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Antonio Paim

POSSIBILlDADES E LIMITESDE UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA

o prof. Francisco Miró Quesada, em suacomunícacao acerca das possibilidades e limites deurna filosofía latino-americana, buscou urnaposieao conciliatória entre a tendencia que afirmao caráter universal da filosofia e aquela queprocura reduzí-Ia a circunstancia regional.

A solucao encontrada pelo prof. Quesadaparece consistir na redefinicao da chamada filoso-fia da libertacao, tornando-a um segmento daproblemática clássica - ao lado da investigacao deíndole metafísica, da hístoriografía filosófica, dotema da ciencia, da filosofía do direito e dahistória das idéias em nossos respectivos países - efazendo-a descer do pedestal e da sítuacao dedomínio que pretendeu alcancar,

E duvidoso que semelhante solucao sejaefetivamente integrad ora. E até mesmo se se podeintegrar a "filosofía da líbertacao" ao propósitocomum (1).

A plataforma apresentada pela fílosofía dalíbertacao corresponde a um artifício que no Brasildenominamos de atitude participante. Sao partici-pantes aqueles que, declarando fazer história dasidéias, valem-se da obra dos pensadores preceden-tes apenas para divulgar as próprias idéias. NoBrasil tivemos, em diferentes épocas, tres erupcoesde semelhante postura: 1) quando se tratou depromover a difusao do positivismo e das filosofíascientificistas, nas últimas décadas do século XIX;11) quando no país se formou um grupo decidido apromover a restauracao escolástica, na década devinte deste século; e, 1Il) no período

(1) os corifeus desse movimento enfatizamque ñao se trata "da dernarcacao formal de um objeto masda abertura de uma perspectiva nova". (Linhas básicaspara um projeto de filosofar latino-americano. Revista dePüosofta Latinoamericana, 1 (l)jan. -j un., 1975, p.10).No editorial da mesma publicacao diz-se que esse projetocorresponde "a única filosofta possível entre nós".Qualquer outra coisa "é agora e o será muito mais nofuturo um pensar decadente, supérfluo, ideológico, enco-bridor, desnecessárío".

contemporáneo, rnais precisamente: nos anos cin-quenta, quando a difusao do marxismo (2) sevinculo u ao movimento político. Em todos essesmomentos, seus promotores nao se contentaramem colocar suas idéias ao lado das vigentes natentativa de ganhar os espíritos segundo os proce-dimentos próprios da fllosofia.· Nao puderamfazé=lo porquanto falavam em nome da fé e naoda razao. Vinham para anunciar o comeco dostempos e a redencao,

No caso do marxismo de inspíracao militan-te, tem lugar a introducao de urna nova falácia.Como seus partidários chegam á filosofia porimperativo político e ambícao totalitária, queremlogo inverter os dados da questao e enxergar nasdemais filosofías determinado engajamento políti-co. O que está longe de corresponder á realidadedos fatos. Nenhuma fílosofia verdadeira pode levarum pensador a identificar-se corn o programa deurna agremiacao política. Outras serao as fontesinspirado ras.

De sorte que a ambicao integrad ora do prof.Quesada parece-nos fadada ao fracasso. Pelomenos no casobrasileiro. Em nosso país o projetode formular urna filosofía nacional ñao chegou aadquirir a proeminéncía que se lhe atribui emout ras nacoes americanas. Talvez porque tenhamosavancado o suficiente na análise do pensamentobrasileiro a ponto de dificultar a acao daqueles quepretendem usá-lo como ponte para a propagandadas próprias idéias. Com efeito, pode-se apontaros seguintes progressos na matéria: I) logramos

(2) A principal figura do marxismo brasileiro- Leonidas de Rezende (1889/1950) - iniciou umatradicao de interpretacao autónoma, sem vinculacoespartidárias, continuada pelos chamados marxistas hetero-doxos que, embora ñao cheguem a constituir umacorren te filosófica, correspondem a intelectuais derenome no país.

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tuo, tanto' o relatório do prof', Quesada como apróprio temário do IX Congresso Interamericanode Filosofia. (6)

No relatório do prof. Quesada afirma-se quehá um acordo geral entre os historiadores dafílosofía latino-americana de que esta comeca nosfins do século passado e início do presente, com aobra do "Patriarcas". O enunciado exclui o Brasil.Quando concordamos em participar da denomi-nada Bibliografia dos "Fundadores", patrocinadapela OEA, fizemos questao de conceituá-Ios comoaquele grupo de pensadores que se opoe aopositivismo e abre o caminho a restauracao metafí-sica. Ao enfatizar essa circunstancia ñao se preten-deu insinuar que os ciclos precedentes sejamdesprovidos de sígnífícacao.

Assim, é lícito supor que o prof. Quesadatem em vista, talvez, a cultura hispano-americana,ou de modo mais restrito ainda, aqueles paísescolonizados pela Espanha e que contavam, a épocada colonízacao , com uma cultura indígena algodesenvolvida. A restricao toma-se cabível quandose verifica que os seus enunciados nao, sao suficien-temente abrangentes sequer para incluir um paíscomo a Argentina. E muito menos para englobar asnacoes de origem portuguesa e francesa.

A filosofía adquiere relevancia pela importan-cia que alcanca na evolucao da cultura brasileira,em cada um de seus momentos efetivamentemarcantes. Em nosso meio, as tentativas recentesde negar essa evidencia revelaram achar-se aservico de doutrinas que nada tinham a ver com anossa tradícao fílosófíca e consistiam em meroprojeto político, muitas vezes a servico de objeti-vos inconfessáveis. Nosso movimento filosóficoñao chegou a ser envolvido por esse tipo decatilinária e revela pujanca crescente, através dasmúltiplas correntes que o integram. Pois que estacorresponde a grande conquista de nosso tempo: acoexistencia de diversas tendencias, entretendo

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promover a reedícao dos principais textos ,(3); I1)acha-se institucionalizada a pesquisa e o estudosistemáticos do pensamento brasileiro; (4); I1I)estao identificados os principais problemas emtomo dos quais se mobilizou a meditacao brasi-leira; (5) e IV) os momentos de criatividade eoriginalidade cornecam a ser estabelecidos comrelativa clareza.

De modo que pretender, nas atuais círcuns-táncías, negar sígnifícacao ao pensamento brasilei-ro, exige muita leitura e embasamento teórico paratratar das questoes suscitadas e que sao efetiva-mente as essenciais. Apenas para exemplificar,enumero algumas delas: 1) as relacoes entre afilosofía da Universidade pombalina, que Joaquirnde Carvalho batizou de empirismo mitigado, e oradicalismo político da prime ira metade do séculoXIX; 2) a superacao do empirismo mitigado naobra de Silvestre Pinheírc Ferreira (1769/1846); 3)a períodízacao da Escola Eclética e a evolucao desua problemática; 4) o culturalismo de TobiasBarreto (1839/1889); 5) a filosofia política deínspiracao positivista; e 6) o caminho brasileiropara a restauracao ontológica (Lima Vaz - DjacirMenezes - Miguel Reale).

Semelhante enunciado conduz-nos a umaquestao efetivamente nuclear, a saber: porquefilosofia latino-americana? Será que entre nossasculturas nacionais existe tao ampla circularidadeque justifique a ambicao? A resposta só pode sernegativa, podendo-se desde logo indicar, comoexemplo de insulamento e desconhecímento mu-

(3) Acham-se reeditados os textos maisimportantes da fase final do período colonial e do cicloinicial da Independencia (Antonio Genovesi, Freí Caneca,Silvestre Pinheiro Ferreira, Feijó e Eduardo FerreiraFranca); da Escola do Recife (Tobias Barreto, SilvioRomero, Clovis Bevilaqua e Artur Orlando); do positivis-mo político; dos primor dios do neopositivismo, etc.

(4) Funciona em nível de pós=graduacao, naPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, cursodedicado ao pensamento brasileiro e, em nivel de gradua-cao, em diversas Universidades. E grande o número deteses submetidas a Universidade.

(5) Considera-se que a meditaeao nacionalimpressionou-se sobrernaneira com o problema daacepcao de pessoa humana, considerando-a, num largoperíodo, do ponto de vista da liberdade e, posteriormente,do ponto de vista da consciencia. A solucao metafísica doproblema enseja a formulacao de una filosofía política. Asrelacoes 'entre filosofia e ciencia situam-se num terceiroplano.

(6) Ao mencionar pensadores brasileiros,quis o prof. Quesada circunscrever-se ao ámbito de suaespecialidade. Na verdade, entretanto, omitiu os nomesdos mais destacados representantes brasileiros do quedenomina de "filosofia analítica", isto é, a meditacaocentrada na ciencia, a saber: Leonidas Hegenberg, NewtonCarneiro da Costa e Oswaldo Porchat. Na selecao dascorrentes representativas da atualidade, para constituir otemárío do Congresso, ñao estao mencionadas a filosofiacatólica, as versoes contemporáneas do positivismo e oculturalismo que define m, ao lado do neopositivismo, oquadro veigente no país.

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animado diálogo, de que resulta o aprofundamentoda consciencia filosófica. Tal seria a circunstancia

efetivamente digna de ser generalizada em nossocontinente.


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