indivíduos. Consequentemente, a investiga
ção, de acordo com esta perspectiva, centra-se nas interacções face-a-face, as
quais são facilmente observáveis. Os interaccionistas tendem a estudar a
105 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
interacção social através da observação participante, argumentando que a
imersão e o contacto próximo na vida do dia-a-dia dos participantes é neces
sária para compreender o significado das acções, a definição da situação e o
processo através do qual os actores constroem a situação através da interac
ção. Para além disso, esta focalização na interacção e nos significados dos
acontecimentos para os seus participantes, desloca a atenção dos interacckr
nistas das normas e valores mais estáveis para processos sociais menos
estáveis e em reajustamento sistemático. Para os interaccionistas a negocia
ção entre os membros de uma sociedade cria relações sociais construídas e
temporárias que permanecem em constante fluxo, apesar da relativa estabi
lidade no constructo básico que as governa. Esta ênfase na realidade nego
ciada, nos símbolos e na construção social da sociedade conduz-nos a um
interesse nos papéis que as pessoas desempenham.
Este foi um dos contributos mais importantes para a construção de uma
perspectiva diferente a nível da investigação. A partir desta outra perspecti
va, as metodologias indutivas passaram a ser as preferidas, numa tentativa
de construir teorias a part ir da realidade social concreta e nas quais os acto
res sociais se sentissem reflectidos e que pudessem elas próprias ser uma
resposta para os problemas que estudavam (Lopes, 2003).
Neste mesmo período de tempo, a enfermagem, principalmente no mun
do angkrsaxónico, encontrava-se numa encruzilhada que resultava essen
cialmente da necessidade de se afirmar como área de conhecimento, tendo
para isso que se libertar do secular jugo da medicina. No início dos anos 50
t inham começado nos Estados Unidos da América os primeiros programas
de doutoramento para enfermeiros. Estes caracterizavanrse por serem
grandemente influenciados pelas áreas das ciências sociais e humanas.
Davam-se assim os primeiros passos na abertura da enfermagem a outras
áreas de conhecimento que não só o médico, o que lhe permitiu também ace
der aos paradigmas aí emergentes (Lopes, 2003).
Poder-se-á dizer, em traços gerais, que foi esta confluência de factores
que contribuiu para que a Universidade da Califórnia, então Centro Médico
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 1 0 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
de São Francisco, contratasse Glaser e Strauss para ajudar os estudantes de
enfermagem nas suas pesquisas.
Barney G. Glaser era sociólogo, doutorado pela Universidade de Colum
bia, da qual era originário. Glaser foi fortemente influenciado pela metodo
logia indutiva (qualitativa e quantitativa) que foi descoberta por Paul F.
Lazarsfeld (1901-1976), e os colegas dele (Herbert H. Hyman, Allen Barton,
Bruce McPhee, Bernard Bereldson, et al.). A sua metodologia indutiva gera
dora de teoria foi também influenciada pelo seu conselheiro Robert K. Mer-
ton (1979) (um estudante de Talcott Parsons) e os colegas dele Hans Zet te r
berg (1956), Seymour Lipset, Alvin Gouldner, entre outros.
Por sua vez, Anselm L. Strauss, também sociólogo, era doutorado em
sociologia pela Universidade de Chicago. Esta Universidade tem uma forte
tradição em pesquisa qualitativa. Strauss foi influenciado pelo interaccio-
nismo simbólico e pelo pragmatismo de Robert E. Park, W.I. Thomas, John
Dewey, G.H. Mead, Everett Hughes, e Herbert Blumer.
Um dos primeiros trabalhos de Glaser e Strauss na Universidade da
Califórnia foi desenvolvido com doentes em fase terminal. Com este estudo
descobriram as categorias centrais de consciência agonizante, assim como a
trajectória agonizante (Glaser & Strauss, 1965). O método de pesquisa foi
denominado como "Metodologia da grounded theory. Assim, de acordo com
estes autores, a grounded theory foi descoberta, não inventada.
Em "A Descoberta da Grounded Theory- Estratégias para Investigação
Qualitativa', Glaser e Strauss confrontaram esta metodologia com a pers
pectiva lógico-dedutiva. Argumentaram que a ênfase prevalecente em testar
a teoria, negligencia o seu processo de geração. Outro défice da investigação
em ciências sociais neste período era as conexões de teoria-prática. As teo
rias t inhanrse desenvolvido numa perspectiva positivista e tornaranrse
mais afastadas dos fenómenos sociais que era suposto explicarem (Glaser &
Strauss, 1967).
Dadas as características da metodologia proposta por estes autores, esta
também pode ser denominada por "método da análise comparativa constan
te". Strauss & Corbin (1990) sugeriram que a metodologia da grounded
107 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
theory é uma técnica que pode ser usada para desenvolver uma teoria a par
tir dos dados sistematicamente recolhidos e analisados. A relação entre os
dados e a teoria, torna_se evidente, com aqueles a suportarem a sua existên
cia e esta a explicá-los. E um método qualitativo bastante diferente dos
métodos quasi-dedutivos qualitativos sugeridos por Miles & Huberman
(1994). A metodologia da grounded theory não começa com hipóteses ou per
guntas de pesquisa como nos métodos dedutivos. De facto, começa com um
fenómeno que o investigador acha que está inadequadamente explicado do
ponto de vista teórico, e com um problema de investigação bem definido. A
metodologia da grounded theory é frequentemente usada em estudos para a
investigação de conceitos novos e criação de teoria.
Mais tarde Glaser e Strauss divergiram quer nos percursos, quer no
entendimento acerca da grounded theory. Assim, podemos dizer que, apa
rentemente, há pelo menos duas versões de grounded theory (i.e., a de Gla
ser e a de Strauss). Contudo e apesar da troca de críticas entre os dois auto
res, não fica claro que existam diferenças profundamente significativas.
Assim, motivos de natureza pragmática e que tiveram a ver com a facilidade
de acesso à informação, mas também de natureza identitária, conduzi-
ram-me até à perspectiva da grounded theory desenvolvida por Strauss &
Corbin (1998).
De acordo com Pandit (1996) as principais fases e passos desta metodolo
gia são as apresentadas no quadro 4. Sobre cada uma delas, darei adiante
explicações mais pormenorizadas.
Contudo e antes dessas explicações pormenorizadas, torna-se necessário
clarificar principalmente um dos objectivos que me proponho alcançar com
este estudo (i.e., Desenvolver uma teoria de médio alcance sobre a relação
enfermeiro-doente). Os outros (i.e., Compreender a natureza da interacção
entre os enfermeiros e os doentes oncológicos submetidos a quimioterapia
num hospital de dia e Contribuir para a construção da disciplina de enfer
magem) são justificados pelas razões explicativas do presente estudo (ver I
Parte do trabalho).
Dissertação de Doutoramento
Os ulciites c os enfermeiros: Construção de uma relação
Quadro 4-0Processo de construção de uma teoria fundamentada FASE PASSOS ACTIVIDADES RAZÕES
FASE DO DESENHO DE INVESTIGAÇÃO
PASSO 1 Revisão da literatura técnica.
Definição da pergunta de investigação. Focalizar os esforços.
FASE DO DESENHO DE INVESTIGAÇÃO
PASSO 1 Revisão da literatura técnica. Definição dos construetos à
priori.
Dificultar a variação irrelevante e aumentar a validade externa.
FASE DO DESENHO DE INVESTIGAÇÃO
PASSO 2 Selecção de casos. Amostragem teórica, não estatística.
Focalizar os esforços em casos teoricamente úteis.
FASE DA RECOLHA DE DADOS
PASSO 3
Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.
Criar uma base de dados de estudos de caso.
Aumentar a fiabilidade e validade de construeto.
FASE DA RECOLHA DE DADOS
PASSO 3
Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.
Empregar métodos múltiplos de recolha de dados.
Fortalecer a fundamentação da teoria pela triangulação da evidência. Aumentar a validade interna.
FASE DA RECOLHA DE DADOS
PASSO 3
Desenvolver uni protocolo rigoroso de recolha de dados.
Dados qualitativos e quantitativos.
Visão sinérgica da evidência.
FASE DA RECOLHA DE DADOS
PASSO 4 Entrando no campo.
Sobrepor recolha e análise de dados.
Acelerar a análise e fornecer ajustamentos úteis para a recolha de dados.
FASE DA RECOLHA DE DADOS
PASSO 4 Entrando no campo.
Métodos de recolha de dados flexíveis e oportunistas.
Permitir ao investigador tirar proveito dos temas emergentes e das características únicas dos casos.
FASE DA ORDENAÇÃO DOS DADOS
PASSOS Ordenação dos dados.
Ordenar os eventos cronologicamente.
Tornar a análise dos dados mais fácil.
FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS
PASSO 6 Analisar e relacionar com o 1° caso.
Usar codificação aberta. Desenvolver conceitos, categorias e suas propriedades.
FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS
PASSO 6 Analisar e relacionar com o 1° caso.
Usar codificação axial. Desenvolver as conexões entre as categorias e as suas subcategorias.
FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS
PASSO 6 Analisar e relacionar com o 1° caso.
Usar codificação selectiva.
Integrar categorias para construir estruturas teóricas. Todas as formas de codificação aumentam a validade interna.
FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS
PASSO 7 Amostragem teórica.
Replicação literal e teórica ao longo dos casos. Voltar ao Passo 2 até à saturação teórica.
Confirmar, estender e aprimorar a estrutura teórica.
FASE DA ANÃ-LISEDEDADOS
PASSO 8 Alcançar o encerramento.
Saturação teórica quando possível.
Terminar o processo quando as melhorias marginais se tornarem pequenas.
FASE DA COMPARAÇÃO COM A LITERATURA
PASSO 9
Comparar a teoria emergente com a extensa literatura existente.
Comparar com estruturas teóricas conflituantes.
Aumentar a definição do construeto e da validade interna. FASE DA COM
PARAÇÃO COM A LITERATURA
PASSO 9
Comparar a teoria emergente com a extensa literatura existente. Comparar com estruturas
teóricas similares.
Aumentar a validade externa pelo estabelecimento do domínio para o qual os achados do estudo podem ser generalizados.
Fonte: Pandit, N. R. (1996)
Assim, as minhas opções metodológicas relativamente à concretização
desse objectivo, são enquadráveis numa das três estratégias de desenvolvi
mento teórico propostas por Walker & Avant (1995). As estratégias propos
tas são^ Derivação, Análise e Síntese.
109 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A derivação é uma estratégia em que se emprega a analogia ou a metáfo
ra na transposição e redefinição de um conceito, declaração ou teoria de um
contexto para outro (Walker & Avant, 1995). Esta estratégia foi fortemente
influenciada pelo trabalho de Maccia & Maccia (1966). Na enfermagem, um
dos exemplos desta estratégia é a proposta por Condon (1986), a qual, a par
tir da teoria do desenvolvimento sócio-moral de Kohlberg (1981, 1984), deri
vou a teoria do desenvolvimento para o cuidar.
Na análise clarificanrse ou refinam-se conceitos ou teorias. A análise é
especialmente útil em áreas nas quais existe l i teratura teórica. Nesta apro
ximação, o teorizador disseca o todo nas suas partes, para que possam ser
melhor entendidas. Adicionalmente, examina a relação de cada uma das
partes entre si e com o todo (Walker & Avant, 1995). Se, por exemplo, hou
ver pontos de vistas rivais ou inconsistentes sobre a empatia, então uma
análise deste conceito pode ajudar a clarificar o seu uso, natureza e proprie
dades.
Por último, a síntese, contrasta com a anterior na medida em que combi
na peças isoladas de informação que ainda estão teoricamente desligadas.
Na síntese, informação baseada na observação é usada para construir um
novo conceito, uma nova declaração, ou uma nova teoria. A síntese funciona
melhor quando o teorizador está a recolher dados ou a tentar interpretá-los
sem uma estrutura teórica explícita. Muitas investigações clínicas descriti
vas consistem na recolha de largas quantidades de dados, na esperança de
que se destaquem factores e inter-relações importantes. A síntese pode aju
dar neste processo de separação (Walker & Avant, 1995). E neste contexto
que o presente trabalho pode ser entendido.
Apesar disso, o contributo deste trabalho para a teorização em enferma
gem é limitado pela natureza da teoria que me proponho desenvolver^ uma
teoria de médio alcance. Efectivamente, as teorias de médio alcance são
limitadas no número de variáveis e no alcance, tal como a sua designação
indica. Todavia, estas teorias são suficientemente genéricas para serem
cientificamente interessantes e parti lham alguma da economia de conceitos
das grandes teorias mas também providenciam a especificidade necessária
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
para ser usada na prática de investigação (Walker & Avant, 1995). São por
último um contributo no encadeado dos diversos níveis de desenvolvimento
teórico (ver figura 6).
Figura 6 -Ligações entre níveis de desenvolvimento teórico
NÍVEL META-TEÓRICO
NÍVEL DE GRANDES TEORIAS
NÍVEL DE TEORIA DE MÉDIO ALCANCE
NÍVEL DE TEORIA PRATICA
Providencia material para
Testa na prática
Fonte: Adaptado de Walker & Avant (1995)
Dito por outras palavras, as teorias de médio alcance posicionanrse como
um nível necessário no conjunto dos diversos níveis que constituem o uni
verso teórico de qualquer disciplina, mas principalmente daquelas cuja
natureza é idêntica à da enfermagem. As teorias de médio alcance, bem
como as teorias práticas, reconhecenrse como importantes no contexto das
respostas concretas que os profissionais precisam de dar no seu dia_a_dia.
Apesar do que acabei de dizer, penso que seja útil reforçar a ideia de que
este é apenas um elo na cadeia faseada do desenvolvimento do conhecimento
em enfermagem (ver figura 7).
Figura 7 - Fases do desenvolvimento da ciência de enfermagem
Desenvolvimento do conceito -*•
Desenvolvimento da declaração
Desenvolvimento da teoria
Teste da teoria
Ciência de Enfermagem
Testes adicionais da teoria
Fonte: Adaptado de Walker & Avant (1995)
111 Dissertação de Doutoramento
Revisão do conceito
Revisão da declaração
Revisão da teoria
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Ou seja, tal como é indicado pelo último objectivo deste trabalho (i.e.,
Contribuir para a construção da disciplina de enfermagem), pretende-se
contribuir para o desenvolvimento do conhecimento em enfermagem.
4.1 - FASE DO DESENVOLVIMENTO DO DESENHO DE INVESTI
GAÇÃO
O processo de definição do desenho de investigação alicerçou-se na refle
xão pessoal acerca das minhas experiências enquanto prestador de cuidados,
professor e investigador,' em leituras diversas, quer de natureza clinica, quer
metodológica; e em discussão com colegas, pares de profissão e de percurso
académico. Destas últimas destaco as ocorridas no contexto dos seminários
para doutorandos, promovidas pela Unidade de Investigação Enfermagem e
Desenvolvimento. Do conjunto destas actividades resultou a definição do
problema, dos objectivos, bem como o desenho metodológico, ainda que gené
rico.
Após isto, a primeira questão que se me colocava e que exigia uma deci
são rápida, t inha a ver com a escolha do local para a realização do meu
estudo. Esta não era, de todo, uma questão de somenos importância. Efecti
vamente, se queria estudar a relação enfermeiro-doente, poderia part ir do
pressuposto de que, desde que duas pessoas estejam em presença existe
relação, logo, qualquer local de prestação de cuidados seria adequado. Toda
via, não era esta a ideia subjacente ao estudo. Se o que pretendo estudar é a
relação enquanto instrumento terapêutico, torna-se necessário conjugar dois
factores importantes: por um lado, um contexto onde exista continuidade
temporal de contacto entre os enfermeiros e os doentes,' por outro, uma
situação de saúde que se constitua como um processo de transição (Meleis,
1997).
Optei assim por escolher um serviço de quimioterapia a funcionar em
regime de hospital de dia. Efectivamente, a administração da quimioterapia
oncológica é um procedimento que exige grande rigor e que normalmente se
prolonga por várias horas. E também um procedimento que se repete várias
vezes por semana e ao longo de várias semanas, podendo ser interrompido e
Dissertação de Doutoramento
Os ulentcs e os enfermeiros; Construção de uma relação
reiniciado várias vezes ou repetido, prolongandose assim por meses. É um
procedimento que ocorre quando a pessoa já iniciou o processo de interiori
zação da sua situação de doença oncológica e de todas as consequências que
dai advêm. Afirmo tal porque a quimioterapia é um procedimento sempre
posterior ao diagnóstico, muitas vezes posterior a outras intervenções e que
decorre num serviço com representação associada à doença oncológica. E,
por último, um procedimento do qual podem resultar vários e desagradáveis
efeitos secundários. O enfermeiro é em todo este processo a figura central. É
ele quem prepara a terapêutica, quem prepara o doente para a sua adminis
tração, e quem administra e vigia os seus efeitos secundários. Mas é ele tam
bém que está com o doente durante todo o tempo que este permanece no ser
viço, ao longo de várias semanas.
Falta ainda justificar a escolha do local concreto onde realizei o estudo. O
primeiro pressuposto para escolher este serviço radicou no seguinte'• se um
dos objectivos do estudo é o desenvolvimento de uma teoria de médio alcance
acerca da relação enfermeirodoente, considero que seja adequado escolher
um serviço que reúna um conjunto de prérequisitos, dos quais destaco, ter
reputação de prestar bons cuidados de enfermagem. O ideal seria socor
rerme de um conjunto de dados resultantes da avaliação da qualidade dos
cuidados de diversos unidades de quimioterapia. Dada a inexistência de tais
elementos, utilizei medidas reputacionais junto de profissionais de saúde
diversos, de alguns utentes e de colegas professores de escolas superiores de
enfermagem, nomeadamente no que diz respeito à utilização enquanto local
de estágio para a formação de novos profissionais. Nas medidas reputacio
nais estavam incluídos elementos tais como:
S a qualidade do espaço físico;
■S a qualidade percebida da relação da equipa com os doentes e famílias!
S a qualidade percebida da relação dos enfermeiros com os doentes e
famílias!
S a qualidade percebida da relação entre os diversos elementos da equi
pa!
113 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Na região sul do país, local onde moro, vários foram os serviços possíveis.
Acabei por optar pelo que mais facilidades de acesso me colocava face ao
meu local de residência, uma vez que o contacto e a permanência iriam ser
longos.
Chegado a esta fase procedi ao pedido de autorização ao Conselho de
Administração do hospital, o qual, após ter recolhido os pareceres julgados
convenientes das diversas entidades e órgãos, me autorizou a realização do
estudo.
Dei então início a um período de contactos informais com os diversos
actores do serviço, nomeadamente, Director de Serviço, Enfermeira Chefe,
restantes médicos e enfermeiras e auxiliares de acção médica. Estes contac
tos tiveram como objectivos, informar os diversos intervenientes da minha
presença, bem como do trabalho que pretendia desenvolver e ainda criar as
melhores condições possíveis para o desenvolvimento do mesmo.
Passado este período, desenvolvi um estudo piloto cujo objectivo foi, reco
lher os elementos necessários à tomada de decisões e delineamento de estra
tégias de investigação. Aquele estudo prolongou-se por dois meses e consis
tiu na observação do contexto, observação livre das interacções que se pro
cessavam nesse local, dando preferência às interacções entre os doentes e as
enfermeiras. Desta observação foram elaboradas notas de campo, transcri
tas no final de cada período de observação para um diário, ao qual eram ain
da acrescentadas as minhas impressões e vivências. Foram também efec
tuadas entrevistas a algumas enfermeiras, a alguns doentes (quer umas
quer outras gravadas em suporte magnético), e ainda feita observação e gra
vação, em idêntico suporte, das entrevistas de admissão efectuadas pelas
enfermeiras aos doentes. De entre as decisões tomadas com base neste estu
do piloto destaco^
S englobar todas as enfermeiras no estudo, sendo que lhes seria solici
tado, pelo menos, um relato relacional; ser-lhes-ia ainda solicitada a
gravação das entrevistas de admissão por elas realizadas;
S escolher doentes para entrevistar de acordo com diversidade de ida
des e de experiências;
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação
■S na observação, dar preferência sucessivamente, às salas de adminis
tração de quimioterapia, sala de espera dos doentes e restantes
espaços,'
•S estar atento à continuidade dos relacionamentos, quer durante a
sessão de quimioterapia, quer de uma sessões para outras.
S também na observação, dar preferência aos períodos de maior
afluência de doentes.
Para cumprir algumas destas decisões de forma sistemática, foram ela
borados guiões para as entrevistas efectuadas às enfermeiras (anexo I), aos
doentes (anexo II) e um guião de observação (anexo III), dos quais falarei
mais à frente.
4.2 FASE DE RECOLHA DE DADOS
Após isso, e com base nas decisões então tomadas, iniciei o processo de
recolha de dados para o trabalho de investigação. O primeiro período de
recolha de dados decorreu entre Junho e Agosto de 2002. A este seguhrse
um período de análise de dados que se prolongou até Abril de 2003. Entre
Maio e Agosto de 2003 decorreu o segundo período de colheita de dados.
Na colheita de dados utilizei duas técnicas a entrevista e a observação.
Segundo alguns autores (e.g., Denzin et ai, 1994; Olabuénaga, 1999; Les
sardHérbert et ai, 1990; Streubert et ai, 1995), estas são as duas técnicas
fundamentais de recolha de dados em investigação qualitativa. Contudo e
dada a diversidade de técnicas de entrevista e de observação, alguns outros
propõem que se fale em técnicas de recolhas de dados verbais e de dados
visuais (Flick, 1998). A primeira destas denominações (i.e., técnicas de reco
lha de dados verbais) pareceme particularmente adequada. Todavia, a
segunda pareceme padecer de alguma limitação, uma vez que na observa
ção não se recolhem apenas dados visuais mas também verbais, olfactivos,
tácteis, entre outros. Por tal razão, servirmeei de elementos provenientes
de autores diversos para caracterizar e fundamentar as opções assumidas
neste trabalho.
115 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
4.2.1 - A entrevista
A entrevista é considerada uma das duas principais técnicas de investi
gação qualitativa (Denzin et ai 1994). Esta técnica, ao serviço da investiga
ção, pode ser entendida como um modo de obter informação através de uma
conversa profissional com uma ou várias pessoas e consiste basicamente na
arte de formular perguntas e escutar as respostas (Olabuénaga, 1999). Defi
nida deste modo, a entrevista pode ser vista como um processo de interacção
social entre duas pessoas. Pelo que, esta técnica de colheita de dados coloca
questões relacionadas com esse processo e que não devem ser esquecidas.
Assim, é importante considerar os aspectos contextuais relacionados com a
entrevista, tais como, o espaço onde a entrevista vai decorrer, o modo como o
mesmo está mobilado, o modo como os intervenientes na entrevista se posi
cionam e a representação que aquele espaço tem para os intervenientes.
As entrevistas por mim efectuadas para este estudo, decorreram todas no
gabinete atribuído à enfermeira chefe do serviço para a prossecução das
suas funções. Contudo e dado a enfermeira chefe privilegiar as funções clíni
cas, este gabinete era frequentemente usado para conversas privadas com
doentes. Portanto, estava conotado com o desenvolvimento de interacções
privadas, o que motivava algum cuidado das pessoas em procederem a qual
quer interrupção desde que a porta estivesse fechada. Em todas as entrevis
tas tive a liberdade de dispor do espaço e do mobiliário como me pareceu
mais conveniente. Assim, pude escolher sempre uma disposição que me per
mitisse ver a pessoa, sem contudo impor a minha presença. Paralelamente,
o usufruto do espaço em condições de privacidade foi um elemento de grande
importância. Por último e em termos de representação, posso dizer que para
as enfermeiras, aquele era um espaço delas, no qual se sentiam "em casa".
Por sua vez, para os doentes, era um espaço com uma conotação de privaci
dade e onde alguns já t inham estado em interacção com alguma das enfer
meiras.
Este último elemento faz a ponte para o segundo conjunto de elementos
relativos à interacção social e associados à entrevista^ os elementos relacio
nais. Estes e até porque uma das referências conceptuais importantes desta
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
abordagem metodológica é o interaccionismo simbólico, devem considerar a
representação mútua que os intervenientes na entrevista possuem; mas
devem considerar também os elementos associados à interacção propriamen
te dita, como sejam a confiança, a simpatia, a civilidade, o respeito, entre
outros (Olabuénaga, 1999).
Relativamente à representação mútua e no que às enfermeiras diz res
peito, há dois grupos de factores a referir. O primeiro tem a ver com o facto
de já nos conhecermos mutuamente. Deste conhecimento resulta a imagem
que eu tenho do grupo e a imagem que julgo que o grupo tem de mim. Sobre
a primeira posso referir que as respeito enquanto profissionais, consideroas
detentoras de uma elevada experiência e voluntarismo. Posicionome face a
elas com humildade e como alguém que está a uma enorme distância da sua
experiência de prestação de cuidados. A imagem que julgo terem de mim
penso caracterizarse pelo respeito por alguém que consideram desenvolver
a sua actividade profissional (i.e., o ensino) com rigor e exigência. Penso
também que me consideram alguém detentor de aprofundados conhecimen
tos. Estes elementos poderiam à partida gerar algumas dificuldades, as
quais se poderiam manifestar por uma actuação e/ou verbalização, de algum
modo encenada. Por tais razões prolonguei o período de convívio inicial.
Durante este período, que correspondeu aos contactos iniciais bem como ao
tempo em que decorreu o estudo piloto, permaneci no serviço, tentando esta
belecer uma relação de confiança e de respeito. Penso ainda que o facto de
ter desenvolvido entrevistas durante esse período, serviu para ajudar a
ultrapassar alguns constrangimentos. Julgo contudo que a minha atitude de
respeito, de ausência de crítica e de uma distância parcimoniosa, contribuiu
para deixarem de se preocuparem comigo. Digamos que passei a "fazer parte
da mobília".
Relativamente aos doentes, não havia qualquer conhecimento prévio,
pelo que a representação foi sendo construída com base na informação que
iam recolhendo, principalmente junto das enfermeiras. Da imagem que
foram construindo pareceume sobressair um elemento importante'■ alguém
que estava ali a desenvolver um estudo que poderia ser útil aos futuros pro
117 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
fissionais e consequentemente aos doentes. Isto predispunha os doentes a
colaborarem de boa vontade.
Relativamente à entrevista enquanto técnica de colheita de dados, a
questão que a seguir se coloca é: qual dos diversos tipos usar? No meu
entender, esta decisão depende essencialmente dos objectivos do estudo. Ora
recordo que com este estudo se pretende, "compreender a natureza da inte
racção entre as enfermeiras e os doentes oncológicos submetidos a quimiote
rapia num hospital de dia e "desenvolver uma teoria de médio alcance sobre
a relação enfermeiro-doente". Está portanto subjacente uma perspectiva pro
cessual e, para este efeito, propus-me obter dados a partir dos diversos inter
venientes. Deste modo, justifica-se que o objectivo central da entrevista seja
a obtenção de um relato de um processo relacional. Ora analisando as carac
terísticas deste, verifica-se que estamos perante um processo relacional vivi
do pelo entrevistado, significando tal que o mesmo se tornou parte integran
te da biografia de cada um. Pelo que, a solicitação de um relato de uma expe
riência de vida com estas características corresponde ao que Flick (1994)
define como "entrevista narrativa". Efectivamente, de acordo com Her
manns, citado por Flick (1994), na entrevista narrativa o informante é solici
tado a apresentar a história de uma área de interesse, na qual o mesmo
tenha participado. Ainda de acordo com os autores citados, o papel do entre
vistador consiste em fazer com que o informante conte a história em questão
de uma forma consistente e com todos os pormenores relevantes, desde o
princípio ao fim. Normalmente uma entrevista desta natureza começa com
uma questão que gera a narrativa. Ou seja, uma questão centrada no tópico
a investigar e que estimule a narrativa.
No caso do presente estudo, solicitou-se às enfermeiras que recordassem
um processo de interacção que, do seu ponto de vista, tivesse sido terapeuti-
camente positivo para o doente. Aos doentes fez-se idêntica solicitação com
um critério variante do anterior (i.e. "considerarem que o processo relacional
foi importante para eles próprios"). Após isso, solicitou-se o relato da histó
ria dessa interacção (ver anexo I). Por sua vez aos doentes era solicitado que
recordassem a sua experiência no serviço de quimioterapia e que relatassem
- - _ - - - _ - _ _ = = = = = - _ _ _ _ - _ = = = = = = _ _ = = = = = „ _ _ = = „ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ = = = „ „ „ . „ , . , , 8
Dissertação de Doutoramento
£5¾¾
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
a história da relação com a enfermeira com a qual tivessem mantido uma
relação que considerassem que foi importante para eles. Dado ter constatado
nas entrevistas efectuadas aos doentes durante o estudo piloto, alguma relu
tância no assumir de relações preferenciais, tornava-se necessário, por
vezes, solicitar o relato da relação com as enfermeiras e não com uma em
particular (ver anexo II). Esta dificuldade, a que mais à frente voltarei a
fazer referência, pareceu-me radicar num misto de alguma protecção às
enfermeiras, com algum medo de ferir susceptibilidades. Apesar disso, no
decorrer do relato sobressaia a preferência relacional.
Todas as entrevistas narrativas foram gravadas em suporte magnético.
Aquelas decorreram em sala própria e apenas com a minha presença e dos
informantes. Previamente ao início da gravação, eram explicados os objecti
vos do trabalho, o tratamento a que os dados iriam ser sujeitos e garantida a
confidencialidade. No caso dos doentes e familiares e com base na experiên
cia das entrevistas realizadas no estudo piloto, entendeu-se por bem dar a
garantia adicional de que não se pretendia fazer qualquer avaliação do tra
balho das enfermeiras, mas, tão só, perceber o processo de relação.
Na sequência disto, era solicitada autorização para a realização da entre
vista e para a sua gravação em suporte magnético. Após se dar início à gra
vação, solicitava-se aos informantes que declarassem o seu conhecimento
das condições de realização da entrevista e a sua concordância, com o intuito
de ficar registo da sua autorização.
No início do relato e tal como é proposto por Flick (1998), era sugerida
uma sequência cronológica como forma de organizar o raciocínio. Durante o
relato a minha interferência era praticamente nula, dando no entanto sinais
de que estava atento e a compreender o relato. Eventuais interferências
eram no sentido de tentar compreender o encadeamento dos factos e nor
malmente ocorriam na parte final do relato. Após o relato ser dado por con
cluído, facto que dependia de sinais fornecidos pelos informantes, dava-se
início a uma segunda parte da entrevista, apelidada de fase de balanço
(Flick, 1998). Esta consistiu basicamente em perguntas com "como" e "por
quê" e teve como objectivos principais, compreender as razões porque esco-
j j 9 _______________=======„__________„___„_____________„_____=======_
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
lheram aquela história e pelas quais consideraram que o processo t inha sido
positivo (Schõn, 1998). No caso das enfermeiras, tentouse ainda aferir o
grau de consciência dos processos descritos, bem como o grau de intenciona
lidade das acções desenvolvidas.
As entrevistas narrativas tiveram uma duração variável entre os 25
minutos e os 70 minutos. Todas as enfermeiras fizeram o relato de um pro
cesso, excepto uma que fez de dois e deu contributos para um terceiro. Rela
tivamente aos doentes a entrevistar, foram escolhidos tendo em considera
ção as seguintes características'■
S aparentarem ter capacidade de reflexão sobre o processo que estavam
a vivenciar ou t inham vivenciado (esta capacidade era confirmada
com as enfermeiras);
S estarem em momentos diferentes do processo de quimioterapia,'
■f pertencer a diferentes grupos etários;
S pertencerem a géneros diferentes,'
S terem diferentes tipos de experiências (longa experiência de doença
oncológica versus experiência única, conhecer diferentes tipos de ser
viço versus conhecer apenas este, ...)
Foram assim entrevistados 10 doentes e respectivo(s) familiar(es). Estes,
em regra, acompanhavam os doentes, pelo que a entrevista era em simultâ
neo, excepto em dois casos em que a entrevista aos doentes e respectivos
familiares ocorreu em momentos diferentes. As entrevistas foram poste
riormente, por mim, passadas a papel. Neste processo, optouse pela trans
crição integral de tudo o que foi dito e ainda pela anotação de algumas
expressões não verbais usadas.
Entendi recorrer ainda a uma outra técnica de recolha de dados verbais:
o focusgrupo. Esta técnica consiste basicamente no uso explícito da interac
ção do grupo para produzir dados e "insight^ que dificilmente poderiam ser
acessíveis sem o recurso a essa interacção (Morgan, 1988). O focusgrupo
pode ser usado como técnica autónoma ou em associação com outras como a
observação ou as entrevistas. No entender de Morgan (1988) e Flick (1998),
esta técnica é muito útil em situações como:
_ « _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ 1 _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ , 2 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
•S orientação num novo campo!
•S geração de hipóteses baseadas em "insight^ dos informantes;
•/ avaliação de diferentes sítios de investigação ou populações de estu
do!
S desenvolvimento de grelhas de entrevista e questionários!
•/ procurar a interpretação dos participantes dos resultados de estudos
prévios.
No presente estudo, o focus-grupo foi usado em estreita associação com
as entrevistas narrativas efectuadas às enfermeiras e com o objectivo de
procurar a sua interpretação dos resultados já alcançados. Por tal razão o
focus-grupo ocorreu no ano de 2003, após ter procedido à análise das entre
vistas narrativas efectuadas às enfermeiras. Decorreu em espaço próprio,
teve a duração de cerca de duas horas, do mesmo foi feito registo em suporte
magnético e nele estiveram presentes todas as enfermeiras (5). O procedi
mento iniciou-se com as explicações sobre o funcionamento do mesmo.
Assim, foram explicados os aspectos relativos à necessidade de gravação em
suporte magnético, o tratamento que seria dado à informação, as garantias
de confidencialidade e terminei solicitando autorização para desenvolver tal
procedimento. De seguida foi explicado o procedimento relativo à introdução
dos assuntos-estímulo. Este consistia na apresentação de cada um dos prin
cipais achados na análise das entrevistas narrativas. Após a apresentação
de cada um desses achados, aguardaria que cada uma das enfermeiras pre
sentes fizesse o comentário que lhe aprouvesse. A ordem era indiferente, não
havendo também qualquer obrigatoriedade de participação. Solicitava-se
apenas que não houvesse sobreposição de depoimentos por razões técnicas.
Dado que todos os elementos deste grupo se conheciam, entendi dispen
sar os habituais procedimentos iniciais que têm como objectivo principal
"aquecer" o grupo (Flick, 1998). Todas as enfermeiras participaram, sendo
elas que se estimulavam mutuamente no sentido de fazer com que as mais
caladas também dessem a sua opinião.
121 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
4.2.2 - A observação
A observação é uma actividade de que o ser humano sempre se serviu no
contexto das suas interacções. Aliás e no contexto do interaccionismo simbó
lico, a interacção em contexto social depende da capacidade de observação e
de interpretação de cada sujeito (Blumer, 1969). Pode-se então dizer que a
capacidade de observação é intrínseca ao ser humano. Talvez seja essa uma
das razões pela qual a observação é das mais antigas e das mais universais
técnicas de recolha de dados usadas na investigação. Efectivamente se ana
lisarmos os métodos usados pelos cientistas, constatamos que a observação é
talvez a técnica mais comum a todos eles, independentemente da orientação
metodológica. Isto é verdade quer pensemos em cientistas da actualidade,
quer da antiguidade. Assim se nos recordarmos das observações dos primei
ros astrónomos, como Galileu Galilei, constatamos que seguiam estritas
normas de observação e registo do observado. Mas também Darwin, bem
como tantos outros recorreram à observação e registo pormenorizado dos
seus objectos, como forma de acederem à sua compreensão. Portanto, falar
da observação enquanto técnica de recolha de dados não se constitui pro
priamente como uma novidade. Pensar-se-á então que é desnecessário pro
ceder a grandes explicações. Contudo a controvérsia surge quando se começa
a usar a observação como técnica de recolha de dados de natureza qualitati
va. Principalmente quando o cientista faz parte do mundo social que estuda,
como acontece nas ciências sociais (Strasser, 1985). Neste caso colocanrse
problemas de rigor científico que é preciso acautelar. Apesar disso esta téc
nica tem sido sistematicamente usada por todos os grandes cientistas das
ciências sociais, a começar em Durkheim.
Pelas razões expostas, se a pretendo usar enquanto instrumento de
investigação, num estudo desta natureza preciso de a definir e de a entender
nas suas diversas dimensões. Assim, a definição geral adoptada é a proposta
por Olabuénaga (1999) e consiste no seguinte: a observação é o processo de
contemplação sistemática e sucessiva da vida social, sem a manipular nem a
modificar. De realçar que nesta definição estão presentes duas característi
cas que Denzin & Lincoln (1994) entendem ser as que mais distinguem as
_ _ _ = = - - _ - _ _ - = = = ~ « - - - _ _ _ _ _ = = = _ ™ _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ = „ = _ _ _ „ _ = = = = _ „ „ _ _ = 1 2 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
observações científicas das restantes: é o seu carácter intencional e sistemá
tico. Contudo, interessa realçar outras características, nomeadamente a não
manipulação e não modificação do observado. O realce justifica-se porque
estas características são simultaneamente, as que melhor caracterizam o
uso da observação enquanto instrumento de colheita de dados numa investi
gação qualitativa, mas também aquelas que são mais difíceis de almejar.
Pode-se então dizer que a observação usada neste contexto, tenta evitar a
distorção artificial da experimentação e os constrangimentos da entrevista.
Uma vez que, quer uma quer outra, acabam por ser situações criadas artifi
cialmente. Por outro lado e se respeitar o princípio da não intrusão, ou seja,
se não intervier nem manipular os objectos de observação, então, através
desta técnica, podemos ter acesso aos acontecimentos tal como espontanea
mente se desenrolam (Olabuénaga, 1999). Para isso o investigador precisa
de se munir de um conjunto de instrumentos acessórios, os quais ajudam a
desenvolver a observação e lhe conferem rigor. Começo por fazer referência a
duas características pessoais que o cientista precisa de desenvolver- a obsti
nação e a não intrusão. A obstinação justifica-se porque se t ra ta de uma téc
nica de colheita de dados que exige muito tempo e paciência. A não intrusão
já atrás foi referida, mas reafirmo-a como característica pessoal a desenvol
ver dada a necessidade de estar atento, principalmente em situações em que
os acontecimentos não sejam do nosso agrado.
Porém, para que a observação possa ser usada como instrumento de
investigação precisa de ser definida ainda com mais precisão. Assim e
segundo Olabuénaga (1999), à partida, é preciso que a observação seja-'
S Orientada - Ou seja, focalizada sobre um objectivo concreto de
investigação previamente determinado
S Planificada - Isto é, obedecer a um plano sistemático que determine
as fases, os aspectos, os lugares e as pessoas a observar.
•S Controlada — Ou seja, relacionada com proposições e teorias sociais.
•S Rigorosa - Quer dizer, submetida a controlos de veracidade, de
objectividade e de fiabilidade.
123 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Outros autores (e.g., Lessard-Hérbert, 1990; Denzin & Lincoln, 1994;
Flick, 1998; Quivy, 1998), fazem referência a critérios semelhantes.
No presente estudo, a observação foi focalizada sobre o processo de rela
ção enfermeira-doente no contexto do hospital de dia seleccionado para o
desenvolvimento deste estudo. Esta foi uma decisão que decorreu da defini
ção do problema de investigação e que ganhou dimensão e sentido na
sequência do estudo piloto desenvolvido. Através desse estudo tornou-se
mais fácil perceber como é que a relação ocorria naquele contexto, o que me
permitiu também dar corpo à planificação (ver anexo III).
Considero que a planificação da observação tem importância nuclear no
seu desenvolvimento. Por tal razão, aludo de novo à importância de ter
desenvolvido um estudo piloto. Este estudo permitiu-me perceber que a sala
de estar dos doentes era o local preferencial de interacção entre doentes e
familiares. Mas era também o espaço onde decorria frequentemente o pri
meiro encontro entre a enfermeira e os doentes e familiares. Ou então, onde
decorria o reencontro diário entre aqueles actores. Por outro lado, percebi
também que a primeira das duas salas de quimioterapia sistémica, era ver
dadeiramente o coração do serviço. Era a primeira a ser ocupada e a última
a vagar. Era também para ali que convergiam as enfermeiras, bem como os
mais diversos actores daquele serviço. Por último e em termos de espaços,
permitiu-me compreender a importância dos diversos corredores. Estes fun
cionavam muitas vezes como espaços de privacidade entre doentes e/ou
familiares e enfermeiras. Funcionavam também como espaços de negociação
com outros técnicos, nomeadamente médicos. Percebi ainda que as interac
ções entre as enfermeiras e os doentes eram pautadas por elementos diver
sos. Estes iam desde a coexistência de vários doentes na sala de quimiotera
pia, até à diversidade da sua situação médica e vivencial, a qual exigia res
postas específicas e adaptadas à sua evolução.
Com base nestas e noutras constatações planifiquei a minha observação.
Assim, estando já decidido qual era o foco de atenção (i.e., a interacção
enfermeiro-doente), era necessário decidir como me iria posicionar enquanto
observador e que tipo de observação iria adoptar. Também neste caso enten-
_ _ _ = _ = = = - - - _ „ = = = „ _ _ „ _ = = = = _ _ „ = „ „ „ _ . „ „ = = _ _ „ _ „ . _ _ _ _ _ _ _ _ . . _ „ „ _ 1 2 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
do que a decisão deve decorrer em coerência com a natureza do problema e
dos objectivos, bem como das opções metodológicas já assumidas. É necessá
rio então recordar que me proponho compreender a relação enfermei-
ro-doente no contexto já referido, sendo que, com base nesta compreensão
pretendo desenvolver uma teoria de médio alcance. Por outras palavras, pre
tendo ter acesso à realidade tal como ela ocorre, interferindo com ela o
menos possível. Consequentemente a minha opção é por uma abordagem
não participante. Contudo, dentro desta e em coerência quer com o interac-
cionismo simbólico, quer com a metodologia da grounded theory, optei pelo
posicionamento proposto pela escola dramatúrgica. Um dos seus autores
mais destacados foi Goffman (1999, 1990), mas também Berne (1971) e
Wythe (1984), entre outros deram contributos importantes. De acordo com
esta escola e na senda do interaccionismo simbólico, a interacção social é
entendida como uma representação teatral na qual é possível perceber um
guião, protagonistas, cenários, papéis, etc. Deste modo, cada pessoa que
esteja presente no contexto de interacção acaba por assumir um papel e
interferir na mesma. Por tal razão, entendem que o investigador deve assu
mir um papel de marginalidade face à situação. Ou seja, destacar-se o mais
possível da situação, de modo a interferir o menos possível.
Este posicionamento não é algo que se transporte e se imponha ao grupo
social que pretendemos observar. Trata-se antes de um posicionamento que
precisa de ser construído. Ou seja, precisamos de ter presente que, para que
haja observação, o observador tem de estar presente de algum modo. Estan
do presente participa no processo de interacção social. Este processo tem os
seus ritmos e as suas fases que não podem ser ignorados. No entender de
Olabuénaga (1999), essas fases são diversas e devem ser respeitadas. No
entender daquele autor as duas primeiras fases são^ o recénrehegado e o
membro provisório. Entendo que no presente estudo estas fases correspon
deram ao período de tempo que decorreu entre os meus primeiros contactos
e o fim do estudo piloto. Durante este período desenvolvi contactos com todos
os actores do serviço, quer viessem a participar no estudo, quer não. O prin
cipal objectivo subjacente foi dar-me a conhecer e ao trabalho que pretendia
125 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação '
desenvolver. Sobre este, tentei dar uma explicação plausível e demonstrar
que o meu interesse era em compreender e não em avaliar. Penso que nestas
fases iniciais assumiram importante papel, quer as observações levadas a
cabo, quer as entrevistas. Nem umas nem outras tiveram outra utilidade
científica para além da demonstrada no estudo piloto. Todavia, preencheram
importante função neste processo de construção do meu papel e estatuto
neste contexto social.
Durante este período combinei ainda com as enfermeiras qual a melhor
forma de me apresentar, do ponto de vista de imagem, bem como ao meu
trabalho, tendo principalmente em conta os doentes que vão chegando de
novo. Foi então decidido que usaria a minha roupa habitual, como forma de
não ser confundido com um elemento do serviço. Foi decidido também que no
decorrer dos períodos de observação, os quais seriam por mim fixados, ocu
paria um lugar fixo na sala e que adoptaria uma atitude de concentração
sobre as interacções em curso, evitando a todo o custo a interacção verbal.
Combinámos por último, que poderia deslocar-me para outros contextos na
tentativa de perceber uma sequência de interacção, sendo isso decidido em
cada momento.
Este período de tempo, a minha atitude durante a mesma, bem como as
negociações desenvolvidas, penso que me deram acesso ao que Olabuénaga
(1999) designa como, o membro categórico. Este caracteriza-se por alguma
opacidade. Ou seja, passa a ser um membro a que se habituaram e que não
provoca nem curiosidade nem receios e que desenvolve uma presença dis
tante. Dito por outras palavras, tem um papel social legitimado pelos mem
bros daquele grupo. Nesta fase é essencial o recurso ao pacto com os mem
bros do grupo para que estes lhe permitam o máximo de presença com o
mínimo de ostentação e ruído. E a fase ideal para aceder aos melhores locais
e informantes. Contudo, para que tal aconteça devem ter-se em conta algu
mas normas de comportamento, tais como:
S A concentração do observador - deve ser máxima para captar o
transparente, os sons, o silêncio, o dado por adquirido, o sentido
comum, o quotidiano, as chaves cifradas.
= = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = = = = = = = , _ _ „ „ . . = = = „ _ _ = = = = „ _ _ _ _ _ „ = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ . , 1 2 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
S A oportunidade para saber estar no momento certo na hora certa.
S A marginalidade que lhe garanta a suficiente distância para man
ter a independência.
S A agressividade controlada que recomenda a observação com medi
das menos intrusivas e evoluir depois.
■S A sindérese ou seja o cuidado reflectido, o bom senso, a discrição e
circunspecção. Digamos que é uma atitude que é uma mescla de
ingenuidade e astúcia, de segurança e dúvida, de clareza e ambigui
dade, numa táctica que sabe manter uma visão do conjunto e sope
sar as consequências de cada acção ou iniciativa do observador em
cada momento (Olabuénaga, 1999).
Neste contexto, é necessário tomar também decisões acerca do sistema de
registo dos dados. A este propósito e em consonância com as decisões já
tomadas, entendi que o sistema mais adequado é o que Evertson & Green
(1986) denominam como narrativo. Este sistema caracterizase por:
•S não ter categorias predeterminadas,'
•S se centrar sobre o comportamento e sobre o seu significado em con
texto;
S se centrar sobre os comportamentos tal como eles ocorrem;
S se plasmar em diários ou notas de trabalho de campo, as quais des
crevem incidentes críticos ou anedóticos ocorridos num dado período!
■S ter como objectivos a descrição pormenorizada dos fenómenos e a
evolução dos processos.
Para cumprir este conjunto de metas, procedi à observação de todos os
processos de interacção ocorridos no serviço, dando especial atenção aos que
ocorriam entre a enfermeira e o doente. A atenção ao todo justificase pela
necessidade de contextualizar e assim conferir significado aos comportamen
tos associados ao foco da minha atenção. Com base nisto, posso afirmar que
a amostra foi constituída por todas as enfermeiras, doentes e familiares que
desenvolveram interacções no espaço onde decorria a observação. Esse espa
ço foi preferencialmente a primeira sala de quimioterapia sistémica, mas
também a segunda, bem como os corredores e a sala de espera dos doentes.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A observação decorreu entre os meses de Junho e Agosto de 2002 e Maio e
Agosto de 2003. Em média, fazia observação durante três dias por semana
(não necessariamente os mesmos) e num período entre as 8h45m e as l l h 3 0
aproximadamente. Os dias da semana eram escolhidos de modo a poder per
ceber a continuidade das interacções e considerando que os doentes costu
mam fazer os tratamentos com uma periodicidade certa. Contudo esta regra
teve excepções. O período de tempo diário dedicado à observação resultou de
uma opção deliberada, por corresponder às horas em que a afluência de
doentes é maior, e devido às minhas limitações; isto é, dificilmente conse
guia fazer uma observação minuciosa por um período de tempo superior a
2h30m - 3h. Isto perfaz um total de 60 dias de observação, distribuídos ao
longo de cinco meses.
A opção por uma ou outra das salas, para proceder à observação, era
ditada pela ocupação das mesmas ou pela presença de enfermeiras e/ou de
doentes que pretendia observar em interacção. Quando um par de interacção
condicionava a minha opção por um local de observação, o que estava subja
cente era a observação da sequência de uma interacção iniciada na sala de
espera ou na sessão anterior. Desta forma, a sequência das interacções
adquiriu uma importância considerável. Tal justifica-se pela natureza do
estudo. Ou seja, se pretendo compreender a natureza da relação, preciso de
observar diversas interacções em continuidade. Por "interacção em continui
dade" entendo a ocorrência de duas ou mais interacções em dias diferentes,
entre um doente e uma enfermeira. Assim, o número total de interacções
enfermeira-doente observadas em continuidade foi 55. Destas interacções,
27 foram com doentes do sexo feminino e 28 com doentes do sexo masculino.
Durante o processo de observação eram elaboradas pequenas anotações
que me permitiam, à posteriori, fazer um registo fidedigno, em diário, do
observado. Nesses registos de observação foi dada preferência aos processos
de interacção observados entre as enfermeiras e os doentes. Tentava-se, não
só, registar a causa desencadeante da interacção, mas também o seu con
teúdo, ou seja, diálogo verificado e expressões não verbais observadas em
cada um dos intervenientes (ver anexo III). Os registos relativos aos diálogos
- - - _ _ _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ „ „ , 2 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
e expressões não verbais foram condicionados pelas situações. Explicando
melhor. Nem sempre foi possivel ter acesso directo ao conteúdo dos diálogos,
dado que estes, por vezes, ocorriam em processos de interacção privados,
inaudíveis aos restantes presentes na sala. Sobre estes foi, frequentemente,
pedido, à posteriori, à enfermeira envolvida que me fizesse um relato do
ocorrido. Algo de semelhante se passou com a observação e registo das
expressões não verbais. Ou seja, dado que não era oportuno interferir com o
processo de interacção em curso, só era registado aquilo que era visível a
partir do local onde me encontrava.
O diário de observação foi feito sempre no mesmo dia da observação, com
o intuito de não permitir que a passagem do tempo levasse ao esquecimento.
No processo de registo fezse a distinção entre o observado, o relatado pelos
actores e as vivências do investigador.
Integrado na observação, procedeuse ainda à gravação, em suporte mag
nético, das entrevistas efectuadas pelas enfermeiras aos doentes, no momen
to em que estes iniciavam o seu processo de quimioterapia. Estas entrevis
tas ocorrem por rotina neste serviço. Assim, cada doente que se prepara
para iniciar o seu processo de quimioterapia é previamente sujeito a uma
entrevista realizada por uma enfermeira. Cada enfermeira é responsável por
fazer entrevistas a determinados doentes, agrupados em função das patolo
gias oncológicas médicas mais frequentes. Esta entrevista decorre em gabi
nete próprio, com a presença da enfermeira, do doente, muito frequentemen
te, de um familiar de referência do doente e ocasionalmente, de um aluno.
Na sequência das conclusões do estudo piloto, pareceume que este era um
procedimento de grande importância no contexto dos cuidados que se desen
volvem neste serviço. Mas, acima de tudo, pareceume de importância cru
cial no processo de relação enfermeiradoente. Por tal razão, decidi recolher
informação sobre esse procedimento. Contudo, confrontavame com uma difi
culdade '■ uma vez que essas entrevistas ocorriam em tempo coincidente com
o meu período de observação, não poderia estar em ambos os sítios em
simultâneo. Por essa razão, solicitei a colaboração das enfermeiras no senti
do de procederem à gravação em suporte magnético das entrevistas de
129 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
admissão. Este é um procedimento previsto por Olabuénaga (1999). Apesar
disso, a solicitação foi ponderada, sopesando a interferência de tal procedi
mento no decurso normal das entrevistas. Todavia, durante o estudo piloto,
já t inha assistido e gravado algumas. Para além disso, pareceu-me interferir
menos a presença de um gravador transportado pela enfermeira que habi
tualmente efectua a entrevista, do que interferiria a minha presença. Assim,
as enfermeiras foram devidamente instruídas no que diz respeito ao funcio
namento do gravador, mas principalmente no que concerne aos procedimen
tos necessários ao consentimento informado.
Foram assim gravadas 10 entrevistas de admissão, as quais tiveram uma
duração média de 20 minutos. Essas entrevistas foram posteriormente por
mim passadas a papel.
No decurso da observação deparei-me com algumas dificuldades. A pri
meira e talvez mais importante de todas, residia em mim próprio e t inha a
ver com o risco de o meu referencial teórico-cultural distorcer a observação.
Este é aliás um dos riscos a que todos os teóricos da investigação citados
neste trabalho se referem. No caso presente por maioria de razão porque,
relembro aquilo que mais atrás afirmei, as questões relacionais, quer práti
cas, quer teóricas, ocupanrme há uns largos anos a esta parte. Para ultra
passar esta dificuldade tentei desenvolver várias estratégias. A primeira já
foi parcialmente descrita e consistiu na permanência no serviço durante um
período de tempo anterior à recolha de dados válidos para a investigação que
aqui se apresenta. Durante esse período de tempo recolhi dados de observa
ção que analisei. Durante essa recolha e análise de dados interroguei-me
sistematicamente se os resultados t inham a ver com o meu referencial ou
com o observado. Com base nisso e com vista à recolha de dados de observa
ção, decidi treinar uma atitude que era um misto de ingenuidade e de
conhecedor. Dito por outras palavras, estou convicto que o facto de conhecer
os meandros dos cuidados de saúde e de não ser um principiante nas ques
tões relacionais pode ser uma mais valia. Isto porque, deste modo consigo
perceber pormenores que passarão despercebidos a quem não tiver estes
conhecimentos. Recordo que se t ra ta de uma observação não estruturada
_____________=_=====____„_„_==_„„„=________„_„=„___.,_.„___„ 13 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
sobre categorias previamente definidas. Contudo, para evitar a distorção
que estes conhecimentos podem introduzir, é necessário ao mesmo tempo
cultivar uma atitude de ingenuidade. Esta permite-me interrogar-me a mim
e aos dados para além do acessivel pelos "óculos" do conhecimento adquirido.
Esta atitude manteve-se mais tarde durante a análise, sendo reforçada com
a obrigatoriedade que me impunha de transportar comigo o extracto de texto
que conferia sentido às unidades de significação.
A postura de marginalidade, já atrás referida, foi outra das que me aju
dou a ultrapassar esta dificuldade. Durante a colheita de dados esta consis
tia basicamente no esforço de me posicionar como se estivesse a assistir "de
camarote" a uma peça de teatro.
Uma segunda dificuldade teve a ver com o facto de, nem todos os aconte
cimentos ocorrerem nas salas por mim eleitas como locais preferenciais de
observação. Aliás, algumas das interacções com maior proximidade ocorriam
fora daquele espaço. Para ultrapassar esta dificuldade vi-me forçado a
desenvolver duas estratégias. A primeira, foi combinar com as enfermeiras
que as seguiria, sempre que constatasse a ocorrência duma situação daquela
natureza. A segunda, foi a necessidade de passar a estar atento aos sinais,
muitas vezes não verbais, de doentes e/ou familiares dirigidos à enfermeira,
no sentido de ela lhes conceder a possibilidade de uma interacção fora
daquele local.
Outras dificuldades existem associadas à observação. Contudo, penso que
no caso do presente estudo algumas delas foram superadas pelo facto de se
usar mais do que uma técnica de colheita de dados e mais do que uma fonte.
4.2.3 - Critérios de rigor na recolha de dados
Para terminar o sub-capítulo relativo à recolha de dados, resta equacio
nar algumas questões relativas aos critérios de rigor usados. Alguns destes
foram já enunciados no momento em que apresentei e justifiquei cada uma
das técnicas de colheita de dados usadas. Todavia, subsistem algumas per
guntas, como por exemplo: Porque é que parei a recolha de dados em deter
minado momento?
131 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Para responder a esta questão servir-me-ei do critério da adequação, pro
posto por Morse (1994). Este é um dos critérios de rigor em investigação
qualitativa, propostos por esta autora e refere-se à quantidade de dados
recolhidos, mais do que ao número de sujeitos. A adequação é obtida quando
forem recolhidos dados suficientes, de modo a que se atinja a saturação.
Considerando cada uma das fontes per se, mas principalmente o conjunto
dos dados, entendo que deixou de se verificar a ocorrência de novos e rele
vantes dados para o problema em estudo. Apesar disso, estou convicto do
carácter contingente de tal conclusão, uma vez que, até pela natureza da
própria prática, é sempre possível aparecerem novos e relevantes dados.
O critério anterior é completado por este outro designado por "apropria
ção" (Morse, 1994). Este critério refere-se à selecção dos informantes de
acordo com as necessidades teóricas do estudo e do modelo emergente. Estou
convicto que a amostra intencional seleccionada e já atrás explicada, foi a
adequada face aos objectivos que me proponho.
Todavia, relativamente aos critérios de rigor na recolha de dados, consi
dero que, neste estudo, os fundamentais foram:
S a procura de fontes múltiplas face ao problema em estudo;
S o uso de diferentes técnicas de colheita de dados.
Relativamente à multiplicidade de fontes, recordo que me socorri das
enfermeiras, dos doentes e ainda da minha observação. Tal providenciou
dados concorrentes que contribuíram decisivamente para assegurar a satu
ração. Mas e mais importante que isso, permitiu a confirmação cruzada de
alguns conceitos, tal como mais à frente explicarei. Por tais razões entendo
que este critério é sobreponível com o proposto por Upshur (2001). Esta
autora propõe um modelo taxonómico de evidência, dividido em quadrantes.
A investigação que aqui apresento insere-se no quadrante Qualitati
va/Pessoal. Neste quadrante a evidência caracteriza-se por emergir da natu
reza particular e histórica das percepções, crenças e atitudes das pessoas.
Segundo aquela autora, esta forma de evidência está muito próxima da con
cepção de evidência legal. Nesta sobressai como importante a diversidade de
fontes de informação.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Por sua vez, o uso de diferentes técnicas de recolha de dados completou o
critério anterior. Mas, acima de tudo, colmatou as naturais insuficiências de
cada uma das técnicas per se (Denzin et ai, 1994; Olabuénaga, 1999). Tam
bém Meadows & Morse (2001) entendem que esta é uma estratégia adequa
da de construir a evidência.
Assim, estou convicto que o conjunto de estratégias de rigor adoptadas
aos mais diversos niveis, garantem a fiabilidade dos dados, mas também a
sua riqueza.
4.3 - FASE DE ORDENAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS
Ao mesmo tempo que decorria a recolha de dados, processava-se também
a sua ordenação e análise. Esta sobreposição de processos é própria da meto
dologia adoptada (i.e., grounded theory) e é essencial porque confere sentido
à recolha de dados subsequente (Streubert et ai, 1995! Denzin et ai, 1994;
Strauss & Corbin, 1998). A ordenação já atrás foi parcialmente referida e
consistiu basicamente na redução a texto de todos os dados recolhidos. Ou
seja, na passagem das entrevistas de suporte magnético para texto e elabo
ração dos diários de campo. Decidi assumir a responsabilidade deste proce
dimento uma vez que, na impossibilidade de analisar detalhadamente todos
os dados à medida que iam sendo recolhidos, ao passá-los a texto desenvol
via uma percepção da globalidade que se revelou muito útil na continuidade
da recolha de dados. Todavia, estava ciente que era necessário mais tempo
para desenvolver uma análise mais pormenorizada. Por essa razão e após
um período de recolha de dados de alguns meses (i.e., de Junho a Agosto de
2002), com o trabalho de ordenação e primeira análise a decorrer em simul
tâneo, decidi interromper para proceder a uma análise mais pormenorizada
e congruente com o proposto pela metodologia adoptada. Foi o que aconteceu
entre Setembro de 2002 e Abril de 2003. Em Maio de 2003 retomei a recolha
de dados, que decorreu até Agosto. Também durante este período procedi à
ordenação e análise, tal como atrás descrevi, seguindo-se um período de aná
lise mais detalhada.
133 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A análise de dados segundo a metodologia da grounded theory, é o pro
cesso através do qual vamos descobrir as categorias e as suas característi
cas, a relação daquelas com as subcategorias e com a categoria central, a
necessidade de recolha de novos dados e deste modo, construir uma estrutu
ra conceptual coerente (Pandit, 1996; Strauss & Corbin, 1998; Flick, 1998;
Lopes, 2003). A análise de dados pode também entender-se como, a operação
através da qual os dados são quebrados, conceptualizados, e repostos juntos
de modos novos. E o processo central através do qual são construídas teorias
(Strauss & Corbin, 1998).
Do ponto de vista formal, a análise de dados, de acordo com a grounded
theory, inicia-se com a codificação aberta. Esta entende-se como o processo
analítico através do qual os conceitos são identificados e as suas proprieda
des e dimensões são descobertas nos dados. Durante a codificação aberta os
dados são partidos em partes discretas, examinados de perto e comparados
entre si, à procura de similaridades e diferenças (Strauss & Corbin, 1998;
Flick, 1998). Eventos, acontecimentos, objectos e acções/interacções que se
descubra que são conceptualmente semelhantes em natureza ou relaciona
dos no significado são agrupados sob conceitos (Pandit, 1996; Lopes, 2003).
Com o objectivo de proceder à codificação aberta, comecei por 1er atenta
mente o corpus de cada um dos grupos de dados que detinha. Esta leitura
incidiu sobre um determinado conjunto de dados (e.g. dados resultantes da
observação, das entrevistas), só passando ao conjunto seguinte quando com
pletada a análise do anterior. Tal decisão justifica-se porque, considerando
que possuo dados de fontes diversas, sobre o mesmo fenómeno, está subja
cente a ideia de proceder à confrontação dos resultados das diversas fontes.
Deste modo, e para evitar ao máximo que haja sistemática contaminação na
análise, só iniciava a análise do conjunto de dados seguinte quando a ante
rior atingia um determinado estádio. Poder-se-á argumentar que a estrutu
ra conceptual (provisória) entretanto criada, como resultado da análise de
um determinado conjunto de dados, passava a estar presente e a condicionar
o processo de análise do conjunto seguinte. Contudo, e de acordo com a
minha experiência, o processo de análise, tal como foi desenvolvido, exige
_ ™ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ „ „ _ „ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ „ , 3 4
Dissertação de Doutoramento
Os ulciites c os enfermeiros: Construção de uma relação
uma lógica e coerência internas imanente dos próprios dados e que não se
coaduna com a tentativa de "imposição" de qualquer estrutura de análise
preexistente.
A leitura dos diversos verbatins foi feita directamente no texto em com
putador (processador de texto Word®). A análise incidia sobre as sentenças
(períodos) ou parágrafos. Para codificar uma sentença ou parágrafo questkr
nava-me acerca da ideia major que a mesma continha (Strauss & Corbin,
1998; Lopes, 2003). Desse questionamento resultava a elaboração de um
memo, em nota de rodapé, ao mesmo tempo que era assinalado a negrito o
texto a que essa nota correspondia. Aquele memo continha a ideia ou ideias
major de uma determinada sentença ou parágrafo, tal como já referi, poden
do ainda conter comentários meus acerca dessa ideia. Um e outro destes
elementos são distintos e têm tratamento distinto. Com base nos primeiros
estruturar-se-á a restante análise, os segundos constituenrse como reflexões
pessoais e/ou teóricas que se poderão vir a revelar úteis em momentos poste
riores da análise (ver Quadro 5).
Considerando que o processo de análise atrás referido, relativo a um
determinado conjunto de dados, pode levar vários dias ou semanas, encarei
como provável que a minha lógica de análise sofresse alterações durante
esse período de tempo. Estaria assim, perante um conjunto de memos pro
duzidos em momentos diferentes e com hipotética diversidade de lógicas de
produção. Tal constituiu-se como uma preocupação, na medida em que estes
memos são aquilo a que poderei chamar os "tijolos" com os quais me propo
nho construir a teoria de médio alcance. Para obviar a esta dificuldade, ter
minado o primeiro processo de análise minuciosa de um determinado con
junto de dados, procedia a uma leitura sequencial daquele corpus de análise,
em conjunto com os respectivos memos. Tal procedimento tinha que ocorrer
no mais curto espaço de tempo e ser feito de modo sequencial, isto é, sem
qualquer outra actividade ligada ao processo de investigação pelo meio. Isto
permitiu-me aferir e estabilizar os critérios de análise.
135 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
Quadro 5 - Exemplos de extractos de verba tins com o respectivo memo e nota Exemplo l : (DO — 080702) "... Tratavase de uma doente com aspecto bem nutrido mas com ar de
cansada, denotando algum esforço até para falar. Aliás, falava com uma rouquidão acentuada, com frases entrecortadas por uma respiração ofegante. Precisava de fazer colheita de sangue para análises, o que foi feito pela enfermeira. Esta, ao mesmo tempo que fazia a colheita, ia falando com ela sobre os seus sintomas (nomeadamente as dores e os edemas nos membros inferiores), que parecia já conhecer, mas sobre os quais iam fazendo mais perguntas. A doente ia respondendo e valorizando as melhoras, ainda que ligeiras... "
Memo: Interacção verbal œnduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técniœ-instrumentais (colheita de sangue para análise), centrada nos sintomas e avaliação da sua evolução.
Nota: Parece estar presente uma atitude de avaliação diagnostica, mas ao mesmo tempo nota-se o interesse e empenho da enfermeira na situação da doente.
Exemplo 2-(EEA - 180702) "Eu não posso pensar que tenho ali aquela pessoa e há muitos que eu sei
que tenho e que vou tê-los cá muitos mais anos, mas há muitos que eu sei que não vão estar, e portanto se eu estou ali com eles a pensar que ... nós já temos tanta experiência nisto, nestes tratamentos e nos tempos de vida, o tempo de vida que o medicamento dá e o tempo de vida que nós achamos que a pessoa vai ter, quase que conseguimos apontar a data em que eles vão morrer, porque é assim que a gente já funciona, e portanto se eu começo a pensar nisso, ou começo, porque eu já me conheço, ou começo a afastar-me das pessoas, no sentido de não as procurar e de não ir ter com elas ou começo a ser agressiva com elas. "
Memo: A experiência e os conhecimentos científicos permitenrlhes antecipar a perda. 0 conhecimento de si própria permite-lhe antecipar a reacção à perda. Face a isto adopta-se a estratégia a t rás referida como forma de evitar o afastamento defensivo.
Nota: Trata-se de uma defesa que não gera afastamento e permite a continuidade da relação.
Terminada esta primeira fase, procedi à criação do suporte de informação
que me permitisse os seguintes passos de análise. Assim, copiei todos os
extractos de texto assinalados a negrito e os respectivos memos (i.e., notas
de rodapé) para um novo suporte dividido em três colunas. Na primeira colu
na era colocado o extracto de texto, na segunda o respectivo memo e a tercei
ra era deixada livre, pois seria aí que iria colocar o resultado do segundo
momento de análise (ver exemplo no quadro 6).
Este procedimento permithrme, ao realizar este segundo momento de
análise, não perder de vista o texto original e o contexto em que determina
da afirmação t inha sido produzida. Este segundo momento de análise con
sistiu, essencialmente, na criação de unidades de significação com uma úni
ca ideia. Ao mesmo tempo e em alguns casos, introduzia-se um grau de abs
tracção ligeiramente mais elevado.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Quadro 6 — Exemplo do suporte de análise. Extractos de texto Memos Análise - unidades de sig
nificação (DO - 08-07-02) "... Tratava-se de uma doente com aspecto bem nutrido mas com ar de cansada, denotando algum esforço até para falar. Aliás, falava com uma rouquidão acentuada, com frases entrecortadas por uma respiração ofegante. Precisava de fazer colheita de sangue para análises, o que foi feito pela enfermeira. Esta, ao mesmo tempo que fazia a colheita, ia falando com ela sobre os seus sintomas (nomeadamente as dores e os edemas nos membros inferiores), que parecia já conhecer, mas sobre os quais iam fazendo mais perguntas. A doente ia respondendo e valorizando as melhoras, ainda que ligeiras...
Memo: Interacção verbal conduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técni-co-instrumentais (colheita de sangue para análise), centrada nos sintomas e avaliação da sua evolução.
Nota: Parece estar presente uma atitude de avaliação diagnostica, mas ao mesmo tempo nota-se o interesse e empenho da enfermeira na situação da doente.
Interacção verbal específica, conduzida pela enfermeira, enquanto presta cuidados técni-co-instrumentais.
Interacção verbal centrada na avaliação da evolução dos sintomas.
(Avaliação diagnostica e manifestação de interesse)
O passo seguinte integra ainda a codificação aberta e consistiu na criação
de novo suporte de informação para onde foram copiadas todas as unidades
de significação de cada um dos verbatins. Por outras palavras, copiararrrse
as unidades de significação relativas, por exemplo, a cada uma das entrevis
tas, para novo suporte. Procedeu-se então a uma análise que consistiu na
comparação entre as unidades de significação, na tentativa de encontrar
semelhanças entre elas. Este procedimento deu origem à aglutinação das
unidades de significação em função dessas semelhanças, o que corresponde à
criação dos primeiros conceitos.
Seguidamente juntei todas e cada uma das unidades de significação de
cada uma das entrevistas (ou diário de observação) que pertencessem a um
mesmo conceito. Submetia_as então a uma análise comparativa mais fina, a
qual me permitia aferir a estabilidade e os limites do conceito, mas também,
eventualmente, descobrir possibilidades de sub-agrupar as unidades de sig
nificação em sub-conceitos.
Findo este processo, fiquei na posse de um conjunto imenso de conceitos e
sub-conceitos, os quais, tendo emanado directamente dos dados, ainda não
explicavam o fenómeno, na medida em que ainda não t inham sido estabele
cidas as respectivas inter-relações.
137 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Terminava aqui a codificação aberta, processo através do qual, recordo,
os conceitos foram identificados e as suas propriedades e dimensões desco
bertas nos dados (Strauss & Corbin, 1998).
Deuse então início à codificação axial. Este é um processo que consiste
em relacionar categorias entre si e com as suas subcategorias. E denomina
da "axial" porque a codificação ocorre à volta dos eixos de uma categoria.
Estes são constituídos pelas suas propriedades e dimensões e é através deles
que as categorias se relacionam entre si e com as suas subcategorias
(Strauss & Corbin, 1998). Se da codificação aberta se diz que consiste na
fractura dos dados, esta outra consiste em colocálos de novo juntos, estabe
lecendo conexões entre eles e dandolhes novos sentidos (Pandit, 1996).
A codificação axial envolve algumas tarefas básicas como:
S pôr em evidência as propriedades de uma categoria e as suas dimen
sões, uma tarefa que começa durante a codificação aberta»'
■S identificar a variedade de condições, acções/interacções e consequên
cias associadas ao fenómeno;
S relacionar uma categoria com a sua subcategoria através de afirma
ções que demonstrem como é que estão relacionadas umas com as
outras!
S olhar para as deixas nos dados que denotam como é que as catego
rias major podem relacionarse umas com as outras.
Quando o analista procede à codificação axial procura respostas para
questões tais como, porquê, como, quando, ... e fazendo tal, descobre inter
relações entre as categorias. A resposta a essas questões ajudanos a contex
tualizar o fenómeno, isto é, a localizálo numa estrutura condicional e a
identificar o "como" ou os meios através dos quais uma categoria se manifes
ta. Por outras palavras, respondendo aquelas questões o analista fica habili
tado a relacionar a estrutura com o processo.
Após estes procedimentos dei início à denominada codificação selectiva.
Esta consiste na integração de categorias para construir estruturas teóricas
(Pandit, 1996) ou seja, na elaboração da categoria central à volta da qual as
outras categorias podem ser agrupadas e pelas quais são integradas
= = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = = = = = _ _ _ „ = = = _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = = = _ = _ . _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ , 3 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
(Strauss & Corbin, 1990; Flick, 1998). A categoria central deve possuir
algumas características e responder a alguns critérios. De entre estes desta
co:
S possuir poder analítico. Este poder élhe conferido pela capacidade
de aglutinar as outras categorias, de modo a formar um todo com
capacidade explicativa;
■S possuir centralidade, isto é, ter relação com todas as outras cate
gorias major;
•S aparecer frequentemente nos dados. Isto significa que em todos ou
quase todos os casos, existem indicadores que apontam para este
conceito;
•S a explicação que evolui pela relação das categorias é lógica e con
sistente. Não há dados forçados'•
S o conceito central é capaz de explicar a variação bem como o ponto
principal produzido pelos dados; isto é, quando as condições
variam, a explicação permanece segura, ainda que o modo como o
fenómeno é expresso possa parecer de algum modo diferente.
Também deve ser capaz de explicar casos contraditórios ou alter
nativos em relação à ideia central;
■S a categoria central pode evoluir fora da lista das categorias exis
tentes (Strauss & Corbin, 1998).
Não foi fácil chegar à categoria central. Como ajuda nesse processo socor
r r m e de um conjunto de estratégias sugeridas por Strauss & Corbin (1998) e
que se revelaram muito úteis. Uma das primeiramente usadas, digamos que
quase de modo intuitivo, foram os diagramas. Estes foram construídos no
sentido do concreto para o abstracto. Ou seja, de acordo com a lógica que
tenho vindo a expor. Constituíramse como árvores de conceitos e
subconceitos, com identificação das suas interrelações. Estes foram de
grande utilidade porque me permitiram ganhar distância face aos dados, ter
a percepção da globalidade e forçaramme a t rabalhar com conceitos. Puse
ram ainda à prova a lógica das interrelações.
139 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Após a construção dos diagramas, estava então em condições de usar
uma outra estratégia denominada, movimento da descrição para a concei
tualização. Ou seja, a paulatina construção dos diagramas permitiu-me a
compreensão progressiva da essência da investigação. Isto possibilitou-me a
nomeação da ideia central e a definição da sua relação com os outros concei
tos.
Por último, desenvolvi uma outra estratégia, que se revelou de enorme
importância e que consistiu na escrita do enredo. Ou seja, a partir dos con
ceitos identificados e das inter-relações estabelecidas, tentei escrever o enre
do relativo ao processo que tinha estudado, no contexto já referido. O resul
tado final assemelha-se de algum modo a um guião, o qual ajuda a com
preender a convergência dos conceitos para determinado fim, logo contribui
para a codificação selectiva. A escrita do enredo precisa de resistir a dois
testes cruciais. O teste da capacidade explicativa e o da lógica e coerência. A
capacidade explicativa afere-se pela comparação entre o enredo e a realida
de," a coerência e a lógica pela apreciação geral do enredo nas suas diversas
facetas. Considero que esta estratégia foi das mais decisivas no desenvolvi
mento do processo de codificação selectiva.
Concluída a codificação selectiva, estava na posse de uma estrutura teó
rica explicativa do processo em estudo. Tornava-se agora necessário aprimo
rar essa estrutura, pelo que se procedeu à releitura dos dados a partir da
mesma. Através deste procedimento percebenrse as insuficiências e as debi
lidades da estrutura, bem como a eventual necessidade de proceder à reco
lha de mais dados. Este é um dos procedimentos através do qual se concreti
za a saturação teórica, pelo que me foi particularmente útil no final do pri
meiro período de colheita de dados.
Repeti este procedimento no final da análise dos dados resultantes do
segundo período de colheita de dados. Considerei então que tinha atingido a
saturação teórica e que a estrutura conceptual explicava o processo em aná
lise. Por tal razão, dei por encerrado o processo de análise dos dados.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
4.3.1 - Critérios de rigor na ordenação e análise dos dados
Também durante esta fase do processo de investigação desenvolvi outras
estratégias de rigor, para além daquelas já atrás referidas. A primeira des
sas estratégias, infere-se de tudo o que disse sobre o modo como desenvolvi a
ordenação e análise dos dados e denomina-se "pista da auditoria" (Morse,
1986). Este critério consiste na criação de suportes de informação adequa
dos, bem como da demonstração dos procedimentos desenvolvidos e das
opções assumidas. Tal, tem como objectivo deixar uma adequada evidência
que permita às partes interessadas, reconstruir o processo a partir do qual
obtive as minhas conclusões. A pista da auditoria consiste em seis tipos de
documentos^ dados não trabalhados, dados reduzidos e produto da análise,
dados reconstruídos e produto de síntese, processo de notas, material relati
vo às intenções e disposições e desenvolvimento de instrumentos e informa
ção (Lincoln & Guba, 1985). Foram dadas provas de todos eles ao longo do
texto produzido.
Um outro critério usado durante este processo denomina-se "verificação
do estudo com informantes secundários" (Glasser, 1978). Consiste na sub
missão do modelo explicativo à apreciação de novos informantes. Tal tem
vindo a ser feito, principalmente junto de enfermeiros de outras unidades de
quimioterapia e/ou com experiência na prestação de cuidados a doentes
oncológicos. Este procedimento tem sido desenvolvido através da apresenta
ção pública do modelo explicativo, no contexto de congressos e outros eventos
do género. Dos diversos comentários, o mais frequentemente produzido pelos
enfermeiros tem sido o de que se sentem reflectidas na estrutura conceptual
apresentada.
O último critério de rigor denomina-se "uso de classificadores múltiplos".
Consiste na utilização de um painel de classificadores que ajuíze acerca da
categorização por mim realizada. É discutível o uso deste critério, uma vez
que se pode argumentar que este procedimento viola o processo de indução,
dado que o primeiro investigador tem uma base de conhecimentos, resultan
te de ter conduzido outras entrevistas e observações, que os outros classifi
cadores não têm. Efectivamente, o processo indutivo na investigação quali-
j 4 j ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
tativa depende frequentemente de um "insight", o qual pode radicar no pro
cesso de t rabalhar os dados e de perceber a ligação entre categorias e com as
teorias estabelecidas. Torna-se assim irrealista esperar que outro investiga
dor tenha o mesmo "insight", a partir de uma base de dados limitada e sem
ter passado por aquele processo. Para além disso, limitar cada passo da aná
lise a pequenos pedaços de dados, pode mesmo impedir a investigação e
truncar o desenvolvimento do modelo.
Apesar destas limitações, formei um grupo constituído por quatro inves
tigadores, que têm seguido de perto os passos dados neste processo, conhe
cem o contexto onde decorreu o estudo e têm conhecimento teóricos e práti
cos na área relacional e/ou oncológica. Para tentar obviar às limitações atrás
referidas, solicitei a estes investigadores que procedessem à análise da cate
gorização por mim produzida, com os seguintes objectivos:
S Aferirem as categorizações por mim desenvolvidas, considerando:
o a lógica interna de cada categoria;
o a relação entre as categorias e destas com as subcategorias;
o a relação entre as categorias, considerando as diversas fontes.
Do trabalho produzido por este grupo resultaram dois comentários que
considero de grande utilidade. O primeiro refere-se à necessidade de recon
siderar a proximidade/sobreposição conceptual de duas categorias. Analisa
da de novo a situação e dado que vários elementos do grupo fizeram essa
referência, decidi acatar a recomendação e aglutinar essas duas categorias
numa só. O segundo comentário diz respeito à repetição de categorias em
função das diversas fontes. Este comentário tomei-o como prova da evidência
de confirmação cruzada da validade dos dados e das categorizações produzi
das.
Findos estes procedimentos, seguirse-á aquela que é considerada, por
Pandit (1996) a última fase do processo de investigação segundo esta meto
dologia e que aquele autor designa como, "fase da comparação com a litera
tura". Essa fase concretizar-se-á nos próximos capítulos, onde será apresen
tado o resultado da análise efectuada bem como a referida comparação e dis
cussão.
Dissertação de Doutoramento
Os ulciilcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
! 43 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
5 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRODOENTE NO CON
TEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE
HOSPITAL DE DIA.
Neste capítulo descreverei as características percebidas na interacção entre
as enfermeiras e os doentes e familiares, durante o processo de quimioterapia.
O conjunto destas características constituir-se-á como um padrão que corres
ponderá à "natureza da relação" neste contexto. Para este efeito, procederei,
num primeiro momento, à caracterização do contexto e posteriormente, à
caracterização da natureza da interacção propriamente dita. Esta última, não
pode ser desligada do contexto onde ocorre, ainda que este seja também resul
tante, na sua vertente psicossocial, de um determinado padrão interaccional.
Verifica-se portanto uma certa circularidade de influências mútuas.
Relativamente à natureza da relação, constata-se, após a análise dos
dados oriundos das diversas fontes de informação (i.e., enfermeiras, doentes
e observação), que existem construetos que se repetem numa dimensão dia-
crónica, mas também numa perspectiva inter-testemunhal. Por exemplo, o
construeto "Processo de Avaliação Diagnostica" está presente nas categori
zações resultantes dos dados das entrevistas às enfermeiras, das entrevistas
de admissão e da observação. Ou seja, está presente em dois momentos
sequenciais da relação (i.e., admissão e tratamentos de quimioterapia) e ao
mesmo tempo é referido a partir de mais que uma testemunha deste proces
so (i.e., as enfermeiras e o investigador).
Face a isto, cada construeto será caracterizado primeiro, com base nos
dados oriundos de uma determinada fonte e depois nas outras, dando-se
realce ao contexto, bem como às semelhanças e diferenças entre eles. Por
último, procederei a uma definição integradora de cada construeto, desta
cando as suas características principais, nomeadamente a relação entre as
suas categorias e subcategorias, e concluirei, perspectivando a sua evolução
ao longo do processo de relação.
_ _ „ « „ „ = = = „ _ _ _ „ _ _ = = = M _ _ _ „ = = _ _ _ _ „ = = _ _ = _ „ _ „ = = = = = = = „ _ _ _ = = = M , 4 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
0 contexto da interacção será descrito considerando as suas característi
cas físicas, mas também as psicossociais. Ou seja, as características que
resultam do modo como circulam e se articulam entre si os diversos actores
presentes naquele espaço.
5 . 1 - 0 CONTEXTO DA INTERACÇÃO: O ESPAÇO FÍSICO
O serviço de Quimioterapia do Hospital do Espírito Santo é uma unidade
de saúde a funcionar em regime de hospital de dia, integrada no recém-cria-
do Serviço de Oncologia Médica do mesmo Hospital. Localiza-se na cave do
edifício do Hospital do Patrocínio, tem acesso próprio e independente e é
dotado de instalações físicas com aspecto novo, acolhedor e espaçoso. O
mobiliário é moderno e confortável. Todo o espaço deste serviço está equipa
do com ar condicionado. Apesar de estar localizado na cave, dado o desnível
do terreno, todo o serviço tem janelas, tendo portanto, muita luz natural.
Esta unidade é dotada de um espaço amplo à entrada (ver figura 8), que
é a sala de espera dos doentes e onde funciona a recepção, local de perma
nência da secretária de unidade. Contíguo a este espaço e com acesso livre,
funcionam dois gabinetes de consulta, usados, de acordo com as disponibili
dades, por médicos e enfermeiras. Após, existem duas portas. Por uma delas
(à esquerda) acede-se a um corredor de apoio a todo o piso. Neste corredor
localiza-se a sala de tratamentos (e.g., pensos e injectáveis), os gabinetes do
médico chefe de serviço, das enfermeiras, sala de reuniões e casas de banho,
entre outros. Pela outra porta (frontal) tenvse acesso às salas de adminis
tração de quimioterapia. Estas são servidas por um pequeno corredor, atra
vés do qual também se acede ao corredor principal, já atrás referido e ao
qual é paralelo. A zona de tratamentos de quimioterapia é constituída por
quatro espaços distintos.
O primeiro é uma sala com cerca de 15m2, com orientação Norte-Sul. Do
lado Norte localiza-se a porta e do lado Sul tem janelas a toda a largura da
parede, mas elevadas, entrando luz em quantidade mas não se vendo o exte
rior. Está mobilada com cinco cadeirões articulados e electrificados, com
comando ao alcance dos doentes. Existe uma divisória amovível entre cada
145 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
cadeirão, para ser accionada em caso de se desejar maior privacidade. À
entrada, do lado esquerdo, existe uma bancada de trabalho com material cli
nico diverso. Ao fundo, ao centro, está uma secretária, onde são depositados
os processos dos doentes. Na parede da esquerda, a três quartos de distância
da porta e à altura dos olhos, está localizado um postigo com dupla porta envi
draçada, que estabelece a comunicação com a sala de preparação de citostáti-
cos, que é contígua. No canto sul à esquerda e à altura de cerca de 2 metros,
está uma televisão, a qual apenas é vista pelos doentes do lado oposto.
O segundo espaço corresponde à sala de preparação de citostáticos. Esta
sala está equipada com todo o material clínico necessário para a preparação
de citostáticos e é dotado de câmara de fluxo laminar. Está localizada entre
as duas salas de administração com as quais tem comunicação através de
um postigo com dupla porta envidraçada. Esta sala permanece com a porta
fechada e é restri ta à enfermeira que esteja escalada para a preparação de
citostáticos, a qual se equipa adequadamente com bata, luvas, máscara e
óculos, para lá permanecer.
O terceiro espaço é em tudo idêntico ao primeiro e simétrico. Este último
espaço, ocupa a parte terminal do corredor, tem uma área maior e está ocu
pado por cinco camas. Também este está equipado com bancada de trabalho
e televisor. Este espaço destina-se a doentes cujo tratamento obrigue à per
manência na cama (e.g., instilações vesicais de citostáticos) ou cuja condição
física a isso os obrigue.
Toda a zona de tratamentos de quimioterapia é de acesso livre a profis
sionais, doentes agendados para quimioterapia e respectivos familiares. A
estes últimos é-lhes solicitado que não permaneçam em simultâneo e por
muito tempo junto dos doentes. Ao corredor de apoio ao piso (paralelo ao cor
redor da zona de tratamentos de quimioterapia), têm acesso livre, todos os
doentes, visto ser lá que se localizam as casas de banho, bem como todos os
profissionais. Apesar disso é um espaço mais reservado e silencioso.
A última referência vai para um pequeno espaço localizado marginal
mente a todos os anteriores e que é designado como "Sítio do Pica-Pau Ama
relo". Trata-se de um local reservado aos profissionais (e.g., enfermeiros,
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
médicos, auxiliares de acção médica) e onde se desenvolve algum convívio de
natureza social entre eles. Este espaço está equipado com máquina de café e
frigorífico, algum mobiliário (e.g., mesa, cadeiras e um pequeno sofá) e nor
malmente está sempre apetrechado de bolos, oferecidos por doentes e fami
liares. E aqui que todos os profissionais se juntam pela manhã, antes de ini
ciarem o dia de trabalho. É também aqui que se deslocam ao longo do turno,
em pequenos grupos, para pequenas refeições.
Sobre esta unidade resta fazer uma menção ao modo como se processam as
movimentações dos diversos actores. Assim, começo por me referir ao primeiro
momento de cada dia de trabalho. Constata_se que, enquanto os doentes vão
chegando à sala de espera, as enfermeiras vão-se juntando no denominado "Sítio
do Pica-Pau Amarelo". Após um primeiro momento de convívio que pode incluir
conversa social, mas também troca de informações de natureza clínica, as
enfermeiras saem e dirigenrse para as salas de quimioterapia, fazendo o percur
so definido na figura 8 com a linha de cor amarela. Ou seja, atravessam toda a
sala de espera, percurso durante o qual cumprimentam os doentes e familiares,
constatam, genericamente, o seu estado e tomam algumas decisões, como mais à
frente explicarei. Dirigem-se depois para a sala de quimioterapia, assinalada
com uma oval azul. Esta sala é a primeira a ser preenchida pelos doentes e a
última a vagar e assume-se como o espaço central do serviço. É também a partir
desta sala que se projectam as movimentações para os outros espaços. Assim, os
principais espaços onde ocorre interacção enfermeira-doente neste serviço são os
assinalados com ovais. Se tivesse que os hierarquizar em termos de importância,
considerando a frequência de interacções, colocaria em primeiro lugar o espaço
assinalado com a oval azul, seguido do vermelho, do verde e do amarelo. De assi
nalar que o espaço assinalado a verde corresponde a um corredor. Apesar disso,
constata-se que o mesmo é muito utilizado para interacções com doentes, mas
principalmente com familiares de doentes que estejam a fazer quimioterapia e
como forma de aquela ocorrer fora do olhar destes.
147 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 8 - Croquis do piso onde funciona o hospital de dia - unidade de quimioterapia do Hospital do Espírito Santo
148 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
5.2 - O CONTEXTO DA INTERACÇÃO: A COMPLEXIDADE DO CON
TEXTO RELACIONAL
Para caracterizar o contexto relacional, começo por fazer referência aos
diversos actores que circulam no espaço que atrás caracterizei. Dadas as
características deste trabalho, inicio essa caracterização pela equipa de
enfermagem.
A equipa de enfermagem é constituída por:
uma enfermeira com 39 anos de idade, 18 anos de experiência pro
fissional, seis dos quais como especialista na área da oncologia, sen
do que estes correspondem ao seu tempo de permanência neste ser
viço. Desempenha as funções enfermeira-chefe. De entre estas privi
legia as clínicas, continuando a ser responsável por doentes e a
assumir a liderança dos processos clínicos mais delicados e oferecen-
do-se como referência de acção.
uma enfermeira generalista com 38 anos de idade, 17 de experiência pro
fissional, 5 dos quais neste serviço. No período em que decorreu a colheita
de dados estava a desenvolver o seu Curso de Complemento de Formação,
uma enfermeira generalista com 29 anos de serviço, 1 ano de expe
riência profissional e recénrehegada ao serviço.
uma enfermeira generalista com 54 anos de idade, 31 anos de expe
riência profissional, 6 dos quais nesta unidade. Esta enfermeira
transitou da anterior unidade de quimioterapia deste hospital,
uma enfermeira generalista com 56 anos de idade, 21 anos de expe
riência profissional 3 dos quais neste serviço.
O serviço de oncologia dispõe de 3 oncologistas (uma essencialmente
dedicada à patologia oncológica do intestino e mama, outra, à patologia da
mama e por último o chefe de serviço que recebe todo o tipo de doentes).
Para além disso, conta ainda com a colaboração de uma hematologista que
se dedica aos tumores líquidos; de uma pneumologista que se dedica aos
tumores do pulmão, e pela equipa da urologia que se dedica aos tumores
urológicos. Existe ainda um internista. A intervenção dos médicos neste ser
viço, ocorre quase exclusivamente nos gabinetes de consulta.
==================================================================== ,49 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Existem também duas Auxiliares de Acção Médica a tempo inteiro que,
pela natureza da sua função, mas essencialmente pelas características do
serviço, têm um contacto e uma interacção frequentes com os doentes e fami
liares.
Na sala de espera dos doentes está presente uma secretária de unidade,
a qual funciona quase sempre como o primeiro contacto dos doentes com este
serviço. E ainda responsável pela marcação de exames complementares de
diagnóstico, de consultas médicas, deslocações a outros hospitais, entre
outros. As voluntárias da Liga Portuguesa Contra o Cancro marcam a sua
presença, principalmente na sala de espera, onde oferecem pequenas refei
ções, para além de companhia.
O horário praticado neste serviço é das 8 às 18 horas de segunda a sex-
ta-feira. Nos feriados que coincidam com dias de semana são efectuados os
tratamentos que não possam ser adiados ou antecipados.
O número de doentes e de tratamentos tem sofrido um incremento pro
gressivo ao longo dos anos, tal como se pode constatar pela análise do qua
dro 1. Assim, verifica-se que no ano (2001) se efectuaram um total de 3.741
tratamentos a 1.702 doentes. Considerando o total de tratamentos e de dias
úteis do ano, verifica-se que a média de tratamentos diários é aproximada
mente 14. Um outro dado curioso revelado pelo referido quadro, tem a ver
com a diminuição progressiva do número de tratamentos nas enfermarias e
o respectivo aumento na unidade de quimioterapia.
Os doentes chegam a este serviço referenciados por um médico, que pode
ser o médico de família, o internista o cirurgião ou qualquer outro. Diri-
genrse à secretária de unidade que marca uma consulta para um dos médi
cos do serviço, de acordo com a patologia do doente, as patologias predomi
nantes a que os médicos se dedicam e a disponibilidade de tempo destes.
Na consulta médica é decidido o tratamento que pode ou não incluir a
quimioterapia. Esta, pode ser anterior ou posterior a outros tratamentos
(e.g., cirurgia, radioterapia). Se for decidida a quimioterapia, é prescrito um
dos protocolos aceite nacional e internacionalmente e que tem a ver com o
estadiamento do tumor, feito de acordo com o sistema Tumor, Nodes and
= _ = - = = - _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ _ = = = = „ _ _ _ „ = „ = „ . _ _ „ _ _ _ « , _ „ „ . „ „ _ _ _ _ , 5 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção ele uma relação
Metastasis (TNM), e com a condição física do doente, nomeadamente, peso,
altura bem como alguns parâmetros hematológicos.
Quadro 1 Mapa do movimento de doentes e do número de tratamentos da unidade de Quimioterapia do Hospital do Espírito Santo
Serviços
1998 1999 2000 2001
Serviços
N° Trata
mentos N° Doen
tes
N° Trata
mentos N° Doen
tes
N° Trata
mentos N° Doen
tes
N° Trata
mentos N° Doen
tes
Serviços
E.V. Uro
logia
N° Doen
tes E.V. Uro
logia
N° Doen
tes E.V Uro lo
gía
N° Doen
tes E.V. Uro
logia
N° Doen
tes
Cardiologia Cirurgia I 1 1 1 1 3 1 Cirurgia II 4 1 Cuidados Intensivos 1 1
Especial. Cirúrgicas 1 1 6 1
1 1
Especial. Médicas 35 11 Oftalmologia O.R.L. Ginecologia 1 1 3 2 1 1 1 1 Medicina 122 39 117 46 126 1 49 7 2 Medicina II Homens 12 1 2 1
1 1
Medicina II Mulheres 12 1 3 2
Neonatologia Obstetrícia Ortopedia Pediatria Recém Nascidos Depart. Psiquiatria
SubTotal 140 1 133 50 138 2 55 45 3 ■trj
Consulta Externa C.U.C.S. Externos S.O. Unidade Hemodiálise Unidade Quimioterapia 1591 418 1022 2 098 382 1225 2552 447 350 3.280 413 1.685
Urgência SubTotal 1591 418 1022 2 098 382 1225 2552 447 350 3.280 413 1.685
TOTAL 1.731 419 1.066 2 231 382 1275 2690 449 405 3.325 416 1.702 Fonte' Serviço de Estatística do HESE
Quando o doente chega junto da enfermeira, normalmente traz consigo a
prescrição de um determinado protocolo e uma requisição de análises para
fazer imediatamente antes de iniciar o tratamento. Traz também muitas
dúvidas, angústias e medos. A enfermeira recebeo fazendolhe uma primei
ra entrevista. Para essas primeiras entrevistas e tendo em consideração que
151 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
os protocolos variam essencialmente em função do tipo de tumor, sendo
necessário conhecê-los muito bem para os poder explicar, as enfermeiras
escalonaranrse de acordo com isso. Assim, uma enfermeira entrevista todos
os doentes com tumores do pulmão e tumores líquidos, outra os doentes com
tumores da mama, outra ainda os doentes com tumores do intestino e, por
último, outra os doentes com tumores urológicos.
A interacção entre estes diversos actores decorre no contexto físico atrás
descrito. Dada a natureza deste trabalho limitar-me-ei a descrever a com
plexidade do contexto relacional tendo a enfermeira, o doente e respectivo
familiar como referência (ver figura 9). Esta interacção ocorre predominan
temente em espaços onde estão presentes diversos outros actores, para além
dos atrás referidos. Ou seja, uma das características da interacção entre a
enfermeira e o doente e respectivo familiar, é ocorrer frequentemente, em
contexto público. Assim, os espaços físicos onde ela é mais frequente e onde
foi mais sistematicamente observada, foram na sala de espera dos doentes e
nas salas de quimioterapia.
A característica que mais se destaca quando se observa a t rama relacio
nal vivida nas salas de quimioterapia é a sua complexidade. Assim, estando
a sala em pleno funcionamento, estão naquele espaço, cinco doentes e pelo
menos uma enfermeira. Os doentes, ao entrarem na sala, são livres de esco
lherem o cadeirão que quiserem, de acordo com as disponibilidades. Perma
necem na sala de quimioterapia aproximadamente três horas e saem à
medida que os seus tratamentos se vão completando. Portanto, ao longo do
dia de trabalho poderão passar por uma sala 10 a 15 doentes e respectivos
familiares, com quadros fisiopatológicas e vivenciais diferentes. Durante
esse período de tempo constatanrse um diversificado número de interacções
entre os presentes na sala. Na interacção entre os doentes, normalmente
verifica-se algum grau de familiaridade. Tal parece resultar de conhecimen
to prévio ou então de relação desenvolvida neste contexto, como consequên
cia do facto de haver alguma tendência para simultaneidade de cronogramas
entre os doentes.
= = = = = = m = = " " " " = " " " " ^ = ' " " " " " — — 152 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Para além destes actores, a qualquer momento podem entrar outras
enfermeiras. Estas deslocanrse à sala, entre outras razões, para ajudar a
colega, pedir ou dar uma informação ou cumprimentar um doente. Podem
ainda entrar as auxiliares de acção médica, no desempenho das suas activi
dades, familiares dos doentes, médicos, entre outros.
Na interacção da enfermeira com os doentes, verificase que, por norma,
aquela conhece e t ra ta todos os doentes pelo nome. Apesar disso, cada enfer
meira terá diferentes tipos de relação com cada um dos doentes presentes na
sala e em cada momento. As diferenças principais terão a ver com o grau de
proximidade e o estádio da relação. Assim e relativamente ao grau de pro
ximidade, verificase que com alguns doentes, a enfermeira tem uma relação
mais próxima e até preferencial, enquanto que com outros não é assim e
essa relação preferencial existirá com outras enfermeiras.
Figura 9 A complexidade do contexto relacional da enfermeira
Legenda^ « »■ Interacção preferencial da enfermeira com doente/familiar. 4 ► Outras interacções entre actores diversos.
► Supervisão da enfermeira sobre as interacções de actores diversos com doente/familiar.
153 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A existência deste tipo de relação pode estar ligada ao facto de ter sido
aquela enfermeira a realizar a entrevista de admissão. Independentemente
disso, conhece o suficiente de cada doente de modo a permitir-lhe a presta
ção de cuidados de modo personalizado.
Existirão também diferenças relativamente ao estádio da relação com
cada um dos doentes com os quais uma determinada enfermeira tem relação
preferencial. Estas diferenças radicam no tempo de relação, mas também
nas características das vivências da enfermeira, mas principalmente do
doente. Assim, numa mesma sala a enfermeira tem perante si um conjunto
de doentes com os quais poderá ter diversos tipos de relação (i.e., preferen
cial ou não), com diferentes tipos de situações e a vivenciarenrnas em dife
rentes estádios. Para além disso, desenvolve interacções ainda a dois níveis
distintos, um de natureza pública e grupai e outra de natureza pessoal e
privado. No primeiro nível, mantém conversas abertas à participação de
todos, sobre temas de interesse comum, estejam ou não relacionados com a
doença. Normalmente esta interacção decorre em simultâneo com o desen
volvimento de procedimentos técnico-instrumentais da mais diversa ordem.
No segundo nível, desenvolve interacções de natureza privada, com tom de
voz baixo, existindo proximidade física e contacto frequente. Esta interacção
pode ou não ser simultânea com a prestação de cuidados técni
co-instrumentais ao doente em causa, mas normalmente, possui objectivos
terapêuticos específicos.
Assim, a enfermeira pode deslocar-se junto de um doente com a principal
finalidade de prestar cuidados técnico-instrumentais. O oposto também pode
acontecer, ou seja deslocar-se junto de um doente com o intuito de desenvol
ver uma interacção terapêutica. Todavia, em qualquer dos casos, acaba por
estar sempre em causa, a globalidade dos cuidados. Esta perspectiva global
justifica-se por razões de ordem vária, das quais destaco, o facto de o doente
estar a fazer um tratamento que exige uma elevada atenção e rigor técnico e
o facto de o processo de doença exigir cuidados específicos. Porém, quer num
caso quer no outro a reacção do doente depende também do modo como está
a vivenciar a situação. Logo os cuidados têm que ter todos estes elementos
£síb
Dissertação de Doutoramento 154
Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação
em atenção para poderem ser adequados. Assim, quando a enfermeira chega
junto de um doente, a sua resposta em termos de cuidados tem uma nature
za específica, porque ainda que aquele tratamento seja igual ao de todos os
outros, as condições em que é administrado é diferente de todos os outros,
quer pelo estado das veias, pela reacção pessoal ou outro factor desta natu
reza. Mas também a sua resposta em termos relacionais tem uma natureza
específica, na medida em que as situações vivenciais são todas de natureza
diferente, ainda que as situações do ponto de vista médico sejam semelhan
tes. Isto obriga a que a enfermeira, no desenvolvimento das suas interac
ções, tenha que mudar de registo cada vez que muda de doente. Contudo,
ainda que a enfermeira esteja a desenvolver uma interacção de natureza
mais pessoal com um doente, não poderá estar alheada ao que se passa com
os restantes, já que mais não seja, pela natureza do tratamento que estão a
fazer e pelos riscos que lhe são inerentes. Apesar disso, são vários os
momentos em que ocorrem interacções próximas, quer por iniciativa da
enfermeira, quer por solicitação do doente, no âmbito das quais são desen
volvidas acções de que mais à frente falarei em detalhe.
Para além da interacção pessoal, a enfermeira por vezes, desenvolve uma
interacção com um carácter mais grupai. Neste caso, a enfermeira precisa de
se manter atenta ao processo de tratamento de cada um dos doentes e ao
mesmo tempo conhecê-los o suficiente para que a mensagem para o grupo
atinja os objectivos pretendidos.
Todavia, as interacções que ocorrem naquele espaço envolvem outras
pessoas para além das enfermeiras. É frequente a interacção entre doentes,
tal como mais à frente falarei. Mas quando tal acontece, exige a atenção da
enfermeira, na medida em que, frequentemente, nessa interacção são troca
das informações de grande importância para a enfermeira, quer pelo valor
das mesmas, quer porque poderão carecer de algum tipo de intervenção.
Explicando melhor, os doentes ao relatarem uns aos outros a sua situação
poderão fornecer algum dado que seja importante para o processo de cuida
dos. Ou então, ao trocarem entre si estratégias para lidar com as situações
poderão incutir informações erradas nos seus pares que careçam de correc-
155 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ção imediata. Pode também ocorrer o oposto, a informação ser de tal modo
adequada e oportuna que a enfermeira se sirva da mesma para a reforçar e
sublinhar. A enfermeira também precisa de estar atenta às interacções que
ocorrem entre os doentes e as auxiliares de acção médica e aqueles e os fami
liares, por razões idênticas às anteriormente referidas.
Uma outra interacção que ocorre com alguma raridade neste contexto é
entre o doente e o médico. Porém, quando a mesma acontece, a enfermeira
está atenta, não só para recolher informação útil, mas também para a dar.
Acontece com alguma frequência que o grau de inibição dos doentes perante
os médicos é maior que perante as enfermeiras. Acontece também que a visi
ta dos médicos é normalmente bastante apressada. Conjugando estes dois
factores pode acontecer que o doente não chegue a fornecer ao médico a
informação considerada relevante. Neste caso a enfermeira interfere no sen
tido de repor a "normalidade".
Em suma, é neste contexto que a enfermeira desenvolve as suas activi
dades, as quais caracterizarei mais tarde. Ou seja, um contexto complexo a
exigir respostas complexas da enfermeira e uma atenção elevada, não só
para tentar adequar a resposta a cada pessoa que tem perante si, mas tam
bém porque está a decorrer um tratamento que exige um elevado rigor téc
nico, dada a perigosidade do mesmo. Este segundo aspecto não é despiciendo
no contexto desta relação, não só pelas razões que já atrás apresentei (i.e., a
impossibilidade de separar as duas facetas uma da outra), mas também,
porque, neste caso a confiança se constrói com base em elementos como a
competência técnica reconhecida, entre outros.
O termo "complexidade" é aqui usado com intencionalidade, uma vez que
neste contexto se combinam o elevado número de variáveis, com um elevado
e imprevisível número de interacções entre essas variáveis (Morin, 1990).
Neste contexto, a própria acção da enfermeira, a qual é uma tentativa de
resposta, entra como variável aleatória, contribuindo para aumentar a
imponderabilidade e a incerteza.
: = _ _ - - . _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ , 5 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
5.3 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRODOENTE: O "PRO
CESSO DE AVALIAÇÃO DIAGNOSTICA"
Terminada a caracterização do contexto, bem como dos actores do proces
so de interacção, dou agora início à caracterização dos seus construetos fun
damentais, os quais definem a sua natureza. O primeiro a considerar é o
"Processo de Avaliação Diagnostica". É um construeto que emergiu das
entrevistas realizadas às enfermeiras, bem como das entrevistas de admis
são e das observações por mim realizadas. Começarei por o caracterizar a
partir dos dados resultantes das entrevistas de admissão.
5.3.1 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas de
admissão
A entrevista de admissão é um procedimento adoptado neste serviço e
desenvolvido de modo sistemático, por sugestão da enfermeira que desem
penhava funções de chefia, a qual é detentora de formação especializada, tal
como atrás já referi. De acordo com o que me foi relatado por diversas
enfermeiras, o processo de implementação de tal procedimento foi prolonga
do no tempo e implicou um processo de auto-formação desenvolvido pelo
grupo. Este consistiu no desenvolvimento de entrevistas de admissão pela
enfermeira atrás referida, assistidas sucessivamente por cada uma das cole
gas. Após e em grupo, procedia-se à sua análise e discussão, tentando evi
denciar e compreender os objectivos subjacentes, bem como algumas das
técnicas usadas. O momento seguinte consistiu na execução da entrevista de
admissão pelas enfermeiras, agora assistida pela enfermeira coordenadora.
Ainda tive oportunidade de presenciar parcialmente este processo, porque
quando iniciei o meu trabalho de campo, uma das enfermeiras deste grupo
era recém-chegada, estando, portanto em fase de integração. Esta incluía
este treino que acabei de descrever.
Pelas razões que acabei de referir, entre outras, a entrevista de admissão
assumiu-se como o momento de avaliação diagnostica por excelência, pelo
que é expectável que tenha características muito específicas e diferentes das
encontradas noutros contextos. Recordo que esta entrevista, normalmente,
157 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
corresponde ao primeiro encontro entre a enfermeira e o doente e respectivo
familiar. Tendo isto presente, a avaliação diagnostica orientase em três
sentidos diferentes mas complementares, a saber:
S o que o doente sabe;
/ o que preocupa o doente;
S estratégias/capacidades do doente.
Cada um destes diferentes sentidos constituise também como conceitos
que passarei a caracterizar (ver diagrama l) . Assim, o conceito "O que o
doente sabe" é o mais importante deste construeto e caracterizase pela ten
tativa de identificar o que o doente sabe, a partir de que fontes e como inter
preta o que sabe. Nestes objectivos podem perceberse finalidades simulta
neamente diagnosticas e terapêuticas. Do ponto de vista diagnóstico, a
enfermeira precisa de ter aquela informação para poder desenvolver a sua
actividade com base no que o doente sabe e não no que ela supõe que ele
sabe. Ainda do ponto de vista diagnóstico, mas simultaneamente terapêuti
co, a enfermeira sabe à priori, qual a representação comum da doença, do
serviço e do tratamento. Detentora deste conhecimento, pretende saber
exactamente em que estádio o doente se encontra e ao mesmo tempo, pela
disponibilização de um espaço/tempo, permitirlhe a verbalização das suas
preocupações.
Diagrama 1 Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base nas entrevistas de admissão.
)o serviço de quimioterapia
Compreender a /sfò° tratamento de quimioterapia mutointerpretação
^o processo de doença / O que o doente sabe ( V»« „;„„;„ „ „;„+„„,„„
n \ lie sinais e sintomas
Processo de ava / Identificar as fontes de informação fiação diagnostica
^O que preocupa o doente ►Identificação das preocupações Identificação das estraté
J* gias do doente/família estratégias/capacidades /
Compreensão do contexto do doente
158 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Este conceito é, por sua vez, constituída por duas categorias, "Compreen
der a auto-interpretação" e "Identificar as fontes de informação" (ver dia
grama 1). Para tentar "Compreender a auto-interpretação" do doente, a
enfermeira tenta compreender a auto-justificação do encaminhamento para
aquele serviço (i.e., quimioterapia), bem como a auto-interpretação do servi
ço. Tenta, por outro lado, compreender a representação que tem do trata
mento, quer de modo directo, quer indirecto, através da tentativa de com
preensão das razões do tratamento prescrito. Veja-se, a título de exemplo, os
extractos de duas entrevistas de admissão, abaixo apresentados.
...Enf - Quanto anos é que a Sra tem, D. L.? D. L . - 6 3 . Enf* — 63. Então conte-me lá o que é que se passa consigo, o que é que está aqui a fazer?... D. L. - Quer dizer, fui operada aos intestinos .... E n f - Sim, foi operada aos intestinos, já há muito tempo? D. L. - Foi há um mês e duas semanas. E n f - Correu tudo bem com a operação? D. L. - Sim, correu. Ainda me dói muito mas ... E n f - Ainda tem dores? D. L - Sim, ainda tenho. E n f - Então e foi operada porquê? O que é que se passava consigo para ser operada aos intestinos? D. L - Ahhhh ... Quer dizer, eu adoeci com dores de cabeça. Uma grande dor de cabeça e aqui assim, .... aqui assim de lado {apontava para o flanco), mas a dor de cabeça é que .... pronto era dor de cabeça, era dor nos olhos, era dor no pescoço e houve um dia que até me desmaiei. Depois fui à médica, a médica mandou-me fazer exames e então eu fui fazer os exames e lá num dos exames .... fiz exame à barriga e a Sra Dra mandou-me logo vir de urgência com aquela carta à Dra A.. Depois da Dra A. fui para a Dra M. e pronto fiquei logo cá no hospital, para ser operada. Tinha .... acho que eram as tripas, assim inflamadas ou ... tinha qualquer problema na tripa. Tanto que me tiraram um bocado, tiram-me um rim e tornaram-mo a pôr ... e pronto. E n f — Ficou com algum saquinho ou não? D. L. - Não, não. Graças a Deus, não. E n f - Então foi operada por quem?... (EAL - 150702)
...Enf - E que tratamento é este que o Sr. vem fazer, sabe?... Sr. V. - É o coiso, é Ai não sou capaz de me lembrar o nome.... E n f - Quimioterapia... Sr. V. - Sim, é isso mesmo... (EAV - 220402)
Outro modo, também patente no extracto anterior, é através da tentativa
de compreensão da auto-interpretação do processo de doença. Este pode ser-
vir-se de caminhos diversos que vão desde a solicitação do relato da história
da doença, até à auto-justificação dos tratamentos cirúrgicos e outros e dos
159 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
exames complementares de diagnóstico. Outra forma de tentar "Compreen
der a auto-interpretação" do doente e complementar da anterior, é pela ten
tativa de compreensão da auto-interpretação dos sinais e sintomas. Esta
tentativa é feita principalmente com os sinais e sintomas mais paradigmáti
cos e que, do ponto de vista de representação, normalmente, estão associa
dos ao cancro (e.g., emagrecimento brusco, perda de sangue nas fezes, "caro
ço" na mama), tal como é patente no exemplo abaixo.
...EnF — Foi sempre assim, magrinho, magrinho? Sr. M — Sempre, sempre... Filha — Está um bocado mais magro, mas sempre foi magrinho. Sr. M. — A minha mãe é que dizia que eu que era gordo quando era pequenito, mas eu não sei porquê ainda não consegui. EnF — Então e o que é que o sr. acha que se passa, pronto, o que é que o sr. acha de tudo isto? Sr. M. - Do quê? EnF - Da sua situação, do motivo que o traz aqui, porque é que virá aqui ... Sr. M — Pois, eu queria era ficar bom ... EnF - E tem muita falta de ar, é? Sr. M — Tenho sim. Tenho um bocadinho. EnF - E de há muito tempo ou só agora? Sr. M. - Não, já há mais tempo. Agora, há coisa de quê, cinco meses é que eu me tenho sentido mais ... EnF - Mais para baixo... (EAM - 050802)
Como forma de complementar a informação anterior a enfermeira tenta
ainda perceber quais foram as fontes de informação do doente e que infor
mação foi veiculada por essas fontes. Esta estratégia é usada com duplo
objectivo. Por um lado, como forma de aceder à auto-interpretação do pro
cesso. Para o efeito, a enfermeira solicita ao doente que relate por palavras
suas o que é que lhe foi dito e o que é que pensa acerca disso, tal como se
verifica no extracto apresentado abaixo. Por outro, como forma de com
preender a fidedignidade das fontes e da interpretação que foi dada à infor
mação. Com base nisto pode estruturar a sua estratégia de informação e
esclarecimento.
...EnF — Quando veio aqui para este serviço, aqui para a de nós, o médico dis-se-lhe alguma coisa? Porque é que tinha que vir para aqui? Porque é que tinha que continuar a fazer tratamento?..._(EAV - 220402)
Pela associação deste conjunto de abordagens à auto-interpretação do
doente a enfermeira normalmente consegue compreender o que o doente
— _ — _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ , , - = = = = = _ = _ _ _ _ _ „ = = = = = , _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = _ _ | 6 0
Dissertação de Doutoramento
Os ulentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
sabe, mas também qual o seu estádio relativamente à vivência do processo.
Estes dois elementos são de importância crucial para o desenvolvimento das
estratégias de intervenção das enfermeiras. Pelas razões enunciadas, este
conceito tem relação próxima com o seguinte (i.e., "O que preocupa o doen
te"), na medida em que, identificando-se o que o doente sabe e o modo como o
interpreta, bem como o estádio de vivência do processo, identificam-se tam
bém algumas das suas preocupações.
Ainda que, no futuro, esta auto-interpretação esteja sempre em reavalia
ção, uma vez que a mesma vai evoluindo, este é o único momento em que a
enfermeira desenvolve de uma forma tão sistemática esta tentativa de com
preensão. Assim, esta é uma categoria diferenciadora e especifica desta fase
do processo e que não se repetirá noutros momentos.
No "Processo de Avaliação Diagnostica" desenvolvido durante a entrevis
ta de admissão, a enfermeira tenta também compreender "O que preocupa o
doente". A identificação das preocupações do doente faz-se à volta da pro
blemática do bem-estar (ver extractos EAF - 150702 e EAM - 050802). Ou
seja, a enfermeira tenta compreender o que é que interfere mais com o
bem-estar daquele doente, na perspectiva dele.
...Enf - Mas sintomas e isso não tem? Sente-se bem? Mulher — Tem a tosse. Sr. F. - Tenho a tosse, e estas feridas, não é. E n f - Pois, a gente agora já vê. J á vemos o que é que está aí por baixo. Tem pontos ainda ou não? Sr. F. - Não, não. J á não tenho nada. E n f - Se calhar já não há necessidade de andar com isso. A gente agora já vê.... (EAF - 150702)
...Enf - Então e o sr. como é que se sente, com dores? Sr. M.- Não, dores não tenho.... (EAM - 050802)
Ficam patentes, através desta abordagem, quais as intenções diagnosti
cas da enfermeira, mas é também de assinalar a complementar faceta tera
pêutica. Ou seja, a verbalização das preocupações perante alguém que se
manifesta interessado e preocupado tem potencialidades terapêuticas
enquanto tal, sendo este aliás um dos principios fundamentais de algumas
das correntes psicoterapêuticas tais como a psicanalítica, terapia centrada
na pessoa, cognitivista ou a existencial, entre outras (Mitchell & Black,
161 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
1996; Freud, 1989, 1995, 1999.; Rogers, 1974, 1995; Bandura, 1986; May,
1985, 1994).
O último conceito do "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como ele
ocorre durante a entrevista de admissão, é o que denominei como "Estraté
gias do doente". Este conceito compreende duas categorias, "Identificação
das estratégias do doente/família" e "Compreensão do contexto do doente".
A categoria "Identificação das estratégias do doente/família", tal como o
seu nome indica, tem a ver com as estratégias que, quer o doente, quer a
família, utilizam para lidar com a situação. Tal justifica-se porque normal
mente o doente está acompanhado por um familiar, mas também porque
quase nunca está sozinho a lidar com a doença. Apesar disso, existe uma
particular preocupação com o doente, pelo que a atenção começa por estar
centrada nas suas estratégias pessoais, no que diz respeito à experiência em
lidar com situações semelhantes à actual (ver extracto EAL - 100702).
Outra preocupação tem a ver com a autonomia face ao auto-cuidado. Este
segundo aspecto, de algum modo, faz apelo para os recursos familiares, uma
vez que, não havendo essa capacidade ou prevendo-se a evolução nesse sen
tido, é necessário equacionar quem o irá ajudar. São ainda exploradas as
estratégias familiares de natureza pragmática e que têm a ver com as impli
cações da doença e do tratamento.
...Enf3 - Olhe, D. L., então e veio sozinha? D. L. - Não, com o meu marido graças a Deus, está ali. E tenho 3 filhos e 7 netos. Enf* - Sim Sra. E vivem lá todos em Estremoz? D. L. - Não. O meu filho vive em Lisboa, com a mulher e dois filhos e as minhas filhas é que vivem em Estremoz. Uma é ajudante de farmácia e a outra está em casa, tem três filhos, dois homens e tem uma filha pequenina com 7 anos e então essa não está empregada. Enf3 - Olhe D. L., então diga-me lá uma coisa, já por acaso alguém na família t inha tido um problema assim?... (EAL - 100702)
Esta categoria é complementada pela que denominei como "Compreensão
do contexto do doente". Nesta outra a enfermeira tenta perceber os elemen
tos do contexto que lhe pareçam necessários à compreensão da situação do
doente, o que também é patente no extracto anterior. Normalmente a sua
atenção centra-se no enquadramento e dinâmica de relacionamento familiar.
= = = = = - _ _ _ _ _ _ _ = = = - _ _ _ _ _ _ = = _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ „ = = = = = _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ , 6 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
Aliás, uma das primeiras coisas que a enfermeira faz quando o doente entra
no gabinete para a entrevista de admissão e caso venha sozinho, é perguntar
quem é que o acompanha, como no exemplo atrás apresentado. Por vezes
justifica a questão com o desejo de ter naquela entrevista a pessoa que o
acompanha, porém, da resposta começa a tirar também ilações acerca do
enquadramento familiar.
...Enf - Tem aqui uma mulher cheia de força ah!!! Aqui ao seu lado. Esposa — O meu marido tem muito mais força do que eu. Eu tive força para aguentar a porta do café aberta porque ele pedhrme para a não fechar. Mas ele estava sozinho em casa. Atendia os clientes, ia a correr ao quarto, vinha.... ele quando tinha um bocadinho levantava-se e ia logo para o café... E n f - Não têm filhos?... Esposa — Temos uma filha. Mas a minha filha está empregada. Tenho dois netos. Depois ele estava habituado a ir levar os netos à escola, ir buscar os netos à escola e isso tudo... Enf* — Então e agora como é que estão as coisas? J á voltaram ao normal? Sr. C. - Sim, sim já voltaram ao normal.... (EAC - 220402)
...Enf* — É a mesma coisa, está bem? Quem é que vive... o Sr. vive com a sua esposa em casa? Sr. V. — Sim, sim... E n f - Vivem só os dois? Sr. V . - E o m e u f i l h o . . . E n f - A i e um filho... Sr. V. - Às vezes só vai no finrde-semana. Ele está a estudar. E n f - Está a estudar onde? Sr. V. - Em Montemor. E n f - Ainda tem um filho novo? Sr. V. - Tem 17 anos. E n f — Ainda é novo! Só ao fim-de-semana é que está com vocês, é? S r . V . - É , é. E n f - E a sua Sra também está a par de tudo aquilo que lhe aconteceu? Sabe tudo o que lhe aconteceu? Sr. V. — Sabe sim. Sabe mais do que eu. O médico explicouThe tudo. Eu depois esqueço-me.... (EAV-220402)
Tal como já disse, as informações relativas a esta categoria complemen
tam a anterior, ajudando a perceber melhor não só quais as estratégias, mas
também quais as potencialidades que o doente e família encerram para lidar
com as dificuldades actuais e com as que se avizinham. Todavia, estes dados
de enquadramento acabam por contextualizar toda a restante informação
das outras categorias.
Com base na análise feita às entrevistas de admissão desenvolvidas
pelas enfermeiras, não foi encontrada qualquer referência à avaliação de
natureza biomédica. Tal poderá parecer estranho, dada a natureza do tra-
163 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
tamento que se vai iniciar. Porém, a enfermeira tem acesso prévio ao proces
so clínico e por vezes, fala com o seu médico antes de receber o doente. Tam
bém pode acontecer que já conheça a situação do doente, do ponto de vista
médico, da consulta de senologia, a qual se realiza e é acompanhada pelas
enfermeiras deste serviço. Portanto, é já detentora de um razoável conjunto
de dados de natureza médica. Mas, para além disto, existe informação de
natureza médica subjacente a algumas das categorias atrás referidas. Por
exemplo, quando a enfermeira tenta perceber "o que o doente sabe" ou "o que
preocupa o doente", muitas das vezes este acaba por centrar o seu discurso
sobre aspectos de natureza médica os quais podem exigir a recolha de dados
clínicos complementares.
Olhando para o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um todo e tal
como ele ocorre durante as entrevistas de admissão, destaco'■
■S a preocupação em compreender o que o doente sabe, mas também
qual o seu estádio relativamente à vivência do processo. Assinalan
do, neste caso, a especificidade desta indagação para este momento
do processo,'
•f a preocupação em identificar as preocupações do doente!
S a preocupação em conhecer as estratégias do doente e família, mas
também as suas potencialidades;
■S o carácter terapêutico intrínseco a todo este processo de avaliação
diagnostica.
Relativamente ao modo como o mesmo é desenvolvido pelos diversos
intervenientes (i.e., enfermeiras), são patentes algumas diferenças. Algumas
destas poderão ser imputadas à interpretação individual da técnica de
entrevista. Algumas outras, nomeadamente as que têm a ver com a flexibili
dade na condução do processo, a acuidade clínica na percepção dos fenóme
nos e a consciência do processo, parecem ter alguma relação com uma conju
gação da formação com a experiência clínica das enfermeiras. Para afirmar
tal basekrme não só nas diferenças existentes no grupo no que diz respeito a
estas variáveis, mas também no facto de, durante o período de trabalho de
_____________====_========._________===_====____.__.._______________. | 6 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
campo ter assistido ao processo de integração de uma jovem enfermeira, mas
também de uma outra estar em processo de formação complementar.
5.3.2 - O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir da observação
De seguida, por uma questão de lógica sequencial e porque, tal como já
referi, o "Processo de Avaliação Diagnostica" está sempre presente ao longo
de toda a relação, procederei à sua apresentação a partir dos dados recolhi
dos através da observação. Para que melhor se compreenda é necessário ter
presente que as informações recolhidas durante a entrevista de admissão
são partilhadas com as restantes enfermeiras, facto do qual o doente é
informado pela enfermeira que faz a entrevista. É também necessário não
esquecer que se t rata de um processo, o que, neste caso, significa que a
informação que é recolhida após, funciona como avaliação face à que se reco
lheu anteriormente e portanto, é entendida neste contexto de continuidade
circular.
O "Processo de Avaliação Diagnostica" caracteriza-se agora por se reini
ciar a cada retorno do doente, de acordo com o seu cronograma. O processo
reinicia-se no momento em que doente e enfermeira se reencontram, ainda
que tal ocorra na sala de espera e prolonga-se durante todo o tempo da pre
sença do doente no serviço. Embora se possa perceber que num primeiro
momento existe uma maior preocupação em detectar alguma alteração que
careça de um intervenção imediata, é, contudo, extremamente difícil falar de
um espaço/tempo destinado por excelência a este processo. Ou seja, a avalia
ção diagnostica acontece em simultâneo com a intervenção, conduzindo,
eventualmente, à alteração desta. Aliás, em alguns momentos torna-se difí
cil perceber se se t ra ta de avaliação diagnostica ou de intervenção terapêuti
ca, não só devido à simultaneidade das ocorrências mas também ao carácter
terapêutico intrínseco a este "Processo de Avaliação Diagnostica" o qual já
atrás referi.
O "Processo de Avaliação Diagnostica" direcciona-se em três vectores dis
tintos, mas complementares e que se constituem como conceitos (ver dia
grama 2)'
165 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
S Avaliação genérica da situação de saúde,'
S Avaliação especifica dos sintomas somáticos!
S Avaliação especifica dos sintomas vivenciais.
Diagrama 2 Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base na observação.
^Associada ao cumpri
. ,. , . / mento inicial Avaliação genérica /
(ida situação de saúda*" Associada aos procedimen\ tos técnicoinstrumentais
Outros
Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e dimensão do incómodo
Avaliação especív>^ Avaliação dos valores analíticos ►fica dos sintomas Processo de avalia
ção diagnostica \ ' ' ^ m â t í c o T ' " ' ° \ Avaliação das alterações detectadas.
Avaliação contínua do proces
so de t ratamento ■é Avaliação da vivência do processo
wAvaliação específi f ca dos sintomas V* Avaliação dos sentimentos vivenciais Avaliação das necessidades de ajuda
A "Avaliação genérica da situação de saúde" iniciase no momento do
reencontro do doente e enfermeira, o qual ocorre frequentemente na sala de
espera dos doentes. Aí, a enfermeira, ao mesmo tempo que cumprimenta o
doente e família, habitualmente, de forma afável e com carácter de grande
familiaridade, vai recolhendo a informação necessária a uma primeira rea
valiação da situação desde a última visita (ver DO 080702 e DO 250702).
O carácter da indagação feita neste contexto é genérica, relembro que decor
re em público, mas não é despicienda. Tal devese ao facto de, associada à
indagação, ser feita uma observação do todo (diria que, na linha da percep
ção gestáltica).
... Entretanto chegou a enfermeira L, vinda do interior, munida da agenda das marcações e deambulou pela sala de espera cumprimentando diversos doentes pelo nome, fazendo algumas perguntas ocasionais e genéricas sobre a saúde, mas em jeito de cumprimento (e.g., "então como está?" "então como tem passa
Dissertação de Doutoramento 166
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
do?", "então como vai isso?"). Ao mesmo tempo ia dizendo a uns e outros que podiam entrar para as salas de quimioterapia... (DO - 080702)
... Cerca das 9 horas as enfermeiras A. e I. entraram na sala de espera, vindas do "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Iam cumprimentando os doentes à medida que evoluíam na sala. Ao mesmo tempo que cumprimentavam iam perguntando sobre o estado e o sentir de cada um. Iam também dando ordem àqueles que tinham sessão de quimioterapia, marcada, para se dirigirem para a respectiva sala de tratamento... (DO - 250702)
Por vezes, na sequência desta avaliação, as enfermeiras comentam entre
si "há qualquer coisa que não está bem!"; ou então, "não gostei do ar dele".
Os dados recolhidos por estas duas vias e lidos no contexto do conhecimento
que a enfermeira tem do doente, permitem uma primeira avaliação, que ser
vem de base a algumas decisões, nomeadamente as relativas a eventuais
medidas urgentes ou à necessidade de avaliar mais em profundidade.
Mais uma vez assinalo o potencial terapêutico desta forma de estar que,
tendo como objectivo imediato a recolha de informação, é ao mesmo tempo,
uma demonstração de simpatia, afabilidade, interesse e preocupação.
Todavia, a apreciação genérica continua mesmo após a entrada dos doen
tes na sala de quimioterapia. Quer porque a enfermeira não teve oportuni
dade de contactar com todos os doentes na sala de espera ou porque não
pôde fazer as perguntas que pretendia, a avaliação genérica prolonga-se e
sobrepõe-se com os primeiros procedimentos técnico-instrumentais inerentes
à quimioterapia. Existem porém, algumas diferenças face à anterior situa
ção. Agora podem ser feitas perguntas mais pessoais, primeiro porque se
está só entre pares, a maioria dos quais se conhece, segundo porque se pode
passar facilmente para um nível de conversa ainda mais privada se for
necessário (ver DO - 080702 e DO - 040702). De qualquer modo, as caracte
rísticas das perguntas continuam a ser de carácter bastante genérico. Ou
seja, nada é perguntado especificamente sobre o sintoma A ou B, mas antes
sobre a saúde e o benres tar de uma forma geral.
... Todos os doentes receberam um cumprimento mais personalizado de uma ou outra enfermeira ou de mais do que uma. Este cumprimento consiste em dirigi-renrse directamente ao doente pelo nome perguntando-lhe como se sente e como tem passado desde a última sessão.... (DO - 080702)
...A enfermeira J. e a aluna começaram por preparar a medicação não citostática na bancada de trabalho. As enfermeiras J. e A. e enquanto esta não foi para a 2a
167 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
sala, iam falando individualmente com cada doente acerca do seu estado ou da sua vida...._(DO 040702)
Também neste caso existem dois factores que têm valor terapêutico. O
primeiro tem a ver com a já referida manifestação de interesse! o segundo
com o uso desta inquirição para distrair o doente dos procedimentos técni
coinstrumentais inerentes à quimioterapia, principalmente quando estes
são incómodos.
Não se consegue prever cronologicamente o momento a partir do qual a
enfermeira abandona a "Avaliação genérica de saúde" e inicia uma das ava
liações mais especificas. Contudo, parecem existir um conjunto de factores
que resultaram da "Avaliação genérica de saúde" e que conduzem a uma
avaliação mais específica. Assim, se na avaliação genérica foram detectados
indicadores, verbalizados ou expressos de qualquer forma pelo doente ou
inferidos pela enfermeira, e que levem esta a concluir que algo não está bem,
passa a uma avaliação mais específica. Esta pode ou não ser diferida no
tempo, consoante a avaliação que a enfermeira faça do seu grau de urgência
e a sua definição de prioridades. Mas acaba por acontecer ao longo da per
manência do doente na sala de quimioterapia.
As características da referida avaliação específica estão categorizadas em
dois conceitos diferentes. Contudo, tal tem essencialmente objectivos didác
ticos, uma vez que na prática o que se pode dizer é que em alguns doentes
prevalece mais uma avaliação que outra, mas jamais se pode afirmar que
existe uma sem a outra. Assim, a avaliação específica foi categorizada em:
■S Avaliação específica dos sintomas somáticos!
S Avaliação específica dos sintomas vivenciais.
A "Avaliação específica dos sintomas somáticos", pode ser desencadeada
por algo expresso pelo doente ou inferido pela enfermeira a partir da avalia
ção genérica, mas também resultar da detecção de alguma alteração, seja
nos valores analíticos ou outra. Esta avaliação integra as seguintes catego
rias :
S Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e
dimensão do incómodo;
„ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ _ . _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ „ _ _ „ „ . . ] 6 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
■S Avaliação das alterações detectadas;
S Avaliação dos valores analíticos;
S Avaliação contínua do processo de tratamento;
A "Avaliação de continuidade dos sintomas, situação de saúde e dimen
são do incómodo" adquire uma importância central no "Processo de Avalia
ção Diagnostica" que decorre na sala de quimioterapia. Esta avaliação pode
não corresponder a um momento autónomo e bem delimitado do tempo. Ou
seja, pode ser feita ao mesmo tempo que decorrem outros cuidados e ser
interrompida e retomada várias vezes. Normalmente, esta avaliação começa
por se dirigir aos sintomas que mais incomodam o doente, caso a enfermeira
já os conheça (ver extractos DO 020603 e DO 160603). Se não for esse o
caso e porque a enfermeira procede também a uma avaliação do estado de
saúde, o doente acaba por ter espaço para expressar o que mais o incomoda.
É então feita uma avaliação mais minuciosa na tentativa de perceber as
características clínicas do sintoma e a dimensão do incómodo.
...A enfermeira L. dirigiirse a uma doente bastante emagrecida e com um ar triste e começou a fazer os preparativos para lhes colocar o soro em curso. Ao mesmo tempo, tentou perceber, agora de forma mais precisa, como é que estava a situação desde o último tratamento. Esta conversa decorre agora num tom bastante mais baixo, quase intimista, com a doente a contar à enfermeira quais os sintomas que teve com mais frequência e os incómodos que representaram. (DO 020603)
...Quase de imediato chega o sr. B., doente já referido em relatórios anteriores. Foi igualmente cumprimentado pelas enfermeiras presentes. Contudo, como este doente, das últimas vezes que esteve presente, apresentava um estado geral bastante debilitado e referia muitas queixas, as enfermeiras dirigiramse a ele de imediato no sentido de tentar perceber que evolução t inha ocorrido entre
tanto. Este procedimento foi desencadeado de imediato mal o doente se assomou à porta, mas foi depois repetido com mais atenção pela enfermeira M. depois de o doente se ter instalado na cadeira. Esta parecia ser a enfermeira que mais sabia acerca da situação do sr. B., tanto que lhe fez perguntas muito específicas que tinham a ver com o que t inha acontecido na sequência da implementação de determinadas medidas terapêuticas que t inham sido adoptadas. Também o doente parecia manifestar predilecção por esta enfermeira, chamandoa e tra
tandoa pelo nome com uma certa familiaridade. (DO — 160603)
A par com esta subcategoria estão as duas imediatamente a seguir (i.e.,
"Avaliação das alterações detectadas" e "Avaliação dos valores analíticos"),
as quais complementam a anterior e entre si. A "Avaliação das alterações
detectadas" radica numa atitude clínica mais proactiva da enfermeira. Ou
169 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
seja, ainda que o doente não refira qualquer queixa, desde que a enfermeira
detecte alguma alteração, investigada, indagando o doente e/ou avaliando-a
directamente, o que também é patente nos extractos atrás apresentados.
Esta atitude é relevante por, entre outras, duas razões principais. Primeiro,
porque detentora do conhecimento relativo à situação clínica do doente bem
como da sua previsível evolução, sabe valorizar sinais e sintomas que passa
rão despercebidos a um leigo (ver extracto DO - 160702 e DO - 250702).
Segundo, porque ultrapassa a eventual inibição por menos à-vontade de
algum doente.
...Findo este procedimento, A. inicia o processo de mudança de "bomba" a H2. Enquanto isso, vai falando com ele acerca do processo de tratamento, nomeadamente no que tem a ver com cronograma e efeitos.... (DO - 160702)
... A enfermeira A. coloca a quimioterapia a SI e H l . enquanto a coloca a S i interroga-a sobre se tem apanhado muito sol uma vez que a acha muito morena. Aquela refere que não. Apesar disso a enfermeira recomenda algumas precauções e explica que um dos medicamentos induz o escurecimento da pele e o aparecimento de manchas, quando a pessoa se expõe em demasia durante o tratamento.... (DO - 250702)
Os valores analíticos são apreciados por rotina pois é através deles que
as enfermeiras decidem da exequibilidade do tratamento. Contudo, a sua
apreciação pode ir mais além, na tentativa de perceberem ou enquadrarem
as queixas do doente ou as alterações detectadas.
.... As enfermeiras A. e I. discutem os valores analíticos de um doente e decidem que não está em condições de efectuar o tratamento.... (DO - 250702)
Ao conjunto destas três subcategorias deve acrescentar-se uma quarta,
que ocorre em simultâneo com as anteriores, que está mais centrada no pro
cesso em curso naquele momento e a qual denominei "Avaliação contínua do
processo de tratamento". A administração de agentes quimioterápicos de
natureza citostática é um procedimento que exige um elevado rigor técnico e
uma vigilância apertada, dado o risco de reacções adversas ou de incidentes
de natureza diversa. Por tais razões, a enfermeira desenvolve uma vigilân
cia contínua e próxima com observação e inquirição frequentes acerca da
evolução do processo.
==================================================================== 170 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
.... A enfermeira J. chega à sala, vigia as perfusões e posicionase junta à porta da sala. H. desencostase do cadeirão e assim permanece. J. perguntalhe se está mal disposto. Aquele nega e explica que tem que mudar de posição por causa da sua coluna.... (DO 250702)
O conjunto destas quatro subcategorias permite à enfermeira ter uma
percepção clara do modo como evolui o nivel de benres tar dos doentes no
que diz respeito aos sinais e sintomas. Todavia, vai mais além porque ao
tomar como centro da sua atenção as preocupações do doente, esta forma de
desenvolver os procedimentos diagnósticos assume, mais uma vez, caracte
rísticas terapêuticas. Também por aquela razão, estabelece a ponte com a
categoria seguinte (i.e., "Avaliação específica dos sintomas vivenciais"), a
qual complementa a anterior, não existindo, na prática, uma sem a outra.
Passo assim a caracterizar a categoria "Avaliação Específica dos Sinto
mas Vivenciais". Como complemento da categoria anterior, esta outra carac
terizase por tentar perceber o modo como o doente vive todo o processo a
que está sujeito, quais os sentimentos que lhe estão associados e ainda, de
que ajudas concretas precisa. Estas características resultam das subcatego
rias encontradas que são^
■S Avaliação da vivência do processo»'
•S Avaliação dos sentimentos!
■S Avaliação das necessidades de ajuda.
A "Avaliação da vivência do processo" tem a ver com os significados que o
doente atribui ao processo como um todo ou a qualquer um dos seus consti
tuintes (e.g., sinais, sintomas, exames complementares de diagnóstico). É de
grande importância tal avaliação, pela natural especificidade das reacções
individuais, mas também porque existe uma distância abissal entre os signi
ficados atribuídos pelos profissionais e os atribuídos por quem vive as situa
ções no papel de doente.
... Uma das doentes estava um pouco inquieta e tinha um fácies aparentemente angustiado, pelo que a enfermeira perguntoulhe se se estava a sentir mal. A doente respondeu que não se estava a sentir pior... (DO 150702)
... A enfermeira A. fez uma pergunta a Si no sentido de perceber se aquela manifestação de enfado com o tratamento tinha a ver com a emergência de efei
tos secundários do tratamento. A doente referiu que não era esse o caso... (DO
300702)
171 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Naturalmente que, intrinsecamente associada à subcategoria anterior,
surge esta outra denominada "Avaliação dos sentimentos". Só mesmo por
razões de natureza didáctica pode aparecer separada, porque na prática
quando o doente expõe a sua vivência do processo, concomitantemente expõe
os sentimentos que lhe estão associados. Apesar disso, justifica-se a separa
ção por duas razões principais. Primeiro, porque pode acontecer que um sen
timento enquanto tal se torne objecto de avaliação, dada a sua importância
no contexto da vivência. Segundo, porque a avaliação pode construir-se toda
ela à volta dos sentimentos expressos, dada a preponderância que eles assu
mem num determinado doente.
... A enfermeira A. iniciou as punções. A primeira doente foi a D. SI . A enfermeira aproveitou para comentar o seu ar triste dizendo-lhe, "A D. SI tem sempre um ar tão triste. O que é que se passa?" A doente respondeu atribuindo culpas à sua doença e ao tratamento, quer no que ele tem de incómodo pelas sintomas que desencadeia, mas também no que ele representa enquanto recordação imposta da sua situação. Lamentou-se dizendo "isto nunca mais acaba!" Sobre os sintomas a enfermeira tentou perceber a sua severidade, fazendo mais perguntas. Pelas respostas da doente pareceram todos concluir que os sintomas não eram demasiado severos e que a principal preocupação residia no modo como a doente estava a encarar a situação. (DO - 250702)
... A doente explicou que as razões eram essencialmente de natureza vivencial, mas fez questão de sublinhar que essas razões nada tinham a ver com as pessoas mas sim com a sua cabeça. Explicou ainda que anda muito triste, que se afasta das pessoas e não quer ver ninguém e cada vez que vem ao tratamento é um sofrimento muito grande... (DO - 060802)
Por último, uma referência para a "Avaliação das necessidades de ajuda".
De algum modo, esta subcategoria está subjacente a todas as anteriores, na
medida em que, esta avaliação pode ser apontada como uma das finalidades
de todo o "Processo de Avaliação Diagnostica". Apesar disso existem atitudes
específicas destinadas a tentar perceber em que aspectos concretos é que o
doente mais precisa de ajuda. Tal compreende-se no contexto de uma preo
cupação latente em diversas categorias, em dar resposta ao que preocupa o
doente e destinar-se-á exactamente a responder aos seus problemas imedia
tos.
Fica assim completa a caracterização do "Processo de Avaliação Diagnos
tica", construída a part ir dos dados resultantes da observação. É, contudo,
adequado proceder à evidenciação dos aspectos que considero mais relevan-
Dissertação de Doutoramento 172
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
tes, de modo a poder comparálos com as categorizações de idêntico processo,
construídas a partir de outras fontes e também como forma de perspectivar
a sua integração num todo que nos ajude a compreender o referido processo
enquanto tal e numa perspectiva diacrónica.
Assim, o "Processo de Avaliação Diagnostica" que se desenvolve nas salas
de quimioterapia caracterizase genericamente por:
S Avaliar de modo genérico e específico a situação de saúde dos doen
tes conjugando um tríptico composto por:
o uma perspectiva biomédica,
o uma vivencial, e
o uma de ajuda dos doentes;
S Avaliar de modo sistemático e diacrónico.
Comparando este com idêntico processo ocorrido durante a entrevista de
admissão, são de realçar:
S a continuidade entre eles. Ou seja, este segundo é construído com
base na informação anterior.
S uma focalização, a partir de uma tripla perspectiva, sobre a situa
ção de saúde e o modo como o doente a vive, a qual é moldada com
base nos dados recolhidos durante a entrevista de admissão e
actualizados em cada reencontro.
■S uma reavaliação sistemática de todo o processo.
4.3.3 O "Processo de Avaliação Diagnostica" a partir das entrevistas às
enfermeiras
Apresento por último o "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como foi
categorizado a partir dos dados oriundos das entrevistas às enfermeiras.
Com base nestes dados, o "Processo de Avaliação Diagnostica", engloba dois
conceitos de natureza diferente: o "Modo" e o "Fim". Com o primeiro conceito
(i.e., "Modo") pretendese caracterizar o modo como o processo de avaliação
diagnostica é construído (ver diagrama 3). Assim, as duas características
fundamentais são o carácter dinâmico e a perspectiva diacrónica. O carácter
173 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
construção (i.e., nunca acabado), com diversidade de fontes e de meios de
recolha da informação. Isto significa que, existe uma simultaneidade entre a
recolha de informação e a prestação de cuidados. Dito de outra forma, não
existe separação entre um determinado momento de diagnóstico e um outro
subsequente de acção. Também não existe separação entre a recolha de
informação para efeitos diagnósticos e a avaliação dos cuidados prestados.
Ou seja, os dados recolhidos para responder ao primeiro destes objectivos
servem também o segundo. Por estas razões a acção de recolha de informa
ção está sempre a acontecer e está sempre inacabada.
Diagrama 3 Categorização do "Processo de Avaliação Diagnostica" com base nas entrevistas às enfermeiras.
4 Modo (Como?)—►Dinâmico e diacrónico Processo de ava / —avaliação do enquadramento liação diagnosticai
^ /^rAvaliação das dificuldades Fim (o quê?XC^^
N/rAvaliação dos sentimentos
Avaliação médica
Através do extracto abaixo apresentado percebese que o processo de
diagnóstico é lento e continuado no tempo. Exige paciência e atenção aos
pormenores mais subtis, para os quais só se vai ganhando sensibilidade à
medida que se vai conhecendo a pessoa.
... Passados uns dias, quando ela volta outra vez, eu comecei a notar que além da preocupação da filha e da doença, que havia outra preocupação qualquer, que ali não era só aquilo, t inha que haver outra coisa. Pela maneira de estar e como ela reagia assim a determinadas conversas. Porque é normal, às vezes na sala falase de maridos, fala_se da vida, do diaadia,... e ali havia qualquer coisa. Mesmo em relação aos pais e isso tudo, ... havia qualquer coisa que não estava bem... (EEL040702)
Também pelas razões atrás apresentadas se pode dizer que são diversos
os meios e as fontes de informação. Ao mesmo tempo que a enfermeira reco
lhe informação de natureza objectiva, através dos seus sentidos e relativa ao
cuidado que está a prestar (e.g., punção venosa), pode, em simultâneo, estar
a desenvolver uma interacção verbal com intuito de recolher informação,
Dissertação de Doutoramento
C:k
Os ulcntes c os enfermeiros: Construção de uma relação
relativa ao cuidado que está a prestar ou a outro assunto de natureza dife
rente (e.g., vivência do processo). Se a recolha de informação for relativa ao
cuidado que está a desenvolver, está a cruzar informação com o objectivo de
ter uma perspectiva global do que está a avaliar. Se a recolha de informação
for relativa a outro assunto, está a desenvolver um processo mais complexo,
na medida em que, sem deixar de dar atenção ao que está a fazer, está tam
bém a prestar atenção à interacção verbal, centrada noutro assunto (ver
extracto abaixo). Sendo que, este último pode também ter como objectivo a
distracção do doente do cuidado que está a desenvolver.
... eu estive a falar com ela, estive assim um bocadinho, estive fazendo as coisas, pondo os soros e entretanto consegui puxar a conversa para a filha,... (EEL -040702)
Mas a diversidade de meios e de fontes estende-se a outros dominios e
inclui, entre outros, a familia do doente, os amigos e conhecidos (ver extracto
abaixo), o médico, a documentação clinica já organizada em processo e os
exames complementares de diagnóstico.
... Mais tarde apareceu lá assim uma prima dela e eu tentei saber um bocado mais através da prima qual a maneira porque a gente a podia ajudar... (EEL -040702)
O cruzamento de dados, através da diversificação de fontes, é importante,
porém, tal não significa que não se acredite na versão do doente, mas antes
que cada situação tem tantas versões quantas as pessoas envolvidas.
A outra característica do "Processo de Avaliação Diagnostica" prende-se
com o seu carácter diacrónico. Parece quase redundante destacar esta carac
terística, pois se já foi dito que é um processo inacabado, este outro depreen-
de-se. Contudo, esta característica pretende sublinhar que a informação
recolhida num determinado momento (excepto o primeiro), ganha sentido
num contexto diacrónico. Ou seja, ganha sentido face à informação já detida
e resultante de recolhas anteriores. Assim, o "Processo de Avaliação Diag
nostica" é simultaneamente um modo de perceber o presente, avaliando o
que se passou entretanto. Isto é, ao mesmo tempo que se diagnostica o pre
sente, avalia-se a evolução do benres tar do doente nas suas diversas verten-
175 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
tes. Deste modo, cada acção de avaliação da enfermeira constitui-se como
um elo numa cadeia, o qual, para ter sentido precisa de considerar os já
existentes. Esta é a razão pela qual este foi considerado um processo e lhe
foi atribuída a denominação de "avaliação diagnostica". Toda esta informa
ção é cruzada e o resultado é uma perspectiva simultânea do processo de
saúde e da sua vivência.
O segundo conceito deste processo e que designei por "Fim" (ver diagra
ma 3), refere-se à categorização da informação recolhida pela enfermeira. Ou
seja, pretende responder à pergunta- que informação recolhe a enfermeira?
É constituída por quatro categorias^
S Avaliação do enquadramento,'
S Avaliação das dificuldades!
S Avaliação dos sentimentos,'
S Avaliação biomédica.
A "Avaliação do enquadramento" compreende a tentativa de contextuali
zação da informação, desenvolvida pela enfermeira. Ou seja, a par com a
recolha de um determinado dado, a enfermeira tenta compreender o enqua
dramento do mesmo. Os exemplos possíveis são imensos e vão desde os mais
evidentes, até aos clinicamente mais subtis. Assim, uma manifestação de
dor, enquanto tal, não tem significado. Adquiri-lo-á à medida que a enfer
meira for recolhendo outros dados que lhe permitam compreender o enqua
dramento e caracterizá-la devidamente. A mesma coisa se pode dizer relati
vamente à manifestação de tristeza, de raiva ou de qualquer outro senti
mento. Os elementos de contextualização percebidos foram, o momento do
ciclo de vida do doente e o contexto pessoal (o qual inclui a doença e a sua
vivência) versus contexto sócio-familiar.
O que acabei de referir é ilustrado pelos extractos abaixo apresentados.
Em qualquer um deles é patente a tentativa de compreender a situação da
pessoa no seu próprio contexto. Ou seja, o significado encontra-se pela con
jugação das diversas variáveis presentes em cada situação, as quais são
diferentes de pessoa para pessoa.
_ _ _ - _ _ _ _ _ = = _ _ _ _ „ _ _ = = „ _ _ _ _ _ _ „ _ = = = = = „ „ _ _ _ _ _ _ „ = = = = „ = _ _ . . _ „ „ „ „ . 1 7 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção cie uma relação
....ele estava muito isolado e muito sozinho, nesta fase. Esteve sempre muito sozinho. Nem sequer dos pais. Eu lembro-me perfeitamente que havia assim umas histórias incríveis e portanto a única pessoa que o acompanhou sempre foi a mulher... ... toda a gente se afastou, toda a gente. Eram mesmo só um e outro, eram só mesmo eles, um com o outro. Foi muito duro... (EEA1 - 180702)
... E aquilo que aconteceu com a A. também, teve a ver um pouco com isto, porque era perfeitamente natural, .... ela com 30 anos, acho que ainda não tinha 30 anos, grávida de gémeos, é-lhe diagnosticado um tumor da mama, de uma forma, ainda por cima ... depois toda a revolta, era a revolta por esse diagnóstico e era a revolta por toda a situação, porque ela tinha aquele nódulo há não sei quanto tempo atrás, e o médico que não queria saber daquilo, mandava pôr pomadinhas e não sei quê ... Toda a revolta dela essencialmente baseava-se nisso, baseava-se no facto de o diagnóstico não ter sido feito e de ela até ser uma pessoa de fazer os exames todos e até ir ao médico e não sei quê e ter-lhe acontecido uma coisa destas. E depois mais que razão tinha ela para estar assim. Por uma lado isso, e por outro lado na idade, por outro lado o estar grávida e tudo isso... (EEA2 - 180702)
....Foi uma senhora que nos apareceu pela Ia vez, (...) e a senhora era uma senhora dos seus 30 e tal anos e na altura, tinha uma miúda com 8. A senhora apareceu, com carcinoma da mama e vinha um bocadinho, vinha muito deprimida, como é normal... (EEL - 040702)
Em conclusão, poder-se-á dizer que esta categoria está subjacente a todas
as outras deste conceito. Ou seja, de algum modo, serve-lhes de suporte e
dá-lhes significado. Para além disso, percebenrse semelhanças entre esta
categoria e o constatado nos dados resultantes das entrevistas de admissão e
da observação. Em qualquer um dos casos existe a preocupação de contex
tualizar sistematicamente os dados.
A categoria "Avaliação das dificuldades" compreende o esforço desenvol
vido pelas enfermeiras na tentativa de identificarem as principais dificulda
des do doente e familia. Esta categoria caracteriza-se por dois elementos
complementares entre si, mas distintos. O primeiro desses elementos tem a
ver com a avaliação das dificuldades pessoais que exijam uma interacção
próxima. Para tal e como se exemplifica nos extractos abaixo apresentados,
a enfermeira tenta compreender como o doente vive a sua situação e está
atenta a sinais indicativos de necessidade de interacção, resultantes de difi
culdades vivenciais da mais diversa ordem.
... mas quase nunca falava e eu tentei ajudar, mas não sei até que ponto, porque é muito delicada a situação. (EEJ - 160702)
... Estivemos a falar,.... as condições não eram muito boas em relação,... na altura que havia no serviço, mas conseguiu-se um espaçozinho para falar com ela, porque ela de facto estava.... Eu quando o médico me disse "olhe tem aqui esta
177 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
senhora, vai começar pela primeira vez, veja lá o que a L. pode fazer". E eu vi que a senhora realmente estava apavorada e ... estive fazendo a Ia entrevista, estive falando com ela e a preocupação maior na entrevista foi tentar perceber o que é que ela sabia e qual era o principal pavor que ela tinha... (EEL - 040702)
... Porque ela, quando eu chegava para a picar ou para mudar soros ou qualquer coisa, ela t inha sempre uma chamada de atenção, não referente ao que estava mas ela tentava entrar na intimidade dela, mais. E eu vi que ela estava a precisar de falar com alguém... (EEL - 040702)
O segundo elemento, refere-se à compreensão de dificuldades concretas
da relação do doente com a sua circunstância. São disso exemplo as dificul
dades em continuar a assumir os seus papéis familiares e/ou sociais da mais
diversa ordem, tal como é expresso no extracto seguinte.
... na altura vi que ela estava muito preocupada com o que tinha, mas em paralelo com a filha. Porque a filha tinha 8 anos e porque as experiências e as coisas que tinha ouvido é que eram pessoas que duravam pouco tempo, tinham um tempo de vida muito curto e ela tinha aquela preocupação com a filha. Isso foi uma coisa na altura que eu fiquei. Fiquei a perceber... (EEL - 040702)
Também neste caso existe sobreposição com o já referido em idêntico con
ceito, categorizado a partir de outros dados. Ou seja, a avaliação das dificul
dades está presente quer nas entrevistas de admissão, quer no dia-a-dia da
sala de quimioterapia.
Relacionada de muito próximo com a categoria anterior surge esta outra,
denominada "Avaliação dos sentimentos". Em boa verdade não é possível
compreender as dificuldades dos doentes sem conhecer e compreender os
sentimentos que lhe estão associados, tal como ficou claro nos exemplos
a t rás apresentados. É assim natural que, à semelhança do que aconteceu na
categoria anterior, os sentimentos estejam organizados de acordo com o
doente na relação consigo próprio e com a sua circunstância. A enfermeira
diz assim, avaliar os sentimentos do doente relativos ao modo como vive a
situação, sendo aí patentes os sentimentos de revolta e agressividade, ansie
dade e tristeza (ver extractos abaixo). Mas também está atenta aos senti
mentos associados à relação do doente com os outros, nomeadamente os que
decorrem dos seus papéis sócio-familiares.
... falámos muito disso e a preocupação dela era, por um lado, .... ela nessa altura já não falava muito do facto de estar doente e de pensar como é que vai ser o futuro por estar doente, era mais o estar doente e não conseguir dar resposta
Dissertação de Doutoramento 178
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
aquilo que os bebés precisavam. Dar resposta àquelas coisas de mães, do que é ter duas crianças pequenas, às higienes, a alimentação,.... (EEA2 - 180702)
... Aí eu percebi qual era o drama dela, aí eu percebi logo que era o drama de, a miúda nem tinha o apoio do pai, que lhe fazia falta naquela altura, uma miúda com 8 anos e que faz bastante falta... (EEL - 040702)
De destacar como característica comum a estas duas últimas categorias,
o seu carácter simultaneamente terapêutico. Ou seja, o facto de a enfermeira
manifestar preocupação com as dificuldades do doente, é terapêutico só por
si, tal como mais à frente se verificará. O mesmo se pode dizer relativamen
te à avaliação dos sentimentos do doente. Tal permite muitas vezes ao doen
te a sua expressão e esta é também terapêutica.
Por último, uma referência para a "Avaliação biomédica". Esta engloba
toda a informação relativa ao processo fisiopatológico, bem como ao respecti
vo tratamento. De algum modo, pode-se dizer desta categoria algo de seme
lhante ao que se disse da "Avaliação do enquadramento". Isto é, a informa
ção de natureza biomédica é essencial para contextualizar toda a outra. Ou
seja, as dificuldades e os sentimentos atrás falados precisam de ser contex
tualizados nesta outra informação para poderem ser compreendidos na sua
totalidade e na especificidade daquele doente. Tal é o caso do exemplo abai
xo apresentado (EEA1 - 180702).
....Ele tinha um tumor no intestino, foi operado a um tumor e não bastava isso senão ainda depois no pós-operatório ter feito um AVC. Fez um AVC e ficou hemiplégico. (...) mas depois quando se vê hemiplégico, aí é que as coisas ficaram muito mais complicadas... (EEA1 - 180702)
Todavia, a "Avaliação biomédica" engloba outras vertentes igualmente
importantes. Estou a referir-me à informação necessária ao desenvolvimento
de alguns cuidados de enfermagem, os quais exigem elevado rigor, conheci
mento preciso e vigilância apertada. A "Avaliação biomédica" é feita direc
tamente, junto do doente, mas também indirectamente. Neste último caso a
enfermeira serve-se dos dados recolhidos por outros profissionais, nomea
damente os médicos, mas também dos resultados dos exames complementa
res de diagnóstico.
Olhando para o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um todo, e tal
como foi categorizado a partir dos dados resultantes das entrevistas às
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
enfermeiras, penso que seja oportuno destacar alguns aspectos marcantes.
Primeiro e relativamente ao modo:
S a simultaneidade entre a recolha de informação e a prestação de
cuidados;
S o dinamismo e diacronia do processo!
S a avaliação e reavaliação sistemática do processo.
Segundo e relativamente ao fim:
■f a centração sobre as dificuldades e os sentimentos do doente;
■S a compreensão de ambos no contexto individual, sóciofamiliar e
biomédico do doente.
Constatase assim, por comparação com idênticos conceitos categorizados
a partir de dados oriundos de outras fontes, que existem sobreposições
diversas. Estas sobreposições não só validam o que foi dito pelas enfermei
ras, mas validam principalmente a estratégia diagnostica da enfermeira,
enquanto tal.
5.3.4 O "Processo de Avaliação Diagnostica": Perspectiva global
Para concluir a caracterização do "Processo de Avaliação Diagnostica",
falta proceder à sua perspectivação global, assinalando as diferenças e as
semelhanças, bem como as suas características mais marcantes.
Assim, comparando o referido processo a partir das categorizações com
base nos dados oriundos das entrevistas de admissão e da observação, cons
tatase que o primeiro tem alguns elementos específicos, os quais se devem
ao facto de aquele ser o primeiro encontro entre a enfermeira e o doente.
Todavia, e para além disso, constatase que existe continuidade entre eles.
Ou seja, o "Processo de Avaliação Diagnostica" que decorre na sala de qui
mioterapia é inicialmente construído com base na informação anterior.
Sendo construído em continuidade, o processo que decorre na sala de
quimioterapia diferenciase pela focalização no doente, a partir de uma tri
pla perspectiva: a situação de saúde, o modo como o doente a vive e a neces
sidade de ajuda. Esta perspectiva, sendo moldada com base nos dados reco
====================——=====================—================== l 8° Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
lhidos durante a entrevista de admissão, é actualizada em cada reencontro.
Ou seja, existe uma reavaliação sistemática de todo o processo.
0 "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como foi categorizado a partir
das entrevistas feitas às enfermeiras, merece outras considerações uma vez
que o mesmo nos dá uma perspectiva global. Assim e no essencial, posso
afirmar que se verifica uma sobreposição assinalável entre o verbalizado
pelas enfermeiras e o concluído a partir das entrevistas de admissão e do
observado.
Para além disso, pode também afirmar-se que se trata, regra geral, de
um processo desenvolvido intencionalmente pelas enfermeiras, razão pela
qual elas lhe fazem referência nas entrevistas. É também um processo que
resiste ao cruzamento de duas testemunhas, as enfermeiras e o investiga
dor. Sendo que as enfermeiras o referem nas entrevistas que me concede
ram, o manifestam nas entrevistas por elas realizadas na minha ausência e
na acção por elas desenvolvida na minha presença. Existem ainda outras
provas importantes da consistência deste constructo, nomeadamente, o facto
de os doentes me terem verbalizado determinado tipo de sentimentos, os
quais são coincidentes com os identificados pelas enfermeiras.
Perspectivando agora o "Processo de Avaliação Diagnostica" como um
todo, diria que este consiste na avaliação/reavaliação da situação do doen
te/família, na conjugação variável das perspectivas vivencial, biomédica, e
de ajuda, feita de modo contínuo, sistemático, dinâmico e integrado nos cui
dados. É patente nesta definição, que o foco do processo é o doente e a famí
lia. E adequado contudo esclarecer que o foco principal é o doente. A família
é foco por intermédio deste, mas, neste contexto, acumula também um papel
de co-responsável pelos cuidados, principalmente durante a semana,
enquanto o doente está em casa.
É também evidente na definição que, no "Processo de Avaliação Diagnos
tica" se percebe a presença de três perspectivas : vivencial, biomédica, e de
ajuda (ver figura 10). Ou seja, a enfermeira preocupa-se em perceber a evo
lução da situação do ponto de vista vivencial, do ponto de vista biomédico, as
quais podem estar profundamente interrelacionadas, e do ponto de vista da
181 Dissertação cie Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ajuda que a enfermeira pode dar, a qual tem a ver com as necessidades con
cretas impostas pela condição biomédica e vivencial.
Figura 10 - Perspectivas percebidas no "Processo de Avaliação Diagnostica".
Porém, a característica fundamental destas perspectivas é a variabilida
de da preponderância de cada um dos vectores em função da situação do
doente. Ou seja, é a situação do doente que determina qual ou quais dos vec
tores de avaliação é que são mais importantes em cada momento. Assim,
estas perspectivas, para além de serem três olhares diferentes sobre um
determinado fenómeno, são sobretudo uma paleta de nuances, na medida
em que a perspectiva biomédica é contextualizada na vivencial e vice-versa e
por sua vez a perspectiva de ajuda é contextualizada nas duas anteriores.
Deste modo, a perspectiva presente no "Processo de Avaliação Diagnostica",
resulta de uma conjugação de perspectivas de geometria variável. Ou seja,
uma conjugação em que, uma ou outra das perspectivas poderá ou não
ganhar maior preponderância, mas não existindo umas sem as outras.
Sobre a natureza do processo, é de realçar o seu carácter contínuo, siste
mático e dinâmico. Isto é, após a entrevista de admissão, não se pode dizer
que exista um momento específico dedicado à avaliação da situação e outro à
- ~ _ ™ _ - ™ „ _ _ _ _ _ _ ™ _ „ _ _ „ _ _ „ _ „ „ „ „ _ „ _ „ _ „ . | 8 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
intervenção. A avaliação faz_se sistematicamente, mas sempre a partir do
que já se sabe. Isto permite um sistemático aprofundamento do conhecimen
to e uma sistemática reavaliação da situação (ver figura 11). Assim, este
processo é sobreponível com o "Processo de Intervenção Terapêutica de
Enfermagem", mais à frente definido. Ou seja, o "Processo de Avaliação
Diagnostica" está diluido na acção que a enfermeira vai desenvolvendo junto
do doente e da família.
S W O p o p o
H i—i O w o o o
Figura 1 1 - 0 "Processo de Avaliação Diagnostica" - evolução considerando as dimensões: temporal e conhecimento do doente.
O que o ctòente sabe
O que preocupa o doente Avaliação genérica da
situação de saúde
Avaliação específica dos \sintomas vivenciais
Avaliação específica dos sintomas somáticos
Estratégias/capacidades do doente
Io Encontro Reencontros Sucessivos
DIMENSÃO TEMPORAL
Faz ainda parte da natureza deste processo o seu carácter terapêutico.
Este é intrínseco ao facto de o "Processo de Avaliação Diagnostica" ser uma
manifestação de interesse e preocupação pela pessoa e ao mesmo tempo, se
traduzir numa concessão de espaço/tempo para a verbalização das preocupa
ções dos doentes e famílias.
Neste contexto, e em resumo, o "Processo de Avaliação Diagnostica" ini-
cia-se antes de o doente e a enfermeira se conhecerem formalmente, com a
183 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
recolha de informação biomédica e outra, feita pela enfermeira; tem um
momento de especial importância na entrevista de admissão, na qual se ten
ta perceber o que o doente sabe, o que o preocupa e quais as suas capacida
des e estratégias, por comparação com o que a enfermeira já sabe; e é actua
lizado em cada reencontro, tentando perceber a evolução do ponto de vista
médico e vivencial, na perspectiva de ajuda e coincidindo com a "Processo de
Intervenção Terapêutica de Enfermagem" (ver figura 12).
A grande finalidade do "Processo de Avaliação Diagnostica" é compreen
der a forma como é vivida a doença, pelo que precisa de compreender os seus
sinais e sintomas, e a ajuda que a pessoa precisa para tentar ultrapassar as
dificuldades colocadas pela situação. Na prossecução desta finalidade a
enfermeira usa a sua capacidade de compreensão na tripla perspectiva atrás
enunciada, e a sua capacidade de avaliação contínua, sistemática e dinâmi
ca.
Figura 12-0 "processo de avaliação diagnostica"- Perspectiva global
0 que o doente sabe o lÒj o 1 II 03 O
-O a)
M | 8 1
/
0 que o doente sabe o lÒj o 1 II 03 O
-O a)
M | 8 1
0 que preocupa o doente
o lÒj o 1 II 03 O
-O a)
M | 8 1
N Estratégias/capacidades do
doente
Estratégias/capacidades do
doente
(Re)avaliação específica dos sintomas vivenciais
(Rp)ávaliaçâo especifica íós sintomas somáticos
Entrevista de Admissão Sucessivos Reencontros
Na sequência desta definição do "Processo de Avaliação Diagnostica",
torna-se necessário compará-la com o que diz a l i teratura sobre tal processo.
As razões pelas quais optei pela presente designação já atrás foram apresen
tadas. Tenho porém, consciência de que se t ra ta de uma designação nova,
uma vez que não encontrei designação semelhante. Apesar disso, tem seme-
- 184 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
lhanças com o encontrado na literatura. Senão vejamos. Desde a década de
60 do século passado que foi introduzida na li teratura de enfermagem, pro
posto pela primeira vez por Orlando (1961), a expressão "processo de enfer
magem". Aquela autora propôs tal expressão no contexto da relação enfer
meiro/doente. Entendia que uma situação de enfermagem compreende três
elementos básicos: o comportamento do doente; a reacção da enfermeira; e as
acções da enfermeira que foram planeadas para beneficio do doente. A inte
racção mútua destes elementos, constituem o que Orlando (1961) designou
como o "processo de enfermagem".
Contudo, esta conotação inicial com a relação foi-se perdendo à medida
que o conceito evoluía (Varcoe, 1996). Mais tarde, o conceito foi trabalhado
por um grupo de teóricas da Universidade Católica da América, as quais
delinearam as suas diversas fases. De acordo com Mason & Attree, (1997),
quer a proposta inicial de Orlando (1961), quer este trabalho posterior, for-
necerrrnos indicadores que sugerem que o processo de enfermagem tem as
suas raízes na teoria geral dos sistemas de Von Bertalanffy. Por esta ordem
de ideias, o processo de enfermagem seria um sistema, constituído por diver
sos subsistemas, os quais seriam os seus diversos componentes ou fases (ver
figura 13).
Figura 1 3 - 0 modelo do processo de enfermagem baseado na teoria geral dos sistemas
Fonte: Mason & Attree, 1997
Apesar da identificação desta raiz teórica, na enfermagem nunca foi
desenvolvido um trabalho sistemático de definição dos limites do sistema ou
das relações clínicas entre os seus subsistemas (Mason & Attree, 1997). O
185 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
processo de enfermagem tem sido usado essencialmente como um instru
mento para a prática dos cuidados. Ou seja, trata-se de um conceito pensado
pelos teóricos, que, podendo ter múltiplas utilidades, nomeadamente na
investigação, acaba por ser proposto como orientador da prática.
Talvez por essa razão ou pela forma como foi implementado, o processo
de enfermagem teve alguma dificuldade em ser aceite. Tal foi o que aconte
ceu em Inglaterra durante os anos 70 do século XX, onde, apesar dos líderes
fazerem a apologia deste modelo para a prática dos cuidados (MacFarlane,
1976, 1977), se constatou uma dificuldade enorme na sua implementação
(Mason & Attree, 1997). Também em Portugal se verificou idêntico fenóme
no, ainda que mais tarde.
Concomitantemente, têm-se desenvolvido algumas críticas ao processo de
enfermagem, tendo estas, no entanto alguma polarização. Ou seja, tanto
pode receber uma determinada crítica como a oposta. Contudo, as mais con
tundentes atribuem-lhe epítetos como, reducionista, dedutivista, burocrático
e ainda de criar uma barreira entre o enfermeiro e o doente (McHugh, 1986;
Hagey & McDonough, 1984, Barnum, 1987, Henderson, 1987, Fonteyn &
Cooper, 1994).
Benner (1984) produziu uma crítica de natureza um pouco diferente ao
processo de enfermagem, realçando nomeadamente que o mesmo pode
reprimir a criatividade, o raciocínio intuitivo e o desenvolvimento de com
portamentos de perícia. Como que a dar força a estes argumentos Field
(1987) e Fonteyn & Cooper (1994), assinalaram que é menos provável que os
enfermeiros peritos usem o processo de enfermagem como um sistema com
pleto, baseando-se mais na intuição e/ou nos julgamentos clínicos alicerça
dos na experiência.
Apesar destes posicionamentos Meleis (1987, 1991, 1997), ao definir os
conceitos fundamentais do domínio de enfermagem propõe o "processo de
enfermagem" como um dos constituintes desse núcleo. Ao atribuir-lhe esta
centralidade, confere-lhe uma elevada importância. Apesar disso, reconhece,
por um lado, que existe muita falta de investigação, e por outro, alguma con
trovérsia acerca deste conceito. Assim, esta autora entende que se devem
_ = _ _ = - _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ _ = = = = = = = = = _ _ = = = = = _ „ _ _ „ = = = _ _ _ „ „ „ = _ _ _ _ . _ „ _ _ _ _ . . , 8 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
desenvolver estratégias no sentido de ultrapassar as criticas polarizadas que
se têm produzido. Propõe que haja uma maior concentração no dominio
especifico de enfermagem, com investigação sobre questões concretas como
por exemplo, o processo de enfermagem no cuidado aos idosos ou no cuidado
a pessoas submetidas a quimioterapia. Deste modo, desenvolver-se-iam
diversas teorias relacionadas com o processo de enfermagem, fundamentan
do de modo substantivo este conceito e contribuindo para a melhor caracte
rização do domínio de enfermagem. Meleis (1987, 1991, 1997) entende ainda
que o movimento dos diagnósticos de enfermagem pode ser encarado sobre
este ponto de vista. Ou seja, como uma forma de investigar e teorizar um dos
componentes do processo de enfermagem. Este movimento teve a sua origem
nos Estados Unidos da América, sendo muito impulsionado pela North Ame
rican Nursing Diagnoses Association (NANDA), a qual define diagnóstico de
enfermagem como, um julgamento clínico sobre a resposta da pessoa, famí
lia ou comunidade a um problema de saúde actual ou potencial e o qual pro
videncia a base para a intervenção terapêutica e para o alcançar dos objecti
vos pelos quais os enfermeiros são responsáveis (Carpenito, 1991). De acordo
com esta definição percebe-se que o quadro conceptual que lhe está subja
cente é o denominado "padrões de resposta humana". Este quadro concep
tual divide o estado de saúde da pessoa em nove padrões de resposta huma
na (i.e., trocas, comunicação, relação, valorização, escolhas, percepção,
conhecimentos e sentimentos), com base nos quais, um grupo de trabalho,
estruturou uma taxionomia de diagnósticos de enfermagem (Carpenito,
1991; Sorensen & Luckmann, 1998). Essa taxionomia foi proposta e aceite
na 7a conferência da NANDA, tendo sido revista várias vezes desde então.
Como alternativa a esta taxionomia diagnostica, nos anos 80, foi propos
ta uma outra por Gordon (1987), a qual radicava no conceito de "padrões de
saúde funcionais". Com base nesta perspectiva, a construção do diagnóstico
de enfermagem pressupõe a recolha de informação acerca das 11 categorias
funcionais (i.e., percepção de saúde-gestão de saúde! nutrição-metabolismo!
eliminação; actividade-exercício; sono-repouso,' cognição-percepção! auto-
percepção,' papéis e relações sociais,' sexualidade-reprodução; coping-
187 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
tolerância ao stress; valores-crenças). A grande diferença face ao anterior
sistema taxionómico é que, com base neste, se está atento a um determinado
padrão de funcionamento e não a um momento. Torna-se assim possível, não
só perceber os padrões disfuncionais ou diagnósticos de enfermagem, mas
também os padrões funcionais ou pontos fortes da pessoa.
Entretanto o Conselho Internacional das Enfermeiras {International
Council of Nursing - ICN) tem vindo a desenvolver, há alguns anos a esta
parte, uma taxionomia diagnostica designada, Classificação Internacional
para a Prática de Enfermagem (CIPE). Esta taxionomia pretende ser uma
classificação de fenómenos, acções e resultados de enfermagem que descre
vam a prática (CIE, 2000). São múltiplos os projectos que têm sido levados a
cabo em diversos países com base nesta taxionomia. Também em Portugal
se processa idêntico fenómeno com diversos projectos em curso em diferentes
serviços, algumas vezes suportados em trabalhos de investigação, como é o
caso de Silva (2001).
Face a isto, como se pode compreender o "Processo de Avaliação Diagnos
tica"? De acordo com a definição atrás produzida, é indubitavelmente, o
modo encontrado pelas enfermeiras para perceberem a situação dos doentes,
na conjugação das perspectivas, vivencial, biomédica, e de ajuda, de modo a
poderem prestar os cuidados respectivos. Ou seja, é um processo de raciocí
nio clínico utilizado pelas enfermeiras, que culmina num diagnóstico descri
tivo sistematicamente actualizado, tal como é expresso nos "sucessivos reen
contros". Nesta acepção, o "Processo de Avaliação Diagnostica" é um elemen
to de um processo mais amplo que será o processo de cuidados ou processo
de enfermagem.
Assim sendo, o "Processo de Avaliação Diagnostica" compreende clara
mente uma componente diagnostica. Contudo, e de acordo com os dados, não
se pode dizer que esta componente diagnostica seja conduzida sempre de
modo absolutamente consciente e no sentido de atribuir um rótulo diagnós
tico a uma determinada situação. Vem, de algum modo, ao encontro da pro
posta de Benner (2001), quando descreve o modo de agir das enfermeiras
peritas. Diz aquela autora que "a perita, que tem uma enorme experiência,
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
compreende, (...) de maneira intuitiva cada situação e apreende directamen
te o problema sem se perder num largo leque de soluções e diagnósticos esté
reis" (Benner, 2001, p. 58). Isto parece ser o que acontece com algumas das
enfermeiras. Principalmente o observado na prática das enfermeiras, parece
orientar-se neste sentido. Recordo que atrás, quando procedi à análise dos
dados, fiz referência a uma certa capacidade de apreensão gestáltica que as
enfermeiras parecem manifestar e que as leva a dirigirem-se a um doente e
não a outro, a fazerem uma determinada pergunta e não outra qualquer.
Será que esta capacidade resulta dessa perícia acumulada, mesclada por um
elevado conhecimento de cada doente? As diferenças verificadas entre as
enfermeiras e já referidas noutros momentos, reforçam o que acabei de
dizer. Ou seja, no grupo que participou neste estudo, as enfermeiras que
conjugam uma certa experiência, com uma determinada atitude reflexiva,
com a formação, parecem demonstrar de modo mais evidente esta capacida
de.
Relativamente ao rótulo diagnóstico, entendido este no sentido abreviado
em que é usado por quase todas as taxionomias vigentes, parece não existir.
Efectivamente o que parece existir é um rótulo descritivo o qual evidencia de
modo variável, em função da situação, as características essenciais da mes
ma. Este traduz a leitura que a enfermeira faz da situação e engloba ele
mentos da tripla perspectiva que a enfermeira usa ao olhar para a mesma,
ou seja, vivencial, biomédica e de ajuda. Esta perspectiva é perceptível
essencialmente nas interacções entre as enfermeiras, quando trocam infor
mações entre si acerca dos doentes e respectivas famílias ou quando são
questionadas acerca de um doente.
Uma outra característica específica do "Processo de Avaliação Diagnosti
ca" e que se enquadra na perspectiva de Benner (2001), atrás referida, é a
sua utilização como um instrumento imbuído na acção e dificilmente des-
trinçável da mesma. Ou seja, tal como já foi referido e excepto num primeiro
momento, não existe separação entre um momento de avaliação diagnostica
e um posterior de planeamento e de acção. A avaliação diagnostica está
imbuída nos cuidados, numa relação de tal modo próxima que se torna difícil
189===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
perceber onde começa e onde acaba. Contudo, está presente porque se perce
be que a acção não obedece a uma rotina, sendo antes alterável constante
mente em função da situação que a enfermeira tem perante si. Por outro
lado e excepto no primeiro encontro, este instrumento é ao mesmo tempo de
avaliação e re-avaliação da situação da pessoa ou da família ao longo do
tempo.
Ao evidenciar estas características, pretendo insinuar que o processo de
enfermagem não é utilizado na prática dos cuidados? Não, de todo. Entendo
tão só, na linha de pensamento de Meleis (1991, 1997), Benner (2001) e
Chenitz & Swanson (1984), que o processo de enfermagem é, em primeira
análise, o processo de raciocínio clínico do enfermeiro e que as característi
cas do mesmo poderão estar relacionadas com o contexto onde aquele desen
volve a sua prática de cuidados. Por esta ordem de ideias, entendo ainda que
o mesmo carece de ser investigado, desvendando-se não só as características
do processo, mas também as características do diagnóstico propriamente
dito. É também nesse sentido que Chenitz & Swanson (1984), propuseram
um sistema que denominaram como "trazendo à superfície o processo de
enfermagem". Este consiste basicamente no desenvolvimento de um traba
lho indutivo que permita identificar sistematicamente, descrever e analisar
a dimensão processual de enfermagem inerente e enraizada na prática quo
tidiana.
Por último, uma referência para um outro aspecto que reputo de grande
importância. Recordo que o desiderato deste trabalho é compreender a natu
reza da relação enfermeiro/doente num determinado contexto. Dado que
estou a falar da acção de profissionais de saúde, considero razoável dizer que
é expectável que a mesma tenha características terapêuticas. Contudo, tal
só se verificará se assentar num processo de avaliação diagnostica dinâmico
que lhe permita 1er de igual modo a realidade e responder de acordo com
isso. Penso que o "Processo de Avaliação Diagnostica" tal como aqui foi apre
sentado, reúne essas características e adquire, assim, uma importância cen
tral no processo de relação enfermeiro/doente. Ou seja, o "Processo de Ava-
_ = = = = = = = - _ _ _ = = = = = = = = = = - - _ _ _ „ = = = = = = = - _ _ _ = = = = = = = = = = = _ „ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ „ | 9 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
liação Diagnostica" torna-se assim num elo fundamental na intervenção
relacional terapêutica desenvolvida pela enfermeira.
Recordo a propósito o conceito de processo de enfermagem de Orlando
(1961), o qual entrava em linha de conta com, o comportamento do doente, a
reacção da enfermeira e as acções da enfermeira planeadas para benefício do
doente. O "Processo de Avaliação Diagnostica", compreendido neste contex
to, seria como que o catalizador que permitiria a inter-relação entre aqueles
elementos.
Ou seja, e para concluir, a intervenção relacional terapêutica pressupõe
um processo de enfermagem (Smith, 1991) e este não pode existir sem uma
qualquer forma de avaliação diagnostica.
5.4 - A NATUREZA DA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE: O "PRO
CESSO DE INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA DE ENFERMAGEM"
Na caracterização do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enferma
gem", procederei de modo semelhante ao anterior. Ou seja, apresentarei o
constructo tal como foi categorizado a partir dos dados resultantes das
diversas fontes (i.e., entrevistas às enfermeiras, entrevistas de admissão,
observação e entrevistas aos doentes), realçando as semelhanças e diferen
ças. Terminarei identificando as características fundamentais do constructo,
e a sua evolução ao longo do processo de relação.
Sobre o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" começo
por salientar que se t ra ta de um constructo que congrega o essencial da
intervenção da enfermeira junto do doente. Sendo assim, e se tivéssemos
como referência uma perspectiva linear da acção do enfermeiro, seria pres
suposto que a mesma ocorresse após o "Processo de Avaliação Diagnóstico".
Contudo e por força de algumas das características que atrás atribuí aquele
processo, existe claramente uma sobreposição no tempo entre a ocorrência
da avaliação diagnostica e da intervenção (ver figura 14). Assim, pode-se
dizer que o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" se inicia
durante a entrevista de admissão, momento do primeiro encontro entre a
enfermeira e o doente, e se prolonga no tempo até ao final da relação.
191 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 14 "Processo de Avaliação Diagnostica" versus "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem evolução consi
derando a dimensão temporal.
Legenda: "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" —► "Processo de Avaliação Diagnostica" ►
De algum modo, podese afirmar que o início é discreto, pois não se conse
gue estabelecer com precisão, qual é o momento durante a entrevista de admis
são, em que a enfermeira, paralelamente à avaliação diagnostica, inicia um
registo diferente vocacionado para a intervenção. Podese contudo perceber que
a partir de um determinado momento, aquela começa a utilizar elementos que
lhe foram fornecidos pelo doente para dar início a um processo diferente.
5.4.1 O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a partir
das entrevistas de admissão
Considerando o carácter evolutivo desta intervenção, começarei por a carac
terizar com base nos dados recolhidos a partir das entrevistas de admissão.
Assim, e como primeiro elemento desta caracterização, destacamse os dois con
ceitos principais deste constructo, "Gestão de sentimentos" e "Gestão da infor
mação". Na prática clínica, um e outro estão intrinsecamente interligadas e
complementamse. Pode contudo, acontecer que em determinados momentos,
um ou outro ganhe alguma preponderância na acção.
5.4.1.1 A "gestão de sentimentos"
Começo por caracterizar a "Gestão de sentimentos", justificando a sua
designação. A l i teratura consultada não é unânime relativamente à designa
ção mais adequada, parecendo prevalecer, por vezes, uma certa confusão
— _ _ ™ _ _ ^ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ » _ _ _ , 9 2
Dissertação de Doutoramento
Os ulentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
conceptual entre sentimento e emoção (Strongman, 1998). A falta de unani
midade é ainda mais evidente no que se refere à taxionomia das emoções ou
dos sentimentos. Face a isto, decidi optar pela proposta de Damásio (1995,
2000). Este autor diz que uma emoção pode sempre gerar um sentimento se
desenvolvermos o necessário mecanismo de consciencialização da relação
entre o objecto e o estado emocional do corpo (Damásio, 1995). Ou seja, o
sentimento é um outro patamar especificamente humano, uma vez que
envolve a consciência. Este outro patamar dá-nos "flexibilidade de resposta
com base na história específica das nossas interacções com o meio ambiente"
(Damásio, 1995, p. 148). Assim, e de acordo com este autor, podem existir
emoções sem sentimentos, emoções com o correspondente sentimento, mas
também sentimentos sem a emoção respectiva. Estes últimos são o que
Damásio (1995, 2000) chama os sentimentos de fundo, os quais têm um
carácter mais persistente (mais estável) e dão tonalidade à nossa forma de
estar no mundo, tendo uma relação directa com a motivação e com o estado
de humor.
Face ao exposto entendo que a intervenção das enfermeiras é dirigida à
gestão dos sentimentos por duas ordens de razões. Primeiro porque se dirige
aos sentimentos expressos pelos doentes. Pelo que, se os expressam é porque
têm consciência deles. Segundo, porque se dirige também ao estado de humor
percebido dos doentes, correspondendo este a um sentimento de fundo.
A justificação para começar a caracterização pelo conceito "Gestão dos
Sentimentos", é-me dada pelos doentes. São eles que dizem que quando che
gam a este serviço estão cheios de medo, ansiedade, abatimento e fragilida
de. Ou seja, o que predomina são os sentimentos, muitos deles "à flor da
pele". Para além disso, no momento em que a enfermeira e o doente se
encontram pela primeira vez, aquela pode não saber mais nada sobre o
doente, para além dos dados de natureza biomédica. Apesar disso, e porque
os sentimentos são demasiado evidentes, sendo que a enfermeira também os
intui pela experiência clínica que detém, ela pode de imediato começar a
geri-los. Relativamente aos modos como o faz, separei-os em duas categorias
(ver diagrama 4)'
193 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
S Gestão da expressão de sentimentos;
S Gestão dos sentimentos expressos.
Diagrama 4 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" Gestão de Sentimentos (entrevistas de admissão).
^Concessão de espaço e apoio na áGestão da exprès- / expressão de sentimentos são de sentimentos i |„ , _ , ..
rautar expressão de sentimentos ^Racionalização áDesmitificação llNão generalização f Explicação dos sintomas Transmissão de segurança
\ Antecipação e proposta de soluções Outros
Oferta de disponibilidade
Gestão dos senti-/ mentos expressos
Jncentiva/enqu-' adra a esperança
Disponibiliza contacto personalizado )isponibiliza espaço para
/colocação de dúvidas )isponibiliza ajuda para
resolver problemas Disponibiliza cronograma
, personalizado Disponibilidades diversas
jlncentivo genérico da esperança
Incentivo específico da esperanç a (com base em dados clínicos) 'Incentivo da esperança de controlo dos efeitos secundários Define os limites da esperança
Incentiva esperança de retorno à vida normal
icentiva capacidade de luta
A primeira categoria (i.e., "Gestão da expressão de sentimentos") justifr
ca-se porque, a enfermeira é detentora da experiência clinica que lhe permi
te saber que os doentes chegam "cheios" de sentimentos. Apesar disso, acon
tece muitas vezes uma de duas situações^ ou a inibição perante uma pessoa
estranha (i.e., a enfermeira) se impõe e impossibilita a expressão de senti"
194 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
mentos pelo doente; ou então este "descarrega" uma avalanche de sentimen
tos sobre a enfermeira. Por tais razões, frequentemente a enfermeira precisa
de gerir a expressão de sentimentos utilizando uma de duas estratégias,
respectivamente: ou concede espaço e apoia a expressão de sentimentos; ou
então pauta a expressão de sentimentos, tentando que os mesmos sejam
expressos, mas paulatinamente.
Nos dois exemplos abaixo apresentados, constatanrse duas formas dis
tintas de conceder espaço à expressão de sentimentos. No primeiro caso
estamos perante um incentivo não verbal e de natureza compreensivo e
compassivo da expressão de sentimentos. No segundo, tratase de uma con
cessão verbal de espaço para expressão de sentimentos.
...D.A.— Ninguém me t inha dito isso. E ele disseme .... mostrou assim uma maneira, como quem diz "olha a franqueza dela, a foiteza". Pronto eu estou aqui para aquilo que Deus quiser. Não me importo e não tenho prazer nenhum da vida {aqui emocionouse e a sua voz embargouse), já não vale a pena {a enfer
meira agarroulhe as mãos com as suas). Enfrento a vida .... enfrento a morte como enfrento a vida. E depois disselhe "Sr. Dr°, eu o que tenho é um cancro". E lá em casa todos sabiam, mas ninguém me queria dizer nada.... (EAA 070502)
...Esposa A doença .... o cancro. É assim que a Sra enfermeira quer que eu lhe diga não é? O meu marido também sabe porque o Dr. já lhe disse. A gente tam
bém tem que t ra tar as coisas como elas são {emocionouse e ficou chorosa). Sr. C. Eu t inha era dores de barriga .... E n f Pode chorar {dirigindose à esposa), pode chorar à vontade.... (EAC
220402)
O exemplo que se segue é demonstrativo de um certo modo de pautar a
expressão de sentimentos. De facto constatase um tom, utilizado pelo doen
te, que é um misto de desânimo com uma certa agressividade. Em determi
nado momento, a enfermeira, parece introduzir um elemento estranho no
diálogo, com o objectivo de interromper este tom. Para o efeito focaliza a
atenção num elemento concreto, ainda não valorizado pelo doente'■ o penso.
Deste modo, interrompeu e desviou o curso do diálogo.
...Enf Queria que me contasse um bocadinho o que é que se passa consigo. Sr. F. Ah, o que é que se passa comigo... Enf Sim. Sr. F. O que é que a Sra quer que lhe diga do que é que se passa comigo? E n f Quero que o sr. me diga o que é que se sabe do que é que se passa consigo, o que é que lhe disseram .... Sr. F. O que se passa comigo é que há 2 meses ou 3 que ando nesta vida e ... pronto não há meio. Vim para aqui para o hospital há 2 meses.
195===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os entermeiros: Construção de uma relação
E n f Aqui p a r a es te hospi ta l? Sr. F. Sim. Acho que começaram por retirar aqui um gânglio, daí para a frente começaram a fazer análises ... Enf1 Ainda tem aí o penso para fazer, não é? Sr. F. .... e o gânglio .... não o penso já foi depois ... tinha aqui uns coisinhos para tirar.... Enf Então e ainda usa aí o penso?... (EAF 150702)
Esta última estratégia pode ser entendida de dois modos diferentes e não
necessariamente mutuamente exclusivos. Como forma de defesa do doente.
Isto é evitando que o doente se exponha demais perante um desconhecido o
que poderá conduzir a bloqueamentos futuros. Ou então evitando sentimen
tos com os quais tem dificuldade em lidar. Pode ainda ser utilizada como
forma de a enfermeira se defender de uma avalanche de sentimentos que
não conseguirá gerir.
A concessão de espaço e apoio à verbalização é porém, a situação mais
frequente. Caracterizase pela concessão de espaço físico concreto e de tem
po, uma vez que as entrevistas de admissão decorrem em gabinete próprio,
em ambiente de privacidade e sem limite de tempo muito rígido. Para além
disso, a enfermeira adopta uma atitude de apoio não verbal à expressão de
sentimentos. Esta passa pelo modo como se coloca no espaço face ao doente
(ver figura 15), mas também pelo modo como o toca, principalmente em
determinados momentos ou como guarda silêncio em alguns outros, tal como
ficou patente no exemplo atrás apresentado. E ainda por mensagens verbais
de reconhecimento da dificuldade da vivência do doente, valorização do sofri
mento e estimulação da sua manifestação, manifestação de compreensão
pelo desânimo do doente, entre outras.
Figura 15 Croqui do posicionamento da enfermeira e do doente durante a entrevista de admissão
■̂ Cadeira da enfermeira
Cadeira da doente
familiar
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Todavia, a maioria do esforço no que diz respeito à "Gestão de sentimen
tos" é dirigida para a "Gestão dos sentimentos expressos". Como oportuna
mente mostrarei, os sentimentos dos doentes são expressos em quase tudo o
que diz e faz. Ou seja, o medo, a ansiedade, a angústia, entre outros, podem
não ser expressos de forma linear, escondendo-se antes atrás de cada olhar,
de cada pergunta ou de cada silêncio.
Deste modo, a gestão dos sentimentos expressos serve-se de um conjunto
muito diversificado de instrumentos, muitos dos quais se confundem com a
"Gestão de informação" ou se diluem em atitudes e gestos extremamente
difíceis de captar. Os principais instrumentos categorizados com base nos
dados resultantes das entrevistas de admissão podem distribuir-se por dois
grupos e são^
•/ Promoção da confiança
o Racionalização,'
o DesmitificaçãO)'
o Não generalização;
o Explicação dos sintomas;
o Transmissão de segurança,'
o Antecipação e proposta de soluções
o Oferta de disponibilidade!
•S Incentivo da esperança e perseverança
o Incentivo/enquadramento da esperançai
o Incentivo da capacidade de luta.
A "Promoção da confiança" visa dar resposta a um conjunto de sentimen
tos (e.g., medo, insegurança, angústia, ansiedade) frequentemente expressos
pelos doentes e normalmente associados à doença oncológica e a esta fase
específica do processo (i.e., início de tratamento quimioterápico). A "Promo
ção da confiança" consubstancia-se através dos vários instrumentos que a
integram e que passarei a caracterizar.
A "racionalização" consiste na atitude da enfermeira de explicar as
razões da existência de determinado sentimento, servindo-se para o efeito de
argumentos que têm a ver com a natureza médica e/ou psicossocial da situa-
197 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de um;i relação
ção. É um instrumento normalmente usado perante a manifestação de
determinado tipo de sentimentos reactivos do doente, tais como tristeza,
desalento, ansiedade, entre outros. Digamos que pretende transmitir uma
mensagem de normalidade da existência e da manifestação daqueles senti
mentos, tal como é patente nos exemplos seguintes.
...Sr. F. - A minha cabeça não dá mesmo para nada, isto está numa situação que não ... E n f — É perfeitamente natural.... (...) Sr. F. - Muitos, muitos. É a vida,... isto pode resultar não é, isto tem pessoas que .... mas ... Enf1 - É perfeitamente natural que o sr. se sinta assim.... (...) Sr. F. - Eu cheguei a ver pessoas que detestam. Não podia ver pessoas a conversar que ficava tão ... Enf" - E perfeitamente natural Sr. F.. Sr. F. - ...abalava para o quarto .... E n f - As pessoas não fazem isso por mal, porque querem saber, mas quem está dentro da doença, é muito complicado.... (EAF - 150702)
D. L. - (...) Fora isso eu estou nervosa claro. E n f - Pois isso é natural, e é o primeiro dia e não sabe o que é e isso tudo, não é? (EAL3 - 100702)
A "desmitificação" insere-se na mesma linha de raciocínio do anterior,
contudo, neste caso centra-se sobre situações concretas, normalmente mitifi
cadas pelo doente e às quais está associado um ou vários sentimentos (e.g.,
medo das repercussões de um hipotético atraso no início do tratamento,
mitificação da quimioterapia, incompreensão e mitificação do jargão técnico
ou dos resultados analíticos). Face a isto a enfermeira desenvolve uma
intervenção de explicação e/ou demonstração desmitificadora da situação,
numa atitude de calma mas com convicção no que está a dizer. Para acen
tuar esta convicção serve-se muitas vezes da sua experiência e de exemplos
de outros doentes. O exemplo abaixo apresentado, refere-se à desmitificação
dos possíveis efeitos prejudiciais do atraso no início da quimioterapia.
...Enf - Por isso este tempo todo .... Porque o que é normal, quando a pessoa é operada, mais ou menos no prazo de um mês, deve começar a fazer os tratamentos. Por isso é que ele já está atrasado. Mas também no caso dele é um bocadinho diferente, porque é assim, porque ele teve um penso que se manteve durante quase um mês, não é? Também foi por causa disso. E enquanto tem ainda a ferida aberta não pode fazer quimioterapia. Está bem? Por isso, muito atrasado não, não pense nisso, porque, por ele ter esse penso assim, mesmo que tivesse vindo cá à con-
Disscrtação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
sulta não podia iniciar os tratamentos. Portanto se calhar estamos na altura certa de começar.... (EAC 220402)
A desmitificação pode ainda servirse de um outro instrumento que é a
"Não generalização" (ver extracto abaixo). Porque a enfermeira conhece a
representação da doença, do serviço e do tratamento, frequentemente, tenta
desmitificar as situações fazendo apelo para a não comparabilidade das
situações entre as pessoas. Também porque sabe que, na sala de espera, os
doentes parti lham experiências e que tal pode ser devastador para quem
está a chegar.
...Enf* ■ E assim, o t ratamento que o Sr. vai fazer é uma coisa simples, não é daqueles tratamentos ... também porque isto, como sabe, o cancro é diferente, consoante o sítio onde está implementado, consoante está numa fase inicial ou numa fase mais avançada, ... estas coisas não são iguais para todas as pessoas. Cada pessoa, tem o seu problema e a sua situação que não é igual à de outra pessoa. Está perceber? Isto cada pessoa .... e mesmo os medicamentos estão adaptados a cada situação (EAC 220402)
A "Explicação dos sintomas" é outra forma de desmitificação e justificase
porque estes doentes desenvolvem uma tendência de sobrevalorização de
qualquer sintoma, relacionandoo de imediato com a doença oncológica. Esta
situação exige gestos muito específicos para a gestão dos sentimentos que
lhe estão associados. Ou seja, perante o relato de um determinado sintoma a
enfermeira procede à sua exploração, quer através da colocação de pergun
tas concretas que lhe permitam uma caracterização precisa ou então pela
observação e inspecção directa. A explicação subsequente resulta dessa inda
gação, ganhando assim a força de assentar numa apreciação clínica in loco.
Este é um exemplo, entre muitos outros, em que se conjuga, à volta de
um determinado fenómeno presente pelo doente, a avaliação diagnostica
com a intervenção terapêutica de enfermagem, nesta última está envolvida
a gestão de sentimentos e de informação, tendo como objectivo terapêutico a
diminuição da ansiedade e do sofrimento. Respondese assim a um fenómeno
complexo (i.e., com perspectivas diversas), com uma intervenção complexa.
Para conseguir tal desiderato é necessário ser detentor de saberes específi
cos. O extracto abaixo apresentado é disso um bom exemplo.
1 9 9 = = = = „ = = , _ _ _ _ _ _ . _ — — _ =
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
...D. J. — Eu andava cheia de medo se por causa da inflamação não poderia fazer os tratamentos. E n f - A Sra tem tido febre? D. J. - Não, não tenho tido. E n f - As análises estão boas. D. J - Estão boas. A Sra terrrnas aí. EnfH - (Ao mesmo tempo vê as análises) Estão boas, estão....(EAJ - 090502)
Um outro instrumento que reputo de grande importância é o que deno
minei "Transmissão de segurança". De algum modo está subjacente a diver
sos outros (e.g., "desmitificação", "explicação dos sintomas") e consiste na
utilização de mensagens estruturadas com convicção e que sejam geradoras
de um sentimento de segurança. Esta intervenção da enfermeira dirige-se a
uma insegurança e intranquilidade que por vezes se sobrepõe a tudo o resto
e que se relaciona com o tratamento de quimioterapia e respectivos efeitos
secundários. Para o fazer a enfermeira socorre-se dos seus conhecimentos,
da sua experiência, de argumentação racional construída a partir de dados
clínicos do doente e exemplos de outros doentes, como é patente no extracto
que se segue. Neste caso só uma forte convicção na mensagem da enfermeira
poderá gerar alguma segurança. Contudo, e porque a enfermeira sabe que o
grau de insegurança e intranquilidade são elevados e que tal interfere com a
percepção e a compreensão cognitiva, sabe também que precisa de repetir
esta intervenção diversas vezes e conjugá-la com outras, das quais mais
abaixo falarei, mas sempre com uma atitude de abertura e aceitação.
...Filha - Pois já lhe t inham dito que o cabelo caía. Enf8 - Não, não. O tratamento que ela vai fazer, com estes medicamentos que ela vai fazer,(...) com este tratamento que agora vai fazer não vai cair o cabelo. Por isso pode estar tranquila em relação a isso. Em relação a outro tipo de sintomas, em princípio também não vai ter assim nada de especial. Nem náuseas, nem vómitos nem nada. Porque é um tratamento, ... digamos assim, são medicamentos que não têm muito esses efeitos. Porque isto aqui há muito tipo de medicamentos, dezenas de medicamentos. Há uns que são mais agressivos que outros. Aqueles que a sra vai fazer são realmente dos mais ... dos mais fracos, entre aspas. São aqueles que não provocam muito esses efeitos, está bem. Portanto já fica mais tranquila em relação a isso. Pelo menos isso não a preocupa assim tanto. Filha - Porque disseram logo que aqui não sei quê ... Enf8 - Não, não. Quem é que lhe disse isso? Filha - ...(hesita na resposta, dando sinais de que não quer revelar a fonte). E n f - Bem não interessa. D. L — A dra disse que talvez caísse. E n f - Qual dra? Esta daqui? D. L — Sim. Talvez caísse.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Enf3 - É assim, é provável que note o cabelo assim mais fraquinho, mas cair não. Com estes tratamentos não. Com estes medicamentos não provoca a queda. É natural que sinta o cabelo assim um bocadinho mais molinho, que caiam assim alguns cabelos mais que o habitual, .... D. L. — Oh, agora já ele me anda a cair, veja lá. E n f - Mas assim cair ... D. L.- Ainda não comecei a fazer o tratamento já ele anda a cair. E n f - Mas cair para ter que comprar uma cabeleira ou para ter que pôr um lenço ou outra coisa qualquer, não. Não precisa de contar com isso porque isso não vai acontecer. Nós temos tanta gente a fazer só estes dois medicamentos e nunca aconteceu nada disso. Portanto também não vai acontecer consigo. D. L. - Está certo.... (EAL1 - 150702)
Outro instrumento que também complementa os anteriores é a "Anteci
pação e proposta de soluções". Ou seja, ao mesmo tempo que são descartadas
as ocorrências improváveis é feita a antecipação das prováveis para aquela
pessoa e aquela situação clínica específica (i.e., com o diagnóstico médico X e
a fazer o tratamento Y), mas conjugada com as soluções de que se dispõe
para as controlar. Antecipa assim a vivência dos problemas reais, mas em
ambiente controlado e ao mesmo tempo que aponta soluções. É o que se veri
fica no exemplo abaixo relativamente à possibilidade de ocorrência de dois
efeitos secundários prováveis.
...Enf - E se algum dia estiver assim com os valores (analíticos) um bocadinho mais para baixo, o que também é normal isso acontecer, não tem problema, depois há coisas que a gente dá para as coisas crescerem. São os factores de crescimento, que é para poder aguentar o tratamento. Aquilo que às vezes acontece que os doentes se queixam um bocadinho é nos dias a seguir ao tratamento, amanhã, depois de amanhã, uma certa dor, uma dor torácica, porque isso tem a ver com ... desde que não seja muito intensa, porque se for muito intensa recorra logo cá à da gente. Não está cá a Dra T. mas há aí outros médicos da oncologia... (EAF-150702)
Um dos instrumentos a que atribuo maior importância na gestão dos
sentimentos é a "Oferta de disponibilidade". Esta pode também ser entendi
da como uma forma de presença e de compromisso e caracteriza-se por uma
razoável gama de actividades que a materializam. Assim, uma das formas
de oferecer disponibilidade é através da disponibilização de um contacto per
sonalizado para o doente. Ou seja, é facultado a cada doente um cartão com
o nome da enfermeira, o número do telefone do serviço e o do telemóvel pes
soal, tal como se constata no extracto abaixo. E ainda dada a indicação de
que podem usá-lo quando quiserem, a qualquer hora do dia ou da noite.
201 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
...Enf1 - (...) A Sra liga para cá ou vem aqui ou passa aqui, eu dou-lhe o meu n° de telemóvel, se for preciso alguma coisa, está o n° aqui do telefone da unidade. Se eu não estiver, está outra das minhas colegas que sabe informar tal e qual, ... o Dr. agora está de férias mas a gente temos que ir resolvendo ou com outro médico. Não vale a pena é estar lá a passar mal e a gente podendo ....(EAL1 -100702)
É também disponibilizado um espaço para colocação de dúvidas, sejam
elas de que natureza forem. Este espaço é essencialmente de natureza tem
poral e afectiva. Ou seja, de algum modo, é dada a garantia de que disporá
sempre do seu tempo para responder às dúvidas do doente e de que tal será
feito como boa vontade.
...Enf - Não quer fazer mais pergunta nenhuma?... (EAJM - 050802)
...Enf - Queria fazer alguma pergunta Sr. M.? Tem assim dúvidas, algumas dúvidas ou alguma coisa?... (EAM - 050802)
Outra forma de manifestar disponibilidade é através da disponibilização
de ajuda para a resolução de problemas diversos. Alguns destes problemas
têm a ver com os procedimentos clinico-burocráticos os quais, podendo pare
cer muito fáceis a quem trabalha num hospital, são um verdadeiro que-
bra-cabeças para o público em geral. Acresce a isto o facto de a capacidade
destes doentes e famílias para lidarem com problemas, aparentemente ele
mentares, poder estar diminuída. Face a esta conjugação de factores, as
enfermeiras criaram mecanismos organizacionais de facilitação dos circui
tos. Mas ainda acrescentam a estes a disponibilidade para ajudar a resolver
outros, como se verifica no exemplo abaixo.
...Mulher - Outra pergunta. O atestado que ele tem só dá até sexta-feira. Agora onde é que vamos, como é que isto funciona para ele ... Enf* - Quer continuar à mesma de atestado, é? Mulher - Pois, que ele não está em condições de trabalho. E n f - Pois, então eu falo já ... (EAF - 150702)
Também é manifestada a disponibilidade de personalizar o cronograma
dos tratamentos. É conhecido o enorme impacto da doença e dos tratamentos
subsequentes na vida do doente e da família. Sendo muito deste impacto
inultrapassável, algum não o é. Tal é o caso do cronograma dos tratamentos.
É então feita uma gestão em que se tenta, por negociação, conjugar a vida do
doente com as exigências de rigor do tratamento, mas utilizando as margens
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
de manobra que existem, tal como se exemplifica no extracto abaixo apre
sentado. Assim, sempre que possível, dá-se prioridade à vida pessoal e fami
liar. Atribui-se grande importância à presença do doente num acontecimento
familiar (e.g., casamento, baptizado, férias), se for essa a importância que o
doente lhe atribui.
...Esposa - Tinha vontade em que nós fossemos para umas termas onde descansássemos, .... Enf3 - Mas isso podem ir à mesma que a gente organiza a quimioterapia consoante isso, está bem? Mas se quiserem combinar isso podem combinar que nós aqui podemos antecipar três ou quatro dias o que permite estar mais uns dias fora. Não convém é expor-se muito, ir para a praia e ficar ali horas, ... (EAC -220402)
Para além das disponibilidades referidas, a enfermeira disponibiliza-se
ainda para ajudar a ultrapassar outras dificuldades colocadas pelo doente e
que passam pela facilitação do contacto com o médico, com outras enfermei
ras, etc.
O "Incentivo da esperança e perseverança" é, digamos assim, a "outra
face da moeda" na gestão dos sentimentos. Ou seja, ao mesmo tempo que se
apazigua a insegurança tentando desmontar os diversos sentimentos
expressos, é necessário também dar ao doente algo a que se possa agarrar.
Esse algo está dentro dele e é para aí que a enfermeira o vai tentar encami
nhar. Os dois instrumentos que irei caracterizar a seguir inserenrse nesta
linha de actuação.
O primeiro deles é de grande importância na gestão dos sentimentos no
geral e na prossecução deste último objectivo em particular e é denominado
"Incentivo/enquadramento da esperança". Como característica geral deste
instrumento posso destacar o seu duplo sentido, aliás subjacente na própria
denominação. Ou seja, poder-se-á dizer que todos os doentes precisam sentir
que existe alguma esperança (de salientar que não estou a falar de esperan
ça de cura); contudo, muitos doentes precisam enquadrar a sua esperança.
Sendo mais preciso. Se a enfermeira depara com um doente em desespero,
ela desenvolve um conjunto de actividades tendentes a incentivar a esperan
ça. Este não comporta o incentivo da esperança vã. Poder-se-á então pensar
que quando o prognóstico médico é mau, não há esperança que resista. Con-
203 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
tudo tal não corresponde à realidade na medida em que, mesmo nesses
doentes é possível ter a esperança de não ter dores, ter um razoável grau de
conforto e bem-estar ou então e de modo mais pragmático, a esperança de
viver o suficiente para alcançar um determinado objectivo ou para resolver
um dado problema. No primeiro dos dois exemplos abaixo apresentados é
patente a veiculação da esperança de controlo dos efeitos secundários. No
segundo exemplo percebe-se a valorização de dados clínicos sugestivos de
uma elevada hipótese de remissão, sendo então a quimioterapia apresenta
da como a forma de evitar futuras ocorrências.
... E n f - (...) É verdade que também dá essas náuseas, essa indisposição, mas nós temos medicamentos, a Dra prescreveu já aqui medicamentos que a gente lhe há_de dar, a Sra não vai abalar sem levar, se a gente por algum lapso se esquecer a Sra diz, "olhe, faltam os meus medicamentos por causa dos vómitos". Se houver alguma coisa, se vir que aquilo não faz efeito, vamos lhe dar umas ampolas e uns comprimidos e isso, a Sra diz-nos alguma coisa. Diz sempre, sempre que haja algum problema de diarreias ou .... de alguma coisa, a Sra telefona-nos.... ( E A L 3 - 100702)
E n f A. - Não havia gânglios positivos? Não falou em número de gânglios positivos, nem nada disso. Sr. C. - Ele disse que tinha tirado uns 7 ou 8 e não viu mais nada. Ele até disse, "faço de si um homem novo". Enf3 A. - Isso é muito bom sinal, porque é sinal que agora este tratamento é mais um tratamento preventivo... (EAC - 220402)
Existem contudo, alguns doentes que apresentam uma elevada renitên
cia em aceitar qualquer possibilidade de esperança. Nesses é então necessá
rio proceder a uma contextualização e enquadramento, servindo-se a enfer
meira para o efeito, quer dos dados clínicos do próprio doente, quer de
exemplos de outros doentes. Também se encontram doentes com uma espe
rança desmesurada. Neste caso a enfermeira procede a uma definição pro
gressiva dos limites da esperança, a qual acaba por estar presente de forma
sub-reptícia, em mensagens da mais diversa ordem. O primeiro dos exem
plos que apresento de seguida, enquadra-se no contexto de um diálogo mais
longo, em que o doente expôs alguns dos seus projectos de futuro. Face a isso
a enfermeira sentiu necessidade de relembrar a incurabilidade da situação.
...Sr. F. - (...) E a vida. Isto pode resultar não é, isto tem pessoas que .... mas ... Enf* - É perfeitamente natural que o sr. se sinta assim. Mas também tem que acreditar que isto é mesmo assim, que hoje em dia já há tratamentos que ...
Dissertação de Doutoramento 204
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Sr. F. - É isso, é isso que eu penso. Enf3 - Estes tratamentos, ... pronto, curar, curar, em princípio não ... Sr. F . - É difícil. Mulher - Isso ele sabe.... (EAF - 150702)
Neste outro exemplo verifica-se que a doente vem convencida que o seu
problema está definitivamente resolvido e por isso, está animada de uma
esperança desmedida, a qual a enfermeira sentiu necessidade de pautar.
D. L. - A Dra M. disse-me, "a sra ia ter aí um grandessíssimo problema, mas agora acabou-se o problema". E n f - Pronto, então está a ver? D. L. - E então eu não sei... Enf1 — Se calhar foi isso mesmo que aconteceu. E assim D. L., se a sra está aqui connosco, sabe que serviço é este? Sabe que isto é um serviço onde se fazem tratamentos de quimioterapia? D. L. - Sim. E n f — Pronto. E os tratamentos de quimioterapia são tratamentos que são feitos quando as pessoas têm ou tiveram, tumores. Foram operadas a tumores e tumores que são malignos, porque é assim mesmo, a quimioterapia só é feita para esse tipo de situações. Agora, aquilo que me está a parecer que o Dr. A. lhe disse, foi que a sra foi operada e parece que correu tudo bem, e que ... só que é assim, se calhar isso não era assim tão bom como isso tudo e por isso é que tem que vir aqui fazer este tratamento. Estes tratamentos é para ajudar a operação. É para evitar que o mal volte a aparecer ou se porventura andar por aí alguma celulazinha ou alguma coisinha assim menos boa, isto vá tentar destruir. Está bem? A Dra M. não lhe explicou isto assim, não lhe falou mais ou menos? D. L. - Sim, mais ou menos. (EAL1 - 150702)
O outro dos instrumentos inseridos nesta subcategoria (i.e., "Incentivo da
esperança e perseverança") e também o último da "Gestão dos sentimentos"
é o "Incentivo da capacidade de luta". Sendo esta atitude muitas vezes con
siderada problemática, uma vez que se pode, através dela, culpabilizar a
vítima (i.e., o doente pode sentir-se culpabilizado por não ter capacidade de
luta), considero que tal não é provável neste caso. Efectivamente este ins
trumento é materializado através de um conjunto de actividades que pas
sam pelo aproveitamento das manifestações de capacidade de luta e/ou de
perseverança do doente. Ou seja, o doente, mesmo aquele sujeito ao maior
desespero, tem momentos em que manifesta alguma positividade ou capaci
dade de luta. E nesses momentos que a enfermeira aproveita para intervir e
estimular. Muitas das vezes essa estimulação é feita através da valorização
da importância de ter atitudes positivas e vontade de lutar, como se verifica
no exemplo abaixo apresentado. Outras vezes utiliza o raciocínio do doente
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
desmontandero e demonstrando através disso a sua importância e o seu
impacto positivo.
. . . E n f - V a m o s lutar, não é, vamos lutar para ver se isto ... Sr. M. — Exactamente Enf8 - ... para ver se isto consegue destruir o que está e para ver se fica bem. Sr. M. - Exactamente. Eu nunca fui desmorecido, também não herde ser agora. Já fui operado também várias vezes e nunca fui desmorecido.... (EAM - 050802)
Para concluir, é adequado sublinhar mais uma vez, que a divisão apre
sentada é de natureza didáctica, pois na prática clínica esta gestão é feita
usando diversos instrumentos em simultâneo e misturando a avaliação
diagnostica com a intervenção, mistura esta que é gerida de acordo com a
situação presente.
Face a isto e de modo geral, são de realçar na "Gestão de sentimentos" a
"Gestão dos sentimentos expressos", uma vez que é esta que ocupa a maior
parte do tempo da enfermeira e também a que tem mais impacto junto do
doente. Dentro desta são de destacar duas orientações com características
próprias:
V Uma dirigida à promoção da confiança através da explica
ção/desmistificação e onde pontificam instrumentos diversos (e.g.,
racionalização, transmissão de segurança,...), mas nos quais destaco
a oferta de disponibilidade, por a considerar essencial em termos de
transmissão de segurança;
S Outra dirigida ao incentivo da esperança e da capacidade de luta e
caracterizada predominantemente por uma postura proactiva mas
assente nas expressões do doente.
5.4.1.2 —A "gestão de informação"
O outro conceito chave da "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" é a
"Gestão de informação". Correndo o risco de ser repetitivo, sublinho de novo
que a intervenção da enfermeira só se compreende pelo conjunto dos dois
conceitos e não apenas de um. Por tal razão, ao explicitar este conceito, farei
diversas referências ao anterior (i.e., "Gestão de sentimentos"). Assim, este
= _ _ _ _ « = = = _ _ _ _ _ „ = = = = = = „ . _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ . „ _ = = „ _ _ _ „ _ „ _ _ „ „ _ _ _ _ _ _ 2 0 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
conceito compreende apenas a categoria, "Explicação do processo de doen
ça/tratamento" (ver diagrama 5).
Diagrama 5 "Intervenção Terapêutica de Enfermagem" informação (entrevistas de admissão).
Gestão da
a be cS
a u
"a H o
-¾ <(D P, cd O)
o 1C3 O
a cu (D
o o ri S
-d o iS œ CD O
jíxplicação do processo de doença/tratamento
Descodificação da informação ,4 dada por outros técnicos
Como? C Explica a part ir dos conhecimentos do doente
«O processo de doença
O quê? ^O tempo presente e futuro
Explicação do cronograma
( O processo de tratamento no tempo
A execução de ECD.
O processo de/ ^ A administração tratamento \ de quimioterapia.
jQ que são? ^Explicação dos efeitos/ secundários \ i
* Como lidar?
Ë patente a preocupação de desenvolver este processo de explicação com
base no que o doente sabe. Relembro que a enfermeira se preocupou em
recolher essa informação durante o "Processo de Avaliação Diagnostica".
Durante este processo, a enfermeira recolheu ainda informação acerca da
informação dada por outros técnicos. Acontece que, algumas vezes, o doente
não tem noção do verdadeiro significado da informação que possui. Por tal
razão a enfermeira desenvolve um processo de descodificação dessa informa
ção. Para esse efeito usa uma linguagem adequada ao doente, considerando
não só elementos de natureza cognitiva e cultural mas também relativos ao
estádio de aceitação da situação. Face a isto, as explicações acerca do pro
cesso de doença são estruturadas de modo sempre variável, em função do
doente, parecendo ter como objectivos, não só a compreensão do processo,
mas também a adesão às medidas propostas.
No exemplo abaixo apresentado, é justificada a razão da tosse e ao mesmo
tempo, é sugerido que a quimioterapia vai contribuir para o controlo desse
sintoma, favorecendo assim a adesão ao tratamento.
207 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
...Enf - Porque a tosse já sabe do que é. Primeiro tem que tentar resolver o problema, tentar que ele desapareça daí, que diminua, diminua o mais possível.. .(EAF -150702)
A explicação do processo de tratamento é feita com base em três aspectos
distintos. No primeiro tenrse em consideração uma dimensão temporal e
explica-se o processo de tratamento no contexto presente mas também a sua
projecção no futuro. É então explicado o cronograma ao doente e feito um
esforço de adequação daquele às especificidades deste. Esta explicação por
vezes é reincidente ao longo da entrevista, quer pelas dificuldades de con
centração dos doentes, quer porque estes se vão lembrando de alguns aspec
tos que levam à alteração do cronograma, no já referido esforço de adequação.
...Enf3 — Dia 14 tem análises. Tem análises e tratamento. Eu só vou acrescentar aqui, análises mais tratamento, que é a única coisa que falta. E depois no dia 31 tem consulta e Rx. (...) D. A. - Tenho consulta,.... E n f - Sim e Rx. D. A. - Consulta e Rx. E n f - Sim. É assim, hoje é tratamento, hoje é dia 7, de hoje a oito, dia 14, tem análises e tem outra vez tratamento. Mas é menos tempo do que hoje, está bem? Hoje é um dia grande, vai ser um dia grande, só vai estar despachada lá para as quatro da tarde, mais ou menos. Hoje é um dia em que o tratamento é grande, a gente já fala sobre isso, está bem? ... (EAA - 070502)
Todavia, a explicação não se limita a meras questões de calendário. A par
com isso, também o processo de tratamento ao longo do tempo é explicado.
Ou seja, com base nos conhecimentos e na experiência da enfermeira e tal
como se constata no exemplo abaixo, é dada uma perspectiva da totalidade
do processo de tratamento para situações idênticas e quer ele decorra neste
serviço ou não. É contudo de realçar e porque estas explicações se baseiam
no conhecimento e na experiência das enfermeiras, que esta capacidade é
tanto mais evidente quanto mais desenvolvidas estiveram aquelas duas
variáveis.
D. A. — Quantos tratamentos é que vão ser? E n f - Olhe é assim, aquilo que é habitual em situações como a sua, não costumam ser assim muitos. Costumam ser 5, 6 tratamentos. Cada tratamento são dois dias. É hoje. Hoje é o dia mais comprido, hoje é o dia em que a Sra vai estar cá mais tempo connosco, e volta de hoje a oito dias, está bem? De hoje a oito dias é muito rápido, é mais ou menos meia hora, três quartos de hora. D. A. - A Sra en f escreva-me aí num papelinho se faz favor.. (EAA - 070502)
Dissertação de Doutoramento
Os ulcnles c os enfermeiros; Construção de uma relação
É desenvolvida também uma explicação acerca da necessidade de execu
ção periódica de exames complementares de diagnóstico. A enfermeira expli
ca a periodicidade e o tipo de exames a executar e dá orientações precisas
sobre os procedimentos burocrático-administrativos associados a marcações
e afins, como se pode verificar nos extractos que apresento a seguir. Explica
também as razões para a execução dos exames complementares de diagnós
tico, contextualizando-os na necessidade de controlo da eficácia do trata
mento. Esta última perspectiva é mais notória no segundo extracto apresen
tado como exemplo. Contudo, e porque a enfermeira sabe que existe uma
elevada ansiedade associada à execução destes exames, é dada especial
atenção à sua desmitificação e é colocado ênfase na disponibilidade para
apoio, se for caso disso.
E n f - Depois com este Rx que vai fazer no dia 23, porque já no dia 23 vai fazer um Rx ... Sr. F. — Isso é aonde? E n f - É cá. É tudo cá em Évora. Sr. F. - Ela depois aponta que eu ... E n f - É tudo aqui, neste hospital ou ali no outro...(EAF - 150702)
E n f - P r o n t o . Estes são exames que o Sr. vai fazer mas não é com pressa, está bem? É quando calhar, porque isto não é nada urgente. São exames que fazem parte das rotinas daqui. Todos os doentes que vêm fazer quimioterapia devem ter estes exames feitos. Normalmente as pessoas fazenrnos antes. Ora o Sr. fê-los mas não estão cá no hospital. Mas são coisas simples. E um Rx do tórax.... Sr. O - Mas eu, .... antes ... Enf8 — Sim. Mas agora vai fazer outro que é para ficar cá, está a perceber? Sr. C. - Sim .... E n f - É um Rx e é outra "eco". Uma "eco" aí ao seu fígado. E para ver se está tudo bem com o fígado, está bem? E isso que está aqui pedido. Mas isto dá ali à L. (secretária de unidade) ,... a sua Senhora agora fica com isto. Ela vai ali fora e depois a L. t ra ta destas marcações todas. Está bem? ...(EAC - 220402)
Subjacente a todas estas explicações está uma chamada de atenção para
a longevidade do tratamento, para as implicações que, por isso, terá na sua
vida e para a necessidade de perseverança. Porém e paralelamente, é forne
cido a informação relativa aos apoios durante esse periodo de tempo.
O segundo aspecto considerado na explicação acerca do processo de tra
tamento, é o que diz respeito à administração de quimioterapia. É dada
atenção detalhada a todos os pormenores, explicando de modo adequado a
cada doente e por vezes, fazendo concomitantemente uma inspecção do esta-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
do das veias. Caso o doente seja portador de cateter e porque a enfermeira
conhece a representação que o mesmo tem, é feita uma explicação cuidada
com sublinhado especial para as suas vantagens e tentativa de desmitifica-
ção, como se pode verificar no exemplo que de seguida apresento. É por fim
pedida a colaboração do doente durante o tratamento, tentando assim, tor
nado num elemento activo e vigilante. Esta solicitação não é apenas retóri
ca, na medida em que efectivamente o doente pode ser de primordial impor
tância na detecção de qualquer incidente durante a administração. Para isso
a enfermeira solicita o relato de qualquer alteração detectada, seja ela de
que natureza for.
...Enf - (...) O tratamento é feito como? E feito numa veia,... é feito através do sangue. A gente tem que picar uma veia, para depois através dessa veia o medicamento ir a todo o lado, não vai só à barriga, vai a todo o lado. Se houver por aí algumas coisinhas onde quer que seja, o medicamento vai tentar destruí-las. Mas depois, o tipo de tratamento que o Sr. vai fazer, é um tratamento que tem que ficar a fazê-lo durante dois dias. E para evitar o internamento, esses cateteres, chamanrse cateteres isso que lhe puseram aí, é como se fosse um .... é uma borrachinha que o Sr. tem aí dentro e que está dentro de um dos seus vasos do coração está a perceber? Portanto nós quando picamos isso,.... isso é para evitar o quê? É para evitar que o Sr. fique internado, porque antigamente com esses tratamentos o Sr. t inha que ficar cá internado, com um soro aqui na veia (ao mesmo tempo tocava-lhe no braço) durante dois ou três dias, está a perceber, para fazer o tratamento completo. Agora, pondo esses cateteres, que é assim que isso se chama, evita isso. O Sr. vai com uma seringazinha.... mas logo depois mostramos-lhe,... vai com uma seringa, uma coisa assim pequenina e gordinha (exemplificava o tamanho com as mãos), vai com isso aí dentro do bolso, dentro do bolso da camisa, ou dentro do bolso das calças ou aí dentro (junto ao corpo)... a gente logo depois explica-lhe. Vai com isso preso com um alfinete e o Sr. fica com aquela bombinha, como a gente lhe chama, durante 48 horas, está bem? Que é até amanhã, amanhã tem que cá voltar outra vez à da gente, a dra expli-cou-lhe como é que era?... (EAV-220402)
O terceiro e último aspecto é o relativo à explicação dos efeitos secundá
rios. Esta é feita com base no que foi referido quando falei do "Processo de
Avaliação Diagnostica". Expliquei então que uma das dimensões desse pro
cesso era desenvolvida no sentido de tentar perceber o que o doente sabe.
Pois é exactamente a partir do que o doente sabe que os efeitos secundários
são explicados, tal como é notório no primeiro dos dois exemplos abaixo
apresentados. E ao fazê-lo a enfermeira tenta, em simultâneo, explicar o que
são e como lidar com eles. Deste modo estabelece também uma ligação com o
que atrás disse sobre a gestão de sentimentos. Ou seja, o desvendar de algo
™____^____________„ 2 j 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
pode ser ainda mais ameaçador do que a sua ignorância. Então a enfermeira
avança de imediato com uma proposta de solução possível para lidar com as
eventuais dificuldades. Quando a enfermeira explica a forma de lidar com os
efeitos secundários incide especialmente nas suas manifestações sobre
algumas das actividades de vida que mais poderão preocupar o doente (e.g.,
a alimentação, a eliminação - ver segundo extracto abaixo apresentado),
mas também sobre as possibilidades farmacológicas de controlo.
... Enf3 - ( . . . ) Agora vamos conversar uma coisa. Em relação aos efeitos secundários. O que é que são os efeitos secundários? São os efeitos que quando se fazem estes medicamentos ... o medicamento é feito pela veia, não é, e vai tentar destruir o que há por aí assim de menos bom. Mas não vai só destruir isso, vai destruir o sangue, vai destruir os glóbulos vermelhos, vai destruir tudo isso, porque isto são medicamentos assim um bocadinho agressivos. Agora, em princípio, aqueles efeitos todos que a sra já tem ouvido falar de certeza, que pessoas que fazem estes tratamentos que vomitam muito, que passam muito mal, que o cabelo cai .... é assim, as coisas são diferentes de pessoa para pessoa, em relação a si aquilo que vai acontecer, o cabelo não vai cair de certeza, está bem. Por isso pode estar tranquila, não sei se alguém já lhe tinha falado acerca disto, já lhe tinham dito .... (EAL1 - 150702)
.. .Enf- (...) Em relação à alimentação, a Sra pode fazer a sua alimentação normal. No dia em que a Sra vai daqui, que faz os medicamentos, era melhor a Sra
não comer certos e determinados alimentos muito fortes, porque este medicamento geralmente faz os enjoos, a pessoa enjoa, .... não ir muito à cozinha, porque a pessoa enjoa com o cheiro. Pode haver um cheiro que a Sra enjoe, às vezes até perfume, sem ser comida. É para a Sra estar já preparada. Eu gosto sempre de dizer uma coisa. É o seguinte, as pessoas às vezes ficam muito chocadas quando chegam cá ao serviço e enjoam uma da gente. Mas isso é normal ... (EAJ - 090502)
Assim, sobre a "Gestão de informação", e em termos conclusivos, é de des
tacar a preocupação em explicar quer o processo de doença, quer o de trata
mento. Para o efeito têm em consideração os conhecimentos que o doente já
possui. É dada particular relevância ao processo de tratamento, relativamen
te ao qual é considerada uma perspectiva temporal, mas acima de tudo o aqui
e agora, incidindo sobre a administração de quimioterapia e os efeitos secun
dários da mesma. Subjacente a toda a explicação está uma atitude solícita e
disponível, que se cruza com o já referido na "Gestão dos sentimentos".
A análise do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" que
ocorre durante a entrevista de admissão termina com uma apreciação de
natureza geral, realçando os aspectos mais relevantes. Assim e pelo que ficou
dito relativamente à gestão de sentimentos, entendo que sejam de realçar os
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
aspectos que têm a ver com a promoção da confiança e o incentivo da esperan
ça e perseverança. Estes dois aspectos são complementares entre si, tal como
já foi dito. Ou seja, ao mesmo tempo que se tenta apaziguar a ansiedade e a
insegurança, tenta-se também que o doente descubra meios que lhe permitam
encontrar um sentido. De todas as atitudes referidas como contribuindo para
a prossecução destes objectivos, entendo que seja de destacar a disponibilida
de, pelo seu carácter transversal e pela sua presença sistemática.
A gestão dos sentimentos é completada fazendo uso da "Gestão da infor
mação". Nesta sobressai o cuidado nos meios utilizados para proceder à expli
cação, tentando-se fazêdo a partir dos conhecimentos do doente e com uma
linguagem descodificada do ponto de vista do jargão técnico. Com base nisto,
procede-se a uma explicação cuidadosa e repetida do processo de doença e tra
tamento. Quer num caso como noutro existe a preocupação de incidir sobre o
aqui e agora e de apresentar soluções para as dificuldades que vão surgindo.
A característica mais relevante do "Processo de Intervenção Terapêutica
de Enfermagem" como um todo, é a sua natureza complexa. Esta resulta da
utilização de uma mistura de cada um dos elementos atrás referidos, de
modo sistematicamente variável em função de cada situação, a qual é cons-
tatável na prática clínica (ver figura 16).
Figura 16 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" -Perspectiva da complexidade global
212 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Nesta mistura complexa os papéis de gestão de informação e dos senti
mentos são intermutáveis. Ou seja, tanto se pode explicar para gerir senti
mentos, como se pode gerir sentimentos para que a pessoa perceba. Em
qualquer dos casos, a finalidade parece ser, aprender a viver com a situação
para alcançar algum benrestar .
5.4.2 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" a partir
dos dados da observação
Caracterizarei de seguida o "Processo de Intervenção Terapêutica de
Enfermagem" tal como foi categorizada a partir dos dados recolhidos através
da observação. Tal como aconteceu relativamente ao "Processo de Avaliação
Diagnostica", também neste caso serão assinaladas as diferenças face a
idêntico construeto, mas categorizado em contexto diferente. Assim e como
primeira grande diferença há que assinalar o facto de ser neste contexto
(i.e., sala de administração de quimioterapia) que ocorrem todos os cuidados
durante o resto de tempo do tratamento. De referir também que no espaço
onde tal acontece estão presentes, em simultâneo, diversos doentes, enfer
meiras, familiares, auxiliares de acção médica e ocasionalmente, médicos.
Um último elemento que considero relevante diz respeito a uma indicação
que é dada aos doentes na entrevista de admissão, no sentido de este serviço
passar a ser a porta de entrada do hospital para estes doentes. Estes acatam
esta indicação e passam a considerar este serviço uma plataforma de acesso
a todo o hospital.
Neste contexto a enfermeira tem perante si.:
S o doente/família, com toda a problemática individual que lhe está
inerente;
S o doente/família em interacção com a organização;
S o grupo de doentes presentes na sala, variável ao longo do período
de trabalho e sujeito às interferências de outros elementos.
Face a isto, a enfermeira acaba por organizar a sua intervenção à volta
destes vectores. Assim e obedecendo à ordem enunciada, começo por caracte
rizar a intervenção dirigida ao doente e família. As categorias que integram
213 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
este grupo são promoção da autonomia, promoção do respeito, promoção do
conforto, gestão da informação e gestão dos sentimentos (ver diagrama 6).
Diagrama 6 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"
Intervenção sobre o doente/família (dados da observação).
a CD ca
u
'a CD
Tá ctí o % «D
u CD
O ici o a CD
CD
Promoção da íutonomia
Promoção do ^respeito
► No Doente/Família . Promoção de conforto
Gestão da informação
autonomia no con
' trolo farmacológico
4Autonomia na gestão dos efeitos secundários
Autonomia na gestão do pro
* cesso clínicoburocrático
Autonomia na decisão relativa aos cuidados
'Autonomia na mobilização
Outras
(Pelo direito à informação
• Pela pessoa em sofrimento
Pela privacidade
Preocupação pelo incómodo causado pelos cuidados
► Proposta de medidas de conforto
Negociação de cuidados de conforto
Uso de meios auxiliares
Solicitação testemunhal
Modo Confronto com explicação
*■ alternativa
V Fim
1
Adequação de linguagem
Informar sobre procedi
mentos e processo
nformar sobre cronocrama
Gestão dos sentimentos reactivos
^Promoção da^ ' segurança
Gestão dos sentimentos!
.Antecipação
« Disponibilidade
1 Compromisso
Distracção
Afabilidade 'Promoção da esperança e v ^ Promoção da confiança/esperança perseverança >(_, ,. , _ . .
^Estimulação para a vida
— 214 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A "Promoção da autonomia" adquire uma importância assinalável pelo
facto de se t ra tar de um hospital de dia, ao qual os doentes vêm, no máximo,
apenas algumas horas de um dia por semana.
Isto significa que, a maior parte do tempo, o doente e família estão entre
gues a si próprios e são eles que têm que lidar com as intercorrências mais
diversas. A "Promoção da autonomia" é concretizada através da:
■S autonomia do controlo farmacológico»'
S autonomia na gestão dos efeitos secundários;
S autonomia na gestão do processo clínicoburocrático;
S autonomia na decisão relativa aos cuidados;
■S autonomia na mobilização;
S outras.
Como fio condutor a tudo isto podese dizer que a enfermeira fornece os
instrumentos e se mantém na retaguarda disponível para qualquer apoio,
mas o espaço é deixado ao doente e família.
Assim, e relativamente à "autonomia do controlo farmacológico", a
enfermeira fornece os medicamentos e explica como se tomam (ver extracto
abaixo). Porém, ajusta com os doentes e famílias os melhores horários para
os tomar, de acordo com os seus estilos de vida. Como alguma da terapêutica
é para ser ajustada em função da reacção dos doentes e da ocorrência ou não
de determinado tipo de fenómenos, é dada a informação e os meios de ava
liação da necessidade de a tomar ou não.
... A doente respondeu que ainda tinha dores e que o opióide transdérmico apli
cado no dia anterior, já t inha caído. De imediato a enfermeira alertou a doente que nesse caso é necessário recolálo ou aplicar um novo. Neste último caso tem que se refazer o esquema de aplicação. De imediato também, a enfermeira foi buscar um novo e aplicouo, alertando a doente para a necessidade de alterar o referido esquema...(DO 080702)
Procedimentos semelhantes são adoptados relativamente à "autonomia
na gestão dos efeitos secundários". A grande diferença entre uma e outra é
que, por vezes, os doentes e famílias desenvolvem estratégias para lidar com
esses efeitos que são eficazes. Essas estratégias podem não ter nada daquilo
que é hábito chamarse "cientificamente válido", contudo se o doente se sen
tir bem e a enfermeira avaliar a sua não malignidade para o processo, incen
215 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
tiva o seu uso. No exemplo a seguir apresentado, a enfermeira tenta fornecer
ao doente os meios (cognitivos e outros) para tentarem controlar os efeitos
secundários. Todavia, aceita a participação e sugestão de um doente relati
vamente ao uso de uma determinada estratégia.
...O doente apresenta um ar algo apreensivo e a enfermeira explica-lhe as características deste tratamento, os potenciais efeitos secundários e as medidas a adoptar. Fornece-lhe ainda um conjunto de medicamentos destinados a controlar os efeitos secundários e explica-lhe como os tomar. Nesta conversa participou também o Sr. A. porque um dos medicamentos que tem que ser ingerido, tem um sabor desagradável e aquele doente encontrou uma maneira de contornar esse sabor que foi dilui-lo em sumo de tangerina, estratégia que partilhou com os presentes. (DO - 010703)
Os doentes adoptam também outro tipo de estratégias na gestão dos efei
tos secundários como as alimentares. Nestes casos há duas variantes que
considero importante destacar. Uma diz respeito a uma atitude pouco orto
doxa no que diz respeito ao suposto principio da alimentação saudável. Ou
seja, pode acontecer os doentes manifestarem apetites pouco ortodoxos rela
tivamente ao que se considera ser uma alimentação saudável. Apesar disso
a enfermeira poderá não tentar contrariar, dado que em muitas situações o
apetite está tão seriamente afectado que se opta pelo principio de o doente
comer alguma coisa do que pelo de se alimentar correctamente.
A outra variante diz respeito às situações de doentes cujo prognóstico
médico é reservado. Nestes casos, aplica-se tudo o que atrás se disse não
como excepção mas como regra.
Relativamente à "autonomia na gestão do processo clínico-burocrático",
são dados os elementos que a facilitem. Todavia, é deixada ao doente a ini
ciativa da sua gestão. Ou seja, são dadas as explicações consideradas neces
sárias e as alternativas, quando existem, mas a decisão é deixado ao doente.
Algumas doentes manifestam um grau de autonomia na condução do proces
so clinico-burocrático maior que outros. Tal é caso do doente referido no
exemplo abaixo apresentado. O maior grau de autonomia parece acontecer
preferencialmente em pessoas com processos e vivências longas e com dife
renciação cognitiva. Noutros casos o grau de autonomia manifestado é
menor, contudo o mesmo é incentivado.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
...Trocam algumas palavras de cumprimento e alguns comentários acerca do facto de o doente estar atrasado relativamente ao previsto no cronograma do tratamento. Estes comentários não eram recriminatórios. Aliás o doente manifestava uma atitude demonstrativa de que geria o seu cronograma e que tinha consciência que tinha algum atraso. A enfermeira perguntou ao doente qual seria o tratamento que hoje viria fazer, demonstrando assim um elevado grau de confiança no discernimento deste. Aliás a enfermeira comentou isso mesmo dizendo: "Isto é que é! Aqui é o doente que diz qual é o tratamento!." O doente instalou-se no cadeirão, deu indicações de qual o braço e o local de punção, ao mesmo tempo que ia desenvolvendo conversa sobre o tratamento, fazendo referência à sua longa experiência e falando das informações que tinha relativamente a novos medicamentos que iam entrar no mercado e que ele não se importa de os testar de imediato. (DO - 270503)
A "autonomia na decisão relativa aos cuidados" consiste na solicitação ao
doente de colaboração na decisão relativa aos cuidados. Tal verifica-se com
uma frequência muito elevada, sendo mais patente nas decisões relativas
aos cuidados relacionados com o conforto. Em muitas outras situações a
decisão acaba por ser partilhada. Tal é o caso das decisões relativas ao local
de punção, como se verifica no exemplo abaixo. Em algumas outras de carác
ter mais técnico ou que estejam em causa situações que exijam uma decisão
e acção rápidas, prevalece a opinião da enfermeira.
...explicou a um dos doentes que tinha prescrito um ansiolítico, qual o objectivo a que se destinava e perguntou-lhe se o queria tomar. O doente acedeu...(DO -110702)
... Punciona H l e H3. Com este último combina o local mais adequado para efectuar a punção... (300702)
As enfermeiras tentam, tanto quanto possível, preservar também a
"autonomia na mobilização", quer seja a relativa ao desempenho nas activi
dades de vida diária, como a relativa às deslocações. Mesmo durante a
administração da quimioterapia são criadas condições para que o doente se
possa mobilizar, nomeadamente para se alimentar e para ir à casa de
banho, tal como se verifica no extracto abaixo apresentado. Relativamente à
autonomia nas deslocações para o tratamento, são enunciadas as possibili
dades que o doente tem (e.g., transportes públicos, ambulância, táxi), bem
como os apoios que existem para cada um deles e é deixada a opção ao doente.
...Entretanto a D. L. pediu para ir à casa de banho à enfermeira (...). Esta preparou a perfusão para este efeito, ajudou a doente a levantar-se, explicou-lhe como se deslocar com o soro, perguntou-lhe se precisava de ir acompanhada, ao que a doente respondeu que não, mas acompanhou-a até à porta, a partir da
217 = Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enlermeiros: Construção de uma relação
qual era visível a porta da casa de banho e indicoulhe qual o local. Apesar disso avisou uma auxiliar de acção médica no sentido de a acompanhar.... (DO
070703)
A "Promoção do respeito" é uma das formas de intervenção que considero
mais relevantes no contexto deste grupo, essencialmente pela dimensão de
dignidade que confere à pessoa. Sendo algo fácil de verbalizar, mas difícil de
concretizar, é pertinente explicar detalhadamente como se concretiza neste
caso. Assim, promovese o respeito com base em três vectores diferentes mas
complementares entre si que são:
•S O reconhecimento do direito à informação/justificação.'
■f O respeito pela pessoa em sofrimento.'
S O respeito pela privacidade.
A enfermeira reconhece que o doente tem direito a toda a informação e às
justificações relativas aos actos que lhe digam respeito. Pelo que, tanto se
sente no dever de justificar um atraso seu, como uma eventual demora ou
alteração no t ratamento ou alteração de procedimentos (ver primeiro dos
extractos abaixo apresentado). Por esta ordem de ideias, naturalmente que
informar o doente de todos os cuidados e da razão de ser das opções tomadas
é também um dever assumido pela enfermeira e consequentemente, um
direito reconhecido aos doentes. Normalmente associada ao direito à infor
mação está implícita a autodeterminação do doente, pelo que, após informar
o doente, a enfermeira solicita autorização para a realização de alguns cui
dados, como se constata no exemplo a seguir apresentado (ver segundo ex
tracto).
... Entretanto um soro acabou. Era o último. O doente chamou a enfermeira no sen
tido de o retirar. A enfermeira olhou e preparavase para o retirar mas entretanto foi solicitada para um doente na sala de urologia e explicou ao 1" o adiamento da retirada do soro e pediu desculpa...(DO 150702)
... Assim, heparinizou o cateter de H l . Para o efeito preparou previamente todo o material e dirighrse para o doente com tudo o necessário. Explicou ao doente o que ia fazer, pediu licença e iniciou o procedimento...(DO 160702)
O "respeito pela pessoa em sofrimento" manifestase através da adopção
de uma atitude compassiva perante os doentes que o expressam. Mas tam
bém se manifesta no facto de a enfermeira assumir que muitos dos cuidados
=========================================== 2 J g Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
técnico-instrumentais que desenvolve induzem sofrimento. Então, tenta
desenvolvê-los com o máximo de perícia, no intuito de minimizar o sofrimen
to induzido. Mesmo assim, pede desculpa pelo incómodo causado. Este pedi
do de desculpas é particularmente veemente quando se desenvolvem tenta
tivas falhadas (e.g., punção venosa). Como forma de obviar a isto as enfer
meiras desenvolveram estratégias que consistem na-
S solicitação de substituição feito pela enfermeira que faz duas tenta
tivas falhadas (ver primeiro extracto, abaixo apresentado); e
S aceitação tácita da preferência dos doentes pelas enfermeiras com
as quais têm relações preferenciais. A confiança dos doentes nos
gestos técnicos da enfermeira aumenta e o sofrimento parece ser
menor.
...Entretanto a enfermeira (..) tentou puncionar a D. F., tendo falhado duas tentativas consecutivas. Face a isso pediu desculpa à doente e solicitou a colaboração da enfermeira (...) para ser ela a tentar. Esta enfermeira conseguiu à primeira tentativa. (DO - 230603)
... (a enfermeira) muda finalmente local de punção de S2 explicando quais as razões e pedindo desculpa pela dor causada...(DO - 300702)
Outra forma de manifestação de respeito é através da "preservação da
privacidade". Esta tanto pode ser relativa à exposição de uma parte do cor
po, como de uma interacção verbal privada, tal como se constata no primeiro
dos exemplos abaixo apresentados. Assim, é frequente observar a enfermei
ra a pedir autorização para tocar no corpo do doente para realizar determi
nados procedimentos, principalmente quando estes implicam a exposição de
alguma das suas partes (ver extracto DO - 160702, atrás apresentado).
Outra forma de preservar a privacidade é através do uso dos cortinados
amovíveis. Outra ainda é através do uso do próprio corpo da enfermeira,
como barreira que se interpõe entre o doente e as restantes pessoas presen
tes na sala.
...A enfermeira, logo que teve uma oportunidade foi junto da doente, criou algumas condições de privacidade, nomeadamente, falando num tom de voz mais baixo e colocando a mão ligeiramente em concha ao lado da boca,... (DO — 050603)
219 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
...A enfermeira (..) dirigiirse para S2 com todo o material necessário à heparini-zação. Puxou muito ligeiramente a divisória entre os cadeirões. (DO — 250702)
A "Promoção do conforto" está relacionada com a "Promoção da autono
mia", mas também com a do respeito, principalmente no que tem a ver com o
"respeito pela pessoa em sofrimento". O principal objectivo é, tal como o seu
nome indica, o desenvolvimento de estratégias que visam promover o confor
to do doente. Assim, as estratégias de promoção do conforto incluem:
S Preocupação com o incómodo causado pelos cuidados!
S Proposta de medidas de conforto!
/ Negociação de cuidados de conforto.
A "preocupação com o incómodo causado pelos cuidados", principalmente
quando aqueles são indutores de desconforto, já anteriormente tinha sido
demonstrada. Contudo, aqui inclui outras medidas tendentes a minimizar
ao máximo o desconforto. Assim, a par com a manifestação de preocupação,
a enfermeira pede a sua substituição ou a ajuda de uma colega no sentido de
tentar alternativas menos incómodas. Também a sua atitude, quando prevê
que o cuidado é doloroso, é conduzida de modo a minimizar o sofrimento.
Normalmente começa por avisar o doente que o cuidado é doloroso. Ao mes
mo tempo vai desenvolvendo uma interacção que tem por objectivo, entre
outros, distrair o doente, como se pode verificar no exemplo que a seguir
apresento. Ou então adopta uma atitude de cariz sobreponível ao de uma
mãe perante o filho que acabou de se magoar.
... Esta doente mostrou-se bastante queixosa com tal procedimento {hepariniza-ção do "implantofix'). A enfermeira questionou-a se as queixas tinham só a ver com a punção ou também com o facto de ter que vir àquele serviço e que se confrontar com as situações que lá estão e que lhe farão recordar a sua. A doente negou tal explicação e diz que é mesmo o desconforto que a preocupa. A enfermeira foi sempre falando e tentando distrair a doente ao mesmo tempo que desenvolvia os procedimentos necessários. (DO — 220503)
A preocupação com o conforto é ainda extensível a outras situações tais
como as resultantes da doença ou do tratamento (e.g., inerentes ao efeitos
secundários). Aí, sempre que a enfermeira se apercebe de sinais de descon
forto e após os investigar, normalmente faz propostas de medidas que no seu
entender, irão minimizar o desconforto. No exemplo que a seguir apresento
_ ^ _ _ _ _ _ ^ _ „ , _ 220 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
constata-se a acção da enfermeira perante uma doente com uma situação
dolorosa muito intensa. Neste caso, a enfermeira, numa das suas incursões à
sala de espera, ao aperceber-se do estado doloroso da doente, desencadeou
um conjunto de medidas tendentes a resolver o problema. Transportou-a
para uma cama, deitou-a o mais comodamente possível e deixou de lhe dar
orientações ou de lhe fazer perguntas, para além das estritamente necessá
rias, colocando-as em alternativa ao familiar que se deslocou juntamente
com a doente. Ao mesmo tempo, apresentava uma solução para o problema
imediato e a longo prazo e acerca da qual ia incentivando a confiança.
...De seguida dirigiirse à outra doente e ao mesmo tempo que ia conversando com ela e com o familiar presente sobre detalhes do processo que estava a atravessar, ia desenvolvendo medidas tendentes a aumentar o conforto físico da doente (a doente tinha a cabeça apoiada no colar de Zimmens que, entretanto tinha retirado, a enfermeira pediu à auxiliar de acção médica que lhe trouxesse um resguardo. Com ele dobrado fez uma pequena almofada e colocou-a sob a cabeça da doente. Tapou-a unicamente com o lençol e tentou que se posicionasse comodamente). Entretanto informou-a do que se ia fazer para aliviar a dor no imediato e do que se ia fazer para aliviar a dor de modo consistente no dia-a-dia. . . . (DO- 040702)
Em casos mais complexos as medidas de conforto são negociadas com o
doente, no sentido de se adequarem às suas exigências.
A "Gestão da informação" é um modo de intervenção fundamental aos
cuidados em geral e à relação enfermeira/doente em particular. Como tal,
compreende-se que se considere como estando subjacente a muitos outros.
Neste modo de intervenção, penso que seja de realçar a atitude das enfer
meiras de informar sistematicamente os doentes de todos os procedimentos,
bem como da evolução do processo de saúde e de tratamento. Para esse efei
to servem-se de um conjunto de técnicas de comunicação que têm como
objectivo a facilitação do processo e a que mais abaixo farei referência. Este
modo de intervenção está no seguimento do que já se verificou na entrevista
de admissão, mas adquire aqui uma expressão muito maior, na medida em
que os procedimentos são sistemáticos e as alterações no processo frequen
tes. A informação contribui para a compreensão das atitudes e dos procedi
mentos das enfermeiras, logo contribui também para uma facilitação do
221 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
relacionamento. A informação facilita ainda a adesão às medidas ou às pro
postas terapêuticas.
Relativamente às técnicas de comunicação de que as enfermeiras se ser
vem e agrupadas sobre a designação de "Modo", começarei por fazer referên
cia ao "Uso de meios auxiliares". Caracteriza-se pelo uso de literatura,
quando tal é adequado, para auxiliar na explicação de determinados assun
tos. Não é uma técnica de uso indiscriminado, até porque alguns dos doentes
não sabem 1er, mas é usado em determinadas circunstâncias julgadas opor
tunas pela enfermeira e quando existe material disponível para esse efeito,
como é o caso dos protocolos analgésicos.
A "Solicitação testemunhal" é mais frequente e é usada preferencialmen
te nas interacções que ocorrem na sala e em grupo. Pressupõe um bom
conhecimento dos doentes, do estádio de vivência da doença e das suas capa
cidades de compreensão. Consiste na solicitação para que um determinado
doente, normalmente num estádio mais avançado de vivência do processo de
doença/tratamento, dê o seu testemunho perante um outro recém-admitido
ou a vivenciar uma determinada dificuldade, pela qual o primeiro já passou,
normalmente de forma positiva.
A "Confrontação com explicação alternativa" é usada normalmente em
situações em que o doente expressa a sua compreensão de um determinado
facto, a sua vivência ou representação. Nestes casos a enfermeira não impõe
a sua explicação como sendo a mais válida. Avança, isso sim, com uma outra
possível explicação, no sentido de o doente a considerar também como hipó
tese. Algumas das situações em que constatei a sua utilização mais frequen
te foi associado à auto-interpretação de sinais e sintomas.
A "Adequação da linguagem" é talvez das técnicas mais usadas e comum
a qualquer das categorias anteriores. Foi frequente verificar-se uma interac
ção entre enfermeiras no espaço da sala de quimioterapia com uso de lin
guagem técnica. Contudo, no momento em que eram interrompidas por um
doente, essa linguagem mudava em função do conhecimento que tinham
desse doente, mas deixando de lado, quase invariavelmente, a linguagem
técnica. O que acabei de dizer não é sinónimo do uso sistemático de calão
= = = = _ _ _ _ _ _ _ — = = = = = = = = = = = = = _ _ _ _ _ . „ = = = _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ . . _ _ _ _ _ _ . . _ _ = = = = „ _ 2 2 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
popular, embora não o exclua, porque também se verificavam situações em
que a linguagem tinha que ser adequada a pessoas com graus de diferencia
ção superior. Em qualquer dos casos, essa revelava-se uma técnica muito
eficaz na descodificação da hermética linguagem técnica da saúde.
Relativamente ao "Fim" e tal como já foi dito atrás, bem como pelos
exemplos que a seguir apresento, a informação não pode ser entendida no
sentido mais restrito do termo. Isto porque, neste caso, com a informação
visam-se sempre mais objectivos que a simples troca de dados relativos a
uma situação. Portanto, não se informa só para que a pessoa saiba, mas
também para que ela possa decidir, para diminuir a angústia, a ansiedade e
o medo, entre outros. Assim e apesar de as unidades de significação estarem
agrupadas em duas subcategorias (i.e., "Informar sobre procedimentos e
processo" e "Informar sobre o cronograma"), poderse-á dizer que o fim é
sempre múltiplo, tal como aliás é patente nos exemplos a seguir apresenta
dos. No primeiro desses exemplos paradigmáticos constata-se que, ao mesmo
tempo que se informa, insufla-se esperança no tratamento e tenta-se ade
quar o cronograma à vida da pessoa. Já no segundo caso se usa a informação
para tentar debelar um acesso de medo intenso por parte da doente. No
último dos exemplos, ao mesmo tempo que se cumpre um direito do doente,
tenta-se também gerir os seus sentimentos de apreensão e desconfiança e
construir a confiança.
...A enfermeira tentou ainda insuflar esperança no tratamento e explicar como o mesmo se iria processar e como é que poderiam organizar a vida, de modo a que o mesmo interferisse o menos possível. (DO - 120503)
...Nova doente deu entrada, a qual se foi sentar no cadeirão onde estava a D. R. A enfermeira preparou o material para a punção e dirighrse para junto da doente, ao mesmo tempo que ia falando com ela. A doente, sendo afável, expressava alguma apreensão. A enfermeira após ter procedido à punção e à colocação da perfusão em curso, procedeu à manobra de sifão para confirmar a funcionalidade da punção. Tal desencadeou uma expressão de pânico da doente que preocupou a enfermeira e a levou a explicar o porquê de tal procedimento e a tentar perceber o porquê de tal reacção. Para o efeito ficou a falar com ela durante algum tempo. (DO - 050603)
... A enfermeira preparou o material para a punção e puncionou, ao mesmo tempo que procedia a explicações sobre o que estava a fazer. Quando a sua quimioterapia chegou, após ter sido preparada na câmara de fluxo laminar, a enfermeira foi buscá-la e, antes de a colocar, mostrou-a ao doente dizendo-lhe que o tratamento era só aquilo, findo o qual se podia ir embora. O doente fez um tro"
223===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
cadilho com a pequena dimensão do frasco e a grande dimensão do efeito. A enfermeira explicoulhe que não era assim e pediulhe que se lembrasse do que ela lhe tinha dito durante a entrevista...(DO 050802)
Outro aspecto que carece de informação e explicação sistemática é o refe
rente ao cronograma. Efectivamente, este, apesar de ter sido combinado logo
na entrevista de admissão, pode sofrer alterações pelas mais diversas
razões, que vão desde as decorrentes da evolução da situação clinica, até às
resultantes das necessidades pessoais do próprio doente e/ou familia.
A semelhança da anterior, também a "Gestão de sentimentos" está sis
tematicamente presente e subjacente a todas as outras subcategorias. A
"Gestão de sentimentos" é um modo de intervenção de grande importância e
que, como tal, adquire centralidade face aos diversos modos de intervenção
da enfermeira. A semelhança do que se verificou na categorização construí
da a partir dos dados resultantes das entrevistas de admissão, também aqui
a gestão de sentimentos concretizase através da promoção da confiança e da
esperança e perseverança. Assim a "Gestão dos sentimentos" inclui os
seguintes elementos^
v' Promoção da confiança:
o Gestão de sentimentos reactivos,'
o Antecipação;
o Compromisso
o Distracção
o Afabilidade
o Disponibilidade;
S Promoção esperança e perseverança'■
o Promoção da esperança;
o Estimulação para a vida
Podese dizer que a promoção da confiança se inicia com a "gestão dos
sentimentos reactivos" (ver diagrama 6). Esta está direccionada para a ges
tão dos sentimentos resultantes do modo como o doente e família estão a
lidar com o processo de doença e tratamento. Para tal e sempre que a enfer
meira detecta sinais indicadores da presença de algum desses sentimentos,
pode interpelar directamente o doente. Esta interpelação tem o significado
_ _ _ _ _ = = = = „ _ _ „ = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ „ = = = _ _ _ _ = = _ _ _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ „ = = = = _ „ 2 2 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
de ser feita agora, por alguém que o doente e familiar já conhecem e em
quem aprenderam paulatinamente a confiar e que manifesta preocupação
com o seu benrestar . Tem também o potencial terapêutico inerente ao facto
de se conceder um espaço/tempo para verbalização das dificuldades. Aliás
esta concessão de espaço/tempo é usada de modo sistemático e intencional
pelas enfermeiras e é coadjuvado por uma escuta atenta dos conteúdos ver
balizados e pela sua exploração. Penso que seja oportuno relembrar que
durante a vivência do processo, ocorrem situações em que o doente projecta
a sua raiva sobre alguém ou alguma organização. Nessas situações, a con
cessão de espaço/tempo para verbalização e catarse, a ausência de sentido de
crítico da enfermeira e a atitude de escuta, contribuem para o doente e fami
liar gerirem os sentimentos. Todavia, esta é uma área em que algumas
enfermeiras manifestaram dificuldades, principalmente se aquela raiva se
vira contra elas.
Para além disso, a enfermeira serve-se ainda dos seus conhecimentos e
do seu carisma para desmitificar, seja o tratamento, um determinado sinto
ma, uma fase do processo ou um valor analítico. Naturalmente, no grupo das
enfermeiras existem diferentes níveis de conhecimento, experiência e caris
ma. Todavia, estas diferenças parecem tornar-se irrelevantes se existir uma
relação preferencial entre um doente e uma determinada enfermeira. Neste
contexto, esta desmitificação é feita com um misto de explicação de natureza
cognitiva, com uma atitude de compreensão do sentimento expresso e de
autoridade detentora de um saber conferido pela formação e experiência, tal
como se exemplifica com o extracto seguinte.
... Entretanto iniciou-se uma conversa sobre o medo que ele (o doente) tinha dos efeitos secundários. A enfermeira interrompeu o que estava a fazer e virou-se para ele, dando-lhe atenção. Reafirmou o que já lhe tinha dito antes e sublinhou o medo e a desconfiança que ele tinha. Tentou responder à ansiedade, acalman-do-o. Pedhrlhe para aguardar algum tempo e logo lhe daria razão. O doente começou então a contar a história da sua doença, de acordo com o modo como ele a interpreta (....). A enfermeira permanecia atenta e pedia um ou outro esclarecimento sobre a história... (DO — 050802)
Também pode acontecer que a desmitificação seja feita por antecipação.
Tal é o caso relativo à implantação de cateter, entre outros. A enfermeira
sabe à priori que a implantação de cateter para administração de quimiote-
225 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
rapia, é lida pelos doentes e familiares como sinónimo de agravamento da
situação e de entrada na fase terminal da doença. De posse destes elemen
tos, a enfermeira inicia a desmitificação de tal procedimento desde os pri
meiros momentos, desmontando esta representação e apresentando as
razões e as vantagens do cateter. Este é um procedimento frequente relati
vamente a outros factores, tais como, a possível ocorrência de alguns efeitos
secundários mais paradigmáticos (e.g., alopecia) ou da administração de
alguns fármacos cuja conotação entre os doentes é terrível (e.g., o "verme
lho"), como se constata no exemplo seguinte.
...Chegou a enfermeira à porta acompanhada da doente que tinha estado a entrevistar e do respectivo filho. Foi apresentando a doente a todas as pessoas que ia encontrando. Quando chegou à porta da sala explicou-lhe o que se estava ali a passar e disse-lhe, "está a ver?! Está a ver aqui alguém mal disposto ou a vomitar?" Explicou depois publicamente que a D. G., (...) estava apavorado com o tratamento que ia fazer, pelo que lhe tinham dito no exterior. Isto suscitou reacção dos doentes e das enfermeiras presentes no sentido de lhe demonstrarem que não era assim e que não tinha nada a temer. Quem se aprontou para a puncionar (...) desenvolveu este procedimento com especial cuidado, explicando tudo o que estava a fazer, se ia ou não doer e quais as consequências. Mos-trou-lhe os frascos que continham o tratamento para que ela visse que nenhum deles era o "vermelho" {epirrubicina), do qual lhe tinham dito particularmente mal. Garantiu-lhe ainda que não haveria efeitos secundários e se houvesse algum que seria facilmente controlável. A doente parece ter ultrapassado o medo inicial e começou a falar com toda a gente, mesmo com os outros doentes presentes, com bastante à vontade.... (DO - 160703)
A gestão dos sentimentos reactivos é uma preocupação permanente da
enfermeira. Desde que um determinado sentimento seja detectado a enfer
meira vai, ao longo do período de tratamento, desenvolvendo as mais diver
sas acções tendentes a ultrapassar a situação. Para tal vai-se servindo dos
diversos meios que tem ao seu alcance, alguns dos quais falarei mais adian
te, como por exemplo as actividades dirigidas ao grupo. Mas penso que seja
também de realçar o facto de, para além de haver uma enfermeira que, de
forma mais sistemática, conduz a interacção com aquele doente, diversas
outras enfermeiras e até auxiliares de acção médica, manifestarem preocu
pação e interesse.
Outra forma encontrada pela enfermeira para transmitir confiança e
segurança ao doente e família é através da "antecipação". Considero que
esta é uma das formas de intervir que confere um elevado profissionalismo à
Dissertação de Doutoramento 226
Os ulcntes e os enfermeiros: Construção de unia relação
actuação da enfermeira. Este modo de intervenção caracteriza-se pela capa
cidade que a enfermeira tem de, a partir dos seus conhecimentos dos proces
sos fisiopatológicos e vivenciais, resultantes da formação e da experiência
profissional, ser capaz de antecipar os acontecimentos e a part ir daí desen
volver medidas para os atenuar ou evitar. São diversos os exemplos dados,
mesmo noutras subcategorias, que ilustram o que estou a dizer. Nesta, pode
servir de exemplo, a antecipação que a enfermeira faz relativamente aos
efeitos secundários (ver extracto abaixo), realçando as garantias que dá,
resultantes da sua experiência profissional. Estas garantias ao darem con
sistência à sua atitude contribuem para aumentar a confiança dos doentes.
Também é um bom exemplo a antecipação das reacções dos doentes, por
conhecer as representações, quer do serviço, quer da doença e dos tratamen
tos.
Este doente (...) permanecia calado e à margem das discussões que se passavam na sala. A enfermeira dirigiu-se a ele com questões directas e concretas. Ou seja, dirigidas especificamente à sua situação. Para o efeito dirigiu-se a ele e sentou-se no cadeirão próximo (que estava desocupado), ligeiramente inclinada para ele e a falar em tom de voz baixa. As perguntas que fez pressupunham um conhecimento anterior da situação e do doente. O doente abriu um sorriso e incli-nou-se também ligeiramente para a enfermeira quando esta se lhe dirigiu e respondeu às questões colocadas de forma aberta, isto é, dando pormenores e acrescentando o que entendia como útil. As perguntas da enfermeira tinham a ver com os sentimentos do doente sobre o que estava a viver e sobre a evolução do tratamento e os possíveis efeitos secundários. O doente respondeu manifestando boa disposição e optimismo. A enfermeira alertou para a possibilidade de aparecimento de alguns efeitos secundários com o evoluir do tratamento.... (DO — 230603)
Mas também do ponto de vista biomédico, é patente esta capacidade de
antecipação. E manifesto o conhecimento que a enfermeira detém acerca dos
diversos tratamentos e dos efeitos esperados e indesejados. Pelo que, a par
tir do momento em que se inicia o tratamento, passa a fazer monitorização
em função desse conhecimento. Se em alguns casos esta atitude é discreta,
noutros é notória. Tal é o caso, por exemplo, da medicação analgésica. A par
tir do momento em que se inicia um determinado protocolo analgésico, é
desencadeado um sistema de monitorização em continuidade, para avaliar a
sua eficácia e eventualmente adoptar outras medidas. Sendo certo que isto
decorre da função da enfermeira e aparentemente, nada tendo a ver com a
227 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
componente relacional, constata-se que não é assim, pois o modo como é feito
denota preocupação e interesse e existência de soluções, contribuindo, por
tanto, para o aumento da confiança e da esperança dos doentes e familiares.
Na sequência natural deste modo de intervenção surge-nos um outro
denominado "compromisso". Este caracteriza-se pela capacidade da enfer
meira de assumir compromissos perante o doente. Estes compromissos são
da mais diversa ordem, e vão desde solicitações de ajuda dos doentes, que a
enfermeira se compromete a resolver (ver primeiro extracto), até aspectos
mais subtis e que são aparentemente compromissos implícitos e que têm a
ver com a continuidade da relação. Ou seja, com o facto de dar continuidade
à relação que se iniciou, através da continuidade na semana seguinte de
uma conversa, de uma manifestação de preocupação, de que não se esqueceu
do nome ou de um determinado pormenor, tal como se constata no segundo e
terceiro exemplos abaixo apresentados.
... Enquanto (...) procede à punção, H3 discute com a enfermeira forma de arranjar uma receita de um medicamento a que o doente atribui muita importância porque, segundo ele, foi o que lhe restituiu o apetite. A enfermeira compromete-se a resolver o problema.... (DO — 250702)
...O Sr. B. já estava sentado na cadeira que tinha escolhido. A enfermeira diri-ghrse a ele e cumprimentou-o com afabilidade e alegria e pergunta-lhe como tem passado, em continuidade do que se tinha passado na semana anterior. O doente respondeu que se tem sentido bem, mas que está preocupado com as veias... (DO - 140703)
... A recepção aos doentes, que já tinha começado na sala de espera, continuava agora de modo mais personalizado. Assim, a enfermeira dirighrse a SI {com quem já tinha estado a falar na sala de espera) com quem falou durante alguns minutos sobre alguns sintomas que a doente apresentava, resultantes dos efeitos secundários da quimioterapia. Tratava-se da hipersensibilidade ao sol. A enfermeira ouviu, explicou as causas e aconselhou medidas.... (DO - 160702)
Atribuo à capacidade de assumir e cumprir compromissos (ou de justifi
car porque não se cumpriram) uma importância determinante na construção
da confiança, elemento essencial no processo de relação. Esta capacidade
ganha ainda mais importância porque, de algum modo e em termos de
representação, os serviços públicos parecem ter a imagem de desresponsabi
lização individual.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A "distracção" é um modo de intervenção que se caracteriza essencial
mente pelo uso de estratégias que desviem a atenção do doente durante a
execução de procedimentos menos agradáveis ou até incómodos. Assim, por
exemplo pode-se iniciar uma conversa sobre um assunto que a enfermeira
sabe que dá grande alegria ao doente, no exacto momento em que se inicia
uma punção, tal como se verifica no primeiro dos exemplos abaixo. Ou então
iniciar uma interacção verbal que exija concentração ao doente, distraindo-o
assim do procedimento que está a ser desenvolvido, como se constata no
segundo exemplo apresentado. Ou ainda, ser particularmente afável e caute
loso ou envolver o grupo numa conversa mais alargada. Este conjunto de
acções desenvolvidas pelas enfermeiras parecem ser algo perfeitamente
natural e desenvolver-se a um nível quase subconsciente. Apesar disso, assi
nalo a sua eficácia. Efectivamente presenciei o desenvolvimento de procedi
mentos acerca dos quais os doentes manifestavam pavor e que, fruto destas
estratégia, o mesmo decorria com o doente em alegre cavaqueira com as
enfermeiras e sem referir qualquer queixa.
...A enfermeira começa de imediato a t ra tar do material necessário à heparmi-zação, dirigindo-se de seguida para junto da doente. Enquanto procedia à referida heparinização ia conversando com a doente sobre assuntos de natureza familiar, nomeadamente sobre os netos, ao que a doente respondia com manifesto agrado... (DO-010703)
...A enfermeira questionou-a se as queixas t inham só a ver com a punção ou também com o facto de ter que vir àquele serviço e que se confrontar com as situações que lá estão e que lhe farão recordar a sua. A doente negou tal explicação e diz que é mesmo o desconforto que a preocupa. A enfermeira foi sempre falando e tentando distrair a doente ao mesmo tempo que desenvolvia os procedimentos necessários. A partir de determinado momento a conversa entre a enfermeira e a doente passou para um tom de voz apenas audível às duas e assim se manteve durante algum tempo.... (DO - 220503)
Esta última asserção faz a ponte para o modo de intervenção seguinte
que denominei de "afabilidade". Poderá parecer estranha a introdução desta
subcategoria. Contudo, tal não me deixou a mínima dúvida em momento
algum. A afabilidade é parte integrante do modo de estar deste grupo de
enfermeiras e fiquei convicto que tem um papel importante no contexto da
relação com os doentes e familiares. A afabilidade está presente no contacto
inicial, bem como nos subsequentes. Ela é patente no modo como as enfer-
229==================-================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
meiras cumprimentam personalizadamente os doentes, tratando-os pelo
nome, expressando carinho, mas também no modo como os vão chamar à
sala para início da quimioterapia, como se mostram disponíveis, como rece
bem as pessoas (com um sorriso), como respondem às questões colocadas,
entre outros. Torna-se, digamos assim, num pano de fundo e num padrão de
grupo que contextualiza os cuidados e que gera um ambiente muito agradá
vel, contribuindo para o alcançar dos objectivos terapêuticos. Daí o facto de
lhe atribuir esta importância. O extracto abaixo apresentado parece para
digmático na medida em que se percebe o efeito benéfico da afabilidade em
alguém em profundo sofrimento.
...Entre as doentes que nesse dia tinham tratamento previsto, uma das primeiras a chegar foi a D. I. Deslocava-se em cadeira de rodas, ajudada por um familiar. Quando chegou junto à porta da sala de tratamento foi cumprimentada de modo muito afável pelas pessoas presentes, nomeadamente pela enfermeira (...). Este cumprimento incluiu parar o que estavam a fazer e dar-lhe atenção. Logo ali lhe perguntaram como se sentia e como tinha evoluído a situação. A sra t inha um ar bastante debilitado e até um fácies doloroso, mas manifestava boa disposição e alguma alegria, através de um sorriso, carregado de alguma tristeza.... (DO - 260503)
Por fim referência para a "disponibilidade". Também este modo de inter
venção constitui como que uma presença constante que, de algum modo,
acaba por contextualizar outros. Concretiza-se através da disponibilidade
para ir adequando o cronograma à vida da pessoa ou da disponibilidade para
resolver os mais diversos tipos de problemas colocados pelos doentes e fami
liares, mesmo via telefone. Tal é o caso de alterar um outro procedimento
burocrático-clínico no sentido de facilitar a vida das pessoas, ou de atender
chamadas telefónicas, quer no telefone da rede fixa (do hospital) quer nos
telemóveis pessoais, a qualquer hora, estando ou não de serviço. Este modo
de intervenção compreende também uma disponibilidade de natureza mais
imediatista e que se manifesta perante as solicitações dos doentes durante
os tratamentos. Ou seja, se um doente solicita algo (e.g., um soro que aca
bou, um injectável que precisa de ser administrado, uma tensão arterial que
o doente gostaria que fosse verificada), de imediato a enfermeira se disponi
biliza para o fazer. Quando esta disponibilidade imediata não é possível,
" " " " " " — " — — — — — — — " ~ ~ " _ — - — 230 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
assume o compromisso de que será dada uma resposta no mais curto espaço
de tempo.
No primeiro dos exemplos que abaixo apresento, manifesta-se disponibi
lidade para alterar o cronograma de um doente, fazendo-o coincidir de novo
com o dos amigos. Tal não foi solicitado pelo doente, contudo, mesmo assim é
sugerido, deixando ao doente a possibilidade de decisão. Também no segun
do exemplo é manifesta a preocupação com a adequação do cronograma à
vida do doente. O último é demonstrativo de uma disponibilidade imediata
mesmo para doentes e situações não agendadas.
... As enfermeiras informaram-no que um seu amigo e companheiro de tratamento tinha mudado de dia e que se ele quisesse mudar também, podia fazê-lo. O Sr. referiu que não porque o seu dia ideal era a quinta-feira...(DO - 040702)
... Ao combinar com um doente a próxima vinda dele, tentou fazê-lo de modo a colidir o menos possível com a vida do doente...(DO - 150702)
... A enfermeira saiu da câmara de fluxo laminar e dirigiu-se para a Ia sala. Ao passar pelo corredor foi interceptada por um doente (Sr. A.) que já se tinha assomado à porta da sala numa atitude de quem procura alguém. Tratava-se de um doente do serviço que procurava uma enfermeira para lhe administrar uma intramuscular. A enfermeira prontificou-se a fazê-lo, tendo pedido ao doente que se sentasse num dos cadeirões livres...(DO - 060802)
A "Promoção da esperança e perseverança", que engloba "Promoção da
esperança" e "Estimulação para a vida", complementa a anterior. Esta com
plementaridade é patente logo na primeira subcategoria (i.e., "Promoção da
esperança") na medida em que, por exemplo, nas situações atrás referidas,
em que a enfermeira conhece por antecipação a representação negativa de
determinado procedimento ou tratamento, passa a actuar evidenciando os
aspectos positivos do fenómeno em causa e incentivando sistematicamente a
confiança do doente. Mas também se pode dizer que esta atitude da enfer
meira se verifica face aos tratamentos de forma geral. Ou seja, existe um
reforço sistemático na confiança do tratamento, o que ao mesmo tempo
aumenta a esperança do doente. Tal não significa que a enfermeira dê
garantias de cura ou outras dessa natureza, mas mesmo em situações avan
çadas da doença é possível controlar determinado tipo de sintomas e aumen
tar o benrestar . Passa então a ser essa a esperança a incentivar, como aliás
se constata no exemplo que a seguir transcrevo.
231 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
... Como a doente estava bastante incomodada com a dor e não podia dar muita atenção, a conversa continuou com o familiar presente. Junto deste, a enfermeira tentou perceber o que é que já estava a ser feito para a dor. De seguida e com base nisso explicou como era o tratamento que se ia iniciar e qual o momento em que deviam parar a medicação que estava a fazer. Reafirmou que com aquele novo tratamento a dor iria diminuir muito ou mesmo desaparecer. Explicou ainda que se mesmo assim persistissem as dores se devia dirigir ao serviço ou telefonar para se puderem adoptar outras medidas...(DO - 040702)
Relativamente ainda a esta subcategoria existem duas reflexões que me
parecem pertinentes. Uma, diz directamente respeito ao doente e tem a ver
com o contributo para o benres tar do viver com alguma esperança, seja ela
de que natureza for. Aliás o adágio popular diz que "enquanto há vida há
esperança", contudo, neste caso, atrevo-me a propor uma inversão do mesmo
e enunciá-lo da seguinte forma: "enquanto há esperança, há vida". A segun
da tem a ver com uma curiosidade científica. Seria interessante verificar a
eficácia farmacológica com e sem incentivo da confiança no tratamento.
Outro modo de intervenção que complementa de modo directo o anterior,
é a que denominei "Estimulação para a vida". De modo geral, poderei dizer
que a grande finalidade subjacente a este modo de intervenção é a valoriza
ção dos aspectos saudáveis da vida da pessoa. Para atingir esta finalidade, a
enfermeira valoriza os ditos "pequenos acontecimentos"do dia-a-dia e que
dão sentido à vida de cada um. Assim, alegra-se e valoriza o facto de a doen
te referir que voltou a ter apetite, o facto de a doente ter tomado uma inicia
tiva tendente a estimular a sua auto-imagem (e.g., ir ao cabeleireiro, como
no caso do exemplo abaixo apresentado) ou o facto de se ter vencido mais
uma etapa no tratamento. Ou então, preocupa-se com a intensa centração do
doente na doença e desenvolve medidas no sentido de alterar esse registo.
Essas são complementares das referidas na subcategoria anterior, e passam
pela chamada de atenção para a necessidade de manter uma atitude positi
va. A esta última atitude poderá ser atribuída a crítica de ser culpabilizante
para a vítima, ou seja, de, apesar de o doente estar a sofrer com a situação
que está a vivenciar, ainda lhe ser atribuída a culpa por não ter uma atitude
positiva. Contudo, considerando o contexto em que isto é feito, penso que
este risco é desprezível.
= = = — _ _ _ _ = = = = = = — _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = . _ _ _ = = = = _ » _ _ . . „ _ = = _ _ . . _ _ „ „ = , = _ „ _ _ . . _ _ 2 3 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
... Entretanto chegou de novo a enfermeira (...) e a doente aproveitou para dizer às duas enfermeiras que no próximo Sábado tem um casamento e precisa de ir arranjada e perguntou se faria mal ir ao cabeleireiro, uma vez que elas lhe tinham dito para não apanhar calor por causa do tratamento e no cabeleireiro tinha que estar com a cabeça no secador. As enfermeiras referiram que não tinha qualquer mal, explicando que o que fazia mal era a incidência de luz solar. Aproveitaram para a incentivar a ir e aproveitar os bons momentos e para se arranjar bem...(DO 060802)
Terminado o grupo das categorias direccionadas ao doente numa pers
pectiva individual, iniciase um outro grupo em que a actuação está centra
da na interface do doente com a organização e com os restantes profissio
nais. Esta categoria dénommera "Intermediação centrada" (ver diagrama
7). A denominação deriva do facto de as acções desenvolvidas terem essen
cialmente, um carácter de intermediação de processos e de relações e porque
apesar de a actuação não ser directamente sobre o doente, ela é centrada nos
seus interesses.
Diagrama 7 "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"
Intervenção na interface doente/organização e no grupo de doentes (dados da observação).
a CS
No Doente/Família em Interac Intermediação, *De retaguarda
1 ç ã o com a Organização "► Centrada \ ► Directa
•8 / * Outra
1 /
\ in
\ jGeslão de prioridades i d
\ Gestão do /^ VVigilância clínica grupo V^.
^Supervisão do ambiente relacional grupo V^.
^Supervisão do ambiente relacional d
\jestão de sentimentos
Supervisão do aluno
A intermediação pode ser de "retaguarda" quando a acção da enfermeira
se desenvolve fora do olhar dos doentes e familiares e se desdobra em con
tactos no sentido de facilitar os procedimentos burocráticoadministrativos e
os mais diversos processos. Destas acções não existe história nem registo. O
doente, a maior parte das vezes, fica apenas a saber quais os passos que ele
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
precisa de dar, ignorando completamente o trabalho feito para que aquele
caminho existisse. Este trabalho é de natureza informal e colmata, de algum
modo, as lacunas ditas normais duma organização deste tipo, tornando mais
eficaz e eficiente a resposta dada ao doente.
No exemplo que a seguir se apresenta, a enfermeira ao identificar uma
determinada situação para cuja solução era necessária a participação de
outros técnicos (e.g., o médico), desenvolveu os esforços necessários para
obter a sua presença. Porém, normalmente esta diligência da enfermeira
envolve outros pormenores curiosos, dos quais destaco a necessidade de
apresentar a situação clínica ao médico com argumentos que o convençam a
deslocar-se.
... naquele momento a enfermeira saiu da sala e foi ter com a médica no sentido de resolver aquele problema. Voltou passados alguns minutos acompanhada da médica. Esta fez algumas perguntas e deu algumas orientações à doente e pediu à enfermeira para fazer um analgésico endovenoso no final da quimioterapia.... (DO - 150702)
A intermediação pode também ser "directa". Esta pode ser posterior à de
"retaguarda", caracterizar-se por ocorrer aos olhos do doente e pode consistir
na simples apresentação do médico ou de outro técnico ao doente e
vice-versa ou então por algo mais elaborado. Quando é este o caso, normal
mente é previsto pela enfermeira. Um dos exemplos ocorre quando o doente
ou familiar não verbalizam, perante o médico, toda a informação considera
da necessária à compreensão da situação. Neste caso, a acção da enfermeira
centra-se no fornecimento da informação considerada indispensável à deci
são. Outro exemplo é quando o médico ou outro técnico adoptam uma atitu
de de visita rápida e saída apressada. Aí a enfermeira provoca a retenção do
técnico por mais algum tempo, com fornecimento da informação julgada per
tinente.
O exemplo que a seguir apresento, à semelhança de muitos outros, tem
características complexas. Efectivamente constata-se uma atenção a vários
elementos da situação em simultâneo, com respostas diferenciadas para
cada um deles. Está em causa, não só, um elevado sentido de oportunidade,
que a levou a aproveitar a presença da médica para resolver um problema
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
de um doente, mas também, a capacidade de intermediação directa atrás
referida, uma percepção clara da capacidade de compreensão da doente e de
"tradução" da linguagem médica para uma linguagem acessível à doente.
...Ao mesmo tempo a enfermeira (...) estava junto da D. L., sendo que esta come
çou a referir queixas nos membros inferiores, dizendo que sentia um prurido intenso. A enfermeira valorizou as queixas e aproveitou a entrada da médica assistente para lhe colocar de imediato o problema. A médica fezlhe algumas perguntas e ponderou a hipótese de não iniciar a quimioterapia. Contudo, aca
bou por medicar a doente e darlhe um conjunto de orientações no sentido de resolver o problema referido pela doente. No momento de dar essas orientações constatouse que a doente tinha dificuldade em compreender algumas das orien
tações tão simples como "um comprimido três vezes ao dia". Face a isto a enfer
meira apercebeuse e tentou dar essas mesmas orientações numa linguagem diferente. A doente pareceu perceber.... (DO 140703)
O último vector relativo ao "Processo de Intervenção Terapêutica de
Enfermagem" é direccionado ao grupo de doentes presentes na sala e deno
mineio "Gestão do grupo" (ver diagrama 7). Engloba todas as acções que
tenham como destinatários o conjunto dos doentes, e que tenham uma fina
lidade considerada terapêutica. Esta categoria engloba as seguintes subca
tegorias :
■S Gestão de prioridades;
S Vigilância clínica!
S Supervisão do ambiente relacional;
S Gestão de sentimentos;
■S Supervisão do aluno.
A "gestão de prioridades" decorre naturalmente do facto de num deter
minado espaço (i.e., sala de quimioterapia) estarem presentes diversas pes
soas a aguardarem um serviço que não pode ser gerido em função da hora de
chegada. Efectivamente, esta gestão precisa de ter em linha de conta facto
res como, o tipo de tratamento, a disponibilidade dos produtos, a disponibili
dade dos valores analíticos, mas também o estado clínico do doente e até fac
tores da vida privada. Ora gerindo as prioridades com base em tão diversifi
cado grupo de factores, fácil será perceber o potencial de conflito que lhe está
subjacente. Para o evitar a enfermeira servese de uma estratégia de expli
cação detalhada, ao grupo, das razões das suas decisões.
Dissertação de Doutoramento
Os ulentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
No exemplo abaixo percebe-se a gestão de prioridades quando a enfer
meira interrompe uma interacção em função de uma outra situação clínica
que exigia uma intervenção urgente. Nesta situação percebe-se também que
na decisão foram tidos em consideração não só os interesses do doente, mas
também os do grupo. Por último realço as explicações dadas ao doente acer
ca das decisões tomadas.
... Eínquanto decorria esta conversa a enfermeira estava de costas para os cadeirões do lado oposto, onde estava sentado um doente (Sr. V.). A este doente tinha sido perguntado quando entrou na sala como estava e como se sentia. O doente t inha respondido que bem e que não tinha queixas. Passados alguns minutos e enquanto a conversa atrás referida decorria, o Sr. Iniciou um episódio de vómitos. A enfermeira de imediato interrompeu a conversa com a D. E. para ir em seu socorro, fornecendo_lhe guardanapos de papel e tentando perceber o que se passava. O episódio foi de curta duração, mas apesar disso as enfermeiras (...) decidiram mudar o doente para a 2a sala, onde ainda não estava ninguém, explicando ao doente quais as razões. Estas prendianrse com a possibilidade de um episódio daquela natureza poder desencadear uma reacção em cadeia, de características semelhantes nos outros doentes. Posteriormente o doente agradeceu muito à enfermeira porque ele também não se sentia bem em estar assim perante os outros doentes...(DO - 060802)
A "Vigilância clínica" caracteriza-se por uma atitude clínica de atenção
ao grupo e ao conjunto dos tratamentos que estão em curso em simultâneo,
bem como às respectivas possíveis reacções. Penso que seja oportuno lem
brar que se t ra ta de um grupo de doentes com diferentes tratamentos em
curso, começados em momentos diferentes, com ritmos e formas de adminis
tração diferentes e diferentes possíveis reacções. Sendo que, a juntar a isto
ainda temos a considerar, entre outros aspectos, o facto de cada doente ter
mais ou menos cuidado com o tratamento em curso, precisar de se deslocar à
casa de banho e/ou comer, enquanto decorre o tratamento. Neste contexto, a
atenção da enfermeira precisa de ser constantemente elevada. Esta vigilân
cia contribui também para aumentar os níveis de segurança e confiança dos
doentes, não só porque implica uma presença constante, mas também por
que redunda numa mensagem de eficácia e eficiência. Por esta razão rela-
ciona-se com as categorias promoção da confiança e segurança atrás referi
das.
Em qualquer dos exemplos escolhidos para ilustrar este modo de inter
venção da enfermeira existem, entre outros, três elementos a destacar: a
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
atenção constante à evolução das perfusões do conjunto dos doentes, a aten
ção concomitante às reacções e ao estar dos doentes, o desenvolvimento
simultâneo de outras actividades.
.... A enfermeira (...) chega à sala, vigia as perfusões e posicionase junta à porta da sala. H3 desencostase do cadeirão e assim permanece. (A enfermeira) per
guntalhe se está mal disposto. Aquele nega e explica que tem que mudar de posição por causa da sua coluna....(DO 250702)
...Entretanto a enfermeira sentase à secretária a preencher processos dos doen
tes. Contudo, mantém uma vigilância constante sobre os doentes presentes na sala. Esta vigilância tem a ver com a evolução de cada uma das perfusões mas também tem a ver com o conforto e com o estar de cada um. Assim, varse levan
tando de vez em quando para mudar, acelerar e lentificar as diversas perfusões, mas também vai metendo conversa com alguns doentes no sentido de perceber se estão comodamente instalados e se sobreveio algum sintoma associado ao tra
tamento, ou então metese com o estado de humor principalmente dos mais calados ou daqueles que estão anormalmente calados. Algumas destas interven
ções são feitas em tom brincalhão... (DO 210503)
A "supervisão do ambiente relacional" congrega também um conjunto de
actividades dirigidas ao grupo e que têm como finalidades básicas, gerir os
sentimentos do grupo ou utilizar o grupo para gerir os sentimentos de um ou
outro doente. Isto é feito muitas vezes a partir daquilo que emerge esponta
neamente do grupo. Ou seja, constatase que entre os doentes presentes na
sala e enquanto decorre o tratamento, ocorrem processos de interacção da
mais variada natureza, mas que podem ser agrupados em dois grandes blo
cos '■ "interacção social" e "interacção centrada no processo de saúde". A "inte
racção social" é bastante frequente, aborda os temas mais diversos, nomea
damente os da actualidade, e nela participam todas as pessoas que vão cir
culando pela sala. A "interacção centrada no processo de saúde", é um tipo
de interacção em que os doentes expõem, uns perante os outros, as suas
preocupações e os seus medos, as suas vitórias ... em suma a sua vivência do
processo, como é o caso do exemplo abaixo apresentado. Nessas circunstân
cias, a enfermeira avalia a situação e decide ou não interferir em função do
conhecimento que tem dos doentes presentes, do que foi dito e da resposta
que foi dada pelos outros doentes. A sua intervenção pode ser no sentido de
sublinhar pela positiva alguma informação que foi veiculada, de demonstrar
a inexactidão de alguma outra ou de se aproveitar da ambiente para atingir
determinado objectivo com um doente. Assim, por exemplo, se um doente
237 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
expõe em público os seus sentimentos aos pares e estes lhes respondem que
em fase correspondente também sentiram o mesmo, mas que afinal tal sen
timento é injustificado, a enfermeira pode aproveitar para reforçar a sua
mensagem e a seguir servirse dos outros doentes para ajudarem aquele a
ultrapassar a dificuldade.
... Esta era uma senhora muito alegre, que falava de forma que toda a sala a ouvisse e em tom alegre. Frequentemente brincava com qualquer tema e metia
■se com os outros doentes. As conversas incluíram temas de natureza familiar, como por exemplo os netos, mas também temas relacionados com a sua situação de saúde, como por exemplo o facto de ter estado na praia e a forma que adoptou para que a mesma não interferisse negativamente com o seu processo. A D. M. valorizava essencialmente os aspectos positivos na sua vida...(DO 040702)
A "Gestão de sentimentos" do grupo é um modo de intervenção da enfer
meira que se reveste de grande importância neste contexto, que exige um
profundo conhecimento do conjunto dos doentes presentes na sala em cada
momento e que pressupõe capacidade de liderança. Por tais razões, parece
ser um modo de intervenção assumido de forma mais explícita, por umas
enfermeiras que por outras. A "Gestão de sentimentos" consiste na assunção
de que a sala de quimioterapia é um espaço relacional onde coexistem doen
tes em diferentes estádios de vivência e de humor e cuja expressão se pre
tende que seja benéfica para todos. Para atingir tal desiderato a enfermeira
conta com as suas capacidades mas também com as dos doentes. Ou seja,
assenta no pressuposto que a vivência de uma situação por uma determina
da pessoa pode ser útil a outra, se partilhada. Todavia, este processo é mais
complexo, na medida em que a utilidade atrás referida tem potencialidades
especiais, uma vez que a ajuda vem de um par, a vivenciar uma situação
idêntica,' para além disso é ainda benéfico para quem dá essa ajuda na
medida em que se sente útil e valorizado, apesar de doente.
No exemplo que escolhi para ilustrar este modo de intervenção e que
abaixo apresento, a enfermeira tenta utilizar o grupo para exorcizar os
medos de uma doente.
...Foi então comentado quer pela doente como pela enfermeira que t inha um medo horroroso das punções. Esta confissão mereceu reparos das restantes doentes que faziam apelo a uma certa profissionalização que lhes permitia não ter medo de tal coisa. A D. R. respondeu que no caso dela a passagem do tempo
_ _ _ _ _ _ „ = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = „ _ _ = = = = _ _ „ _ „ „ „ „ _ _ _ = = = „ „ _ _ „ _ _ _ _ _ 2 3 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
só servia para ter cada vez mais medo. Aí a enfermeira relatou para todo o grupo que quando tinha ido à sala de espera dos doentes tinha reparado que a D. R. estava com cara de preocupada o que a levou a dirigir-se-lhe e perguntar-lhe o que se passava. Aí, a doente terá respondido que não era nada, mas apenas aquela "agastura" no estômago que lhe dá cada vez que se dirige a este serviço. Isto foi motivo de risada geral na qual a doente também participou.... (DO -160703)
Existem ainda outras interacções que ocorrem na sala e que precisam
também de ser supervisadas e eventualmente geridas pela enfermeira. Tal é
o caso da supervisão da interacção das auxiliares de acção médica com os
doentes e familiares. Neste serviço, aquelas auxiliares têm um contacto mui
to próximo e interagem frequentemente com estes. Contudo, a sua interac
ção é essencialmente de natureza social. Apesar disso, pode acontecer que
façam passar mensagens que não sejam as mais adequadas ou que os doen
tes emitam informações no contexto dessas interacções que seja de grande
utilidade. Por tais razões, normalmente a enfermeira está atenta a essas
interacções.
Outra interacção que também ocorre com alguma frequência é entre os
doentes e os familiares. Também esta precisa da atenção da enfermeira,
embora agora por razões de natureza diferente. É que, neste caso, o familiar
também se constitui como utente e portanto, passível de necessitar de cui
dados. Assim, a enfermeira precisa de estar atenta a eventuais solicitações
subliminares. Aconteceu com alguma frequência o familiar enviar algum
tipo de sinalética para a enfermeira no sentido de lhe solicitar uma interac
ção privada. Também precisa de estar atenta a esta interacção porque se
constitui como uma fonte de informação.
Por último, uma referência para uma outra interacção que ocorre neste
espaço com uma frequência razoável e que é protagonizado por alunos de
enfermagem e doentes. Neste caso a supervisão da enfermeira ganha outras
características, uma vez que precisa de se investir de um papel pedagógico
de formadora.
A "Gestão do grupo" é uma actividade que exige um grande conhecimento
dos doentes, bem como dos restantes actores que circulam nesta sala e uma
boa aceitação por parte deles. Considero ainda que do ponto de vista tera
pêutico é de grande utilidade, uma vez que é privilegiada enquanto fonte de
239===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
informação e enquanto instrumento terapêutico porque congrega e potencia
a opinião vivida dos pares e a opinião técnica da enfermeira.
Perspectivando agora o "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfer
magem" tal como foi categorizada com base nos dados recolhidos através de
observação na sala de quimioterapia, destaco os elementos essenciais.
O primeiro a destacar e que marca uma diferença face aquilo que tinha
acontecido na entrevista de admissão, é o carácter multifocal da actuação da
enfermeira. Ou seja, a enfermeira, continuando a centrar a sua atenção
sobre o doente/familia, alarga-a à interface do doente com a organização e
outros profissionais, bem como ao grupo de doentes na sala de quimioterapia
e à sua interface com cada doente em particular e com a organização. Isto
confere mais uma característica específica aos cuidados de enfermagem nes
te contexto
O segundo elemento a destacar diz respeito à continuidade de algumas
das actividades que se t inham iniciado na entrevista de admissão, como
sejam a "Gestão de sentimentos", nas vertentes de promoção da confiança e
da esperança e perseverança. A mesma coisa se pode afirmar relativamente
à "Gestão da Informação". Isto é, também neste caso existe uma continuida
de relativamente à entrevista de admissão. Quer num caso como noutro,
apesar desta continuidade, é-lhe introduzido um novo factor que lhe dá
carácter próprio. Agora a gestão da informação e dos sentimentos é feita em
contexto. Ou seja, a informação deixou de ser abstracta, passou a ser sobre
algo concreto, sobre o que está a acontecer. A gestão dos sentimentos é tam
bém feita no imediato.
O terceiro elemento a destacar tem a ver com o surgimento de outros
modos de intervenção, os quais resultam das necessidades dos doentes e que
dão corpo à relação. Estou a referir-me à "Promoção da autonomia", "Promo
ção do respeito" e "Promoção do conforto". Relativamente a qualquer um
deles pode-se dizer que os mesmos foram iniciados na entrevista de admis
são, contudo, é aqui que ganham a sua verdadeira dimensão.
========================================== 240 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
O quarto e último elemento a destacar é o carácter de complementarida
de entre as diversas subcategorias e categorias, resultando numa acção de
natureza complexa e multifacetada.
Chegados a este ponto, é de realçar a continuidade na intervenção da
enfermeira entre um momento inicial, na entrevista de admissão e os
momentos posteriores, na sala de administração de quimioterapia. É de
realçar também a adequação da intervenção às circunstâncias. Tal é notório
não só na passagem atrás referida, mas ainda à medida que a relação com
um determinado doente vai evoluindo. Isto remete-nos para a relação do
"Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" com o "Processo de
Avaliação Diagnostica" e que posteriormente será explorada. De todo o
modo, pode-se assinalar desde já que é da sistemática recolha de informação,
contextualizada na que já detinha, que se constrói esta perspectiva evolutiva
e sistematicamente contextualizada da intervenção.
5.4.3 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Outros
olhares
Entendo que o construeto "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfer
magem" ganha consistência através da continuidade que acabei de referir.
Contudo, e para que essa consistência saia reforçada, penso que seja ade
quado cruzar esta informação com a recolhida através das entrevistas efec
tuadas às enfermeiras e aos doentes. As questões que se colocam são:
As enfermeiras têm consciência da intervenção que desenvolvem junto
dos doentes?
Se sim, quais as características dessa intervenção, na sua perspectiva?
Essas características são sobreponívéis às aqui apresentadas?
E os doentes têm consciência das intervenções desenvolvidas pelas
enfermeiras?
Identificam as suas características?
São essas características sobreponívéis às aqui apresentadas?
E a esta conjunto de questões que irei responder. Para tal procederei à
apresentação de algumas das categorizações construídas a partir da análise
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros! Construção de uma relação
das transcrições das entrevistas feitas às enfermeiras e aos doentes. Come
çarei pelas enfermeiras.
5.4.3.1 — "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Pers
pectiva das enfermeiras
A partir das entrevistas efectuadas às enfermeiras também se encontra
ram elementos que me conduziram à categorização de um construeto deno
minado, "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem". Este cons
trueto é constituido por três conceitos, dois dos quais sobreponívéis aos
encontrados a part ir de outras fontes (i.e., entrevistas de admissão e obser
vação).
O primeiro conceito denominei-o, "Gestão de sentimentos" (ver diagrama
8). Este tem como centro de atenção o doente, de um ponto de vista indivi
dual e ocupa um lugar central no discurso das enfermeiras. Subjacentes a
este conceito podem-se enunciar duas características gerais.
Diagrama 8 - "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem" Perspectiva das enfermeiras.
<'riar espaço relacional nteragir verbalmente
íspombilidade Promoção da
«Confiança ^ - P r e s e n ç a
<Dos sentimentos reactivos
Afectiva profunda
( Incentivo da espe- ̂ Esperança Jncentivo de projectos ;i; rança e perseve- / /
® rança Potenciar as capaci- /^Valorização de recursos e dades do doente \ capacidades
vDutros
tolaçáo de cumpliciuaue
_ 'artilha de luto Potenciar as capacidades da família ^ P a r t i l h a de sentimentos e
dificuldades
'artilha de informação
Mediar relações
Outros
242 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Por um lado, uma preocupação com a garantia de um sentimento de con
fiança e segurança para o doente. Esta preocupação tem essencialmente a
ver com a resposta às solicitações dos doentes, os quais, como resultado do
processo que estão a vivenciar, manifestam elevados níveis de ansiedade,
insegurança, medo, entre outros. Trata-se assim, de transmitir uma confian
ça e uma segurança que é também uma espécie de aconchego.
Por outro lado, uma preocupação com o incentivo da esperança e das
capacidades do doente. Este duplo incentivo constiturse como um todo com
plexo em que as partes se potenciam mutuamente. Assim, ao mesmo tempo
que se incentiva a esperança, evidencianrse as capacidades que a pessoa
possui e que pode usar em seu benefício e dos que o rodeiam.
Neste contexto, são duas as categorias que integram este conceito^ a
"promoção da confiança" e o "incentivo da esperança e perseverança" (ver
diagrama 8).
A "Promoção da confiança" concretiza-se em primeira análise através da
promoção da relação, pelo que a primeira subcategoria foi designada "pro
mover a relação". Ou seja, há que criar condições para que a relação possa
ocorrer. Para isso é necessário criar um espaço de relação. Este pode corres
ponder simultaneamente a um espaço físico e a um espaço-tempo. Contudo é
este último que assume maior importância. O espaço-tempo tem relação
próxima com a disponibilidade de que falarei mais à frente e que é patente
nos dois exemplos que apresento de seguida.
... Estivemos falando, falámos sobre o que é que poderia acontecer, ... pronto, ela a falar do que podia acontecer em relação aos bebés, em relação a ela ... eu, a única coisa que fiz foi tentar-lhe dar um confortozinho, não me meti muito no dizer que vai acontecer isto ou que vai acontecer aquilo, (...) mas foi principalmente isso,...(EEI - 080702)
(...) quando ela volta outra vez, eu comecei a notar que além da preocupação da filha e da doença, que havia outra preocupação qualquer, que ali não era só aquilo, t inha que haver outra coisa (...) a sala não tinha muitas condições e eu também me apercebia que ela falar assim, (...) e então eu arranjei uma maneira de tentar ficar com ela sozinha (...) combinei com a colega que estava comigo que da próxima que ela viesse, nós íamos preencher aqueles cadeirões e ela seria a última para eu a conseguir pôr na outra sala que t inha camas e ela ficar sozinha (...) eu estive a falar com ela, estive assim um bocadinho, estive fazendo as coisas, pondo os soros e entretanto consegui puxar a conversa para a filha, (...) E ela, nessa altura começou então a falar (...) contou-me que de facto tinha vários problemas (....) e então, ela lá esteve, ela desabafou, chorou ... (EEL-040702)
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
O espaço físico também existe, tal como se vê nos exemplos atrás apre
sentados, porém, pode não corresponder a um espaço delimitado por quatro
paredes onde apenas estejam a enfermeira e o doente. O que é mais frequen
te é um espaço onde coexistem diversas pessoas, mas dentro do qual a
enfermeira e o doente poderão desenvolver um microcosmo de privacidade.
Para o efeito a enfermeira poderá servir-se dos cortinados amovíveis, mas
mais frequentemente serve-se do seu próprio corpo como barreira. Concomi
tantemente, baixa o tom de voz e aproxima-se o suficiente para a conversa
ser inaudível aos restantes. São deste modo, criadas condições de privacida
de e disponibilidade que permitem a verbalização de sentimentos e preocu
pações. De referir que o potencial terapêutico está subjacente aos dois com
ponentes (i.e., criação de condições e verbalização).
Como corolário natural da subcategoria anterior surge esta outra que
denominei de "interacção verbal". A interacção verbal é o instrumento psico-
terapêutico por excelência. Talvez por isso seja sistematicamente usado,
quer incentivando a verbalização do doente, quer sendo usado pela enfer
meira para fazer chegar a sua mensagem. É esta dupla vertente que a sub
categoria assume. Quer numa quer noutra das vertentes os temas podem ser
os mais diversos indo desde anódinas conversas sociais até à expressão de
sentimentos pelo doente ou às explicações mais diversas dadas pela enfer
meira. O exemplo que a seguir apresento parece-me ser paradigmático rela
tivamente ao assumir da interacção verbal como instrumento terapêutico.
Efectivamente é assumido que a doente está a vivenciar uma crise e que o
instrumento preferencial foi a interacção verbal.
.... eu tentei ajudar, não sei até que ponto, mas.... A superar aquela crise (....) Só falar (....) Muitas vezes ela só falava mais em particular. Falava ali ou tentava cooperar com os doentes mas não .... mas falar só mais particularmente... (EEJ -160702)
Como complemento já atrás referido surge-nos a "disponibilidade". A dis
ponibilidade é uma atitude sempre presente e de grande importância no
contexto da relação desenvolvida pela enfermeira, porque se constitui como
uma das formas de concretizar o espaço relacional a que atrás fiz referência.
Pode também ser entendida pelo doente como uma atitude de acolhimento e
- _ = = = = = _ _ - _ - _ „ _ _ _ „ = = _ _ _ ™ _ _ = = _ _ „ „ „ „ _ „ _ = = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ 2 4 4
Dissertação de Doutoramento
Os ulculcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
aceitação e por essa razão, securizante. A disponibilidade é antes de tudo
uma atitude interior, tal como é patente no primeiro dos dois exemplos abai
xo apresentados. Ou seja, neste caso, resultou de uma sensibilidade compas
siva relativamente à situação de uma pessoa.
.... sei que houve um dia em que ela estava sozinha na segunda sala e eu nunca tinha conversado com ela, nunca me tinha assim dirigido a ela, mas tive disponibi
lidade, e porquê? Por um lado isso (o estar isolada), e por outro lado, por ela ter tido gémeos, como também tenho ... (EEA2 180702)
... Telefonoume um dia a pedir se podia vir cá conversar comigo. Eu disse, "está bem". Estivemos aqui horas a conversar... (EEA3 010802)
A par com a "disponibilidade" surgenos a "presença", que aliás também é
patente nos exemplos atrás apresentados. A presença é uma forma de estar
próximo e disponível, mas também um modo de ser solidário, forma de
manifestar preocupação e garantia de não abandono, tal como se pode cons
tatar no exemplo seguinte. A presença exige muitas vezes uma postura
paciente e tolerante por parte da enfermeira e acima de tudo muita persis
tência.
... ela, cá em Évora, nunca teve a certeza de aquilo ser uma recidiva, nunca teve essa certeza... portanto eu não estou com ela quando ela sabe que aquilo é uma recidiva.... ela própria não estava preparada para aquilo, porque nenhum médico .... Ela depois teve a notícia lá (no Brasil) e eu soube por telefone porque eu depois tele
fonerlhe, telefoneHhe para lá na véspera de ela ser operada... (EEA3 010802)
O "respeito" outra das subcategorias da "Gestão de sentimentos", assume
três formas distintas^
S Respeitar o tempo da doente!
S Preservar a intimidade da expressão dos sentimentos!
■S Respeitar a confidencialidade na relação.
O respeito pelos tempos do doente já, de algum modo, atrás t inha sido
enunciado ao realçarse a paciência como inerente à presença. Contudo, este
conceito de respeito vai mais além, assumindo centralidade numa relação,
na medida em que a gestão de sentimentos só é eficaz se respeitar os tempos
do doente. O exemplo a seguir apresentado pareceme paradigmático a esse
nível. Numa atitude de grande paciência e disponibilidade foi concedido
245 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
tempo à doente para poder gerir o seu processo. A gestão de informação pre
cisa igualmente de ser feita no estrito respeito dos tempos do doente.
... Isto passou um dois ciclos, sempre naquela cadeirinha, ... fazia questão.... ela não entrava na sala de espera, ela vinha por este lado {referência ao corredor interior) aqui por fora, por esta entrada aqui deste lado e sentava-se nestas cadeiras aqui {no corredor interior). Para depois entrar no gabinete da doutora que é ali em frente e ninguém a ver. Ela fazia questão que fosse assim. Isto foi 2 ou 3 ciclos (...) Para aí ao fim do 4o ciclo, talvez, ela começou a ficar mais aberta a falar connosco,...(EEI - 080702)
Por seu lado, a reserva da intimidade e da confidencialidade são pilares
básicos da confiança na relação. Todavia, aqui têm um reforço considerável
da importância na medida em que, para além de estar em causa a intimida
de e confidencialidade resultante de uma interacção verbal, está também a
resultante de uma interacção que tem uma componente física que leva à
exposição das partes do corpo consideradas íntimas. No exemplo que apre
sento está apenas patente a confidencialidade inerente à interacção verbal.
Apesar disso parece-me significativo, considerando o contexto de cuidados
em análise, acerca do qual referi mais atrás que havia troca de informação
entre as enfermeiras relativamente aos doentes.
... Não sei se às outras colegas falaria de mesma maneira, também nunca falei.... como as coisas são ditas assim muito em particular eu acho que, pronto, temos que respeitar. Nem falei com as colegas acerca disso. Só assim aquelas que nos falam na sala que nos dizem na sala na frente de outras pessoas. Isso é diferente, não é. Se houver alguém que está a dizer "oh sra enfermeira eu tentei isto ou aquilo..." fica entre nós, é evidente. Se fosse eu a ter uma certa confiança na pessoa e ser capaz de lhe dizer, também não gostaria de ouvir depois um qualquer comentário e pensar "afinal, eu tentei...."... (EEJ - 160702)
A "compreensão" é a última das subcategorias deste grupo, não signifi
cando tal menor importância que as outras. Aliás, seria quase impossível
promover a confiança do doente se não existisse uma atitude de compreen
são por parte da enfermeira. A "compreensão" tem duas variantes, comple
mentares entre si. A primeira tem a ver com a compreensão dos sentimentos
reactivos. Ou seja, os sentimentos expressos pelo doente como resultado da
vivência dos processos de doença e tratamento. Se não existisse esta com
preensão dificilmente se compreenderiam algumas das formas de gerir os
sentimentos observadas na prática clínica e já atrás referidas (e.g., "raciona-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
lização", "desmitificação"). Com esta atitude a enfermeira não se limita a
compreender os sentimentos numa perspectiva vivencial. Compreende-os
também numa perspectiva biomédica. Ou seja, sabe quais os processos fisio-
patológicos e psicopatológicos que estão por detrás dos fenómenos. Isto facili-
tadhe o processo de intervenção. O extracto escolhido para ilustrar a com
preensão nestas duas variantes, é referente a uma situação de recidiva de
cancro após uma primeira intervenção cirúrgica e um período de quimiote
rapia, ao qual se seguiu algum tempo de aparente normalidade, numa
mulher muito jovem. Estes elementos são compreensíveis por qualquer pes
soa que conhecesse a doente, sendo particularmente relevantes para alguém
com quem exista uma relação preferencial. Mas, se este alguém compreen
der também a fisiopatologia daquelas metástases em concreto, com tudo o
que isso implica, então tem uma compreensão mais abrangente e global
... E portanto, por isso é que foi um grande balde de água fria agora quando tudo aconteceu, passados estes meses, não é? Passados estes meses que ela faz exames e pronto, houve aquele reacender outra vez de toda aquela situação ... foi muito complicado para ela... (EEA3 - 010802)
Porém, a "compreensão" integra ainda uma outra perspectiva que deno
minei como "compreensão afectiva profunda". Pela forma como as enfermei
ras verbalizam os seus relatos, o que se torna patente é que para além da
compreensão já atrás descrita existe um patamar diferente através do qual
se consegue uma compreensão profunda da dor e das dificuldades de outrem,
quase como se fosse em si própria. Este diferente grau de compreensão pare
ce ser alcançado apenas com doentes com quem existe uma relação muito
próxima. É uma compreensão que não se refere a um sentimento específico
mas antes à globalidade da situação, parecendo ter mais a ver com o desafio
radical com que a pessoa se confronta. É por fim uma compreensão que,
gerando uma grande proximidade, parece acarretar também um elevado
risco de sofrimento para a enfermeira, como mais à frente se verá. Suspeito
que os extractos de texto abaixo apresentados não traduzam com fidelidade
esta outra dimensão da compreensão. Tal acontece porque se perde uma
quantidade considerável de informação, quando se passa o relato a cores e
ao vivo de alguém, para o preto e branco estático do papel. Mas eu, que pre-
247 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
senciei o relato, vi a emoção expressa nos gestos e no fácies com os olhos
marejados de lágrimas.
... Assim que ela me viu começámos a chorar as duas e estivemos montes de tempo agarradas uma à outra a chorar, porque não queríamos que aquilo voltasse a acontecer... (EEA3 - 010802)
... Há uma descrição dela quando se sente sem cabelo que é (...) marcou-me bastante a descrição de quando ela está no banho e sente todo o cabelo a cair. Fica com medo, ela diz que foi muito rápido. O que aconteceu e como sentiu. E como sair da casa de banho?... (EEJ - 160702)
A "Gestão dos sentimentos" engloba ainda uma outra subcategoria deno
minada, "Incentivo da esperança e perseverança". Naturalmente funciona
como complemento da anterior. Ou seja, a par com a promoção da confiança
e da segurança através de atitudes de aconchego, as enfermeiras estimulam
a esperança e a perseverança como forma de o doente encontrar em si pró
prio e não nos outros, motivação para a vida. Assim a estimulação da espe
rança está sistematicamente presente na intervenção da enfermeira. Tal
como já foi referido em outro momento, a esperança vã não faz parte do car
dápio da enfermeira. Contudo, é sempre possivel ter esperança em algo, e é
esta perspectiva que está presente.
Paralelamente, estimulam-se as capacidades do doente, quer seja pela
estimulação dos seus projectos, quer pela valorização das suas capacidades.
Os projectos podem ser os aparentemente mais comezinhos, como conseguir
ir ao casamento de um familiar, tal como no primeiro exemplo abaixo apre
sentado! ou os aparentemente mais elevados, como desenvolver um grupo de
auto-ajuda, à semelhança do segundo exemplo que apresento. Em qualquer
dos casos a enfermeira participa e estimula.
... eu lembro-me na altura que ela tinha um casamento, foi quase na fase terminal dela, em que ela já nem fazia quimioterapia, mas ia lá passar os dias com a gente e ela um dia disse-me que havia um casamento e que ela gostava muito de ir àquele casamento, mas não sabia se conseguia. E que o pai não estava a querer que ela fosse, nem a mãe,... mas ela gostava de ir, gostava da pessoa que ia casar e gostava de a acompanhar e que sabia que era o último casamento que ia, disse isso explicitamente, e gostava de ir. E mesmo para a miúda. A miúda estava ali, sempre com os avós, nunca saía, com ela doente! E eu disse-lhe, "então e não vai porquê?... ( E E L - 040702)
.... porque isso surgiu também de uma conversa que eu tive com ela, que eu gostava que as coisas fossem diferentes aqui, gostava de dar muito mais apoio aos
. — _ _ _ - - - _ _ — — . - . _ . 248 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
doentes, tudo isso. Depois entre nós esse tipo de conversas, fez com que ela sugerisse isso, esse trabalho de grupo com as pessoas... (EEA3-010802)
Outra forma de estimulação é através da valorização das capacidades e
dos recursos dos doentes. Por vezes, estes até passam despercebidos ao doen
te. Tal é o caso, por exemplo, de o doente ter um familiar que o ajude e se
preocupe com ele. Muitas vezes a enfermeira evidencia este facto junto do
doente, como forma de realçar a sua importância enquanto recurso e parale
lamente, promover a coesão familiar. Outras vezes o doente não atribui um
significado particular a alguns dos recurso que detém. Como acontece, por
exemplo, quando conseguiram desenvolver uma determinada estratégia para
ultrapassar uma dificuldade. Neste caso a enfermeira realça a importância de
tal facto, mas principalmente a capacidade que lhe está subjacente.
Como última referência deste grupo, uma chamada de atenção para a
estimulação da capacidade de decisão do doente e para a sua preservação, o
que aliás é patente no exemplo que apresento.
... Evidentemente que eu não lhe dava as opiniões, tentava que ela resolvesse as coisas e tentava ser ela a,... porque dar opiniões,... a vida era dela e ela é que tinha que decidir fosse aquilo que fosse. E tentei sempre que fosse ela a decidir as coisas. (EEL - 040702)
Em jeito de resumo e sobre a "Gestão de sentimentos", é de realçar, a
preocupação em criar um espaço/tempo de relação, para o qual contribuem
de forma marcada as atitudes de "disponibilidade", de "presença", "respeito"
e "compreensão". O conjunto destes elementos é de grande importância na
promoção do sentimento de confiança e segurança do doente. O segundo fac
tor de realce na "Gestão de sentimentos" é o "Incentivo da esperança e per
severança". Neste destaco o "potenciar das capacidades dos doentes",
nomeadamente através do incentivo de projectos pessoais e da valorização
de recursos.
A categoria seguinte é, "Potenciar as capacidades da família". É conve
niente justificar desde já a separação entre a família e o doente. De acordo
com os dados expressos nas entrevistas pelas enfermeiras, a relação com a
família tem características diferentes daquela que se verifica com o doente.
É que, a família, para além de utente, é também parceira nos cuidados ao
249 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
doente. Por tal razão, a relação com a mesma é um misto de parceria e uten
te dos cuidados. Isso mesmo se reflectirá na caracterização que se segue.
O primeiro elemento a destacar designei-o, "relação de cumplicidade".
Neste, o que está principalmente em causa é a cumplicidade entre dois cui
dadores, pelo que se evidencia a complementaridade de papéis. Esta cumpli
cidade parece-me evidente no extracto que a seguir apresento. Em alguns
momentos e com alguns familiares, a troca de informações parece ter seme
lhanças com uma passagem de turno entre profissionais de enfermagem, a
qual consiste na transmissão de informação relativa à situação dos doentes e
dos cuidados de forma a permitir a sua continuidade.
...ele vinha sempre com os bombeiros e ela {a mulher) vinha sempre à minha procura, sempre, sempre. Vinha-me sempre dizer, "O L. já cá está" (...) eu sabia o que é que aquilo queria dizer, ela queria que eu fosse e era sempre eu que ia porque depois ficou logo estabelecido que assim seria... (EEA1 - 180702)
Já a "partilha de luto" evidencia principalmente a vertente do familiar
enquanto utente dos cuidados. Neste caso é, frequentemente, partilhado um
luto por antecipação, embora também possa acontecer que o familiar se des
loque propositadamente ao serviço, após a morte do doente, para parti lhar o
seu luto, como no caso abaixo apresentado. Apesar desta predominância,
pode, porém, acontecer que a partilha do luto seja mútua e que se ajudem
mutuamente nessa verdadeira partilha, como também é patente no exemplo
que apresento.
... uma vez apareceu-me cá com uma coisa incrível que eu chorei que me desalmei naquela sala de espera, (...) porque me veio com um quadro enorme, um quadro dele, com a história de vida dele, é impressionante.... fez um quadro enorme, que era para pôr lá no quarto da filha e depois veio-me mostrar que era para ver se eu achava que tinha ficado bonito, quer dizer!.... depois fez questão de me vir cá mostrar aquilo. Que ela dizia que agora agarrava-se .... t inha gostado muito de fazer aquilo, aquele quadro e que se agarrava muito aquilo. Pronto, era o quadro que ela ia pôr lá no quarto da filha...(EEA1 - 180702)
Algo de semelhante ao anteriormente descrito acontece com a partilha de
sentimentos e dificuldades. Todavia, neste caso é ainda mais notória a posi
ção de utente dos cuidados assumida pela família. Neste caso, normalmente,
a família solicita um tempo e um espaço que lhe permitam verbalizar as
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = _ = = = „ „ _ _ _ _ _ „ = = = _ _ _ . . _ „ „ _ _ _ _ _ „ „ = = = „ „ „ _ _ . . _ _ „ „ 2 5 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
suas dificuldades e expressar os seus sentimentos, tal como é ilustrado no
exemplo que apresento.
... E então através da prima, a mãe foi lá. Foi lá com a neta. Um dia que ela estava a fazer o tratamento, depois apareceu lá, (....) Depois a Sra esteve a falar comigo e a Sra quis falar comigo sozinha, sem ser diante da filha nem da neta. Lá consigo ali outra artimanha, outro canto que para ali descobri, lá fui com ela e lá estivemos a falar... (EEL-040702)
Por último, uma referência para a "partilha de informação". Assumiu
esta designação porque a familia também canaliza alguma informação para
a enfermeira. Contudo, o sentido predominante é o inverso. Portanto, será
predominantemente uma intervenção de natureza informativa da enfermei
ra para a família e ao mesmo tempo de mobilização de recursos.
... Lá estive a falar, quer dizer o que fiz com a filha tive que estar a fazer com a mãe, a falar com ela a explicar-lhe, pronto a alertá-la que a filha precisava muito de ajuda, ela precisava, a gente compreendia porque não era uma situação muito fácil, mas que a filha no momento precisava de muita ajuda... (EEL -040702)
A última categoria deste conceito foi denominada "mediar relações". Nes
te caso é mais notório o papel assumido pela enfermeira na intermediação
das relações do doente com os que lhe são próximos. Acontece por vezes que,
fruto das dificuldades de vivência do processo de doença, o doente enclausu-
ra-se de uma forma e os que lhe estão próximos de outra. Este processo tor
na difícil a comunicação e pode conduzir a um afastamento progressivo com
culpabilizações mútuas. Neste caso, a enfermeira pode interferir ou ajudan
do a compreender o porquê deste processo a um ou a ambos dos intervenien
tes,' ou interferindo directamente sobre um dos intervenientes, evidenciando
a necessidade de ultrapassar esse constrangimento à comunicação, como
forma de ajudar o doente. No extracto que se segue, a enfermeira explica ao
doente as razões do afastamento e do silêncio dos amigos.
... depois tentava explicar-lhe o porquê .... tentar que ele percebesse que as pessoas não faziam isso de maneira nenhuma por mal, mas era porque muitas vezes, as pessoas não sabem o que é que hão-de dizer, não sabem ... e não percebem esse sofrimento, não percebem que não indo ter com as pessoas e não falando com elas que é muito pior do que tentando aproximar-se...(EEAl -180702)
251 =========================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Do conjunto das categorias que constituem este conceito sobressai como
mais relevante a "Gestão de sentimentos" do doente. Nesta, as subcategorias
que as constituem são sobreponívéis às referidas em idêntico conceito mas
categorizado a partir de outras fontes. Por sua vez, a caracterização ou é
sobreponível ou complementar daquelas outras. É sobreponivel quando se
fala de disponibilidade ou de respeito, uma vez que a caracterização é idên
tica. É complementar quando se fala de compreensão, por exemplo. Isto por
que se, enquanto observador, constatei formas de gestão de sentimentos
reactivos, era expectável que a protagonista da intervenção (i.e., a enfermei
ra) verbalizasse alguns dos instrumentos dessa gestão. Ora a compreensão,
surge-nos numa das suas vertentes, como dos sentimentos reactivos, portan
to, com características que complementam as da gestão dos sentimentos
reactivos.
A categoria seguinte (i.e., "Potenciar as capacidades da família), merece
realce porque aparece claramente diferenciada no discurso das enfermeiras.
Ou seja, entendem a família como utente e que a sua intervenção junto
daquela tem características próprias. Tal não colide com o observado noutros
contextos, contudo, aí pareceu não ter tanta relevância. Tal justificar-se-á
porque alguns dos contactos entre a enfermeira e a família ocorrerão fora do
contexto da sala de quimioterapia.
Por último, surge-nos a categoria "mediar relações" que serve de ponte
entre as duas anteriores. Ou seja, assumindo a enfermeira papéis de desta
que na gestão dos sentimentos do doente e da família, é natural que se sinta
investida também do papel de mediadora das relações entre ambos. Este
papel nada tem a ver com a "intermediação centrada" referida em idêntico
conceito, mas com base nos dados da observação.
Também por comparação com os conceitos atrás referidos, verifica-se a
não referência, de modo relevante, a actividades ligadas à gestão da infor
mação. Isto não significa que as mesmas não existam subjacentes ao modo
como a enfermeira gere os sentimentos. Porém, a informação clínica que é
necessário trabalhar todos os dias com os doentes parece não ganhar realce.
Tal poderá ter duas leituras distintas. A primeira será a de que a enfermei-
_ _ _ _ _ _ — - _ _ _ _ _ — = = = = = = - - _ _ _ = = = = = _ „ = = = = = „ _ „ „ = _ = = = = _ _ . . _ _ _ _ _ _ . = = = = = = 2 5 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ra não lhe atribui valor ou que a fará por simples rotina. Considerando o
modo como é feita e que atrás expliquei, parece-me pouco plausivel esta
explicação. A segunda explicação terá a ver com o modo como inquiri as
enfermeiras e com a possível representação que aquelas têm da minha pes
soa. Ou seja, solicitei o relato de uma história relacional. Face a isto poderá
ter sido dado mais destaque a aspectos considerados estritamente relacio
nais. A hipotética representação que têm da minha pessoa, como ligado às
questões relacionais, também poderá ter contribuído para tal.
Portanto, em termos conclusivos, no essencial existe sobreposição entre o
referido pelas enfermeiras e o observado na entrevista de admissão e na sala
de quimioterapia.
5.4.3.2 — Consciência do processo relacional das enfermeiras
Existe a necessidade de definir alguns outros conceitos, os quais podendo
não nos dar elementos concretos acerca da intervenção clínica das enfermei
ras junto dos doentes, ajudar-nos-ão, todavia, a perceber até que ponto a
intervenção das enfermeiras é um processo consciente e intencional. A ser
assim, permitir-nos-á validar a intencionalidade do processo de intervenção
da enfermeira.
Os dados recolhidos através das entrevistas às enfermeiras, sugerem que
a consciência do processo relacional é um pressuposto da intervenção das
enfermeiras, sendo portanto anterior ao seu início. Sugerem ainda que esse
grau de consciência é variável entre os diversos elementos que constituem
este grupo. Assim, factores como a experiência de prestação de cuidados nes
te contexto, bem como a formação, parecem assumir-se como importantes na
justificação dessa variabilidade. Apesar disso, parece prevalecer um deter
minado padrão de grupo o qual poderá resultar, entre outros factores, do
modo como foram introduzidas as entrevistas de admissão, já atrás referido,
e das características da liderança clínica. Quer num caso, quer noutro, pare
ce estar subjacente uma atitude de preocupação com o desenvolvimento de
competências e de supervisão clínica. Assim e de modo geral, pode dizerse
253 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação
que as enfermeiras parecem ter consciência dos factores que facilitam a
aproximação ao doente, os quais, no seu entender, são (ver diagrama 9):
•S Atitude clinica proactiva;
S Aproximação por similitude;
S Aproximação por sensibilidade!
S Outras.
Diagrama 9 - "Consciência do processo relacional" - Perspectiva das enfermeiras.
.^Atitude clínica proactiva
Consciência dos factores de apro-/ ̂ Aproximação por similitude T ximação enfermeira/doente *
\ Aproximação por sensibilidade
1 Consciência dos objectivos Outras 1 /terapêuticos a alcançar
/^Consciência dos objecti-//vos alcançados
//jConsciência de outros
Consciência do X 1/ elementos relacionais
4 Lidar com as perdas
processo relacional > . Dificuldades / ̂ Lidar com sofrimento \ /percebidas \
* Lidar com a proximidade
consciência das / Outros dificuldades \
Víestão das , A Estratégias diversas
dificuldades > Procura de elementos de gratificação
Incluídos na subcategoria "Atitude clínica proactiva", encontramos ele
mentos tais como, os cuidados e a sua qualidade, ou seja, um cuidado de
qualidade num primeiro contacto pode ser um elemento determinante na
aproximação; a disponibilidade e proximidade! a "sorte", ou seja, conjugação
dos cuidados correrem bem e uma determinada pessoa gostar,' a leitura dos
indicadores de preferência do doente (i.e., compreender que o doente prefere
relacionar-se com a enfermeira A, e aceitar tal com naturalidade); o conhe
cimento prévio da situação clínica e partilha desse facto com a doente. No
extracto que seleccionei para ilustrar esta subcategoria, percebe-se, por um
lado a atitude proactiva da enfermeira na leitura das mensagens dos doen-
Dissertação de Doutoramento — 254
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
tes, e por outro, o acordo tácito entre as enfermeiras no sentido de darem
prioridade às preferências dos doentes.
.... eu acho que se calhar nestas coisas é mais a opção das enfermeiras. Elas estão sentadas na cadeira, não é? As doentes estão sentadas na cadeira e portanto a opção de .... eu acho que ela nunca ... não, ela a mim disse-me, depois daquela história de não terem conseguido picar a veia uma ou duas vezes, ela a mim pediu-me que sempre que cá estivesse, gostava que fosse eu, e a partir daí era sempre eu que me dirigia a ela. Porque a opção de o doente escolher, quer dizer, o doente pode escolher e tem todo o direito de escolher, quantas vezes aqui os doentes nos dizem, ... eles não são capazes de dizer, sentanrse na cadeira e não são capazes de dizer, "olhe eu quero que seja você a picar", isso eles não dizem, mas dizem através dos olhares, dizem através de, antes de entrarmos nas salas tocam-nos no braço e a gente já sabe o que é que isso significa, pronto ... porque depois lá dentro não, lá dentro eles não têm a coragem de dizer, "eu quero que seja a enfermeira fulana tal a picar", isso eles não fazem, nunca ouvi aqui esse comentário. Agora eu sei à partida que há pessoas que me preferem a mim, como há outras que preferem outras colegas, isso é assumido entre nós e nós sabemos disso .... (EEA3 - 010802)
Por sua vez, na categoria "Aproximação por similitude", os elementos têm
essencialmente a ver com similitude de vivências, em tempo mais ou menos
recente. Esta similitude de vivências não tem que ter necessariamente a ver
com o processo de doença. O mais comum é relacionar-se com acontecimen
tos da vida comum, tal como se demonstra no exemplo abaixo. Pode também
ter a ver com similitude de idades ou então com identificação com caracterís
ticas pessoais do doente. Outro factor de aproximação é a partilha da origem
geográfica e de conhecimentos comuns de pessoas.
... nem eu o conheci a ele, no primeiro contacto, nem ele me reconheceu a mim. Pronto, mas nós calculámos, ... quando ele diz que é de Évora, quando eu também, era natural que a gente ... e depois quando começámos na conversa percebemos que até tínhamos amigos e amigas em comum e deu para perceber perfeitamente que andámos juntos no Liceu e tudo isso...(EEAl - 180702)
A categoria anterior pode conjugar-se com a "Aproximação por sensibili
dade" na medida em que, o que está em causa nesta última é a sensibilidade
para a situação do doente. Esta sensibilidade resulta, muitas vezes, da com
preensão das dificuldades do doente, a qual parece ser tanto maior quanto
mais o profissional já tiver experimentado, de alguma forma, aquela vivên
cia, como se tenta demonstrar com exemplo apresentado. Explicando
melhor. Se o doente manifesta especial preocupação relativa à possível difi
culdade em cuidar dos filhos, a enfermeira parece ser tanto mais sensível
255 Dissertação de Doutoramento
Os utcnlcs e os enfermeiros: Construção de uma relação
para esta preocupação quanto mais ela já tiver experimentado essa mesma
dificuldade. Todavia, o factor sensibilidade vai mais além, sendo que a sua
característica mais marcante é a compaixão. Esta deve ser entendida como
sinónimo de sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia de outrem,
acompanhada do desejo de a minorar.
... aquilo marcou-me um bocado porque, não sei, porque eu também tinha uma miúda e porque,... é aquelas coisas que marcam a gente. Ver que a pessoa tenta ser ajudada, procura ser ajudada e não tem quem a ajude... (EEL-040702)
Por outro lado, a enfermeira manifesta também consciência dos objecti
vos terapêuticos que se propõe alcançar e os alcançados. Relativamente aos
que se propõe alcançar, podemos perceber objectivos enquadráveis na gestão
de sentimentos tais como:
S Gerir e ensinar a gerir a revolta e agressividade.
S Consciencializar o doente das razões da sua revolta.
S Promover a catarse de sentimentos.
S Desmistificar os medos.
S Alimentar a esperança.
Para além destes, são enunciados outros enquadráveis noutros grupos,
tais como^
S Intermediar a relação com os demais.
•S Preservar a intimidade familiar.
S Criar cumplicidade e proximidade.
S Incentivar capacidade de ajuda.
Nestes segundos o denominador comum parece ser o aprender a viver
melhor consigo mesmo e com os outros.
Este denominador comum é também partilhado pelos objectivos que as
enfermeiras entendem terem sido alcançados. Destes destaco:
S Permitiu que a doente preparasse a sua morte.
S Estabilidade relacional que permitiu à doente viver melhor consigo
e com os outros.
S Aceitação do tratamento (adesão terapêutica).
S Ajudou-a a gerir a relação com a filha.
= = _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ = „ = = = = = _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ 2 5 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
S Aceitar a situação, melhorar a relação intrafamiliar.
Todavia, a consciência do processo de relação vai mais além e é patente
através de outros elementos tais como, consciência do processo de construção
da relação, das suas capacidades clínicas e da necessidade de preparação
para desenvolver capacidades terapêuticas. O que afirmei mais atrás relati
vamente à variabilidade do nível de consciência no grupo das enfermeiras,
também se aplica neste caso. Ou seja, a consciência daqueles processos é
mais evidente numas enfermeiras que noutras.
Como último argumento relativo à consciência do processo relacional, fal
ta fazer referência a um conjunto de categorias que têm a ver com a cons
ciência das dificuldades associadas à relação com os doentes, bem como às
estratégias para lidar com essas dificuldades. A partir das entrevistas às
enfermeiras consegui identificar o conjunto das suas maiores dificuldades,
que são:
■S Lidar com as perdas,"
S Lidar com a proximidade;
S Lidar com o sofrimento;
S Outros
O "Lidar com as perdas" e "Lidar com a proximidade" são duas categorias
relacionadas entre si e que se interinfluenciam, como aliás é visível no
exemplo que apresento. Efectivamente a dificuldade em lidar com as perdas
é tanto maior quanto maior é a proximidade. Sobre o "Lidar com as perdas",
tanto é referida dificuldade sobre as perdas reais, como sobre a antecipação
das perdas. Ou seja, a dificuldade é assinalada a partir do momento em que
as enfermeiras consideram que o doente entrou em fase terminal. As dificul
dades em lidar com a antecipação das perdas caracterizamse pela ambiva
lência entre o dever humano e profissional de encarar a pessoa e o sofrimen
to que isso induz. As dificuldades em lidar com as perdas reais têm a ver
com os sentimentos de luto que lhe estão associados e que se estendem para
além do momento da perda e invadem outras esferas da vida que não só a
profissional. Penso que seja curioso assinalar que não foi feita qualquer refe
rência à perda associada ao fim da relação, em situações em que o prognóstico
257 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
médico é bom. Pelo que constatei enquanto observador e a partir das entrevis
tas às enfermeiras, o terminus da relação nesses casos, assemelha-se mais a
uma comemoração, com amplas e recíprocas manifestações de júbilo.
... foi uma das relações que me marcou mais aqui, foi essa com o L. Por vários factores, em primeiro lugar pela idade dele que era semelhante à minha, depois porque se criou este elo todo entre nós (...) E foi muito duro e muito complicado e custou-me imenso quando ele morreu...(EEA1 - 180702)
As dificuldades em "Lidar com a proximidade" têm a ver com tudo o que
a t rás foi dito. Efectivamente, quando a proximidade é grande passam com
mais facilidade a viver-se como seus os problemas e as dificuldades que são
do doente e família.
Quer uma quer outra destas categorias colocam a clássica questão das
fronteiras da relação profissional. Apesar disso e da consciência das dificul
dades, foram estes os relatos que as enfermeiras escolheram como obede
cendo ao critério "terem sido terapeuticamente positivos para o doente". Por
seu lado, os doentes também reconhecem, como demonstrarei oportunamen
te, que o modo como as enfermeiras se relacionam com eles, lhes colocará
dificuldades e problemas, associados aos cuidados propriamente ditos e às
perdas.
Detentoras desta consciência, as enfermeiras acabaram por desenvolver
um conjunto de estratégias, tendentes a facilitar-lhes a gestão do processo.
As estratégias são diversas e podem incluir algumas de defesa. Porém, a que
me parece digna de realce é a que consiste em focalizar a atenção sobre o
aqui e agora, não antecipando a perda e vivendo e valorizando, o mais possí
vel, cada momento. O exemplo seleccionado parece-me ser de uma clareza
total a este respeito. É demonstrada uma consciência plena da evolução pro
cessual dos doentes, no que diz respeito à esperança de vida em função da
sua condição médica! mas é também demonstrado o nível de
auto-conhecimento e de consciência no uso desta estratégia.
... Acho que é uma defesa que eu tenho, reconheço que é uma defesa, mas tem que ser assim. Para eu continuar a trabalhar neste serviço e para continuar aqui, tem que ser assim (...) Eu não posso pensar que tenho ali aquela pessoa e há muitos que eu sei que tenho e que vou tê-los cá muitos mais anos, mas há muitos que eu sei que não vão estar, e portanto se eu estou ali com eles a pensar
_ = = _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = _ = = = = = ™ _ _ = = = = = _ _ _ _ = = = = = = = _ _ „ „ = = = = = = = = = = _ „ „ _ = _ = 2 5 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
que ... nós já temos tanta experiência nisto, nestes tratamentos e nos tempos de vida, o tempo de vida que o medicamento dá e o tempo de vida que nós achamos que a pessoa vai ter, quase que conseguimos apontar a data em que eles vão morrer, porque é assim que a gente já funciona, e portanto se eu começo a pensar nisso, ou começo, porque eu já me conheço, ou começo a afastar-me das pessoas, no sentido de não as procurar e de não ir ter com elas ou começo a ser agressiva com elas (...) eu não pensava que ele ia morrer. Aliás eu não podia pensar que ele ia morrer, porque se eu pensasse que ele ia morrer, eu acho que não conseguia estar assim tão próxima dele como estive. Portanto, eu limitava-me a viver cada dia que ele aqui estava,.... tentar que ele vivesse aquele dia da melhor maneira possível (...) (EEA1 - 180702)
Penso que seja de assinalar a semelhança entre esta estratégia e a usada
pelos doentes para lidarem com o seu processo de vivência. Ou seja, também
os doentes, umas vezes incentivados pelas enfermeiras, outras de modo pró
prio, se focalizam sobre o aqui e agora. Aliás, em boa verdade, as enfermei
ras dizem ter aprendido esta estratégia com os doentes. Para além desta, as
enfermeiras procuram também elementos de gratificação pessoal em cada
relação.
A relação e as suas dificuldades, apesar dos riscos que lhe estão subja
centes, têm assim potencialidades para serem vividas como factores de
desenvolvimento pessoal.
Assim e em termos conclusivos, parece-me ter ficado claramente demons
trada a intencionalidade terapêutica da relação desenvolvida com os doentes
e familiares, bem como a consciência dos riscos envolvidos nesse processo
relacional. Por tais razões o processo relacional encerra um elevado poten
cial de auto-desenvolvimento para os elementos envolvidos.
5.3.3.3 - "Relação com a enfermeira":Perspectiva dos doentes
Resta, por último, caracterizar a intervenção da enfermeira a partir da
perspectiva dos doentes. Para que aquela se compreenda, é bom ter presente
que o que se encontra no centro das preocupações do doente é a sua vivência
do processo de saúde, com tudo o que lhe está associado. Tal é claramente
patente no discurso dos doentes. Mesmo tendo-lhes sido solicitado o relato
da história relacional naquele serviço, à semelhança do que foi solicitado às
enfermeiras, o que, invariavelmente, começou por sobressair foi o relato da
vivência do seu processo de saúde. Neste contexto, a enfermeira era enqua-
259 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação
drada, a par com outros profissionais, como recurso que o doente vai gerindo
dinamicamente e em resposta às suas necessidades. Esta forma de "gerir" a
enfermeira e outros profissionais como recursos não é sinónimo de menos
prezo, muito menos de instrumentalização ou secundarização. Significa, tão
só, que recorre a um determinado profissional (e.g., enfermeira) se nele
encontrar resposta para as suas necessidades. Estas são de natureza diver
sa, mas quase todas estão "contaminadas" pelos sentimentos do doente,
associados à vivência do processo. Assim, o modo como os profissionais lidam
com esses sentimentos acaba por ter uma importância significativa neste
processo de "gestão", da responsabilidade do doente. A isto está também sub
jacente a percepção que os doentes têm da intervenção dos profissionais, a
qual inclui a competência percebida, mas também a simpatia, disponibilida
de, capacidade de resposta, entre muitas outras.
Neste contexto, ganha significado conhecer a perspectiva do doente acer
ca das características de intervenção da enfermeira. Deste modo, percebe
remos se aquela intervenção tem ou não significado para o doente e, de entre
as actividades que percepciona, quais as que mais valoriza. Assim, apresen
tarei e caracterizarei todas as categorias integradas no conceito "Relação
com a enfermeira".
Através do relato dos doentes, percebi que, havia uma certa tendência
imediata para uma apreciação genérica da relação com a enfermeira. Quan
do era pedido um relato mais detalhado, normalmente começavam por
recordar o primeiro encontro, o qual corresponde à entrevista de admissão.
Desse primeiro encontro recordam a sua importância e dois componentes
concretos que considero significativos: o conteúdo cognitivo e o conteúdo
afectivo (ver diagrama 10).
Relativamente ao primeiro (i.e., conteúdo cognitivo), identificaram gran
de parte dos assuntos tratados, nomeadamente os que tiveram a ver com as
explicações dadas pela enfermeira relativamente ao processo de tratamento
e efeitos secundários, como se demonstra no exemplo abaixo. Estes conteú
dos não só eram recordados enquanto temas abordados como também eram
reproduzidos com relativa facilidade.
_ _ - = = _ _ _ - _ _ _ _ _ _ _ - _ = = _ = = = = _ _ _ „ _ = = = „ _ _ _ „ „ _ _ _ „ _ = = _ = = = = = = = „ _ _ „ _ _ 2 6 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
.... Foi, foi ela que me atendeu a primeira vez, explicoume os sintomas que eu ia ter, o que me ia acontecer....(EDJ f 30502)
Diagrama 10 "Relação com a Enfermeira" Perspectiva dos doentes.
Recorda I a entrevista
4 I a EntrevistaZ ^Identifica conteúdo cognitivo
^Identifica conteúdo afectivo
/ Simpatia
/ FacilitadoraséT Carinho
/
, Alegria
A. personalização
pisponibilidade /
, Alegria
A. personalização
pisponibilidade
'Õj / [nteresse/preocupação
.s / |A constância da presença
1 Características / Bsperança
B o o o
ia)
Terapêuticas de \ Enfermagem l
Gestão de i/^ *■ Sentimentos ^ .
D apoio/ajuda
0 respeito es
1 1 Escuta es
1 I
\
\ justiça
\ capacidade de decisão I \
\ justiça
\ capacidade de decisão
1\ ] ^ gestão da informação
H ^Gestão do — Ambiente <CT_
A coesão
Gestão do ambiente
\ \ apreciação geral
1 Característi £ /^Relação preferencial
\ cas Gerais O^Carácter informal
uomo se fosse família
Outros
Quanto ao segundo (i.e., conteúdo afectivo), são referidos um conjunto de
elementos que também reputo de grande significado. Assim, os doentes con
sideram que a entrevista os ajudou a aliviar a angústia, lhes transmitiu
uma sensação de benrestar e de sossego e que sentiram apoio. Para além
disso, consideram ainda que sentiram proximidade e disponibilidade da
261 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
enfermeira. Quer uma quer outra destas vertentes, é patente no extracto
seguinte.
... se eu precisasse de conversar não só sobre o tratamento mas também sobre algum problema que surgisse, ... pôs-me à vontade com toda esta situação (...) Estivemos ainda algum tempo a conversar, ... foi bom. A gente assim fica mais descansada...(EDA - 070502)
Considerando que a entrevista de admissão é o primeiro contacto entre a
enfermeira e o doente, e que a mesma parece assumir uma importância con
siderável na estratégia de intervenção daquela, é interessante constatar
que, passado algum tempo, existe a capacidade por parte dos doentes de
identificar elementos cognitivos daquela natureza. Porém, considero tam
bém de grande relevância a indelével marca afectiva referida pelos doentes,
acentuando o contributo que tal teve para o seu benrestar .
Relativamente à intervenção das enfermeiras no seu dia-a-dia, os doen
tes identificam também um conjunto de "Características Terapêuticas".
Começo por fazer referência às características que aqueles consideram como
"facilitadoras da relação". Dentro destas, principiam por destacar a "simpa
tia" (ver exemplo abaixo). Esta foi uma característica que reuniu dois con
sensos: ser "imagem de marca" deste grupo de enfermeiras e ser importante
para os doentes. Destaco a segunda por ser a que considero mais relevante
em termos terapêuticos. Na sua acepção, os doentes consideram que a sim
patia suaviza a intimidação e a fragilidade, cria bom ambiente, facilita a
relação e estimula a sua auto-estima, por se sentirem respeitados e bem aco
lhidos.
...Eu acho que é assim, a simpatia, o carinho, aquilo que elas dizem, "olhe se precisar de conversar, veja lá se quer conversar", mostram receptividade suficiente para que as pessoas as abordem a dizer, "olhe, hoje não me sinto bem, sinto-me em baixo, precisava de conversar um bocadinho...". E foi isso que me disseram na altura, "se precisar de conversar por alguma razão, porque não se sinta bem, que esteja chateada...." (EDA 070502)
Outro instrumento terapêutico identificado pelos doentes, muito próximo
do anterior e também facilitador da relação foi o "carinho". Tal como no caso
anterior, também aqui consideram que o carinho é um linimento importante
no combate à intimidação e fragilidade. Todavia, vão mais além e atri-
Dissertação de Doutoramento - 262
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
buem-lhe papel importante como elemento de ajuda, porque reforça a capa
cidade de luta do doente, chegando a considerado como característica profis
sional. Também a "alegria" é caracterizada de modo idêntico.
.... {silêncio) Às vezes só um olhar. Sabe, um olhar com carinho às vezes é uma resposta que você tem. Às vezes só um olhar, um olhar carinhoso para o modo que você está ... precisando de aconchegar e ... um olhar carinhoso já basta... (EDM - 110702)
"A personalização" é uma característica que adquire especial destaque
porque os doentes lhe atribuem uma importância considerável, como se pode
constatar pelos exemplos escolhidos. Esta compreende não só o facto de as
enfermeiras identificarem os doentes e respectivos familiares pelo nome,
mas também o facto de serem detentoras de conhecimentos particulares
acerca de cada um e de conferirem individualidade a cada relação. Em
alguns dos casos os doentes destacaram a sua possibilidade de escolherem o
local de tratamento, salientando que uma das razões que os levaram a optar
por este foi a forma personalizada como viram que os doentes eram tratados.
... Porque entretanto, também fiz alguns exames no IPO, em Lisboa e pronto, não sei se era de já estar habituada aqui a estas enfermeiras, achei-as assim um bocadinho mais frias, porque afinal acabam por ser muito mais pessoas e elas aqui já nos conhecem, já nos conhecem pelo nome, as vezes que a gente vem, as vezes que a gente não vem, porque é que não vimos...(EDJ - 130502)
... Mas sabe que uma pessoa é reconhecida aqui?!!... (EDA - 070502)
Este conjunto de características que acabei de referir, sendo facilitadoras
da relação, são, ao mesmo tempo e no entender dos doentes, instrumentos
terapêuticos. Por tal razão, têm uma relação muito próxima com alguns dos
instrumentos que referirei a seguir, nomeadamente com a "Gestão de senti
mentos". Efectivamente, os doentes identificaram um conjunto de interven
ções terapêuticas de enfermagem com características sobreponívéis àquelas
que foram incluídas em categoria homónima e resultante da categorização
dos dados de observação e das entrevistas de admissão. A primeira de entre
essas características referidas pelos doentes é a "disponibilidade". Esta é
uma característica definida em dois níveis diferentes. A disponibilidade
numa perspectiva mais existencial, enquanto abertura aos outros, como a
exemplificada no primeiro extracto abaixo; e a disponibilidade numa pers-
263 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
pectiva mais pragmática, enquanto manifestação de ter tempo para dar
àquele doente em concreto e para resolver os seus problemas, como aquela
que foi manifestada no segundo exemplo apresentado. Tanto num caso como
noutro é-lhe atribuída importância terapêutica pelos doentes. Recordo que
esta característica tem estado presente em todas as categorizações feitas a
part ir dos dados de qualquer fonte.
... aquilo que elas dizem, "olhe se precisar de conversar, veja lá se quer conversar", mostram receptividade suficiente para que as pessoas as abordem a dizer, "olhe, hoje não me sinto bem, sinto-me em baixo, precisava de conversar um bocadinho...". E foi isso que me disseram na altura, "se precisar de conversar por alguma razão, porque não se sinta bem, que esteja chateada...." Não é só por motivos médicos e de enfermagem, mas é o apoio psicológico.... (EDA - 070502)
... Portanto, eu numa altura em que fiz uma crise de diarreia a minha mulher telefonou para cá. Foi atendida e foi bem atendida e disseram-lhe o que devia fazer.. .(EDV- 130802)
Também a manifestação de "interesse/preocupação" é relevada pelos
doentes. Assinalam a sua importância como elemento de ajuda, principal
mente quando a mesma é manifestada em momentos especiais e cruciais
(e.g., momento da notícia de uma recidiva como no exemplo abaixo, conhe
cimento dos resultados dos exames complementares de diagnóstico de con
trolo). Destacam também a percepção da preocupação das enfermeiras com
determinado tipo de pormenores, como por exemplo mobilizarem-se para
minimizarem o sofrimento inerente a uma punção ou tentarem esconder a
morte de um par de alguns dos doentes. Porém, a preocupação era também
percebida quando as enfermeiras telefonavam aos doentes a pergunta-
rem-lhes pela evolução ou quando faziam igual pergunta no dia-a-dia, em
cada reencontro.
... Todo o mundo ficou muito preocupado, ligaram para mim e aqui foi ... senti assim que estava todo mundo me apoiando muito e sentiu realmente comigo a ... os mesmos sentimentos que eu estava tendo... (EDM- 110702)
Este elemento (i.e., preocupação), não estando presente com igual deno
minação nas categorizações resultantes dos dados de outras fontes, está
porém, presente de forma discreta e transversal. Assim, esta preocupação é
patente na vigilância sistemática dos doentes, na antecipação dos proble-
==================================================================== 2 6 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
mas, entre outros. Todavia, a subcategoria "presença" construída a partir do
discurso das enfermeiras ou a "preocupação com o incómodo causado pelos
cuidados" observado na sala de quimioterapia, são outras formas de mani
festar preocupação com doente.
Como complemento da anterior característica, assinalo a "constância da
presença". Ou seja, o que está em causa, não é ter sentido a presença da
enfermeira num determinado momento, mas antes a constância dessa pre
sença no tempo. A certeza desta presença confere segurança aos doentes,
pois sabem que podem contar com aquela pessoa, tal como se pode verificar
na fala desta doente.
... acompanham-nos, são pessoas que não saem dali, que não nos largam, quer dizer, podem ir a outra sala ver qualquer coisa, mas depois, "deixa-me lá ir ver o que é que se está a passar"...(EDJ1 - 110702)
Também neste caso, à semelhanças de outros anteriores, é feita analogia
com a presença da família. Ou seja, esta, mesmo que não esteja fisicamente
com eles, sabem que podem contar com ela. Ao fazer esta analogia, os doen
tes acabam por atribuir esta característica à enfermeira.
Também existe referência por parte dos doentes, ao papel de promoção
da "esperança" assumido pela enfermeira. Porém, o modo como se lhe refe
rem assume algumas particularidades curiosas. A ideia com que se fica é
que os doentes vão "beber" esperança às enfermeiras, quer na forma como as
"usam" para contextualizarem a informação de que dispõem, quer no
ambiente que elas criam. Também neste caso existe coincidência entre a
importância atribuída a este elemento, a partir de diversas fontes.
O elemento seguinte denominei-o "apoio" (ver exemplo abaixo). Esta
denominação resulta da expressão "sentir apoio" utilizada frequentemente
pelos doentes. Alguns referiram que o apoio concedido pelas enfermeiras
tem semelhanças, mais uma vez, com o concedido pela família, outros com o
apoio de um amigo. Em qualquer dos casos, dizem ser um apoio que os faz
sentir amparados, amados, queridos e que dá forças para continuarem a
lutar. Caracterizam-no ainda como um apoio permanente.
265 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
.... Sentir o apoio, o carinho, saber que a pessoa está ali te dando .... acho que ela depois se sente até com a obrigação de tentar melhorar.... ( E D M - 110702)
A semelhança da "preocupação", o "apoio" é um elemento presente de
forma transversal em diversas categorias e subcategorias de categorizações
construídas a part ir de dados resultantes de outras fontes. Portanto também
neste caso, se pode afirmar que existe sobreposição entre as actividades
desenvolvidas pelas enfermeiras e as percepcionadas pelos doentes.
Também o "respeito" é referido de forma expressa pelos doentes, fazendo
até uma comparação curiosa com a família. Considero significativo o facto de
os doentes se sentirem respeitados tal como se sentem na sua própria famí
lia. Sobre o respeito existem diversas referências nas categorizações atrás
referidas, pelo que também aqui a sobreposição existe.
.... Em lugar de terem pena de dizerem assim, "coitadinha, está com câncer e vai morrer..." não, t ratam com ... respeito, com carinho, dando aquele apoio mas não é aquela pena, aquele dó, não, é t ra tar com respeito, escutar o paciente, ter alguma paciência de escutar o paciente.... (EDM- 110702)
A "escuta" é também claramente identificada pelos doentes, tal como se
constata no exemplo anterior. É realçada a capacidade de as enfermeiras
darem atenção aos doentes e a importância que tem para eles o sentirem-se
escutados com atenção. É acrescentado ainda pelos doentes que às enfermei
ras se podem dizer coisas que não se dizem à família para não os magoar.
Com este pormenor é marcada a diferença entre a escuta das enfermeiras e
a da família. Este pormenor é curioso na medida em que, havendo diversas
referências anteriores em que o papel da família e da enfermeira eram
sobreponívéis, aqui acaba por ser marcada uma diferença considerável a
qual atribui características profissionais a uma atitude. Evidencia também a
preocupação do doente, com a sua família, transformando-o assim de pessoa
objecto de cuidados, em prestador de cuidados.
A característica seguinte identificada pelos doentes na actividade de
intervenção das enfermeiras é a "justiça". Este conceito de justiça parece ter
uma natureza equitativa na medida em que, evidenciando-se a não distinção
entre doentes na prestação de cuidados, é ao mesmo tempo evidenciado que
- - _ - _ - — _ _ - - _ _ _ _ _ — _ _ _ _ _ _ ™ ^ _ _ „ ^ _ _ . „ _ _ „ _ _ . . „ _ _ „ _ _ 2 6 6
Dissertação de Doutoramento
Os ulcntcs c os enfermeiros; Construção ele uma relação
havia diferenciação positiva. Ou seja, que era tida particular atenção com
quem mais precisava.
Os doentes destacam também a "capacidade de decisão" das enfermeiras.
Esta foi por eles identificada em diversas situações de cuidados, mas parece
ser particularmente apreciada em situações difíceis que as enfermeiras con
seguem detectar e ultrapassar. A capacidade de decisão referida pelos doen
tes em algumas das situações, parece extravasar o conteúdo funcional da
enfermeira, nomeadamente quando esta se substitui ao médico, por ausên
cia deste. Todavia, é de assinalar a importância do reconhecimento de com
petência no contexto da relação. Ou seja, não sendo reconhecida competência
dificilmente confiam na pessoa ao ponto de desenvolverem uma relação de
proximidade. Penso aliás que seja exemplo significativo disto o relato feito
por uma enfermeira recénradmitida no serviço. Segundo ela, numa fase ini
cial, os doentes manifestavam preferência pelos cuidados de outras enfer
meiras em quem confiavam. Ou seja, de algum modo, ela teve que provar
paulatinamente a sua competência até confiarem nela para aceitarem os
seus cuidados e concomitantemente, o envolvimento relacional.
A última característica identificada pelos doentes nesta categoria (i.e.,
"Gestão de sentimentos") é a "gestão de informação". Sobre esta é dito pelos
doentes que as enfermeiras adoptam uma de duas atitudes^ ou lhes forne
cem a informação ou o caminho para a alcançar, como se pode verificar no
extracto que seleccionei.
.... Sim. Elas davam ou faziam como eu chegar a essa informação... (EDM — 110702)
Mas também é assinalado o papel de contextualização da informação
reconhecido às enfermeiras. Por outro lado, reconhecem que a enfermeira
faz uma gestão da informação relativa a más notícias no sentido de evitar
magoar os doentes. O último aspecto assinalado diz respeito ao modo tran
quilizador como a enfermeira, com quem tinham relação preferencial, expli
cava. Esta forma de definir a gestão da informação acaba por fazer a simbio
se perfeita entre aquela e a gestão de sentimentos, a qual, aliás, já t inha
2 6 7 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
sido indiciada quando a defini com base nos dados recolhidos a partir de
outras fontes.
A última categoria inserida no constructo "Características Terapêuticas
de Enfermagem" é a "Gestão do ambiente". Esta compreende duas caracte
rísticas, uma referente à gestão do ambiente relacional intra-equipa e que
denominei de "coesão"; e a outra relativa ao papel de gestão do ambiente
relacional com os doentes e que denominei "gestão do ambiente".
Relativamente à "coesão", é reconhecido pelos doentes que entre as enfer
meiras e os diversos profissionais envolvidos existe uma ambiente de coesão
que chegam a comparar ao existente numa família. Esta coesão é considera
da importante uma vez que melhora a qualidade das respostas dadas ao
doente.
Por seu lado, na "gestão do ambiente" assinalam duas vertentes distintas
e complementares e que acabam por se plasmar no ambiente de benres tar
vivido na sala. Por um lado, a preocupação com o individual, nomeadamen
te, os mais desanimados, tentando animá-los, mas também tentando capita
lizar a ajuda dos que têm capacidade para tal, em prol dos outros, como se
pode perceber pelo extracto que se segue; por outro lado, o grupo e a tentati
va de criar bom ambiente na sala e de organizar convívios entre os doentes.
... E mesmo elas explicaram que há pessoas que são mais bem dispostas que outras e elas por vezes têm que utilizar isso no bom sentido para que aquelas pessoas que estão muito em baixo, com pensamento negativo "estou aqui, estou a sofrer e vou morrer", não sei que mais, sejam colocadas ao pé de pessoas que estejam com o astral mais em cima, para que se animem e absorvam um bocadinho da força das outras pessoas. E eu acho que isso é um bom ... (EDA -070502)
Do ponto de vista da "Características gerais" da relação são de assinalar
principalmente três elementos relativos à sua natureza. O primeiro tem a
ver com a existência ou não de relação preferencial com uma enfermeira. A
este respeito o discurso é de algum modo ambivalente. Por um lado, é afir
mado que a relação preferencial é com todas. Mas, noutros momentos aca
bam por reconhecer que, em caso de necessitarem de algo muito específico se
dirigem a uma enfermeira em concreto. Ou então que preferem as explica-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ções dadas por uma determinada enfermeira. Este discurso ambivalente
parece ser um esforço deliberado de não ferir susceptibilidades.
O segundo elemento tem a ver com a natureza considerada "informal" da
relação. Ou seja, quando comparam a relação que mantêm com a enfermeira
com a que mantêm com o médico, entendem que a primeira é de natureza
mais informal. Com as enfermeiras fala-se sobre o dia-a-dia, como se fosse
com um amigo, sendo que qualquer assunto pode ser tema de conversa, sem
qualquer tipo de constrangimentos. Às enfermeiras até se fazem visitas de
natureza social e reconhece-se reciprocidade na relação, estabelecendo mais
uma vez o paralelismo com a familia. Esta informalidade gera proximidade e
cumplicidade.
O terceiro elemento diz respeito ao tipo de papel assumido pela enfermei
ra na relação. Sobre isto dizem os doentes que é como se fosse "a sua famí
lia". Entendem que a enfermeira representa o papel de alguém (familiar)
muito próximo (e.g., irmã, mãe,...). Isto vem reforçar o que foi referido rela
tivamente ao segundo elemento desta apreciação geral.
Do ponto de vista global os doentes entendem que a relação com a enfer
meira é muito positiva e que o relacionamento é bom.
Olhando agora para o conjunto de características identificadas pelos
doentes destaco o que considero serem as mais importantes. Assim, conside
ro importante o facto de os doentes recordarem e identificarem os conteúdos
da primeira entrevista. Esta importância advém dos factos de a mesma, em
alguns casos, já ter acontecido há um tempo considerável e de serem recor
dados os seus aspectos cognitivos e afectivos. Estes últimos são particular
mente relevantes porque o doente normalmente apresenta-se perante a
enfermeira acumulando um elevado grau de ansiedade e angústia, com um
grande desconhecimento relativamente ao tratamento que vai iniciar. Ora
se passado tanto tempo são recordados aqueles dois factores, parece ser
indicador de que a enfermeira lidou de forma adequada quer com os senti
mentos quer com a informação.
Relativamente aos factores considerados como facilitadores da relação,
mas também como terapêuticos, entendo que se podem agrupar em dois bio-
269 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
cos, naturalmente complementares entre sï- um que inclui a "simpatia",
"carinho" e "alegria" e o outro que inclui a "personalização". Por vezes, a
simpatia é considerada quase o parente pobre da relação terapêutica. Con
tudo neste caso os doentes atribuem-lhe uma importância significativa, bem
como à alegria e carinho. A importância atribuída à personalização não sur
preende, vindo apenas reforçar o que parece já claro.
Quanto à "Gestão de sentimentos" sublinharia o facto de os doentes iden
tificarem de modo tão evidente tantos elementos e de estes serem sobreponí-
véis aos identificados a partir da categorização de dados resultantes de
outras fontes. A gestão de informação não aparecendo aqui com a evidência
que lhe foi atribuída noutros contextos, acaba por estar presente de forma
integrada com a gestão de sentimentos, mas também na forma como a pri
meira entrevista é recordada e que já atrás foi falado.
De assinalar por fim o reconhecimento da gestão do ambiente desenvol
vido pela enfermeira, como elemento terapêutico importante.
5.4.3.4 — Necessidades expressas pelos doentes-' Perspectivas cruzadas
Outra forma de conferir a validade e a consistência do processo relacional
entre a enfermeira e o doente é através da comparação dos conceitos e res
pectivas categorias, relativas ao referido processo e as resultantes da análise
das entrevistas dos doentes, mas no que têm a ver com as necessidades
expressas. Ou seja, trata-se de tentar responder à questão' Existe concor
dância entre as necessidades expressas pelos doentes e as respostas das
enfermeiras? Os dados que apresentarei a seguir, não são, naturalmente,
uma avaliação exaustiva das necessidades dos doentes. São a avaliação que
resulta, quer do que os doentes expressaram através das entrevistas, quer
do observado em contexto, durante a entrevista de admissão e a administra
ção da quimioterapia.
Começo pelo expresso pelos doentes nos seus relatos. Quando solicitei
estes relatos, o objectivo era que os mesmos se cingissem ao processo rela
cional. Contudo verifiquei que, invariavelmente os doentes iniciavam o seu
relato através da sua história pessoal. Ou seja, primeiro relatavam-me a
_ _ _ _ - _ _ _ - _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ - _ _ _ „ _ _ _ » „ _ _ _ = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ _ _ _ _ „ _ _ _ _ « . . _ 2 7 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
história do seu processo de doença e só após, o processo relacional com a
enfermeira. Tal pareceirme inicialmente uma necessidade em termos
humanos, mas um desperdício em termos de investigação. Todavia à poste
riori, veiose a revelar de grande utilidade na compreensão e validação do
processo relacional entre o doente e a enfermeira.
Assim, a partir da análise desses relatos compreendi que a "A vivência do
Processo de Doença" tem, para estes doentes, essencialmente três compo
nentes (ver diagrama 11), "sentimentos", "dificuldades" e "estratégias".
Diagrama 11 A "Vivência do Processo de Doença ".
«Sentimentos
.Dificuldades
' Estratégias
siedade
«do
batimento, fragilidade
luto/perda
ratidão 'ificuldades inerentes à quimioterapia
Ambiguidade do ambiente na sala
arácter oscilante do benrestar Experiências anteriores e doença
Gerir a informação
Gestão do benrestar
Positividade
k Gestão das relações
Ajudar os Pares
titude positiva
iver cada momento
elação com família
elação com voluntárias
elação com AAMs
elação com médico(s) nteracção com pares
Relação com a enfermeira
ercepção da necessidade de ajuda
►Usarse a si própria
Tganizar actividades
Ficou patente que existe um conjunto de sentimentos que está presente
ao longo de todo o processo, mas que é particularmente intenso no momento
271 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
em que se inicia a quimioterapia. Uma das possíveis razões para isso radica
no modo como o processo de diagnóstico e t ratamento decorre. Ou seja, a
quimioterapia pode ocorrer como primeira ou segunda medida terapêutica.
Em qualquer um dos casos, a distância temporal relativamente ao momento
do diagnóstico é ainda curta. Acresce a isto que, até então, a relação com os
profissionais de saúde foi essencialmente com o médico, tendo esta, caracte
rísticas muito próprias, como aliás é referido pelos doentes, ou então com
enfermeiros mas em contextos em que o aprofundamento da relação nor
malmente não ocorre (e.g., internamento). Neste contexto, o doente apresen-
ta_se perante a enfermeira transportando um conjunto de sentimentos mui
to intensos e todos eles relacionados com a vivência do diagnóstico de cancro,
da quimioterapia e do que isso representa. Assim, os doentes referem (ver
diagrama 11):
S Ansiedade;
S Medo;
S Abatimento e fragilidade,'
S Luto e perda.
A "ansiedade", tal como se pode constatar no extracto abaixo, está nor
malmente associada ao início do processo de tratamento, à doença e ao que
ouviu dos outros sobre os tratamentos, bem como à urgência em acabar o
tratamento.
... eu quando iniciei vinha nervosa como penso que toda a gente fica um bocadinho nervosa (...) Tinha a ver com a doença, t inha a ver com os tratamentos que, segundo aquilo que nós ouvíamos, eram muito violentos. Eu comecei logo a fazer o "vermelho" e tudo, portanto eu sabia que ia ser um bocado violento... (EDJ -130502)
Por sua vez o "medo" é um pouco mais abrangente e tanto pode ser refe
rido como um sentimento difuso, mas sempre presente, como pode ter causas
identificáveis como por exemplo, o medo que o tempo de espera pela cirurgia
possa agravar a sua situação de saúde, o medo do que o futuro lhes possa
reservar, nomeadamente, a possibilidade de ficar acamado e dependente, o
medo da doença, entre outros. Por vezes, associada ao medo é também refe
rida a angústia.
~ ~ " " " = = = = = = = = = " = = = = = = = = = " = = = = = = ~ — — — — — - — 272 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
... às vezes chegam uns assim muito eufóricos e isso tudo, depende do temperamento de cada um, mas todos têm a mesma coisa, estão cheios de medo, cheios de carência mesmo, cheios de vontade de sair correndo para o mais longe possível daqui.... (EDM - 110702)
O abatimento e fragilidade caracterizam-se pela sensação de vulnerabili
dade, mas também de incapacidade e insegurança em lidar com o processo
de doença. Qualquer um destes sentimentos tem subjacente a necessidade
de apoio.
Por sua vez, o "luto e perda" é uma constante desde que lhes foi diagnos
ticada a doença oncológica. De todo o modo, o luto e perdas que mais se des
tacam são as dos pares, principalmente daqueles com quem tinham desen
volvido uma relação mais próxima, como se exemplifica abaixo. Consideran
do que a relação com estes pares resultou de conhecimentos recentes, tais
sentimentos poderão justificar-se através da projecção da sua situação na
deles.
.... Vários, sim, do meu grupo ... quando nós formámos o grupo, já foi ... vários que ficavam aqui comigo, que eu ficava conversando, que eu queira ajudar, já foram. Costumamos dizer que passou para o andar de cima... (EDM- 110702)
Estes, são o conjunto de sentimentos que os doentes dizem estar presen
tes no momento em que se encontram pela primeira vez com as enfermeiras
(na entrevista de admissão) para darem início ao processo de quimioterapia.
Relativamente às "dificuldades", começam por assinalar as inerentes à
quimioterapia, nomeadamente, os efeitos secundários. Sobre estes subli
nham que só quem passa por isso é que poderá compreender, tal como é
afirmado no extracto abaixo apresentado.
... isto, os efeitos destes tratamentos só quem passa por eles é que sabe como é que é. E às vezes, pronto a gente passa muitos fins-de-semana em casa terríveis.. . (EDV- 130802)
Uma outra dificuldade tem a ver com a ambiguidade do ambiente vivido
na sala de quimioterapia (ver próximo extracto). Esse espaço é caracterizado
como um ambiente agradável, com diversos elementos de conforto e onde
encontram pares que se tornaram amigos, bem como as enfermeiras, por
quem dizem nutrir um carinho especial. Mas é, ao mesmo tempo, o espaço
273 Dissertação de Doutoramento -
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
onde lhes é induzido sofrimento e o qual, por si só, lhes relembra a sua con
dição e onde até os cheiros são incomodativos. Neste contexto, as referências
àquele espaço são carregadas de ambiguidade, a qual, por vezes, parece
es tenderse às pessoas, ainda que tal seja negado.
...Eu associo sabe o quê? O sofrimento não o associo a elas (...) Houve uma altura que associei quando elas me picaram uma data de vezes (ríuse) (...) Mas, associo ao ambiente, ao espaço, não a elas, o espaço (...) Mais ainda ao cheiro. Então digo assim, "está aqui um cheiro a medicamentos" e elas dizem, "não, não está". E eu digo, "está" (peremptório). O cheiro, as cadeiras, a televisão, a espera, o olhar para os frascos à espera que se esvaziem... (EDA - 070502)
A última dificuldade referida tem muito a ver com as duas anteriores,
visto ser referente ao carácter oscilante do benrestar . Ou seja, o benres tar
destes doentes oscila, no espaço de uma semana, entre niveis que eles consi
deram muito bons e outros muito maus. Os relatos indicam que normalmen
te no próprio dia da quimioterapia e nos imediatamente a seguir, se atingem
os níveis mínimos de bem-estar. Após isso, inicia-se uma recuperação que se
prolonga até ao próximo dia de tratamento e durante o qual quase se esque
cem da sua situação, dizendo que parece não terem nada. Os doentes reco
nhecem dificuldades de lidar com esta oscilação com ciclos tão curtos.
Por último e sobre as "estratégias" usadas pelos doentes, podemos defi
ni-las genericamente como os modos como aqueles gerem os recursos à sua
volta para lidarem melhor com a vivência de saúde. Esta gestão parece
orientar-se para si próprios, para os outros enquanto recursos e para os
outros enquanto destinatários da sua ajuda.
No primeiro caso fazem uso de experiências anteriores que os possam
ajudar. Estas têm a ver com situações em que tenham lidado com problemas
de onde possam retirar mais valias para a situação actual. Tal é caso de
experiências com familiares ou amigos portadores de doença oncológica.
Neste caso, normalmente recolhem como exemplo a sua capacidade de luta
ou a sua coragem. A par com isto, tentam também gerir a informação que
lhes vai chegando. Este não é um papel passivo de simples receptores.
Vários são os exemplos em que houve uma procura activa, quer em artigos,
quer na Internet, como se pode constatar na fala desta doente.
_ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = „ _ _ „ = = = = _ _ „ = = = = _ _ _ „ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ „ . . _ „ _ „ „ _ _ 2 ? 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
... livros, Internet e tudo, eu fiz recolha. Mas depois de 1er tudo isso, para não ficar mal encaminhada, eu, de vez em quando, não sei se as enfermeiras se apercebiam, eu fazia uma perguntinha, para quê? Para ir naquele caminho certo.... (EDJ1-110702)
Naturalmente que esta atitude tem uma relação directa com o estádio de
desenvolvimento cognitivo. Ou seja, parece que quanto maior aquele é,
maior será também a proactividade na procura e gestão da informação. Na
gestão da informação, muitas vezes a enfermeira é "usada" como recurso,
quer enquanto fonte, quer como alguém que é capaz de contextualizar a
informação recolhida, tal como aliás já referi noutro momento. A gestão da
informação tem relação directa e próxima com a gestão do benrestar . Ou
seja, o modo como gere a informação pode contribuir para o seu benrestar .
Porém a gestão do benres tar tem a ver essencialmente com actividades
desenvolvidas pelos doentes no sentido de ultrapassarem dificuldades con
cretas. Por exemplo, sabendo que precisam de manter um bom estado nutri
cional, como é que atingem tal objectivo quando não têm qualquer apetite?
Como é que lidam com o maPestar acentuado, mas difuso que ocorre nor
malmente, no próprio dia da quimioterapia, como no caso aqui apresentado?
São os próprios doentes que acabam por desenvolver estratégias que os aju
dem a ultrapassar estas dificuldades.
... Faço assim, venho fazer o tratamento, dá até aí às três da tarde, e depois vou-me deitar. Vou deitá-la, como se costuma dizer. E então tudo o que altere esse programa que eu tenho estabelecido, incomoda-me. Porque já sei que vou ficar mal... (EDA -070502)
A par com isto ou como complemento, esforçanrse por manter uma atitu
de de positividade perante a situação (ver extracto abaixo). Para esse objec
tivo contribuem algumas das estratégias já descritas. Mas também o modo
como se relacionam com as pessoas à sua volta (e.g., enfermeiras, pares), às
quais parece irem "beber" a esperança que às vezes lhes falta. Por outro
lado, esforçanrse por viver e valorizar cada momento e por "viver com a
doença mas não viver a doença".
...Mas também não posso viver a vida inteira com medo e deixar de viver o dia-a-dia, porque vou ficar doente e vai-me acontecer o mesmo e nã, nã nã .... Então essas pessoas têm que se ajudar... ( E D A - 070502)
275 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção tie uma relação
A gestão das "estratégias" orienta-se também para os outros enquanto
recursos, tal como atrás referi. Isto consiste essencialmente na inventaria
ção das pessoas à sua volta que, de algum modo, poderão ajudar a viver
melhor com esta situação. Entram neste grupo os profissionais de saúde,
mas também a família, bem como os pares. Através do modo como se rela
ciona com todos eles, conseguem angariar elementos que contribuem para
viver melhor com a sua situação.
Por último, orienta-se também para os outros enquanto destinatários dos
seus cuidados. Neste caso, cuidar dos outros é uma forma de cuidar de si
próprio. Dito por outras palavras, enquanto sentir que é capaz de cuidar dos
outros, sejam eles pares ou familiares, sente-se útil e capaz, como tal, neces
sário a alguém e isso contribui para o seu benrestar .
Deste conjunto de elementos relativos à vivência do processo de doença,
ressaltam alguns que reputo de grande importância e que validam as estra
tégias, quer diagnosticas, quer de intervenção das enfermeiras. Assim, quer
os "sentimentos", quer as "dificuldades", encontranvse no centro das preocu
pações das enfermeiras, as quais ensaiam tentativas de resposta. Mas tam
bém as "estratégias" validam de algum modo as estratégias de intervenção
das enfermeiras, na medida em que elas se oferecem como recurso a vários
níveis, nomeadamente o relacional, de fonte e de contextualização da infor
mação, de gestão do grupo de pares com objectivos de promoção da sua capa
cidade de ajuda, de gestão das relações familiares com o objectivo de poten
ciação da capacidade de ajuda, de estimulação das estratégias individuais de
gestão do benres tar e de estimulação de projectos pessoais.
Durante a entrevista de admissão e no contexto do processo de interacção
que aí se desenrola, quer o doente, quer a família acabam por expressar
outros sentimentos para além dos já referidos, bem como algumas solicita
ções dirigidas à enfermeira.
Apesar de tudo, esta expressão de sentimentos e de solicitações que ocor
re durante a entrevista de admissão não é algo de imediato e espontâneo.
Gostaria de relembrar que, neste momento, são ainda dois estranhos que
estão frente-a-frente, sendo que a enfermeira está a desempenhar um papel
= = = = = _ = - _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = - _ _ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ = = = _ _ _ _ . . _ _ _ „ „ . _ _ _ = = „ _ _ _ „ _ _ _ _ 2 7 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
activo, de tentativa de desvendamento do doente e família. Se juntarmos a
isto o estádio da vivência do processo, compreendese que por vezes o doente
se sirva de um conjunto de "técnicas de fuga" que lhe permitem ir lidando
com a situação. Aquelas técnicas são, portanto, usadas para dar resposta a
duas dificuldades que se interinfluenciam: a dificuldade em lidar com as
perguntas colocadas pela enfermeira (pessoa ainda estranha) e a dificuldade
em lidar com a sua própria vivência. As técnicas mais frequentemente
encontradas são as constantes no diagrama 12.
Diagrama 12 "Técnicas de Fuga" usadas pelos doentes durante a entre
vista de admissão.
Relato pormenorizado do ^processo de doença
/ Eelato pormenorizado do per/ * curso médicohospitalar
Técnicas de fugar—►Respostas inespecíficas e \ marginais
V^Fuga directa à questão colocada
Realce das mensagens positivas
O uso destas técnicas é variável ao longo da entrevista, embora se possa
dizer que é mais notório na parte inicial. Tal, não tem só a ver com o facto já
referido de serem dois desconhecidos, mas também com ser esse o momento
da entrevista em que mais sistematicamente se tenta "Compreender a auto
interpretação" do doente. Ou seja, se tenta "mexer" em algo muito pessoal e
ao mesmo tempo doloroso.
Perante esta estratégia dos doentes, a enfermeira socorrese de um con
junto de técnicas de comunicação que lhe permitam alcançar os seus objecti
vos que nesta fase, têm a ver com a concretização de uma avaliação diagnos
tica mínima. Contudo, este não é um fim si próprio, na medida em que, sub
jacente àquela avaliação está sempre um objectivo terapêutico de ajuda ao
doente. Assim se compreende que estas técnicas sejam usadas para respon
der às referidas tentativas de fuga do doente e família, mas também com
objectivos terapêuticos. As técnicas que percebi serem usadas são as cons
277 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
tantes no diagrama 13. Este conjunto de técnicas, usadas pelo doente e pela
enfermeira, é um argumento demonstrativo da intencionalidade e do profis
sionalismo da intervenção da enfermeira.
Diagrama 13 - "Técnicas de comunicação" usadas pelas enfermeiras durante a entrevista de admissão.
. Concreção e concisão
i Focalização sobre o presente
L Eco
Técnicas de , ^ Linguagem comum comunicação | r Escuta
V Resumo
v Clarificação
Flexibilidade
À medida que a entrevista de admissão decorre, as condições vão-se
modificando. Então verifica-se que o doente e família vão, paulatinamente,
substituindo o uso das técnicas de fuga por outras expressões, dirigidas à
enfermeira, nomeadamente, "expressão de sentimentos" e "solicitações".
A "expressão de sentimentos" no contexto da entrevista de admissão
assume-se como uma categoria relevante na medida em que, muitas vezes,
parece constituir-se como uma urgência. Isto é, o doente e família parecem
ter extrema urgência em encontrar um espaço/tempo para expressarem "o
que lhes vai na alma". Para os doentes e familiares deste estudo, a entrevis
ta de admissão pareceu ser, muitas das vezes, o primeiro espaço em que tal
lhes foi permitido e até incentivado, como mais abaixo veremos. Os senti
mentos expressos pelos doentes durante a entrevista de admissão foram
categorizados tal como consta no diagrama 14.
Atrás, quando caracterizei o modo como os doentes chegam à entrevista
de admissão, fiz referência a um conjunto de sentimentos de que os próprios
doentes t inham consciência (i.e., ansiedade, medo, abatimento e fragilidade,
e luto e perda). Todavia, durante a entrevista de admissão o leque de senti
mentos alarga-se sobremaneira (ver diagrama 14).
_ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = „ _ _ _ _ « = = = = = = „ _ „ = = = = = = „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ = = „ _ _ _ _ _ _ „ „ . _ _ _ „ 2 7 g
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Diagrama 14 "Expressão de Sentimentos" pelos doentes e familiares durante a entrevista de admissão.
^Tristeza
^Desespero
^Reactivos H ►Angústia
^ Auto■ culpabilização
Outros
/ Antecipatórios, de ^Ansiedade/insegurança ^preocupação \ Preocupação
Expressão de y sentimentos s>
jf De ambiguidade
^ Dificuldades relacionais
A Optimismo/esperança
\\ Abertura à realidade
\LCompreensão da "cortina \ do silêncio"
Gratidão
Os sentimentos agora expressos podem ser entendidos como referentes
ao passado e presente, e ao futuro. Explicando melhor. É expresso um con
junto de sentimentos, que apelidei de "reactivos", e que têm essencialmente
a ver com o processo que o doente e familia estão a viver (i.e., passado e pre
sente). Os doentes e famílias expressanrse sobre o que lhes aconteceu e está
a acontecer com sentimentos de tristeza, desespero, angústia e autoculpabi
lização, como no caso que se segue.
Errf É uma clínica dos bancários, não é? Mas não havia hipótese de quê? Sr. F. — De operar. E n f Mas disseramlhe lá isso foi? Sr. F. Disseramme lá mesmo. Uma pessoa fica logo assim .... Uma pessoa fica logo ... E n f Claro. Fica logo completamente desarmada, não é? Sr. F. E de ficar sem vontade nenhuma mesmo de viver.... (EAF 150702)
Ainda neste grupo, são expressos sentimentos de compreensão da "corti
na de silêncio" que se criou à sua volta, e de gratidão, essencialmente pela
forma como foram ajudados, seja pela família ou pelos profissionais de saú
de. Quer um quer outro destes dois últimos têm a ver com sentimentos ine
rentes à rede de relações e ao modo como esta reagiu à situação.
279 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Por outro lado, é também expresso um conjunto de sentimentos que têm
mais a ver com a projecção no futuro, como bem o expressa a doente abaixo
citada.
D. L. Isto é uma renda que a gente já nunca mais ganha sossego na cabeça iri
se). A gente já fica sempre preocupada. (EAL2 100702)
Relativamente a estes sentimentos projectivos, perceberrrse dois subgru
pos diferentes e de algum modo antagónicos. O primeiro, que engloba senti
mentos antecipatórios de ansiedade/insegurança e preocupação," e o segundo,
que é constituído essencialmente por sentimentos de optimismo/esperança e
abertura à realidade. A esta divisão dos sentimentos por grupos não corres
ponde qualquer idêntica divisão dos doentes. O que se constata é que os
doentes podem, em momentos diferentes, expressar sentimentos diferentes,
passíveis de ser incluídos em qualquer dos grupos atrás referidos.
A outra subcategoria denomineia "solicitações" (ver diagrama 15). A par
e em complemento com a expressão de sentimentos, os doentes e famílias
fazem solicitações concretas à enfermeira.
Diagrama 15 — "Solicitações" dos doentes e familiares durante a entrevista de admissão.
Sobre o processo de 4 tratamento
^Informação L Sobre as consequências j da doença/tratamento
Solicitações f ►Ajuda concreta
Y De criação de laços relacionais com a
Se tivesse que as caracterizar em poucas palavras, diria que o denomina
dor comum destas solicitações tem a ver com o padrão de sentimentos
expressos. Isto é, de algum modo, buscam através das solicitações, uma
solução para as preocupações, medos e angústias que expressaram. Em boa
verdade, a própria expressão de sentimentos se pode entender como uma
solicitação, na medida em que, muitas das vezes, é claramente um grito de
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
socorro. Assim, categorizei as "solicitações" dos doentes e familias, de acordo
com o que consta no diagrama 15.
A solicitação de informação visa, de modo claro, apaziguar a insegurança
quer sobre o processo de doença quer sobre o tratamento (ver extracto abai
xo). Dito de outro modo, a solicitação de informação poderá não ter como
motivação fundamental o desconhecimento, mas sim a insegurança. Neste
sentido, é de salientar o modo como os doentes e famílias solicitam informa
ção sobre as consequências da doença e tratamento. De algum modo, estão
implicitamente a solicitar um prognóstico.
...Mulher - Este não dá para cair o cabelo? E n f - Não, este não, este não é desses que faz cair o cabelo.... (EAJM - 050802)
Outra das solicitações dos doentes é direccionada para questões muito
concretas que podem ir desde a ajuda na obtenção de um documento, à exe
cução de um cuidado concreto (e.g., penso, injectável), ou à facilitação do con
tacto com o médico. Apesar deste carácter pragmático, estas ajudas são de
grande utilidade na medida em que, por vezes, pequenos problemas assu
mem uma grande dimensão no contexto da vivência destes doentes.
A última solicitação tem a ver com a "de criação de laços relacionais".
Regra geral esta solicitação é feita de modo subtil, mas dando sempre a
entender que gostariam de ter, no contexto daquele serviço, alguém identifi
cável, a quem se pudessem dirigir e com quem pudessem contar, como se
pode verificar no exemplo que apresento. Torna-se curiosa esta solicitação se
conjugada com o que atrás foi dito pelos doentes relativamente à ambigui
dade face ao assumir a existência de relação preferencial. Ou seja, se ques
tionados sobre a existência de relação preferencial, a resposta é ambígua,'
porém, no contexto da entrevista de admissão constata-se a solicitação de
relação preferencial.
...Esposa — Eu queria lhe pedir que me deixasse um cartãozinho com o seu nome. E n f - Está bem. Esposa — Porque eu com o que já me passou pela cabeça, posso-me esquecer. Quando estou nervosa .... E n f - Não. A gente dá-lhe ali um ... Esposa - E assim já há um contacto... (EAC - 220402)
281 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
À semelhança do que se passava na entrevista de admissão, também na
sala de quimioterapia a interacção não resulta apenas da iniciativa da
enfermeira. Em muitas das situações essa iniciativa cabe ao doente ou ao
familiar, sendo diversas as razões que a fundamentam. As principais razões
foram categorizadas de acordo com o constante no diagrama 16.
Diagrama 16 Início de interacção por iniciativa dos doentes e/ou familia
res na sala de quimioterapia.
A Civilidade cortesia / j( Diversa Áf Solicitação de ajuda C
I/ Técnica
Interacção enfermeira/doente Jr Iniciada pelo doente/familiar C.
/ w Solicitação de informação Interacção enfermeira/doente Jr Iniciada pelo doente/familiar C. ►Solicitação de mediação
v \ Partilha do luto
V Expressão de afectos
~ Reclamação
A "civilidade e cortesia" é a forma escolhida pelo doente para responder a
idêntica atitude por parte da enfermeira e já atrás mencionada. A civilidade
e cortesia no trato manifestase desde o cumprimento inicial até à despedi
da. Esta é também uma forma de mútuo respeito.
Existem depois duas categorias que considero nucleares no contexto da
relação estabelecida com a enfermeira. O primeiro diz respeito às solicita
ções do doente e/ou da família e que se direccionam em três sentidos^ ajuda,
informação e mediação. Penso que seja oportuno recordar que entre as
acções desenvolvidas pelas enfermeiras existem algumas de resposta especí
fica a estas solicitações. Ou seja, parece haver uma atenção e uma tentativa
de resposta da enfermeira às solicitações do doente e/ou família.
Caracterizando um pouco melhor cada uma destas solicitações, diria que
a "solicitação de ajuda" ainda pode ser categorizada em dois grupos com
características próprias. O primeiro destes grupos tem a ver com solicitações
de natureza diversa que podem ir desde uma interacção verbal particular,
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
até à solicitação de ajuda para problemas concretos, como os sintomas, como
no exemplo que se segue.
...O Sr. A. desencadeou uma conversa particular com a enfermeira, sobre o seu processo de adaptação à quimioterapia e aos sintomas, manifestando as suas preocupações. A enfermeira ouviu atentamente, respondeu às suas questões e combinaram medidas a adoptarem para gerirem os sintomas.... (DO - 040702)
O segundo grupo tem mais a ver com solicitações de ajuda técnica, ou
seja, administração de um injectável, verificação da funcionalidade da per
fusão, entre outros. Neste último caso, verifica-se, por vezes, que as razões
invocadas para a solicitação não existem, parecendo estar subjacente uma
necessidade de interacção a qual parece ser compreendida e aceite pela
enfermeira.
Por sua vez a "solicitação de informação", abrange todas as áreas possí
veis, relacionadas ou não com o processo de saúde. Naturalmente que as que
ocupam mais tempo são as relacionados com o processo de saúde e de entre
estas as relativas aos tratamentos (e.g., exemplo abaixo apresentado), exa
mes complementares de diagnóstico, efeitos secundários, evolução provável
da situação, entre outros. Contudo, também pode acontecer que se pergunte
como ir ao banco X, às finanças, onde comprar roupa, entre outras. A infor
mação relativa ao processo de saúde é direccionada para a enfermeira,
enquanto que a outra faz parte das conversas que circulam na sala e repon
de quem for detentor da informação mais apropriada.
... Entretanto, S3 perguntou o que era o medicamento que ia ali fazer. A enfermeira explicou o que era e para que serviam todos os medicamentos que ia fazer. . .(DO- 160702)
A "solicitação de mediação" é dirigida directamente à enfermeira e pode
ter dois sentidos. Um que tem a ver com a solicitação, normalmente, feita
por uma familiar à enfermeira, para que ela seja veículo de determinada
mensagem para o doente, que este acatará se vier dela, mas rejeitará se vier
de um familiar (ver extracto abaixo). Estas mensagens normalmente têm a
ver com a necessidade de reduzir a ansiedade do doente.
... A entrada estavam as auxiliares de acção médica e uma aluna que estava a chegar à sala. Esta foi interceptada pela mulher do último sr° atrás referido (Sr.
283 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
C) , que lhe pediu, a coberto do olhar do marido, servindo_se para esse efeito do espaço que fica atrás da porta, para verificar a T.A. e o pulso ao marido e para falar com ele pois ter-se-á verificado alguma alteração nestes parâmetros e ele terá ficado muito preocupado pelo que era necessário voltar a verificar, mas acima de tudo, desmitificar a situação. A aluna prometeu que o faria e de facto foi fazê-lo, tendo dedicado algum tempo ao sr....(DO - 110702)
O outro sentido da mediação é sobreponivel ao que já foi referido mais
atrás e tem a ver com a acção da enfermeira na interface da relação do doen
te com a organização e com os outros profissionais.
A outra das categorias nucleares no que diz respeito à iniciativa do doen
te e/ou familiar neste processo de interacção, é a que tem a ver com a "parti
lha de sentimentos". Ou seja, por parte dos doentes e/ou familiares existem
iniciativas de partilha de sentimentos com a enfermeira. Assim, penso que
seja de realçar que, de uma forma geral, existe expressão de sentimentos
como o medo, a tristeza, a angústia, a preocupação, entre outros. Para tal
acontecer é porque sentem que do outro lado existe um interlocutor que
escuta e em quem podem confiar. Dito por outras palavras, é porque se sen
tem bem com isso.
O sentimento de luto é um dos que é quase sistematicamente partilhado
com a enfermeira e que por isso, penso ser merecedor de destaque. Esta par
tilha normalmente ocorre em interacções privadas e muitas vezes com a
família. Aliás, é quase uma rotina, os familiares virem pessoalmente comu
nicar a morte do doente e nesse contexto, desenvolver-se uma interacção de
partilha de luto com expressão de sentimentos de ambas as partes.
Por último, referência para a categoria "reclamação". Como em qualquer
relação, também nesta existe espaço para a discordância e a reclamação.
Penso que o facto de os doentes reclamarem, seja um indicador positivo, por
que, de algum modo, sentem que o ambiente não é intimidatório. As recla
mações podem também ser um pedido de ajuda disfarçado. Em qualquer dos
casos, normalmente existe uma resposta assertiva por parte das enfermei
ras. Esta capacidade assertiva, contudo, parece estar mais desenvolvida
numas que noutras. Algumas de entre elas reconhecem não ter muito essa
capacidade, remetendo a gestão dessas situações para colegas em quem a
reconhecem.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Da análise conjunta destes diversos contributos cruzados resulta a ideia
de um processo relacional dinâmico, no qual a enfermeira desenvolve um
conjunto de estratégias intencionais, as quais encontram a sua principal jus
tificação quer no que o doente e/ou familiar expressam, quer no que solici
tam, um e outro indicadores do estádio de vivência do processo de saúde.
5.4.4 - O "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem": Pers
pectiva global
Antes de definir este construeto a partir dos diversos conceitos oriundos
de diferentes fontes, parece-me adequado justificar a sua denominação. Esta
designação resultou de um processo de desenvolvimento progressivo do meu
raciocínio, o qual se alicerçou nos dados que emergiram ao longo deste estu
do, mas também nas diversas leituras a que os mesmos me obrigaram.
Designar a intervenção de enfermagem como terapêutica não é algo que se
constitua como um hábito, quer entre os enfermeiros, na prática dos cuida
dos ou no ensino, quer na literatura. Tal, talvez se justifique, entre outras
razões, pela história da profissão de enfermagem, a qual, nos seus primór
dios era entendida, não só como subsidiária da medicina, mas principalmen
te como isenta de qualquer carácter autónomo e/ou terapêutico. Mesmo na
literatura de enfermagem não é muito comum encontrar o termo "terapêuti
co" como caracterizador da intervenção dos enfermeiros. Apesar disso,
podemos encontrar uma primeira referência no livro de Peplau (1990),
publicado pela primeira vez em 1952, ao salientar o potencial terapêutico da
relação enfermeiro-doente. Aí, ela afirmava que o processo de enfermagem é
educativo e terapêutico quando a enfermeira e o doente evoluem no conhe
cimento e no respeito mútuo, como pessoas que sendo iguais, são diferentes
e como pessoas que parti lham a procura de soluções para os problemas.
Mais tarde, Levine (1973), referhrse às intervenções de enfermagem
como terapêuticas, mas numa acepção diferente da autora anterior. Esta
outra faz referência a dois tipos de intervenção de enfermagem: as "inter
venções de encorajamento", as quais têm como objectivo prevenir uma maior
deterioração no estado de saúde do doente; e as "intervenções terapêuticas",
Dissertação de Doutoramento
Os utenlcs e os enfermeiros; Construção de u m a relação
as quais visam promover a adaptação e a capacidade de se tornar saudável e
consequentemente contribuir para a restauração da saúde.
Apesar destes contributos, considero que não está suficientemente justi
ficado o uso da designação atrás referida (i.e., "processo de intervenção tera
pêutica de enfermagem"). Tal deve-se essencialmente a estas questões^ qual
o significado exacto da expressão "terapêutica de enfermagem"? Se é feita
referência a intervenções terapêuticas, tal significa que existirão outras que
não o são? Hockey, citado por McMahon (1991), colocou e tentou responder a
uma questão análoga à primeira. Definiu então "enfermagem terapêutica"
como as actividades de enfermagem que resultam num movimento em direc
ção à saúde. Porém, a par com esta definição, é necessário definir também o
conceito de saúde que lhe está implicito. Isto porque, a primeira assumirá
características completamente diferentes, em função do modo como se defi
nir o segundo. Ou seja, se o conceito de saúde estiver centrado na cura da
doença, a "enfermagem terapêutica" terá uma característica; se porém, o
conceito de saúde tiver uma natureza holística, incluindo o mesmo o de
bem-estar, então a definição de "enfermagem terapêutica" assumirá caracte
rísticas completamente diferentes das anteriores.
Apesar deste contributo, Hockey não identificou quais as actividades ou
intervenções de enfermagem que t inham um efeito ou uma natureza tera
pêutica e que contribuíam assim para o processo saudável. Por tal razão
McMahon (1991), em 1986, propôs quatro áreas que podem ser consideradas
terapêuticas, chamando no entanto à atenção para a necessidade de serem
investigadas, nomeadamente: relação enfermeiro-doente,' intervenções de
enfermagem convencionais, as quais incluem, entre outras, intervenções
físicas que ajudam a resolver problemas como úlceras de pressão; interven
ções de enfermagem não convencionais, que incluem práticas das terapias
alternativas como a aromaterapia, massagem, cinesiologia, entre outras; e
ensino do doente.
Outros autores deram contributos para o enriquecimento do conceito de
"enfermagem terapêutica", nomeadamente, Ersser (1988) com os conceitos
de "ambiente terapêutico" e "promoção do conforto"; e Muetzel (1988) com o
_ _ = _ _ _ _ _ _ _ = _ _ _ „ = = = _ _ _ _ = = = = _ _ _ = = „ _ _ „ = = _ „ _ _ _ „ _ „ _ _ _ „ „ „ _ „ „ _ _ _ 2 8 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
seu modelo de relação enfermeiro-doente enquanto processo terapêutico.
McMahon (1991), analisando a sua proposta em conjunto com as contribui
ções dos outros autores, propôs um construeto constituído por o que ele
designou como os elementos da enfermagem terapêutica (ver diagrama 17,
atrás).
Diagrama 17 - Actividades terapêuticas na enfermagem.
=> DESENVOLVENDO: o PARCERIA o INTIMIDADE o RECIPROCIDADE
NA RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE => MANIPULANDO O AMBIENTE =i> ENSINANDO => PROMOVENDO O CONFORTO =s> ADOPTANDO PRÁTICAS DE SAÚDE COMPLEMENTARES => UTILIZANDO INTERVENÇÕES FÍSICAS TESTADAS.
Fonte: McMahon & Pearson (1991)
E no contexto do atrás exposto que proponho a designação de "processo
de intervenção terapêutica de enfermagem", para este construeto. Assim, o
"processo de intervenção terapêutica de enfermagem" engloba a totalidade
da intervenção da enfermeira, dirigida ao doente e família, bem como à
interface destes com o grupo e a organização, no contexto onde realizei o
estudo. É, portanto, de natureza multifocal, ou seja, a enfermeira, conti
nuando a centrar a sua atenção sobre o doente/família, alarga-a à interface
destes com a organização e outros profissionais, bem como ao grupo de doen
tes na sala de quimioterapia e à sua interface com cada doente em particu
lar e com a organização (ver figura 17).
Esta intervenção é de natureza processual e é pautado por uma atitude
terapêutica de natureza complexa, dinâmica e contextual. É de natureza
processual na medida em que se desenvolve no tempo, numa construção
paulatina e sistemática, sendo constituído de modo dinâmico por elementos
de natureza diversa. A intervenção, resultado final em cada momento
daquele processo, traduz-se em actos complexos e não pode ser entendida
senão como um todo. Pelo que, qualquer um dos elementos constituintes da
287 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
intervenção do enfermeiro, de que falarei a seguir, apenas é entendivel no
contexto dessa totalidade. Aquela característica é constatável na prática e
enquadra-se na perspectiva defendida por Carper (1978) e Bishop & Scudder
(1991) quando definem os padrões de conhecimento em enfermagem. Ou
seja, também aquelas autoras referem que o concreto de cada acção está
imbuída dos diferentes padrões de conhecimento, mas apenas pode ser
entendida como um todo. Também Schõn (1998) se refere ao agir como uma
totalidade. A mesma ideia de totalidade complexa está ainda subjacente na
concepção de competência de Le Boterf (1995), bem como no modo como
Benner (2001) entende e define a acção das enfermeiras.
Figura 17 - Carácter multifocal da actuação da enfermeira
Promoção da Autonomia Promoção do Respeito Promoção de Conforto
Gestão dos Sentimentos
Gestão da Informação
Gestão do Grupo
Intermediação Centrada
Ao afirmar que a intervenção é terapêutica estou a fazêdo no contexto do
que atrás afirmei quando defini "enfermagem terapêutica". Ou seja, estou a
dizer que o resultado dessa acção se traduz em benefícios concretos na saúde
das pessoas. Para isso, assento em dois pressupostos. O primeiro tem a ver
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
com o conceito de saúde, o qual terá que ser entendido de uma forma holísti-
ca e dinâmica e compreender o benrestar , à semelhança das definições pro
postas por algumas das teóricas de enfermagem (e.g., Neuman, 1982;
Rogers, 1970; Parse, 1987, 1992; Watson, 1981, 1985, 1988). Até por força do
contexto em que os cuidados decorrem e da natureza do processo fisiopatolcr
gico, se não se tiver uma acepção de saúde com aquelas características,
raramente existirão intervenções terapêuticas. O segundo pressuposto tem a
ver com o que foi afirmado ao longo da análise dos dados. Ou seja, pela com
paração entre os dados resultantes das entrevistas às enfermeiras, aos doen
tes, das entrevistas de admissão e os resultantes da observação, consta-
tou-se que existe, por parte das enfermeiras, uma postura de rigor técnico,
disponibilidade, ajuda e de resposta às necessidades dos doentes, através de
um conjunto de instrumentos já atrás caracterizados; por parte dos doentes,
verificou-se o reconhecimento de algumas dessas características e ainda a
manifestação de reconhecimento e de confiança nas enfermeiras,' com base
na observação, confirmou-se o referido por uns e outros e constatou-se ainda
um recurso sistemático aos cuidados das enfermeiras. Por este conjunto de
razões estou convicto de que a intervenção das enfermeiras tem característi
cas terapêuticas e que contribui de modo claro para o processo de saúde des
tes doentes. Naturalmente, que as referidas características terapêuticas
carecem de muito mais investigação, não só para uma mais clara identifica
ção, mas também para uma inequívoca caracterização dos seus diversos
componentes.
A complexidade do "processo de intervenção terapêutica de enfermagem"
justifica-se como forma de resposta à natureza igualmente complexa das
situações com que se confronta. Mais atrás referi que uma situação é com
plexa quando se combinam um elevado número de variáveis, com um eleva
do e imprevisível número de interacções entre as mesmas (Morin, 1990).
Igual afirmação se poderá fazer relativamente à natureza complexa da
intervenção terapêutica de enfermagem. Efectivamente, esta é complexa na
medida em que é constituída por múltiplos elementos de natureza diversa
que vão desde os técnico-instrumentais, como os inerentes à administração
289 Dissertação de Doutoramento
Os iilciilcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
de quimioterapia, até aos relacionais, como a gestão da informação e dos
sentimentos inerentes à vivência do processo de doença e tratamento. Sendo
que a relação entre estes elementos é o resultado do modo como cada enfer
meira os vive em cada dia, bem como do doente/familia, com tudo o que lhe
está associado, e do contexto que tem perante si, sendo este sistematicamen
te diferente. Também por estas razões é dinâmica, na medida em que não
obedece a nenhum protocolo preexistente para cada situação ou para cada
doente, e que resulta de um processo de construção sistemático a que já
atrás fiz referência (figura 18).
Os objectivos do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem"
são múltiplos. Destes destaco^
/ Promover a confiança e a segurança!
■S Apaziguar a ansiedade e a insegurança!
■S Promover a esperança e a perseverança.
S Promover a autonomia, o respeito e o conforto!
S Preparar e administrar a quimioterapia e outros t ratamentos pres
critos.
Figura 18 Natureza complexa e dinâmica do "Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem".
Dissertação úc Doutoramento
Os ulciilcs c os enfermeiros: Construção tic uma relação
Considerando as características já atrás referidas, cada intervenção da
enfermeira visará em simultâneo diversos objectivos. Assim e a título de
exemplo, uma administração rigorosa da quimioterapia prescrita, pode ser
vir para aumentar o conforto do doente, quer a curto (e.g., evitando extrava
samentos), quer a médio prazo (e.g., contribuindo para o controlo da evolu
ção da doença oncológica e/ou para o controlo da sintomatologia mais inco
modativa). Mas pode servir também para aumentar a confiança do doente
na enfermeira e no tratamento, aumentar a esperança e, consequentemente,
aumentar a eficácia do tratamento medicamentoso.
Aqueles objectivos são alcançados fazendo uso de uma ampla diversidade
de instrumentos, os quais já foram caracterizados de acordo com os dados
recolhidos. Resta agora caracterizá-los por comparação com a li teratura
existente.
O primeiro grupo a que farei referência denominero "gestão de senti
mentos". A razão para esta primazia já atrás foi explicada e têm a ver essen
cialmente com o modo como os doentes se apresentam perante as enfermei
ras e como manifestam vivenciar a sua situação de doença. Numa tentativa
de compreensão desta vivência, mas também do modo como as enfermeiras
estruturam as suas respostas vou socorrer-me de um conjunto de teorizações
tais como a teoria do stress, da crise e o conceito de transição.
O stress, foi pela primeira vez estudado, sistematizado e proposto como
teoria por Selye (1962, 1965, 1974). Este autor estudou-o principalmente sob
o ponto de vista fisiológico. Mais tarde, Holmes e Rahe (1967) por um lado e
Lazarus (1979) pelo outro, constituíram-se como referências fundamentais
para a extensão deste conceito a outros domínios. Os primeiros autores atrás
referidos (i.e., Holmes e Rahe, 1967), estudaram a relação entre as mudan
ças de vida e o desenvolvimento de doença. Para o efeito desenvolveram uma
escala graduada de acontecimentos de vida (Social Readjustment Rating
Scale), na qual atribuíram diferente pontuação em função do impacto desse
mesmo acontecimento e do consequente risco para a saúde. Através dos seus
estudos perceberam ainda que havia relação entre as características e a fre
quência dos acontecimentos num determinado período de tempo. Na referida
2 9 1 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
escala o traumatismo ou doença do próprio é um item que ocupa o sexto
lugar, sendo-lhe atribuída uma pontuação de 53, sendo que a pontuação
máxima é de 100. Ou seja, tem um elevado peso enquanto acontecimento de
vida gerador de stress e potencial indutor de doença. Contudo, esta escala
não estabelece qualquer diferenciação entre doenças. Ora é sabido que a
representação das mesmas é um factor importante na génese do stress, logo,
no modo como a mesma é vivenciada. A doença oncológica é disso um exem
plo cabal, magistralmente exemplificado na obra de Sontag (1998).
Na sua teorização Lazarus (1979) apresenta o stress e o coping (i.e., modo
de lidar com) como processos, realçando a sua inter-relação. Privilegia a
perspectiva cognitiva, afirmando que a mesma é essencial para a determina
ção do que é gerador de stress e do modo como lidar com o mesmo. Com base
nisto propôs um modelo explicativo, através do qual se compreende que o
stress resulta da avaliação que o indivíduo faz das necessidades com que se
confronta e das capacidades que possui para lidar com as mesmas. Esta ava
liação como já foi referido é de natureza cognitiva e desenvolve-se em dois
níveis distintos. No primeiro nível é avaliada a necessidade, considerando o
significado que a mesma tem na vida da pessoa. No segundo nível são ava
liados os recursos de que dispõe para responder àquela necessidade. Neste
modelo, as emoções também são consideradas, sendo apresentadas como o
resultado da avaliação de segundo nível. Ou seja, a tonalidade emotiva terá
características positivas, se da avaliação resultar a percepção de que possui
capacidades para lidar com a situação! aquela tonalidade será negativa se a
avaliação chegar a conclusão contrária. Como resultado deste último surgi
rão a angústia, a raiva, a depressão, a ansiedade, entre outros. Por esta
ordem de ideias, os sentimentos manifestados pelos doentes, quer quando se
encontram pela primeira vez com a enfermeira, quer durante o processo de
tratamento, poderão ser entendidos como resultantes de uma avaliação
negativa das suas próprias capacidades para lidar com a dificuldade com
que se deparam, ou seja, a doença oncológica. A intervenção da enfermeira
poderia então ser entendida como orientando-se, por um lado, no sentido de
ajudar a pessoa a reavaliar as suas capacidades, e por outro, no sentido de
_ _ - _ _ — _ _ _ _ ^ ^ _ _ _ _ - « _ _ _ _ _ » _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ . _ _ _ _ _ „ „ _ „ _ _ ^ 2 9 2
Dissertação de Doutoramento
Os ulcntcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
as reforçar. Neste último caso, penso que seja enriquecedor o conceito de
empowerment (Rappaport, 1990). Ou seja, a capacitação das pessoas, aos
mais diversos níveis, para lidarem com a situação com que se confrontam.
Contudo e para uma compreensão cabal deste fenómeno, bem como das
intervenções desenvolvidas pelas enfermeiras, penso que seja adequado
recorrer também às explicações da teoria da crise. Isto porque, não tendo
dúvidas que o processo vivido pelos doentes é gerador de stress, é-me tam
bém evidente que o mesmo é de uma dimensão tal que desorganiza por com
pleto a vida de quem o vive. Portanto, prefigura-se como um obstáculo aos
objectivos de vida da pessoa, aparentemente intransponível através dos
métodos que habitualmente usa para resolver os seus problemas. Ora esta
percepção coincide com o conceito de crise acidental ou situacional, tal como
é definida por Caplan (1980).
Erikson (1976a, 1976b), foi um dos primeiros autores a introduzir o con
ceito de crise, ainda que com numa acepção algo diferente da anterior. Este
autor, ao caracterizar as diferentes fases de desenvolvimento da personali
dade, afirmou que, na transição entre as mesmas se verificam períodos de
comportamento indiferenciado, que se caracterizam por transtornos cogniti
vos e afectivos. A estes períodos Erikson chamou crises de desenvolvimento.
Porém, foi Caplan (1980) que sistematizou e desenvolveu a teoria da crise. A
teoria desenvolvida por este autor "baseia-se no pressuposto de que, para
não se tornar mentalmente perturbada, uma pessoa necessita de "suprimen
tos" contínuos, compatíveis com o seu estádio corrente de crescimento e
desenvolvimento" (p.46). O pressuposto dos suprimentos assenta, por sua
vez, em dois outros que lhe estão subjacentes. O primeiro tem a ver com a
concepção de saúde mental como resultante de um equilíbrio entre as neces
sidades do indivíduo em cada fase do seu desenvolvimento e a resposta do
meio bio-socio-cultural a essas necessidades. O segundo tem a ver com a
adopção de um modelo de características nutricionais para responder às
necessidades do indivíduo. O autor agrupa os suprimentos em três grupos-
suprimentos físicos, psicossociais, e sócio-culturais.
293 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Os suprimentos físicos incluem factores como a alimentação, a habitação,
o exercício, bem como tudo o contribui para o crescimento e desenvolvimento
do corpo e para a manutenção da sua saúde. Dos suprimentos psicossociais,
fazem parte a estimulação do desenvolvimento das capacidades afectivas e
intelectuais do indivíduo, através da interacção com os seus semelhantes
(e.g., família e outras pessoas significativas). É aqui que entra toda a vida de
relação, a necessidade de amar e ser amado, a participação nas actividades
de grupo e ainda a necessidade de adquirir padrões de afirmação e de con
trolo face à autoridade. Finalmente, os suprimentos sóckrculturais, incluem
as influências que os valores de cada cultura e a forma como a sociedade
está estruturada, exercem sobre o desenvolvimento e funcionamento da per
sonalidade do indivíduo. As expectativas dos outros face ao lugar que ocu
pamos na sociedade, são determinantes do comportamento do sujeito.
Assim e no entender deste autor (Caplan, 1980), surgirá o distúrbio
quando existir escassez quantitativa de suprimentos, ou quando pelo contrá
rio, eles existirem em excesso. Portanto, quando, na vida de qualquer pes
soa, ocorrerem períodos em que existe uma perturbação psicológica e conse
quentemente comportamental, desencadeada por situações de vida que
levam à perda súbita de suprimentos básicos, estaremos perante uma crise
acidental ou situacional. Numa situação de crise o indivíduo sente-se per
turbado associando a isso "sentimentos subjectivos de desconforto, como
angustia, medo, culpa ou vergonha, segundo a natureza da situação"
(Caplan, 1980, p.54). Há assim uma diminuição dos recursos pessoais ou um
nível exagerado de stress para as capacidades do indivíduo. Tudo é posto em
causa, e o nível habitual de eficiência em lidar com situações problemáticas,
é mais baixo que o usual, resultando daí uma alteração da homeostase psí
quica. Estes períodos podem a ter a duração de dias ou semanas e são vivi
das pelo indivíduo no sentido de "desenvolver um esforço de ajustamento e
adaptação face a um problema temporariamente insolúvel" (Caplan, 1980, p
49). O processo de resolução varia de indivíduo para indivíduo, consoante os
mecanismos de coping de que disponha, os quais têm a ver, entre outros,
com a estruturação e maturação da sua personalidade e com as experiências
= = — _ _ _ _ _ _ = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ _ „ „ = _ = = _ _ _ _ _ « _ = = _ _ _ _ _ _ _ „ = „ _ _ _ 2 9 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
anteriormente vividas; e do suporte situacional disponivel, o qual tem a ver
com a rede relacional, mas também com a institucional. Como resultado do
processo de resolução, o individuo pode sair reforçado, se conseguir reunir as
capacidades necessárias para resolver a crise, o que permite olhar a crise
como algo benéfico; ou contrariamente, pode revelar uma incapacidade para
enfrentar e resolver os problemas da vida, de um modo ajustado, e assim a
crise, será um período prejudicial e negativo (ver diagrama 18). O povo tra
duz esta perspectiva de vivência de crise através de um dito muito curioso:
"o que não me derruba, fortalece-me".
Esta perspectiva é sem dúvida enriquecedora para a compreensão da
vivência dos doentes e fornece-nos elementos preciosos para o enquadramen
to e fundamentação da intervenção das enfermeiras como terapêutica. Efec
tivamente, quer por conta do que foi dito, quer através da análise do dia
grama 18, torna-se fácil perceber a intervenção das enfermeiras na tentativa
de desenvolver uma percepção realista do acontecimento e de providenciar
um suporte adequado, quer disponibilizando-se a si e ao serviço, quer poten
ciando a capacidade de intervenção da família.
Contudo, fica por explicar parte do fenómeno. Efectivamente, de acordo
com Caplan (1980), uma crise ocorre num tempo limitado, sendo expectável
a sua resolução num período de 4 a 6 semanas. Ora, a situação em análise
neste trabalho reveste-se de características especiais por, entre outras, duas
ordens de razões. Primeiro porque, associada à crise da doença, a qual só por
si já tem características especiais uma vez que se constitui como uma amea
ça à vida, surge a crise dos tratamentos de quimioterapia, sobre os quais se
desenvolveu toda uma mitologia. Contudo e para além desta, os mesmos tra
tamentos traduzem-se na indução cíclica e récidivante dum elevado nível de
stress a todos os níveis.
Segundo, porque a doença propriamente dita pode transformar-se numa
espiral de complicações e dificuldades crescentes, evoluindo em direcção ao
final da vida.
295 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Diagrama 18 - Processo de desenvolvimento de uma crise - o efeito dos factores de equilíbrio.
Organismo Humano
Acontecimento gerador de stress Estado de Equilíbrio
Acontecimento gerador de stress
Estado de Desequilíbrio
Sentimento de Necessidade de Restabelecer o Equilíbrio
I
Presença de Factores de Equilíbrio
i * Percepção realista do acontecimen
to
I mais ±
* Suporte situacional adequado
mais ±
* Mecanismos de coping adequados
conduz a _ _ *
Resolução do problema
Equilíbrio restabelecido
Ausência de crise
* Factores de eauilíbrio
Ausência de um ou mais factores de equilíbrio
1 Percepção distorcida do acontecimento
e/ou
Sem suporte situacional adequado
e/ou ±
Sem mecanismos de coping
conduz a
Problema não resolvido
i ' Desequilíbrio mantido
1 ' Crise
Fonte: Aguilera & Messick (1998)
Assim, e do ponto de vista da intervenção das enfermeiras, não se trata
de ajudar resolver uma situação de crise e/ou de stress pontual. Trata-se,
isso sim, de ajudar alguém que passou a viver em situação de stress e/ou de
Dissertação de Doutoramento 296
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
crise permanente. Para além disso, ficam por explicar cabalmente algumas
das actividades desenvolvidas pelas enfermeiras, principalmente as que
dizem respeito à gestão de sentimentos.
Por último e relativamente à teoria da crise como um todo, resta-me uma
interrogação que me tem acompanhado e para a qual ainda não encontrei
resposta. A situação com que a pessoa se depara só se torna potencialmente
geradora de uma crise se a pessoa percepcionar que não tem capacidades
para lidar com ela. Naturalmente que podemos questionar a capacidade de
auto-avaliação da pessoa e descobrir que afinal essas capacidades existem.
Todavia, quando de todo não existem torna-se necessário desenvolver novas
capacidades para enfrentar um novo desafio. Aliás a justificação do enrique
cimento inerente ao ser capaz de lidar com uma crise reside aqui. Ou seja, a
pessoa só sai mais enriquecida se desenvolver novas capacidades e não se
possuir capacidades para lidar com a situação. Neste último caso o enrique
cimento reside apenas num aumento da sensação de auto-eficácia. Mas, no
caso anterior, permanece por explicar o processo de criatividade que permite
o desenvolvimento dessas novas capacidades para responder a novos desa
fios.
Por tais razões é necessário recorrer ao contributo de outros autores no
sentido de complementar os anteriormente referidos. Considero que Chick &
Meleis (1986), foram duas das autoras que deram um contributo considerá
vel na compreensão deste fenómeno. Não se pode dizer que estas autoras
tenham trabalhado o conceito de crise. Contudo, o conceito de transição, por
elas proposta, embora sendo diferente do anteriormente referido, tem com
ele muitas afinidades. Este conceito, já atrás explicado (vide: sub-capitulo
"esboço da estrutura essencial da disciplina de enfermagem"), constitui-se
como um contributo significativo para a compreensão dos resultados deste
trabalho, principalmente se tivermos em consideração o que as autoras
denominam como as "condições de transição". Estas estão muito centradas
na pessoa que está a vivenciar a situação de transição, destacando os seus
significados e expectativas e abrindo a outras variáveis tais como o
benrestar físico e emocional.
297 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Mas, também Morin (1973, 1982, 1996) se refere à crise, destacando a
das sociedades humanas. Apesar disso considero que essas referências
podem ser extrapoladas para as pessoas, consideradas de um ponto de vista
individual. Afirma este autor que uma crise só é concebivel num sistema
aberto que obedeça a três ordens de princípios, o sistémico, o cibernético e o
neguentrópico. O princípio sistémico refere-se a conjuntos organizados, sen
do que esta organização resulta da inter-relação entre os seus constituintes.
Tal pode dizer-se das sociedades, mas também dos seres humanos a nível
individual e significa que entre os elementos que constituem esse conjunto,
coexistem forças de atracção e de repulsão. Estas forças introduzem o nível
necessário de instabilidade no sistema que lhe permite a reorganização sis
temática em níveis cada vez mais complexos. Porém, essas forças podem
também conduzir à morte ou à desorganização.
O segundo princípio (i.e., cibernético) ajuda-nos a compreender o ante
rior, na medida em que a reorganização a que atrás fiz referência, depende
em grande medida de regulações retroactivas inerentes a este princípio. Por
outras palavras, a reorganização acontece quando, quando o sistema volta a
integrar como informação o "output" que ele próprio produziu, ou seja,
desencadeia o sistema de retroalimentação. Assim, se por força da instabili
dade do sistema se produz um determinado "output" que põe em causa o pró
prio sistema, este "outpufvai retroalimentar o sistema de informação e con
duzi-lo a um outro nível de organização que anule aquela instabilidade. Por
tanto a organização-desorganização inerente a qualquer sistema, permite
que o mesmo se eleve a níveis superiores de organização desde que o princí
pio cibernético esteja presente.
O terceiro e último princípio (i.e., a neguentropia), é próprio de sistemas
vivos complexos. Neste caso, os sistemas, para além dos princípios atrás
referidos, são ainda eles próprios, consumidores de energia e responsáveis
por trocas de informação constante com o meio. Isto origina sistemáticos
processos de desorganização, mas encerra incríveis oportunidades de reor
ganização em níveis de complexidade superiores, pela sua integração orga
nizacional.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 2 9 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Com base nestes três princípios, mas sobretudo neste último, percebemos
que quanto maior a complexidade de um ser, maior a possibilidade de
desencadear crises, as quais resultam exactamente desta sistemática troca
de informação e energia com o meio. Mas percebemos também que o que ori
gina a crise encerra também potencialidades para a sua resolução de forma
positiva. Essas potencialidades residem em simultâneo na informação e
energia, mas também na capacidade de a organizar. Pode aqui perceber-se
uma dependência do meio dos seres vivos com estas características. Ou seja,
se não receberem a energia e a informação de que precisam para o seu sis
temático processo de desorganização/reorganização, tal não se verificará e
cerceará o seu desenvolvimento. Esta dependência é tanto maior quanto
mais complexo for o ser vivo. Nesta cadeia hierárquica o Homem aparece no
topo, como o mais dependente, mas também como aquele que encerra maio
res capacidades de desenvolvimento.
Deste modo e dada a natureza desta dependência, penso que sejam de
considerar as relações dos seres humanos com os objectos de que dependem.
Tal permitir-nos-á compreender a natureza das crises a que aqueles pare
cem estar condenados e consequentemente, a forma como se pode desenvol
ver a partir destas. Ou seja, a forma como podem aproveitar o seu potencial
de desenvolvimento e anular o de desorganização e morte.
Relativamente a estas relações com os objectos começo por fazer referên
cia à perspectiva da antropologia filosófica, a partir de autores como Misrahi
(1968), Levinas (1980), Buber (1982), e Gevaert (1991). Na perspectiva des
tes autores deve fazer-se uma clara distinção entre a relação com as coisas e
a relação com o outro (i.e., com o Homem). A primeira caracteriza-se como
experiência. Ou seja, na perspectiva destes autores, as coisas (i.e., a maté
ria) são inertes e como tal não tomam parte activa na relação com a pessoa.
Pelo que, o resultado da relação da pessoa com as coisas é a experiência, a
qual reside totalmente na pessoa e não no objecto em si. Mesmo os precon
ceitos que possam existir sobre os objectos residem na pessoa.
A relação com o outro tem características completamente diferentes, na
medida em que, o outro não se submete ao eu e está para além de qualquer
299 ===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
preconceito. A presença do outro impõe-se com existência, vida e vontades
próprias. Assim a minha relação com o outro define-se como um encontro.
Este encontro materializa-se num espaço interpessoal, onde predomina a
intersubjectividade constituída pelo eu-tu. No entender de Levinas (1980), o
outro revela-se ou manifesta-se, ou seja, é uma epifania, por oposição aos
objectos que se desvelam, ou seja, o seu conhecimento depende da minha
iniciativa e da minha razão.
A relação com o outro assume assim uma importância central. Esta
mesma importância é reconhecida por outros pensadores de áreas de conhe
cimento e correntes de pensamento diversas. Assim, podemos perceber essa
importância em autores como Freud (1989, 1995, 1999), mas também nos
contributos de Klein (1980, 1982), Balint (1993, 1998a, 1998b), Winnicott
(1982, 1988), Erikson (1976a, 1976b), Bowlby (1982, 1990, 1993), Rogers
(1974, 1995) ... entre tantos outros. Alguns de entre estes (e.g., Freud, 1989,
1995, 1999; Klein, 1980, 1982; Balint 1993, 1998a, 1998b. Winnicott, 1982,
1988) exploraram a problemática da relação numa perspectiva ontogenética.
Ou seja, tentaram perceber qual a importância da relação com o outro, para
a construção e desenvolvimento do eu. Nesses estudos, principalmente os
autores da corrente analítica, introduziram a expressão "relação de objecto".
Esta expressão transformou-se em teoria, para a qual contribuíram diversos
de entre eles. Porém e para que não haja confusão com a distinção que atrás
operei, as relações de objecto a que estes autores se referem têm a ver com
os vínculos emocionais entre o individuo e outra pessoa, por oposição à rela
ção do individuo consigo próprio. A expressão foi inicialmente introduzida
por Abraham (1927), porém quem desenvolveu o conceito e o transformou
em teoria foi Klein (1980, 1982). Esta autora via a mãe como o principal
objecto de relação, pelo que construiu uma teoria do desenvolvimento, a qual
se baseia totalmente no vínculo da criança com a sua mãe.
Balint (1993), contribuiu para o desenvolvimento da teoria anterior ques
tionando a oralidade, nomeadamente no que diz respeito à dependência da
criança em relação à mãe, que a formulação de Klein (1980, 1982) sugeria.
Esta autora colocou a relação mãe/filho no âmbito de uma interdependência
_ _ _ _ = = = _ _ _ _ _ _ = = = = - _ _ _ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ „ = = = = = = = _ _ _ _ _ _ _ _ „ = „ _ _ _ _ „ „ _ _ _ _ 3 0 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
em que nenhum dos dois pode ter, independentemente do outro, nem esta
forma de relação nem esta satisfação particular. Ou seja, apesar de a autora
dizer que nas fases mais precoces da vida ainda existe uma grande diluição
de fronteiras entre o si e o outro, bem como entre os objectos, de algum
modo, a forma como define a relação entre a mãe e a criança vem de encon
tro ao modo como é definido o encontro entre dois seres humanos pelos auto
res atrás referidos (Misrahi, 1968; Levinas, 1980; Buber, 1982; Gevaert,
1991). Dito por outras palavras, o outro é já uma revelação que se impõe.
Contudo, de acordo com Balint (1993), quer a relação da criança com a
mãe, quer a referida "diluição" dos objectos, permitem uma harmonia inicial,
muito elevada na vida intra-uterina, mas que se vai perdendo à medida que
os objectos vão ganhando consistência e as fronteiras se vão definindo. A
perda desta harmonia, possibilita porém, que o sujeito se vá construindo
enquanto tal, ao mesmo tempo que constrói uma representação do mundo
exterior. Da relação e da harmonia inicial fica, segundo este autor, uma
espécie de nostalgia que o leva a uma interminável busca. Fica também a
percepção da falta de algo que os objectos nunca conseguirão preencher e
que o autor apelidou de "lacuna básica". Este conceito corresponde também
a uma das três zonas do psiquismo por ele propostas. Ainda segundo Balint
(1993), as relações objectais de qualquer pessoa poderão ser explicadas con
siderando, por uma lado, a harmonia inicial e por outro, o sofrimento asso
ciado à descoberta dos objectos que se lhe seguiu.
As relações objectais são geradoras de crises sucessivas pelas rupturas
que lhe estão associadas. Ou seja, as relações objectais são geradoras de
frustrações que, inevitavelmente, conduzem a pessoa a uma retirada do
mundo dos objectos e a procurar dentro de si algo a partir do qual possa
criar qualquer coisa que reproduza a harmonia inicial. Esta procura é feita
numa zona do psiquismo que Balint (1993) designou como "zona da criativi
dade". É com base nesta teoria que, segundo este autor, se pode compreen
der qualquer forma de criatividade, bem como a criação artística na genera
lidade. Mas é também com base nesta teoria que se pode compreender o
modo como os doentes organizam as suas doenças. Dito por outros palavras,
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
de acordo com Balint (1993), a doença constiturse como um reviver do sofri
mento primário associado à lacuna básica, como tal, também ela exige o
recurso à zona da criatividade no sentido, nem sempre conseguido, de criar
algo de melhor.
Eu diria mais, considerando a relação que temos com o nosso próprio cor
po, a doença constiturse como um reavivar do sofrimento associado à lacuna
básica por excelência. Efectivamente e segundo Gevaert (1991), nós podemos
afirmar, simultaneamente, que temos um corpo e somos corpo. Ou seja, com
o nosso corpo mantemos sistematicamente uma relação de exterioridade e de
interioridade, de sujeito e de objecto. Nós não somos sem o nosso corpo, mas
em simultâneo, o corpo é algo de objectivável e manuseável. Por outro lado o
nosso corpo é o depositário das nossas memórias relacionais, nomeadamente
as mais precoces. Não nos podemos esquecer que essa relação passa mais
pela comunicação que circula através do contacto corpo-a-corpo que pelas
palavras que a criança ainda não compreende. Destas restará apenas a
paralinguagem e a mensagem que lhe for implícita. Por tais razões, a doen
ça, qualquer doença, não poderá jamais ser encarada apenas como um pro
cesso fisiopatologico e/ou psicopatologico, mas sempre e necessariamente
como uma vivência com características absolutamente particulares. Mas e
mais importante do que isso, a doença em geral e a doença oncológica em
particular, pela mitologia que lhe está associada, constituir-se-á sempre
como uma ameaça à integridade do self. A percepção desta problemática
nesta perspectiva levou o autor a evidenciar a importância da manutenção
de uma relação significativa com o seu médico (Balint, 1998). Esta relação
constituir-se-ia como o espaço vital no seio da qual o doente tentaria reen
contrar a harmonia perdida na sua relação com os objectos.
Pela leitura da obra de Balint (1998) intitulada "O médico, o seu doente e
a doença', o que se torna mais evidente parece ser, por um lado, as caracte
rísticas particulares de que se reveste a figura do médico, como aquele capaz
de reconhecer o sofrimento inerente à doença; e por outro, a natureza da
relação propriamente dita, que se traduz em atitudes da mais diversa natu
reza, mas também através dos cuidados que são dispensados e na qual o
„ = _ = = _ _ _ _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = _ _ _ _ _ „ = = = = = = , . . , _ _ _ „ „ = = _ _ _ _ _ „ _ „ _ _ 3 0 2
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
doente procura o espaço de segurança que lhe permita organizar-se. Toda
via, estas características são actualmente extensíveis a diversos outros téc
nicos de saúde, o que aliás o autor também admite, mas aos enfermeiros em
particular. Entendo que os enfermeiros estão em condições excepcionais
para assumirem esta relação, principalmente os que trabalham em serviços
com características idênticas às daquele em que desenvolvi o presente estu
do. Aí constata-se, tal como se pode deduzir a partir deste estudo, que a
natureza da relação inclui, entre outros, a proximidade, a confiança, a dis
ponibilidade, a continuidade e a frequência; mas inclui também uma extensa
gama de cuidados assumidos pelos enfermeiros, os quais se constituem mui
tas das vezes como respostas pragmáticas para as dificuldades dos doentes.
Na convergência dos diversos contributos teóricos, acabados de expor,
percebe-se melhor, quer a vivência do doente e família, quer a resposta da
enfermeira. Evidencia-se também a intervenção de enfermagem como tera
pêutica, bem como a sua relevância neste contexto. Contudo, quer sobre as
vivências dos doentes e famílias, quer sobre a intervenção as enfermeiras
penso que seja útil acrescentar mais alguns comentários. Começo pelos pri
meiros.
Para além das perspectivas teóricas que acabei de referir, existem um
conjunto diversificado de trabalhos de investigação que têm sido desenvolvi
dos, especificamente com doentes oncológicos. Nessas investigações têm sido
realçadas, por um lado as características da vivência, por outro, a necessi
dade de intervenção. Sobre as características da vivência, destaco a obra de
Barraclough (2000), a qual nos expõe com clareza a vivência dos doentes nas
diversas fases da doença, bem como a associação entre essas vivências e os
diversos episódios do tratamento médico. Assim, começa por descrever as
emoções associadas ao momento do diagnóstico que, de acordo com aquela
autora, podem variar entre o choque, o medo e a ansiedade, a tristeza e o
desespero, a raiva, a culpa e a vergonha, entre outros. Relativamente aos
tratamentos a autora salienta uma certa ambivalência por parte dos doen
tes, entre a esperança de cura que a mesma representa e o medo dos efeitos
303============================================-======================== Dissertação de Doutoramento
Os ulciites e os enfermeiros: Construção de uma relação
secundários. Esta última asserção é particularmente relevante no caso da
quimioterapia.
Relativamente às reacções emocionais ao cancro de uma forma geral, não
deixa de ser curiosa a perspectiva da autora ao referir que o cancro pode ser
entendido como uma ameaça, uma perda, mas também uma oportunidade.
Entende ainda que a forma como pode ser entendido tem necessariamente a
ver com cada pessoa, com as características da doença oncológica, mas tam
bém com a ajuda disponibilizada. A juntar a isto, é de realçar que, de acordo
com estudos citados por Barraclough (2000), cerca de 50% dos doentes onco
lógicos não apresentam qualquer desordem de natureza emocional, cerca de
30% apresentam apenas uma reacção de ajustamento e apenas 20% apre
sentam desordens de natureza psiquiátrica. Face a estes dados, a tónica da
intervenção terá que ser colocada, por um lado numa perspectiva preventi
va, criando um sistema que permita um correcto apoio às situações de reac
ção de ajustamento e evitar que as restantes situações evoluam para doença
psiquiátrica. Mas também numa perspectiva de detecção e acção precoce
sobre as pessoas que de tal careçam.
Também diversos outros autores caracterizaram esta vivência, vindo de
alguma forma, corroborar o que acabei de referir. Destes destaco Benner &
Wrubel (1989), as quais evidenciam a vivência e perspectivam a ajuda a par
tir de uma perspectiva fenomenológica. Por sua vez Justo (2001) destaca a
perspectiva psicológica na etiologia da doença oncológica e os benefícios da
intervenção, realçando neste caso a importância da conjugação de perspecti
vas. Ribeiro (2001), realça a repercussão quer da doença oncológica, quer dos
tratamentos sobre a qualidade de vida das pessoas. Também Wells (2001) e
Plant (2001) evidenciam o impacto do cancro e dos seus tratamentos no
doente e na família aos mais diversos níveis.
Comparando os resultados do presente trabalho, no que se refere às
características da vivência dos doentes, quer na perspectiva destes, quer das
enfermeiras, constata-se que as mesmas são sobreponívéis às características
referidas pelos diversos autores atrás referidos.
_ _ _ „ = „ _ _ _ _ _ _ „ = = = = = = = = = = „ _ _ _ _ _ „ = „ = „ = = = = = „ _ _ _ _ „ _ _ = „ = _ _ „ . „ _ _ 3 0 4
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Relativamente à intervenção das enfermeiros e no que à gestão de senti
mentos diz respeito, ela é destacada e caracterizada em diversos autores de
enfermagem já referidos (e.g., Benner & Wrubel, 1989; Wells, 2001; Plant,
2001). Contudo queria sublinhar dois aspectos que me parecem particular
mente importantes.
O primeiro tem a ver com o facto de a intervenção do enfermeiro, tal
como aqui foi apresentada, ter semelhanças com outras intervenções psico-
terapêuticas. Tal é o caso da proposta de intervenção de Barraclough (2000),
a qual realça a importância da detecção precoce dos problemas emocionais,
mas também da sua adequada gestão, através de criação de espaços afecti-
vo-temporais que permitam a sua expressão. Mas também Gil et ai (2001),
propõem uma intervenção direccionada para esses aspectos, entre outros.
Todavia, estes autores (Barraclough, 2000; Gil et ai, 2001), entendem deno
minar a intervenção de profissionais de saúde não psicoterapeutas (e.g.,
médicos e enfermeiros) como counseling. Embora reconheçam dificuldade em
destrinçar entre psicoterapia e counseling, acabando por os colocar num con
tinuum, definem o segundo como, um tipo de intervenção cujo objectivo é
centrar-se nos problemas e/ou preocupações da pessoa, no sentido de facili
tar a sua adaptação ao meio e desde que aqueles problemas não sejam de
natureza psicopatológica. Voltarei a estes assunto mais tarde.
O segundo aspecto que pretendo sublinhar tem a ver com trabalhos de
investigação, desenvolvidos a partir da intervenção clínica dos enfermeiros.
Em muitos deles são realçados aspectos comuns com aqueles que referi mais
atrás como caracterizadores da intervenção das enfermeiras.
Assim, Larsson et ai (1998), desenvolveram um estudo em que, através
do recurso ao Instrumento de Avaliação do Cuidado (Care-Q), tentaram
ordenar a importância dos comportamentos de cuidado, na perspectiva dos
enfermeiros e dos doentes oncológicos. Ambos os grupos perceberam os com
portamentos antecipatórios e de conforto como estando entre os três mais
importantes. Os doentes atribuíram mais importância à capacidade de
explicação e de facilitação bem como de antecipação do que os enfermeiros.
Estes atribuíram mais importância à acessibilidade e às medidas de conforto
305===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
que os doentes. Também Benner (2000) entende que a antecipação de crises,
riscos e vulnerabilidades, ou seja, a capacidade de premeditação clínica, é
central.
Por sua vez, percebe-se que a disponibilidade faz parte da categoria
"Estar com" da teoria de médio alcance proposta por Swanson (1991) e cons
truída a part ir de um estudo através do qual identificou cinco processos do
cuidar (i.e. conhecer, estar com, fazer por, possibilitar e manter a crença). A
mesma autora, numa entrevista concedida em 1998, define a "disponibilida
de" como uma mensagem verbal e não verbal de que estamos ali para as pes
soas. Mesmo quando a enfermeira não tem tempo, pode demonstrar disponi
bilidade, manifestando que entendeu a necessidade da outra pessoa e dispo-
nibilizando-se para voltar mais tarde (Swanson, 1998). Também os concei
tos, "atender" (Bottorff & Morse, 1994; Bottorff & Varcoe, 1995) e "disponibi
lidade" (Ersser, 1991) têm semelhanças com o conceito de disponibilidade
proposto no presente estudo.
Considero contudo, particularmente importante um trabalho desenvolvi
do por este último autor (Ersser, 1991), através do qual pretendeu identifi
car que perspectiva t inham enfermeiros hospitalares e doentes adultos em
enfermarias médicas, acerca das intervenções terapêuticas e
anti-terapêuticas de enfermagem. Pretendeu ainda caracterizar a natureza
dessas perspectivas, comparar as perspectivas dos doentes e dos enfermeiros
e desenvolver um constructo conceptual explicativo. O estudo foi conduzido a
partir de uma abordagem etnográfica e como instrumentos de recolha de
dados foram usados a observação e a entrevista. Os dados foram analisados
através de análise de conteúdo e do método de comparação constante. Atra
vés da análise de conteúdo foram identificadas três dimensões:
S A apresentação do enfermeiro - Como o enfermeiro aparece perante
o doente. Para esta dimensão contribuíram muitos dados resultan
tes da observação, nomeadamente os relativos à comunicação não
verbal.
S A presença do enfermeiro - A proximidade do enfermeiro face ao
doente ou o "estar com" o doente.
_ - _ _ _ = _ _ _ „ = = = = _ _ _ _ _ _ _ „ = = = = _ _ _ = = = = = = = _ „ = = = = _ _ „ = = = = „ _ _ „ = _ _ _ _ . . = „ 3 0 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
■S As acções específicas do enfermeiro Os procedimentosespecíficos
tipo do enfermeiro.
Por sua vez, a segunda dimensão (a presença do enfermeiro), engloba qua
tro temas:
•S Desenvolvendo contacto com o doente!
•S Suporte e cuidado!
S Disponibilidade do enfermeiro!
S Sensibilidade/insensibilidade do enfermeiro.
Com base nestes dados e considerando a importância dos cuidados dp
enfermeiro a nível emocional, Ersser (1991) propôs uma redefinição do con
ceito de "uso terapêutico do self. Este conceito é importado da psicoterapia e
consiste no uso intencional do nosso self, no contexto de uma relação tera
pêutica, baseada essencialmente na interacção verbal, com objectivo de aju
dar o doente a desenvolver comportamentos mais funcionais (Taylor, 1982).
Para atingir tal desiderato é portanto necessário ter um elevado autoconhe
cimento, o qual será depois intencionalmente usado. Ersser (1991) não nega
a importância desta perspectiva, contudo entende que: a presença, a dispo
nibilidade, a tentativa de compreensão do significado da doença, o "estar
com", levados a cabo pelo enfermeiro, também são formas de "uso terapêuti
co do self, desde que obedeçam ao critério da genuinidade e ainda que o
enfermeiro não tenha consciência plena do processo. Considero esta perspec
tiva particularmente importante, dadas as sobreposições de dimensões com
as encontradas no presente estudo, mas sobretudo devido à valorização atri
buída ao trabalho emocional desenvolvido pelo enfermeiro.
Mas também a esperança é valorizada por outros autores, ainda que a
denominem de modo diferente. Swanson (1991), apelidaa de "manter a
crença", o que significa: acreditar e sustentar a estima, manter uma atitude
plena de esperança, oferecer um optimismo realista, não abandonar. A espe
rança, tal como é definida no presente e pela autora anterior, pode ainda ser
entendida como busca de significado. Foi também essa a conclusão a que
chegaram O'Connor et ai (1990) quando tentaram perceber a resposta dos
307 Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
doentes ao diagnóstico de cancro. Através da análise que efectuaram desco
briu seis temas major:
S Olhar para as consequências do diagnóstico de cancro (o qual era o
mais significante);
•f Procurar um significado pessoal para o diagnóstico;
S Esperança!
S Mudar a perspectiva sobre si mesmo!
S Rever a vida.
Ainda de acordo com o mesmo estudo, os autores entendem que a fé, em
sentido lato, e o suporte social são essenciais para que a pessoa possa procu
rar o significado do diagnóstico de cancro. Sendo que os enfermeiros e os
familiares são os que se encontram em melhor posição para ajudar nessa
procura.
Num outro estudo Motyka et ai (1997), tentaram identificar os elementos
de suporte psicológico nos cuidados de enfermagem. Numa primeira análise
do material verbal coligido, o objectivo foi, identificar as declarações nas
quais se percebesse expressamente uma clara intenção de intervenção do
enfermeiro. Foram identificadas sete formas básicas de intervenção, as
quais incluíam^
■S animar/encorajar o doente (consolar, reassegurar, dar esperança);
S recolher informação,
S oferecer explicação,
S dar conselhos e sugestões,
S mostrar cordialidade (amabilidade, amizade e aprovação),
S mostrar empatia e compreensão e
S referenciar o doente ao médico.
Do conjunto destas formas de intervir destacase como mais relevante e
mais usada, o animar/encorajar o doente.
Vários outros autores fazem referência aos comportamentos de cuidar
dos enfermeiros, com base nos trabalhos de investigação que desenvolveram.
Aqueles comportamentos incluem, demonstrar respeito e benevolência, ten
tar perceber como os doentes se sentem, oferecer informação, promover o
_ _ — ._»_■■■■_■■■■_■ = — 3 0 8
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de unia relação
encorajamento e alimentar a esperança (Von Essen & Sjoden 1991; Hall-
dorsdottir & Hamrin 1997). Por sua vez Haberman (1988) e Winters et ai.
(1994), destacam a importância da manutenção da esperança, a gestão da
incerteza e a necessidade de suportar e reforçar a capacidade dos doentes
para se adaptarem e lidarem com a ameaça de doenças graves.
A questão da confiança e da segurança inerente à relação é também valo
rizada em estudos como o de Palsson & Norberg (1995). Estes autores assi
nalam que o suporte emocional, bem como as mudanças organizacionais nos
cuidados conduzem ao sentimento de segurança/confiança. Ou seja, de acor
do com aqueles autores, as intervenções dos enfermeiros podem promover a
percepção de controlo nos doentes, o que lhes confere um sentimento de
segurança. O estudo sugere ainda que são necessárias mudanças organiza
cionais no sentido de ir ao encontro das necessidades psicossociais dos doen
tes, como por exemplo, informação adequada e reafirmação da relação. Ou
seja, os doentes referem que consideram importante para o seu sentimento
de segurança/confiança, o facto de encontrarem o mesmo enfermeiro durante
o processo de quimioterapia. Tal, reafirma a relação pela continuidade, o que
confere maior segurança, não só por isso, mas também pela confiança que
aprendem a desenvolver nas informações dadas pelo enfermeiro. Estas
informações versam assuntos como a explicação dos cuidados que estão a ser
prestados, a quimioterapia e os seus efeitos, as reacções a esperar, os exercí
cios a desenvolver, entre outros e são cruciais para o referido sentimento de
segurança e confiança dos doentes.
Pelo conjunto de estudos referidos percebe-se, não só, a repetição de
alguns conceitos, mas também a sobreposição com diversos dos achados do
presente estudo. Tal reforça a validade deste, mas realça também a necessi
dade de se proceder a trabalhos de meta-investigação, de forma a conferir
estabilidade a alguns conceitos e a permitir integrá-los no património do
conhecimento de enfermagem. Por outro lado, realça a importância da inter
venção dos enfermeiros e o seu contributo para os ganhos em saúde e para o
berrrestar das pessoas.
309===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
Contudo, no presente estudo, a resposta da enfermeira, não se limita ao
atrás exposto, sendo complementada ainda com outros instrumentos tais
como a "Gestão de informação". Também este se pode compreender no con
texto das teorias atrás referidas. Quando foi feita alusão à teoria da crise,
nomeadamente aos contributos de Morin (1973, 1982, 1996) foi dito que, de
acordo com o princípio neguentrópico, os sistemas vivos complexos são gran
des consumidores de energia e responsáveis por trocas de informação cons
tantes com o meio. Foi dito ainda que esta energia e informação são respon
sáveis pelos processos de desorganização, mas são também essenciais aos
processos de reorganização. Ora se considerarmos as características de par
ticular desorganização associadas ao momento que o doente está viver, com
preendemos a extrema necessidade de informação e energia de que o mesmo
carece. Todavia, neste caso, o fornecimento de informação não pode ser um
acto mais ou menos mecânico. Disse mais atrás, ao caracterizar a "Gestão da
informação," que este instrumento era utilizado em grande proximidade e
interacção com a "Gestão de sentimentos", sendo que os objectivos se pode
riam entender como comuns. Por tal razão, naturalmente que a informação
é importante, contudo, é necessário enfatizar o modo como se dá a informa
ção. Ou seja, é necessário perceber, por um lado, que a enfermeira não é
necessariamente nem a primeira, nem a única fonte de informação; e por
outro, que, para que a informação cumpra o papel de organizador, precisa de
ser contextualizada, repetida, garantida, as vezes consideradas necessárias
pelo doente.
Por estas razões, entendo que a "Gestão da informação" tem muitas
semelhanças com o domínio, "Função de Educação e Guia", proposto por
Benner (2001) na sua abordagem interpretativa da identificação e da descri
ção dos conhecimentos clínicos. Esta autora (Benner, 2001), apresenta o
domínio atrás referido como, tradicionalmente, fazendo parte integrante da
actuação da enfermeira. Contudo, ao caracterizá-lo a partir dos estudos por
si desenvolvidos na prática clínica, acaba por o fazer acrescentando elemen
tos pouco tradicionais a este domínio. Assim, a autora entende que este
domínio inclui:
= = = = = = = = = = = ° —-~~"""""-—~~~"""-""~~~~——— 310 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
S "O momento: saber quando o doente está pronto a aprender;
S Ajudar os doentes a interiorizar as implicações da doença e da cura
no seu estilo de vida;
S Saber compreender como o doente interpreta a sua doença;
S Fornecer uma interpretação do estado do doente e dar as razões dos
tratamentos;
S A função de guia: tornar abordáveis e compreensíveis os aspectos
tradicionalmente tabu de uma doença" (Benner, 2001, p. 104).
Acrescenta ainda que no desenvolvimento desta função o enfermeiro não
usa as abordagens tradicionais das intervenções educativas. Ou seja, não
constrói momentos formais para desenvolver esta função. Antes escolhe os
momentos mais adequados, de acordo com o ritmo de cada doente e com o
seu estádio vivencial para o desenvolver. Assim, "sempre que possível, as
enfermeiras avisam os doentes sobre o que devem esperar, corrigem as más
interpretações e fornecem explicações quando se produzem mudanças físi
cas" (Benner, 2001, p. 103). Para que tal seja possível e eficaz as enfermeiras
"são obrigadas a utilizar todos os seus recursos pessoais: a atitude, o tom de
voz, o humor, a competência, assim como qualquer outro tipo de abordagem
ao doente" (Benner, 2001, p. 103).
Comparando a proposta de Benner (2001) com os resultados alcançados
através deste estudo, percebe-se uma sobreposição assinalável. Nesta desta
co não só os instrumentos usados na "Gestão da informação" mas também as
estratégias adoptadas pelas enfermeiras. Ou seja e tal como referi mais
atrás, está em causa o que é dito mas essencialmente a forma como é dito e
feito.
Para além desta, diversas outras autoras reconhecem a importância da
função de educação assumida pela enfermeira. Tal é o caso de Orem (1987)
que defende a importância da educação do paciente como forma de este se
poder auto-cuidar. Mas é também a opinião de Roy (Roy & Andrews, 2001)
que entende que, através da educação do doente, se consegue ajudá-lo a
adaptar-se ao stress. Neuman (1982) por sua vez destaca o papel da educa
ção em qualquer uma das três componentes do plano de cuidados (i.e. pri-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
mária, orientada para os factores preventivos, secundária, para a capacida
de de lidar com uma situação aguda de doença e a terciária, orientada para
a ajuda aos doentes a evitarem uma recorrência).
Contudo, penso que a proposta de Watson (1985) é particularmente inte
ressante, dada a aplicabilidade à perspectiva que tenho defendido neste estu
do. Aquela autora defende que a educação sobre a saúde é uma das principais
funções do enfermeiro e apresenta_a como a função profissional por excelên
cia, através da qual se pode distinguir uma intervenção profissional de uma
outra técnica. Todavia Watson (1985) vai mais longe ao propor o "ensi
no/aprendizagem interpessoal" como um factor major de cuidado. Neste pro
cesso, quer o doente quer o enfermeiro alternam papéis de aprendizes e pro
fessores no decurso da interacção. O enfermeiro aprende com o doente a sua
história, a sua perspectiva pessoal, estratégias usadas, entre outras, enquan
to que o doente recebe do enfermeiro elementos de natureza cognitiva e outros
que lhe facilitam o lidar com a sua situação. Neste processo, ambos desenvol
vem a sua capacidade de entendimento da situação, bem como os mecanismos
para lidarem com a mesma. É curioso lembrar a propósito que as enfermeiras
que participaram neste estudo referem que aprenderam com os doentes, por
exemplo, a estratégia da centração sobre o presente.
Também Peplau (1990), tal como já referi mais atrás, chamou à atenção
para o potencial de aprendizagem inerente ao processo de relação enfermei-
ro-doente, sendo que aquela é essencial para que o doente consiga lidar com
a crise associada à doença.
Por último, uma outra perspectiva que considero de grande importância
é a que Vaughan (1991) denomina "educação terapêutica". Esta consiste na
atitude do enfermeiro de, a partir de uma relação de proximidade, desenvol
ver um processo de ensino dirigido especificamente às necessidades do doen
te. Este não passa pelas abordagens didácticas tradicionais, mas antes por
uma atitude afectivamente envolvida e comprometida e dirigida ao aprovei
tamento e desenvolvimento das potencialidades do doente. A autora entende
que esta abordagem tem elevado potencial terapêutico, com repercussões na
gestão do stress, na qualidade de vida e no desenvolvimento pessoal.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Quer a forma como esta autora (Vaughan, 1991) desenvolve este conceito,
quer a proposta de Watson (1985), mais atrás referida, parecenrme particu
larmente sobreponívéis ao modo como caracterizei a "Gestão da informação",
nomeadamente no que diz respeito à sua relação com a "Gestão de senti
mentos" e ao modo integrado, continuado, sistemático como é levada a cabo.
313 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
6 - 0 PROCESSO DE RELAÇÃO ENFERMEIRO-DOENTE NO CON
TEXTO DE UM SERVIÇO DE QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE
HOSPITAL DE DIA
Tudo o que atrás disse, caracteriza a natureza do processo de relação
enfermeiro-doente no contexto do serviço de quimioterapia em regime de
hospital de dia, onde realizei o estudo. Contudo, impõe-se como necessária a
sistematização e articulação dos diversos elementos de modo integrado, para
que melhor se compreenda o processo propriamente dito. Como ponto prévio,
torna-se necessário clarificar que o processo de relação enfermeiro-doente
que passarei a descrever, constitui-se como uma relação preferencial infor
mal. Explicando melhor. Com base nos dados recolhidos e analisados não se
pode afirmar que existe uma relação exclusiva e com carácter formal entre
uma enfermeira e um doente. Efectivamente constata-se que os doentes são
cuidados de acordo com as disponibilidades das enfermeiras. Mas, também
se constata que qualquer doente, em algum momento do seu percurso, se
pode apresentar particularmente vulnerável ou com dificuldades especiais,
sejam elas de que natureza forem. Nesses momentos dirige-se a uma enfer
meira concreta ou emite sinais de solicitação dessa enfermeira. Este proces
so é reconhecido e aceite de modo explícito por todas as enfermeiras. Ou
seja, as enfermeiras reconhecem mutuamente a existência de relacionamen
tos preferenciais e facilitam o contacto, sempre que detectam um sinal de
preferência do doente. Por sua vez os doentes, nas entrevistas que me con
cederam, se questionados directamente sobre este assunto, neganrno. Toda
via, se questionados sobre qual a enfermeira a que se dirigiam quando pre
cisavam de algo em especial, identificanrna. Nos dados resultantes das
entrevistas de admissão, consta-se a solicitação de personalização da relação
por parte dos doentes. Por sua vez, através dos dados resultantes da obser
vação, verifica-se a frequente solicitação, por parte do doente ou de um fami-
==___-___«===_._______..„.=====„___„===„___====„___„„===„__„.„., 3 , 4
Dissertação de Doutoramento
Os ulcntes e os enfermeiros: Construção de uma relação
liar, da presença de uma enfermeira especifica, usando para o efeito as mais
diversas linguagens.
Pelas razões expostas, entendo que esta relação se prefigura como uma
relação preferencial entre uma determinada enfermeira e um doente, ainda
que esta relação seja marcada pela informalidade. Ou seja, não obedece a
nenhum ritual predefinido que determine que os cuidados ou determinado
tipo de cuidados, sejam sempre prestados por determinada enfermeira, num
horário predeterminado. A gestão das preferências é antes contextual. A
relação preferencial, normalmente está associada à enfermeira que fez a
entrevista de admissão. Contudo, pode ser independente de tal facto. Em
qualquer dos casos, esta relação é de natureza processual.
Assim e de acordo com os dados recolhidos e com a análise a que foram
sujeitos, o processo relacional parece desenvolver-se em três fases sequen
ciais, com características próprias, ainda que com fronteiras indefinidas.
Essas fases denominei-as: Início da relação, Corpo da relação e Fim da rela
ção. Caracterizarei e fundamentarei de seguida e do ponto de vista proces
sual, cada uma delas. Desenvolverei idêntico procedimento para os elemen
tos integrantes das primeira e última fases (i.e., Início da relação e Fim da
Relação), dado ainda não o terem sido noutro momento deste trabalho.
6 . 1 - 0 INÍCIO DA RELAÇÃO
Começo, naturalmente, por fazer referência ao início da relação. Esta
fase, normalmente, inicia-se antes de a enfermeira e o doente se encontra
rem, através das actividades de preparação desenvolvidas pela enfermeira, e
conclui-se com o primeiro encontro, o qual se traduz na entrevista de admis
são. Durante toda esta fase, assume particular importância um conjunto de
factores referidos pelos doentes e pelas enfermeiras como facilitadores da
aproximação, bem como a componente do "Processo de avaliação diagnosti
ca" que ocorre durante a entrevista de admissão (ver figura 19).
Assim, constata-se que a enfermeira, regra geral, se prepara e recolhe
informação sobre o doente, antes de se encontrar com ele. A enfermeira sabe
previamente, de acordo com um esquema combinado inter-pares (i.e., distri-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
buição de doentes de acordo com a patologia oncológica diagnosticada), em
que grupo de patologias se inserem os doentes a quem irá fazer a primeira
entrevista. Pelo que, a preparação da enfermeira tem uma componente
implicita, a qual é inerente àquele facto. E tem uma outra componente que
consiste na recolha de alguma informação prévia sobre o doente. Esta é
essencialmente de natureza médica e recolhea do processo médico, ao qual
tem acesso prévio, bem como do médico e/ou de alguma colega que conheça o
doente.
Figura 19 Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfer
meirodoente — Início da relação.
« > '2 a o 2 » a 2 o.
o < (0 (0 S q < a> UJ
o L I
§ /2 Estratégias/capacidades t ==: do doente 8 c o O
UJ DC 1 -
z UJ
0 que preocupa o doente 8 c o O
UJ DC 1 -
z UJ 0 que o doente sabe
Factores de aproximação
■* »
INÍCIO DA RELAÇÃO
Junto destas fontes, pode também recolher outra informação, de nature
za mais informal, normalmente relativa ao modo como doente e família
estão a vivenciar a situação. Como preparação para este primeiro encontro é
de referir ainda um outro elemento que reputo de grande importância e que
consiste na chamada personalizada do doente e família para a entrevista de
admissão. Ou seja, é a enfermeira que se desloca à sala de espera e chama
de modo personalizado o doente e família. Se o início do processo assumir as
características que acabei de descrever, tem a denominação de formal (ver
figura 20). Todavia, ainda que menos frequente, o início do processo pode
ocorrer à margem da entrevista de admissão, em plena sala de quimiotera
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
pia. Neste caso e pelas suas características denominero de informal (ver
figura 20). Quando tal acontece, a informação prévia, a existir, normalmente
é veiculada pela enfermeira que fez a entrevista de admissão.
Figura 20 - O início da relação enfermeiro-doente no contexto de um serviço de quimioterapia em regime de hospital de dia
Contudo, como o processo mais frequente é o primeiro (i.e. o formal), pas
so a descrevêdo mais em pormenor. Assim, após os procedimentos prepara
tórios desenvolvidos pela enfermeira, segue-se a entrevista de admissão.
Esta cumpre dois objectivos: dá início ao "Processo de Avaliação Diagnosti
ca" do qual falarei mais à frente, e testa os factores de aproximação entre o
enfermeiro e o doente/família. Dedicar-me-ei assim a falar agora dos segun
dos.
Quer o enfermeiro, quer o doente reconhecem a existência de um conjun
to de factores que contribuem para a sua aproximação em direcção a uma
relação preferencial informal. Os enunciados pelas enfermeiras caracteri-
zanrse por uma mistura entre factores de natureza clínica e outros de natu
reza afectiva/vivencial. Os enunciados pelos doentes são essencialmente de
natureza afectiva. Por outras palavras, a enfermeira faz uso de factores que
têm em linha de conta a sua leitura clínica da situação do doente e família,
317 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
mas também a sua sensibilidade afectiva, bem como as eventuais similitu
des com a situação (ver figura 20).
Nenhum destes factores tem valor enquanto tal, mas sim na inter-
relação do conjunto, o que resulta numa mistura sempre variável. Contudo,
e tal como oportunamente referi, são de destacar alguns elementos pela sua
relevância. Assim, na "atitude clínica proactiva" destaco os cuidados e a sua
qualidade, a disponibilidade e proximidade, a "sorte", ou seja, conjugação
dos cuidados correrem bem e uma determinada pessoa gostar, e a leitura dos
indicadores de preferência do doente. Do conjunto destes elementos, alguns
adquirem um valor inicial elevado, havendo depois alguma tendência para a
estabilização, como no caso da "sorte" e da qualidade dos cuidados. Todavia,
a importância doutros permanece ao longo de todo o processo de relação
como no caso da disponibilidade e proximidade. No presente estudo, consta-
ta-se que aqueles elementos coexistem ao longo de todo o processo de rela
ção, sendo que a disponibilidade parece funcionar como o facilitador da rela
ção como um todo e da proximidade em particular. Esta por sua vez, parece
resultar de um processo de construção contínua e funcionar como o contexto
necessário para a prestação de determinados cuidados de enfermagem.
Estes conceitos foram também percebidos em diversos outros estudos.
Assim, sobre a disponibilidade, sendo um conceito já atrás definido e fun
damentado (Swanson, 1991; Bottorff & Morse, 1994; Bottorff & Varcoe,
1995; Ersser, 1991), resta apenas referir que alguns autores caracteri-
zam-na como abertura ao outro, sendo esta, em primeira análise, de nature
za pessoal (Kathleen, 1999; Roberts & Snowball, 1999). Também o conceito
de proximidade parece ser de uso frequente, sendo diversos os autores que o
referem em estudos da mais diversa ordem (Morse et ai, 1992; Artinian,
1995; Armstrong & Martin, 1996; Sourial, 1997; Bottorff, et ai 1997; Denny
& McGuigan, 1999; Kathleen, 1999; Roberts & Snowball, 1999; Easter,
2000; Mcqueen, 2000; Wuest, 2000; Miller, 2001). Estes autores consideram
que a proximidade se constrói. Consideram também que este conceito ganha
uma importância considerável no âmbito dos cuidados de enfermagem, por
um lado, por envolver uma dupla proximidade (i.e., física e afectiva) e por
_-__=-____====___„=====_„_„===_____„=_____„=„__„_.=„___„.„__ 3 ! g
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
outro, porque, por essa razão, coloca problemas relativamente aos limites da
relação, difíceis de resolver. Voltarei a esta questão um pouco mais à frente.
De todos os autores atrás referidos destaco Morse et ai (1992), não só
pela abordagem inovadora que apresentam, mas também porque propõem
teorizações construídas a partir da prática clínica. Morse et ai (1992) apre
sentaram um modelo que descreve a resposta dos enfermeiros perante os
doentes em sofrimento, o qual foi construído a partir da observação da sua
acção clínica. Este modelo tem como conceito central o compromisso, sendo
que o seu nível varia em função de dois parâmetros: foco da acção (i.e., sobre
o doente, com o consequente compromisso e incorporação do seu sofrimento;
sobre si próprio, protegendo-se de experienciar o sofrimento do doente); e a
experiência (i.e., com resposta reflexiva e espontânea, no primeiro nível; e
aprendida, no segundo nível). Estes dois parâmetros e respectivos compo
nentes dão origem a quatro categorias de resposta, tal como se pode obser
var na figura 21.
Figura 21 - Categorias de resposta em função da experiência e do foco.
FOCO Focada no doente Focada em si próprio
< O
Primeiro Nível
Resposta Reflexiva
Comprometido
Resposta em conexão
Anti-Comprometido
Resposta reflectida PS
h Segundo Nível
Resposta Apreendida
Pseudo-Comprometido
Resposta profissional
Descomprometido
Resposta descomprometida
Fonte: Adaptado de, Morse et ai (1992)
Neste contexto, a disponibilidade e a proximidade, podem ser entendidas
como a via para o compromisso, conceito central do modelo apresentado por
Morse et ai (1992).
Por sua vez Olson (1997), através de um estudo fenomenológico conduzi
do com doentes sujeitos a cirurgia, identificou as características e acções da
enfermeira comprometida. Entre essas é também patente, quer de forma
implícita, quer explícita, a disponibilidade.
319 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação ;
Também Wilkes & Wallis (1998), desenvolveram um estudo cujo objecti
vo era perceber qual a estrutura do cuidar, a partir da experiência dos alu
nos do curso de enfermagem. Concluíram que a compaixão era a essência do
cuidar. Esta materializase e actualizase através da comunicação (i.e.,
ouvir, falar, explicar, tocar, educar, expressar sentimentos); prover conforto
(fazer, assistir, ajudar); ser competente (avaliar, estar atento às deixas do
doente, ter conhecimentos e capacidades, ser responsável e ser profissional);
estar comprometido (fazer, amar, não mostrar preconceito, estar presente);
ter consciência (assistir, dar dignidade e respeito à pessoa, fazer, t ra tar
como a si próprio); ser um confidente (saber o que fazer sem hesitações); ser
corajoso (advogar pelas necessidades das pessoas e direito ao tratamento,
intervir pelas e com as pessoas). Também neste caso se constata uma assi
nalável coincidência entre alguns dos elementos do cuidar deste estudo e
elementos da "atitude clínica proactiva" atrás referida, nomeadamente '■ a
disponibilidade e proximidade, a competência, a capacidade de avaliação,
entre outros.
Na "aproximação por similitude", outra das categorias que engloba ele
mentos que, no entender das enfermeiras, são facilitadores da relação, des
taco a similitude de vivências. Estas, como já disse, não têm necessariamen
te que ser de doença, podendo antes ter a ver com acontecimentos de vida de
forma mais abrangente. Neste caso, parece assumir alguma preponderância
a perspectiva psicossocial de construção de uma relação. Efectivamente, de
acordo com Fischer (2002), a similitude é um dos factores psicossociais a
considerar na construção e desenvolvimento de uma relação. Contudo, pare
ceme pertinente recordar que, no caso em análise, se t ra ta de uma relação
que, sendo social, é sobretudo clínica, o que pressupõe objectivos terapêuti
cos. Assim sendo, tornase necessário questionar: a utilização desta estraté
gia na construção da relação é um meio para atingir um fim? A similitude
inicial é benéfica ou prejudicial no processo de relação?
Por último, na "aproximação por sensibilidade" destaco a sensibilidade
para a situação do doente, a qual resulta, muitas vezes, da compreensão das
suas dificuldades. Todavia, a característica mais marcante da "aproximação
_ - - ^ _ « „ _ _ _ _ „ » „ _ _ _ _ _ ^ „ _ _ _ _ _ . ^ _ _ _ _ „ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 3 2 0
Dissertação de Doutoramento
Os ulcnles e os enfermeiros: Construção de uma relação
por sensibilidade" é a atitude compassiva. Esta pode ser entendida como
sinónimo de sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia de outrem,
acompanhada do desejo de a minorar. Também pode ser entendida como
uma emoção e uma virtude em simultâneo, a par com o amor, a benevolência
e a simpatia (de Sousa, 2003). Sendo entendida como uma virtude, Hume,
filósofo inglês do século XVIII, entende que faz parte de um segundo grupo
de virtudes que temperam as virtudes baseadas na auto-estima, estas do
primeiro grupo. Neste caso a compaixão seria definida como um desejo de
fazer bem e de preocupação pelos outros (Homiak, 2003).
No modelo proposto por Morse et ai (1992) e já atrás exposto, a compai
xão é apresentada como uma estratégia incluída no grupo das respostas de
primeiro nível. Ou seja, caracteriza-se por ser uma resposta reflexiva e com
prometida e define-se como uma expressão de sensibilidade para reconhecer
o desespero e a dor do outro. Também Wilkes & Wallis (1998), no estudo
atrás citado se referem à compaixão, apresentando-a como a essência do
cuidar e caracterizando-a com elementos tais como, ter e parti lhar senti
mentos, ter preocupação pelos outros e ser um amigo.
Por sua vez o doente, quando se refere aos factores que contribuíram
para a aproximação, faz apelo a factores de natureza afectiva, percebidos na
acção do enfermeiro, tais como a simpatia, o carinho, a alegria e a personali
zação.
O conceito de simpatia tem sido objecto de análise de diversos pensadores
de diferentes áreas. Assim e a título de exemplo, este é o conceito central de
uma das obras de Hume (i.e., "Treatise'), o qual a define como um sentimen
to de humanidade observado em nós e nos outros (Morris, 2001). Por sua
vez, Bergson, filósofo francês de finais do século XIX e princípios do século
XX, entende que a simpatia é um sentimento moral e uma emoção criativa
que nos permite colocarmo-nos no lugar do outro e nos impele a ajudá-lo.
Também a perspectiva ética da filosofia de Schopenhauer (século XVIIPXIX)
é baseada na simpatia, onde a vontade moral, sentindo o sofrer do outro
como seu, faz um esforço para aliviar a dor (Schopenhauer, 2004). Por ú l t r
321 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação
mo, a corrente fenomenológica entende que a simpatia, a par com a empatia,
são elementos importantes no cuidar dos outros (Smith, 2003).
A simpatia tem também sido definida pela psicologia, como a solidariza-
ção com o estado mental de alguém, sem que para isso o indivíduo se coloque
no lugar do outro. Sendo entendida assim, é, de algum modo, menosprezada
em termos terapêuticos, face à empatia. Todavia, a simpatia também pode
ser entendida como similitude no sentir e no pensar que aproxima duas pes
soas.
Por seu lado, no modelo de resposta dos enfermeiros atrás referido (Mor
se, et ai, 1992), a simpatia é apresentada como uma estratégia também
incluída no grupo de respostas do primeiro nível. Assim sendo, caracteriza-
se por ser uma resposta reflexiva e comprometida e define-se como uma
expressão do nosso pesar perante a situação de dificuldade e de tristeza do
outro (Morse et ai, 1992).
Recordo que os doentes e familiares que participaram neste estudo con
sideram que a simpatia suaviza a intimidação e a fragilidade, cria bom
ambiente, facilita a relação e estimula a sua auto-estima por se sentirem
respeitados e bem acolhidos. Ou seja, atribuem uma importância central à
simpatia, enquanto facilitador da relação.
Por sua vez e tal como já foi referido, os doentes atribuem ao carinho um
papel importante como elemento de ajuda, porque entendem que reforça a
capacidade de luta do doente. Recordo ainda que chegam a considerá-lo
como característica profissional. Assim e de modo abreviado, podemos defi
ni-lo como manifestação de cuidado, preocupação e desvelo por outrem. Nos
autores consultados não encontrei conceito algum com idêntica designação,
porém, encontrei alguns com idêntico significado. Tal é o caso do conceito de
consolação proposto por Morse et ai (1992), o qual é também uma estratégia
incluída no grupo de respostas de primeiro nível e que aquelas autoras defi
nem como o acto de acalmar ou suavizar o desconforto e a dor, mas dan-
do-lhe um sentido idêntico ao do gesto de uma mãe perante o filho que aca
bou de cair e de se magoar.
- _ _ - _ - — - _ _ - = = = _ _ _ _ _ _ _ _ ™ = = = = = _ _ _ _ = = = = = = = „ _ „ = = = = _ „ _ _ = = = _ . „ _ _ „ _ _ „ 3 2 2
Dissertação de Doutoramento
Os uLeiites e os enfermeiros: Construção de uma relação
Relativamente à alegria, recordo que a mesma foi identificada e valori
zada pelos doentes e não pelas enfermeiras. Sublinho tal porque se poderia
considerar inadequada a manifestação de alegria num contexto desta natu
reza e perante pessoas em sofrimento. Torna-se por isso necessário tentar
perceber porque é que as enfermeiras a usam e os doentes a valorizam.
Se entendermos a alegria na perspectiva hedonista, como um sentimento
associado ao prazer (Moore, 2004), torna-se forçoso perguntar: qual prazer?
A mesma questão se coloca se a entendermos como uma das oito emoções
humanas primárias, tal como proposto por Plutchik & Kellerman (1980),
uma vez que, também neste caso, se percebe como uma emoção associada ao
prazer.
Os filósofos referem-se à alegria de modo diverso dos autores anterior
mente referidos. Assim, para Espinosa a alegria é simplesmente o movimen
to ou a passagem para uma maior capacidade de acção, por oposição à tris
teza que representa o contrário (LeBuffe, 2001; Nadler, 2001). Poder-se-ia
assim entender que o uso da alegria tem como objectivo despertar a capaci
dade de acção dos enfermeiros. Bergson (Lawlor et ai, 2004) parece dar con
tinuidade a esta ideia ao definir a alegria como uma emoção criativa. No seu
entender existem emoções normais, nas quais, primeiro tenho a representa
ção do que me causa a emoção e depois tenho a emoção (e.g., eu vejo o meu
amigo e sinto-me feliz); e emoções criativas, as quais são anteriores ao acto
criativo. Ou seja, primeiro tenho a emoção, a qual desencadeia a criação. No
entender deste filósofo a alegria inclui-se neste segundo grupo. Assim,
enquanto que no caso anterior a alegria despertava para a acção, neste caso
desperta para a acção criativa. Obtemos assim uma perspectiva que vem de
encontro aos diversos conceitos de cuidar como acto criativo (e.g., Watson,
1985, 1988; Carper, 1978; Chinn & Kramer, 1999).
Sartre oferece-nos uma outra perspectiva dizendo-nos que qualquer com
portamento emotivo envolve mudanças físicas e aquilo que se poderá cha
mar uma tentativa quase "mágica" de transformar o mundo, mudando-nos a
nós próprios (Flynn, 2004). A alegria pode assim ser entendida uma tentati
va de transformar uma situação com a qual temos dificuldade em lidar. Pen-
323===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
so que seja oportuno referir que nesse caso, e no entender deste filósofo, se
t ra ta de uma emoção falsa. Se aplicarmos esta perspectiva à situação em
análise (i.e., cuidados de enfermagem no contexto de um hospital de dia de
quimioterapia citostática), então a alegria das enfermeiras será entendida
como uma forma de lidarem com uma situação que lhes coloca dificuldades e
que as assusta. Apesar disto penso que seja adequado relembrar que se tra
ta de uma emoção referida como positiva pelos doentes.
Face a esta diversidade de posições parece-me adequado sublinhar a
capacidade contagiante e criativa da alegria. Ou seja, a razão pela qual as
enfermeiras usam esta emoção e os doentes a apreciam, pode radicar por um
lado, no prazer destes por se sentirem bem acolhidos e por outro, na positi
vidade intrínseca da mesma. É também neste sentido que se pronunciam
alguns autores ligados ao que se convencionou chamar a "psicologia positi
va" (Fredrickson, 2000, Oliveira, 2004). Estes autores defendem que a psico
logia se tem dedicado em excesso aos aspectos negativos da vida e muito
pouco aos positivos. Por tal razão, entendem que se devem começar a estu
dar e valorizar os segundos, mas principalmente a usá-los enquanto instru
mento terapêutico (Oliveira, 2004). Curiosamente, ao enunciarem esses ins
trumentos (e.g., Amor, felicidade, alegria, optimismo, esperança, perdão,
sabedoria, beleza, sentido de vida) percebemos que os mesmos englobam
diversos já referidos neste trabalho como sendo usados pelas enfermeiras.
O último elemento referido pelos doentes (i.e., personalização), de algum
modo, vem reforçar a ideia que acabei de expressar. E digo tal porque uma
das manifestações de personalização é o tratamento nominal. A associação
entre o sentirem-se reconhecidos (i.e., identificados, tratados pelo nome) e a
alegria, resultam num momento prazeiroso e positivo para o doente. Daí a
apreciação positiva que eles fazem de tais gestos.
Em resumo, poder-se-á dizer que, do conjunto dos conceitos referidos
pelas enfermeiras e pelos doentes como facilitadores da relação, resulta uma
paleta diversificada de opções, onde se misturam elementos de natureza
estri tamente clínica (e.g., "atitude clínica proactiva"), com outros de sensibi
lidade humana (e.g., "aproximação por sensibilidade", "carinho") e outros
Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
ainda de civilidade e urbanidade (e.g., "personalização"), resultando numa
acção profissional com um perfil próprio e identificativo.
O inicio da relação engloba também, tal como já referi, a componente do
"Processo de avaliação diagnostica" que ocorre durante a entrevista de
admissão e o qual já foi caracterizado. Este outro componente do início da
relação articula-se com os factores de aproximação, bem como com a prepa
ração prévia desenvolvida pela enfermeira. Em qualquer um destes outros
factores existem elementos que contribuem para o "Processo de avaliação
diagnostica".
Poder-se-á então dizer que o "Início da relação" é um misto de elementos
de natureza afectiva, com outros de natureza clínica. Os elementos do pri
meiro grupo, por sua vez, adquirem características sobreponívéis com as
referidas por Fischer (2002) como integrantes de uma relação social. Aquele
autor afirma que os conceitos de Laço social, Filiação e Atracção são funda
mentais para compreendermos qualquer relação social. Afirma ainda que os
elementos psicossociais de qualquer relação social são a proximidade e a
similitude-complementaridade. Muitos destes conceitos têm semelhanças
assinaláveis com os conceitos que mais atrás defini com base nos dados reco
lhidos. Entendo, contudo, que os diversos elementos desta fase não podem
ser encarados de modo isolado, mas antes como um todo, tal como já afirmei.
Assim, esta fase da relação deve antes de mais, ser entendida do ponto de
vista clínico, como o primeiro passo na construção de um processo relacional
cujos objectivos são terapêuticos. Tal não significa que este processo esteja
isento ou seja alheio aos mecanismos inerentes a qualquer relação social.
Todavia, esta fase parece-me ter uma maior proximidade conceptual com a
fase de Orientação proposta Chalifour (1989); ou com as fases de Acolhimen
to e orientação e Apresentação e clarificação do problema, na perspectiva de
Cibanal (1991); com as de Orientação e Identificação sugeridas por Peplau
(1990); ou ainda com as fases de Pré-interacção e Orientação de Travelbee
(1972). Dito por outras palavras, a fase Início da relação, aqui proposta, tem
semelhanças e diferenças com as fases iniciais propostos por diversos auto
res de enfermagem. A semelhança desta, nas diversas teorizações propostas,
325 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
percebesse que esta fase tem como principal objectivo a criação de um clima
de confiança que permita o desenvolvimento ulterior da relação numa pers
pectiva terapêutica. Vários dos autores atrás referidos incluem aqui todo o
trabalho prévio desenvolvido pela enfermeira no sentido de se preparar para
a relação que vai encetar. Travelbee (1972), propõe mesmo uma fase deno
minada de Pré-interacção, anterior à de Orientação, e caracterizada por
ocorrer na ausência do doente e por incluir recolha de informação com ori
gem nas mais diversas fontes e preparação da enfermeira. A fase de Orien
tação ou Acolhimento, integra ainda o primeiro encontro com o doente, sen
do aí valorizados todos os procedimentos tendentes a criar um ambiente
gerador de confiança.
Apesar destes elementos em comum, existem também diferenças face às
diversas teorizações atrás referidas. Algumas dessas diferenças são atribuí
veis, em grande parte, ao facto de várias dessas teorizações terem sido
desenvolvidas para contextos de cuidados específicos (e.g., psiquiátrico).
Todavia, a diferença mais notória parece-me ser de outra natureza. Grande
parte dos autores atrás referidos diz que a principal característica desta fase
é a clarificação do problema. Ou seja, um processo que conduz enfermeiro e
doente até a um consenso acerca do problema. Esta é uma abordagem cla
ramente na senda das tradicionais abordagens psicoterapêuticas. Contudo,
no presente estudo, e como resultado desta primeira fase da relação, pode
não resultar qualquer consenso acerca do problema do doente. Ou seja, ape
sar de a enfermeira desenvolver esforços no sentido de tentar perceber quais
as maiores preocupações do doente e de se poder dizer que, no fim desta
fase, a mesma terá uma ideia bastante clara acerca disso, tal não significa
que esta ideia tenha resultado de uma definição conjunta (i.e., entre a
enfermeira e o doente). Esta limitação é imposta pelas características da
vivência do doente, por um lado, e pela imposição de um determinado proto
colo médico, pelo outro. Ou seja, a situação de saúde impõe que se aja dentro
de um determinado protocolo. Este tem tempos de evolução que não se com
padecem com os tempos de vivência do doente. Pode então acontecer que
tenha que se avançar com um tratamento, independentemente do estádio de
- _ _ _ - - _ - _ _ _ = = = = _ _ _ _ _ _ = = = = = = _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = . . _ _ _ _ _ = = = = _ _ _ _ „ = = _ _ _ „ „ 3 2 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
vivência do doente. Tal pode impor uma disparidade considerável entre o
estádio de vivência e o estádio do tratamento. Por estas razões, nesta pri
meira fase, a enfermeira poderá deparar-se com um doente num estádio
vivencial caracterizado pela negação, contudo e apesar disso, ver-se cons
trangida a avançar com o tratamento. Este constitui-se assim como o princi
pal aspecto em que esta fase diverge das referidas por outros autores.
No caso do presente estudo, esta fase só se concluiu após a enfermeira ter
recolhido a informação considerada necessária para dar inicio à prestação de
cuidados. Esta informação, dada a sua natureza, foi recolhida tendo como
pano de fundo o desenvolvimento progressivo do grau de confiança. Estão
assim criadas as condições para se dar início à fase seguinte.
6.2 - O CORPO DA RELAÇÃO
A fronteira entre esta fase da relação e a anterior é difícil de traçar, por
que se pode entender que já durante a entrevista de admissão ocorre inter
venção. Durante essa entrevista verifica-se que, num período inicial, está
patente essencialmente uma atitude diagnostica. Segue-se um outro período
em que a enfermeira, a par com esta atitude, desenvolve uma outra de natu
reza interventiva e que consiste na explicação dos processos de doença e tra
tamento. Para além disso, é necessário considerar ainda que o espaço afecti-
vo-temporal correspondente à entrevista de admissão é terapêutico enquan
to tal. Todavia, o essencial da intervenção terapêutica ocorre após a entre
vista de admissão. Por tal razão, considerarei que o essencial do Corpo da
relação corresponde ao período de tempo após aquela entrevista (ver figura
22).
Esta fase é constituída essencialmente por dois processos coexistentes e
sobreponívéis: o "Processo de avaliação diagnostica" e o "Processo de inter
venção terapêutica de enfermagem", já atrás devidamente caracterizados
(ver figura 22). Aqueles dois processos, tal como já afirmei, coexistem em
estreita inter-relação, sendo porém atribuível ao "Processo de avaliação
diagnostica" a função de timoneiro dos cuidados. Efectivamente, este proces
so parece estar sistematicamente presente e determinar o rumo da interven-
327 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ção, ainda que, por vezes, seja difícil percebê-lo no desenrolar da acção.
Também, como já foi referido, o "Processo de avaliação diagnostica" assume
aqui características algo diferentes das verificadas durante a entrevista de
admissão. Agora prevalece a reavaliação, em contextualização sistemática
com o conhecimento que já se tem do doente. Este processo pode desenvol-
ver-se também no sentido de completar o processo de auto-consciencialização
das dificuldades e problemas do doente. Ou seja, se, como referi mais atrás,
se avançou no tratamento sem se dar tempo ao doente de tomar consciência
das suas dificuldades, é necessário agora conceder esse tempo.
Figura 22 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfermeiro-doente - Início e Corpo da Relação.
REENCONTROS SUCESSIVOS
INÍCIO DA RELAÇÃO CORPO DA RELAÇÃO
O "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem" atinge aqui a
sua expressão máxima. O progressivo conhecimento da situação do doente,
bem como as exigências e as dificuldades impostas pelo tratamento médico
assim o exigem. Já mais atrás afirmei a relevância da "Gestão de sentimen
tos" e da "Gestão de informação" no contexto desta intervenção. Todavia,
estes instrumentos caracterizanrse pela acção conjugada entre si bem como
com os Cuidados técnico-instrumentais.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros! Construção de uma relação
Os diversos autores atrás citados (i.e., Peplau, 1990; Travelbee, 1972;
Chalifour, 1989; Cibanal, 1991) propõem fases com algumas características
semelhantes às encontradas na fase Corpo da relação, aqui proposta. Cons-
tata-se que as semelhanças não são apenas com uma fase, sendo por vezes
necessário englobar duas para se perceberem maiores semelhanças. Assim,
percebenrse semelhanças com as fases de Identificação e de Exploração, pro
postas por Peplau (1990); mas também com as fases de Emergência de iden
tidades, proposta por Travelbee (1972) e de Trabalho, por Chalifour (1989).
Embora as denominações variem, percebe-se que esta é a fase central da
relação e corresponde ao espaço de tempo durante o qual se desenvolve o
essencial da intervenção terapêutica. Ou seja, é a fase em que, após se ter
construído um clima de confiança, se procede a um trabalho sistemático à
volta dos problemas identificados, no sentido de os resolver. Este trabalho,
normalmente desenvolve-se no contexto de encontros sistemáticos entre a
enfermeira e o doente.
No presente caso, as diferenças entre as características enunciadas pelos
diversos autores referidos e as encontradas neste estudo, são menores. A
principal característica das fases correspondentes é a emergência de novas
identidades (Peplau, 1990; Travelbee, 1972; Chalifour, 1989). Também no
presente estudo se pode falar de fenómeno idêntico. Efectivamente, com base
essencialmente na gestão de sentimentos e de informação, mas também na
promoção do respeito, entre outros, percebe-se um trabalho sistemático
orientado no sentido de aprender a viver com a nova situação. Ora, seja qual
for a evolução da situação, esta é de tal forma marcante na vida da pessoa
que, para saber viver com ela, requer novas capacidades, uma outra
auto-imagem e auto-conceito, uma outra estrutura relacional, ou seja, novas
identidades. Contudo, o trabalho das enfermeiras, neste caso, vai um pouco
mais além, na medida em que não se limita a uma interacção verbal. O facto
de desenvolverem simultaneamente todos os cuidados necessários ao doente,
permite que sejam dadas respostas pragmáticas para o mais diverso tipo de
problemas do dia-a-dia. Isto constitui-se como ajuda adicional de grande
importância no processo de aprendizagem que o doente está a desenvolver.
329 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
Isto porque, nuns casos a enfermeira ao fazer, oferece-se como modelo, nou
tros porque ao fazer, dá tempo ao doente para se reorganizar.
6 . 3 - 0 FIM DA RELAÇÃO
O fim da relação assume neste contexto algumas características que con
sidero de particular relevância. Como primeira e mais saliente característica
destaco o facto de o fim da relação não estar, em momento algum, dependen
te da vontade da enfermeira nem do doente. Efectivamente a relação termi
na no momento em que o tratamento quimioterápico terminar ou antes dis
so, se entretanto ocorrer algum incidente de saúde que a isso obrigue ou a
morte do doente. Apesar desta limitação o fim da relação é previsível. Ou
seja, se o mesmo coincidir com o fim dos tratamentos, tal sabe-se com uma
antecedência razoável, uma vez que os ciclos de quimioterapia estão estan
dardizados. Mas também é previsível se o fim da relação for imposto pela
morte do doente. O actual estádio do conhecimento biomédico permite fazer
prognósticos de remissibilidade com um rigor bastante elevado, aos quais as
enfermeiras têm acesso. Mas também o estádio do conhecimento de enfer
magem, a perícia desenvolvida pelas enfermeiras neste serviço, bem como o
conhecimento que vão adquirindo acerca de cada um dos doentes, permi-
te-lhes prever com um elevado grau de probabilidade, qual a evolução da
situação.
Por esta ordem de ideias pode-se dizer que o fim da relação está presente
desde o início e marca todo o processo. Explicando um pouco melhor. Tal
como já disse mais atrás, ainda antes de se verificar o primeiro contacto
entre a enfermeira e o doente, aquela recolhe um conjunto de informações,
entre as quais sobressai a informação biomédica. Um dos elementos siste
maticamente integrantes dessa informação é o estadiamento do tumor, o
qual dá a perspectiva prognóstica em termos de probabilidade de remissão.
Assim, quando a enfermeira se encontra com o doente pela primeira vez,
transporta consigo uma condicionante que dará uma determinada tonalida
de a toda a relação. Esta tonalidade terá determinadas características se a
probabilidade de remissão for real e terá outras se aquela probabilidade não
— _ . _ _ . . = = „ . — . — _ . 330 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
existir ou for remota. Não pretendo insinuar que percebi qualquer género de
desinvestimento na relação em função desta variável. Mas tão só que percebi
características diferentes em função da mesma, as quais me levam a afirmar
que o tipo de fim previsível da relação, em função dos dados disponíveis,
condiciona toda a relação.
Face ao exposto, embora muitos dos reflexos do fim da relação apenas
sejam visíveis muito próximo do mesmo, eles estão patentes ao longo de toda
a relação, pelo que se torna mais uma vez difícil estabelecer com precisão em
que momento começa esta fase. Assim, as enfermeiras referem como dificul
dades sentidas ao longo da relação essencialmente três grupos de elementos:
■S Lidar com as perdas»'
S Lidar com o sofrimento;
S Lidar com a proximidade.
O lidar com as perdas é sempre uma dificuldade em qualquer circunstân
cia. Contudo, é também claro que existe uma hierarquização de perdas e
consequentemente, uma hierarquização das dificuldades em lidar com as
mesmas. No caso em análise, o fim da relação será sempre uma perda,
porém, esta terá características completamente diferentes em função das
características do fim da relação. Se este ocorreu num contexto em que o
prognóstico médico era optimista, parece ser vivida, quase, como um prazer,
com ausência de sinais visíveis de luto. Se, pelo contrário, ocorreu num con
texto de prognóstico pessimista, o fim da relação é um pouco ambivalente
entre algum sentimento de alívio, mas também de tristeza. De alívio porque
a enfermeira não terá que estar presente durante o período final da vida do
doente, normalmente o mais dramático. De tristeza, pelo luto associado ao
fim da relação nestas circunstâncias e à antecipação da morte. Esta tristeza
é actualizada quando a morte efectivamente se verifica, dado que as enfer
meiras, regra geral, são disso informadas pessoalmente pelos familiares dos
doentes. Por último, se o fim da relação ocorrer por morte, durante o ciclo de
quimioterapia, parece prevalecer o luto com o correspondente sentimento de
tristeza.
331===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de um;i relação
De acordo com o verbalizado pelas enfermeiras, de entre as suas dificul
dades, a perda por morte é aquela com a qual continuam a ter mais dificul
dade em lidar e condiciona todas as outras. Por exemplo, o lidar com o
sofrimento assume características diferentes em função do tipo de perda
previsível. As enfermeiras assumem ser mais difícil lidar com o sofrimento
quando o mesmo parece inútil, dado o desenlace que se advinha. A mesma
influência se nota relativamente ao lidar com a proximidade. Isto porque se
percebe uma relação directa entre o grau de proximidade e o grau de sofri
mento por perda.
Porém, o lidar com a proximidade coloca outras dificuldades que extrava
sam as referidas. Constata-se pela análise dos diversos elementos da natu
reza e do processo de relação que esta assume, em muitos momentos, carac
terísticas de grande proximidade e até intimidade. Em circunstâncias como
estas coloca-se um dilema difícil de resolver. Por um lado, estarão em causa
os objectivos terapêuticos da relação. Ou seja, em algumas situações, para se
atingirem determinados objectivos, parece ser necessário um elevado grau
de proximidade. Tal é o caso de determinado tipo de cuidados técni-
co-instrumentais, os quais exigem uma elevada proximidade física. Mas é
particularmente o caso da gestão de sentimentos num contexto de crescente
envolvimento relacional. Este envolvimento é assumido pelas enfermeiras e
pelos doentes e referido como positivo por ambos, sendo adjectivado de modo
variável entre "relação de amigo" e "relação familiar".
Por outro lado, está em causa a dificuldade de traçar uma fronteira entre
uma relação de natureza profissional e outra de natureza completamente
diferente. Esta dificuldade de definição de fronteiras é patente nos discur
sos, quer dos doentes, quer das enfermeiras. Esta indefinição de fronteiras
não é um problema de natureza académico, mas antes de natureza clínica.
Considerando de duvidosa utilidade terapêutica a rígida definição de fron
teiras, em algumas circunstâncias, considero porém, que se deve equacionar
esta questão, por duas ordens de razões: pelo doente e pela enfermeira. No
primeiro caso poder-se-á questionar até que ponto é terapêutica uma relação
com fronteiras indefinidas, na qual os papéis assumidos pela enfermeira
Dissertação de Doutoramento
JCJIASi
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
oscilam entre o de amizade e o familiar. No segundo, para além de se poder
questionar a capacidade de intervenção terapêutica num contexto de indefi
nição de fronteiras e de papéis, questionar-se-á também as repercussões
sobre a pessoa da enfermeira da vivência e quebra repetidas de relações de
grande proximidade. Se a orientação alinhar pelas escolas psicoterapêuticas
clássicas (e.g., behaviorista, cognitivo-comportamentalista, abordagem cen
trada), então a problemática da fronteira da relação terá que ser definida
com outro rigor e ser reconsiderada esta forma de intervenção. Todavia, se
levarmos em linha de conta alguns estudos recentemente levados a cabo, dos
quais destaco o já atrás referido de Morse et ai (1992), então teremos que
considerar a proximidade e a intimidade como inerente à forma de interven
ção das enfermeiras. Aquelas autoras, de acordo com os estudos que desen
volveram, entendem que a enfermeira utiliza um misto de respostas reflexi
vas e espontâneas com respostas aprendidas. As primeiras estão centradas
sobre o doente e a sua vivência e pressupõem uma elevada proximidade e
intimidade. As segundas estão mais centradas sobre a enfermeira e pressu
põem uma fronteira mais nítida e uma maior distância. Ainda segunda as
mesmas autoras, o uso alternado destes tipos de resposta das enfermeiras
tem a ver, por um lado, com as necessidades dos doentes, e pelo outro, com
as capacidades da enfermeira. Explicando melhor. Alguns tipos de interven
ção que pressupõem grande proximidade parecem ser úteis, do ponto de vis
ta terapêutico, se usados num determinado contexto e espaço de tempo deli
mitado, mas prejudiciais se aqueles parâmetros não forem respeitados. Por
outro lado, este tipo de intervenção parece ser extremamente exigente para
quem a desenvolve, pelo que a enfermeira precisa de alternar com outro tipo
(i.e., as respostas aprendidas) no sentido de se proteger. Os objectivos tera
pêuticos parecem resultar desta conjugação e desta forma de gerir a relação.
Não podendo afirmar, com base nos dados analisados, que as enfermeiras
deste estudo utilizam esta estratégia de gestão da relação, bem assim como
das suas fronteiras, consegui contudo perceber que, na continuidade dos
contactos com os doentes, nem sempre se verificava uma elevada proximida
de e quando tal acontecia a mesma não se prolongava durante todo o tempo
333 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
de permanência do doente no serviço. Apesar disso, considero que este é um
assunto de grande pertinência do ponto de vista terapêutico e que como tal
carece de estudos direccionados especificamente para esta questão.
O que acabei de afirmar sai reforçado se considerarmos que as dificulda
des referidas pelas enfermeiras existem ao longo da relação e se prolongam
para além do seu fim. Efectivamente constata-se que as repercussões das
dificuldades atrás referidas se prolongam temporalmente, para além do fim
da relação e que invadem outras esferas da vida das enfermeiras.
Relativamente às estratégias usadas pelas enfermeiras para lidar com as
dificuldades queria destacar essencialmente duas: a centração sobre o pre
sente e a procura de elementos de gratificação. A centração sobre o presente,
tal como já referi mais atrás, consiste na valorização dos acontecimentos do
aqui e agora e a ausência de projecções a médio e longo prazo. Por sua vez, a
procura de elementos de gratificação, consiste na tentativa de encontrar na
actividade desenvolvida elementos de auto-gratificação. Ou seja, trata-se de
um processo de autoavaliação das actividades desenvolvidas face aos niveis
de benres tar do doente e família. Apesar de este ser um processo essencial
mente pessoal tem uma tradução grupai e serve-se ainda de elementos for
necidos pelos próprios doentes e familiares. A tradução grupai constata-se
nas reuniões mais ou menos formais do grupo das enfermeiras, nas quais
são trocadas as mais diversas informações sobre os doentes e familiares, os
cuidados, as relações, entre outras. Os elementos fornecidos pelos doentes e
familiares têm essencialmente a ver com as mais diversas manifestações de
gratidão por eles levadas a cabo, quer durante quer depois dos ciclos de
quimioterapia, independentemente do facto de o doente ter ou não bom
prognóstico médico.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
335 =========================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
7 - TEORIA DE MÉDIO ALCANCE EXPLICATIVA DA RELAÇÃO
ENFERMEIRODOENTE NO CONTEXTO DE UM SERVIÇO DE
QUIMIOTERAPIA EM REGIME DE HOSPITAL DE DIA
Um dos principais objectivos deste trabalho consistia no desenvolvimento
de uma teoria de médio alcance sobre a relação enferme iro-doente, relativa
ao contexto onde a investigação foi desenvolvida. Assim e após ter apresen
tado os dados resultantes da investigação desenvolvida e de os ter compara
do com a literatura, procederei à apresentação integral da referida teoria.
A teoria de médio alcance que proponho para explicar a relação enfer-
meira-doente no contexto onde realizei o presente estudo, caracteriza-se por
ser constituida por duas componentes distintas mas complementares e
estreitamente interrelacionadas : a natureza da relação e o processo de rela
ção (ver figura 23).
Figura 23 - Componentes fundamentais da teoria de médio alcance relativa à relação enfermeiro-doente no contexto onde decorreu o estudo
W H fc W O Q Ó 5 i — i
w z O <
A NATUREZA DA RELAÇÃO
O PROCESSO DE RELAÇÃO
Processo de Avaliação Diagnostica
Processo de Intervenção Terapêutica de Enfermagem
Início da Relação
Corpo da Relação
Fim da Relação
336 ' Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
A natureza da relação responde ao primeiro dos objectivos a que me pro
pus (i.e., Compreender a natureza da interacção entre os enfermeiros e os
doentes oncológicos submetidos a quimioterapia num hospital de dia). A
natureza da relação refere-se à componente expressiva da relação (Basto,
1998) e engloba os seguintes elementos: "Processo de avaliação diagnostica"
e "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem".
O "Processo de avaliação diagnostica", tal como mais atrás já referi, con
siste na avaliação/reavaliação da situação do doente/família. Aquela avalia
ção/reavaliação é feita na conjugação variável da tripla perspectiva: viven
cial, biomédica e de ajuda. É na variabilidade da conjugação destas três
perspectivas que se constrói a perspectiva de enfermagem presente ao longo
do "Processo de avaliação diagnostica". É feita ainda de modo contínuo, sis
temático, dinâmico e integrado nos cuidados. Esta definição evidencia ainda
que o foco de atenção da enfermeira é o doente e a família. Contudo este
último (i.e., o foco) será redefinido mais abaixo quando se caracterizar o
"Processo de intervenção terapêutica de enfermagem".
O "Processo de avaliação diagnostica", para além de muitas outras carac
terísticas, acumula as seguintes duas: s e r o timoneiro dos cuidados e conse
quentemente, estar presente, numa dimensão cronológica, ao longo de todo o
processo de prestação de cuidados. Por força destas duas características,
adquire especificidade em função da fase da relação na qual ocorre.
Tornam-se assim patentes as relações do "Processo de avaliação diagnos
tica" com o "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem", mas tam
bém com o processo de relação.
Por sua vez, o "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem"
engloba a totalidade da intervenção da enfermeira, dirigida ao doente e
família, bem como à interface destes com o grupo e a organização. Com base
nesta perspectiva é agora possível redefinir o foco de atenção da enfermeira.
Assim, pode-se afirmar que o foco principal é o doente/família, mas é tam
bém a interface destes com a organização e outros profissionais, bem como o
grupo de doentes na sala de quimioterapia e a interface deste com cada
337===================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
doente em particular e com a organização. Pode-se então afirmar que os cui
dados prestados neste contexto têm uma natureza multifocal.
0 "Processo de intervenção terapêutica de enfermagem" concretiza-se
através de uma razoável diversidade de instrumentos, dos quais destaco: a
gestão de sentimentos e a gestão de informação. Sobre o primeiro (i.e., a ges
tão de sentimentos) assinala-se, por um lado, a criação de um espaço-tempo
que permite a sua expressão, por outro a tentativa de promoção da confian
ça/segurança. Na gestão de sentimentos sobressaem ainda a disponibilidade
e a promoção de esperança e da perseverança. O segundo (i.e., a gestão de
informação), deve entender-se em estreita interligação com o anterior.
Desenvolve-se de modo informal e de acordo com as necessidades e solicita
ções do doente e família. A informação foi reconhecido um importante papel,
pelas características da situação que os doentes estão a viver. Ou seja, con
siderando a vivência dos doentes como uma crise, com as características que
atrás lhe foram atribuídas, a informação assume um importante papel na
reorganização que permita sair da crise. Assim e para que a informação
cumpra o papel de organizador, precisa de ser contextualizada, repetida,
garantida, as vezes consideradas necessárias pelo doente.
Os instrumentos que acabei de descrever são compreensíveis apenas
quando perspectivados em conjunto com todos os que mais atrás referi,
nomeadamente os técnico-instrumentais. Todos eles são usados de modo sis
tematicamente dinâmico pelas enfermeiras, em função da avaliação que
fazem da situação (ver figura 24).
A inter-relação entre os dois constructos atrás referidos (i.e., "Processo de
avaliação diagnostica" e "Processo de intervenção terapêutica de enferma
gem"), mas também a sua natureza, evidenciam o carácter processual dessa
mesma interacção. Esse carácter processual, conduz-nos ao segundo compo
nente da teoria de médio alcance: o processo de relação (ver figura 23). Este
componente compreende três fases sequenciais: Princípio da relação, Corpo
da relação e Fim da relação. Sendo possível identificar características espe
cíficas de cada uma destas fases, é contudo bastante problemático estabele
cer fronteiras precisas entre elas. De todo o modo, pode dizer-se que o Prin-
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
cípio da relação se caracteriza por começar antes de a enfermeira e o doente
se terem encontrado pela primeira vez, sendo que, durante este período a
enfermeira se prepara, quer formal quer informalmente, para o encontro
com o doente. Porém, o Princípio da relação tem o seu momento por excelên
cia durante a entrevista de admissão. Durante esta, constata_se que a
enfermeira desenvolve predominantemente o "Processo de avaliação diag
nostica", orientado em três direcções'■ o que o doente sabe, o que preocupa o
doente e estratégias/capacidades do doente. Mas iniciase também aqui e qua
se em simultâneo a "Intervenção terapêutica de enfermagem" (ver figura 24).
O Corpo da relação é constituído pelo essencial do "Processo de interven
ção terapêutica de enfermagem". Ou seja, a partir de um conhecimento e
confiança que se vai construindo, e guiados por uma reavaliação sistemática
da situação, a enfermeira utiliza os instrumentos já atrás identificados. É
durante esta fase que é desenvolvido o essencial da intervenção, que contri
bui para o objectivo que, recordo, é aprender a viver com a situação, tendo
em vista o bemestar.
O Fim da relação reúne duas características essenciais '■ E a fase de frontei
ra inicial mais indefinida, podendose até dizer que está presente desde o início
da relação; mas é também a fase de fronteira final mais definida, correspon
dendo esta ao fim da relação, imposto pelo fim do tratamento ou pela morte do
doente. Tal como oportunamente foi explicado o Fim da relação assume carac
terísticas completamente diferentes em função do prognóstico de evolução da
saúde do doente. Ou seja, se o prognóstico for considerado bom, o Fim da rela
ção assemelhase a uma celebração e não se vislumbram sinais de luto,' se pelo
contrário se perspectivar um prognóstico mau ou se a relação terminar devido à
morte do doente, os sinais de luto e de sofrimento são evidentes, mesmo com
carácter antecipatório, surgindo portanto, precocemente na relação.
Esta última asserção abre portas para as dificuldades inerentes à rela
ção, na perspectiva das enfermeiras. No entender destas, aquelas têm a ver
essencialmente com três aspectos'• a vivência da proximidade e do luto e a
gestão da agressividade que lhes é dirigida. Sobre as dificuldades na relação,
o primeiro aspecto a salientar tem a ver com o facto de as enfermeiras terem
339 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
consciência das mesmas. Apesar disso, sobre os primeiros dois (i.e., vivência
da proximidade e do luto), o problema, tal como é equacionado pelas enfer
meiras, resume-se à correlação entre eles. Ou seja, entendem que a proximi
dade é importante para os cuidados e essencial para a componente relacio
nal desses cuidados, contudo, sentem que o sofrimento associado ao fim da
relação, nas condições atrás descritas, é tanto maior quanto maior é essa
proximidade. Todavia e apesar de tal não ser equacionado pelas enfermei
ras, entendo que a proximidade levanta problemas enquanto tal. Dito por
outras palavras, é o grau de proximidade enquanto tal que deve ser equa
cionado e discutido. Esta problemática é equacionada em códigos deontológi
cos de associações profissionais de enfermagem de diversos países e discuti
do por diversos autores sobre múltiplas perspectivas. Tal é o caso de Sheets
(2001), bem como de Mães (2003), as quais denominam esta como uma pro
blemática de fronteiras de actuação profissional. Entendem que subjacente à
mesma estão questões de poder, ou seja, na relação enfermeiro-doente existe
uma desigual distribuição de poder e como tal pode ser particularmente gra
voso se forem ultrapassadas as fronteiras de actuação profissional; de con
fiança, ou seja, um dos pilares fundamentais da relação pode ser posto em
causa ao ultrapassarem-se as referidas fronteiras,' e de capacidade de esco
lha, isto é, também o respeito pela autonomia do doente pode ser posta em
causa numa situação dessa natureza.
Ao colocar este tipo de questões não estou a insinuar intencionalidade no
uso da relação em desfavor do doente. Estou simplesmente a chamar à aten
ção para a dificuldade que qualquer pessoa tem de, no uso do "self como
instrumento terapêutico, destrinçar sistematicamente todos os mecanismos
envolvidos e ter capacidade de o usar em função do doente e das suas neces
sidades. Neste contexto pergunta-se: Se pretendemos usar a relação enfer
meiro-doente como instrumento terapêutico, será que não devemos equacio
nar em simultâneo a questão da supervisão clínica?
Por último e relativamente à teoria de médio alcance, uma chamada de
atenção para a profunda e complexa inter-relação entre todos os elementos
que a constituem.
_ _ _ - _ _ _ _ _ _ . _ _ _ _ _ _ _ ^ _ _ _ _ _ . _ _ „ _ _ _ . « _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ „ „ _ 3 4 0
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
Figura 24 - Perspectiva geral do processo de relação preferencial enfermeiro-doente.
341
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Dissertação de Doutoramento
Os uleiitcs e os enfermeiros; Construção de uma relação
Contudo, a teoria de médio alcance que, de modo sucinto e integrado,
acabei de apresentar não é cabalmente compreensível se não tivermos em
consideração o contexto. Tal não significa que uma relação com as caracte
rísticas das aqui apresentadas só se poderá desenvolver num contexto sobre-
ponível a este. Contudo, significa que o contexto comporta elementos de
importância crucial não só para a compreensão da teoria, mas também para
o desenvolvimento e o sucesso da relação. Assim, passo a referir alguns dos
elementos contextuais que, no meu entender, contribuem de um modo ou
outro, quer para a compreensão da teoria, quer para o desenvolvimento da
relação.
Começo por fazer referência à boa qualidade geral do espaço, no que diz
respeito a elementos de conforto. Destes destaco, a qualidade dos acessos,
bem como das zonas comuns do serviço, as quais apresentam um aspecto
limpo e arrumado. Realce ainda para o mobiliário de uso geral, também ele
de aspecto limpo e normalmente, em quantidade suficiente. Relativamente
ao material clínico, constata-se que, também neste caso, existe em quanti
dade e qualidade e se apresenta operacional. Como elemento de conforto,
destaco ainda o facto de todo este espaço estar climatizado com ar condicio
nado. Por último, referência para a existência de espaços múltiplos que
permitem a individualização e o respeito da privacidade de uma interacção,
se tal se considerar necessário. Recordo que Basto e Coelho (2000) referem
as interrupções sucessivas e falta de privacidade como elementos que per
turbam a interacção.
A segunda referência vai para o contexto sócio-relacional, nomeadamen
te, para o ambiente relacional inter e intra-profissional. Como elementos
essenciais deste contexto destaco^
1 - A existência, no grupo das enfermeiras, de uma clara liderança clíni
ca exercida no contexto da prática dos cuidados. Esta liderança acumulava
uma componente formal, visto ser exercida por alguém formalmente investi
do nas funções de responsável; mas também uma componente informal e
resultante da dinâmica do grupo, o qual reconhecia e aceitava essa lideran
ça. O reconhecimento e aceitação da liderança por parte dos pares advinha,
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
entre outras razões, do reconhecimento de algumas características, nomea
damente, o ser detentora de formação específica, mas acima de tudo, o de lhe
reconhecerem competências, e de perceberem uma linha de orientação rela
tivamente aos cuidados.
Esta liderança desenvolvia-se através do exercício da prática de cuida
dos, com uma sistemática atitude pedagógica e de supervisão. O facto de se
desenvolver através da prática de cuidados, permitia-lhe posicionar-se como
referência,' a sistemática atitude pedagógica e de supervisão, permitia-lhe
estar atenta à actuação dos restantes elementos e interferir quando conside
rasse oportuno. Esta intervenção poderia adquirir características mais for
mais e desenvolver-se através de acções de formação concretas dirigidas a
necessidades específicas. Recordo a propósito o modo como foi introduzida a
entrevista de admissão, já atrás explicada.
A existência de uma liderança clínica com estas características t inha
ainda algumas outras consequências. De entre estas destaco: servir de lide
rança a vários outros actores deste serviço, nomeadamente as auxiliares de
acção médica e as voluntárias,' servir de ponte com outros serviços e outros
profissionais, nomeadamente os serviços de internamento e os médicos deste
serviço. Esta última ponte acumulava várias vantagens com repercussões na
qualidade dos cuidados. Uma delas era a criação de um clima de coesão
entre estes dois grupos profissionais (i.e., enfermeiras e médicos), várias
vezes aliás, ressalvado pelos doentes e referido como importante. Esta coe
são parece radicar na partilha de objectivos terapêuticos, a qual se foi cons
truindo paulatinamente, desenvolvendo-se a par com a confiança e o respei
to inter-profissional. Esta partilha de objectivos terapêuticos, de algum
modo, enquadra-se na perspectiva de cuidar proposta por Hesbeen (2004),
mas também por Honoré (2004). De acordo com estes autores, o cuidar é ine
rente ao ser humano, pelo que não poderá ser apropriado em exclusividade
por ninguém. Se este princípio for traduzido para os cuidados de saúde, o
gesto de cada profissional pode e deve ser reinterpretado de modo diferente.
Assim sendo, mesmo os gestos ditos técnicos, podem ser entendidos no con
texto deste conceito (i.e., cuidar), se os mesmos não forem um fim em si
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
mesmos, mas antes um meio para alcançar um fim: o benres tar dos doentes.
Parecia ser neste sentido que a liderança e a coesão inter-profissional a que
atrás me referia se orientava.
As características desta liderança, bem como o perfil que o grupo cons
truiu, evidenciam um outro elemento que reputo de grande importância: a
autonomia de actuação das enfermeiras. Dito por outras palavras, as enfer
meiras neste contexto possuíam capacidade de decisão sobre os seus actos e
a coesão inter-profissional permitia-lhes ainda ter capacidade de decisão em
áreas interdependentes. Ou seja, dadas as relações de confiança mútua,
parecia haver protocolos de natureza informal que lhes permitiam tomar
decisões em benefício da eficiência e em última análise, do bem-estar do
doente.
2 - Ainda no que concerne ao contexto relacional referência para o modo
como as enfermeiras organizaram as suas actividades. Deste destaco: a cria
ção de um sistema que permitia a personalização e a continuidade da rela
ção. Tal sistema iniciava-se com a entrevista de admissão e t inha continui
dade informal através da admissibilidade da preferência relacional no con
texto dos cuidados. Esta admissibilidade constituía-se como um acordo
expresso entre as enfermeiras e tácito destas com os doentes. Ou seja, entre
as enfermeiras era pacificamente aceite que se deveria dar prioridade a
essas preferências. Contudo, e relativamente aos doentes esta preferência
era aceite e respondida quando solicitada, mas não era formalizada. Esta é
uma das razões pelas quais a teoria é denominada como informal. Quer em
função dos resultados deste trabalho, bem como de outros semelhantes,
parece adquirir uma importância significativa o facto de o doente reencon
trar a enfermeira em quem aprendeu a confiar e poder contar com continui
dade.
3 - A última referência vai para o facto de as intervenções da enfermeira
decorrerem num espaço no qual coexistem em simultâneo diversos actores
(e.g., doentes, familiares, auxiliares de acção médica, voluntárias, outras
enfermeiras e eventualmente médicos). Destes destaco naturalmente os
doentes para acrescentar que o grupo não é homogéneo. Assim, ao longo do
, _ _ _ 344 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
dia estão presentes em simultâneo, diversos doentes em interacção entre si,
com processos fisiopatológicos e vivenciais em estádios diferentes. Destaco
ainda os familiares, com os quais a enfermeira desenvolve uma relação espe
cial, na medida em que aqueles se posicionam simultaneamente como uten
tes e parceiros de cuidados.
É no contexto que acabei de referir que a enfermeira desenvolve a sua
actividade. Este contexto parece reunir um conjunto de factores que ajuda
rão a compreender as características da relação. Destes factores destaco dois
que reputo de grande importância: a liderança clínica e a autonomia na
decisão. Nem um nem outro destes dois factores são apropriáveis ou extra
poláveis. Resultam antes de uma construção que este grupo, neste contexto
desenvolveu e que contribuíam para a qualidade dos cuidados no geral e da
relação enfermeira-doente, em particular.
Todavia e a propósito dos factores contextuais atrás referidos, recordo
um estudo desenvolvido por Basto (1998), cujo objectivo foi, contribuir para
um "melhor conhecimento do processo de mudança dos comportamentos pro
fissionais e, portanto, dos factores determinantes dessa mudança" (p.19).
Com base nesse estudo elencou um conjunto de forças favoráveis à melhoria
dos cuidados. Destas faziam parte, entre outras:
S o poder hierárquico - Tinha a ver essencialmente com o poder da
enfermeira chefe e do médico chefe do serviço. Realçava-se então o
poder catalisador e aglutinador e de ponte que a enfermeira chefe
podia assumir. Neste contexto, recordo o que atrás referi sobre as
características da liderança no serviço onde realizei o presente
trabalho.
S diálogo com os médicos - Era valorizada a capacidade de manter o
diálogo com os médicos, como força promotora da melhoria da qua
lidade dos cuidados. Também neste caso é adequado recordar o
que foi dito, quer sobre a liderança, quer sobre a coesão da equipa
e partilha de objectivos.
S desenvolvimento de capacidades, conhecimentos e experiência -
No entender das enfermeiras participantes no estudo de Basto
345 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
(1998), este era um factor de grande importância na melhoria dos
cuidados. No caso do presente estudo, recordo a valorização atri
buída à formação e ao desenvolvimento de competências, pela
enfermeira coordenadora. Esta importância traduzia-se, entre
outras, no desenvolvimento de acções de formação dirigidas ao
grupo e implementadas de forma inovadora.
S formação de equipas - Também este aspecto era muito valorizado
pelas enfermeiras do serviço onde desenvolvi o estudo. A impor
tância percebe-se em alguns dos argumentos já apresentados ao
longo do trabalho (e.g., coesão na actuação, discussão inter-pares
prévia à tomada de decisão). Mas percebe-se também em activida
des de índole social, como as que decorriam no "Sítio do Pica-Pau
Amarelo", designação atribuída à pequena sala de convívio do ser
viço. Aí trocavam-se bolos e piadas, em ambiente de grande des
contracção e amizade, à mistura com uma ou outra conversa mais
séria.
S acreditar no que faz - No caso do presente estudo apercebrme da
importância que as enfermeiras atribuíam ao que faziam através
de dois indicadores^ a disponibilização do número de telefone par
ticular aos doentes e a participação em actividades extra-horário
como sejam, as viagens de grupo com os doentes e a sardinhada
anual.
S participar nas decisões - Também a participação nas decisões já
foi devidamente evidenciada ao longo de todo o trabalho. Conside
ro que este factor tem uma importância central para o auto-concei-
to e auto-imagem profissional da enfermeira. Mas também é
importante pela eficácia e eficiência que introduz na actuação das
enfermeiras e consequentemente no berrrestar dos doentes.
Em resumo, pode dizer-se que um contexto com as características que
acabei de referir, reúne condições de excepção relativamente à qualidade dos
cuidados. Mas também exige da enfermeira uma postura proactiva pela
diversidade de competências que lhe são exigidas, as quais não são um dado
====== . - - - - - - - - - - - - — — _ _ - _ _ _ _ ^ _ 346 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
adquirido à partida. Assim, ter a capacidade de gerir os sentimentos e a
informação dos doentes, num contexto desta natureza pressupõe conhecer o
grupo como um todo, mas também cada um em particular. Só assim conse
guirá adequar as suas respostas a cada um, bem como aproveitar e promo
ver a força do próprio grupo. O desenvolvimento e actualização destas com
petências requer da enfermeira uma atitude investida e de aprendizagem.
Considerando o conjunto dos elementos atrás referidos, penso que se con
figuram como um conjunto de condições (e.g., contextuais, características
pessoais e profissionais das enfermeiras, características dos utentes), favo
ráveis ao desenvolvimento de processos relacionais terapêuticos. Estas con
dições são enquadráveis nos vectores de que fala Le Boterf (1995) e que
Rebelo (1996), Costa (2002) e Basto et ai (2000), também referem nos seus
estudos. Todavia e para além disso, realço como fundamental a conjugação
dinâmica dos factores, engendrada pelas enfermeiras, para, de modo proac-
tivo, os aproveitarem em prol de um objectivo terapêutico.
Esta forma de entender a intervenção relacional da enfermeira, em
simultâneo dirigida à pessoa individual, mas catalisando as mais diversas
condições de natureza grupai e ambiental, vem de encontro ao modo multi
focal como atrás defini a actuação da enfermeira neste contexto, mas, ao
mesmo tempo, define uma forma de actuação muito específica e que me
atrevo a afirmar ser específica da enfermagem.
É pela conjugação deste conjunto diversificado de factores que entendo
que a actuação da enfermeira se erige como o "espaço" onde o doente e famí
lia se podem acolher para se re-organizarem. Trata-se assim de um espaço
de ajuda na acepção de Balint (1993, 1998a, 1998b) mas também de Peplau
(1990) Orlando (1961) e outros. Concluo então que a relação desenvolvida
pelas enfermeiras possui intencionalidade terapêutica, apesar de ter um
carácter informal.
347 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
8 - CONCLUSÃO
A conclusão deste trabalho consistirá num exercício de duplo sentido.
Num primeiro momento farei um exercício de natureza retrospectiva, atra
vés do qual lançarei um olhar para o que foi feito, tentando perceber as
potencialidades e debilidades deste trabalho. Trata-se de um exercício de
grande utilidade porque funciona como um especial momento de auto-refle-
xão e como tal é gerador de aprendizagem e desenvolvimento pessoal.
Num segundo momento tentarei um exercício prospectivo. Ou seja, tra
ta-se de tentar equacionar as perspectivas abertas por este trabalho, em ter
mos de desenvolvimentos futuros. Para o efeito serão equacionadas as pers
pectivas de desenvolvimento de investigação, mas também o aproveitamento
deste trabalho na formação de novos profissionais e/ou no desenvolvimento
das competências clínicas dos profissionais em exercício, na perspectiva
defendida por Schõn (1998).
Na tentativa de responder ao primeiro desafio, começo por fazer referên
cia aos aspectos metodológicos. Equacionando-os em perspectiva, diria que,
do ponto de vista pessoal, foram dos que mais desenvolvimento me propor
cionaram. Ao afirmar tal continuo a posicionar-me na linha epistemológi-
co-metodológica inicialmente proposta. Tal significa que ao posicionar-me
como investigador qualitativo e ao desenvolver uma investigação de acordo
com a perspectiva do interaccionismo simbólico, posiciono-me também como
actor da minha própria investigação. Nesta perspectiva compreende-se este
posicionamento de auto-reflexividade face ao processo desenvolvido, na linha
aliás do defendido por, de la Cuesta Benjumea (2003).
Assim, sendo para mim inquestionável que as opções metodológicas
foram as adequadas em função dos pressupostos epistemológicos, mas tam
bém da natureza do problema que me propus investigar, considero porém
que esta opção me colocou algumas dificuldades. Relativamente à adequabi-
lidade, começo por realçar a do local seleccionado para o desenvolvimento do
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
estudo. Sobre este, penso que seja de sublinhar que o considero um dos prin
cipais responsáveis do resultado final deste estudo. Foi assinalável o contri
buto dado por todos os intervenientes, pela disponibilidade demonstrada,
mas acima de tudo, pela coragem de aceitarem que um intruso olhasse para
o que fazem e o que dizem. Foi também de particular relevância a riqueza de
dados que me proporcionaram. Efectivamente, neste caso, os dados eram
inerentes à acção, pelo que a sua riqueza dependia de quem a desenvolvia.
Dependia ainda desses actores pela sua capacidade de auto-reflexão e de
verbalização. Ao investigador é apenas inerente o trabalho de desvendar os
dados e de os reinterpretar.
Sobre o meu estar neste local, confesso algumas dificuldades. Num
momento inicial senti-me demasiado em casa. Ou seja, como resultado do
facto de ser conhecido, as pessoas esforçavam-se por me facilitar a vida. Por
isso precisei de deixar passar algum tempo até que me "ignorassem".
Por último e sobre o local escolhido para o desenvolvimento do trabalho, é
de referir que estes contextos se constituem, naturalmente, como realidades
dinâmicas e complexas. Isto significa que é uma realidade sempre nova,
mesmo que se mantenham inalteráveis os seus protagonistas. Mas poderá
ser uma realidade muito diferente se estes últimos mudarem.
Para o acesso à riqueza e diversidade de dados a que atrás fiz referência,
contribuíram decisivamente as opções metodológicas que assumi. Assim, foi
particularmente enriquecedor o facto de ter optado por recolher dados sobre
o mesmo fenómeno a partir de fontes diversas e com técnicas diferentes
(Apshur, 2001; Swanson & Morse, 2001). Esta opção contribuiu inegavel
mente para incrementar o rigor do trabalho e em simultâneo, atenuou
algumas das limitações de cada uma das técnicas usadas. Destas destaco a
observação. Poder-se-á argumentar que, para incrementar o rigor da obser
vação, esta deve ser desenvolvida por mais que um observador, com valida
ção à posteriori. Embora este argumento não seja em absoluto aplicável à
presente situação, dadas as características do estudo e da observação, reco
nheço que haveria um maior enriquecimento se fosse utilizado mais do que
um observador. Contudo, esta potencial limitação do estudo é em parte
349 ====_===_==========_=======_=========__============____________„===
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ultrapassada pela possibilidade de cruzar os dados oriundos de diversas fon
tes e de diversas técnicas.
Mas foi também a riqueza e diversidade de dados a componente que
maiores dificuldades me criou. Efectivamente, a análise de um corpus desta
dimensão e diversidade constiturse como um desafio considerável. Este
desafio residiu também na natureza do método de análise (i.e., análise com
parativa constante). Este pressupõe simultaneidade entre a recolha e a aná
lise de dados, sendo a primeira re-orientada em função desta última, condu
zindo assim à saturação teórica. Tal como oportunamente expliquei, tal foi
sendo feito, contudo, dadas as limitações pessoais de continuar a recolher e a
analisar em simultâneo, precisei de interromper a recolha de dados durante
algum tempo. Tal permitiu-me analisar em profundidade os dados entretan
to recolhidos, para depois continuar a recolha de dados, re-orientada pela
análise entretanto efectuada.
A natureza do método impôs ainda uma outra dificuldade que tinha a ver
com a garantia do rigor da análise produzida. Esta consti tuhrse como uma
preocupação central, o que me impulsionou a adoptar um conjunto de medi
das já descritas, mas que reputo de grande importância. Destas destaco as
medidas de auto-controlo, como a que se traduziu no acoplamento de cada
unidade de significação ao texto-extracto de onde aquela foi extraída. Tal
permitiu-me confrontar o sentido que lhe estava a imprimir ao longo dos
diversos níveis de análise, com o significado original. Mas realço também as
medidas de hetero-controlo. De entre estas destaco as que se traduziram na
devolução às fontes (i.e., as enfermeiras) dos resultados da análise de alguns
dados, mas também a colaboração de juízes externos na aferição da estabili
dade das categorias criadas.
Relativamente aos resultados propriamente ditos gostaria de destacar
dois aspectos que me parecem fundamentais. O primeiro tem a ver com a
constatação através da investigação produzida, não só da complexidade, mas
também da riqueza da intervenção das enfermeiras num contexto com as
características do aqui referido. Ao destacar este aspecto tenho em mente
não só os contributos para os ganhos em saúde, numa perspectiva de natu-
_ - =-. , — _ — , 350 Dissertação de Doutoramento
Os utcatcs c os enfermeiros: Construção de uma relação
reza macrersistémica, mas principalmente os contributos para o bem-estar e
para a qualidade de vida de cada um dos doentes e familiares que usufruí
ram destes cuidados.
0 segundo aspecto que entendo destacar tem a ver com algumas perple
xidades que ressaltam da análise produzida. Assim, constatou-se através
deste estudo a importância para os doentes não só de terem uma enfermeira
de referência mas principalmente o facto de serem tacitamente aceites as
preferências informais. Esta constatação vem ao encontro de idênticas cons
tatações em diversos estudos já referidos. Face a isto interrogo-me: Porque
não formalizar as preferências informais e tacitamente aceites? Porque não
criar "espaços" de interacção em cada reencontro entre a enfermeira e o
doente? A título de exemplo recordo que durante a minha permanência no
serviço, uma das enfermeiras realizou o seu curso de formação complemen
tar. No âmbito desse curso desenvolveu um projecto no serviço, que consistiu
na criação de um espaço de interacção com cada doente, prévio a cada sessão
de quimioterapia. No contexto desse espaço a enfermeira tentava, de forma
mais sistemática e organizada, fazer uma reavaliação da evolução e em
simultâneo, permitir a expressão das preocupações do doente. Este projecto
teve a duração estrita do estágio, mas, curiosamente, foram os doentes que,
após o seu terminus, questionaram as enfermeiras sobre a cessação dessa
actividade. Ou seja, de algum modo parece ser indicador que sentiam aquele
espaço como útil.
Relativamente à componente prospectiva desta conclusão, e como forma
de lhe dar solidez, inicio-a recordando a sobreposição entre os resultados
deste trabalho com todos os outros que já referi, mas também com os estudos
desenvolvidos por Basto (1998) e Basto et ai (2000), principalmente devido
ao facto de serem relativos ao nosso país. Assim e no conjunto destes dois
estudos sobressaem dois elementos que reputo de grande importância: o
primeiro tem a ver com o facto de, quer num, quer noutro, terem sido perce
bidas acções desenvolvidas pelos enfermeiros, enquadráveis no conceito de
interacção terapêutica e sobreponívéis às percebidas no presente estudo; o
3 51 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
segundo tem a ver com o facto de em ambos os casos o contexto onde essas
interacções ocorriam, as condicionar.
A verificação desta aparente sobreposição de resultados, se por um lado
me demonstra o interesse e a riqueza desta área de investigação, por outro,
demonstra-me a necessidade de, sobre a mesma, se desenvolver meta-inves-
tigação.
Contudo, a análise prospectiva não ficaria completa se não desenvolves
se também alguma comparação desta estrutura relacional com outra exte
rior à enfermagem. Para o efeito entendi como adequado a comparação com
uma estrutura conceptual, relativa ao ensino e intervenção relacional, mas
de natureza transdisciplinar.
Tal é o caso da estrutura proposta por Heron (2003). Este autor tem vin
do a desenvolver, desde 1974, uma estrutura conceptual de natureza univer
sal e que sirva de base à formação e à intervenção relacional terapêutica.
Esta estrutura assenta num conjunto de categorias comportamentais que
foram consideradas relevantes na formação e na intervenção terapêutica.
Essas categorias comportamentais foram agrupadas em duas árvores (i.e.,
Autoritário e Facilitador) com três grupos em cada uma, perfazendo portan
to um total de seis grupos. Pode-se assim dizer que este sistema de seis cate
gorias, lida com seis tipos básicos de intenção de que o técnico se pode servir
para ajudar o seu cliente. Cada categoria tem uma classe major de intenção
a qual integra um vasto conjunto de sub-intenções e comportamentos especí
ficos que lhe dão corpo. Assim com seis tipos de géneros e muitas espécies
em cada género, o sistema tem grande flexibilidade e poder para cobrir uma
grande gama de necessidades dos clientes e papéis dos técnicos e para os
cobrir com intenção prática.
Assim, a primeira árvore recebeu a denominação "Autoritário". A princi
pal característica é a sua natureza hierárquica, ou seja, o técnico assume
responsabilidade por e em nome do cliente - guiando o seu comportamento,
dando instruções, aumentando a consciência. Dentro desta árvore devem
considerar-se as seguintes categorias^
___—-___================____=====___======„_„„„„„„„„.___. ._ 352 Dissertação cie Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
1 - Prescritivo- esta categoria caracteriza-se por uma intervenção pres
critiva, a qual serve para dirigir o comportamento do cliente, quando aquele
está para além da relação técnico-cliente. Dito por outras palavras, prescre
ve comportamentos que ocorrerão fora do contexto da relação técnico-cliente.
2 - Informativo- uma intervenção informativa tem como principais objec
tivos, comunicar conhecimento, informação, e sentido para o cliente.
3 - Confrontação- uma intervenção caracterizada pelo confronto, tem
como principal objectivo, aumentar a consciência do cliente sobre algumas
atitudes limite ou comportamentos sobre os quais ele está relativamente
inconsciente.
A segunda árvore o autor apelidou-a de "Facilitadora". A sua caracterís
tica principal é ser menos hierárquica que a anterior. Nesta caso o técnico
tenta capacitar o cliente a tornar-se mais autónomo e a assumir mais res
ponsabilidade por si próprio, ajudando-o a libertar a dor emocional que blo
queia o seu poder pessoal, promovendo a aprendizagem auto-dirigida, pro
movendo a abertura do seu potencial espiritual, afirmando o seu valor como
um ser único. Esta árvore compreende as seguintes categorias^
4 - Catártico- uma intervenção catártica serve para capacitar o cliente
para descarregar as emoções dolorosas, o luto primário, o medo e a raiva.
5 - Catalítico'- uma intervenção catalítica serve para promover a
auto-descoberta e a capacidade de se auto-dirigir e de resolver os seus pró
prios problemas.
6 - Suporte- uma intervenção de suporte serve para afirmar as capacida
des e o valor das qualidades, atitudes e acções da pessoa do cliente.
De acordo com Heron (2003) a intervenção relacional terapêutica será
uma peça identificável de comportamento verbal e/ou não verbal e que se
constitui como parte do serviço que o técnico presta ao cliente. Contudo, as
referências neste modelo são essencialmente para os comportamentos ver
bais.
De referir também que nenhum dos dois grandes modos de intervenção
(i.e., autoritário e facilitador) é preponderante ou mais ou menos útil que o
outro. Tudo depende quer do técnico, quer do doente, bem como das suas
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação / /C !
necessidades e ainda do contexto. Serão este conjunto de elementos, bem
como os valores subjacentes ao processo relacional (i.e., Hierarquia, Coope
ração e Autonomia) que determinarão as suas características, resultantes
estas de um balanço dinâmico.
Relativamente às categorias propriamente ditas de referir que as mes
mas são independentes entre si, contudo têm áreas de sobreposição. Por
outro lado, não existe qualquer hierarquia entre elas. Apesar disso a catalí
tica assumese como fundamental na actuação dos técnicos. Tal compreen
dese se considerarmos que ajuda, de acordo com Heron (2003), definese
como, suportar e capacitar o benres tar de outra pessoa. Ora só poderemos
capacitar se promovermos as capacidades das pessoas.
Comparando esta estrutura conceptual com a que mais atrás propus,
resultante do estudo desenvolvido, notanrse diversas sobreposições das
quais destaco^
■S Os modos de intervenção das enfermeiras são genericamente
enquadráveis nas categorias propostas por Heron (2003).
S A combinação dinâmica de diversos elementos, entre os quais
assumem destaque os inerentes ao doente e ao contexto, são facto
res essenciais no modo de intervenção, quer de um modelo, quer do
outro.
Entendo que por estas razões sai reforçada a estrutura conceptual pro
posta, mas acima de tudo a estratégia de ajuda desenvolvida pelas enfermei
ras naquele contexto. Todavia e para além disso, esta forma de encarar a
intervenção da enfermeira coloca questões que se poderão dividir em três
grupos distintos, embora interrelacionados'
1. A produção de investigação;
2. A formação de novos enfermeiros!
3. A formação contínua dos actuais enfermeiros;
1 A produção de investigação Através deste aspecto pretendo eviden
ciar o modo como entendo que o último objectivo a que me propus inicial
mente (i.e., contribuir para o desenvolvimento do conhecimento em enfer
magem) se pode cumprir. Entendo que o conhecimento em enfermagem se
— _ _ ^ _ _ „ ■ _ _ — ^ . . ^ . _ 354 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
pode construir a partir de muitas perspectivas (Carper, 1978), porém privi
legio a que radica na investigação. Este privilégio justifica-se porque na
enfermagem atribuo uma importância central à intervenção clinica e esta
precisa urgentemente de ser investigada (Meleis, 1997). Este trabalho é
apenas um contributo. Precisa de ser depurado pelo tempo e pela acção criti
ca de todos os que para isso queiram contribuir. Mas também precisa de ser
posto em causa através de novas investigações. Estas evidenciarão cada vez
mais a essência da intervenção clinica de enfermagem e contribuirão deste
modo para o desenvolvimento do conhecimento, mas também para o benr
estar das pessoas.
2 - A formação de novos enfermeiros — O anterior aspecto tem repercus
são directa sobre este outro. E essencial que cada vez mais a formação de
novos enfermeiros, nomeadamente no que às competências clinicas diz res
peito, assente sobre as competências de facto utilizadas pelos enfermeiros.
Para tal, torna-se necessário que aquelas sejam sistematicamente investi
gadas. Porém, entendo que a formação deve assentar mais nas competências
complexas, do que nas competências psicomotoras. Dito por outras palavras,
entendo a formação de novos profissionais deve basear-se nas competências
usadas pelos profissionais e com base nas quais conseguem perceber de
modo dinâmico a realidade, identificar as necessidades dos utentes e selec
cionar as acções mais adequadas a cada situação.
3- A formação contínua dos actuais enfermeiros - Algo de semelhante se
pode dizer sobre a formação contínua de actuais profissionais. Considero
fundamental que a mesma se processe através do desenvolvimento de uma
atitude auto-reflexiva e auto-crítica. Nesse processo, trabalhos como o pre
sente podem ter um papel importante, não tanto como teoria aplicável a
novas situações, mas antes como ponto de partida para análise crítica das
intervenções e de aprendizagem com essa análise. E também como forma de
olhar para o que se faz de modo simultaneamente crítico mas positivo. Deste
modo, desenvolver-se-ia um sistema de reflexão durante a acção com base no
qual se acederia ao saber escondido no agir profissional (Schõn, 1998).
355 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros; Construção de uma relação
As formas de o fazer são as mais diversas, porém, destaco as propostas
por Schõn (1998):
Aprender pelo sucesso — 0 praticante pode olhar para as intervenções
que desenvolveu e que lhe pareçam ter "funcionado", tentando perceber: Em
que situação é que foi capaz de obter os resultados pretendidos ou mesmo
inventar novos objectivos e vias para os alcançar? Que é que fez efectiva
mente nessas situações? O que é que fez com que essa acção fosse efectiva
mente realizada?
Aprender pelo bloqueio - Este consiste num exercicio de análise das
situações em que a intervenção do praticante redundou num bloqueio. Tor-
na-se então necessário percorrer todos os passos dados na tentativa de per
ceber onde residem as potenciais causas desse bloqueio.
Aprender pela transferência reflexiva - Este é um procedimento de
aprendizagem na medida em que a transferência, neste caso, não consiste
na reprodução de uma intervenção bem sucedida, mas antes numa reprodu
ção reflexiva. Ou seja, ao reproduzir uma intervenção bem sucedido, volto a
analisá-la como forma de potenciar a minha aprendizagem.
Aprender pela formação profissional - Este tipo de aprendizagem consis
te na utilização de um profissional detentor de determinada competência no
ensino da mesma.
Reconstruir a relação entre investigador e praticante - Pelo que já disse
acerca do potencial papel deste trabalho no contexto da formação contínua
dos actuais profissionais, subentende-se que a relação entre investigador e
investigado precisa de assentar em pressupostos diferentes. Dito por outras
palavras, para que o trabalho do investigador contribua para o desenvolvi
mento de competências dos investigados, não é possível desenvolver investi
gação assente no pressuposto de que o investigado é aquele que aplica uma
determinada teoria à prática, mas antes o que consegue compreende-la e
recriar novas formas de lidar com ela. Deste modo, o prático é aquele que
desenvolve novas competências e o investigador aquele que poderá contri
buir para as desvelar.
= = = = = = = _ = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = _ = 3 5 6
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
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— - - - _ - _ _ = = = _ - - ™ = = = = = = _ _ _ = = = - „ = = = = = _ „ „ = = = = = = = _ „ _ = = = = = = . _ „ _ = „ _ 3 7 8
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Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
3 81 ========================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ANEXOS
■ _ ■ _ — — _ — _ _ _ _ . _ . . 3 8 2
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
383 ==================================================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ANEXO I ■ GUIÃO DE ENTREVISTA ÀS ENFERMEIRAS INTRODUÇÃO COMENTÁRIOS
1 Explicação sumária do trabalho que estou a
desenvolver.
Variável, em fun
ção do conhecimen
to que a enfermeira já tiver destes ele
mentos. 2 Explicação da entrevista considerando:
S Os objectivos
S A minha função durante a entrevista
•S A estrutura
■S A gravação dos dados
•f 0 t ratamento dos dados
■S A confidencialidade
Variável, em fun
ção do conhecimen
to que a enfermeira já tiver destes ele
mentos.
3 Solicitação e registo da autorização para a realiza
ção da entrevista e para a sua gravação.
Gravar declaração de autorização.
FASE NARRATIVA
Objectivo^
Obter narração factual e cronológica dos acontecimentos.
Postura'
Emitir sinais ver
bais e não verbais de atenção e com
preensão. Solicitar esclareci
mentos apenas relacionados com a compreensão fac
tual da história.
Questões:
No decurso da sua experiência de prestação de cuida
dos, teve com certeza diversas experiências relacio
nais com doentes.
0 que lhe peço é que, escolha uma dessas experiên
cias que considere que foi importante, do ponto de
vista terapêutico, para o doente e que ma relate, des
de o seu início ao fim.
Postura'
Emitir sinais ver
bais e não verbais de atenção e com
preensão. Solicitar esclareci
mentos apenas relacionados com a compreensão fac
tual da história.
FASE DE BALANÇO
Objectivo^
Compreender as razões da escolha e a consciência do
processo.
Postura'
Acrescentar outras perguntas conside
radas pertinentes, considerando o objectivo e basea das na história relatada.
Que razões a levaram a escolher esta experiência
para relatar?
Porque é que considera que esta relação foi importan
te para o doente?
Postura'
Acrescentar outras perguntas conside
radas pertinentes, considerando o objectivo e basea das na história relatada.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
ANEXO II GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E FAMILIARES INTRODUÇÃO COMENTÁRIOS
1 Explicação sumária do trabalho que estou a
desenvolver.
Detalhado e em linguagem com preensível. Sublinhar que não se pretende avaliar o trabalho das enfermeiras. Sublinhar o trata
mento dos dados e assegurar pessoal
mente a confiden
cialidade.
2 Explicação da entrevista considerando:
■f Os objectivos
■S A minha função durante a entrevista
■S A estrutura
S A gravação dos dados
S 0 tratamento dos dados
•S A confidencialidade
Detalhado e em linguagem com preensível. Sublinhar que não se pretende avaliar o trabalho das enfermeiras. Sublinhar o trata
mento dos dados e assegurar pessoal
mente a confiden
cialidade.
3 Solicitação e registo da autorização para a realiza
ção da entrevista e para a sua gravação.
Gravar declaração de autorização.
FASE NARRATIVA
Objectivo:
Obter narração factual e cronológica dos acontecimentos.
Postura'
Emitir sinais ver
bais e não verbais de atenção e com
preensão. Solicitar esclare
cimentos relacio
nados com a com
preensão factual da história. Ajudar com per
guntas de continui
dade se necessário. Aceitar relato de relação com as enfermeiras.
Questões:
No decurso da sua experiência neste serviço, relacio
nouse com certeza com diversas enfermeiras.
0 que lhe peço é que, escolha uma dessas experiên
cias que considere que foi importante para si, ou seja,
que o ajudou, e que ma relate, desde o seu início ao
fim.
Postura'
Emitir sinais ver
bais e não verbais de atenção e com
preensão. Solicitar esclare
cimentos relacio
nados com a com
preensão factual da história. Ajudar com per
guntas de continui
dade se necessário. Aceitar relato de relação com as enfermeiras.
385 ========================================== Dissertação de Doutoramento
Os utentes c os enfermeiros: Construção de uma relação
GUIÃO DE ENTREVISTA AOS DOENTES E FAMILIARES (Cont.) FASE DE BALANÇO
Objectivo-
Compreender as razões da escolha.
Identificar as razões da importância da ajuda.
Postura? Acrescentar outras perguntas consideradas pertinentes, considerando o objectivo e baseadas na história relatada. Se o relato não foi personaliza do, identificar factores indicativos de preferência relacional e confrontar doente com os mesmos.
Que razões a levaram a escolher esta experiência
para relatar?
Porque é que considera que esta relação foi importan
te para si?
Postura? Acrescentar outras perguntas consideradas pertinentes, considerando o objectivo e baseadas na história relatada. Se o relato não foi personaliza do, identificar factores indicativos de preferência relacional e confrontar doente com os mesmos.
Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
LOCAIS A OBSER
VAR
ANEXO III - GUIÃO DE OBSERVAÇÃO Das 8h45m até à chamada para a quimioterapia (cerca das 9hl5m) - Sala de Estar dos doentes. Após a chamada dos doentes - Salas de quimioterapia. Em situações excepcionais — Corredores e outros espaços.
O »<3
Î CG
H
Usar roupa discreta e cuidada (combinado com as enfermeiras o não uso de qualquer farda); Ir munido de um pequeno bloco de apontamentos e material de escrita. Informar todos os novos doentes da minha presença durante a entrevista de admissão (procedimento a desenvolver pelas enfermeiras). Informar paulatinamente os doentes habituais (procedimento a desenvolver pelas enfermeiras). Fazer cumprimento social à chegada (bonrdia). Sentar-me discretamente no canto menos ocupado e frequentado pelos doentes. Permanecer em silêncio. Responder a cumprimento social. Não suscitar interacção. Tomar notas se necessário, mas discretamente. Levantar-me, aproximar-me e posicionar-me discretamente, à chegada das enfermeiras à sala de espera. Cumprimento social discreto às enfermeiras. Acompanhar o movimento dos doentes e enfermeiras em direcção às salas. Assumir posição mais ou menos fixa, a partir da qual possa ver tudo o que se passa na sala. Manter-me em silêncio e concentrado nas interacções (quase como se fosse invisível). Não interferir, nem com as interacções, nem com os cuidados; Fazer registos de modo discreto; Não exibir os registos; Estar atento principalmente à interacção entre enfermeiras e doentes; Estar atento às interacções de continuidade. Estar atento aos movimentos dos doentes, dos familiares e das enfermeiras. Se for necessário ir observar uma interacção noutro espaço, usar de discrição e bom senso (não prejudicar ninguém). Fazer descrições das interacções ocorridas, considerando os tópi-
REGIS- cos e as orientações abaixo descriminadas. ' "'- ' Acrescentar todos os aspectos considerados pertinentes e úteis à
compreensão do fenómeno em estudo.
387 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
GUIÃO DE OBSERVAÇÃO ANTES DA CHEGADA DAS ENFERMEIRAS: A INTERACÇÃO:
•S Distribuição de doentes na sala; S Aspecto dos doentes,' S Interacção entre doentes e respectivos familiares; S Interacção entre doentes; •S Interacção entre familiares.
CONTEXTO •S Nivel de ruido S Televisores ou outros aparelhos audiovisuais; / Impressão gestáltica.
A CHEGADA DAS ENFERMEIRAS: Observar a interacção entre doentes/familiares e enfermeiras, no momento em que estas atravessam a sala de espera vindas da sala do café, em direcção às salas de quimioterapia (ATENÇÃO ESPECIAL ÀS INTERACÇÕES DE CONTINUIDA
DE):
1 AS ENFERMEIRAS:
1 s w
S Como entram na sala (expressão facial, interacção entre £ s
w elas)?
(3 03 CG S Como cumprimentam (cumprimento geral ou personalizado, PQ
CG verbal e/ou outro)?
O Q
S Como falam (expressão verbal e não verbal)? Durante quanto M
Q tempo?
O H •S Com quem falam? O CG S Falam em andamento ou param a falar? PH ã S Aproximanrse ou falam à distância? Tocamse? Como? Quem CG ã
toma a iniciativa? S Sobre o que falam? Dão ordens? Tomam decisões? Quais?
OS DOENTES: S Qual a reacção dos doentes à entrada das enfermeiras
(expressões)? S Aproximanrse ou são indiferentes? S Cumprimentamnas? Como? ■S Falam com as enfermeiras? Sobre o que falam? S Têm participação activa ou passiva na conversação? ■S 0 que fazem a seguir à interacção?
OS FAMILIARES S Qual a reacção dos familiares à entrada das enfermeiras? S Aproximanrse ou são indiferentes? S Cumprimentam as enfermeiras? Como? ■S Falam com as enfermeiras? Sobre o que falam? S Têm participação activa ou passiva na conversação?
0 CONTEXTO: S Nível de ruído S Impressão gestáltica !
Dissertação de Doutoramento
A
Os utentes e os enfermeiros: Construção de uma relação
GUIÃO DE OBSERVAÇÃO
H ui PQ O < m O w PH <
A CHEGADA DOS DOENTES: S Escolhem a sala? E o lugar? S Vêm sozinhos? S Como se apresentam (aspecto geral, fácies, ...)? •S Cumprimentam (expressões verbais e não verbais usadas)? ■S A enfermeira, como os recebe (atitude, postura, expressões ver
bais e não verbais, postura ...)? S Cumprimentaos? Sobre o que falam à chegada? Deixaos esco
lher o lugar? S Existe continuidade face a interacções anteriores?
INTERACÇÃO ANTES DA COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: ■S O que faz a enfermeira enquanto não aplica a quimioterapia?
Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção enfermeiradoente? O que a motiva? O que é que o doente faz? Com quem fala? Sobre o que fala? Quem toma a iniciativa? Existe continuidade face a interacções anteriores?
INTERACÇÃO DURANTE A COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: •S O que faz a enfermeira enquanto a aplica a quimioterapia?
Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção? O que a motiva? O que é que o doente faz? Com quem fala? Sobre o que fala? Qual o tom de voz? A conversação é pública ou privada? Qual o grau de proximidade? Existe toque? De que natureza? Existe continuidade face a interacções anteriores?
APÓS A COLOCAÇÃO DA QUIMIOTERAPIA: S O que faz a enfermeira após a aplicação da quimioterapia?
Com quem fala? Sobre o quê? Quem toma a iniciativa da interacção? O que a motiva? O que faz o doente? Com quem fala? Sobre o que fala? Qual o tom de voz? A conversação é pública ou privada? Qual o grau de proximidade? Existe toque? De que natureza? Existe continuidade face a interacções anteriores?
À DESPEDIDA: •S Como se despedem? Do que falam? S_ Qual a atitude da enfermeira? E do doente?
O CONTEXTO: Presença de outros actores:
S Quais? Qual a sua função? Com quem interagem? ■S Qual o papel e a atitude do doente face a esses outros actores? •/ Qual o papel e a atitude das enfermeiras face a esses outros
actores? Presença de outros factores (televisão, revistas, jornais, ...) Impressão gestáltica do contexto da sala de quimioterapia
S Na presença de doentes e enfermeiras; •S Só com os doentes e na ausência das enfermeiras;
•
/
/
/ / / / /
389 Dissertação de Doutoramento
Os utentes e os enfermeiros: Construção de unia relação
GUIÃO DE OBSERVAÇÃO A
SPEC
TOS
A O
BSER
VA
R
Nos
cor
redo
res
e ou
tros
es
paço
s
Que interacções decorrem nos corredores? Quem as solicita? Quais os objectivos? Têm alguma continuidade face a interacções anteriores? Como se caracterizam?
S Qual o tom de voz? •S Qual o assunto? S Qual o grau de proximidade entre os interlocu
tores?
CRITÉRIOS DE DECISÃO
Critérios de escolha de sala
Ocupação da sala - Considerar não só a lotação mas também durante quanto tempo vai estar ocupada. Presença de doentes e/ou de enfermeiras e/ou de pares de interacção que pretenda observar em continuidade de observações anteriores.
Critérios para mudança de sala durante um período de observação
Chegada de doentes cuja interacção com a enfermeira presente nessa sala pretenda observar. Percepção da probabilidade de ocorrência de interacções de continuidade consideradas relevantes. Percepção da ocorrência de situações consideradas relevantes (chegada de doente especialmente carecido de intervenção relacional, agravamento da situação de um doente, desencadeamento de interacção relevante entre os diversos actores...)
Critérios para seguir enfermeira para outro contexto que não as salas de quimioterapia
Percepção de solicitação à enfermeira para interacção privada. Percepção da presença de doente ou familiar carecido de interacção. Percepção de possibilidade de ocorrência de interac
ções de continuidade entre a enfermeira e o doente ou familiar. Percepção de ocorrência extraordinária que justifique uma intervenção excepcional da enfermeira.
Dissertação de Doutoramento
15 I B L. I. O 00
T E C jfi.
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