PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Wagner Cipriano Araujo
A via média. Política e religião em Rousseau.
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo 2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Wagner Cipriano Araujo
A via média. Política e religião em Rousseau.
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Doutora Maria Constança Peres Pissarra.______.
São Paulo
2010
Banca Examinadora __________________________________ __________________________________ __________________________________ ________________________________
Dedicação:
Aos meus alunos e minha família.
Agradecimento
Como primeiro agradecimento gostaria de expressar em palavras o meu sentimento
de gratidão à professora Maria Constança, minha orientadora, a paixão acadêmica
por Rousseau e por todo o século XVIII marcaram a minha vida e minha pesquisa
profundamente. Além disso a paciência pelas minhas “sumidas” e o sempre disposto
auxilio na solução de problemas de ordem burocrática resultaram nesse momento.
Sem o seu companheirismo esse trabalho não seria possível.
À professora Sônia e à Professora Maria das Graças que em minha não muito calma
banca de qualificação, ajudaram a minha viciada visão a perceber o que estava
incoerente no texto.
À Siméia da secretaria da pós graduação da PUC –SP pela paciência em nos avisar
tudo que teríamos que cumprir.
À Diocese de Santo André da Igreja Católica que subsidiou meus estudos filosóficos
na graduação enquanto ainda era seminarista e a quem devo muito de tudo o que
sou, meus sinceros e emocionados agradecimentos a todos que fizeram parte dessa
história, sobre na figura do Pe. José Herculano e do falecido bispo diocesano Dom
Décio Pereira.
À direção da escola Estadual Amaral Wagner que sempre me apoiou e mesmo com
minhas ausências todos demonstraram-se amigos durante esse processo.
Ao meu amigo Professor Wanderlei da Silva (que é intelectualmente o que eu
gostaria de ser) pela ajuda na leitura, nas correções e na sempre sincera e bem
humorada verdade sobre o conteúdo do texto.
À Rita de Cássia, companheira e amor da minha vida pela compreensão e paciência
nas ausências por conta dos estudos e da redação dessa pesquisa.
E por fim ao professor Ênio que despertou em mim a paixão pela filosofia.
Resumo
Este estudo busca apresentar a posição na obra de Rousseau com relação às
implicações políticas da religião nas ações políticas dos povos. Essa apresentação
será feita a partir do exame dos textos do autor em que podemos localizar uma
discussão especifica sobre o tema. Para chegar ao objetivo, o trabalho trata primeiro
da relação política e religiosa nos povos antigos; depois passamos à crítica feita por
Rousseau ao cristianismo enquanto forma política dissolvida nas religiões nacionais
e por fim apresentamos a saída dada pelo autor para resolver as contradições
apresentadas pelas modalidades religiosas citadas. Essa solução foi chamada por
ele de religião civil.
Palavras -chave: Rousseau, Política, religião.
Abstract .
This study aims at presenting the position in the work of Rousseau regarding the
political implications of religion in the political actions of people. This presentation will
be made by examining the texts of the author in which one can find a specific
discussion on the topic. To reach the goal of this study, the first topic which is dealt
with is the political and religious relationship amongst ancient civilizations; then one
discusses the criticisms made by Rousseau to Christianity as a political form
dissolved in national religions. Finally, one presents the issues proposed by the
author in order to solve the contradictions presented by religious rules cited.
Rousseau called his proposed solution civil religion.
Keywords: Rousseau, Politics, Religion.
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................... 09
1. Política e religião nos povos antigos: “O Deus polí tico ”.............................................. 14
1.1 A fé política. .................................................................................................................... 15
1.2 Relação entre política e religião nos povos antigos. ........................................................ 19
1.3 A delimitação da ação nos povos antigos: Religião, política e território. .......................... 26
1.3.1 Religião, política e território: o exemplo judeu........................................................... 33
1.4 A experiência romana como religião nacional ................................................................. 38
2. “Os vigários do Deus político” ....................................................................................... 46
2.1 A quebra da unidade entre política e religião: O reino dos céus e o reino da terra .......... 48
2.2 A impossibilidade do cristianismo enquanto religião nacional.......................................... 56
2.2.1 A sustentação do poder político sem a noção de território: Comunhão e excomunhão ...................................................................................................................... 60
2.2.2 Universalismo e o poder soberano............................................................................ 63
2.3 O uso político da religião cristã como um mal para o Estado e para a religião ................ 65
2.3.1 O uso político do cristianismo: Um erro contra a religião........................................... 65
2.3.2 A intolerância. ........................................................................................................... 67
2.3.3 O uso político do cristianismo: Um erro contra a política........................................... 70
3. A via média ...................................................................................................................... 82
3.1. A religião como necessidade e não como instrumento. .................................................. 83
3.2. O primeiro tipo de religião: A religião do homem. ........................................................... 86
3.2.1. O segundo tipo de religião: A religião do cidadão. ................................................... 89
3.2.2. O terceiro tipo de religião: A religião do Padre. ........................................................ 91
3.3. A Religião Civil no Contrato Social: Entre a religião do homem e a do cidadão.............. 93
Considerações finais ........................................................................................................ 103
Bibliografia . ....................................................................................................................... 108
9
Introdução
Esta Dissertação trata de um dos temas mais importantes e conflitantes
da filosofia política moderna: a discussão sobre as implicações políticas da
religião na esfera social no pensamento de Jean Jacques Rousseau. O
trabalho desenvolvido procura se apresentar como uma reflexão possível sobre
o conflito entre política e religião, que no século XVIII, envolveu várias posições
filosóficas divergentes. A pergunta que movimenta as hipóteses desse trabalho
é: de que maneira a religião pode estar vinculada ao Estado sem provocar
danos a si mesma e a sociedade?
Em todos os tópicos abordados haverá sempre a preocupação em
demonstrar como as idéias de Rousseau referentes, de um lado, à religião e,
do outro, à política se relacionam. Em particular tentamos por meio desse texto
fazer uma investigação da presença do debate entre religião e política no
pensamento de Rousseau, onde destacadamente o Contrato Social é o texto
central, pois contém os principais argumentos que tratam especificamente dos
conceitos dedicados ao esclarecimento da presença e do valor da religião e de
seus vínculos institucionais estabelecidos em algumas modalidades sociais.
Em seu pensamento Rousseau ora acolheu uma influência das antigas
religiões, ora acolheu um cristianismo do “evangelho”, ora deles separou-se
para, finalmente pensar um modelo de relação político religiosa à margem do
cristianismo e do ateísmo. Em poucas palavras procuramos entender o lugar
que a religião ocupa no pensar político de Rousseau.
Na perspectiva de apontar detalhes que possam ser reveladores das
fontes das idéias religiosas e políticas de Rousseau, pretendemos localizar o
seu pensamento traçando um paralelo com suas idéias filosóficas em geral,
como a soberania do Contrato e da Vontade Geral.
Para tanto, o ponto de partida é a consideração de que o século em que
Rousseau vive sofre uma crise violenta sobre a presença da dúvida e do
ceticismo que vai em seguida marcar toda a modernidade. Nesse movimento
do XVIII a religião sofreu, em seus fundamentos, um lento desgaste seja pela
crítica epistemológica de base cartesiana ou não – como Montaigne – seja pelo
10
avanço de uma burguesia cada vez mais ávida pelo poder político e pela
descentralização das decisões nas mãos de um homem e de uma Igreja oficial.
Assim localizamos em alguns filósofos como Diderot e Voltaire, uma
forte presença do temas da religião e da sua relação com a política, tal como
da secularização e do ateísmo e, principalmente, a expectativa política do
advento de uma época em que todos os homens fossem livres e não
reconhecesse outro amo a não ser a própria razão. O diferencial localizado no
pensamento de Rousseau deve-se ao fato de haver criticado com a mesma
força tanto o pensamento intelectualista quanto ao pensamento teológico, ele
ataca tanto a ateus como crentes.
No centro de todas essas polêmicas encontramos em Rousseau e,
sobretudo, no texto sobre A Religião Civil que fecha o Contrato Social os
pontos que mais esclarecem a temática sobre religião e política e sobre a sua
possível relação na sociedade. Procuramos mostrar o que há de singular no
pensamento político/religioso de Jean Jacques, e a sua tentativa de conciliar
dois temas que para muitos já estavam por força das contingências históricas
caminhando para uma separação inevitável.
Política e religião quando pensados sobre uma mesma bandeira são
conceitos bastante controversos em toda a história e levam Rousseau a pensá-
los dentro da evolução das sociedades políticas. Não é a toa que a temática
em sua obra é polêmica e inesgotável. Com este estudo procuramos esclarecer
como as idéias relacionadas a religião e política se desdobram em seu
pensamento e de que forma elas podem conviver unidas, livres de danos
dogmáticos e de paixões pessoais.
A dinâmica do pensamento de Jean Jacque para entender a relação
entre religião e política parte de uma certa genealogia dos efeitos sociais
provocados pelas crenças religiosas nas sociedades políticas em momentos
específicos da história humana. Como já foi dito, estamos diante de um
pensador, vivendo em um século de profundas transformações políticas e
religiosas, mas que não ignora o que foi vivido ao longo das transformações
históricas.
Para Jean Jacques Rousseau o Estado deve ser laico, mas deve
preservar um certo revestimento sacro no meio público, pois assim garante
11
com maior facilidade a ordem e ajuda no respeito às leis e as decisões do
contrato.
Para entender melhor essa necessidade de revestimento dos eventos
políticos de uma forma religiosa tomamos no Contrato a figura do Legislador. O
Legislador é a figura daquele que dá as leis a um povo, não faz leis por si
mesmo, mas consegue por sua condição ler a vontade geral e agir em
conformidade a ela. Ele trás no revestimento de sua autoridade uma roupagem
divina.
O Legislador é para os Estados um “homem extraordinário”1 que, é
capaz de expressar a vontade geral do povo na forma de leis, estabelece
efetivamente o corpo político: “Para descobri as melhores regras de sociedade
que convenham as nações, precisar-se-ia de uma inteligência superior”2. Mas
para que essa obra extraordinária se consolide o Legislador necessita recorrer
à religião, ou seja, o Legislador recobre a sua ação e o resultado dela(as leis)
partindo da crença universal dos homens de que existe um ser criador,
salvador e juiz de todos os homens. Logo, o Estado estará protegido por
convenções sagradas, protegidas das ações particulares dos homens.
A religião não se apresenta na história dos homens como um evento
insignificante e que se sua presença não tivesse existido pouco representaria a
convivência dos homens em sociedade. Essa idéia pode ser encontrada na
primeira das Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma que a religião “é
útil e até mesmo necessária aos povos”3.
Esse trabalho busca entender, afinal, que a intenção de Rousseau não é
eliminar a presença religiosa do Estado e nem participar da fundação de uma
nova Igreja para prestar culto as Leis e as figuras ilustres4 da sociedade, mas o
que ele busca pensar é um tipo de religião que esteja entre as convicções do
homem, para consigo mesmo e para com o próximo, e que também ajude o
cidadão a ser fiel ao Estado, se que para isso provoque conflito entre uma e
outra das relações. Nossa discussão transcorre sobre a possibilidade de uma
“via média” entre a religião do homem e a do cidadão.
1 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII, p.57 2 Ibidem. p.56. 3 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 4 Como os positivistas seguidores de Augusto Comte fizeram um século mais tarde.
12
***
Esta dissertação está esquematicamente dividida em três capítulos.
No primeiro capítulo, o alvo da investigação será a relação entre política
e religião nos povos antigos. Na ordem do texto, Rousseau segue de uma
primeira afirmação sobre as relações políticas entre os homens e logo em
seguida cita Calígula como marco, parte então para uma justificativa sobre a
importância da religião como unificadora dos povos e para a análise da
experiência política religiosa em cada sociedade separadamente. Não há uma
ordem cronológica estabelecida, ele toma os gregos, transitando para
Babilônicos, indo a cristãos e voltando aos sumérios.
Para essa organização no primeiro capítulo, fizemos a análise do texto
do Contrato Social levando em consideração somente a sua primeira parte,
quando tratamos da “instituição da política divinizada”, ou seja, daquele que
como deus governa divina e humanamente, e como o objetivo não é apresentar
o pensamento ligado às experiências religiosas do autor, nossa leitura toma
como base a seguinte ordem: contextualizar as implicações religiosas na
política e a similaridade dessas implicações em todos os povos antigos;
demonstrar como Rousseau se apega a tese de delimitação territorial para
sustentar a idéia de que as religiões eram nacionais; e por fim, apresentar a
particularidade do império romano como um evento político religioso novo, nas
relações e as implicações da introdução do conceito de império.
No segundo Capítulo, tomamos como hipótese de que para Rousseau o
cristianismo é um evento totalmente novo enquanto pensamento político.
Para sustentar essa idéia a argumentação do texto do Contrato Social,
vai se estender em torno da consolidação do cristianismo como forma política e
de sua atuação para a modificação das relações sociais. Para um melhor
esclarecimento nos foi necessário recorrer a mais um texto de Rousseau que
são as Cartas Escritas da Montanha.
Para a organização do segundo capítulo, tomamos a seguinte ordem:
contextualizar as implicações religiosas do cristianismo enquanto religião
oficial; demonstrar como Rousseau se apega a tese de que o cristianismo não
13
pode se configurar como uma religião nacional, demonstrar também que o
cristianismo rompe a unidade do Estado; e por fim, demonstrar que todo
movimento em direção a uma “estatização” do cristianismo terminará sempre
com a corrupção da política e da própria religião.
No terceiro capítulo será feita uma análise da última parte do texto sobre
a Religião Civil. O que também estará presente nessa última parte da
dissertação será a tentativa de demonstrar a hipótese de Rousseau de como
podemos pensar uma religião não do Estado, como nas antigas religiões,
também não separada dele como o cristianismo, mas uma religião para o
Estado.
Ainda no terceiro capítulo, notamos que o problema central está na
apresentação da religião civil como uma espécie de instituição religiosa
alternativa, uma “via média” que se apresenta na forma de uma profissão de fé
mais adequada para o cidadão e também para o Estado. O que ficou evidente
é que na proposta da religião civil, Rousseau leva em conta duas espécies de
religião definidas a partir de perspectivas distintas da sociedade: a religião do
homem (do ponto de vista da sociedade geral) e a religião do cidadão (do
ponto de vista da sociedade particular).
Por fim terminamos nossa análise tomando como base os
dogmas da religião civil e a sua relação mista, ora religiosa, ora social.
***
14
1. Política e religião nos povos antigos: “O deus p olítico”
“Os homens de modo algum tiveram a princípio outros reis além dos
deuses, nem outro Governo senão o teocrático”.5 Os deuses reinam sobre os
homens, assim abre Rousseau o capítulo oitavo do livro quarto do Contrato
Social que tem como título e tema de discussão a Religião Civil. O reinar dos
deuses sobre os homens possui que tipo de fundamento? Os deuses se fazem
carne ou subsistem por meio daqueles que se arrogam governar em seu
nome?
No debate moderno sobre os limites e o verdadeiro valor das relações
entre política e religião, encontram-se presentes as influências produzidas pela
filosofia política de Rousseau, ao uso político da religião como instrumento de
justificação divina do poder. A separação efetiva entre esses dois mecanismos
passa a se tornar realmente concreta no início do período clássico e possui o
seu ápice marcado no século XX.
Ora, a separação entre o poder político e o religioso se configura em
concepções próprias do período moderno. Avançar nos estudos das
implicações da religião sobre a política, nos conflitos provocados pela sua
união, em determinada época histórica e pela sua separação radical em outra,
desembocou em discursos e debates por parte de alguns pensadores, tais
como Diderot, Voltaire e Rousseau. A religião, sobretudo, o cristianismo é
agora um assunto da política moderna torna-se também cada vez mais
importante a tentativa de seu enquadramento dentro dos sistemas jurídicos e aí
está o início do nosso debate.
O que se coloca a nós com os fatos novos levantados pelo cristianismo
e politizados pelos Estados modernos é o seguinte: o que é a religião enquanto
instrumento político? A relação entre religião e política sempre foi conflituosa?
Perguntar sobre as relações políticas e religiosas em uma esfera pública
é também se perguntar como essas relações são possíveis e em que contexto.
Em segundo lugar, perguntar como o poder político pode ser reafirmado, sob
5 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 137.
15
que circunstâncias ele deve dar espaço à religião, e que tipo de dimensão
religiosa pode fazer funcionar tanto política quanto religião sem conflito?
Este capítulo não discutira necessariamente todos os campos que
envolvem a história das religiões. O nosso maior alvo será discutir quais foram
de fato as implicações das formas religiosas nos contextos políticos dos povos
antigos, e aqui tomaremos como povos antigos, os sumérios, babilônicos,
gregos, romanos e o povo judeu, ou seja, os povos que de fato deram
relevância à relação político-religiosa a tal ponto de não terem garantido a sua
própria subsistência sem que para isso a existência de seu divino governante
estivesse protegida.
Em nossa investigação, tomamos o cuidado de sequenciar os fatos
históricos citados, buscando seguir a ordem estabelecida por Rousseau.
Dividimos o texto da Religião Civil da seguinte forma: parte um, a análise das
implicações religiosas na política nos povos antigos; parte dois, o cristianismo
como evento novo e diverso nas estruturas sociais e no último capítulo deste
trabalho o problema com a religião civil.
1.1. A fé política.
Os governos sempre fizeram uso de um grande trunfo a seu favor: a fé.
Fé enquanto definição paulina de crença em coisas que não se veem6. Na
leitura de Rousseau, talvez essa afirmação de Paulo fique um pouco vaga, pois
não se trata aqui de fazer um uso da fé buscando referências metafísicas ou de
aperfeiçoamento do espírito. Trata-se aqui de afirmar a fé que os príncipes
possuem e qual a sua natureza.
Ora, para entender o movimento da figura do divino como motor da
história no pensamento de Rousseau será preciso primeiro entender o
movimento da história dentro das dimensões religiosas, e como a política se
efetivou através da unificação entre a ação social e coletiva e a sacralização
religiosa, ou seja, uma espécie de fé política.
A fé usada pelos príncipes tinha e tem uma outra conotação: não
apenas de estabelecer um vínculo de fé entre os deuses e os homens, mas
6 Cf: Hebreus 11:1-2
16
levar os homens a acreditar que a fé também precisa ser um mistério de
entrega daquilo que se vê, que se escuta, que se vive: trata-se aqui de uma fé
na política, ou uma fé política.
Fé na política, ou melhor, em seus representantes políticos, não é
possível apenas crendo no poder dos deuses, mas seria necessário crer no
poder que os deuses podem dar aos homens, para governarem os homens em
seu nome.
Rousseau impõe um questionamento logo no início do debate sobre a
religião civil: “como fazer um semelhante assumir outro como seu senhor?”.7
Não seria fácil, de nenhum modo afirmar que as tábuas da Lei de Moisés foram
forjadas por um homem comum que pensava apenas em estabelecer o seu
próprio reinado. Segundo Robert Derathé, é necessária a crença de que o
poder não é algo meramente humano, mas que emana de um espaço divino8.
Uma vez divinizado o poder, os governantes assumem então a
responsabilidade para guiar o poder, assumir a verdade sobre ele. Esta ação
de transformar o poder político e religioso em uma e mesma coisa não é um
evento novo na história humana.
Os governantes existentes até hoje buscaram assimilar estes dois
pontos para assim justificar a sua autoridade. É claro que todos os governos,
de uma forma ou de outra, sustentaram sua ação política sob a tutela sacral de
uma religião. O florentino Maquiavel nos ajuda a entender um pouco essa
questão:
E de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum, que não recorresse a Deus; por que de outra maneira elas não seriam aceitas: pois há muitas boas coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não têm em si razões evidentes para poderem convencer os outros9
Os homens que governam podem não expressar figuras que se parecem
divinas, afinal nasceram de mulher, fruto de uma relação sexual como todos os
homens, contudo, são especiais, pois representam o poder divino através de
suas ações. Seus corpos não são de matéria divina, mas o poder que
7 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137 8 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, p. 50. 9 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes. p. 50.
17
representam emana das divindades10. O poder é algo divino, o que nos permite
dizer que aqueles que representam poder também se sentem assim, divinos,
puros, santos e verdadeiros, pois representam o algo que está muito além de
nossa percepção, algo místico e transcendente:
Raciocinaram como Calígula e, então, raciocinaram bem. Impõe-se uma lenta alteração de sentimentos e de ideias para que se possa resolver aceitar um semelhante como Senhor e persuadir-se de que assim se estará bem11
E continua Rousseau:
Não é todo homem, porém, que pode fazer os deuses falarem, nem ser acreditado quando se apresenta como intérprete. A grande alma do Legislador é o verdadeiro milagre que deverá autenticar sua missão. Qualquer homem pode gravar tábuas de pedra, comprar um oráculo, fingir um comércio secreto com qualquer divindade(...) Aquele que só souber fazer isso, pode até reunir casualmente um grupo de insensatos, mas jamais fundará um império·(...)12
Uma vez que se representa o divino, quem o representa assume
também uma forma quase divinizada e tudo que vem desses “ministros”
também configura uma atitude divina segundo Rousseau. Logo, um povo passa
também pela tutela do divino poder; a religião sustenta as ações dos homens,
tanto de forma individual, quanto coletiva; ora, sendo assim, são as divindades
que sustentam as ações dos homens em grupo: agir é seguir em tudo a
vontade dos deuses, e não apenas a vontade meramente humana.
No início de seu texto, Rousseau nos apresenta um grande modelo
unificador. Calígula foi alguém que, com grande percepção política, reuniu sob
seu controle a personificação do poder divino, estabelecendo-se assim como
homem, e assumindo a titulação de imperador divino. Rousseau não escolhe a
figura de Calígula de forma aleatória, afinal o imperador romano deu a si
mesmo uma nova natureza que já o colocava sobre aqueles aos quais ele
estabeleceria um governo13.
10 BURGELIN, P. La philosophie de l’ existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Moderns. p. 440. 11 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137. 12 Ibidem, p. 59. 13 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 137.Nota do tradutor.
18
É claro que Calígula não foi o primeiro na história a manifestar o seu
poder civil sob a tutela de um poder divino. Os faraós egípcios também o
fizeram, como também os antigos reis da Babilônia e da Pérsia. No fundo, para
Rousseau, Calígula e todos os outros trazem em si uma grande semelhança:
descobrem na unificação entre o poder divino e o poder civil um grande trunfo,
afinal a grande questão a ser discutida é como alguém pode aceitar como
senhor alguém que não possua uma natureza distinta da dele? Como afirma
Rousseau: “Raciocinaram como Calígula e raciocinaram bem. Impõe-se uma
lenta alteração de sentimentos e de ideias para que se possa resolver aceitar
um semelhante como senhor e persuadir-se de que assim se estará bem”.14
Maurice Halbwachs, em sua edição crítica do Contrato Social faz uma
referência a uma possível justificativa dessa aceitação:
Aqui, Rousseau diz que naquele tempo, esse raciocínio era justo: os homens, mais próximos do estado de natureza, cujos sentimentos e ideias estavam menos “alterados”, só teriam obedecido a chefes se tivessem acreditado que estes não eram apenas homens como eles15
Senhores eram necessários, afirma Rousseau; contudo, o
reconhecimento de que os senhores eram superiores em natureza a seus
servos partia do princípio de que eles estavam ligados naquele momento às
ideias e sentimentos que lhes eram acessíveis. A ideia estava baseada no
princípio de que não havia dois senhores, mas um só, pois o fato de os
governantes serem representantes dos deuses identificava, que os senhores
eram deuses, e naquele momento da história não havia uma separação entre o
povo e os seus deuses16, logo, os deuses, estavam à frente de cada sociedade
política17.
Porém, a ideia de um poder civil que em tese emana de um poder divino,
ou melhor, que não só emana, mas configura um elo duradouro entre o terreno
e o eterno, só poderia sustentar-se a partir do momento em que a ideia de um
deus é colocada à frente de uma sociedade.
14 Ibidem. 15 ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. Paris Aubier, 1943, p. 413, Nota nº 353. 16 Um povo tem sua consolidação enquanto tal no momento em que o seu deus também se consolida para o guiar, defender, punir e salvar. 17 ROUSSEAU, J.J.. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 136.
19
Legislar em nome dos deuses ou assumindo a forma de uma figura
divina é obrigar a uma ação também em nome dos deuses, de algo maior,
fortalecendo assim a coesão social, pois o indivíduo sente-se obrigado não
somente a respeitar o homem que está se sobrepondo a outros homens, mas a
respeitar o divino homem, que impôs as divinas leis18. Romper com isso não
significa estar fora apenas da comunhão social dos indivíduos, mas estar fora
da comunhão eterna com os deuses, que não recebem humanos
desobedientes e rebeldes tanto a eles, os deuses, como a seus emissários.
Cito Rousseau:
Eis o que, em todos os tempos, forçou os pais das nações a recorrerem à intervenção do céu e a honrar nos deuses sua própria sabedoria. A fim de que os povos, submetidos às leis do Estado como às da natureza e reconhecendo os mesmos poderes na formação do homem e na da cidade, obedecem com liberdade e se curvassem docilmente ao jugo da felicidade pública19
Essa unificação entre o poder político e o poder religioso se deu de
forma a ser introduzida nas relações de Estado nos povos antigos. Nas antigas
civilizações não há uma separação entre as duas ações, elas estão sob o
mesmo cajado, unidas, política e religião dissolvendo-se uma na outra. Logo,
se quisermos entender os problemas provocados dentro do Estado pela
religião enquanto tentativa de ser uma religião nacional, será necessário passar
pela análise feita por Rousseau das relações entre política e religião nos povos
antigos, o que acompanharemos nos próximos tópicos.
1.2. Relação entre política e religião nos povos an tigos.
O texto de Rousseau sobre a Religião Civil, no Contrato social, abre-se
com uma análise não de caráter histórico da trajetória das religiões, mas busca
entender a trajetória do poder e suas implicações religiosas nos contextos
políticos, e perceber o que há de comum entre cada povo da antiguidade e sua
dimensão religiosa, antes do advento do cristianismo. Trata-se neste momento
de estabelecer na história um exato ponto em que o soberano fazia as vezes
18 Cf. FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. P. 100 e 104. 19 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultura. Livro IV, Capítulo VIII, p. 138.
20
de ministro das divindades, não um ministro de ofícios meramente religiosos,
mas como ministro configurado da ordem civil pode-se nesse momento
defender que o governo era de todo exercido pelos deuses, ou seja, era uma
teocracia, não no sentido moderno quando pontífices governavam em nome de
deuses, mas eram os próprios deuses por seus ministros, também divinos, que
governavam.20
Nos primeiros tempos, a figura do governante confundia-se com a representação do sagrado; assim, os reis eram também sacerdotes e uma só pessoa exercia os dois papeis, ou então, eram duas atividades diversas, mas ambas mantinham o caráter de figuras sagradas21
Para entender melhor essa relação entre o divino e a sua presença na
figura do governante, é preciso entender etimologicamente o sentido do termo
sagrado, para isso tomaremos por base o texto de Battista Mondin:
Para uma primeira abordagem do conceito de sagrado, vale a pena interpelar a filologia. Sagrado / sacro provém do latim sacer, que por sua vez vêem de sancire, que quer dizer conferir validade, realidade, fazer com que alguma coisa se torne real. Sancire aplica-se às leis, aos compromissos, às instituições, a um fato um estado de coisas.(...) Do radical sac deriva também sanctus, que qualifica, sobretudo, as pessoas. Os reis são sancti porque escolhidos pelos vaticínios e, portanto, em conformidade com a vontade dos deuses; por isso, sactus dá a qualificação especial que o rei possui para poder desempenhar sua funções22
Rousseau começa a sua reflexão partindo do princípio de que a religião
em certo momento da história não foi o ponto de ruptura, conflito e separação
do Estado. Em algum momento da história os membros de uma sociedade,
localizavam no ato religioso o ato político, e no ato político o religioso; não
havia uma confusão por parte de nenhum cidadão sobre quem obedecer, ao
pontífice, ou ao príncipe. Há uma espécie de “pátria divinizada”23 e não parece
na leitura feita por Rousseau que essa pátria provocasse qualquer espírito de
separação entre os membros da sociedade.
20 Notas de tradução da edição do Contrato Social, feita pela professora Maria Constança Peres Pissarra In: ROUSSEAU. J.J. Discurso sobre a economia política e Do contrato social. Petrópolis: Vozes, 1996. P. 212(nota 220) 21 Ibidem. 22 MONDIN. B. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus. 1997, p. 32. 23 GOUHIER, H.G. Lês méditations métaphysiques de Jean Jacques Rousseau, p. 254.
21
As religiões nacionais foram examinadas por Rousseau levando em
consideração o ponto de convergência entre a política e a religião, ou seja,
como as instituições religiosas podem fazer parte integrante do corpo
político24sem que com isso provoquem uma ruptura no quadro da ordem
vigente.
Nos povos antigos e em suas antigas religiões, a ideia máxima de que o
poder emana dos deuses e é colocado em prática por seus legítimos
representantes ganhou a sua forma mais aprimorada nos sumérios, nos
gregos, nos romanos e como um destaque monoteísta e particular no povo
judeu. Diferentemente do modelo cristão, que será ainda fruto de nossa
análise, os antigos povos, davam a seus membros uma perfeita noção de
unidade; não havia em sua estrutura interna nenhum movimento que
provocasse a confusão sobre a quem o povo devia obediência, logo a relação
entre o divino, as leis e o seu povo era bem delimitada.
Os sacerdotes antigos se prestavam dentro do padrão de sacerdote que
foi estabelecido posteriormente com o advento do cristianismo. Sua influência
se dava no estabelecimento de um ministro do culto, ou se um oficializador das
ações do Estado. A interferência dos sacerdotes antigos estava limitada em
sua essência a conduzir e fazer cumprir aquilo que os divinos soberanos
determinavam, ou seja, eles não eram, por si, representantes do divino, mas
seus servos.25
Logo, nos povos antigos todos estavam destinados a servir aquele que
por direito divino detinha autoridade e poder. Não havia uma entidade dentro
do Estado que pudesse provocar uma ruptura no liame social, não se obedecia
a sacerdote algum, obedecia-se ao divino rei e a sua lei, prescrita e executada
pelo divino representante.
A força dada ao representante dos deuses era tão intensa que a
analogia entre ele e aqueles que lhe conferiam poder era quase que imediata,
e ele mesmo se considerava um deus, pois assim era visto, não fazia às vezes
de vigário dos deuses, mas era entendido como um co-participante da natureza
divina.
24 Ibidem. 25 Aqui há a inexistência, do que Rousseau chama de a religião do padre, não há uma relação integrada entre os poderes dos sacerdotes e o controle civil. Cf: ROUSSEAU. J.J. Cartas a Cristophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Estação Liberdade. P. 72.
22
A unidade em um mesmo cetro, do poder político e do religioso, deu aos
povos antigos, segundo Rousseau, a condição necessária para se constituírem
enquanto civilização. Afirmar a religião era afirmar a que povo se pertencia, não
havia ruptura; nas religiões antigas, política e religião estavam unidas, e mais,
todo o sistema estava atrelado a essa relação.
Uma outra particularidade destaca por Rousseau é a percepção por
parte desses povos de que a religião estava diretamente ligada ao espaço
físico habitado por eles, logo estavam delimitadas pelo espaço geográfico.
Segundo Rousseau, as religiões nacionais funcionaram enquanto fonte
de unidade, pois dentre outras coisas elas estavam delimitadas
geograficamente26, não eram universalistas27, não estavam em todos os
lugares, muito pelo contrário, estavam retidas, presas ao seu território e não
poderiam ser reconhecidas em nenhum outro lugar. Para esclarecer esses
eventos, Rousseau explica a situação na qual os gregos se encontravam e em
sua fantasia de reconhecer em territórios alheios a presença de suas entidades
divinas, tomemos o texto:
A fantasia dos gregos de reencontrar seus deuses entre os povos bárbaros veio daquela, que também tinham, de se considerarem os soberanos naturais desses povos. Mas atualmente tornou-se bem ridícula a erudição que fala da identidade dos deuses das diversas nações, como se Moloch, Saturno e Cronos pudessem ser o mesmo deus, como se Baal dos fenícios, o Zeus dos gregos e o Júpiter dos latinos pudessem ser o mesmo, como se pudesse existir algo de comum entre seres quiméricos que tem nomes diferentes28
O que Rousseau defende é que as religiões antigas, enquanto religiões
nacionais, não poderiam em nenhum momento ter a pretensão de tornarem-se
universalistas. Tornar-se universal significaria reconhecer em todos os povos
algo de comum ao seu próprio espaço, reconhecer que as mesmas leis dadas
nesses Estado possuem validade em outro; reconhecer que os deuses de um
povo possuem validade em meio a outro. Segundo Rousseau, os gregos
26 As religiões antigas não alargavam o seu espaço de atuação, pois dependiam estritamente da tutela de seu espaço territorial para concentrar a sua existência. 27 Não havia ação proselitistas entre eles, não se encontrava sentido em converter um povo, sem que antes esse povo estivesse submetido legalmente, ou seja, que a religião estivesse dentro do corpo legislativo do Estado. 28 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138.
23
erram, pois não há nada de comum entre os seus deuses e os deuses dos
povos conquistados.29
As religiões de caráter nacional vigoraram por não permitir em sua
estrutura nenhuma referência de caráter universalista, tudo está muito bem
delimitado, a religião está no sistema legal,
Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo”30
Logo, no quadro antigo das religiões há algo de especial nas relações
entre política e religião. Uma coisa está plenamente associada a outra.
Religião, política e território pareciam estar em completa harmonia no corpo
político. O fundamento dessas três coisas sempre esteve ligado por toda a
história humana às relações de Estado31 através do contexto religioso:
O capítulo de que falo está destinado, como se vê pelo titulo examinar como as instituições religiosas podem entrar na constituição do Estado. Assim, não se trata ali, de considerar as religiões como verdadeiras ou falsas, nem mesmo como boas ou más nelas mesmas, mas unicamente considerá-las por suas relações com os corpos políticos e como partes da legislação32
29 “ Rousseau foi desmentido neste ponto como nas anteriores observações sobre a história político religiosa, pela ciência moderna. Lembremos, contudo, que datam do fim do século XIX os primeiros trabalhos mais sólidos sobre mitologia comparada, bem como o Ramo de Ouro, de fazer (1890), que é a primeira obra a cuidar do caráter mágico do poder mando entre os primitivos. Só na segunda década de nosso século Max Weber analisaria mais amplamente o poder carismáticos.” In. Notas de tradução da edição do contrato social, feita por Lourdes Santo Machado e notas de Paul Arbrousse- Bastide e Lourival Gomes Machado. In: ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138( nota 481) Na tradução do texto da coleção os pensadores, existe um nota de rodapé feita por Lourival Gomes Machado, fazendo alusão a como Rousseau fora desmentido pela ciência moderna com relação a suas observações político religiosas, observações essas que foram confirmada por Max Weber em seu estudo sobre o poder Carismático. A nota em questão, parece não ter levado em consideração o intuito de Rousseau em analisar a experiência dos gregos. O que Rousseau tenta demonstrar é que a religião dos povos antigos é uma religião existente em um espaço geográfico pré delimitado, a força de um estrutura religiosa não poderia ser comparada à outra pois não leva em seu meio o proselitismo religioso, mas tudo que o Estado contém. O gregos não poderiam se reconhecer em outros deuses pois neles não reconheciam as suas leis. Não se trata aqui de uma analise sob a ótica de reconhecer nos cultos semelhanças de cerimonial, a discussão de Rousseau aqui não é teológica, ou histórica religiosa, muito pelo contrario, é uma discussão genuinamente política. 30 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 31 Mesmo nos tempos modernos os homens recorrem as suas ligações metafísicas, para assim sustentar a sua ação humana de sobreposição sobre os membros de sua própria espécie. 32 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.
24
Ora, na sequência de sua análise sobre as religiões, Rousseau não as
considera simplesmente uma ordem cronológica, mas vê nas religiões que
existiram até o advento cristão33 uma diferença enorme de padrão. Cada
sociedade política constituída antes do cristianismo tinha à sua frente o seu
deus, tanto o transcendente quanto o de figura humana. Logo, cada sociedade
política formada tinha como grande escudo um deus, para sua defesa e
coesão. Se cada sociedade constituída na antiguidade possuía um deus para
seu auxílio, Rousseau faz a sua dedução de que a figura de “deus” não poderia
possuir um caráter unitário, mas ela se configurava de variadas formas assim
como os povos se configuravam diferentemente. Conclui-se, então, afirma
Rousseau, que deus na antiguidade não constitui uma experiência única, muito
pelo contrário, essa experiência é multifacetada de acordo com o número de
povos que assumem para si a experiência do divino:
“Pelo simples fato de colocar-se Deus à frente de cada sociedade política, conclui-se que houve tantos deuses quantos são os povos”34.
E continua Rousseau:
Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo35
Deus à frente das sociedades políticas faz com que o número de deuses
seja identificado com o povo que habita nessa sociedade, é a instituição do que
hoje chamamos de politeísmo. O que nos chama a atenção é que o fato de
colocar deus à frente das sociedades políticas indica que aquele que o
representa nessa realidade, no caso o soberano, configura uma ideia
semelhante a de um deus. Ora, portanto, a visão de deus não é única, mas
passa por quem o personifica, por cada povo, por cada momento e por cada
visão daqueles que por direito detêm esse poder.
33 O cristianismo é para Rousseau um divisor de águas nas relações entre política e religião. Nos povos antigos não há uma diferença fundamental entre um elemento e outro, o que no cristianismo é completamente reformulado, com a ideia do reino dos céus assumindo uma superioridade sobre o reino da terra. 34 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 136. 35 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.
25
Logo, afirma Rousseau, dois povos inimigos entre si jamais poderiam
afirmar em tempos de conflito a mesma convicção religiosa36, significaria uma
traição à bandeira do soberano e um “pecado” contra os deuses daquele povo:
Trata-se, antes de tudo, de entender a lógica da segregação das nações, que ganha força à medida que o vinculo entre política e religião se solidifica, o que é inevitável, uma vez que é exatamente o isolamento das nações que favorece, em cada uma delas, a confusão entre atitudes religiosas e as atitudes políticas37
Por não representarem religiões de caráter universalista, tal qual o
cristianismo38, Rousseau afirma que as antigas religiões nacionais
estabelecem um terreno, cada uma possui uma particularidade, gerada a partir
da experiência local de cada povo. Como exemplo, a religião dos chineses
nada tinha em sua sociedade a ser comparada com os sumérios, cada um em
sua época, em uma região estabeleceu particularidades próprias.
Em outras palavras, a ação de conquista religiosa não pode em nenhum
momento estar separada da ação de conquista política39. É impossível
submeter religiosamente um povo sem que antes haja uma submissão político-
territorial.
A ligação entre as relações políticas e o território será o tema que
trataremos a seguir.
36 Isso seria uma contradição já que a religião segue a identidade política de cada povo. Não seria possível dois povos reconhecendo uma mesma religião sob uma mesma bandeira, estarem em conflito em nome dos mesmos Deuses. É certo que a guerra do Peloponeso que envolveu Atenas e Esparta e todas as polis ligadas a sua federação, pode parecer uma contradição a essa constatação de Rousseau, o que ocorre naquele momento da história é que aquele evento se trata de uma guerra civil, e a estrutura grega, não levada em consideração por Rousseau e portanto, não sendo alvo desse trabalho, se difere dos demais povos e de sua relação de território por referir-se em um sistema de cidades estado. Logo, cada cidade possuía a sua autonomia política, conseqüentemente, a sua autonomia religiosa. A guerra entre os gregos, não se tratava de uma guerra de religião, mas de uma guerra política. 37 Cf: WATERLOT. Ghislain. Rousseau – Religion et politique. Paris: Presses Univertaires de France, p. 64. 38 “O cristianismo, ao contrário, é uma religião universal, que nada tem de exclusivo, nada tem de local” In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 39 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950.
26
1.3. A delimitação da ação nos povos antigos: Relig ião, política
e território 40.
Nosso autor demonstra que não seria possível reconhecer nas religiões
antigas um caráter que fosse universalista. A universalidade de uma estrutura
religiosa não está presente nos povos, que Rousseau apresenta na primeira
parte do texto sobre a Religião Civil.
Nos povos antigos há uma identificação muito grande com a noção de
território41. O território significa não só um local onde habitam pessoas que
falam a mesma língua, ou possuem os mesmo costumes. Território na
concepção antiga significa algo sagrado, local de culto42 de encontro com o
divino.
A sacralização da terra onde se está é uma constante na formação
social dos povos estudados por Rousseau. Todos eles no fundo seguem a
mesma lógica, que entendem ter direito à posse da terra por meio da promessa
divina feita a eles43. Reclamam por direito seu território, que não se trata
apenas de uma faixa de terra utilizada para um fim humano, profano, a terra,
passa por uma relação entre os que ali estão e o divino.44
O que se faz sobre aquele território, por exemplo, é amplamente
regulado pelo Estado: as plantações, os feriados, os dias santos45. A colheita é
vista como uma espécie de relação sexual em larga escala, onde o homem
fecunda a terra abençoada pelos deuses e espera por um tempo o nascimento
do fruto daquela relação de amor.46 No momento de se efetuar a colheita, por
exemplo, os povos se preparavam de forma exaustiva, tanto espiritual como
fisicamente, para retirar da terra o filho sacro, fruto que iria alimentá-los por
todo um ano até a próxima colheita.
40 A ideia de território não se encontra diretamente referênciada no texto do Contrato. 41 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 144. 42 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. p. 18. 43 Cf: Gênesis 17.1-7, 44 FIORI. JOSÉ LUÍS. A visão sagrada de Israel. Jornal valor econômico. Edição de 24/01/2009. 45 Cf: Levítico, 20, 23-25. 46 Cf: MARQUES , LEONARDO ARANTES. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: MADRAS, 2005, p. 30.
27
Trabalhando ainda dentro dessa ótica, gostaria de tomar a reflexão feita
por Fustel Coulanges em seu texto sobre o comportamento dos povos antigos,
intitulado, “A Cidade Antiga”. Nesse texto Fustel busca analisar de forma direta
as formações das civilizações gregas e romanas e de como as implicações
religiosas nas formações políticas marcaram o desenvolvimento desses dois
povos como grandes potências nacionais.
Fustel percorre um raciocínio que tenta demonstrar como o homem
passou de um estágio social que o fazia nômade, sem nenhuma noção de
território, posse ou propriedade, para a noção de homem sedentário, que fixa
bandeiras, demarca espaços e por fim defende a terra como sua propriedade.
Para Fustel, o homem torna-se de fato homem não pelo mero advento
da razão, mas pela diferenciação que faz de si mesmo para com outros
animais, quando descobre a concepção de que os seus mortos não são
semelhantes aos animais, e não podem meramente ser abandonado sobre a
terra. Sepultar os mortos não se tratava de um ato prezando a higiene e a
proteção das doenças, mas estava ligado à noção de humanização do homem,
a percepção que os mortos pertencem de alguma forma aos vivos que aqui
estão:
Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até Cólquida, onde morreu. Mas embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse a Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas unida aos restos corporais não podia deixa sozinha Cólquida. Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda vida , era preciso que o corpo ao qual permanecia ligada, fosse coberto de terra, a alma que não possuía sepultura, não possuía morada,e ficava errante”47
Ao perceber que os mortos pertencem aos vivos, os homens, segundo
Fustel, começam a não só sepultar os seus mortos, mas a transformar o
território onde esses mortos foram sepultados em território santo, sagrado,
local de reverências e culto. Culto este que deve ser prestado de uma forma
especial, uma espécie de culto particular, uma religião doméstica.48
47 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. p. 20. 48 Ibidem, P. 47.
28
Lembra Fustel, que na maior parte dos casos o patriarca era sepultado
dentro de sua própria casa. No momento de sua morte um de seus filhos
assumia não só a chefia sobre aquela família e a aquele espaço territorial,
como também era o responsável por prestar culto àquele que já havia ido ao
mundo dos mortos e de manter a sua lembrança viva.
Por essa razão na Grécia e em Roma, como na Índia, o filho tinha o dever de fazer sacrifícios e libações aos manes dos pais e de todos os ancestrais. Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer(...)49
Aquele espaço do sepulcro agora ganhava uma nova conotação: seria
preciso manter-se fixo a ele e não permitir que outros, estrangeiros ou não, os
violassem de nenhum modo, sob o peso da perdição eterna, de quem violou e
de quem permitiu tal ato.
A religião ganha espaço nos povos antigos, atrelada ao culto da vida
após essa vida. O processo de culto está atrelado aos ancestrais, sobretudo,
ao local onde os mortos estão sepultados. Para Fustel, o culto ao território está
ligado intimamente a cada membro da família é a configuração do que ele
chama de religião doméstica.50
A religião é plenamente identificada ao território no qual se vive, pois ela
preserva a memória dos mortos que lá estão e o futuro daqueles que lá vivem.
Ora, se a terra é algo sacro, faz a ligação entre os viventes e os que
estão em outra vida e também atua como fonte da alimentação dos povos, é
fecundada por eles e distribui os seus dons, temos que deduzir, portanto, que a
terra não é, um mero espaço onde homens se agrupam. O território é o espaço
em que a vida de um povo prospera. Logo, o território é um espaço sacro,
afirma Fustel: “(Essa era) A era da associação política e religiosa das
famílias”.51
Esse espaço sacro necessitava de um comando, para organizar em seu
interior o bem estar daqueles que lá viviam. Mesmo estando em um solo em
que os deuses prometeram a todos, essa promessa necessita de regulação e
49 Ibidem, P. 49. 50 Ibidem, P. 47 e 48. 51 Ibidem, P. 205.
29
necessita também de quem garanta que as normas para a manutenção da
promessa não sejam quebradas.
A regulação de um espaço territorial passa sem dúvida nenhuma pela
introdução de conceitos jurídicos: dizer o que se pode e o que não se pode
fazer em um determinado espaço. Contudo, a Lei não é prescrita nos povos
antigos apenas para regular ações meramente humanas, por homens tão
frágeis quanto sua conduta, ela emana de algo que está para além de todo
homem, no caso aquele a quem Rousseau chamou de Legislador52 e que não
está presente apenas nos povos antigos. O Legislador é um homem, que
habita entre todos os homens, mas está para além de todas as vaidades que
os homens podem produzir:
Na realidade Rousseau não afirma que os Lesgiladores são deuses, ou que sua intervenção é milagrosa. Ainda aqui chamamo-nos diante de uma força de expressão, de um emissário divino ou um deus feito homem, na realidade, é simplesmente a razão encarnada e sua atividade é puramente racional. Individualidade excepcional, o Legislador é simulacro da divindade53
O Legislador lê a vontade geral54, mas não pode arriscar comprometer
aquilo que fez, assumindo para si a função de criador da lei e seu executor,
não deve governar as leis, o que governa as leis não deve governar os
homens.55”
A figura do soberano que executa essas leis ganha aqui um destaque:
quem o faz, o faz em nome dos deuses, fonte e inspiração de toda lei, do povo
e, sobretudo, do resguardar do seu território, pois afinal os deuses ali se
relacionam com os homens.
A sacralização do território deu aos homens das antigas religiões a
noção de que seria necessário resguardar aquilo que os levava à relação com
o divino. Não seria possível reconhecer um deus alheio, pois esse seria
completamente estranho ao seu território, a sua relação política. O deus é
52 A figura, ou função, do Legislador na teoria política de Rousseau impressiona muitas pessoas como um dos seus mais curiosos elementos. Que autoridade é essa? É a autoridade divina falando em nome de Deus ou dos Deuses e desse modo fazendo o povo pensar que os mesmos decretos originados por Deus a que está submetida a consciência de cada pessoa também são encontrados nas leis do Estado. 53 FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. p. 100. 54 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII, p. 58. 55 Ibidem.
30
nacional e isso é definitivo, e segundo Rousseau essa é a base do politeísmo,
as divisões nacionais, jurídicas e religiosas:
(...) Não poderiam reconhecer por muito tempo um mesmo senhor; dois exércitos, batalhando não poderiam obedecer ao mesmo chefe. Eis como das divisões nacionais resultou o politeísmo, e daí, a intolerância teológica e civil que naturalmente [nos povos antigos56] é a mesma57(...)
Rousseau reconhece que o politeísmo antigo tem a sua origem não em
convicções religiosas, mas na nacionalização da religião58, na vida dada a um
contexto que é valido para esse território e que significa traição em outro. Logo,
falar em entidades divinas nessa forma de pensamento é autoafirmar-se sobre
outros povos.
Ora, mas do que se trata essa intolerância civil e religiosa à qual
Rousseau se refere? A intolerância civil e religiosa à qual nosso autor faz
alusão não se trata de uma intolerância religiosa, mas de uma intolerância
civil.59
A ação de conquista nesses territórios era também uma ação de
submissão religiosa. Logo guerras de religião não possuem aqui nenhum
sentido, pois os embates não se tratam de trazer à tona batalhas teológicas,
mas a teologia é em sua essência, nesse contexto, a política:
(...) Pois cada Estado, tendo tanto seu culto, quanto seu governo próprio, de modo algum distinguia seus deuses de suas leis. A guerra política era também teológica, a jurisdição dos deuses fica por assim dizer, fixada pelos limites das nações60
O que fica claro nesse momento para Rousseau é que a experiência
pagã do sagrado na antiguidade não produziu um efeito nefasto que está
56 Grifo nosso. 57 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138. 58 Não que as relações pessoais de cada humano com a figura do divino, não encontra nenhum espaço no contexto trabalhado. Sabemos que a religião só ganha força quando consegue ligar o que esta aqui nessa estrutura mundana e o que está em um mundo ainda por vir. Logo, a nacionalização das antigas religiões passa também por critérios metafísicos, mas não só, ela depende, sobretudo, da identificação da religião e sua bagagem espiritual, com as Leis do Estado. 59 Intolerância nesse quadro não está associada com a incapacidade dos Estados cristãos de aceitar facções diferentes do grupo majoritário que está associado ao Estado. Não se trata de não tolerar uma forma diferente de culto, trata-se aqui de um assunto político e não religioso. 60 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138.
31
presente na esperança cristã do poder nas guerras de religião.61 Existe sim
uma intolerância, não de ordem teológica mas civil.
A grande questão deixada aqui é a seguinte: se a religião pagã elimina
aqueles que não a aceitam, no que ela se difere das demais experiências que
observamos ao longo da história humana? Por que as guerras de religião não
estão presentes na perspectiva antiga?
Para Rousseau, mesmo utilizar o termo “guerras de religião” não remete
a um equivalente às guerras de religião proselitistas que a Europa assistiu
entre os séculos XVI e XVII. As guerras não são motivadas por ações isoladas
das relações políticas.
Na resposta de Rousseau, percebe-se a distinção dada por nosso autor
para esclarecer a diferença dos conflitos no paganismo e depois aquilo que por
conseguinte vai aparecer no cristianismo. Por primeiro podemos tomar a não
distinção entre os Estados, os deuses e as leis civis. Logo, ocorre que toda a
manifestação divina estava muito bem delimitada dentro de espaços
geográficos pré-moldados por um povo.
Com a figura da divindade presa a uma autoridade jurídica e a um
espaço territorial, não poderia em nenhum momento acontecer um
enfrentamento sem que esse enfrentamento dos povos passasse a ser também
um enfrentamento de ordem política e militar, não poderia ficar retido em um
mero enfrentamento militar. Os deuses estavam em um espaço geográfico bem
definido, bem estruturado, não havia necessidade de inveja, pois cada um
possuía o seu espaço: “Os deuses dos pagãos não eram de modo algum
invejosos; dividiam entre si o império do mundo”.62
Na antiguidade a religião não é somente a fonte de encontro espiritual
dos homens, não é apenas o local em que o espírito deve desprender-se do
corpo para uma experiência mítica, e também a religião não representa a fonte
61 As rivalidades entre a Reforma e a Contra-Reforma, assim como entre os próprios reformistas, provocaram numerosas guerras na Europa entre 1550 e 1659. As mais importantes ocorreram nos principados germânicos, onde a influência do luteranismo político era notória. O principal conflito aconteceu no Sacro Império, sob o comando Habsburgo, no início do século XVII. Apesar de a Paz de Augsburgo ter determinado a separação entre católicos e protestantes alemães, as tensões entre os dois grupos continuavam. A nobreza aproveitava-se da crise para evitar a centralização e unificação política imperial, contudo o conflito entre os Huguenotes, que é a denominação dada aos protestantes franceses (quase sempre calvinistas) pelos seus inimigos nos séculos XVI e XVII, e os católicos, tiveram grande recpercurssão no Estado Francês. 62 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 144.
32
ou o caminho meramente para um “reino dos céus”. A religião na antiguidade, a
partir da leitura de Rousseau é a um fato muito importante para a coesão de
uma sociedade.63 O que ocorre nesses modelos de Estado é que não existe
uma separação entre religião, política e território: “Pois cada Estado, tendo
tanto o culto quanto seu governo próprio, de modo algum distinguia seus
deuses de suas leis. A guerra política era também teológica”,64 pois teologia
nas antigas relações é política, concreta e não metafísica.65
Portanto, não há no Estado antigo uma separação entre a Lei e a
religião66. A força de um Estado está em afirmar-se por completo, de forma
unitária, dentro de seu território, fora dele apenas pela conquista de um outro
povo que automaticamente teria de acolher os deuses provenientes do novo
soberano para assim subsistir sob seu domínio. Afirma Rousseau:
Encontrando-se, pois, cada região ligada unicamente às leis do Estado que as prescrevia, absolutamente não havia maneira de converter um povo senão dominando-o, nem outros missionários que não os conquistadores (...)67
Não se trata aqui, segundo Rousseau, de afirmar um deus e seu aparato
cerimonial sobre outro deus, mas de uma afirmação sobre o corpo legal de
uma sociedade. O problema não é e nunca foi, na antiguidade, teológico, mas
nacional e legal: a aceitação de um contexto religioso significa aceitação do
poder de um Estado e não meramente de uma religião.
As guerras internas não eram uma realidade do paganismo, já que as
leis que valiam para todo membro daquela sociedade eram feitas a partir de um
princípio religioso sacro. Para sobreviver naquele Estado, seria necessário,
dentre outras coisas, assumir o contexto religioso, ou na recusa dessa
possibilidade, ser considerado um rebelde.
63 “A religião é útil e até mesmo necessária aos povos. Isso não está dito e sustentado por escrito”. In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. Segundo, Pierre Burgelin, a religião segundo Rousseau é uma forma válida de sustentar a coesão social, tanto recorrendo as suas ações de comunhão, como a utilizando para pacificar as partes em meio a um conflito. 64 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, P. 138. 65 A guerra política é também teológica, esse movimento aqui deve ser mais bem explicitado. Não significa aqui que a guerra teológica segundo Rousseau, não é uma guerra de argumentos metafísicos, sobre a natureza da divindade, sobre vida futura, mas um debate sobre a origem a natureza do poder naquele Estado. In: DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, p. 34. 66 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 161. 67 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.
33
É justamente essa rebeldia que Rousseau localiza no exemplo judeu.
Segundo nosso autor as perseguições ao povo judeu se deram muito mais por
sua intransigência política na aceitação dos deuses estrangeiros e a sua lei, do
que em questões que trazem à tona a motivação religiosa. É sobre essa
identificação entre o povo judeu e suas leis político-religiosas e o seu território
que trataremos a seguir.
1.3.1 Religião, política e território: o exemplo ju deu.
Rousseau cita o exemplo do domínio dos babilônicos sobre o povo
Hebreu68. Os judeus naquele momento constituíam um exemplo semelhante
aos povos pagãos, mesmo sob a crença em um Deus único69 o que ainda não
havia se configurado como um monoteísmo de caráter rígido70, pois os judeus
ainda reconheciam a existência de outros deuses que não o deles, mesmo que
68 O Exílio, que aconteceu no século VI aC, foi fruto da expansão territorial imperialista da Babilônia, mas antes da Babilônia convém fazer colocações sobre a Assíria. Judá já havia se livrado da destruição Assíria por volta do ano 701, ficando somente sob o estado de vassalagem, o que aconteceu devida uma política interna estável e boas relações externas. Já no período próximo à invasão babilônica, a situação política de Judá estava um tanto instável. No século VII aC., Manassés tinha imprimido um regime opressor ao povo (2Rs 21, 1-18;21-16). Após a sua morte, o seu sucessor é assassinado por seus ministros ( 2Rs 19 – 26), o que causa grande tensão interna e proporcionará a intervenção do povo da terra, ou seja, os chamados Judaítas, que entronam uma criança de oito anos, Josias. Isso implica o “povo” no poder. Josias instala uma reforma que visa a atender parte das reivindicações do povo da terra, contudo acontece nessa reforma uma centralização do culto e investidas militares, que desembocou na vitória dos egípcios em 609 aC. Nessa época Josias é morto, e os Javistas voltam a proclamar um rei, dessa vez é Jeocaz, que ocupou o trono por três meses, foi deposto pelo Egito (Jr 22, 10-12), que impõe Joaquim como rei, iniciando mais um período de opressão para o povo de Judá, exploração tributária e repressão, até sua morte em 598aC. Seu filho Joaquim é quem colherá o fruto de sua política externa e aparente diplomacia. Joaquim vai investir em uma política contra a Babilônia , o que vai ressaltar na ação Babilônica para evitar avanços do Egito, em 597 ac Jerusalém é desmilitarizada e cerca de 10 mil pessoas são deportadas (2Rs 24, 14-16). Por volta de dez anos depois Zedequias é o líder político imposto e que vai se rebelar contra os Babilônicos, resultando na destruição e desurbanização de Judá em 587 e conseqüentemente o segundo exílio, mas ao que indica Jeremias (52,30) aconteceu outro exílio em 582, chegando a somar 15 mil pessoas de Jerusalém na Babilônia. In: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006 69 Surgido da religião mosaica, o judaísmo, apesar de suas ramificações, defende um conjunto de doutrinas que o distingue de outras religiões: a crença monoteísta em YHWH (às vezes chamado Adonai ("Meu Senhor"), ou ainda HaShem ("O Nome") como criador e Deus e a eleição de Israel como povo escolhido para receber a revelação da Torá que seriam os mandamentos deste Deus. Dentro da visão judaica do mundo, Deus é um criador ativo no universo e que influencia a sociedade humana, na qual o judeu é aquele que pertence a uma linhagem com um pacto eterno com este Deus. Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006. 70 Dentro das três religiões que descendem de Abraão, o Judaísmo e o Islã, qualificam a imagem de Deus como único, e indivisível, Deus é absoluto, simplesmente É. O cristianismo, porém, tem em sua relação com o Deus de Israel, uma diferença com relação ao Islã e ao Judaísmo, reconhece na figura de Deus um monoteísmo trinitário, ou seja, Deus é Deus, mas também é Filho (o Cristo) e Espírito Santo. São três sem deixar de ser um.
34
esses outros deuses fossem inferiores ao Deus judeu71, como o livro do Êxodo
expõe: “Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses; porque na
coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou”.72
Ora, os judeus, mesmo configurados como monoteístas, na visão de
Rousseau, representavam de forma clara e absoluta a união entre o poder
espiritual e secular73. Moisés é o grande representante dessa aliança, firmada
não somente entre homens para com homens, mas há uma sacralização da
ideia de poder, tornado-o assim absoluto, pois desobedecer a um dos dois
lados consequentemente é declarar guerra à unidade da sociedade74.
A relação estabelecida por Moisés segue a ordem clássica da
antiguidade. Após a fuga do Egito75, Moisés sente a necessidade de fundar
uma nova ordem e identidade para aquele povo. O que ocorre é que durante o
domínio dos egípcios os Hebreus tinham como ponto de referência a
identidade e a autoridade do Faraó, que não só falava em nome dos deuses,
mas ele mesmo era referenciado como um deus. O Faraó unia em seu cetro as
duas referências, política e religiosa. A lei, a política e a religião no Egito
seguiam o mesmo padrão: não reconhecer essa unidade era um ato de
rebeldia.
Como os hebreus estavam sob o domínio dos egípcios, sua identidade
enquanto povo estava atrelada a eles e a sua unidade política e religiosa,
também. No momento da fuga, liderada por Moisés, a coisa muda de figura.
Longe da unidade do Faraó, quem agora de fato representa a unidade é
Moisés. Moisés possui uma sublime percepção como Legislador; entende que
se não reunificasse o processo entre política e religião, sobre a retomada de
um território, perderia o poder. Ao perceber que sua autoridade junto ao povo
estava ameaçada, recorre imediatamente à unificação entre o que é divino e o
que é humano, como cita Rousseau:
71 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138. 72 Cf: Êxodo 18:11. 73 Cf. PACKER, J. I. TENNEY, M. G. WHITE, JR. W. O mundo do antigo testamento. São Paulo: Vida. p. 78. 74 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 138. 75 Os Judeus foram levados cativos para o Egito por volta de 1700 a.C, o povo judeu migra para o Egito, porém são escravizados pelos faraós por aproximadamente 400 anos. A libertação do povo judeu ocorre por volta de 1300 a.C. A fuga do Egito foi comandada por Moisés, que recebe as tábuas dos Dez Mandamentos no monte Sinai. Durante 40 anos ficam peregrinando pelo deserto, até receber um sinal de Deus para voltarem para a terra prometida, Canaã. Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006.
35
Desse modo, pois, o Legislador, não podendo empregar nem a força nem o raciocínio, recorre necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer76
Desse modo, Moisés recorre ao mesmo raciocínio usado pelos egípcios,
e uniu sobre si a autoridade política de seu povo, com a força religiosa,
promulgando o decálogo77. As tábuas da Lei, na visão de Rousseau, não
constituem um mero evento de ordem religiosa, mas dão ao Legislador
autoridade política divina, pois ele exercerá o poder em nome de Deus, e
assumir Deus é sem dúvida alguma assumir a sua Lei:
O Legislador age como se fosse um emissário divino ou um deus feito homem, mas na verdade é a razão encarnada e sua atividade é puramente racional. Individualidade encarnada e sua atividade é um simulacro da divindade (...)78
Os judeus, mesmo monoteístas, configuravam em sua estrutura uma
religião nacional, não separavam a ideia de um código civil, (as tábuas da Lei)
de um código religioso (a torá). As duas coisas são uma e mesma coisa, a lei
para o judeu vale não somente para o templo, mas para a sociedade como um
todo:
Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo”79
Ora, os judeus tinham uma unidade em sua sociedade, e uma unidade
densa que mesmo diante de vários exílios, conseguiu manter-se longe das
tentações de miscigenação das raças. Isso explica, segundo Rousseau, alguns
motivos para as perseguições sofridas durante a sua história. Aqui vamos
seguir o raciocínio de Rousseau com relação ao exílio na Babilônia.
A religião é, portanto, a identidade de um povo, a representação do
poder divino em formas humanas; assumir uma religião nacional é assumir um
76 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII. p. 59. 77 Cf: Êxodo 20:2-17. É repetido novamente em Deuteronômio 5:6-21, usando palavras similares. 78 FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. p. 100. 79 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169.
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Estado e colocar o seu deus à frente dessas bandeiras. A guerra entre os
povos era um conflito de guerra político-teológica80, perder a guerra era
obrigar-se a assumir a religião dos vencedores, pois assim seria configurada a
sua relação de obediência à autoridade dos conquistadores.
Logo, afirma Rousseau “(...) a obrigação de mudar de culto era a lei dos
vencidos, necessário se faz por vencer [um povo81] antes de falar nisso”.82 Ora
o domínio político e territorial demarcava a introdução de uma nova ordem
sustentada pela tríade política, religião e território; os dominados haviam de
encarar a sua existência não mais como uma realidade apenas de seus limites,
mas no momento em que eram anexados por algo maior, sua Tríade havia de
ser abandonada e deveriam assumir a relação de poder advinda do dominador.
O que ocorre nessa experiência é que no momento da conquista de um
povo por outro, o que estava em jogo não era meramente a imposição de uma
crença religiosa, mas a manutenção da ordem do corpo político. Assumir os
novos deuses é, de forma clara e categórica, assumir as novas leis, pacificar o
ambiente e estabelecer a manutenção do Estado.
O conflito com os judeus na Babilônia, tomado como exemplo, não fora
representado meramente por um conflito religioso, e Rousseau parece decretar
o destino dos judeus, pois como aconteceu na antiguidade permanece na
época moderna. A perseguição contra os judeus se dá pelo fato de que esse
povo recusa-se a reconhecer a autoridade das leis advindas dos
conquistadores e de seu projeto pacificador. Os judeus não conseguiram
abandonar a Lei e pagaram um alto preço por isso.
Quando, porém, os judeus, submetidos aos reis da Babilônia e em seguida aos da Síria, obstinadamente não quiseram reconhecer nenhum outro Deus além do seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o vencedor, incitou contra eles a perseguição que se encontram na sua história e das quais não se conhece outro exemplo antes do cristianismo83
O ato de desobediência dos judeus a essa situação passa longe de ser
um ato de inspiração religiosa. Recusar uma nova dimensão religiosa no caso
80 Isso indica que o objetivo do conquistador não estava centrado somente na imposição de sua dimensão religiosa, via um proselitismo, mas a conquista era também política e territorial. 81 Grifo meu. 82 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 140. 83 Ibidem. P. 138 e 139.
37
a dos babilônicos, nada mais seria do que a quebra da unidade social daquele
povo. Aceitar um “novo deus” seria aceitar uma nova lei, que os condenaria à
dissolução ou à incorporação completa por parte daquele Estado. Logo, o
conflito entre os judeus e os povos que os submeteram não é propriamente um
conflito de religião, destaca Rousseau, afinal, não se trata aqui de um embate
entre duas confissões de um mesmo credo, ou de um embate proselitista, mas
há uma crise com relação à tríade religião, política e território. Não se tratava
de desobedecer ao Rei meramente, mas parece aqui configurar uma espécie
de insubordinação clássica, uma desobediência civil, visto que o Rei e a
religião se equivalem.84
Contudo, a experiência judaica com relação ao território é clara e
objetiva: quando se reconhece a unidade dentro do Estado, não existem dois
senhores, mas um somente.
O efeito desse modelo de intolerância religiosa politicamente apresenta-
se, com o passar do tempo, como um grande complicador. Se conquistar um
povo é também submetê-lo às leis e a religião do conquistador, isso já nos
alerta que essa relação não será de modo algum de fácil identidade.
Os povos conquistados possuíam uma identificação territorial, religiosa e
política, e mesmo sendo afastados de seu território, como é o caso dos judeus,
a unidade política e religiosa, os mantinha vivos na esperança de reconquistar
o seu território e ali prosseguir com o culto ao seu deus e a sua regulação
política e social.
Submeter política e religiosamente um povo conquistado apresentou-se
ao longo da história como um grande problema. Se dois deuses não podem
coexistir por tratar-se de religiões nacionais, um teria que dar lugar ao outro. As
resistências aí eram ferozes, o que provocava um estado de conflito
permanente, afinal o discurso teológico é o discurso político. Isso tornava esse
modelo de religião complexo de ser sustentado quando um Estado possuía
objetivos conquistadores. Rousseau reconhece esse problema:
As religiões nacionais são úteis ao Estado como partes de sua constituição, isso é incontestável, mas elas são nocivas ao gênero humano e mesmo ao Estado, em um outro sentido85
84 Ibidem. 85 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 170.
38
Por conta dessas objeções sobre a pacificação dos povos, observamos
o advento de uma nova forma de religião nacional, o modelo romano.
Os romanos trazem em sua experiência de conquista um ponto de referência
novo com relação aos demais povos antigos, até mesmo os gregos. Ao
contrário dos gregos, os romanos não reconheciam nos deuses estrangeiros
semelhanças entre os seus deuses e os deles, muito pelo contrario, os
romanos usavam de uma espécie de diplomacia para com esses deuses, os
convidando a fazer parte de seus inúmeros espaços territoriais. Este será o
tema abordado a seguir.
1.4. A experiência romana como religião nacional
Para entender a modificação na relação dos romanos entre a religião e o
Estado, voltaremos a Fustel, para nos apresentar a base dessa transformação.
Em sua análise da formação dos estados greco romanos e de sua inseparável
fusão com a religião, Fustel destaca alguns pontos fundamentais. Citaremos
aqui dois desses pontos.
O primeiro é que para os romanos e os gregos o processo religioso que
resulta na formação do Estado parece seguir a mesma ordem. Antes da
religião se configurar como uma religião de Estado, ela nada mais era do que
uma religião doméstica, um culto particular destinado a membros daquela
família.
Uma vez que há a expansão das relações entre as tribos, e o seu
aumento populacional, gera-se um grande problema com relação aos cultos: a
quem agora se deve obedecer em matéria divina, uma vez que as relações
incestuosas foram proibidas86. Seria necessário buscar em outros clãs os
parceiros para a constituição das famílias. Como cada agrupamento possui um
deus doméstico e um culto, o seu fogo permanece sempre aceso dentro dos
seus lares. O conflito seria iminente entre os deuses, não seria possível cultuar
um sem abandonar o outro.
86 COULANGES. F. A cidade antiga. São Paulo: EDAMERIS, 1961. P. 55 e 56.
39
O segundo ponto é a ideia de um Deus comum entre os grupos87, sem
que com isso fossem obrigados a abandonar os seus deuses domésticos,
pacificou os conflitos no Estado e deu a esses grupos um ponto referencial de
unidade. A religião agora passou da ordem doméstica para a ordem pública,
ganhou corpo enquanto religião da cidade.
Lembra Fustel que quando se refere às cidades antigas não se pode
considerá-las como as cidades modernas. Elas não eram construídas através
de argumentos que vão se formando através dos séculos, mas eram formadas
em uma única vez, com um único objetivo. Trazer os deuses da esfera
doméstica para a esfera pública deu aos homens um novo alento para suas
relações com o Estado. O politeísmo para Fustel se estabelece, pois está
fundado entre o culto particular e o culto comum.
Porém, a necessidade dos romanos de modificar a sua relação com
essa estrutura, veio com a nova noção do que seria território. Território, como
fora dissertado, era o ponto de encontro entre os deuses e os homens, lugar do
relacionamento entre eles, lugar onde a sua condução civil através das leis era
executada por aqueles deuses humanos, que são os soberanos.
No momento da vitória dos romanos sobre Cartago, ao final da terceira
guerra púnica88, defendem alguns autores que há uma mudança com relação à
noção que os romanos possuiam de território e religião.
Após a vitória sobre Cartago, os romanos assumem uma nova postura,
entenderam que a noção de reino havia ficado para trás e se estabelecera uma
nova noção de território, que é a noção de império.
A noção imperial romana não era meramente uma noção de conquista
local, em que se buscava o controle comercial de um povo, mas o controle
territorial era de fundamental importância para a manutenção da pax89 e,
sobretudo, para facilitar o controle da capital do império sobre as suas colônias.
Conquistar território enquanto movimento imperial romano também não
deixou de ser um movimento de submissão, segundo Rousseau, da relação
87 Ibidem, p. 188 e 189. 88 Período entre 264 a.C. e 146 a.C. Ao fim das Guerras Púnicas, Cartago foi totalmente destruída. Cf: MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. 89 A Pax Romana, expressão latina para "a paz romana", é o longo período de relativa paz, gerada pelas armas e pelo autoritarismo, experimentado pelo Império Romano, ou seja, uma paz sustentada pela força da guerra.
40
entre política e religião. A religião romana era imposta aos povos dominados.
Contudo, há uma inovação no politeísmo romano, que é a introdução da
assimilação do culto aos deuses dos conquistados em sua relação oficial de
divindades.
Como fora feito, nos tempos da formação das cidades antigas, a religião
deixou de ser doméstica e passou a ser através da figura dos deuses comuns,
uma religião pública. No momento das conquistas romanas sobre os povos, a
figura deixa de ser a da submissão meramente territorial e imposição da lei e
da religião como fonte de unificação e passa a ser a da cooptação da estrutura
política e religiosa para dentro dos domínios do Estado conquistador.
Durante o avanço do império, os romanos configuraram uma nova forma
de controle e pacificação social. Sabendo das dificuldades encontradas nas
conquistas dos povos antigos quando o assunto era a religião, os romanos
estabeleceram um fortalecimento quase divino da figura do imperador, evento
que veio logo após o domínio de César sobre o império.90 César Augusto, o
imperador, agora era a referência divina. A conquista dos romanos sobre os
outros povos não passava mais por uma eliminação total e completa das
entidades religiosas do povo derrotado, pois era dado aos vencidos a
oportunidade de permanecer em seu culto. Como referência tomaremos o texto
de Maquiavel sobre a primeira década de Tito Lívio:
(...) encontrando um povo indômito e desejando conduzi-lo à obediência civil com as artes da paz, voltou-se para a religião, como coisa todo necessária para se manter uma cidade [ civiltà]; e a constituiu de tal modo que por vários séculos nunca houve tanto temor a Deus quanto naquela república, o que facilitou qualquer empreendimento do senado ou aqueles grandes homens romanos quisessem entregar-se91
Uma vez que se é permitido àquele povo manter a sua crença e a
liberdade para professar aquilo que acredita, será mais fácil para aquele que
conquista pacificar os seus opositores e restaurar seus objetivos escreve
Maquiavel sobre os Romanos:
90 MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. P. 200. 91 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes. p. 48 e 49.
41
Os príncipes duma república ou dum reino, portanto, devem conservar os fundamentos de religião que professa; e, feito isso, ser-lhes á mais fácil manter religiosa e, por conseguinte, boa e unida a sua republica. E todas as coisas que surjam em favor da religião, ainda que possam ser julgadas falsas, devem ser por ele favorecidas e estimuladas; e tanto mais devem fazê-lo quanto mais prudentes e mais conhecedores forem das coisas naturais.92
Ora, mas se um culto proveniente do inimigo fosse aceito como parte da
religião oficial, o que fazer com a sua estrutura jurídica? A quem prestar a
devida obediência? Para os romanos a solução encontrada foi a ideia do
reconhecimento da figura do imperador como o único juiz dos homens e dos
deuses.
O imperador e sua augusta divindade reconfiguraram a medida político-
religiosa do paganismo. O imperador era Roma,93 e uma vez prestado esse
juramento todas as religiões seriam aceitas, o culto seria liberado para ser
praticado e na maioria das vezes era assimilado o deus (ou deuses) daquele
povo como parte oficial do culto romano:
Houve muitos desses milagres em Roma; conta-se, por exemplo, que, quando soldados romanos saqueavam Veios, alguns deles entraram no templo de Juno e, aproximando-se da imagem, perguntaram: “ Vis venire Romam? A alguns pareceu que ela fizesse um aceno afirmativo, a outros, que diziam sim. Porque, sendo aqueles homens cheios de religião (o que Tito Livio demonstra, porque entraram no templo sem tumulto, todos devotos e reverentes), pareceu-lhes ouvir a resposta que houvessem pressuposto para sua pergunta: opinião e credulidade que foram favorecidos e estimulados por Camilo e por outros príncipes da cidade(...)94
Como no paganismo romano subsistiam variadas entidades dentro de
seu contexto, o que de maior importância representava é que a relação
prescrita entre o divino e o humano não era matéria fundamental para os
romanos. Qualquer religião seria bem vinda, desde que os seus membros
estivessem dispostos a reconhecer o poder divino dado ao imperador, que no
fundo representava a relação de todos os deuses, tanto romanos quanto
pagãos, com os homens. Não havia problema algum em absorver os deuses
dos vencidos. Na medida em que o império avançou, também houve um
92 Ibidem. p. 52. 93 MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. p. 205. 94 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes. p. 54.
42
avanço na relação entre os deuses dos vencidos e dos vencedores. Os
romanos estabeleceram tantos deuses quanto foram as suas conquistas.95
Os romanos, com sua tolerância religiosa e política, deram a
possibilidade para que diversas modalidades de figuras divinas existissem, e é
justamente nesse contexto, afirma Rousseau, que o cristianismo se apresenta
ainda pequeno no mundo.
A relação entre o poder político e o religioso seguiu ainda um padrão de
unidade com os romanos, mesmo que já apresentando uma certa variação com
relação aos demais povos da antiguidade. O grande problema encontrado
nessa modalidade de paganismo, segundo Rousseau, é que todos os tipos de
deuses foram aceitos, inclusive o Deus de Israel, agora não mais em sua
versão meramente judaica, mas já com uma variação. Jesus agora começa a
despontar como figura política, que modificaria para sempre o movimento
religioso.
Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual; separando, de tal sorte, o sistema teológico do político, fez com que os Estado deixasse de ser uno.96
Antes de entrarmos no debate sobre como o cristianismo remodelou as
relações religiosas e políticas, reafirmaremos alguns conceitos.
Na primeira das nove Cartas Escritas da Montanha, Rousseau ressalta a
que se destina a sua avaliação sobre as relações religiosas. Elas não passam
por uma relação dogmática ou teológica, primeiro porque isso já havia sido feito
de forma exaustiva por quase todos os autores clássicos que tinham vivido até
aquele momento: dentre eles Santo Agostinho, São Tomas de Aquino, e
outros. A discussão de Rousseau segue por uma linha em que o que mais
importa analisar é como as instituições religiosas podem estar juntas ao
Estado:
O capítulo de que falo está destinado, como se vê pelo título, a examinar como as instituições religiosas podem entrar na constituição do Estado. Assim, não se trata ali e considerar as religiões como verdadeiras ou falsas, nem mesmo como boas ou más nelas
95 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139. 96 Ibidem,
43
mesmas, mas unicamente considerá-las por suas relações com os corpos políticos e como partes das legislações97
Logo, o que temos aqui não é um Rousseau que vai discutir as relações
entre política e religião a partir dos dogmas que cada estrutura religiosa
carrega, e nem de disparar um julgamento sobre a história das religiões, e tão
pouco nas dimensões religiosas para determinar se são verdadeiras ou falsas,
mas um Rousseau que tenta entender as implicações políticas da religião,
sobretudo, do cristianismo.
Ainda na primeira Carta Escrita da Montanha, Rousseau retoma as
ideias expressas no Emilio. O que é a religião enquanto parte do Estado para
Rousseau?
Distingo na religião duas partes, além da forma de culto que não passa de cerimonial. Essas duas são os dogmas e a moral. Divido ainda os dogmas em duas partes, a saber, aquela que estabelecendo os princípios de nossos deveres, serve de base à moral e aquela que, puramente restrita à fé, contem apenas dogmas especulativos98
A temática trabalhada no Emilio busca entender a educação do homem
e do cidadão, desligando-o da tutela dos poderes eclesiais99. Ora, Rousseau
questiona, a ingerência do poder religioso na formação dos homens, tanto
enquanto homens como cidadãos, e questiona a validade dos pilares do
cristianismo institucionalizado da época: as superstições e os dogmas. “Uma
das comodidades do cristianismo moderno é ter criado para si um certo jargão
de palavras desprovidas de ideias, com as quais se satisfaz tudo, menos a
razão”.100
A religião para Rousseau, enquanto movimento cerimonial mostra-se
como algo vazio,101 sem nenhuma conexão entre o interior e o exterior do
indivíduo.102 O grande problema está em definir religião enquanto movimento
97 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 98 Ibidem, p. 156. 99 Cf. BURGELIN, P. La philosophie de l’ existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Moderns. P. 537. 100 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.60. 101 Pois não expressa uma relação válida entre o coração humano e o rito executado. 102 Segue-se o rito mas não se sente o rito.
44
fundamental da moral, sem nenhuma regulação; esse precedente torna-se algo
extremante perigoso se não sofrer a devida regulação do Estado:
Quanto à parte da religião que concerne à moral, quer dizer, à justiça, ao bem público, à obediência às leis naturais e positivas, às virtudes sociais e a todos os deveres do homem e do cidadão, cabe ao governo conhecê-lo. Apenas nesse ponto a religião entra diretamente sob sua jurisdição e ele deve banir, não o erro, do qual não é o juiz, mas toda opinião nociva que tende a romper o liame social103
Ora, segundo Rousseau a religião não é nociva, enquanto movimento de
foro intimo104, contudo, torna-se perigosa quando reguladora dos atos em
sociedade.105 Por conta desse motivo é dever do estado conhecer as
regulações morais advindas do poder religioso. A não regulação desses atos
pode acarretar o estabelecimento de um movimento de intolerância com
relação àqueles que não se enquadram nas suas propostas cerimoniais e de
regulação moral diferente dos demais.
E é justamente no movimento de não regulação das relações entre
religião que o cristianismo entra em cena, não somente como um instituição
que se beneficiou da permissividade de culto, mas que não deixou de fazer
uso dela a seu favor.106
Afirma Rousseau:
Tendo, por fim, os romanos estendido, com seu império, o seu culto e seus deuses, e tendo freqüentemente eles mesmos adotado os dos vencidos concedendo a eles o direito de polis, os povos desse vasto império passaram sem sentir a contar com uma multidão de deuses e de cultos, quase que os mesmos e, todos os lugares, e assim, o paganismo foi finalmente conhecido no mundo como única e mesma religião107(...).
E segue Rousseau no Contrato:
(...) Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual; separado, de tal sorte, o sistema teológico de político108(...)
103 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 104 Ibidem. p. 156. 105 Ibidem. 106 Cf. MONTANELLI. INDRO. História de Roma - Da Fundação à Queda do Império. Lisboa: Edições 70. 2007. 107 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139 108 Ibidem.
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As antigas religiões tiveram sua grande identidade estatal por fundir
território, política e religião em uma relação simbiótica. Uma não poderia existir
separada da outra. Por conta dessa questão, um povo não poderia jamais falar
em catequese sobre outro, pois não seria possível vigorar um sistema religioso
sem que o sistema político o acompanhasse. Não se poderia prever que o deus
Baal dos Fenícios poderia viver em um Estado Judeu, sem contrapor as leis
desse Estado, muito menos subsistir em uma república federativa que subsiste
em nossos tempos.
A modificação na forma estrutural da relação entre política e religião,
provocada pelos romanos, deu a matéria e a forma, para que um novo
referencial político pudesse se estabelecer. Esse referencial novo, que é uma
alusão à estrutura político religiosa, é a religião cristã.109 Como a sua relação
entre o reino dos céus e o reino da terra modificou para sempre a história das
sociedades será o tópico tratado no próximo capítulo.
109 A compreensão de religião cristã destacada por Rousseau nos parece estar ligado ao caráter instucional do cristianismo e não a religião professada pelo evangelho.
46
2 “Os vigários do deus político”
Então, aqueles que quiseram fazer do cristianismo uma religião nacional e introduzi-lo como parte constitutiva do sistema de legislação cometeram, dessa forma duas faltas perniciosas, uma contra a religião outra contra o Estado.110
Assim, Jean-Jacques Rousseau define a relação entre o cristianismo e o
Estado, como substâncias heterogêneas, que não podem de forma alguma
estabelecer um princípio de união sem que com isso uma das duas seja
corrompida ou enfraquecida, logo, peca-se contra os dois lados.
Como já apresentado, nas antigas religiões, e aqui para tratar com mais
exatidão aquelas nas quais o paganismo estabelece um estreito laço entre
religião, política e território, entende-se que há um diferencial nessa relação
quando se refere ao cristianismo, e a sua configuração como instituição de
poder político. O que Rousseau deixou claro na primeira parte de sua
exposição sobre a religião civil é que nas antigas religiões não há uma
separação entre o poder religioso e o político, os deuses e os homens
misturam-se no exercício da autoridade sobre os homens, suas leis e suas
instituições assumem ao mesmo tempo um caráter humano e divino.
Um grande motor nessa relação é a noção de território. O território é,
nessa relação entre política e religião para a unificação, o ponto referencial
para que a relação entre política e religião aconteça. A estrutura religiosa e
legal de um povo cresce identificada com o espaço geográfico no qual aquele
povo está localizado.111 Os deuses são infinitos, são muitos, porém, seguem o
padrão de identificação de seu Estado.112
O grande marco de diferenciação, com relação à política e à religião,
encontra-se no estabelecimento do império romano, enquanto este império
presente em todo o mundo antigo, através de sua política de conquista e
expansão, o que é próprio da noção política de império113. O seu modelo de
paganismo trata-se não mais como um modelo de conquista e imposição do
110 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 111 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 137 112 Ibidem. 113 BOBBIO. NORBERTO. Dicionário de política. São Paulo: Imprensa oficial.
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poder sobre as questões religiosas e políticas, de modo a submeter aquele
povo aos deuses do povo vencedor, mas de uma incorporação dos
movimentos religiosos em seu interior, ou seja, os romanos não estabelecem
um movimento de dissolução das estruturas político religiosas daquele
território, mas estabelecem um novo mapa religioso, no qual aquela situação é
assimilada para dentro do império.
O império romano estabelece, com seu modelo de cooptação, uma
permissividade religiosa e política, típica de seu modelo pagão, que dentre
outras coisas abre as portas para a existência e desenvolvimento de uma nova
dimensão religiosa: o cristianismo.
O cristianismo surge na história, não apenas como um movimento
religioso do antigo Israel que buscava a renovação do judaísmo114, mas
desponta no mundo como uma nova ação no campo das relações entre política
e religião. Trata-se de uma nova forma de ser em sociedade, busca um
desprendimento daquilo que é transitório e passageiro115, leva o homem ao
crer mais na vida que está por vir do que nessa que se faz aqui. O cristianismo,
segundo Rousseau, inaugura a noção de reino dos céus e reino da terra, busca
a relação do homem, com outros e com o sagrado de uma forma separada,
sem nenhum contato entre um ponto e outro.116
Ainda sobre o aprofundamento do pensamento político e religioso de
Rousseau, continuamos tomando como sustentação para a argumentação o
texto do Contrato Social, e nesse segundo capítulo estaremos também
baseados nas “Cartas Escritas da Montanha”.
Como procedimento metodológico e investigativo nesse segundo
capítulo, faremos a análise presente no texto do Contrato, quando trataremos
da “instituição dos vigários do deus político” ou seja, daquele que não é mais
um deus, mas em seu nome governa. Faremos também uma leitura tomando
como base a seguinte ordem: contextualizar as implicações religiosas do
cristianismo enquanto religião oficial; demonstrar como Rousseau se apega a
tese de que o cristianismo não pode se configurar como uma religião nacional,
demonstrar também que o cristianismo rompe a unidade do Estado; e por fim,
114 Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006. 115 Cf: Citação biblicaXX. 116 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 167.
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demonstrar que todo movimento em direção a uma “estatização” do
cristianismo, terminará sempre com a corrupção da política e da própria
religião.
2.1. A quebra da unidade entre política e religião: o reino dos
céus e o reino da terra
A unificação entre política e religião garantiu aos povos antigos a sua
unidade não só territorial, mas também populacional e jurídica. Não se poderia
pensar, em uma estrutura como o paganismo, que as relações legislativas
estivessem de forma alguma separadas das relações religiosas, ou que falar de
um líder político, não significasse falar também de uma entidade divina.
Ora, o mundo agora sob o poder político cristão vai conhecer algo novo
no interior do Estado, a religião cristã, e o seu formato institucional que é a
Igreja, tomada por uma relação política inovadora e por um discurso que em
nada pode ser anulado como altamente pragmático. Está aberto, segundo
Rousseau, o tempo da religião do padre:
Há uma terceira espécie de religião, mais estranha, que, dando ao homem duas legislações, dois chefes, duas pátrias, o submete a deveres contraditórios(...) Pode-se chamar, a esta, religião do padre.117
A religião do padre é, para Rousseau, a religião que provoca a confusão
na capacidade de julgamento das ações do ser em sociedade, enquanto
cidadão e enquanto homem, pois estabelece sobre sua realidade um conflito:
dá a ele dois senhores, um no céu e um na terra, e mais, ela vem “tendendo a
formar mais homens do que cidadãos”.118
Para entender essa questão tomemos o nascimento do cristianismo
enquanto instituição religiosa.
A religião cristã possui o seu início em um movimento político-religioso,
liderado por um Galileu, conhecido como Jesus. No momento do nascimento
do cristianismo, o território de Israel estava ocupado pelos romanos e, com
117 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141. 118 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 172.
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isso, contava com todo o seu aparato militar, jurídico, religioso e, sobretudo,
administrativo.
O império romano deu aos judeus a mesma opção dada às demais
colônias sob seu domínio: aceitar o seu poder e em contrapartida, poderiam
desfrutar de seu culto e de uma certa autonomia administrativa. Segundo
Pierre Pierrard, essa autonomia era constituída por tribunais locais, que
cuidavam da aplicação da lei dos judeus e de fóruns em nível nacional,
administrados pelos romanos, que tinham como objetivo mediar e pacificar os
conflitos não só entre os judeus, mas entre os judeus e os romanos119.
Nesse contexto, segundo Rousseau, Jesus desponta com sua pregação,
anunciando que nesse mundo tudo seria passageiro e que o verdadeiro
tesouro dos homens estaria em um outro mundo que não esse120. Portanto,
pouco importa a quem obedecer e o que construir nesse mundo, se a
verdadeira obediência está não em prestar culto aos homens, mas a Deus, que
em nada é semelhante aos homens, sua grandeza é inalcançável e sua
sapiência é inatingível. Logo, por mais que os homens falem em nome de
Deus, jamais poderão ser como Ele é. Ora, afirma Rousseau, que:“foi nessas
circunstâncias que Jesus veio estabelecer na terra um reino espiritual;
separando, de tal sorte, o sistema teológico do político121”.
Instituir a ideia de um reino espiritual é, na visão de Rousseau, a grande
novidade trazida pelo cristianismo e a grande reviravolta nas relações políticas
institucionais. O reino espiritual, na leitura política feita por Rousseau, não se
trata de um reino metafísico, de aspirações a um mundo para além desse,
trata-se da ruptura entre um antigo sistema de controle social e a introdução de
um novo controle.
Nos antigos sistemas não se falava de um reino espiritual122, de uma
separação entre o que se possuí nesse mundo daquilo que se espera no outro.
A Lei, a política e a religião, eram uma e mesma coisa, estavam dissolvidas na
119 Ibidem. p. 76. 120 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139. 121 Ibidem. 122 Não se trata de afirmar aqui que os antigos não possuíam uma noção de transcendência, ou de prêmio e castigo na qual poderiam possuir uma vida para além dessa, mas sim de configurar que a realização política do homem, ou seja, sua plenificação nas relações com outros homens não poderiam se estabelecer fora dessa realidade, afinal, essa realidade nada mais era do que uma cópia da outra que viria.
50
autoridade de um deus ou de vários, e esse deus transcendente esta presente
em sua versão terrena, o divino governante.
O cristianismo, desde a sua origem, buscou uma ruptura com esse
quadro, por ser uma religião derivada do monoteísmo judaico, trabalhou para a
afirmação da sua verdade como única aos homens e às sociedades. Contudo,
para o reconhecimento do cristianismo como verdade seria necessário o seu
estabelecimento como uma instituição universal, impedindo assim a sua
formulação como uma religião de Estado. Ser cristão não é pertencer a um
Estado mas ser cidadão do céu123. Gradualmente o cristianismo vai eliminando
de seu interior a ideia de território:
O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu, não pertencendo a pátria do cristão a este mundo124
O Deus cristão passa a ser entendido como único e verdadeiro, não
apenas em seu território restrito, como era de costume nos povos antigos, mas
o Deus cristão é “invejoso” impõe-se como presença em todos os territórios,
como Senhor de todos os povos:
O que os pagãos temiam aconteceu e, então tudo mudou de aspecto. Os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo tornar-se neste, sob um chefe visível, o mais violente despotismo125
E continua Rousseau:
Inúmeros povos, no entanto, mesmo na Europa ou nas vizinhança, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, sem obter sucesso. O espírito do cristianismo tomou conta de tudo126
A visão de que o Deus cristão é o único e verdadeiro Deus dá aos
homens a noção de que a religião que lhe presta culto pode ser configurada
também como única e verdadeira127 e deve se impor sobre todos os povos que
não a professam, não mais sob um controle militar que lhe impunha uma ordem
123 Cf. Romanos 8: 18-22. 124 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 125 Ibidem. 126 Ibidem, p.139. 127 ARAUJO. WAGNER C. Pierre Bayle: Fé e paradoxo uma voz em busca da tolerância.
51
religiosa e política do povo vencedor, mas através do convencimento prosélito
de que todos os povos são um; pouco importa o Estado a quem se serve, o
que importa nesse momento é assumir o verdadeiro Deus.128 Rousseau afirma
que a partir do momento que o Estado deixou de ser uno, a paz nunca mais se
fez presente nos povos cristãos.129 Nas Cartas da Montanha Rousseau isso
transparece de forma mais clara:
Seu Autor divino, abraçando igualmente a todos os homens na sua caridade sem limites, veio levantar as barreiras que separavam as nações e reunir todo o gênero humano em um povo de irmãos130
O advento do sistema religioso cristão rompeu com a unidade antiga,
estabelecendo o reino espiritual que anula o reino terrestre. Esse estabelecer
do reino espiritual deu aos homens a noção de que estão vivendo em um
mesmo contexto, no caso a sociedade, mas sob duas realidades distintas, pois
estão na terra, mas de modo algum pertencem a ela. A ruptura entre o sistema
político e o teológico se deu no momento em que os homens já não sabiam
mais a quem e o que seguir:
(...) dando ao homem duas legislações, dois chefes(...) o submete a deveres contraditórios e o impede de poder ao mesmo tempo ser devoto e cidadão131
As leis nos povos antigos eram dadas por uma relação direta entre o
deus homem e os deuses para além do homem; a lei era sacra e não valia
apenas para a prática ou a regulação da ação dos homens no íntimo do
contexto religioso, mas ela dava vida à relação dos homens em sociedade. A
lei dos deuses era também a lei civil; o poder dos governantes não era
constituído apenas como um poder temporário e renovável, mas era eterno,
pois marcava uma identificação entre a terra e os deuses.
O sistema teológico era o sistema político e o sistema político era o
sistema teológico, não se podia ver separação entre um e outro: “(...)A guerra
política era também teológica, a jurisdição dos deuses ficava, por assim dizer,
fixada pelos limites das nações”.
128 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 129 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 130 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 169. 131 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141.
52
O reino espiritual cristão estabelece um reino teológico e um reino
político que inaugura duas realidades distintas, ou seja, leva o humano a uma
outra realidade, que não essa. O reino teológico dita os passos concretos para
que cada homem atinja o objetivo último que é a sua salvação. Esse reino é
sustentado por estruturas que são compostas por verdades reveladas e
inquestionáveis, são dogmas de fé, para a formação de um homem para além
do homem.
Esse sistema teológico defende a universalidade da salvação a todos os
povos, afirma o poder do seu Deus sobre todos os povos, mas nada diz dos
sistemas políticos que os homens que professam essa religião devem seguir,
apenas defende, com fé que o reino de Deus não é desse mundo.132
Dizer que o reino de Deus não é desse mundo, segundo Rousseau, é
afirmar que, independentemente dos sistemas seculares de poder, eles nada
podem a não ser tentar assemelhar o reino desse mundo às leis divinas, mas
sempre de forma imperfeita, e que um reino é sempre superior a outro: “(...)O
culto sagrado sempre permaneceu ou tornou-se independente do soberano e
sem ligação necessária com o corpo do Estado133. No caso, o espiritual terá a
prerrogativa de se sobrepor a esse reino terreno, pois congrega as perfeições
da divindade.
Não há interação entre os laços políticos e religiosos, não quando o
assunto é o modelo antigo de relação entre política e religião, e a sua extensa
unidade com o seu território.
Essa separação feita pelo cristianismo entre o sistema político e o
teológico abriu uma crise, tanto em sua relação com os romanos, quanto em
sua relação com o paganismo como um todo, pois havia entre esses povos
uma impossibilidade de aceitação de um reino de outro mundo.134 Daí a
justificativa da perseguição estabelecida pelos povos pagãos aos cristãos.135
Rousseau afirma que a perseguição contra os cristãos, tal qual a que
ocorreu com os judeus, salvo suas motivações, não ocorreu por um problema
gerado pela crença religiosa especificamente. Não se tratava de querer impor
aos cristãos um contexto religioso que fosse diferente do seu, afinal, a prática
132 Cf. Jo 18: 36. 133 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 134 Ibidem. 135 Ibidem.
53
romana de conquista, já havia introduzido a ideia de conquista sem que para
isso fosse necessária uma assimilação, total, política e religiosa daquele povo.
O que era intolerável nos cristãos naquele momento era a sua
incapacidade de aceitar a autoridade do imperador como divina, ou melhor,
aceitar que o próprio imperador representava uma figura divina. Paulo Apóstolo
cita de forma clara que “toda autoridade procede de Deus”,136 contudo, Deus
não se encarna no homem que o representa na ação de sua autoridade junto à
nação. Esses governantes de qualquer espécie nada mais são do que meros
representantes entre os homens. Sobre esse tema Derathé afirma:
Essa fórmula, sempre mal compreendida, não significa que Deus designa ele mesmo os governantes, mas que uma vez designados por acordos ou arranjos puramente humanos, eles recebem do próprio Deus sua autoridade. Cabe aos homens fixar a forma do governo e de nomear aqueles que serão investidos do direito de governá-los, mas esse direito em si mesmo é de origem divina.(...) A escolha que os designa é puramente humana, mas a autoridade política que eles detêm vem de Deus, como os bispos recebem de Jesus Cristo sua autoridade pastoral.137
A ideia de falar em nome de Deus, sem que com isso tenha que se
aceitar a divindade de quem fala em nome dos deuses, implica que não há
mais uma unificação entre o humano e o divino, o humano está plenamente
subordinado ao divino. Toda autoridade procede de Deus, porém, proceder não
significa ser plenamente em quem a detém, significa uma espécie de
participação no poder, e não a sua concentração plena na figura humana.
Não aceitar a figura do imperador como um ser divino é uma
incredulidade que vai estabelecer sobre os cristãos, o ódio da opinião
pública,138 em uma situação de isolamento em um primeiro momento, o que, no
entender de Rousseau, foi um erro, pois a intervenção do Estado sobre as
ações das instituições religiosas é fundamental para o pleno entendimento de
suas reais intenções: “(...) Cabe ao governo conhecê-la”.139
O motivo de estar em qualquer Estado sem que fosse necessário
pertencer a ele, deu ao cristianismo a noção de que sua missão era muito mais
136 Cf. Rm 13:1,2 137 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34. 138 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. Nota de rodapé nº 485. 139 Ibidem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157.
54
do que a pregação do evangelho de forma despretensiosa. Na leitura de
Rousseau, a forma institucionalizada do cristianismo queria era o controle do
Estado e a sua reformulação.140 A submissão dos cristãos nunca foi sincera a
Estado algum, pois o único reino que estão obrigados a obedecer é o reino dos
céus:141
eles sempre consideraram os cristãos como verdadeiros rebeldes que, por sob uma submissão hipócrita, só esperavam o momento oportuno para se tornarem independentes e senhores, assim usurpando, pela habilidade, a autoridade que fingiam respeitar em sua fraqueza.142
Esse isolamento não produziu um aniquilamento dos cristãos, muito pelo
contrário, os fortaleceu. De fato, os temores dos pagãos de que os cristãos
tinham como real objetivo o controle total e absoluto do Estado se
concretizou.143
O que os povos pagãos temiam se tornou real com a dogmatizarão do
cristianismo; em outras palavras, em sua organização clássica dentro da Igreja
há seu controle central, baseado na autoridade e na hierarquia144, com a
configuração e centralização do poder nas mãos do papa. Segundo Rousseau,
tudo agora mudou de aspecto, “(...)crê estar praticando uma ação salutar a
todos aqueles que não admitem os seus deuses(...)145. O pretenso reino de
outro mundo, puramente espiritual, mudou de figura e se concentrou a existir
140 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 141 Ibidem. 142 Ibidem. 143 Ibidem. 144 Muito foi divulgado, sobretudo, após a terceira reforma com os batistas e anabatistas, que a Igreja primitiva não possuía organização hierárquica, não estava dividida em ministérios( Bispos, presbíteros e Diáconos), afirmando que a ideia de ministério instituído é uma invenção medieval. Esse ideia reforçado por pseudo- históriadores modernos não sustenta quando partimos para a análise dos textos dos primeiro tempos da Igreja, citamos como exemplo Inácio de Antioquia que assim afirma em suas cartas que datam entre 107 e 110 d.C.: “convém caminhar de acordo com o pensamento do vosso bispo, como já o fazeis. Vosso presbitério, de boa reputação, está unido ao bispo (aos Efésios 4.1). ...eu vos felicito por estardes unidos a ele, assim como a Igreja está unida em Jesus Cristo como o Pai (ibid, 5.1). ...devemos olhar ao bispo como ao próprio Senhor (ibid, 3.1). ....por isso vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo (ibid, 6.1). ...uma voz de Deus: permanecei unidos ao bispo, ao presbitério e aos diáconos (aos Filadelfenses 7.1). O que fica constatado é que desde os primeiros movimentos após a separação total entre cristianismo e o judaísmo será marcado pela separação da maneira como a Igreja caminhou sobre a tutela de uma referência institucional. 145 Cf ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 139.
55
nesse mundo, e assim, constitui um novo chefe e uma nova ordem social, na
qual não se deve obedecer por primeiro ao Estado sem que antes se tenha
sido autorizado pelo vigário de Cristo na terra.
Ora, essa obediência a um vigário de Deus, que não é um deus, mas é o
primeiro a agir e a afirmar a autoridade em nome Dele, é sem dúvida algo novo
na história humana. Os homens, antes de possuírem um vigário de Cristo,
possuíam primeiro a terra, e na terra os seus príncipes que concentraram
durante séculos todos os atributos para a manutenção da ordem em uma
determinada sociedade. Agora estamos diante de um conflito de jurisdição: a
quem devemos obedecer? Ao príncipe ou ao vigário de Cristo? Devemos ficar
no reino da terra ou aspirar ao reino dos céus?
É justamente essa confusão que vai abrir nas sociedades o que se
seguiu na história dos povos, pós experiência cristã: a uma conflito perpetuo146
toda a boa politia,147 segundo Rousseau, tornou-se impossível de ser praticada,
pois inviabilizou a relação direta entre, política, religião e território. Esses três
elementos que nos parecem ser o ponto chave da relação unificada dos
estados antigos, agora se apresentam a nós de forma separada, como se não
necessitassem de uma relação entre si.
Assim afirma Rousseau no Contrato:
No entanto, como sempre houve um príncipe e leis civis, resultou dessa dupla posse um conflito perpétuo de jurisdição que tornou toda boa politia impossível nos Estados cristãos e jamais se conseguiu saber se era ao senhor ou ao padre que se estava obrigado a obedecer148
No momento em que essa ruptura no Estado foi percebida, houve sim,
em muitos Estados, uma grande reação contra ela, tentativas de unificar sob
um mesmo cajado a autoridade pacificadora, determinando mais uma vez a
autoridade do Estado e de seus divinos governantes sobre aqueles que lá
estavam. Tentou-se nos Estados cristãos retomar o poder dado aos papas e
aos bispos sobre a autoridade do príncipe, contudo, isso sempre se mostrou
impossível, pois o cristianismo em sua essência demonstra um diferente ponto:
ele não pode ser nacional! 146 Cf. Ibidem. 147 Podemos entender esse conceito como uma boa convivência entre os cidadãos no Estado. 148 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.
56
2.2 A impossibilidade do cristianismo enquanto reli gião
nacional
Inúmeros povos, no entanto, mesmo na Europa ou nas vizinhanças, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, sem obter sucesso. O espírito do cristianismo tomou conta de tudo.149
Segundo Rousseau, a reação por parte dos povos pagãos contra a nova
doutrina trazida pelos cristãos sobre as relações políticas e religiosas foi
grande em um primeiro momento, contudo, quanto mais o cristianismo se
espalhava, fruto de sua ação missionária, mais a concepção de que pouco
importa quem está no poder e que o que importa é submeter-se à lei de Cristo
e de sua Igreja a ideia de que “(...) fora da Igreja não há salvação”150 tomou
conta das ações e dos povos que viviam nos primeiros movimentos após o
édito de Milão.151
Contudo, há no cristianismo um elemento que o diferencia quase que
por completo de todas as outras experiências políticas e religiosas existentes
no mundo antigo. O cristianismo fala sempre de um reino dos céus, de matéria
espiritual, de felicidade eterna, mas ignora o reino da terra enquanto realidade
sob autoridade de um príncipe humano. A autoridade procede, como já foi dito
por Paulo, mas não pertence a esse rei, pois ele está subordinado à autoridade
do evangelho e do magistério da Igreja.152
149 Ibidem. 150 Ibidem, 145. 151 O Édito de Milão (313 d.C.), também referênciado como Édito da Tolerância, declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente do Cristianismo. O édito foi emitido nos nomes do tetrarca ocidental Constantino I, o grande, e Licínio, o tetrarca Oriental. Na primeira metade do edital, estabelece-se o principio da liberdade de religião para todos os cidadãos e, conseqüentemente, reconhece-se explicitamente que também os cristãos gozam desta liberdade. O edito permitia praticar a própria religião não só aos cristãos mas a todos os cultos. Na segunda metade fica estabelecido que seriam devolvidos aos cristãos seus antigos locais de reunião e de culto, assim como outras propriedades, que tinham sido confiscadas pelas autoridades romanas e vendidas a particulares na última perseguição. In: JIMÉNEZ PEDRAJAS, R. “Milán, Edicto de”, in Gran Enciclopedia Rialp vol. XV, Rialp, Madrid (2ª ed.) 1979, pp. 816-817. 152 “A teologia Católica, sustenta o argumento de que a autoridade da Igreja poupa seus fiéis de disputas sem fim sobre o sentido do evangelho. A Igreja é o juiz infalível do sentido das escrituras e das controvérsias que as diferentes explicações do texto sagrado podem provocar entre os cristãos”. In. SILVA, G.F. Rousseau e a fundamentação da moral (tese de doutorado). Campinas, São Paulo. 2004. P. 191.
57
Afirma Rousseau que: “o culto sagrado sempre permaneceu ou tornou-
se independente do soberano e sem ligação necessária com o corpo do
Estado”.153
Os povos antigos estavam relacionados com seus Estados através do
poder exercido pela autoridade política que também configurava a autoridade
religiosa: “pois cada Estado, tendo tanto seu culto quanto seu governo proprio,
de modo algum distinguia seus deuses de suas leis”. As instituições religiosas
estavam presentes na constituição do Estado e eram limitadas por um modelo
geográfico pré-determinado. Os deuses possuíam jurisdições próprias, não
podiam atuar fora de suas jurisdições, pois do outro lado da fronteira havia um
outro deus a atuar por seu povo na defesa de seu território.
Ao território estava identificada a relação entre política e religião, os
deuses ali habitavam com os homens, ali também guerreava com eles, não se
tratava de uma guerra entre dois povos, mas também de uma guerra entre os
deuses. No momento da conquista de um povo sobre outro, não se
conquistavam apenas terras, ou escravos, mas os deuses daquele povo
estavam obrigados a se submeter às relações do Estado vencedor.
Rousseau afirma, nas Cartas Escritas da Montanha, que todas as
antigas religiões, foram nacionais em sua origem:
Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo154
O que Rousseau expõe é a ideia que as religiões faziam parte do
Estado, do aparato jurídico, e de um território delimitado, não havia uma
religião universal, um deus que estivesse presente em todos os povos e
mesmo os judeus, monoteístas enxergavam o seu Deus, maior do que todos os
outros,155 mas, apenas seu, e fiel à terra prometida.
A expansão do cristianismo abre uma nova dimensão nas relações entre
política e religião; ele não é nacional, não pertence a um território, o
cristianismo assume uma forma universalista:
153 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139. 154 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 155 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 139.
58
“O cristianismo é uma religião universal em seu princípio, que nada tem de exclusivo, nada tem de local, nada tem de próprio a tal país mais do que a outro”.156
A afirmação de Rousseau de que o cristianismo nada tem de local,
demonstra a real condição dessa dimensão religiosa. Em sua essência o
cristianismo não poderia tomar uma forma própria em um determinado
território. Afirmar que ele assimila costumes dos povos locais nada tem a ver
com a conclusão que o cristianismo em algum momento se fixou em um
determinado padrão cultural ou em um determinado território.
A ação do cristianismo significa em si uma ação que abraça todos os
povos: aqueles que aqui estão nada têm de diferente com relação àqueles que
estão do outro lado da fronteira de um território, o Deus é o mesmo e a ação
entre eles de amor ao próximo também necessita ser.
Isso torna a relação de autoridade do poder civil frágil; como exigir de
um individuo que lute por seu solo sagrado, se essa noção simplesmente
desapareceu do contexto? Todo solo é sagrado na leitura cristã, pois pertence
ao mesmo Deus. Essa visão enfraquece a engrenagem do Estado, pois
prejudica a ação em tempos de conflito:
O cristianismo, ao contrário, tornando os homens justos, moderados e amigos da paz, é muito vantajoso à sociedade em geral, mas enfraquece a força da engrenagem política, complica os movimentos da máquina, rompe a unidade do corpo moral e, não lhe sendo muito apropriado, deve degenerar ou tornar-se peça estranha e embaraçosa.157
Logo, o cristianismo não é territorial, ele deve ir pelo mundo,
independente do território no qual ele está inserido. A religião cristã, enquanto
religião nacional, apresentada como parte de um sistema jurídico legal do
Estado, não é uma realidade que possa se concretizar, e todas as vezes que
se tentou executar essa manobra de introdução do cristianismo no meio legal,
o desastre foi iminente.158
156 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 157 Ibidem. p. 170. 158 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 169.
59
Não há possibilidade de introdução do cristianismo no sistema nacional,
e a tentativa de transformá-lo em uma religião nacional sempre resultou em um
intenso fracasso159, pois falhou na tentativa de unificar o centro do poder. Os
governantes que tentaram fazer uso do cristianismo, nada mais fizeram,
primeiro por deformar tanto a religião quanto a política: “Então aqueles que
quiserem fazer do cristianismo uma religião nacional e introduzi-lo como parte
constitutiva do sistema de legislação cometeram dessa forma duas faltas
perniciosas(...)”160 e segundo por transformar o cristianismo em um instrumento
tirânico para oprimir as minorias que não se enquadravam dentro do formato
oficial: Ainda é má quando, tornando-se exclusiva e tirânica, transforma um
povo em sanguinário e intolerante161
Dentro de todas as análises clássicas da política, é consenso entre os
especialistas que um império fica cada vez mais difícil de ser comandado na
medida em que expande suas fronteiras administrativas. Quanto mais distante
da capital do império, ou seja, do centro do poder, as mazelas administrativas
despontam, o que torna difícil o controle por parte do centro para com as das
demais colônias a seu favor.
O cristianismo, porém, se configurou como um grande império por todo o
mundo. Não há espaço territorial em que ele não possa estar e região alguma
na qual a sua mensagem não possa chegar. A questão é que o cristianismo,
mesmo enquanto religião universal precisava de uma forma de organização na
qual o centro do poder mantivesse relações diretas com os seus comandados
não importando onde os subordinados estivessem.
O poder universal do cristianismo foi configurado pela invenção de uma
obra-prima da política, a ideia de comunhão e excomunhão.
(...) A comunhão e a excomunhão são pacto social do clero, pacto com o qual será sempre o senhor dos povos e dos reis. Todos os padres, que comungam juntos, são concidadãos, ainda que esteja nos dois extremos do mundo(...)162
159 Ibidem. 160 Ibidem. 161 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 141. 162 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 140. Nota Nº 486.
60
2.2.1. A sustentação do poder político sem a noção de
território: Comunhão e excomunhão
Comunhão e excomunhão na doutrina cristã seja ela de qualquer
vertente, dado que entre os protestantes a idéia de comunhão e excomunhão
também vigora163 é o grande trunfo encontrado pelo sistema de governo cristão
para manter o reino da terra subordinado as coisas do céu. Esse controle se dá
não apenas por uma comunhão tratando-se de reuniões em determinados
locais e de repetições de determinadas fórmulas, mas de uma comunhão que
vai além das fronteiras de um país.
Rousseau chama a atenção de que, quando um padre comunga, ou
seja, celebra os mistérios da fé e reafirma os dogmas essenciais do
cristianismo em um determinado lugar, esse padre de certa maneira estabelece
um vínculo de fé e poder com todos os outros membros da comunidade cristã,
mesmo que essas pessoas estejam a milhares de quilômetros umas das
outras: “(...)São concidadãos, ainda que estejam nos dois extremos do
mundo164.
Logo, não há necessidade de uma relação meramente local para
estabelecer comunhão entre os membros do reino dos céus, mas basta eles
estarem em comunhão com aquilo que foi pré-formulado pelas instituições que
representam esse reino. A comunhão se torna o grande laço entre os povos
nos tempos cristãos, ela não só ganhou uma dimensão religiosa, mas,
sobretudo, assumiu uma forma política: “(...) Essa invenção é uma obra prima
de política. Não havia nada de semelhante entre os padres pagãos(...)165
Comungar no sentido político dado pelo cristianismo significa estar
dentro de um sistema, fazer parte de algo muito maior do que uma simples
relação institucional local. Se comungar significa a porta de entrada para o
reino, tanto o da terra quanto o dos céus, a idéia de excomunhão assume na
história política do cristianismo um local extraordinário.
163 LEONARD, E.G. Histoire générale du protestantisme, t. III. Paris: PUF, 1964, p. 73. 164 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 140. Nota Nº 486. 165 Ibidem.
61
Excomungar alguém, a olhos leigos, parece ser uma ação puramente
religiosa que delibera sobre alguém que não pode participar da comunhão
dominical na missa ou no culto. Essa é uma análise que não leva em
consideração a noção política que esse termo carrega. Estar excomungado do
seio do cristianismo significa não só um desligar do reino dos céus, no qual
todos os que aqui estão serão julgados e enviados a ele, mas um desligar das
relações terrenas.
Um rei que estivesse excomungado pela autoridade religiosa teria todos
os seus atos de conquista dados como nulos e todas as suas ações dadas
como inválidas em seu território166. Observa-se que a autoridade que determina
a excomunhão daquele rei está fora de seu território, em um outro local
qualquer, mas o vínculo a que essa autoridade está ligada é metafísico, e toma
uma forma universal. Um rei, uma vez fora da comunhão com a fé cristã, não
rompe apenas com a autoridade religiosa de Roma, ou de Constantinopla, mas
está fora também de todas as relações com aqueles que professam a fé, tanto
entre os reis de outros povos como entre os seus próprios súditos, pois a
justificação de sua autoridade sobre os mesmos se dava por manter-se em
comunhão com o reino espiritual.
O poder do rei entre os seus súditos é sustentado por um vínculo entre
aquilo que é humano e o que é divino. No cristianismo, a tradição de interligar o
humano e o divino sob a figura da autoridade do papa, que é o vigário de Cristo
na terra foi um grande primado.
Defendem alguns autores que a justificação do poder civil sob a tutela da
comunhão com a fé cristã, se deu de forma oficial na noite de Natal do ano de
800167, quando Carlos Magno foi coroado sacro-imperador.168 Todos os atos do
imperador agora estavam justificados e abonados por sua missão maior, que
era através de suas conquistas levar o reino dos céus aos quatro cantos da
terra.
166 PIERRARD. PIERRE. História da Igreja. São Paulo: Paulus. p.60. 167 No Natal do ano 800, Roma viveu uma invasão pacífica de nobres e guerreiros francos. Na antiga Basílica de São Pedro, onde o papa Leão III celebrou a missa de Natal, se reuniram autoridades eclesiásticas e líderes políticos, entre eles, Carlos – rei dos francos e lombardos, nessa mesma noite, Carlos Magno foi de sagrado como sacro imperador romano. 168 O Sacro Império Romano-Germânico foi à união de territórios da Europa Central durante a Idade Média, sob a autoridade do Sacro Imperador Romano.
62
Logo, trata-se aqui de entender que estar excomungado era agir por si
mesmo, sem carregar sobre seus estandartes a cruz que agora era o símbolo
máximo da ação política.
Mas nessa exposição ainda parece faltar um elemento, que seria pensar
sobre a possibilidade de se fazer com que o controle administrativo se
mantivesse sobre os povos, já que a comunicação entre o centro do poder e as
filiais era mal estruturada.
Segundo Rousseau, o cristianismo estabeleceu algo que entre os povos
pagãos não havia ainda nenhuma referência: a invenção do clero enquanto um
corpo.169 Esse estabelecer do clero enquanto corpo, jurídico e legal, se dá pela
introdução no meio cristão da idéia de hierarquia, copiada do modelo imperial
romano, ou seja, das ordenações às funções clericais.170
Um padre, antes de ser declarado como ministro do reino, tem que
necessariamente passar por um processo de formação, a fim de que entenda
como universalmente o cristianismo está configurado e para que também ele
não venha a romper com essa estrutura. Esse processo dá a alguns a
sensação de que foram eleitos para ocupar determinadas funções na
hierarquia e que essa eleição fora feita não por meios humanos, mas por um
chamado divino. O clero cristão invoca a capacidade de se entender não
apenas como escolhido por Deus, mas como responsável direto pelo
estabelecimento do seu reino no mundo.
Ora, a idéia de comunhão e excomunhão estabelecida pelo cristianismo,
deu a sua política, afirma nosso autor, uma grande capacidade operacional,
pois anulou quase que por completo a necessidade de uma relação local em
matéria religiosa. Então, não existe um cristão nacional francês, nem
169 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. Nota Nº 486. 170 Na Igreja Católica foram aceitos três graus de ordenações as funções clericais; primeiro aparecem a figura dos diáconos, como aqueles que auxiliavam no culto e em seguida os bispos (episcopos) ou os que supervisionavam as ações de uma Igreja determinada e oficiavam o culto. Na seqüência aparece a figura dos presbíteros, que na cristandade despontam como ponto central do poder clerical. Com o avanço do poder dos presbíteros os diáconos perdem espaço a ponto de sua ordem praticamente desaparecer e os bispos assumem uma função cada vez mais burocrática, de supervisionar os presbíteros. A figura do presbítero passa a ser determinante na lógica de pensamento da Igreja. Nessa lógica institucional apenas aqueles que recebem as ordenações, são reconhecidos como dotados de direito na oficialização do culto e na propagação do discurso de poder da Igreja Católica. A figura do presbítero foi tão marcante na condução das ações políticas do cristianismo que mesmo após a reforma, alguns grupos presbiterianos (como os calvinistas), abolem a estrutura episcopal, entregando todo o poder na mão de “um conselho de presbíteros”.
63
português, nem alemão, o que existe é o cristão, concidadão de todos os
cristãos no mundo, que não possuem outra identidade a não ser essa.
2.2.2 Universalismo e o poder soberano.
Rousseau cita no Contrato Social, que duas tentativas frustradas, feitas
por príncipes cristãos, de unificar sob o mesmo cajado a bandeira da religião e
da política: os reis Ingleses, pós Henrique VIII* e os czares Russos.
Tomaremos como referência a análise do caso inglês.
O rei Henrique VIII governou a Inglaterra, e no período histórico de seu
governo, não só a Inglaterra, mas toda a Europa era sacudida pelos eventos
advindos da chamada reforma protestante. A Inglaterra de Henrique, sempre
apresentou os traços clássicos do conflito entre a religião cristã e os príncipes
do Estado, analisados por Rousseau. Em sua história, as relações entre o
Papado e os povos daquela ilha nunca foram tranqüilas171.
Isso fica claro no momento em que Henrique VIII reina sobre a
Inglaterra. O problema de Henrique sobre a anulação de seu casamento com
Ana Bolena nada mais faz do que obscurecer o que realmente levou a
Inglaterra a romper com a autoridade papal e assumir o controle da Igreja
Inglesa.172
O ato de supremacia,173 promulgado pelo parlamento inglês, dá ao
príncipe da Inglaterra a autoridade sobre a Igreja. Ela passa agora a ser
também parte do seu reino e, conseqüentemente, parte de sua autoridade. A
separação entre a Inglaterra e Roma não se tratou de um ato religioso, fruto de
um desentendimento sobre o sacramento do matrimonio, mas de um ato sobre
a jurisdição política.
Tornar-se chefe da Igreja da Inglaterra, porém, não deu a Henrique VIII a
mesma autoridade da qual gozavam os antigos governantes. Os antigos não
eram “chefes” de suas instituições religiosas, mas eram eles mesmos
instituições religiosas.
171 EARLE. E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 266, 267 172 Ibidem. 173 O primeiro Ato de Supremacia foi criado pelo rei Henrique VIII de Inglaterra concede Real Supremacia à autoridade legal do Monarca do Reino Unido. A Real Supremacia é especificamente utilizada para descrever a soberania jurídica das leis civis sobre as leis da Igreja na Inglaterra.
64
Na impossibilidade de ser reconhecido como uma autoridade divina, o
rei Inglês, segundo Rousseau, não pôde em nenhum momento decretar
mudanças sobre os rumos ou sobre o conteúdo daquela Igreja, pois ela nada
mais era do que um pedaço universal do cristianismo presente na Bretanha.
Essa limitação de Henrique pode ser encontrada em seu resumo sobre a fé da
Igreja da Inglaterra.174 Nesses artigos percebe-se que Henrique VIII, mais do
que decretar uma mudança sobre os rumos da Igreja, reafirma um catolicismo
sem papa, subordinado a ele, que nada mais é do que um servo da fé cristã, e
não o seu verdadeiro e legítimo senhor175.
Segundo Rousseau, para reunificar as estruturas políticas e religiosas
seria necessária uma autoridade por parte dos soberanos de legislar em
matéria civil e religiosa. É claro que não há autoridade nos príncipes para
legislar em nome do cristianismo:
(...)porém, tornaram-se menos seus senhores do que seus ministros, adquiriram menos o direito de mudá-la do que o poder de mantê-la, não são nela legisladores, mas somente príncipes176
Logo, sua autoridade está apenas concentrada na manutenção nua e
crua da fé que pertenceu a seus pais e que agora pela qual eles se tornam os
responsáveis:
Entre nós os reis da Inglaterra tornaram-se chefes da Igreja e a mesma coisa fizeram os czares; com esse título, porém, tornaram-se menos seus senhores do que seus ministros adquiriram menos o direito de mudá-la do que o poder de mantê-la, não são nela legisladores, mas somente príncipes177.
Rousseau demonstra por meio de argumentos lógicos, que o
cristianismo, de uma forma ou de outra, tenta manter-se independente da
estrutura política, independente quanto ao governo estabelecido pelo Estado
em sua matéria religiosa, mas não sobre como a matéria religiosa mergulha na
dimensão do Estado.
Uma boa política torna-se impossível nos Estados cristãos, pois não se
pode unir, em um território o poder político e o religioso.
174 Neill, Stephen, El Anglicanismo, p.33 175 A História da Igreja da Inglaterra, Apostilha da série Partilha Teológica nº 1 p.137. 176 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. Nota 487. 177 Ibidem. p. 140.
65
2.3 O uso político da religião cristã como um mal p ara o Estado
e para a religião
Na análise de Rousseau, há uma clareza máxima em suas idéias
quando o assunto é o uso da religião cristã dentro dos aparatos políticos e
jurídicos do Estado. A impossibilidade de introduzir o cristianismo como parte
do Estado é um ponto, para ele, que não cabe mais discussão. A introdução
do cristianismo como parte do Estado implica segundo Rousseau, além da
destruição da unidade do corpo político, por inviabilizar uma unidade dentro da
sociedade, gera também, por conseqüência dois erros fundamentais; um
primeiro em matéria religiosa e outro em matéria política: “(...) cometeram,
dessa forma duas faltas perniciosas, uma contra a religião, outra contra o
Estado”178.
2.3.1. O uso político do cristianismo: Um erro cont ra a religião.
O erro em matéria religiosa está na falta dos governantes, que não
reconhecem a verdadeira essência do cristianismo, do Espírito de Jesus, que
da a clara convicção de que o reino na qual o cristão deve buscar não pertence
a esse mundo:
A ciência da salvação e a do governo são muito diferentes: querer que a primeira abarque tudo é um fanatismo de estreiteza de espírito; é pensar como os alquimistas, que viam também na arte de fazer ouro a medicina universal, ou como os maometanos, que pretendem encontrar todas as ciências no alcorão.179
Quando se misturam, os interesses terrestres com o da religião cristã,
temos como resultado uma perversão do contexto religioso. A religião torna-se
um instrumento altamente perigoso nessa relação, pois ela perde a sua pureza
divina180, e corre ao encontro de uma variação perigosa, que nas mãos de
178 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 169 179 Ibidem. p. 173. 180 Ibidem. p. 169
66
tiranos torna-se o elemento necessário para as perseguições às minorias e a
eliminação de seus opositores: o dogmatismo.
A religião cristã é, pela pureza de sua moral, sempre boa e sã no Estado, desde que ele não faça parte de sua constituição, desde que ela ai seja admitida unicamente como religião, sentimento, opinião, crença. Mas como lei política, o cristianismo dogmático é uma má instituição181
Há no cristianismo dogmático, sobretudo, no católico, segundo
Rousseau, uma relação direta entre aquilo que se pensa e a autoridade da
Igreja. O magistério eclesial age para calar todo o conflito em matéria de fé,
essa ação também se configura uma ação civil. A autoridade da Igreja se
sobrepõe aos fiéis, e as sua consciências, quando existe algum conflito: “A
Igreja decide que a Igreja tem direito de decidir, não é essa uma autoridade
bem fundada?”182
No século em que Rousseau está inserido, a palavra da Igreja é
cristianismo universal. A decisão da igreja naquele momento não se reporta
apenas a definir um conflito religioso, sobre os mistérios dos anjos e milagres,
mas as suas decisões, por se tratarem de decisões universais também
possuem um efeito civil, pois afetam cada local onde está inserido um cristão.
Em 1762 Rousseau recebe de forma furiosa em seu exílio na Holanda a
notícia de que o Parlamento de Paris havia lançado uma condenação de suas
obras, para ser mais exato, o Emílio. Essa condução é precedida de uma carta
pastoral, escrita e publicada pelo então arcebispo de Paris, Christophe de
Beaumont.
O conteúdo da carta pastoral é uma tentativa de desqualificar o
pensamento de Rousseau no trato a suas idéias sobre a formação da
juventude, mas, sobretudo, em relação a sua análise crítica sobre a matéria
religiosa o que não era inédito, pois o século de Rousseau é o século da
contestação às referências de caráter religioso183.
Rousseau segue então a compor uma resposta ao arcebispo de Paris,
expondo as suas defesas e os motivos que levaram a redação de suas obras e
181 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. P. 172. 182 Cf. Ibidem. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P. 110. 183 CHAUNU, P. A civilização da Europa das Luzes. Lisboa: Estampa, 1985. p. 271 e 274.
67
de suas posições com relação às questões ligadas à religião e ao próprio
Estado.
O ataque do parlamento e do arcebispo de Paris não feriu Rousseau,
apenas no que se refere aos seus escritos, mas, sobretudo, naquilo que
Rousseau julgou ser abominável: o uso político da religião, para subordinar as
decisões políticas. A Igreja em Paris toma para si o princípio da universalidade
e da validade da comunhão cristã por todo o mundo, e com isso decreta de
Paris, sobre um assunto distante territorialmente, mas que possui um efeito no
mundo todo, Rousseau não estava condenado apenas em Paris, mas em todo
o mundo cristão:
Um genebrino faz imprimir um livro na Holanda,e, por um decreto do parlamento de Paris, esse livro é queimado sem respeito pelo soberano cuja autorização ele ostentava. Um protestante propõe, em um país protestante, objeções contra a Igreja de Roma, e o parlamento em Paris decreta sua prisão(...) O parlamento de Paris deve ter estranhas idéias sobre sua jurisdição e se acreditar o legitimo juiz de todo o gênero humano184
Contudo, os dogmas religiosos cercam a sociedade, seu funcionamento
e sua regulação, não há espaço nesse modelo de contexto para uma reflexão
saudável. O que ocorre nesse tipo de situação é que, diferente dos povos
antigos, que possuem suas leis, que eram nacionais, baseadas em seu estado
civil e religioso de forma unificada, o cristianismo produz uma inversão, onde a
sociedade atua de forma a aceitar apenas os modelos cristãos e a ignorar todo
o resto.
2.3.2 A intolerância.
O modelo cristão na leitura de Rousseau é politicamente intolerante, pois
não pode reconhecer no outro, que não seja cristão, algo de verdadeiro, sob o
peso de trair a sua fé. Uma vez não podendo reconhecer no outro algo de
verdadeiro, não é possível também estabelecer regras de convivência com
esses “não cristãos” dentro do Estado sobre a pena da dissolução do mesmo e
184 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.42.
68
de por em risco a sua fé, que na leitura do cristianismo é o que realmente
importa e não o Estado em si.
Por conta desse modelo de pensamento, Rousseau aponta o produto
dessa inflexão às guerras de religião:
Todos os cristãos promoveram guerras religiosas, e a guerra é nociva aos homens. Todas as facções foram perseguidoras e perseguidas, e a perseguição é nociva ao homem185
As guerras de religião ocorrem no momento em que o reino dos céus
toma o lugar do reino na terra. O fanatismo produzido pelo raciocínio de que a
religião de alguns é superior a de outro em outros pontos da cidade é perigoso,
pois buscará eliminar aqueles que se opõe ao grupo religioso dominante.
No Emilio essa idéia é recorrente. O vigário saboiano apresenta a sua
opinião a cerca das revelações. Para ele, os dogmas particulares provocam
uma grande confusão na cabeça dos homens, e no lugar de os ajudar a
encontrar a verdade das coisas, os confunde ainda mais, e por conseqüência
tornam os homens orgulhosos, intolerantes e cruéis.186 Em meio à variedade
quase interminável de seitas, o vigário chega à conclusão que cada uma das
seitas acusa a outra de mentirosa e de promover o erro, arrogando para si
mesmas o mérito de ser o único e verdadeiro caminho para a verdade: “Qual
delas é a certa? Cada qual me respondia: É a minha”.187
Diante, desses problemas o Vigário, segue o seu raciocínio tentando
encontrar a resposta. Como seria impossível saber sobre qual doutrina é de
fato a verdadeira, seria necessário então entender como as doutrinas se
tornam verdadeiras aos olhos dos homens. Esse verdadeiro aos olhos dos
homens se dá através da intermediação dos vigários de Deus, os clérigos
cristãos. Segue-se que nesse momento fica clara a necessidade do Vigário
criticar a atuação dos padres na interpretação das revelações:
Procuramos, então, sinceramente a verdade? Nada concedamos aos direito de nascimento e à autoridade dos padres e dos pastores, mas chamemos ao exame da consciência e da razão tudo o que eles nos ensinaram desde a infância. Não adianta me gritarem: Submete a tua
185 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. P.81. 186 ROUSSEAU. J. J. Emílio, ou da Educação. São Paulo. Martins Fontes, p. 400. 187 Ibidem, p. 402.
69
razão. O mesmo pode dizer-me aquele que me engana; preciso de razões para submeter a minha razão.188
O estabelecimento de intermediários do poder divino transforma a
religião em algo fácil de ser manipulado. Como provar o que foi revelado por
Deus a um clérigo? A sua palavra torna-se lei, uma por não haver quem a
conteste por estar no campo da fé e outra por não haver fundamentalmente
como provar racionalmente essa idéia:
Quando se perde de vista os deveres dos homens para se ocupar apenas com as opiniões dos padres e sua frívolas disputas, não se pergunta mais a um cristão se ele teme a Deus, mas sim se é ortodoxo; faz com que subscreva formulários com as questões mais inúteis.189
Fica claro que para Rousseau é a intervenção clerical que reflete de
forma clara o poder cristão nos Estados em que ele está inserido. A religião
deixa de ser dos deuses e passa a ser do padre: “(...) o interesse do padre
sempre será mais forte do que o do Estado”.190 É justamente da transição do
modelo político religioso pagão que abandona a sua antiga função e agora
assume a nova que Rousseau aponta no texto das Cartas da Montanha como
o segundo grande erro cometido por aqueles que tentaram dar ao cristianismo
uma forma nacional e assim fazer um uso político do mesmo. O erro consiste
em dizer que já que a religião e o poder político não pertencem mais aos
deuses e aos seus divinos representantes, mas ao padre, é justamente essa
figura a quem devo obedecer, as leis não são mais do Estado para a religião,
mas da religião para o Estado. Isso “enfraquece a força da engrenagem
política”.191
188 Ibidem. 403. 189 Ibidem. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. p. 85. 190 Ibidem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. p. 140. 191 Ibidem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 170.
70
2.3.3. O uso político do cristianismo: Um erro cont ra a política
O cristianismo é uma religião universalista. O conceito de conversão de
todos os povos e de missão está presente na semente desse movimento
religioso iniciado em Israel e difundido por todo o antigo Império Romano. O
seu conceito de universalidade dá aos homens a clara noção de que o reino a
que verdadeiramente estão subordinados é o reino de Deus e não os reinos
que passam.
O cristianismo nesse formato é reconhecido por Rousseau em sua
forma hierárquica na Igreja. Na exposição do vigário de Sabóia, Rousseau
retoma de forma recorrente a idéia de que o catolicismo em si possui as suas
bases sob dois grandes modelos sistêmicos: a crença na revelação e no poder
das superstições. Uma coisa está na composição da unidade e a outra forma o
poder do catolicismo na medida em que impõe a necessidade da interpretação
sobre as revelações cabe apenas ao magistério da Igreja, e a condução das
superstições, dentre elas o culto aos santos e aos devocionais e controlada
também pela instituição através de cada braço eclesial local. Afirma Rousseau
que, por conta das confusões criadas pela inúmera quantidade de práticas
religiosas, o povo por si jamais teria condições de entender o que se esta
mesmo a celebrar, ou melhor, no que crer. Dai a necessidade sempre presente
daquele que será destinado a instruir o povo, o padre: “sempre teria que
retornar à autoridade dos que o instruem”.192
A Igreja é a grande resposta dada a todos os conflitos, o poder do
“padre” não está essencialmente segundo Rousseau em afirmar a sua religião
sobre as outras, nem em cultuar a sua fé, mas em afirmar a sua religião sobre
o Estado, sobre as suas leis, em provocar a ruptura da unidade política. A ação
do cristianismo não é particular, não pertence a uma sociedade única, mas a lei
cristã avança por toda a humanidade.193
O cristianismo, segundo Rousseau, provoca um grave dano ao Estado,
por não favorecer um movimento de unificação entre os membros daquela
192 Cf. Ibidem. Emílio, ou da Educação. São Paulo. Martins Fontes, p. 471. 193 Cf ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 141. Nota nº 493.
71
sociedade em particular. Por pertencer a uma relação metafísica, o homem
tende a entender que sua relação com os próprios homens também é
metafísica, logo, as leis dos homens não encontram respaldo junto a essa
classe de cidadãos, pois para eles essas leis dadas por homens, trazem em
sua formulação um erro tremendo. Terem sido formuladas por Deus e
aplicadas pela sua Igreja.
Mas essa religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa as leis unicamente com a força que tiram de si mesmas, sem acrescentar-lhes qualquer outra, e, desse modo, fica sem efeito um dos grandes elos da sociedade particular.194
Nas sociedades antigas, que estavam fundadas na interligação entre o
político e o religioso, as leis eram o puro “sacramento” dessa relação. Moisés
quando deu ao povo leis civis, nada mais fez do que dar a essas mesmas leis
civis uma roupagem religiosa, ou seja, as sacralizou-as. Desobedecer as leis
era antes de tudo desobedecer a Deus.
O que Rousseau aponta é que o cristianismo ignora esse ponto chave
para a condução da sociedade: a desobediência a uma lei civil, que contrarie
os princípios da lei cristã, não constitui para o cristão nenhuma falta contra
Deus, mas apenas uma falta contra o convívio em sociedade195, um pecado
menor que pode ser perdoado. No caso da relação dos cristãos com o império
romano esse problema é claro.
O cristianismo nasceu dentro do império, portanto, deveria estar sujeito
às leis do império romano. A grande questão é que o cristianismo e seu caráter
universal estabeleceram uma espécie de desobediência civil, os crimes que,
pelas leis do Estado eram punidos com a morte, como o não reconhecimento
da divindade do imperador, tornaram-se, para o cristianismo, sinônimo de sua
guerra contra o Estado.
A negação da figura do imperador como Deus era visto pelos cristãos
não como um crime, mas como uma virtude, pois pouco se importavam com as
194 Ibidem. P. 141. 195 “Esse era o sentido que os seguidores de Jesus entendiam. Por exemplo, quando as autoridades de Jerusalém (sobretudo os sacerdotes) ordenaram que os apóstolos parassem de pregar ao povo, Pedro respondeu: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.” Ato 5, 29. No entanto, Jesus não parece ensinar uma oposição tão radical as leis civis.(...)” Cf: WATERLOT, Ghislain. Rousseau: Religion et politique, p. 37.
72
leis do Estado, o importante era não romper com as suas leis particulares,
essas sim de caráter divino. As punições, inclusive com a pena capital,
passaram a ser vistas por esses cristãos como um motivo de orgulho; o
martírio assumiu a forma de fidelidade ao projeto cristão, pois o cristão morria
para defender o seu reino e lutava contra a inversão pagã do reino da terra e
de suas leis que nada possuíam de sagradas. Há uma desvinculação total da
lei que rege o cristianismo e das leis que regem o Estado.
A fé dos cristãos é contrária ao Estado, pois não reconhecem em suas
leis, em seu corpo social, nada em que o coração humano possa estar
apegado, afirma Rousseau que:
Mas ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social196
A religião cristã desliga o coração do homem da terra, pois a sua
essência, não é terrena, mas espiritual:
O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual preocupada unicamente com as coisas do céu, não pertencendo à pátria do cristão a este mundo197
No Contrato, sobretudo após as definições dadas sobre as religiões
instituídas, Rousseau segue para uma série de acusações com relação à
possibilidade de se construir uma sociedade genuinamente cristã, a crítica está
direcionada tomando como a base a impossibilidade dos cristãos desviarem o
seu foco do reino dos céus para um reino da terra.
A relação política do cristianismo, por conta do rompimento de sua
estrutura existencial com a estrutura civil, segundo Rousseau, cumpre a sua
função social, bem ou mal, como religião, mas não estabelece nenhum laço de
apego ao Estado no qual está inserido: “É verdade que ele cumpre o seu
dever, mas o faz com uma indiferença profunda quanto ao bom ou mau
sucesso de seus trabalhos”.198
Rousseau reconhece no cristianismo uma espécie de egoísmo civil, um
tipo de interiozação produzida no coração de seus fiéis. O cristianismo busca 196 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 197 Ibidem. 198 Ibidem. p. 148.
73
no mundo manter a sua hegemonia e o seu poder, liga-se ao Estado apenas
com esse objetivo. Se o Estado vai bem o mal, se consegue avançar, ou se
vive uma intensa derrocada, o cristianismo não se afeta, pois em tempos de
glória do Estado, ele não se alegra, em tempo de penúria, afirma que a mão de
Deus pesa sobre os que nele habitam:
Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, pouco lhe importa se tudo vai bem ou mal cá embaixo. Se o Estado está florescente, dificilmente ousa gozar a felicidade pública, teme orgulhar-se da glória de seu país; se o Estado perece, bendiz a mão de Deus que pesa sobre seu povo.199
Uma organização coletiva subsiste observando com extrema atenção as
regras de convivência comum. Conviver com outros significa pactuar com
esses a quem tenho que conviver: o que é justo, o que é de interesse comum.
Nas organizações cristãs, o objetivo de todo o coletivo é a construção de um
reino dos céus, de uma matéria espiritual, que não encontra na terra o seu
fundamento. Esse reino dos céus é, segundo Rousseau, o grande objetivo
desses povos, logo, os interesses terrestres tornam-se particulares, e menores.
Não parece contraditório, para o cristão, que não se alcance nesse reino
uma verdadeira igualdade; aqui se pode ser desigual, pagar pela derrocada da
sociedade desde que se alimente a ideia de que o reino dos céus vai
solucionar todos esses problemas: “Que importa ser livre ou escravo nesse
vale de misérias? O essencial é alcançar o paraíso, e a resignação não passa
de mais um meio para isso”.200
Junto à sensação de que nada é mesmo possível nesse reino terrestre,
é necessária a introdução de todos que aqui estão no reino dos céus. Contudo,
nesse reino o acesso não pode ser feito por diferentes. Não existe na
linguagem salvífica do cristianismo o conceito de separação entre os povos,
nem gregos, nem romanos, já anunciava Paulo201, todos são cidadãos do
céu202, pois estão salvos por possuírem a mesma natureza. Rousseau
reconhece nesse movimento, o estabelecimento de uma nova peça de
enfraquecimento da engrenagem social: o reino de irmãos.
199 Ibidem. 200 Ibidem, P. 142. 201 Cf .Romanos. 10,12. 202 Cf. 1Co 2.9.
74
A universalidade cristã faz com que todos os membros dessa estrutura
religiosa sintam-se parte de algo maior do que eles mesmos. Aqui o conceito
de comunhão trabalhado por Rousseau talvez ainda ganhe sentido. Não existe
um cristão que seja francês ou inglês, russo ou grego. O gênero cristão é
universal e não conhece nenhum senso de nacionalidade, ou território para
fixar a sua atuação.
O fato de ignorar a relação com o território cria nas chamadas
“repúblicas cristãs” um sério problema. Se a república representa a parte na
qual os homens são iguais perante um mesmo código jurídico e um mesmo
soberano203, representa também a afirmação de que o território ao qual estão
estendidos esse código e esse soberano é um território limitado. Logo, a uma
noção de pertencimento a uma estrutura determinada.
O grande problema apontado por Rousseau no Contrato é que a ação
de um cristão fica limitada, pela ação de sua fé. Por primeiro o cristão ficará
extremamente incomodado ao saber que nas atrás das linhas inimigas vai
encontrar cristãos como ele, que celebram o Natal, batizam seus filhos e que
vão a missa aos domingos. São tão semelhantes na terra, quanto sua fé diz
que serão no reino dos céus.
Essa crise de identidade torna o cidadão cristão fraco em sua ação em
defesa do Estado, pois não encontra no outro a noção de inimigo, mas a frágil
noção de irmão que ora é inimigo.
Nos povos antigos, como as religiões possuíam formatos nacionais,
essa crise existencial e de ação não estava presente. Como defender o solo
era também defender a divindade que lá habitava, os guerreiros daquele
território se dirigiam para o combate tomados pelo desejo da vitória pois não
havia desprezo pelo território. Do outro lado da linha de guerra não estava um
irmão, mas um inimigo mortal que buscava a liquidação não só territorial, mas
também física daquele povo.
Rousseau afirma que no discurso cristão a fragilidade é aparente, pois
como se trata de um povo que busca um reino espiritual, pouco importa a
203 Aqui considero a situação de espaço e tempo vivida por Rousseau no século XVIII, momento esse em que as republicas existentes nada se assemelham com os modelos conhecidos pos revolução francesa. Os modelos dos tempos de Rousseau aproximam-se ainda com grande intensidade das monarquias absolutistas, preservando no Estado a figura do soberano.
75
noção de vitória ou derrota, não há território a defender, não há inimigo a
aniquilar, vencer ou perder, na lógica cristã torna-se um mero detalhe:
Sobrevém uma guerra estrangeira, os cidadãos marcham sem dificuldade para o combate, nenhum deles pensa em fugir; cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; melhor sabem morrer do que vencer. Que importa sejam vencidos ou vencedores? A Providencia não sabe, melhor do que eles o que lhes convém?204
É evidente, que a problemática presente na discussão sobre o que seria
de fato um Estado cristão passa também, pelas possibilidades de manobras
que podem ser efetuadas por aqueles que governam.
A base da argumentação está em afirmar que em uma sociedade
genuinamente cristã, todos os seus membros deveriam portar-se como bons
cristãos205, mas a infelicidade desse Estado seria completa se em seu meio
encontra-se apenas um hipócrita e aqui Rousseau da como exemplo Catilina e
Cromwell206. Segundo Rousseau, um homem que conseguir, mesmo que de
forma legal, apoderar-se de parte da máquina pública, não hesitaria em
raciocinar de forma categórica com relação a manutenção de sua autoridade e
de seu poder. Para Rousseau, o cristianismo dogmático é cercado de regras e
preceitos. Essas regras dão ao homem a noção de que não se é permitido
pensar mal do próximo, ou mesmo de lhe desejar mal. A uma espécie de
conformismo do cristão em entender que não pode levantar-se diante daquele
a quem Deus constitui soberano.
Homens sem escrúpulos com os citados por Rousseau poderiam fazer
um uso político contrário aos interesses sociais valendo-se dessa prerrogativa
conformista, que impede a reação dos cidadãos contra as ações injustas do
Estado e também se usando da prerrogativa de que como é uma autoridade de
Deus, que todos os respeitem, afirma Rousseau que:
Deus quer que o respeitem. Logo mais, ia-lo uma potencia- Deus quer que seja obedecido. O depositário desse poder abusa? – é o açoite com o qual Deus pune seus filhos.207
204 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 205 Ibidem. 206 Oliver Cromwell foi um militar e político britânico, conhecido como um dos líderes da Guerra Civil Inglesa, movimento que derrubou Carlos I, com o apoio de presbiterianos escoceses e levou à instauração de uma república puritana na Grã-Bretanha. 207 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142.
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Derathé retoma essa temática afirmando que a relação entre o poder e
quem o exerce é sempre muito tênue, há uma imensa facilidade entre os
homens de usar suas funções configurando-as a atributos e ao poder, para
assim atingir seus verdadeiros objetivos208.
O raciocínio de Paulo, de que “não há autoridade que não proceda de
Deus”209, pode muito bem ser aproveitado por “cristãos” mais hábeis na
percepção das artimanhas para a manutenção do poder210.
O indivíduo que está introduzido na máquina pública pode fazer uso de
suas atribuições civis, pois está constituído de autoridade e recoberto pela
figura sagrada de um poder por representação, isso dá espaço para o avanço
da intolerância e da tirania, pois se esse representante age em nome do Deus
cristão e de suas leis, não pode permitir nada que seja contrário aos seus
princípios, daí o avanço do derramamento de sangue e da perturbação social:
Toma-se como obrigação de consciência expulsar o usurpador: ter-se-á de perturbar a calma pública, usar de violência, verter sangue211
Para Jean Jacques Rousseau, uma sociedade de verdadeiros cristãos,
não teria nenhuma possibilidade para que o sucesso vigorasse, pois não
haveria garantias legais para que o poder seja preservado das ações dos
usurpadores, pois na lógica cristã. Para ele o desligar do coração dos cristãos
as coisas do Estado indicam um abandono do poder, logo, aqueles que
percebem esse vácuo deles se aproveitam.
Rousseau aponta na possibilidade de uma república verdadeiramente
cristã um outro grande problema. Caso fosse possível que os cristãos
enfrentassem soldados, como os Espartanos212, por exemplo, a aniquilação
seria certa, pois estariam impedidos pela sua própria crença de desejar a
vitória. O sucesso de sua campanha não se daria por seu empenho ou sua 208 DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34 e 35. 209 Ibidem. 210 Segundo Derathé, não é a pessoa que governa o Estado que está dotado de divindade, mas o poder é que é divino, ele emana de Deus e é recebido pelos homens para ser exercido sobre outros homens. Ora, essa relação entre o poder recebido de Deus e quem exerce esse poder pode levar segundo Derathé a uma fácil relação entre quem exerce o poder e a quem de fato esse poder procede. Cf: DERATHÉ, R. Jean- Jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: PUF, 1950, P. 34. 211 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 142. 212 Ibidem.
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vontade, mas a ação de uma providência, algo que rege e define todas as
coisas. Rousseau cita uma passagem da obra de Tito Livio sobre a história dos
romanos. Trata-se aqui de apresentar o juramento dos soldados de Fabio que
juraram solenemente vencer aquela batalha, defender os seus deuses e seu
território e voltar para casa, para Rousseau esse tipo de comportamento não
cabe no coração do cristão:
(...)A meu ver foi um belo discurso os dos soldados de Fabio – eles não juraram morrer ou vencer, juraram voltar vencedores e cumpriram seu juramento. Jamais cristãos teriam feito semelhante juramento, pois acreditariam estar tentando a Deus213
Como o ensinamento cristão prega o não jurar por nada desse
mundo214, não há como conciliar uma ação juramentária como essa à vida de
fé cristã, pois isso configuraria uma tentação direta a Deus e a sua divina
providência.
Essa condição, nega a afirmação corrente em sua época de que as
tropas cristãs são de uma excelência invejável. Como essas tropas poderiam
se configurar na estrutura de excelência, desprezando a ação temporal dos
homens, não seria possível segundo Rousseau tropas que chamemos de
cristãs: “(...) Quanto a mim, não conheço absolutamente tropas cristãs”.215
Como já era previsto, o apontamento dos soldados cruzados viria para
defender a idéia de tropas que são genuinamente cristãs. Contudo, os
soldados cruzados configuravam uma distorção medieval, um uso indevido das
relações entre política e religião, pois não se portavam como grupos cristãos.216
Antes de qualquer coisa eram cidadãos da Igreja217 que, de certo modo, para
Rousseau, se integram aos modelos pagãos de guerra por seu território, no
caso dos cruzados o espiritual que, não se sabe como se tornou temporal218.
213 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 143. 214 Cf. Tiago 5:12 215 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 143. 216 Ibidem. 217 Na leitura de Rousseau, o conceito de cidadão da Igreja Parece não ser semelhante ao de cristão, pois o cristão seria aquele que busca a vivencia do evangelho, o cidadão da Igreja, por outro lado, busca a defesa temporal dos bens da Igreja, como um soldado mercenário, viver o evangelho não lhes parece uma necessidade, se eles de fato cumprem o seu dever de defender a Igreja. 218 Cf . ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 143.
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O cristianismo não pode se configurar como religião nacional, é também
impossível o entendimento entre as tropas cristãs de uma guerra santa.219
Como a sacralidade do ato belicoso não se configura entre as tropas cristãs
uma guerra sagrada, entre povos cristãos tornar-se impossível.220
É certo que quando os cristãos estavam em conflito contra os
imperadores pagãos a resposta das tropas era um tanto quanto satisfatória,
pois se tratava de um conflito para estabelecer a universalidade do reino. Essa
eficiência das tropas desaparece, segundo Rousseau no exato momento em
que os imperadores tornam-se cristãos: “Desde de que os imperadores
passaram a ser cristãos, essa emulação não subsistiu mais e, quando a cruz
expulsou a águia, desapareceu todo o valor romano”221.
***
A crítica de Rousseau à tentativa de transformar o cristianismo em
religião nacional busca principalmente demonstrar que na religião cristã há uma
dificuldade essencial quando se tenta misturar idéias religiosas e idéias
políticas. É demonstrado que, a expressão “república cristã”, envolve uma
grande contradição, pois eles são heterogêneos, se excluem por definição.
Uma república para Rousseau necessita de homens que aspirem à liberdade e
que nessa condição seria impensável conceber homens que vão a guerra sem
saber se sua ação conflituosa de fato é importante, vencer ou perder não diz
nada em si mesmo. Um verdadeiro cidadão ama sua pátria antes de qualquer
outra coisa, daí algumas acusações modernas, de entender já em Rousseau,
as sementes dos regimes totalitários222.
O que podemos concluir sobre as implicações políticas da religião cristã
é que o cristianismo não é territorial, ele deve ir pelo mundo, independente do
território no qual ele está inserido. A religião cristã, enquanto religião nacional
apresentada como parte de um sistema jurídico legal do Estado, não é uma
realidade que possa se concretizar, e todas as vezes que se tentou executar
219 Entre povos cristãos. 220 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 143. 221 Ibidem. 222 Cf. TALMON, J.-L. The origins of totalitarian democracy. London: Secker & Warburg, 1952.
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essa manobra de introdução do cristianismo no meio legal, o desastre foi
iminente223.
Não há possibilidade de introdução do cristianismo no sistema nacional,
e a tentativa de transformá-lo em uma religião nacional sempre resultou em um
intenso fracasso224, pois falhou na tentativa de unificar o centro do poder. Os
governantes que tentaram fazer uso do cristianismo, nada mais fizeram,
primeiro por deformar tanto a religião quanto a política225 e segundo por
transformar o cristianismo em um instrumento tirânico para oprimir as minorias
que não se enquadravam dentro do formato oficial226.
O cristianismo é universalista, não possui território, não ama nenhuma
pátria terrena e não se importa com o bem-estar do Estado. Para Rousseau,
essas são ações nefastas para o bem-estar de um Estado.
A solução parece clara: diante da impossibilidade de convivência de um
bom Estado que pratique uma boa politia227 com a religião cristã, a eliminação
pura e simples da presença religiosa no meio do Estado.
Essa solução pragmática não se aplica ao pensamento de Rousseau.
Uma república não pode conviver sob a tutela cristã, como tão pouco pode
conviver sem uma presença religiosa. Um Estado ateu não é considerado na
teoria política de Rousseau: “(...) Entretanto é importante que o Estado não
fique sem religião e isso por razões graves(...)”.228
Rousseau é cristão e defende sua visão sobre cristo e o evangelho.
Os conflitos entre Rousseau e aquilo que ele chama de “religião do
padre”, ficam explícitos por todas a sua obra, e em sua tentativa de se
apresentar como cristão, sem que com isso seja assimilado como um seguidor
desse modelo: Sou cristão, Senhor Arcebispo, e sinceramente cristão, segundo
a doutrina do evangelho. Sou cristão não como discípulo dos padres, mas
como discípulo de Jesus Cristo.229
223 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 169. 224 Ibidem. 225 Ibidem. 226 Cf. Idem.. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. São Paulo: Estação Liberdade. 2005. p. 84. 227 Do grego πολιτεία (politeia, “citizenship; government; civil polity”). 228 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171. 229 Idem. Cartas a Christophe de Beautmont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Edição Liberdade, p. 72.
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Rousseau é cristão por conservar as suas origens genebrinas e
calvinistas. Afirma Masson:
Apesar de sua abjuração, de suas revoltas, das solicitações libertinas em torno dele na França filosófica, de suas negações intelectuais, ele guardou no fundo do seu coração, - obscurecido talvez, vivo, entretanto – o cristianismo de genebra.230
Ser cristão, na leitura de Rousseau foi e ainda é parte de um grande
paradoxo. Sua resposta ao Arcebispo de Paris e às indagações dos
protestantes parece não ter sido em nada conclusiva ou menos ameaçadora
sobre as verdades que o cristianismo apresenta. Praticar uma religião do
sentimento, do coração, na qual a consciência seja o último e inviolável
caminho para chegar a Deus não parece ser o mais desejável por aqueles que
representavam o cristianismo instituído.
Rousseau quer se separar do modelo que ele chamou de religião do
padre231, não meramente uma religião que trate de assuntos espirituais que
conduzam o homem a uma nova terra após essa vida, mas refere-se à religião
que ousadamente substituiu o paganismo, rompeu com a unidade do Estado e
que agora, de forma irreversível, tal qual a humanização do homem se deu232,
não pode mais ser revertida, abandonada. Fica demonstrado que o cristianismo
de uma forma ou de outra, tenta manter-se independente da estrutura política.
Ora, a questão é se não a religião cristã, à que religião iremos? A outro
conjunto dogmático?
É nesse movimento que Rousseau estabelece a introdução de um
conceito não muito claro em sua teoria, que é o da religião civil, uma religião
não do Estado, como nas antigas religiões, também não separada dele como o
cristianismo, mas uma religião para o Estado:
Que deve fazer um sábio legislador nessa alternativa? Das duas coisas uma. A primeira, estabelecer uma religião puramente civil, na qual, contendo os dogmas fundamentais de toda boa religião233
230Cf. MASSON. P. M. La religion de J- J. Rousseau. Genebra. Slatkine. 1970. 231 Cf. ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII p. 141. 232 Ibidem. 233 Idem. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171.
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É sobre essa religião para o Estado, que abomina ao mesmo tempo o
ateísmo e o dogmatismo, que Rousseau parece desdobrar-se na última parte
do texto sobre a Religião Civil.
E é justamente essa a temática de nossa investigação no próximo
capítulo. O questionamento mais inquietante que nos fica é como entender
essa “via média” religiosa e política, uma religião nem tutelada pelo Estado e
nem tuteladora do mesmo. Para esse esclarecimento a última parte do texto
sobre a Religião Civil será nosso foco esclarecedor.
82
3. A Via média.
Mas, quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice.234
Rousseau quer se separar do modelo que ele chamou de religião do
padre. Esse modelo que em sua leitura provoca uma ruptura nas relações entre
o Estado e o corpo político não pode, segundo Rousseau, permanecer como
referência de organização política e social. O cristianismo como religião
substitui o paganismo, e deu um novo formato às relações de Estado, ele
sempre se comportou de forma independente aos Estados. É certo que sempre
esteve ligado aos governos, mas não por estar convencido de que o governo
tinha autoridade sobre a Igreja, mas por conveniência diplomática.
Ora, a questão é que um retorno ao antigo modelo de estrutura religiosa
baseada na relação com o território pós à expansão do império romano se
mostrou impossível. Ficar retido às amarras do cristianismo também parece
uma relação pouco confiável para Rousseau.
Diante desse dilema e não considerando o Estado Ateu como uma
alternativa, Rousseau estabelece a introdução de um conceito que há séculos
vem provocando discussões sobre o seu significado: a religião civil. Uma
religião não do Estado, como nas antigas religiões, também não separada dele
como o cristianismo, mas uma religião para o Estado:
Que deve fazer um sábio legislador nessa alternativa? Das duas coisas uma. A primeira, estabelecer uma religião puramente civil, na qual, contendo os dogmas fundamentais de toda boa religião235
É sobre essa religião para o Estado, que abomina ao mesmo tempo o
ateísmo e o dogmatismo, que Rousseau parece desdobrar-se na última parte
do Contrato intitulado “sobre a Religião Civil”.
E é justamente essa a temática de nossa investigação nesse capítulo. O
questionamento mais inquietante que nos fica é como entender essa “via
média”. Como entender no contexto moderno a relação entre religião e
234 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. p. 145. 235 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 171.
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política? O que se busca é uma religião que não esteja ligada diretamente ao
Estado e ao mesmo tempo não seja independente do mesmo. Para entender
essa “via média” que Rousseau entende como a Religião Civil, seguiremos o
texto do Contrato, ainda utilizando os comentadores.
Um caminho será percorrido para entender esse movimento que
desemboca no que ficou conhecida como Religião Civil, e que possui em sua
essência uma teologia despersonalizada. Para tanto, seguiremos a seguinte
ordem.
Abordaremos em um primeiro ponto as bases da Religião Civil, a religião
como parte integrante do Estado, também a diferença apontada por Rousseau
entre a religião do homem e do cidadão. Sobre a relação entre a religião do
homem e do cidadão entra na leitura de Rousseau três modelos de religião, o
que desemboca nos dogmas que vão sustentar dentro do Estado a Religião
que não é nem nociva ao homem nem ao Estado.
3.1. A religião como necessidade e não como instrum ento
A religião para Rousseau, na parte final do texto sobre a Religião Civil,
ganha um status de grande importância na manutenção da ordem social. Agora
o que em muitos momentos é questionador está justamente na ideia
estabelecida por Rousseau de que a religião é de fato algo tão importante para
o Estado que não possa ser simplesmente eliminada de seu meio e de suas
perspectivas.
A utilidade da religião para Rousseau não passa pelo mérito do simples
controle e manutenção da ordem social como uma ação manipuladora por
parte daqueles que detém o poder. A religião para Rousseau, diferentemente
de Voltaire, não era algo reservado aos pobres, pois assim eles eram mantidos
mais calmos236 e longe das tentações do crime. Nosso autor entende a religião
como algo inerente ao homem237, mesmo que o respeito aos que não
reconhecem essa opção seja possível238, o homem é um ser tencionado a esse
caminho.
236 VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes. 237 Não a religião do Padre, mas aquela que é fruto do coração. 238 ROUSSEAU. J.J. Carta a Christophe de Beaumont. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. p. 84.
84
Porém, o que nos cabe analisar não passa pela relação particular dos
homens com o sagrado, mas como essa relação sagrada afeta os padrões de
comportamento do homem enquanto cidadão e muda a sua visão com relação
ao Estado.
As teses sustentadas por Rousseau no texto sobre a Religião Civil
consideram a religião como um instrumento poderoso para manutenção da
sociedade: “jamais se fundou um Estado cuja base não fosse a religião”. Esse
fundar do Estado está tanto na perspectiva das antigas religiões com suas
relações diretas com a política quanto para com o Cristianismo e sua
reformulação clássica dos primados sociais239.
O que é claro é que para Rousseau “é importante que o Estado não
fique sem religião”240. A religião como colocada nas Cartas da Montanha,se
mantém no contexto político, não apenas por seu aspecto de utilidade, mas
também pelo de necessidade: “A religião é útil e até mesmo necessária aos
povos”241.
Os homens seguem a lógica da vida em sociedade e, uma vez que se
estabelecem assim, as religiões tornam-se necessidades para que eles se
mantenham unidos e respeitem as convenções. Nenhum povo jamais subsistiu
nem subsistirá sem religião.
A necessidade do fator religião e de toda a carga simbólica que ela
carrega fica evidente nos momentos em que há a exigência do sacrifício da
vida de seus membros. A crença na vida futura e, sobretudo, a esperança da
recompensa por sua entrega, garante em momentos críticos a manutenção do
Estado, não somente como um ente, mas como um sinal de esperança.
Outro fator que aparece diretamente ligado à necessidade de Rousseau
de demonstrar a necessidade da presença religiosa dentro dos contextos do
Estado está encarnado na figura do Legislador.
Como aponta Luis Roberto Salinas Fortes, o Legislador tem como
principal característica a fundamentação de sua ação revestida por uma certa
“autoridade divina”. Rousseau chega a utilizar expressões como “verdadeiro
milagre” para se referir à alma dessa figura excepcional, cuja missão está
239 Separando o poder político entre secular e temporal. 240 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 241 Ibidem. p. 157.
85
associada a uma “intervenção do céu” na história dos homens. Rousseau
conclui o capítulo sobre o Legislador da seguinte maneira:
Não se deve concluir, de tudo isso, como Warburton, que a política e a religião têm, entre nós, um objeto comum, mas sim que, na origem das nações, uma serve de instrumento à outra242
Rousseau conduz o seu pensamento tomando como referência a
necessidade de abrir um canal para a fala dos deuses, e isso fica ao encargo
do Legislador:
(...)trata-se, pois, de um recurso político e não de um princípio religioso. A religião não tem objeto comum com a política, mais não sendo do que um “instrumento” desta, e, ainda assim, tal recurso fica limitado ao momento de origem das nações. Rousseau não quer, de forma alguma, dizer “amém” à política teocrática do bispo243
Ora, a religião é necessária para manutenção da ordem e ficou de certa
forma demonstrado que para Rousseau a relação entre política e religião é
fundamento dos Estados, a alma de sua construção244.
A religião é mesmo necessária para a fundamentação do liame social? A
resposta dada por nosso autor é sim, contudo, já que tanto as antigas religiões
como o cristianismo não cabem nessa lógica como bons modelos de religião
para o Estado. A quem iremos então? Onde encontrar respostas claras
objetivas para uma “boa religião” para o Estado?
A resposta a essas indagações vem na seqüência do texto do Contrato,
no final da segunda parte do capítulo sobre a Religião civil. Rousseau expõe a
subdivisão feita por ele das formas religiosas. Para entender o que é a religião
civil é necessário primeiro entender as religiões que já existiram antes ou
existem sem levar em consideração os pressupostos dessa religião.
242 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo XI, p. 66. 243 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VIII, p. 60. Nota 181. 244 Essa afirmação refere-se a hipótese levanta sobre os Estudos realizados no Contrato Social. Sabemos porém, que textos como o Discurso sobre a desigualdade não se referem a religião como o grande motor social e nem mesmo citam a sua presença na origem das sociedades.
86
3.2. O primeiro tipo de religião: a religião do hom em.
Rousseau expõe o debate entre a religião do homem e do cidadão
tomando como base o tipo de sociedade com que cada experiência religiosa se
encaixa no corpo político. Pensar a religião segundo Rousseau é pensar os
modelos de sociedade que ela pode produzir, ou entender o tipo de relação
que ela é capaz de compor. O modelo de sociedade é o ponto escolhido por
Rousseau para organizar seus argumentos, pois, para Rousseau, ainda
segundo Burgelin, “a sociedade é o mediador necessário de toda religião”245.
Para isso Rousseau coloca a religião dentro de dois grandes
movimentos: ela se apresenta como um fenômeno geral e também como
particular246. Mas como entender a distinção entre sociedade “geral” e
sociedade “particular”?
Primeiro é necessário ressaltar que essa distinção não aparece somente
no texto do Contrato; encontramos as mesmas referências sobre a sociedade
geral e particular no Discurso sobre a economia política. Nesse texto
encontramos referências como a “grande sociedade” e as “sociedades civis”
que nos parece tomar o mesmo sentido. Justamente sobre esse ponto, Derathé
explica nas notas das Œuvres complètes: “A sociedade geral é ‘a sociedade
geral do gênero humano’”, que no fundo segue a expressão que serve de título
ao capítulo II do livro I do Manuscrito de Genebra.
A sociedade particular é a sociedade política ou civil.”247 Isso nos serve
para entender que para Rousseau, uma determinada religião pode ser benéfica
ou nociva para o Estado dependendo da espécie de sociedade à qual
estejamos nos referindo. Isso pode ser entendido de maneira mais franca na
afirmação de Rousseau na primeira das Cartas escritas da montanha:
245 BURGELIN. PIERRE. La philosophie de l’existence de J.J. Rousseau. Paris: Temps Modernes. p.436. 246 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 146. 247 OC III, p. 1502. Nessa afirmação Derathé está se baseando em uma carta de Rousseau enviada a Léonard Usteri (18 jul. 1763), onde lemos: “Vous ne me paroissez pas avoir bien saisi l’état de la question. La grande société, la société humaine en général, est fondée sur l’humanité, sur la bienfaisance universelle; je le dis et j’ai toujours dit que le Christianisme est favourable à celle-là. Mais les Sociétés particulières, les Sociétés politiques et civiles ont un tout autre principe. Ce sont des établissements purement humains dont, par conséquent, le vrai Christianisme nous détache comme de tout ce qui n’est que terrestre: il n’y a que les vices des hommes qui rendent ces établissements necessaires, et il n’y a que les passions humaines qui les conservent.” CG X, p. 37 (apud OC III, p. 1503).
87
Essa palavra sociedade apresenta um sentido um pouco vago; há no mundo sociedades de tipos bem variados e não é impossível que aquilo que sirva a uma, prejudique a outra248
Ora, o desafio, portanto, para Rousseau, é demonstrar qual a verdadeira
natureza da relação estabelecida entre religião e sociedade, pois se trata de
um pré-requisito para o conhecimento do tipo de religião ao qual podemos nos
referir.
A religião chamada por ele como do homem mantém uma relação direta
com a sociedade geral. Sobre essa religião relacionada à sociedade geral
encontramos no texto do Contrato a seguinte referência:
A primeira, sem templos, altares e ritos, limitada ao culto puramente interior do Deus supremo e aos deveres eternos da moral, é a religião pura e simples do Evangelho, o verdadeiro teísmo e aquilo que pode ser chamado de direito divino natural249
Essa primeira religião que Rousseau apresenta nos coloca diante de seu
posicionamento sobre o que ele mesmo pensa ser a religião. Pensar a religião
não é para Rousseau manter o homem preso as relações simbólicos
exteriores, fruto de uma posição contraria ao próprio homem em si mesmo,
pois abre mão de sua própria consciência e razão para aceitar algo que lhe é
completamente estranho a si mesmo250.
Podemos também aqui lembrar que a citação feita no Contrato sobre a
religião enquanto dimensão ligada à sociedade geral faz uma conexão direta
com a religião natural do vigário. Essa ligação se configura exatamente pelo
uso da palavra: teísmo251. Mais à frente, Rousseau se refere a esse modelo
religioso como “a religião do homem ou o cristianismo”.252 Contudo essa
248 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 168. 249 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 140. 250 A ideia de um combate as relações exteriores que não conformem a consciência está presente de forma categórica em Pierre Bayle. Como sabemos que Rousseau foi um leitor de Bayle e em muito aderiu a suas visões, (apesar de não aceitar o ateísmo como um bem), mantém-se fiel a ideia de que nada pode obrigar a consciência do homem, sobretudo, quando o assunto é a sua fé. 251 “Os sentimentos que acabas de me expor, disse-lhe eu, parecem-me mais novos pelo que confessas ignorar do que pelo que dizes acreditar. Neles vejo, com pouca diferença, o teísmo ou a religião natural, que os cristãos fingem confundir com o ateísmo ou a irreligião, que é a doutrina diretamente oposta.” In: Émile, (p. 399). 252 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 141.
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citação aparece com uma ressalva: “não o cristianismo de hoje, mas o do
Evangelho, que é completamente diverso.”253
Mesmo que o verdadeiro cristianismo seja uma instituição de paz, quem não vê que o cristianismo dogmático ou teológico é, devido à quantidade e obscuridade de seus dogmas, sobretudo pela obrigação de admiti-los, um campo de batalha sempre aberto entre os homens e isso sem que, à força de interpretações e de decisões, se possam evitar novas disputas sobre as próprias decisões tomadas?254
Para Rousseau o cristianismo de hoje, não é nada mais do que “um
campo de batalha sempre aberto entre os homens”255, pois, “como lei política, o
cristianismo dogmático é uma má instituição”.256
Aquilo que Rousseau chama de “cristianismo do evangelho” (que, de
certa forma, se aproxima da religião natural do vigário saboiano), também não
se aproxima muito do que realmente o evangelho é, mas da leitura teísta que
Rousseau faz dos evangelhos, tentando retirar dos textos de uma forma
racionalista257, todos os tipos de referência que provoquem confusão ou que
levem os indivíduos a uma leitura supersticiosa das sagradas escrituras.
Rousseau reconhece a religião do evangelho como uma instituição de
paz258 que traz um certo fortalecimento dos laços da sociedade geral:
Pois nessa religião santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, reconhecem-se todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem na morte259
Para Rousseau, a religião do homem une as pessoas e esta união não
pode ser desfeita nem sobre a tutela da morte260. Do ponto de vista da
sociedade geral essa religião pura do evangelho é, portanto, a melhor. Mas,
253 Ibidem. Para entender essa divisão entre o “cristianismo de hoje” e do cristianismo “do Evangelho”. Por cristianismo de hoje podemos tomar como entendimento a forma institucionalizada que a religião Cristão tomou ao longo do tempo e que entre o século XVII e XVIII está atravessando uma grande crise tanto entre a sua forma como com o seu conteúdo. 254 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 255 Ibidem. 256 Ibidem, 172. 257 O que é típico da leitura protestante das escrituras. 258 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 171. 259 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 141 260 Mesmo mortos, os cristãos se unem por um conceito teológico que já estava presente nos primeiro credos do cristianismo que é simbolizado na comunhão dos santos.
89
considerando as sociedades civis, e a complexidade apresentada por elas261,
uma sociedade voltada à “cidadania do evangelho” não seria capaz de produzir
nada mais do que devotos, crentes, mas teria uma grande dificuldade em
produzir cidadãos. É claro que a religião do homem é adequada para o gênero
humano, mas não para os corpos políticos262, uma vez que ela desprende os
corações dos cidadãos do Estado. E é justamente partindo desses
pressupostos que Rousseau apresenta no contrato a conclusão sobre o
modelo de religião do homem que despertou a ira da Igreja: “Não conheço
nada mais contrário ao espírito social”263.
3.2.1 O segundo tipo de religião: a religião do cid adão
Uma vez analisada a ideia de religião do homem, caminhamos para
entender o que seria então a religião do cidadão.
O segundo modelo relacionado por Rousseau é o que ele chama de a
“religião do cidadão”, que está diretamente associada à sociedade particular, à
qual Rousseau se refere nos seguintes termos:
(...)inscrita num só país, dá-lhe seus deuses, seus padroeiros próprios e tutelares, tem seus dogmas, seus ritos, seu culto exterior prescrito por lei(...)264
Como comentamos anteriormente, essa era a religião dos povos antigos,
que “de modo algum tiveram a princípio outros reis além dos deuses, nem
outro Governo senão o teocrático”265, ou seja, que em suas relações para com
o Estado e o divino governante não produziam nenhum tipo de separação. Sua
conduta estava diretamente baseada na ideia de que dentro do Estado não é
possível servir a dois senhores.
A religião do cidadão tem seu fundamento no culto à pátria, ao território,
e é isso que, do ponto de vista da sociedade particular, é considerado por
261 Aqui estamos analisando a sociedade na qual Rousseau está inserido no Século XVIII, vivendo a experiência de uma revolução industrial em curso e as portas da revolução francesa que modificaria para sempre as relações políticas e sociais. 262 Cf. ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 168. 263 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 142. 264 Ibidem, p. 140. 265 Ibidem, p. 137.
90
Rousseau uma virtude. Esse modelo religioso é em outras palavras o território
tomado como objeto de adoração e de culto. Nesses antigos modelos sociais
todo o cerimonial desenvolvido em seu interior revela uma grande função
educativa, celebrar o território é celebrar a própria vida e morrer pela pátria é
se unir eternamente a ela. Nesse caso morrer pela pátria é alcançar o martírio,
violar as leis é estar em pecado; e submeter um culpado à execração pública é
devotá-lo à cólera dos deuses266
Porém, para Rousseau por mais que se aproxime de uma conduta
esperada das relações religiosas e políticas esse modelo religioso provoca uma
certa confusão, pois não permite aos homens distinguir seus deuses de suas
leis.
A religião do cidadão traz em sua essência um princípio que para
Rousseau é impossível de ser aceito como positivo: a intolerância total e
absoluta. Ora, para Rousseau é justamente a força que pode tornar boa à
religião do cidadão perante a sociedade particular é a mesma que a desarticula
perante a sociedade geral. É exatamente o culto ao território que, do ponto de
vista da sociedade geral, leva a consideração de que a religião do cidadão é
em sua estrutura má. Como esse modelo se converteu em um modelo
particular, retido a cada povo isoladamente, ela não apenas torna os homens
crédulos e supersticiosos, mas também, o que é pior, assassinos e
intolerantes.
A aplicação do princípio antigo de união entre Estado e divindade resulta
em divisões nacionais e, por conseguinte, em uma atitude de intolerância
teológica e civil perante as outras nações. Por esse motivo, a religião do
cidadão se apresenta para Rousseau como uma “religião nacional
exclusiva”,267, ou seja, os membros dessa nação são incapazes de tolerar os
deuses e as leis de qualquer outra nação:
Afora a única nação que a segue, todos os demais são infiéis estrangeiros e bárbaros; ela só leva os deveres e os direitos do homem até onde vão seus altares268
266 Giorgio Agabem retoma essa ideia quando nos apresenta a trilogia Homo Sacer. Agabem Trabalha o conceito de execração pública ou isolamento total do individuo do Estado tendo como referência o antigo direito romano e o pensa essa realidade no modelo social contemporâneo, sobretudo, pós a experiência nazista na Alemanha. 267 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 143. 268 Ibidem., p. 141.
91
3.2.2. O terceiro tipo de religião: a religião do P adre
Ora, o que é bem claro para Rousseau é que a distinção entre a religião
do homem da religião do cidadão é feita pela espécie de direito a elas
associado: para a primeira, tem-se o “direito divino natural”; para a segunda, o
“direito divino civil ou positivo”. E essa classificação de direitos vai servir como
critério para que Rousseau rejeite ainda um terceiro tipo de religião:
Há uma terceira espécie de religião, mais estranha, que, dando ao homem duas legislações, dois chefes, duas pátrias, o submete a deveres contraditórios e o impede de poder ao mesmo tempo ser devoto e cidadão. Tal é a religião dos lamas, a dos japoneses e a do cristianismo romano. Pode-se chamar, a esta, religião do padre. Dela resulta uma espécie de direito misto e insociável que não tem nome269
Essa espécie é a variação institucional e corrompida das religiões, e
aqui, como destaque temos o cristianismo, não do evangelho, mas da Igreja
institucionalizada, personificada pela figura do pontífice romano. Essa terceira
variação religiosa, não merece a mínima explicação e já é imediatamente
descartada por Rousseau, pois uma religião assim não serve para outra coisa a
não ser dividir o homem entre seus deveres de devoto e de cidadão.
Essa religião de “direito misto e insociável”270 torna impossível a
qualquer homem estar livre da culpa, seja perante o chefe espiritual no caso o
pontífice, seja perante o chefe terreno, o governante. Afinal, como cumprir
deveres contraditórios sem tornar-se culpado perante um dos dois chefes?
Evidentemente, Rousseau não pode admitir essa terceira espécie, pois ela se
opõe diretamente à operacionalização do Estado.
Esse é o caso do cristianismo romano (ou “religião do padre”), a questão
é que apresenta um “chefe visível” que representa a divindade na terra e que
se opõe politicamente ao chefe civil, causando assim “um conflito perpétuo de
jurisdição” e deixando os homens sem saber “se era ao senhor ou ao padre
que se estava obrigado a obedecer”271. Quanto a essa religião do terceiro tipo,
Rousseau afirma:
269 Ibidem. 270 Ibidem. 271 Ibidem.
92
A terceira é tão evidentemente má, que se perde tempo no divertimento de demonstrá-lo. Tudo o que rompe a unidade social, nada vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo, nada valem272
Uma vez apresentada de forma concisa no texto os três modelos
relacionais da religião e do Estado, Rousseau segue seu raciocínio
apresentando um quadro comparativo das vantagens e dos defeitos
apresentados pelos dois primeiros tipos de religião.
Com esse procedimento, e fazendo uma rápida comparação entre as
duas primeiras formas de religião, o que Rousseau nos revela, segundo
Burgelin, é uma oposição mais fundamental e profunda, entre os modelos de
religião do homem e cidadão273. Para estabelecer o referencial das
comparações, como já foi citado, Rousseau se baseia em dois pontos de vista:
o da sociedade geral e o da sociedade particular.
Podemos, portanto, deduzir que Rousseau estabelece uma certa
hierarquia entre os modelos religiosos em suas formas até então existentes. Há
o estabelecimento de um quadro entre os dois grandes modelos274: de um lado,
a religião do homem associada à sociedade geral; de outro, a religião do
cidadão associada às sociedades particulares.
É aparente que para Rousseau a religião do homem possua uma certa
superioridade com relação à religião do cidadão, contudo, ao apontar no texto
do Contrato essa superioridade, ele não pretende estabelecer uma forma
absoluta da religião do homem sobre a do cidadão, pois é sempre nas relações
que ela estabelece com a sociedade, considerada do ponto de vista geral ou
particular, que são feitas as comparações.
De qualquer modo o objetivo principal de Rousseau ao apresentar no
texto esse quadro comparativo dos modelos religiosos é lançar as bases para a
construção do esquema na qual se sustenta a religião civil e demonstrar que a
sua proposta é um “meio termo” entre o primeiro e o segundo modelo:
272 Ibidem. 273 BURGELIN, P. Le philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Paris: PUF, 1952, p. 445. 274 O texto do Contrato também apresenta a referência a um terceiro modelo, que é o modelo do cristianismo romano, que para Rousseau é tão nocivo em si mesmo que não possui um ponto positivo a ser analisado.
93
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser cidadão275
Esse detalhe é importante: a religião civil não se confunde com a religião
do cidadão, uma vez que não se trata de uma religião nacional exclusiva, cujos
dogmas servem apenas para um determinado corpo político.
Porém a dúvida ainda paira. Como entender esse posicionamento que
Rousseau chama de religião civil entre a religião do homem e do cidadão?
Quais são as exigências desse modelo de religião que se arroga a servir tanto
ao homem quanto ao cidadão? A essas questões daremos conta a seguir.
3.3. A Religião Civil no Contrato Social: entre a religião do
homem e a do cidadão
Para compreender o que a religião civil representa no pensamento de
Rousseau e entender qual a verdadeira natureza da relação entre ela e o
Estado apresentamos o que temos até esse momento do texto.
Destacamos que no pensamento de Rousseau, política e religião são
dois lados de uma mesma moeda. Nas sociedades humanas uma esteve
diretamente ligada à outra. Para Rousseau a história das instituições religiosas
tende a nos mostrar que um sistema governamental só pode ser bem
constituído se em sua formação o poder civil e o poder religioso forem co-
participantes de um projeto comum.
Ressaltamos também que após a análise feita por Rousseau de diversos
“tipos” de relações entre o poder civil e o poder religioso, não foi encontrada
nenhuma modalidade até então existente que de fato sirva para qualquer corpo
político. As religiões nacionais são exclusivas e intolerantes, o cristianismo é
obscuro por dividir a sociedade e os homens entre dois senhores, provocando
uma grande confusão sobre a quem se deve servir, é uma religião que se
apresenta como universal, sem nenhuma relação particular com as nações na
qual está representada.
Rousseau caminha então para pensar em um modelo religioso que não
seja nem nocivo ao homem, a ponto de obrigá-lo a ir contra a sua consciência,
275 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 143 e 144.
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e que também não seja nocivo ao Estado a ponto de desagregá-lo
completamente, impedindo ao homem de devotar a sua pátria o que lhe é de
direito. Porém, estamos diante de um caminho nada fácil, pois Rousseau
demonstra por toda a sua ação textual uma grande preocupação em manter-se
preso a realidade concreta. Seu objetivo não é produzir especulação, não quer
se tornar um “filosofo”276, daí entendemos o seu esforço no sentido de propor
uma religião que seja boa não para o homem em geral, fruto de um conceito
abstrato, mas propor um modelo religioso que sirva as sociedades
historicamente instituídas, que sofrem influência de diversos fatores, e que
sejam capaz de tolerar inclusive outras religiões que não a sua:
(...) O homem é uno, admito; mas o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em geral, e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar (...).277
O autor nos coloca diante de um grande problema. Não podendo optar
pela religião do homem, nem pela religião do cidadão e muito menos pelo
cristianismo romano modelado pelo catolicismo e seu pontífice visível. Torna-se
evidente a necessidade de uma religião alternativa, que possua outra essência.
É justamente diante desse problema que Rousseau abre a terceira e última
parte do texto no Contrato. A solução para esse paradoxo está no que ele
chama de religião civil:
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão.278
A solução de Rousseau, dentro de seu sistema de pensamento em um
primeiro momento parece inusitada. O que temos na verdade se trata de uma
profissão de fé que não seja dogmática? Pouco parece do pensador que na
Carta ao Arcebispo Christophe de Beaumont e no Emilio condena de forma
276 Ou seja, preso as abstrações sem fim. 277 ROUSSEAU. J.J. Carta a d’Alembert, p. 40. 278 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VIII, p. 143 e 144.
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radical a rendição da consciência humana aos dogmas, que no cristianismo
são sustentados pelas profissões de fé279.
Na verdade a expressão “profissão de fé civil” já aparece em escritos
anteriores à redação final do Contrato, como destaque encontramos
referências a essa profissão nas famosas cartas a Voltaire de 18 de agosto de
1756, onde lemos: “Confesso que existe uma espécie de profissão de fé que as
leis podem impor (...)”280. Na seqüência do mesmo momento do texto
encontramos:
Gostaria, então, que houvesse em cada Estado um código moral, ou uma espécie de profissão de fé civil, contendo, positivamente, as máximas sociais as quais cada um seria obrigado a admitir, e negativamente, as máximas fanáticas as quais seria obrigado a rejeitar, não como ímpias, mas como sediciosas.281
Percebe-se que nessas passagens Rousseau tenta separar a sua
proposta religiosa de uma simples compilação de termos teológicos. Nota-se
em alguns termos citados uma tentativa por parte do autor de laicizar os
conceitos, sobretudo, os mais teológicos. É feita uma tentativa para demonstrar
que sua intenção não é transformar sua profissão de fé em um mero conjunto
de ações, ou seja, não é o objetivo de Rousseau apresentar um código moral e
exigir dos membros do Estado uma obediência a esses códigos de forma cega
e sem reflexão282.
O que percebemos na dinâmica do pensamento de Rousseau é que há
uma tentativa de transformação dos dogmas de religião não em um conjunto de
279 Durante os primeiros anos da Igreja muitas heresias surgiram e se transformaram em grande problemas para a Igreja. Exemplos dessa heresias podemos encontrar em Marcião e em Ário. Para resolver os problemas sobre as verdades da fé os concílios resolveram promulgar alguns resumos da fé ortodoxa que deveriam ser professados por todos os membros da Igreja. Esse resumos entraram para a história como credos na qual temos conhecimento de dois que são extremamente famosos, o Niceno e Apostólico. 280 ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 135. 281 Ibidem. 282 Em sua dissertação de mestrado a Professora Maria Constança Peres Pissara, parece também chegar a mesma dedução que os demais comentadores: “A interpretação de Rousseau sobre a religião civil não é uma teologia política, não se trata de retirar, da concepção religiosa, princípios que dirigirão o Estado, como se este fosse uma teocracia. Ao contrário, toda a argumentação orienta-se para a defesa de uma ‘politização’ da religião.” PISSARRA, M.C.P. Religião civil e intolerância: uma análise das “Lettres Ecrites de la Montagne”. Dissertação (Mestrado). São Paulo: PUC-SP, 1988, p. 135-136. Contudo, o que nos parece é que Rousseau não tem a intenção de formular uma teocracia como afirma a professora Maria Constança, mas há em Rousseau uma estrutura que o torna refém de seus próprios vícios de linguagem, nosso autor parece não conseguir se libertar das categorias teológicas, ora de forma católica, ora de forma protestante, quando fala sobre sua religião civil.
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obrigações, mas em “sentimentos de sociabilidade” ou “máximas sociais”; logo,
em um bem para a convivência no Estado. Isso talvez justifique a referência
feita no final do texto à punição de quem não admitir esses dogmas, não está
ligada a cobrança por parte do Estado a uma prestação cerimonial de culto a
uma nova formação religiosa, mas, para Rousseau negar-se a entender a
dinâmica da profissão de fé civil é provocar sedição; um ato contra a
sociedade; enfrentar a vontade geral:
Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever283
Segundo Gouhier, o que Rousseau está buscando nada mais é do que
uma “radical laicização do Estado”.284 O grande problema enfrentado nesse
momento é que no século XVIII não se pode falar em uma separação radical
entre Igreja e Estado. Falar de um Estado laico é enfrentar diretamente a
autoridade religiosa e também a autoridade soberana. É preciso aprofundar
ainda mais as suas intenções, como justificar que essa modalidade religiosa se
difere das demais até então apresentadas.
Para mergulhar nessa nova realidade, será preciso segundo Rousseau
uma espécie de catequização do cidadão285. Seria necessário para todos
entender que a justiça não é mais justiça divina que possui um olhar de
onipotência, tudo vê, tudo pune, e tudo retribui, mas agora é de intensa
necessidade entender os valores humanos, como valores cívicos baseados,
principalmente, no amor às leis e ao território. Trair essa íntima convicção é
condenar-se a estar fora do Estado, deslocado, perdendo a sua própria
identidade, pois somente na sociedade do verdadeiro contrato social a religião
civil é possível286:
283 Idem. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144. 284 GOUHIER, H.G. Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, p. 255. 285 Termo utilizado pelo autor na Carta ao Senhor de Voltaire: “(...)dai-nos agora, nesse que vos proponho, o catecismo do cidadão in: ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 136. 286 Há nessa conclusão uma certa semelhança com a forma de tratamento dada pelos antigos povos estudados por Rousseau aos traidores de sua pátria. Trair a pátria é condenar-se a perdição, não em outra vida, mas nessa.
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Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis287
Mentir as leis, eis um crime imperdoável para Rousseau! Como confiar
em quem trai no fundo a si mesmo e a seu próprio povo? Esses não podem ser
tolerados, pois não podem viver de leis próprias fruto de suas convicções
íntimas. Aparentemente essa dedução nos parece ser intolerante para quem no
fundo busca o problema da tolerância, contudo, não se trata de intolerância e
sim de uma decorrência imperativa da obediência às leis implícita no contrato
social.
A questão se coloca para Rousseau da seguinte maneira: abrir-se às leis
do Estado e entregar-se à vontade geral, formar vínculo de identidade. Negar
as leis do Estado em nome de uma lei particular nada mais representa do que
uma traição, e no fundo a lei pessoal, ou de um grupo isolado, como os
religiosos, é o que realmente provoca a intolerância, sobretudo, quando esse
fundamento jurídico possui uma sustentação que não é civil, mas teológica:
Na minha opinião, enganam-se os que estabelecem uma distinção entre a intolerância civil e a teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com pessoas que se acredita réprobas; amá-las seria odiar Deus que as puniu (...)288
É necessário, portanto, entendermos a punição dos que mentem às leis
não como uma medida cruel e intolerante, mas como um dispositivo para
assegurar a manutenção do corpo político. É importante compreender que na
leitura de Rousseau, qualquer malfeitor, atacando o direito social, pelos seus
crimes torna-se rebelde e traidor da pátria, deixa de ser um seu membro ao
violar suas leis e até lhe move guerra. Entre o inimigo e o Estado será preciso
que um dos dois desapareça.
Para Rousseau, o que justifica a pena de morte não é a liberdade
absoluta do indivíduo em estado de natureza, e sim a liberdade relativa de um
membro da sociedade civil. Podemos entender então que a pena capital é uma
medida necessária para combinar os pontos positivos da religião do homem e
da religião do cidadão.
287 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144. 288 Ibidem.
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Na seqüência do texto do Contrato, Rousseau enuncia os dogmas da
religião civil, em sua versão definitiva e formalizada. No total, os dogmas se
dividem em cinco; quatro positivos e um negativo:
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações ou comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e provisória; a vida futura; a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a santidade do contrato social e das leis – eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, limito-os a um só: a intolerância, que pertence aos cultos que excluímos289
Os dogmas da religião civil tentam novamente trazer ao contexto laico
conceitos que são da esfera teológica290. Existe no texto sobre a religião civil
uma recomendação por parte do autor de que os dogmas sejam enunciados
“com precisão, sem explicações ou comentários”. Essa preocupação de
Rousseau em simplificar os dogmas e apresentá-los de forma clara possui um
significado. Para Rousseau, os dogmas necessitam ser claros e não apresentar
aqueles que dele tomam contato nenhum tipo de dúvida e também não se
tornar para o Estado um tipo de problema sobre o verdadeiro significado de seu
conteúdo.
Podemos entender os dogmas dentro de um conjunto que funcionaria da
forma explicada a seguir. Os quatro primeiros dogmas no sistema religioso de
Rousseau deveriam funcionar como reguladores sociais. Para Rousseau, não
se pode como pensavam os ateus eliminar da ordem social os sensos morais,
pois para Rousseau, a fonte das bases morais não está fundada na religião,
seja ela qual for, mas na razão. Logo, os quatro primeiro dogmas deveriam
estabelecem a moral em bases difíceis de serem questionadas, ao mesmo
tempo em que impedem que as injustiças da vida presente resultem em
desordem social.
Podemos entender que esse pequeno número de dogmas positivos deu
a Rousseau um escape, pois ele não parece querer pensar sobre as iminentes
dificuldades de ter que se pronunciar acerca das verdades das religiões.
289 Ibidem. 290 É difícil não relacionar diretamente os conceitos apresentados por Rousseau com a experiência de fé do cristianismo. Nos parece não ser possível entender que a “felicidade dos justos e a condenação dos ímpios” não derivem da visão cristã que o próprio Rousseau possui de céu e inferno.
99
A intenção de Rousseau nunca foi de discutir o fundamento último das
verdades religiosas, ou se de fato as religiões possuem ou não uma verdade.
Isso já foi expresso por ele nas Cartas da Montanha quando afirma não ser a
sua intenção primeira afirmar se as “religiões são verdadeiras ou falas”. Ele vai
ao encontro de uma possibilidade de pensar os efeitos políticos da religião sem
que para isso tenha que discutir os dogmas que compõe aquela estrutura
religiosa. Trata-se de entender que para Rousseau o problema é pensar a
política e não história das religiões. Logo, como os dogmas apresentados são
comuns a todas as religiões, o problema da verdade (ou falsidade) das
religiões permanece em segundo plano, não exigindo nenhuma solução
imediata no texto do Contrato.
Cabe aqui um outro problema. Já que esses dogmas estão tão próximos
em conteúdo com as dimensões religiosas, poderíamos nos perguntar então
sobre as cerimônias associadas a esses eles.
Esse é um questionamento justificável, afinal, em parte a religião civil é
uma religião de ritos. Contudo, na versão definitiva do Contrato Social que
dispomos, Rousseau não apresenta nenhuma alusão sobre esse cerimonial ou
de como ele deve ser executado. Contudo, alguns comentadores parecem
entender que esse ritual seria algo semelhante às recomendações patrióticas
de jogos públicos e espetáculos ao ar livre que estão presentes no terceiro
capítulo das Considerações sobre o governo da Polônia.
Resta-nos então falar sobre o quinto dogma, que em sua carga
estrutural seria propriamente civil, pois não carrega em sua formulação
nenhuma laicização de conceitos teológicos.
Rousseau resume o quinto dogma em uma única expressão: “a
intolerância, que pertence aos cultos que excluímos”. A base do dogma retira
do Estado todos os cultos que se portam de forma contrária a ele e tende a
assumir apenas os cultos que se adequarem à nova situação. Rousseau define
na carta a Voltaire, um critério objetivo de exclusão das religiões com base nos
dogmas da religião civil:
100
Assim, toda religião que pudesse estar de acordo com o código seria admitida, toda religião que discordasse dele seria proscrita, e cada um seria livre para não ter outra a não ser o próprio código291
Tolerar para Rousseau, na expressão do quinto dogma não significa
aceitação de todo e qualquer culto independente de suas doutrinas, mas essa
tolerância passa pela abertura do culto a uma regulação por parte do Estado292:
“O verdadeiro tolerante não tolera de forma alguma o crime, nem tolera
nenhum dogma que torne os homens maus.”293
Contudo, há no fechamento da exposição sobre os dogmas da religião
civil uma expressão que nos impõe um questionamento ao não uso de
categorias religiosas para expressar os argumentos sobre a intolerância no
quinto dogma, esse termo é expresso pela: “santidade do contrato e das leis”.
Aparentemente, a formulação não parece cumprir aquilo a que se
propôs, ser as bases de uma religião civil, contudo, é consenso entre os
comentares de Rousseau que a mistura entre dogmas de naturezas
diferentes294 é proposital pela própria dificuldade que a proposta de Rousseau
provoca em apresentar de forma civil e laica, conceitos que estiveram durante
décadas sobre o domínio da religião. Mouton defende que uma leitura mais
atenta das intenções do autor nos revelará que o seu grande objetivo não se
limitava a neutralizar e laicizar o teológico / religioso, mas em apresentar
dogmas de uma natureza qualitativamente diferente295.
Derathé, também parece chegar à mesma conclusão quando afirma nas
Œuvres complètes:
Nós seríamos tentados a ver nisso uma estranha confusão entre profano e sagrado. Mas, Rousseau propõe-se precisamente a integrar ao domínio do sagrado o contrato social e a legislação do Estado, de modo a estabelecer, segundo a expressão da Carta a Voltaire, “um código moral” ou, se quiser, uma espécie de catecismo do cidadão. Não mais que a moral, a política não poderia, aos seus olhos, prescindir de uma sanção religiosa. Mas, somente os
291 ROUSSEAU. J.J. Carta ao Senhor de Voltaire in: Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a moral e a religião. São Paulo: Estação Liberdade. p. 135 e 136. 292 É função dos governos e do Estado conhecer o conteúdo das formas religiosas que dentro dele operam. “(...) Cabe ao governo conhecê-la. Apenas nesse ponto a religião entra diretamente sob a jurisdição e ele deve banir, não o erro, do qual não é juiz, mas toda opinião nociva que tende a romper o liame social”. In: ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 157. 293 ROUSSEAU. J.J. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Editora Unesp\ EDUC. , p. 165 e 166. 294 Religiosa e política. 295 MOUTON, Y. J.-J. Rousseau: le Contrat social à l’épreuve de la religion civile”. Cahiers Philosophiques, Paris, n. 92, oct. 2002, p. 27.
101
dogmas civis constituem, propriamente falando, a moral do cidadão, enquanto os outros concernem à moral do homem. Por sua profissão de fé civil, Rousseau esforça-se em vão para suplantar o dualismo que se afirma em toda sua obra e para atenuar a oposição entre o homem e o cidadão296
***
Como conclusão do capítulo, situaremos a religião civil como essa
proposta de “via média” em relação à religião do homem e à religião do cidadão
tendo em vista o dogma negativo da intolerância. Como primeiro movimento, a
profissão de fé civil pode ser localizada como o marco regulador para a
existência das demais religiões no Estado:
Atualmente, quando não existe mais e não pode mais existir qualquer religião nacional exclusiva, devem-se tolerar todas aquelas que toleram as demais, contanto que seus dogmas em nada contrariem os deveres do cidadão297
Nessa citação, localizamos a influência dos escritos de Montesquieu
sobre Rousseau. Montesquieu parte do princípio de que o Estado, para manter
a ordem, deve não só tolerar as diversas religiões existentes, como também
obrigá-las a tolerarem-se entre si298.
A condição é clara para a existência de qualquer religião dentro do
Estado. A exigência é uma só: os deveres religiosos não podem contrariar os
deveres civis. A religiosidade pessoal será sempre respeitada, desde que não
fique retida a convicções e práticas na esfera privada. Não será possível
compreender que uma religião forma o homem de tal maneira que entre o
Estado e a sua fé o homem opte por sua fé. O Estado deve se sobrepor.
Uma outra questão também necessita ser observada. Sobre nenhuma
condição o Estado pode reconhecer uma “religião oficial”, ou dar a alguma
esfera religiosa a autoridade para ter acesso em primeiro plano às coisas do
Estado. Afirmar que fora “Fora da Igreja não há salvação” não representará
mais nada sobre uma tentativa sórdida de amedrontar os homens e
estabelecer controle sobre eles.
296 OC III, Notes et variantes, p. 1505 (nota 6). 297 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII, p. 144 e 145. 298 Cf: Montesquieu. O espírito das Leis. Livro. XXV, Capítulo IX.
102
A religião civil, portanto, trata-se, antes de tudo, de uma solução
prática para o problema que Rousseau se propõe discutir: como o cristianismo
em sua estrutura não pode assumir formas nacionais por não estar apegado à
noção de território esse modelo religioso não pode servir ao estado.
Já nas religiões nacionais, a intolerância e o apego a suas dimensões
territoriais particulares tornam os homens intolerantes. O retorno às teocracias
no grau social em que Rousseau se encontra parece uma impossibilidade.
A religião civil se apresenta, portanto, como um meio-termo adequado
por amenizar a intolerância entre as nações ao mesmo tempo em que se
apresenta como uma alternativa de profissão de fé mais adequada ao cidadão
do que o cristianismo. A religião civil não é um culto à pátria como as religiões
antigas e nem muito menos um culto a uma visão universal do gênero humano
e de sua condição como cidadão do céu.
Em vez disso, a religião civil, é constituída de um credo mínimo,
aceitável em qualquer nação, e visando apenas garantir que os seus
seguidores sejam bons cidadãos e súditos fiéis. Evidentemente, ela não é tão
geral quanto a religião do homem, pois ela não pode perder de vista as
sociedades particulares. A diferença é que a religião civil não se prende a uma
única sociedade.
A expressão cunhada por Rousseau apresenta uma atualidade em uma
época de religiões exclusivistas299. A religião civil para Rousseau tem como
grande função abrir um canal para a conciliação entre o nacionalismo da
religião do cidadão com o universalismo da religião do homem, ou seja,
funcionar como o mediador entre um ponto e outro.
299 Como na França e na Inglaterra em que os cargos públicos e os interesses do Estado eram partilhados com membros das Igrejas ditas “oficiais”.
103
Considerações finais.
Rousseau é um homem do seu século, um período que se caracterizou
pelas revoluções estruturais das formas sociais. No conflito dessas revoluções,
as religiões acabaram por se tornar um tema central na filosofia, seja para
refutar a sua presença no Estado, seja para garantir a sua manutenção sem
dano algum a ela mesma e ao espaço político.
O século XVIII abriu as portas para o avanço sem limite do projeto
moderno que dentre outras coisas solucionaria por meio da razão o fim dos
conflitos religiosos. Diante disso, porque pensar uma religião para Estado?
Essa é sem dúvida uma pergunta de todos que se deparam com a reflexão de
Rousseau sobre a religião civil.
Por primeiro temos que entender que a religião civil é em sua essência
uma religião política. Um dos fatores que tornam necessária a sua presença na
sociedade é sem dúvida o seu caráter de protetora dos fundamentos para a
manutenção da ordem social. O Estado necessita de uma religião para manter-
se ativo e protegido, mas não de qualquer religião mas que se torne parte
constitutiva da sociedade.
Aparentemente essa é uma argumentação muito frágil se não levarmos
em consideração as necessidades dentro do Estado que a religião em certo
momento supre. Uma das primeiras razões para a existência dessa religião
política é sem dúvida a necessidade de criar uma identidade entre os membros
do Estado visando a sua manutenção e defesa. Rousseau entende que o
sacrifício pelo cívico ganha significado se estiver revestido de uma certa
sacralidade, por exemplo a crença que a imortalidade também subsistirá para
aqueles que se entregam na defesa de seu espaço, de sua pátria, de seu
território. Sem o revestimento sagrado, essa atitude pode ser confundida com
uma atitude qualquer.
Observando os conflitos militares atuais, notamos muitas vezes a
dificuldade que alguns exércitos enfrentam para que em suas ações ocorra
uma total entrega por parte de seus soldados. Enfrentar muçulmanos, por
exemplo, é um desafio para os norte americanos no Iraque, afinal, a entrega da
104
vida pela Jihaad é um sinal de martírio e garantia do paraíso. Lutar contra
guerreiros como esses impõe uma dificuldade considerável a qualquer nação,
pois o inimigo despreza a sua felicidade individual para entregar-se a uma
causa. Um país que não consegue pensar com seus soldados o significado
cívico da batalha perde o sentido de sua ação, pois sem o significado do
sagrado a defesa da pátria torna-se uma atitude pequena.
Como segundo ponto, encontramos na necessidade de resguardar de
certa maneira as reservas morais de uma sociedade. A religião é para
Rousseau não o fundamento da moral, mas o que da a ela significado, daí
entender que para ele o ateísmo não é uma posição útil ao Estado, pois em
sua leitura o ateu parece não manter compromisso com nada e ninguém, afinal,
ele elimina completamente as crenças e as substitui por um certo raciocínio
intelectualista, que em si mesmo é vazio.
Ghislain Waterlot chama atenção para essa questão, pois, para
Rousseau tanto o ateu quanto o fanático religioso estão no mesmo patamar de
risco do liame social. O que ocorre é que nenhum dos dois parece disposto a
se entregar pelas causas da pátria, ou ser capaz de desenvolver uma crença
nela, os dois lados tornam-se passivos nessa relação.
Para Waterlot em seu texto “Rousseau: Religion et polítique” defende
que a religião civil no pensamento de Rousseau aparece muito mais como uma
necessidade de sair de um problema provocado pela crise das religiões de
caráter institucional no século XVIII do que por uma convicção meramente
pessoal. Como a crise dos aparatos religiosos se mostrava algo iminente seria
necessário pensar uma forma de preservar dentro do Estado a “religião”.
Rousseau parte então, segundo Waterlot para encontrar nos modelos
religiosos até então existentes e de grande expressão alguns elementos que
poderiam ser mantidos. Nas religiões derivadas do paganismo será mantida a
identificação entre o súdito e a pátria, a visão de sacra, que essa relação
carregou durante séculos.
Contudo, Rousseau sabe que essa visão torna-se superada no momento
em que o paganismo entra em crise e é substituída pela forma institucional do
cristianismo. Pensar o cristianismo não foi tarefa fácil para Rousseau, pois esse
modelo religioso estava presente em sua época e em suas visões de mundo.
105
Um ponto a ser destacado nessa relação de Rousseau para com o
cristianismo é sem dúvida a figura singular de Jesus.
Jesus ocupa um importante e singular lugar no pensamento político de
Rousseau, mesmo sendo identificado como o mentor de um aparato religioso
que introduziu uma das maiores rupturas nos sistemas políticos da historia da
humanidade, Rousseau reserva um lugar em que tenta pensar Jesus um pouco
distante do projeto institucional que os discípulos deram após a sua morte.
Para Rousseau uma coisa é certa, Jesus não teve a intenção de cindir o
liame social, sua pregação parece estar muito mais direcionada a uma acética
ou uma purificação das consciências do que a uma revolução de caráter
absoluto na ordem social. Sua radicalidade não chegou a tal ponto.
Contudo, pelo fato de ser Judeu e assumir uma estrutura monoteísta, o
pensamento de Jesus, ou melhor, não o pensamento do “evangelho”, mas o da
Igreja corre em direção a um conflito com os modelos pagãos até então
instituídos.
O cristianismo tende a gradualmente modificar a ordem de
permissividade de culto do paganismo, pois assumiu a figura de universalidade,
a mensagem não estava direcionada apenas a alguns, como era o caso da
experiência monoteísta judaica, mas a toda a espécie humana. A fé cristã deixa
de ser um principio de condução íntima de vida e se torna um projeto para a
transformação do homem e da sociedade, não há conversão sem mudança
social.
É justamente nesse ponto que o cristianismo assume o seu formato
perigoso, pois pensa não ser mais uma religião como as outras, mas a
verdadeira religião e nesse momento Rousseau localiza o nascimento do
fanatismo e da violência que seguiu o projeto de sociedade sobre a tutela dos
cristãos.
Para Rousseau uma coisa é o projeto de Jesus, outra o projeto do
cristianismo em suas variadas versões históricas. O primeiro modelo é bom e
justo, o segundo, escuso e mentiroso.
Ora, a necessidade de escapar dos modelos existentes até o XVIII era
uma necessidade. O paganismo mostra-se frágil, o cristianismo do evangelho
particular demais e o cristianismo institucional pernicioso ao Estado. A solução
pensada foi uma alternativa entre um e outro, uma religião que conserve o
106
despertar de pertencer a algo maior nos homens e que conduza a sociedade a
um equilíbrio que no fundo beira a felicidade natural.
Ainda refletindo sobre as razões que levam a uma religião política,
encontramos em Rousseau também uma necessidade não somente de ordem
civil, ou exterior, mas de uma relação com a própria condição de existência do
homem, e como trabalha Waterlot há no pensamento de Rousseau sobre a
política e a religião “une caractéristique anthropologique fondamentale”.
Essa característica antropológica fundamental está associada ao
avanço da desnaturalização do homem. Uma vez fora do Estado de natureza o
homem perde a sua estrutura de liberdade, que era própria do seu estado
anterior. Para resgatar essa liberdade ele funda suas relações no contrato,
onde todos dão e todos recebem. A manutenção do contrato está fundada na
vontade geral e na observância das leis, entretanto essas não se apresentam
como leis comuns, mas como a manifestação “divina” do que os homens
devem fazer na sociedade para resgatar a sua liberdade e por fim serem felizes
novamente.
***
A religião civil foi uma invenção de Rousseau enquanto formato
conceitual, sua criação deve-se a união de dois grandes conceitos no seu
sistema de pensamento. Essa via média fora construída sobre as bases da
religião natural, que não deixa de ser a religião do “cristianismo do evangelho”
e da “religião cívica” que em tese era a religião dos antigos povos. Retiradas
das duas as suas fraquezas e conservada a suas qualidades, temos então uma
religião que mantém a moral viva como um ponto de referência para a
condução dos homens e resguarda o Estado do abandono sacro de seus
cidadãos, pois todos estariam dispostos ao sacrifício por sua defesa e por sua
manutenção.
Quando invoca um culto do coração e estabelece o princípio da
necessidade, Rousseau quer instituir uma relação entre de um lado a formação
de um homem livre, que é a condição geral da existência humana, seu bem-
estar e seus infortúnios, e, de outro lado, o nível de importância da experiência
107
religiosa dentro do Estado, garantindo assim o principio orientador da ação dos
homens.
O leitor cuidadoso concordará que o problema discutido nesta
dissertação não reside na definição e no esclarecimento de questões
teológicas. O problema deste trabalho reside nas questões políticas.
Ainda hoje não há nenhuma evidência histórica de que em alguma
sociedade a religião civil pensada por Rousseau tenha existido, mas, a sua
provocante relação com os Estados, mesmo em tese, ainda permanece um
problema aberto para a reflexão filosófica.
108
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