Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LUIZ VILELA
Autor: Fabiano Sorrequia Oliveira
Orientador: Msc. Robson André da Silva
Brasília - DF
2012
FABIANO SORREQUIA OLIVEIRA
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LUIZ VILELA
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Letras da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para a
obtenção do Título de Licenciado em Letras.
Orientador: Msc. Robson André da Silva
Brasília
2012
Monografia de autoria de Fabiano Sorrequia Oliveira, intitulada “O FANTÁSTICO NOS
CONTOS DE LUIZ VILELA”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
Licenciado em Letras da Universidade Católica de Brasília, em 29 de novembro de 2012,
defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:
Prof. Msc. Robson André da Silva
Orientador
Curso de Letras - UCB
Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel
Curso de Letras - UCB
Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan
Curso de Letras - UCB
Brasília
2012
A minha tia Maria do Carmo Oliveira Sousa,
professora, por seu exemplo de força e
honestidade.
AGRADECIMENTO
Agradeço primeiramente a Deus, por seu amor que me sustenta e conduz.
Agradeço ao meu orientador, professor Robson André da Silva, por seu
profissionalismo, sua dedicação e paciência.
Agradeço aos meus professores da graduação, que ao longo de quatro anos me
enriqueceram com seus conhecimentos e partilharam suas experiências.
Agradeço à professora Vera Lucia Cordeiro da Conceição, por sua estima e presença
amiga.
Agradeço à Offitex e aos seus membros, que me ajudaram a crescer ao longo da
graduação e torcem por meu sucesso.
Agradeço a minha esposa Mara Celiany Mota Sales, por seu apoio, confiança,
estímulo e compreensão.
Agradeço aos meus familiares que colaboraram para meus progressos nos estudos e se
alegram com minhas conquistas.
Agradeço aos meus colegas da graduação, que também colaboraram para meu
crescimento com suas experiências e estímulos.
Ficção é a mais profunda e a mais completa
forma de expressão do homem. Luiz Vilela.
RESUMO
OLIVEIRA, Fabiano Sorrequia. O fantástico nos contos de Luiz Vilela. 2012. 45 f. Letras-
UCB, Brasília, 2012.
As relações do homem com o sobrenatural ou com o inexplicável aos olhos da razão
encontrou espaço na literatura desde a Antiguidade, mas, devido ao grande número de obras
que trouxeram essa temática ao longo do século XVIII, atribui-se a esse período o nascimento
da literatura fantástica. Este trabalho faz um breve percurso pelas manifestações do fantástico
europeu, hispanoamericano e brasileiro, pondo em confronto o posicionamento de relevantes
teóricos do gênero. A literatura fantástica se manifestou de variadas formas ao longo dos
séculos, mas sempre conservando um princípio de causalidade mágica, ou seja, totalmente
arbitrário segundo a lógica científica. Uma vez liberto dos questionamentos promovidos pelo
exacerbado racionalismo, ao qual foi submetido ao longo dos séculos XVIII e XIX, e
influenciado pela mistura dos gêneros e pelas novas técnicas da narrativa, no século XX o
chamado fantástico contemporâneo aparece sem a preocupação de estabelecer as fronteiras
entre o real e o imaginário. Agora, absurdo e cotidiano se misturam, sem que isso desperte a
necessidade de qualquer explicação racional. A narrativa fantástica se volta para o homem e
seu cotidiano, e nela se podem encontrar tanto uma crítica velada à sociedade quanto questões
de caráter existencial. É sob essa perspectiva que abordaremos o fantástico presente nos
contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da noite”, da autoria do escritor Luiz Vilela.
Palavras-chave: Literatura fantástica. Luiz Vilela. Teorias do gênero.
ABSTRACT
Human relationship with the supernatural or the inexplicable to eyes of reason has found its
space in literature since ancient times, but due to the amount of works that focused on this
theme in the 18th
century, the birth of fantastic literature is attributed to this period. This paper
made a brief journey through fantastic manifestations in Europe, Hispanic America and
Brazil, confronting the position of relevant theorists of this literary genre. Although fantastic
literature has manifested itself in many ways throughout time, it has always maintained a
magic causality principle, in other words, totally arbitrary according to scientific logic. Once
freed from the inquiries promoted from the exacerbated rationalism, it was submitted to along
the 17th
and 18th
centuries, and influenced by the mixture of genre and new narrative
techniques, in the 20th
century, the so-called contemporary fantastic arises without the concern
to establish a limit between the real and the imaginary. Now the absurd and the daily blend
without the urge or need of any rational explanation. The fantastic narrative turns itself to men
and their daily routine, inside which both a veiled critic to society and questions of existential
matter can be found. It is under such perspective that we have approached the fantastic within
the following short stories: “O fantasma”, “O buraco” and “Tarde da noite”, all of them by the
writer Luiz Vilela.
Keywords: Fantastic literature. Luiz Vilela. Genre theories.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
1 AS TEORIAS E APORIAS DO FANTÁSTICO 11
1.1 O fantástico generalizado 11
1.2 O “nascimento” do fantástico 13
1.3 O fantástico para Louis Vax, Lovecraft e Todorov 15
1.4 Objeções a Todorov: o fantástico à luz de Irène Bessière e Filipe Furtado 17
2 O FANTÁSTICO CONTEMPORÂNEO 21
2.1 Considerações sobre a verossimilhança artística 21
2.2 O fantástico hispanoamericano 23
2.3 A literatura fantástica no Brasil 28
3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS E AS NOVAS TÉCNICAS DA NARRATIVA 29
3.1 A
questão da mistura dos gêneros 29
3.2 As novas técnicas da enunciação e do enunciado 30
4 A NARRATIVA FANTÁSTICA EM LUIZ VILELA 33
4.1 A fantasmagórica realidade em “O fantasma” 34
4.2 Em “O buraco”, a metamorfose do homem em tatu 36
4.3 Sonho e realidade em “Tarde da noite” 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS 42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 43
9
INTRODUÇÃO
Ao longo do século XX, multiplicou-se o número de teóricos e críticos literários que
passaram a discorrer sobre uma espécie de produção literária em que os eventos apresentados
não encontram explicações dentro do nosso universo racional. A esse tipo de literatura,
nascida na Europa – mais precisamente na França, com a obra Le Diable Amoureux, de
Jacques Cazotte (1719-1792) – convencionou-se chamar de “literatura fantástica”.
Desde muito antes, porém, a questão do inverossímil já se fazia presente na literatura.
Tomemos, por exemplo, a mitologia pagã da Antiguidade ou, mais recentemente, a chamada
mitologia cristã, na Idade Média.
O século XIX já havia testemunhado uma vasta produção de narrativas fantásticas em
solo europeu, tendo no alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1882) seu grande
expoente e, no século passado, foi a vez de a América se render a um grande número de
escritores do gênero, revelando grandes nomes como o do argentino Jorge Luis Borges e o do
brasileiro Murilo Rubião. Em ambos os continentes, essas narrativas promoveram uma
ruptura com o princípio estético conhecido como realismo, que se caracteriza por tomar o real
como objeto da representação ficcional.
No primeiro capítulo, intitulado “As teorias e aporias do fantástico”, trazemos algumas
definições do fantástico, que conduzem o gênero de um sentido amplo a um sentido mais
restrito, bem como as circunstâncias que favoreceram o seu surgimento em pleno Século das
Luzes (século XVIII) e seu fortalecimento no século seguinte. Os esforços dos teóricos na
tentativa de singularizá-lo tomaram caminhos variados. Como resultado, surgiram
“condições” para a ocorrência do fantástico como, por exemplo, os “terrores imaginários”, a
“hesitação”, a “ambiguidade indissolúvel” e a “desconstrução dos discursos que oscilam entre
o real e o anormal”.
No segundo capítulo, sob o título de “O fantástico contemporâneo”, a atenção agora se
volta sobretudo para o fantástico presente em solo hispanoamericano e brasileiro. No
continente americano, determinadas expressões como “realismo mágico”, “real maravilhoso”
e “realismo fantástico” anunciavam uma espécie de literatura em que a presença do
inverossímil indicava não se tratar de uma simples representação mimética da realidade.
10
Importantes reflexões trazidas sobre a questão da verossimilhança interna e do conceito de
“realismo artístico” ajudarão a reconhecer que a literatura não se resume a um compromisso
fidedigno de imitação da realidade tal como a conhecemos.
A questão da mistura dos gêneros e o surgimento das novas técnicas da enunciação e
do enunciado, indispensáveis para a constituição da narrativa moderna, serão tratadas no
terceiro capítulo, que traz como título “A questão dos gêneros e as novas técnicas da
narrativa”. Acompanhando as transformações sofridas pela narrativa tradicional, o fantástico
agora deixa de ser predominantemente “visionário” e passa a explorar os mistérios da mente
humana, sendo também chamado de fantástico abstrato, psicológico ou cotidiano.
No quarto e último capítulo, que tem por título “A narrativa fantástica em Luiz
Vilela”, serão analisados os contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da noite”. A narrativa
de Luiz Vilela, um dos maiores contistas brasileiros da atualidade, é reconhecida tanto por seu
estilo ágil e pela qualidade dos seus diálogos quanto pela profundidade de seus temas, já que
no centro está sempre o homem, com seus sonhos, suas angústias, suas esperanças.
Os três contos escolhidos são bastante representativos do que podemos chamar de
fantástico contemporâneo, sinalizando para uma visão mais ampla da realidade, em que o
absurdo se instaura no cotidiano das relações humanas. O riso irônico, presente nos contos
analisados, revela tragicomicamente uma verdade incômoda: o homem se encontra
irremediavelmente ameaçado pelos próprios pesadelos que cria.
11
1 AS TEORIAS E APORIAS DO FANTÁSTICO
1.1 O FANTÁSTICO GENERALIZADO
Pôde-se constatar, ao longo do século passado, uma grande discussão por parte de
críticos e teóricos a respeito da categoria literária conhecida como fantástico, num esforço de
se estabelecerem as fronteiras entre esta categoria, o “maravilhoso” e o “estranho”. Por outro
lado, houve também uma tentativa de nomear o que Bastos (2010, p. 11) chama de literatura
“elevada” ou de “realismos irrealistas”: “realismo fantástico”, “realismo absurdo”, “realismo
mágico”, “realismo maravilhoso”, “Surrealismo”, onde realismo e fantasia, realismo e magia
ou realismo e sonho se misturam.
Um breve olhar sobre a produção literária da Antiguidade e da Idade Média nos
permitirá concluir que, na literatura, o espaço para o inverossímil sempre foi garantido: dos
deuses pagãos da Grécia clássica à China de Marco Polo e às novelas de cavalaria, contamos
com a presença do “maravilhoso", que é um conceito literário europeu (CHIAMPI, 1980, p.
11). Por sua vez, em meados do século XVIII, o chamado "romance gótico" (nos quais o
cenário e os acontecimentos evocavam terror e horror) abriu caminho para os contos
fantásticos do século seguinte, que têm em Hoffman, Poe e Maupassant, alguns de seus
ilustres representantes (BASTOS, 2010, p. 12).
Mas o que vem a significar a palavra “fantástico”? O dicionário Houaiss (2009, p.
873) mostra que o adjetivo “fantástico” (do latim phantasticu, proveniente do grego
phantastikós) tem sua origem na palavra grega phantasia e significa: 1. “que ou aquilo que só
existe na imaginação, na fantasia”, 2. “que tem caráter caprichoso, extravagante”, 3. “que é
fora do comum; extraordinário, prodigioso”, 4. “que não tem nenhuma veracidade; falso,
inventado”, 5 “LIT. diz-se de obra do gênero fantástico”.
Esta definição, reportando-se a algo “que só existe na imaginação”, que é “fora do
comum” e que é “inventado” aplica-se, segundo Rodrigues (1988, p. 9), mais adequadamente
“a um fenômeno de caráter artístico, como a literatura, cujo universo é sempre ficcional por
excelência, por mais que se queira aproximá-la do real”. Em comunhão com essa perspectiva
está a definição de Salvatore D’ Onofrio para a literatura fantástica:
12
Consideramos fantástico todo texto literário cujo conteúdo fabular, além de não ter
acontecido no plano histórico, não tem sequer a virtualidade de poder acontecer,
porque infringe as leis físicas da realidade em que vivemos e os padrões normais da
nossa razão. O fantástico é, portanto, o extraordinário incrível. (D’ONOFRIO, 1995,
p. 157).
De acordo com Rodrigues (1988, p. 14), fragmentos de textos que não correspondem
ao realismo estrito, concebido dentro dos moldes do Realismo e do Naturalismo do século
XIX, se voltam para o “fantástico” lato sensu, ou seja, em seu sentido amplo, o que nos
conduziria à conclusão de que a narrativa fantástica é a mais antiga forma de narrativa
existente. Vários teóricos, como Dorothy Scarborough, Louis Vax, Jorge Luis Borges, Eric S.
Rabkin e Emir Rodríguez Monegal, só para citar alguns, compartilham dessa visão.
Um exemplo claro de reflexão que vai ao encontro do fantástico em sentido amplo
podemos encontrar em Salvatore D’Onofrio, o qual vê por bem classificar o fantástico como
um macrogênero que engloba várias espécies ou subgêneros:
A esse macrogênero do fantástico pertence uma série de espécies ou subgêneros: os
mitos do maravilhoso pagão e cristão; os contos feéricos e outros contos populares; a
literatura de ficção científica centrada sobre um herói super-humano (Batman,
Superman, Mulher Maravilha, etc.); o romance de terror, cujas histórias vertem
sobre aparições de almas de outro mundo; os contos de lobisomens, vampiros,
corpos humanos ou de animais possuídos pelo demônio; histórias de bruxarias e
feitiçarias; enfim, todos os textos literários em que não há nenhuma explicação
racional possível para os fatos extraordinários apresentados. (D’ONOFRIO, 1995, p.
157).
Um particular florescimento da literatura fantástica no século XVIII, conhecido como
o “século das luzes” – no qual a razão iluminista buscava tudo submeter à claridade dos seus
raciocínios e desacreditar tudo aquilo que parecia obscuro e incompreensível para a razão –
despertou a atenção de vários teóricos, a ponto de muitos acreditarem se tratar de um
verdadeiro nascimento da literatura fantástica. É a respeito desse fantástico stricto sensu que
13
trataremos a seguir.
1.2 O “NASCIMENTO” DO FANTÁSTICO
Como vimos, embora existam os que defendem não ser a literatura fantástica um
privilégio do século XVIII, são numerosos os teóricos que optam por declarar o nascimento
do fantástico entre os séculos XVIII e XIX. Fazem parte dessa segunda corrente teóricos
como Roger Caillois, Tzvetan Todorov, Jean Bellemin-Noël, Irène Bessière e Irlemar
Chiampi entre outros.
À primeira vista, é muito curioso o florescimento da literatura fantástica ter ocorrido
em pleno século XVIII, quando o racionalismo iluminista se empenhava em libertar o mundo
e as mentes da metafísica e do pensamento teológico medieval. No entanto, afirma Rodrigues
(1988, p. 27-28), a racionalidade, devido à própria limitação do homem racional, não
consegue a solução de todos os questionamentos existentes, e, nesse solo de incertezas, o
imaginário ganha um novo vigor, permitindo a reinvenção do fantástico, bem de acordo com
o pensamento da época. Na literatura fantástica dos séculos XVIII e XIX, conclui, o próprio
sobrenatural não é de natureza teológica, mas humana, e os temas são antropocêntricos:
mistura de sonho e realidade, a existência do duplo, o magnetismo e o hipnotismo servem
para explicar experiências etc.
É verdade que a literatura fantástica que se produziu nos séculos XVIII e XIX herdou
da Idade Média “o gosto do irracional e do sobrenatural” (PAES, 1985b, p. 8), o que inclusive
contribuiu para dar-lhe uma definição, mas, ainda segundo o teórico, a sua preocupação
consistia mais “[...] em por em xeque o racional do que o real propriamente dito” (PAES,
1985a, p. 189). Mesmo assim, essa literatura se apresentava como uma alternativa à
entediante imitação da realidade sob os moldes do Realismo e do Naturalismo, muito em voga
na época.
A arte neoclássica setecentista, muito a gosto do racionalismo iluminista, empenhou-se
em exaltar da cultura do povo greco-latino apenas elementos como o equilíbrio, a serenidade,
a objetividade, a rejeição ao sobrenatural, o amor à forma, o que, segundo Silva (1979, p.
437), se caracteriza como uma “[...]visão muito unilateral da cultura greco-latina”. De fato,
como anteriormente mencionou-se e como reafirma o teórico, também estão presentes na
14
cultura grega o gosto pelo irracional, pela agitação, o vínculo ao sobrenatural.
É justo se dizer que o conto fantástico encontrou no Romantismo alemão do século
XIX um terreno propício, no qual a representação da realidade, tal como propunha o realismo
do século XIX, não está no centro das atenções. É o que afirma Calvino:
Assim como o conto filosófico setecentista foi a expressão paradoxal da razão
iluminista, o conto fantástico nasceu na Alemanha como o sonho de olhos abertos do
idealismo alemão, com a intenção declarada de representar a realidade do mundo
interior e subjetivo da mente, da imaginação, conferindo a ela uma dignidade
equivalente ou maior do que a do mundo da objetividade e dos sentidos. Portanto, o
conto fantástico é também filosófico. (CALVINO, 2004, p. 10-11).
Podemos afirmar então que, com o Romantismo, ganham destaque “o subjetivo, o
excêntrico, o individual, o misterioso, o místico, o libertário” (PAES, 1985a, p. 190). A
literatura fantástica parece enfim dizer –prossegue o mesmo autor – que veio “[...] contestar a
hegemonia do racional, fazendo surgir, no seio do próprio cotidiano por ele vigiado e
codificado, o inexplicável, o sobrenatural – o irracional, em suma” (PAES, 1985a, p.190).
Para Rodrigues (1988, p. 10 - 13), o fantástico não permaneceu inalterável ao longo
dos séculos, o que lhe rendeu duas classificações: "fantástico questionado" e "fantástico
naturalizado". Na primeira classificação, equivalente aos séculos XVIII e XIX, o
acontecimento fantástico deveria ser submetido a um quadro de verossimilhança, ser
questionado, explicado, servindo por sua vez de pretexto para uma luta entre razão e desrazão.
Na segunda classificação, que diz respeito à literatura fantástica do século XX, o fantástico,
recorrendo à verossimilhança interna e já liberto dos conflitos alimentados pelo racionalismo,
exclui a necessidade de explicação ou questionamento, de modo que verossímil e inverossímil
se harmonizam dentro do discurso narrativo.
A seguir, voltaremos nossa atenção para o posicionamento de alguns teóricos a
respeito da literatura fantástica. Mesmo assumindo concepções por vezes divergentes, todos
concordam em um ponto: na narrativa fantástica, “o fato se explica por uma causalidade
totalmente arbitrária, do ponto de vista da verdade da ciência” (RODRIGUES, 1988, p. 8).
15
1.3 O FANTÁSTICO PARA LOUIS VAX, LOVECRAFT E TODOROV
Fugindo de uma definição mais abrangente do fantástico, Louis Vax, Lovecraft e
Todorov se dispuseram a identificar na narrativa fantástica alguns elementos ou condições
com os quais pudessem singularizá-la. Como se pode esperar, algumas obras acabariam por
ser postas de fora de suas relações.
Em seu livro A arte e a literatura fantásticas, Louis Vax prefere considerar o
fantástico como um subgênero do maravilhoso, que também abriga o feérico (o mundo dos
contos de fadas, do deslumbrante). Para esse teórico, o fantástico seria “a irrupção do
sobrenatural na natureza cósmica ou humana, sem uma explicação lógica ou religiosa,
induzindo terrores imaginários no seio do mundo real” (VAX apud D’ONOFRIO, 1995, p.
153).
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) tem uma posição semelhante ao considerar
como necessário ao fantástico que o leitor real experimente “um sentimento de temor e de
terror, a presença de mundos e poderes insólitos” (LOVECRAFT, 1945, p. 16 apud
TODOROV, 2003, p. 40).
Em todos os estudos relevantes a respeito desse tipo de literatura, um nome tornou-se
bastante recorrente: o do austríaco Tzvetan Todorov. Embora sua teoria a respeito do
fantástico não tenha sido acolhida por unanimidade entre os teóricos, ele deu uma
contribuição muito importante para a definição do gênero.
Em sua Introdução à literatura fantástica, Todorov desaconselha firmemente a visão
de Lovecraft, ressaltando que o medo, embora esteja frequentemente associado ao fantástico,
não lhe seja uma condição necessária, e tampouco o “sangue frio do leitor” seria um critério
seguro para julgar ser fantástica ou não uma narrativa (TODOROV, 2003, p. 41). Nessa obra
citada, o fantástico se define como uma “[...] hesitação experimentada por um ser que só
conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV,
2003, p. 31), geralmente devendo ser satisfeitas, segundo o teórico, três condições para que o
fantástico ocorra:
Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das
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personagens como um mundo das pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação
natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Em seguida,
essa hesitação deve ser igualmente sentida por uma personagem; deste modo, o
papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a
hesitação se acha representada e se torna um dos temas da obra; no caso de uma
leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante
que o leitor adote uma certa atitude com relação ao texto: ele recusará tanto a
interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. O gênero fantástico é pois
definido essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa e,
em parte, por seus temas. (TODOROV, 1979, p. 151-152).
O acontecimento inexplicável pelas leis naturais surge, portanto, no cotidiano dos
personagens, gerando ambiguidade. Para Todorov (2003, p. 37) a atitude do leitor é
fundamental ao fantástico: ele deve hesitar, mesmo que a hesitação não esteja representada no
interior da obra, ou seja, nos personagens, deve ter uma percepção ambígua dos
acontecimentos narrados, além de realizar uma leitura que nem seja alegórica nem poética.
Destaca, no entanto, que não se trata de um leitor particular ou real, como o faz Lovecraft,
mas de um leitor “implícito” no texto. Para o teórico austríaco, o fantástico seria o momento
da incerteza, da oscilação.
A ambiguidade da narrativa fantástica seria garantida também pela sua própria
estrutura, via artifícios verbais presentes:
A ambiguidade depende também do emprego de dois processos verbais que
penetram o texto todo. Nerval os utiliza habitualmente juntos; são eles: o imperfeito
e a modalização. Esta última consiste, lembremo-nos, em usar certas locuções
introdutivas que, sem mudar o sentido da frase, modificam a relação entre o sujeito
da enunciação e o enunciado. Por exemplo, as duas frases “Chove lá fora” e “Talvez
chova lá fora” se referem ao mesmo fato; mas a segunda indica também a incerteza
em que se encontra o sujeito que fala, quanto à verdade da frase que enuncia. O
imperfeito tem um sentido semelhante: se eu digo “Eu amava Aurélia” não preciso
se a amo ainda agora ou não; a continuidade é possível, mas em regra geral pouco
provável. (TODOROV, 1979, p. 153-154).
Ainda segundo Todorov (1979, passim), a narrativa fantástica se apresentaria como
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uma espécie de linha divisória entre dois gêneros que lhe são vizinhos: o estranho e o
maravilhoso. O “fantástico puro” ou fantástico propriamente dito estabeleceria fronteira entre
o fantástico-estranho (no qual os acontecimentos supostamente sobrenaturais são explicados
pela razão; e caso conduzam leitor e personagem a acreditarem na ocorrência do sobrenatural,
inclinam-se para o insólito ou estranho) e o fantástico-maravilhoso (em que a narrativa que
inicialmente se apresenta como fantástica termina no sobrenatural, ou seja, no inexplicável de
acordo com as leis da natureza). O "estranho puro" se situaria próximo do fantástico,
retratando acontecimentos explicáveis pela razão, mas conservando, contudo, um caráter
"incrível", "extraordinário", em que a explicação sobrenatural é sugerida, podendo ser ou não
aceita. Por fim, o “maravilhoso puro”, no qual o sobrenatural seria aceito sem provocar reação
nas personagens ou no leitor implícito, a exemplo do conto de fadas e da ficção científica,
encontrando-se eles, por sua vez, distantes do fantástico.
1.4 OBJEÇÕES A TODOROV: O FANTÁSTICO À LUZ DE IRÈNE BESSIÈRE E FILIPE
FURTADO
Como citamos há pouco, a teoria todoroviana acerca do fantástico – fundamentada,
sobretudo no que ele chama de “hesitação” entre uma explicação racional e realista e o
reconhecimento do sobrenatural – não se encontra imune a objeções.
A crítica de teóricos a respeito das considerações de Todorov se deve ao fato de elas
serem tidas por muito limitadoras, principalmente quanto à natureza extrínseca da hesitação:
A tese de Todorov tem sido refutada, no todo ou em parte, por inúmeros estudiosos,
que apontam como seu ponto mais fraco a natureza “extrínseca” da “hesitação”, pois
não resulta ela de procedimentos literários, mas já pertence ao senso comum de que
há oposição entre o natural e o sobrenatural, “tal como se manifesta à nossa
experiência”, sendo, portanto, anteriores tanto à semiose literária quanto à
decodificação do texto. (BASTOS, 2010, p. 14).
Um nome que vemos por bem destacar por sua contribuição à teoria do fantástico é
Filipe Furtado, crítico português. Para ele, o fantástico seria uma construção de “equilíbrio
difícil” voltada para o metaempírico, tendo a “ambiguidade indissolúvel” como característica
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fundamental:
Um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade,
a mantém ao longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a
refletir-se em todos os planos do discurso. (...) Longe de ser o traço distintivo do
fantástico, a hesitação do destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero
reflexo dele, constituindo apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a
irresolução face aos acontecimentos e figuras evocados. (FURTADO, 1980, p. 40-41
apud GARCÍA, 2005, p. 6).
Tal ambiguidade, por sua vez, "[...] não pode ser vista como categoria preexistente à
narrativa, mas como decorrência de processos discursivos" (FURTADO, 1980, p. 38-39, apud
BASTOS, 2010, p. 14). Em outras palavras, não será determinante a hesitação do leitor para
que um texto seja caracterizado como fantástico, uma vez que ele, para existir, requer um
discurso no qual a ambiguidade entre natural e sobrenatural vá se manifestando no interior do
texto. Essa ambiguidade aparece na tessitura do texto, segundo Furtado, pela intervenção do
narrador, das personagens ou do narratário, se este último for intradiegético (coincida com um
personagem), “[...] ou quando o narrador o interpela de forma perceptível e com certa
frequência, circunstâncias que, de fato, não se verificam na maioria das narrativas do gênero”
(FURTADO, 2010, s/p).
O teórico português considera ainda que "[...] fazer depender a classificação de
qualquer texto apenas (ou, sobretudo) da reação do leitor perante ele equivaleria a considerar
todas as obras literárias em permanente flutuação ente os vários gêneros, sem alguma vez lhes
permitir fixarem-se definitivamente num deles" (FURTADO, 1980, p. 77 apud BASTOS,
2010, p. 14).
Se por um lado o raciocínio escolhido por Furtado livra o fantástico de “flutuar” entre
os gêneros estranho e maravilhoso, por outro lado, como o teórico mesmo reconhece, o
grande esforço narrativo para construir e manter a ambiguidade indispensável acaba por
limitá-lo, levando-o a “[...] não admitir subgêneros nem a ele se circunscrever um grande
número ou variedade de narrativas” (FURTADO, 2010, s/p.).
Outro nome relevante que adota a via do fantástico “intrínseco” à narrativa é o de
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Irène Bessière. Embora ela considere que o conteúdo semântico do fantástico se relacione de
fato com o sobrenatural ou o extranatural, não deixa de destacar como predominante o seu
caráter literário ou fictício, ou seja, como fruto da criatividade, da imaginação do artista:
O relato fantástico é, por si mesmo, sua causa, como todo relato literário; a descrição
semântica não deve fazê-lo ser assimilado nem pelos testemunhos ou meditações
sobre os fatos extranaturais, nem pelo discurso do subconsciente: ele é comandado
do interior por uma dialética de constituição da realidade e da desrealização própria
do projeto criador do autor. (BESSIÈRE, 1974, p. 2).
Para Rodrigues (1988, p. 29), a dependência de um leitor que hesite entre duas
possibilidades de interpretação se mostra um argumento duvidoso para se estabelecer a
definição de um tipo de narrativa. Da mesma forma, Bessière aponta como característica do
fantástico não a hesitação do leitor, mas a desconstrução, dentro do espaço narrativo, dos
variados discursos que oscilam entre o real e o anormal: “É próprio do fantástico emprestar a
mesma inconsistência ao real e ao sobrenatural, reunindo-os numa só e mesma coerência, que
é a da linguagem e a da narrativa” (BESSIÈRE, 1974 apud PAES, 1985b, p. 9).
De fato, se tomarmos por referência as assertivas de Todorov, um limitado número de
obras pertenceria à literatura fantástica, tendo ela, inclusive, apresentado um curto período de
existência, iniciado por Cazotte, no final do século XVIII e se estendendo até as novelas de
Maupassant, um século depois. Muitos autores também, como Kafka, Jorge Luis Borges,
Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Murilo Rubião e J. J. Veiga, dentre outros, não
seriam representantes nem do fantástico, nem do que Todorov chama de “maravilhoso puro”.
Ao analisar a obra A metamorfose, de Franz Kafka (1883-1924), Todorov não a
considera representante da literatura fantástica tradicional, pois, em substituição à hesitação, o
que se dá diante do acontecimento insólito é o que o austríaco designa por “adaptação”:
Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção
do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural ao sobrenatural.
Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da ‘adaptação’, que se segue
ao acontecimento inexplicável: e caracteriza a passagem do sobrenatural ao natural.
(TODOROV, 2003, p. 179).
20
Em A metamorfose, apenas a noção da referência ao universo das pessoas vivas se
mantém, o que, para o teórico, é suficiente para descaracterizar a ocorrência do maravilhoso,
no qual as leis que governam a narrativa não fazem parte da realidade à qual estamos
habituados. Com Kafka, conclui, o fantástico passa a ser generalizado, estendendo-se a toda a
obra (TODOROV, 2003, p. 182). Nos dizeres de Selma Rodrigues, o absurdo se torna aqui
verossímil e o fantástico deixa de ser questionado para se tornar “naturalizado”: por meio da
coerência narrativa se estabelece a verossimilhança interna, na qual o verossímil se assimila
ao inverossímil em um universo de ficção total (RODRIGUES, 1988, p. 12-13).
Essa nova manifestação do fantástico, conhecida entre os europeus como “literatura do
absurdo” e que tem Franz Kafka como seu maior representante, colheu também seus frutos
em solo americano. Devido à relevância e implicações desse fato, resolvemos dedicar à
Hispanoamérica uma particular atenção, concedendo-lhe o próximo capítulo.
21
2 O FANTÁSTICO CONTEMPORÂNEO
Se considerarmos apenas o fantástico europeu dos séculos XVIII e XIX sob a ótica do
austríaco Tzvetan Todorov, certamente deixaremos de fora do fantástico, conforme citamos
anteriormente, não apenas as obras de Franz Kafka, mas também uma lista considerável de
autores e obras da América do Sul e Central que, no século XX, apresentaram uma tendência
oposta às correntes puramente realistas, seja em favor de uma visão “mágica” da realidade, de
um “real maravilhoso” do continente americano ou de uma poética cuja causalidade seja, por
assim dizer, “mágica”.
Trataremos neste capítulo das peculiaridades da narrativa fantástica em solo
hispanoamericano, bem como, à luz de Emir Rodríguez Monegal (1980; 1987), de Irlemar
Chiampi (1980), de Selma Calasans Rodrigues (1988) e de Alcmeno Bastos (2010), dos
acertos e equívocos da crítica em torno das denominações que tal narrativa recebeu. Antes,
porém, é conveniente levarmos em consideração algumas reflexões sobre a verossimilhança
artística, que nos ajudará a compreender a relação entre literatura e realidade.
2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A VEROSSIMILHANÇA ARTÍSTICA
Antes de nos determos a respeito da inovação literária hispanoamericana do século
XX, convém voltarmos nossa atenção à relação entre literatura e realidade, o que nos
permitirá chegar a duas conclusões: a de que a literatura não se trata de uma simples imitação
da realidade existente, uma espécie de “cópia” do real, bem como a de que o real, para a obra
de arte literária, não requer uma espécie de equivalência ao real tal como o conhecemos.
Com o Realismo-Naturalismo, mesmo que o conceito de verossimilhança
representasse a reprodução fiel da realidade, uma imitação “imparcial, impessoal e objetiva”
dela, os seus adeptos somente conseguiram captar, mediante a limitação do olhar do artista, os
mecanismos sociais e históricos e suas repercussões na vida dos indivíduos (cf.
RODRIGUES, 1988, p. 24). Isso porque é impossível para o artista uma reprodução literal da
realidade que o cerca.
Segundo Silva (1979, p. 143), a noção de que a obra de arte deve manter uma relação
22
de semelhança e adequação com a realidade remonta a importantes filósofos da Antiguidade,
como Platão e Aristóteles. Intermediado pela mimese (imitação), o artista recriaria o real,
partindo de uma realidade já existente, resultando assim em uma arte verossímil, ou seja,
semelhante à verdade.
Ainda que atualmente não se interprete o conceito de mimese aristotélica enquanto
apenas "cópia" do real, o fato é que a tradição ocidental revelou sua vocação para o que
Bastos (2010, p. 9) chama de "realismo verossímil", ou seja, a inclinação para obras segundo
a verossimilhança externa (a realidade comum dos homens). Aristóteles, porém, já
considerava a coerência interna em uma obra de arte como sendo mais relevante do que a
imitação que ela possa realizar do real, de modo que um personagem, mesmo que seja
absurdo (inverossímil), o seja dentro de uma coerência interna requerida pela obra
(RODRIGUES, 1988, p. 21).
Essa coerência interna, à qual podemos também chamar verossimilhança interna, está
limitada ao universo ficcional. Na prática, ela revela todo o vigor que a arte tem de recriar o
real, sem que esse se submeta, necessariamente, às leis que regem o nosso cotidiano:
A verossimilhança dita interna consistiria num sistema de relações que
"naturalizaria" o não natural, tornando aceitável o que, em princípio, não o seria, a
transformação de um príncipe num sapo, por exemplo. Assim, a obra de arte
"escaparia" da acusação de não ser verdadeira, de nem mesmo parecer verdadeira,
pois o mundo que ela nos expõe seria regido por leis diferentes das leis que regem o
nosso. Neste caso, caduca o próprio conceito de verossimilhança, pois tal mundo
dispensaria o paralelo com o nosso. Seria verossímil em relação a si próprio, o que
implica dizer: não apenas semelhante (símil) ao verdadeiro (vero), mas o próprio
verdadeiro. Num mundo em que bruxas podem transformar príncipes em sapos, se o
quiserem, inverossímil seria não o fazerem, querendo (BASTOS, 2010, p. 10).
Um elemento que impossibilita a arte literária de fazer valer, na prática, a noção de
verossimilhança “natural”, conforme concebida por Platão, encontra-se, segundo Roman
Jakobson, na própria natureza da palavra, levando-nos a entender que o realismo é
convencional, figurativo:
Se na pintura, na arte figurativa podemos ainda ter a ilusão de uma fidelidade
objetiva e absoluta à realidade, a questão da verossimilhança “natural” (segundo a
terminologia de Platão), de uma versão verbal, de uma descrição literária é
evidentemente desprovida de sentido. Será que podemos propor a questão do grau de
23
verossimilhança deste ou daquele tipo de tropo poético? Será que podemos dizer que
tal metáfora ou metonímia é objetivamente mais realista que esta outra?
(JAKOBSON, 1970, p. 121).
Após essas considerações, daqui em diante voltaremos nossa atenção ao que
afirmamos há pouco: o Realismo-Naturalismo viu, ainda na primeira metade do século
passado, serem abaladas as suas bases também em solo americano, com o surgimento de uma
nova “crítica de praticantes”, ou seja, de escritores que também são críticos literários.
2.2 O FANTÁSTICO HISPANOAMERICANO
Se na Europa a imaginação romântica comumente associava à narrativa fantástica
aparições visionárias nas quais a irrupção do sobrenatural gerava especulações de ordem
racional, não convém generalizar. Grandes representantes da literatura fantástica como o
alemão T. A. Hoffmann (1776-1882) e o norteamericano Edgar Allan Poe (1809-1849) nos
concederam exemplos bem diversificados de narrativas fantásticas, a ponto de indicarem duas
vertentes que vão, segundo Calvino (2004, p. 13-14), do fantástico “visionário” ao fantástico
“mental”, “abstrato”, “psicológico” ou “cotidiano”; este último, sendo mais “sentido” do que
“visto”, tornou-se predominante no final do século XIX.
Com a chegada do século XX, o fantástico ganhou, por assim dizer, uma nova
roupagem, vendo-se agora livre das amarras do racionalismo e do cientificismo dos dois
séculos anteriores. A narrativa fantástica não mais se esforça para oferecer uma explicação
plausível aos questionamentos da razão:
[...] a “abertura” da racionalidade no século XX veio afinal libertar o fantástico de
seus antigos compromissos com a hesitação entre o natural e o sobrenatural e com a
proibição da visada metafórica ou alegórica. Agora goza ele de plena liberdade para
fazer o que queira – tornar o real de todo absurdo, como em Kafka, ou intercambiar
ficcional e real a seu bel prazer, como em Borges e Cortázar (PAES, 1985a, p. 192).
À primeira vista paradoxal por tentar conciliar opostos “inconciliáveis” sob a ótica da
24
corrente realista do século XIX – realismo e fantasia, por exemplo – a produção literária
hispanoamericana que eclodiu na primeira metade do século XX, como bem afirmamos
anteriormente, evidencia a decadência da estética realista-naturalista, ainda vigente nas
primeiras décadas do mesmo.
Dessa forma, mesmo servindo-se a narrativa ficcional do elemento sobrenatural, o
novo romance hispanoamericano o faz sem recorrer a questionamentos, “naturalizando-o”, o
que para Salvatore D’Onofrio leva o “realismo fantástico” a responder por agora duas
atitudes: serve como recurso expressivo para negar as fronteiras entre o real e o imaginário,
entre o natural e o sobrenatural, bem como para pôr em evidência “o que há de absurdo e
desumano na realidade individual e social” (D’ONOFRIO, 1990, p. 435).
Vários foram os escritores hispanoamericanos inscritos nesse movimento de superação
da poética do realismo, como Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Julio Cortázar, Juan
Carlos Onetti, Uslar Pietri, Adolfo Bioy Casares, Alejo Carpentier, José María Arguedas,
Agustín Yáñes, José Lezama Lima, Leopoldo Marechal, Gabriel García Márquez, Mário
Vargas Llosa, José Donoso, Guilherme Cabrera Infante, Juan Rulfo, Severo Sarduy, Manuel
Puig, Carlos Fuentes. Dentre esses, três merecem nossa atenção particular, pelo motivo de
serem considerados os pioneiros: Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Uslar Pietri.
Conhecido como o iniciador do fantástico na América Latina, o argentino Jorge Luis
Borges (1889-1986) serviu-se inicialmente da expressão “narrativa mágica” e posteriormente
de “literatura fantástica” para se opor à representação mimética da realidade, e dois trabalhos
seus confirmam seus objetivos: o ensaio El arte narrativo y la magia (1932)) e o prólogo a La
Invención de Morel (1940), romance de Adolfo Bioy Casares.
Em Borges: uma poética da leitura, Monegal (1980, p. 161-174) apresenta a
relevância desses dois trabalhos para o novo romance hispanoamericano. No primeiro, Borges
concebe a arte narrativa como um artifício e se baseia no que chama de causalidade mágica
para distinguir dois tipos de romances: o “romance de tipos”, “psicológico”, realista ou
mimético (que imita a causalidade do mundo real) e o “romance de aventuras”, que adota a
causalidade mágica. Esse tipo de causalidade, para Borges, não está associada ao mistério ou
ao maravilhoso, mas a um novo princípio de ordenação causal, a um argumento rígido e
lúcido, oposto à realidade, considerada arbitrária, desordenada e caótica.
No segundo trabalho, Borges, além de reiterar suas convicções anteriores, estabelece
25
uma diferença entre fantástico e sobrenatural. Enquanto no primeiro a causalidade é mágica,
no segundo, ela nem é natural nem mágica, uma vez que depende de seres ou acontecimentos
de todo arbitrários, estando no âmbito que denominamos por “maravilhoso”.
Em seu texto intitulado Jorge Luis Borges y la literatura fantástica (1949), Monegal
se refere ainda a uma importante conferência pronunciada por Borges no dia 2 de setembro do
mesmo ano em Montevidéu, La literatura fantástica, na qual o escritor e crítico argentino
destaca a antiguidade da narrativa fantástica, examina pelo menos quatro procedimentos dela
(a obra de arte dentro da obra de arte, a contaminação da realidade pelo sonho, a viagem no
tempo e o duplo), bem como, rebatendo a crítica de que a literatura fantástica seria uma fuga
do real, defende que, na verdade, esse tipo de narrativa “[...] vale-se de ficções não para
evadir-se da realidade, mas para expressar uma visão mais profunda e complexa da realidade”
(MONEGAL, 1980, p. 179).
A fórmula “realismo mágico” foi aplicada ao novo romance hispanoamericano,
inicialmente, pelo escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, em Letras y hombres da
Venezuela (1948), tornando-se a mais disseminada entre todas. Nessa ocasião, Pietri afirma:
O que veio a predominar no conto e marcar seus passos de um modo perdurável foi
a consideração do homem como mistério em meio a dados realistas. Uma
adivinhação poética ou uma negação poética da realidade. O que, na falta de outra
palavra, poderia denominar-se um realismo mágico. (PIETRI, 1948 apud
MONEGAL, 1980, p. 130).
Contudo, a origem dessa fórmula, ao que tudo indica, data de 1925, ano em que o
historiador e crítico de arte Franz Roh a empregou para referir-se à pintura do Pós-
Expressionismo alemão, associando o que ele chamava de realismo mágico à “arte
metafísica” dos pintores italianos do período posterior à Primeira Guerra. Para Roh, o
“realismo mágico” representaria na pintura alemã uma mistura de duas tendências, realismo e
expressionismo; enquanto a primeira estava preocupada com uma representação mimética da
realidade, a segunda buscaria, por meio do enfoque fenomenológico, “[...] explorar o que está
oculto, atrás ou dentro das coisas, e para a qual o espírito que contempla é mais importante
que a coisa contemplada” (MONEGAL, 1980, p. 133).
26
O italiano Massimo Bontempelli, recorrendo à arte do Quattrocento, inspiradora da
então chamada “arte metafísica” italiana, serviu-se da expressão “realismo místico” e
“realismo mágico” em artigos literários como forma de se opor ao Futurismo e ao realismo da
narrativa italiana do século XX. Tanto para Franz Roh quanto para Bontempelli, ressalta
Chiampi (1980, p. 22), “[...] a nova estética refutava a realidade pela realidade e a fantasia
pela fantasia, ou seja, propugnava buscar outras dimensões da realidade, mas sem escapar do
visível e concreto”.
Outra expressão associada ao novo romance hispanoamericano pelo escritor cubano
Alejo Carpentier é o “real maravilhoso americano”, que se encontra no prólogo do seu
romance El reino de este mundo (1949), com o intuito de designar “[...] não as fantasias ou
invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizavam a
América no contexto ocidental” (CHIAMPI, 1980, p. 32). Eis sua definição de “real
maravilhoso”:
O maravilhoso começa a apresentar-se de modo inequívoco quando surge de uma
alteração inesperada da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da
realidade, de uma iluminação inabitual ou singularmente favorecedora das riquezas
despercebidas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade,
captadas como particular intensidade, devido a uma exaltação do espírito que o
conduz a uma espécie de “estado-limite”. (CARPENTIER, 1949, p. 10-11 apud
MONEGAL, 1980, p. 154).
Ao entrar em contato com as ruínas históricas do reino de Henri Christophe, um nativo
haitiano que se tornou o primeiro rei do seu povo, governando-o de 1807 a 1820, Carpentier
se depara com um quadro de crenças míticas e religiosidade primitiva (o vodu). Esse terreno
de misticismo e religiosidade levou Carpentier a buscar o maravilhoso na realidade
americana. Embora Carpentier tenha tentado por meio desse caminho dissociar sua definição
de “real maravilhoso americano” da influência do surrealismo europeu, ela apresenta, como
veremos a seguir, indícios desse incômodo parentesco.
Para o surrealista Breton, afirma Monegal (1980, p. 156), maravilhoso, fantástico e
real não são contraditórios, mas uma única coisa; e Carpentier não exclui de sua definição
uma “alteração inesperada da realidade”. Por outro lado, continua, as expressões às quais
27
recorre o cubano em sua definição são de clara tendência bretoniana.
Ainda quanto ao Surrealismo, convém reforçar que ele sofreu com o tempo alterações
significativas, passando a acolher “os aspectos mágicos e irracionais do real”, conforme nos
aponta Chiampi: “Se na sua etapa inicial o surrealismo se erigiu como um sistema fechado
que propugnava alcançar o maravilhoso pelo sonho, a loucura e os delírios da imaginação, a
sua evolução assinala o entendimento do suprarreal como imanente ao real” (CHIAMPI,
1980, p. 34).
Para Monegal (1980, p. 180), as fórmulas “realismo mágico” e “real maravilhoso
americano” se tornaram obsoletas, e a persistência de seu uso é fruto do esquecimento e
incompreensão da teoria de Borges a respeito da literatura fantástica; ambas permanecem
mergulhadas “no pântano do realismo”.
Chiampi (1980, p. 22-24) propõe que se faça uma distinção entre literatura fantástica e
realismo mágico, “cujas peculiaridades formais e focos de procedência são distintos”,
lembrando que o segundo termo sofreu um esvaziamento conceitual ao ser aplicado às letras
hispanoamericanas e que “o problema da construção poética do novo realismo
hispanoamericano não pode ser pensado fora da linguagem narrativa, vista em suas relações
com o narrador, o narratário e o contexto cultural” (p. 28-29).
Por sua vez, Rodrigues (1988, p. 64-65) identifica na América hispânica duas
tendências na literatura fantástica em seu sentido amplo ou “naturalizado”: a que explora o
espaço urbano, liberto do tradicional conceito de verossimilhança, a exemplo das obras de
Borges e Cortázar, e a que explora o espaço rural ou pequenos povoados, tendo como
intertexto mitos e lendas locais, buscando reescrever as origens da história do continente, a
exemplo de Gabriel García Marquez, Juan Rulfo e Alejo Carpentier, enquadrando-se
perceptivelmente no chamado realismo maravilhoso.
Embora os teóricos apresentem divergências quanto ao nome a ser dado às
manifestações do fantástico na América Hispânica ou no Brasil no século XX (realismo
mágico? real maravilhoso americano? realismo fantástico? literatura fantástica?), a principal
proposta dessa narrativa parece estar associada ao que Camarini (2008, p. 3) chama de
“representação mais ampla da realidade” (não simplesmente mimética), seja em seus aspectos
culturais e históricos, seja nos dramas individuais e coletivos contra os quais o homem se
defronta em seu cotidiano.
28
2.3 A LITERATURA FANTÁSTICA NO BRASIL
Como vimos, embora possamos apontar um grande número de escritores
latinoamericanos simpatizantes da literatura fantástica, a presença desse tipo de narrativa na
América Hispânica se tornou quantitativamente expressiva apenas por volta da quarta década
do século XX em diante.
No que diz respeito ao Brasil, mesmo que o fantástico não tenha apresentado por aqui
uma produção tão abundante quanto a de seus vizinhos de língua espanhola, os sinais de sua
presença em solo brasileiro surgiram ainda no século XIX. Um significativo exemplo seria
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis.
Considerado um dos maiores nomes da literatura fantástica no Brasil, o contista
mineiro Murilo Rubião (1916-1991) estreia na literatura com o seu livro de contos O ex-
mágico (1947). Um importante trabalho sobre sua obra se intitula Murilo Rubião: a poética
do uroboro (1981), do professor Jorge Schwartz, oportunidade em que, além de refletir sobre
a relação entre fantástico e linguagem, revela ser a obra de Rubião repleta de metáforas e
alegorias com as quais se põe em questão o homem, sua existência, sua vida, ante as
turbulências de um sistema social opressor (RODRIGUES, 1988, p. 67).
Outro nome que convém destacar é o de José Jacinto Pereira Veiga, conhecido por J. J.
Veiga (1915-1999). Estreou na literatura aos 45 anos com Os cavalinhos de platiplanto
(1959), escrevendo ainda A hora dos ruminantes (1966), A máquina extraviada (1967) e
Sombras de reis barbudos (1972), dentre outras obras. O alegórico presente em seus textos
também sugere a tensa relação entre opressor e oprimido e reflexões de caráter existencial
(RODRIGUES, 1988, p. 66).
Além dos que acabamos de citar, escritores consagrados como Mário de Andrade,
Guimarães Rosa, Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles e, em nosso caso, Luiz Vilela, dentre
outros, também podem aparecer na lista dos que se utilizaram em suas narrativas de elementos
fantásticos.
29
3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS E AS NOVAS TÉCNICAS DA NARRATIVA
3.1 A QUESTÃO DA MISTURA DOS GÊNEROS
Já havíamos citado no capítulo anterior que, no final do século XIX, o fantástico
“visionário” deixou de ser predominante, cedendo seu lugar para o fantástico mental, abstrato,
psicológico ou cotidiano. Em outras palavras, a ênfase da narrativa fantástica atual não
consiste em pôr a realidade de um lado e o fantástico do outro, como se o fantástico fosse uma
intervenção do outro mundo. Agora, a própria realidade chega a ser fantástica.
Se atentarmos para as transformações sofridas pela narrativa do século XX, seremos
levados a compreender o porquê de o fantástico ter tomado novas proporções. Inicialmente,
um elemento de fundamental importância para se compreender a narrativa contemporânea é a
mistura dos gêneros lírico, épico e dramático, tal como defende Emil Staiger:
[...] uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou exclusivamente
dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética participa em maior ou
menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor
participação, designamo-la lírica, épica ou dramática. Esta afirmativa fundamenta-se
na própria essência da linguagem. (STAIGER, 1997, p. 190).
Helena Parente Cunha (1991, passim), a partir de Staiger, elenca de maneira bastante
didática os fenômenos predominantes de cada gênero, sendo relevante citarmos alguns.
Dentre as características do gênero lírico, podemos identificar tanto a presença constante de
um eu que se expressa, gerando um clima de indiscutível subjetividade, afetividade e
emotividade, numa fusão entre sujeito e objeto, mundo interior e mundo exterior, quanto a
alogicidade, que obscurece o exercício da razão.
No gênero dramático, acontece a representação das ações pelas personagens, sem a
interferência do narrador, prevalecendo a tensão, razão pela qual todos os acontecimentos
são interdependentes e conduzem a ação para o final. Pertencem a esse gênero a tragédia e a
comédia.
30
No gênero épico, a existência de um narrador tende a trazer objetividade ao evento por
ele apresentado, geralmente narrando progressivamente ações de personagens nobres ou de
caráter elevado. Do gênero épico nasce o romance e o conto, nos quais o autor escreve para
seus leitores.
Se as estéticas clássica e renascentista criam na imutabilidade dos gêneros, dentro dos
quais cada obra deveria ser classificada, esse caminho normativista de fato não consegue dar
conta da diversidade das obras existentes, encontrando vozes contrárias, que se intensificaram
no Barroco, no Pré-Romantismo e no Romantismo. Um exemplo clássico se dá no Prefácio de
Cromwel, no qual Victor Hugo, referindo-se ao drama romântico, promove a união entre o
sublime e o grotesco. Na narrativa moderna, vale reiterar, o que também prevalece é um
gênero participando da essência dos demais.
3.2 AS NOVAS TÉCNICAS DA ENUNCIAÇÃO E DO ENUNCIADO
No século XX, novas técnicas de construção da enunciação e do enunciado
conduziram à fragmentação da narrativa moderna, resultando assim em um
multiperspectivismo narrativo. O resultado desse conjunto de transformações se apresenta
nitidamente nos contos de Luiz Vilela, que iremos analisar no capítulo seguinte.
Em se tratando da enunciação, lembra-nos Salvatore D’Onofrio (1995, p. 60),
enquanto na narrativa tradicional predominava um narrador onisciente neutro (foco narrativo
em 3ª pessoa), visando trazer objetividade ao relato, a manifestação de um narrador onisciente
seletivo, via discurso indireto livre, na qual a voz do narrador se mistura com a voz do
personagem (falsa 3ª pessoa), favorece o aparecimento de vários pontos de vista acerca do
real, gerando uma narrativa desprovida de verdades absolutas.
Outra situação semelhante ocorre quando da manifestação de um narrador-
protagonista, em que a voz que narra é a do personagem principal (foco narrativo em 1ª
pessoa), cabendo a ela revelar as ações e os pensamentos dos demais personagens.
No que diz respeito ao enunciado, vale destacar que outra característica da narrativa
moderna é, segundo D’ Onofrio (1995), a derrocada progressiva do herói romanesco,
influenciada por diversos fatores:
31
A degradação da figura do herói romanesco, iniciada com o romantismo (Os
miseráveis, de Victor Hugo), continuada pelo realismo (Germinal, de Émile Zola),
chega ao ponto máximo no modernismo, quando, pela ação convergente de fatores
filosóficos (intuicionismo de Bergson e existencialismo de Kierkegaard), científicos
(as várias correntes psicanalíticas e a teoria da relatividade), sociais (a
tecnoburocratização, que desumaniza o homem) e morais (a ética hippie), o conceito
de indivíduo, de pessoa una e indivisível, entra em crise, pulverizado pelas leis do
inconsciente. (D’ONOFRIO, 1995, p. 95).
O herói romanesco agora é um sujeito em constante busca, indefinido, sem verdades
incontestáveis. Para Cunha (1991), tais evoluções do gênero narrativo ocorrem naturalmente,
como forma de se adaptarem a uma nova visão de mundo e do homem: “O homem de nossos
dias é um ser perdido num universo sem fronteiras, à procura de si mesmo, à espera das
respostas para as novas perguntas oriundas de sua inquietação de sempre” (CUNHA, 1991, p.
126).
Vale relembrar ainda que a análise das categorias de tempo e de espaço é de singular
importância à apreensão do significado da obra de arte e que, na narrativa moderna, esses
elementos apresentam traços inovadores.
No plano da enunciação, a questão do tempo auxilia no estudo dos personagens
(narrador e narratário). D’Onofrio lembra que a narração será linear quando seguir a ordem
cronológica dos fatos, e invertida quando o narrador, desobedecendo a essa ordem, diz antes
um fato que aconteceu depois ou vice-versa. (D’ONOFRIO, 1995, p. 100).
No plano do enunciado, prossegue o teórico, o tempo pode ser cronológico ou
psicológico. Na narrativa tradicional, predomina o tempo cronológico, ou seja, que pode ser
medido, estando intimamente associado ao princípio de causalidade. Por tempo psicológico,
entende-se aquele que, não mensurável, identifica-se como sendo “[...] o tempo interior à
personagem e a ela relativo, porque é o tempo da percepção da realidade, da duração de um
dado acontecimento no espírito da personagem” (D’ONOFRIO, 1995, p. 101).
O tempo psicológico, encontrado nas narrativas de fluxo de consciência, caracteriza-
se, ainda segundo o teórico, pela abolição das fronteiras entre presente, passado e futuro, que
se dissipam na mente do personagem, restando apenas o presente existencial, que é a do
32
passado modificado pela memória e do futuro pressentido pelo espírito” (D’ONOFRIO, 1995,
p. 101). Esse tipo de narrativa foi explorado por vários escritores como James Joyce, Virgínia
Woolf, William Faulkner e Clarice Lispector, entre outros.
O crítico Robert Humphrey (1976, p. 7 apud D’ONOFRIO, 1995, p. 102) aponta
quatro técnicas básicas para o fluxo de consciência: o monólogo interior direto (o narrador,
em primeira pessoa, é responsável por apresentar o conteúdo de sua consciência), o monólogo
interior indireto (o narrador, em terceira pessoa, via discurso indireto livre, expõe o que se
passa na mente do personagem), o solilóquio (no qual o narrador se dirige formalmente a um
destinatário ou ao público presente) e a descrição onisciente (o narrador-observador descreve,
a seu modo, o que se passa na consciência dos personagens).
A questão do espaço também é relevante dentro da obra de ficção. Para D’Onofrio,
quando se fala em espaço na narrativa, é preciso levar em conta tanto a espacialidade
dimensional quanto a não dimensional. A primeira diz respeito ao espaço comensurável,
dividindo-se em horizontal (humano ou natural) e vertical (divino ou sobrenatural); a segunda,
semelhante ao tempo psicológico do qual se falou há pouco, refere-se ao espaço interior ou
fechado (o espaço subjetivo do eu que fala) ou ao espaço exterior, voltado ao relato
(D’ONOFRIO 1995, p. 95-98).
Coube ao Realismo e ao Naturalismo dos séculos XVIII e XIX uma valorização
exagerada do espaço mensurável na narrativa, chegando ao ponto de ele ser capaz de
influenciar e determinar a conduta dos personagens. Porém, essa perspectiva já não ditava as
regras em romances de escritores como Dostoiévski, Proust, James Joyce, Henry James,
Virgínia Woolf, William Faulkner e outros, por exemplo, que, como vimos, voltaram-se para
narrativas nas quais o elemento psicológico permeia o tempo e o espaço.
No capítulo seguinte, com a análise dos contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da
noite”, poderemos observar os efeitos da mistura dos gêneros e do acolhimento das novas
técnicas da enunciação e do enunciado na narrativa ficcional de Luiz Vilela.
33
4 A NARRATIVA FANTÁSTICA EM LUIZ VILELA
Luiz Vilela inscreve definitivamente seu nome entre os escritores brasileiros em fins
dos anos 60 do século passado, ao publicar, em 1967, às próprias custas e com apenas 24
anos, Tremor de terra, um conjunto de vinte contos que lhe concedeu o Prêmio Nacional de
Ficção.
No cenário em que a ficção de Vilela eclodiu, a sociedade brasileira vivia um período
de intensas transformações. A população urbana se tornou maioria, com a industrialização
impulsionando a economia dos grandes centros do país. No entanto, as desigualdades sociais
se intensificaram e uma grande parte da população se viu vítima do sistema capitalista.
Irrompe uma profunda insatisfação do proletariado e das forças de esquerda contra a
confortável situação da burguesia e da classe média.
Em meio a essas tensões, a classe empresarial brasileira se articulou com empresários
multinacionais e com os militares, conduzindo o país ao golpe civil-militar de 1964, que
sinalizava para a prevalência das forças socioeconômicas dominantes. Nas décadas seguintes,
as crises financeiras acabaram por tornar insustentável o regime militar e, mesmo com a
redemocratização, a crise inflacionária e a estagnação econômica não davam sinais de um
futuro promissor.
De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello (2007, p. 2-3), a passagem de uma
sociedade patriarcal e agrária para uma sociedade urbana e capitalista, com consequente
adoção de novos valores, comportamentos e expectativas típicos dessa nova sociedade – tais
como um crescente individualismo, que se manifesta no culto ao capital e na fruição dos bens
de consumo – também influenciou a prosa de ficção brasileira na direção de uma temática
urbana, e vários contistas, a exemplo de J. J. Veiga, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Sergio
Sant’Anna e Ignácio de Loyola Brandão se serviram do insólito e do irracional para tecerem
suas críticas à “[...] realidade opressiva, sem saída e sem qualquer alternativa que possa fazer
face à injustiça” (MELLO, 2007, p. 3).
Já havíamos mencionado no capítulo anterior que, referindo-se aos contos de Murilo
Rubião, Jorge Schwartz (1981) identificava não apenas uma crítica à sociedade e seus valores
opressivos, mas também questões de caráter existencial, como bem elenca Selma Rodrigues:
34
“[...] a condição absurda do estar-no-mundo, a incomunicabilidade e a solidão – temas caros
ao existencialismo e que também têm raízes na obra de Kafka” (RODRIGUES, 1988, p. 67).
Na leitura dos contos de Luiz Vilela, a temática urbana também prevalece, e o homem
e seu cotidiano são as matérias-primas da narrativa, da qual emanam igualmente situações em
que o insólito irrompe, ora numa espécie de crítica velada à sociedade, ora voltando-se para o
angustiante desafio da existência.
Uma das características marcantes de seus contos é a presença constante de diálogos,
numa linguagem enxuta, polifônica e bem humorada, que o permite problematizar questões
filosóficas e ironizar instituições sociais.
4.1 A FANTASMAGÓRICA REALIDADE EM “O FANTASMA”
O conto “O fantasma”, narrado em primeira pessoa, nos põe, logo de início, diante de
uma situação insólita: o narrador declara ter encontrado o fantasma de um homem decapitado.
É interessante destacar que a narrativa em primeira pessoa se caracteriza, segundo
Ronaldes de Mello e Souza (2007, p. 141), “pela coexistência, numa só pessoa, de dois eus,
um narrante (o narrador) e outro narrado (o protagonista)”, o que, prossegue, acaba por gerar
uma “perspectiva dual na representação dos eventos narrados”: uma externa, a do narrador
distanciado do palco dos eventos, que possui a capacidade de refletir sobre os acontecimentos
que narra, e uma interna, a do protagonista, passionalmente envolvido com as experiências
por ele imediatamente vividas. Essa técnica da narrativa de primeira pessoa já se fazia
presente em importantes obras da literatura universal, como Odisseia, de Homero, A Divina
Comédia, de Dante e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Essa dupla perspectiva da narrativa de primeira pessoa a conduz para além de um
simples relato de acontecimentos e se constitui como uma forma de conhecimento que
envolve tanto a consciência racional quanto a experiência emocional (SOUZA, 2007, p. 142),
além de ser mais um elemento que favorece a diluição dos limites entre real e imaginário, via
influência da subjetividade:
O ensinamento mais precioso da narrativa de primeira pessoa consiste no
reconhecimento de que a significação da realidade depende da subjetividade de
quem a representa. Não há realidade em si mesma. Toda realidade é duplamente
35
filtrada pela reflexão do narrador e pela emoção do protagonista (SOUZA, 2007, p.
153).
O episódio do encontro com o fantasma se passa em um sobrado abandonado e
distante da cidade, mergulhado em uma paisagem deserta, inerte e em um silêncio quase
sepulcral. O anoitecer, a região deserta, a chuva torrencial, o escuro, sons estranhos, vindos da
parte de baixo do sobrado, a tensão cautelosa do narrador, a solene interrogação do fantasma,
tudo parece evocar o mistério, o perigo e o medo: a atmosfera que nos faz lembrar a ghost
story ou o romance de terror, as histórias sobre a aparição de almas do outro mundo, bem ao
gosto do romance gótico inglês do século XVIII e que, segundo D’Onofrio (1995, p. 157),
podem ser consideradas uma espécie ou subgênero do fantástico.
A sucessão dos eventos no conto tendem a contrariar a lógica do terror, como
demonstra o início do inusitado e desconcertante diálogo entre o homem, sereno, e o
fantasma, desiludido, em que serão postos frente a frente, como bem mencionamos há pouco,
imaginação e existência, fantasia e realidade, razão e sentimento:
Eu estendi a mão para ele:
– Já o conheço: o senhor é o fantasma do decapitado, não é? Muito prazer.
– Muito prazer?
Ele levou tanto susto que sua cabeça caiu no chão. Catou-a, tornando a pô-la no
pescoço (VILELA, 1977, p. 95).
Como vimos, a vasta produção da literatura fantástica dos séculos XVIII e XIX punha
em diálogo a razão iluminista e a imaginação do idealismo alemão, “[...] com a intenção
declarada de representar a realidade do mundo interior e subjetivo da mente, da imaginação,
conferindo a ela uma dignidade equivalente ou maior do que a do mundo da objetividade e
dos sentidos” (CALVINO, 2004, p. 11). Parece ser essa a conclusão do fantasma ao alertar
seu inquilino sobre o perigo de “raciocinar demais”:
– Você tem razão. Mas você raciocina demais, e isso não é nada bom. Raciocinar
demais faz esquecer o medo, e o medo é necessário (VILELA, 1977, p. 99).
Se a fria e calculista racionalidade do narrador lhe suprime o medo, e seu encontro
com o sobrenatural se torna uma experiência banal, inofensiva e mesmo cômica, para o
fantasma do decapitado, o relato sobre a realidade dos viventes, a realidade dos homens e suas
36
relações, que até então desconhecia – imersa em façanhas tecnológicas, ferida pelo descaso
quanto à busca de cura para as mazelas físicas da fragilidade humana e por conflitos armados,
ameaçada pelo uso e fabricação de material bélico poderoso e de sobreaviso quanto à
possibilidade de autodestruição – aos poucos irá se transformar em uma experiência
aterradora, a ponto de o próprio fantasma, resoluto, optar por abandoná-la:
– Não posso – ele disse, com a voz ainda trêmula. – eu morreria de medo. Não posso
mais ver um homem. Por favor, é a última vez que eu apareço no mundo...
(VILELA, 1977, p. 100).
De fato, o semblante perplexo e amedrontado do fantasma reflete uma realidade
espantosa e que, no entanto, parece ter-se tornado banal para o homem. O absurdo se insere
no cotidiano das pessoas por meio das várias formas de violência que corroem as relações
humanas, a tal ponto que os indivíduos vão se tornando insensíveis e pouco propensos a
surpresas “do além”:
– Quem tem medo de fantasmas hoje em dia? – eu disse, mas, percebendo que fora
indelicado, pedi-lhe desculpas. (VILELA, 1977, p. 96).
A essa realidade tão fantasmagórica e aterrorizante quanto o homem que a produz,
diante da qual o próprio fantasma do sobrado, ao se perceber frágil e impotente, emudece,
Vilela lança sua ironia bem humorada. Como bem observou Campos (2008, p. 134), a
inversão dos papéis entre o homem e o fantasma “[...] proporciona uma reflexão acerca da
barbárie, na qual vivemos”. Além disso, a sátira de Vilela denuncia o homem enquanto vítima
dos próprios pesadelos que cria e dos quais busca refugiar-se.
4.2 EM “O BURACO”, A METAMORFOSE DO HOMEM EM TATU
Metamorfose significa transformação, sendo um tema bem recorrente na literatura
universal, desde a cultura greco-romana até a obra A metamorfose, de Franz Kafka, que
instaura o chamado fantástico contemporâneo. Nela, o caixeiro viajante Gregor Samsa, de
súbito, vê-se metamorfoseado em um inseto.
Aqui no Brasil, Murilo Rubião explorou várias vezes esse tema, como em seu conto
“Teleco, o coelhinho”, no qual se dão as diversas metamorfoses de um coelho que, por fim,
37
adquire a forma humana. No caso de “O buraco”, o próprio protagonista se põe a narrar sua
lenta e trágica transformação em um tatu.
Mais uma vez, a narrativa em primeira pessoa colabora para a perda de objetividade
perante o relato: a lógica racional e cartesiana se esvai diante de um narrador que, desde o
início, oscila entre incertezas, acuado por questionamentos e sentimentos contrários e às
voltas com acontecimentos simplesmente inexplicáveis aos olhos da razão.
De fato, logo nos primeiros parágrafos do conto, deparamo-nos com uma estranha
relação de proximidade entre o buraco, externo e visível, e a subjetividade do protagonista. O
primeiro parece mesmo transcender sua dimensão física e repercutir na interioridade do
segundo, a tal ponto que, para ele, extinguir o então inconveniente buraco seria pôr termo à
própria existência:
O buraco, somente eu poderia enchê-lo. Porque a essa conclusão eu havia chegado:
o buraco estava ali, e não adiantava querer ignorá-lo; o que eu tinha de fazer era
enchê-lo. Foi o que tentei, já rapaz, e não pude: cada pá de terra atirada dentro do
buraco era como se fosse atirada dentro de minha boca. Eu não podia fazer aquilo,
era como se eu estivesse me assassinando (VILELA, 1977, p. 20).
A enfadonha relação do protagonista com as pessoas que cotidianamente o cercam
conduzem-no a desejar o isolamento e o silêncio do buraco. Nesse sentido, a ambígua figura
do buraco – exterior, mas também interior – surge como símbolo da incomunicabilidade entre
os indivíduos, o que, segundo José Renato Pimentel, é a temática predominante em Tremor de
Terra:
Tentando pesquisar a obra de Luiz Vilela, seja nos contos publicados na imprensa ou
nos do livro “Tremor de Terra”, encontramos, sem dificuldades, a predominância de
um tema: a incomunicabilidade. É este o esteio de sua construção literária. Através
dessa incomunicabilidade, L. V. está dando um testemunho de sua época, realizando
obra de participação psicossocial (PIMENTEL, 1968, p. 9).
As transformações físicas no corpo do protagonista ocorrem à medida que ele vai se
ambientando com o buraco, cada vez mais profundo – a corcunda surge, o rosto se afina e
escurece; as mãos se transformam em patas, torna-se impossível manter-se de pé, a voz
emudece – todas reforçando ainda mais o rompimento da lógica e das certezas da narrativa
tradicional, como que a afirmar a inutilidade de qualquer tentativa de explicação razoável para
a trágica sorte do herói:
38
Como explicar para ela que nem eu, nem ela, nem ninguém tinha culpa daquilo, que
aquilo acontecera porque havia começado um dia, e havia começado por um simples
acaso? E tudo era assim porque havia começado assim, e que se tivesse começado de
outro jeito, teria sido de outro jeito, mas que ninguém poderia saber por que uma
coisa começava desse ou daquele jeito, e que, mesmo que soubesse, isso não
adiantaria nada porque a coisa já havia começado? (VILELA, 1977, p. 23).
Mesmo se transformando fisicamente em um tatu, o personagem permanece com a
capacidade de sentir e pensar como um homem e, ironizando sua trágica condição, consegue
rir de si mesmo. O narrador autorreflexivo de “O buraco” simboliza perfeitamente o que
Souza (2007, p. 148) chama de “interdependência entre vontade, sentimento e razão”,
inseparáveis da própria condição humana. É justamente com esta perspectiva que o conto se
encerra:
Mas logo voltei a mim e pensei: diabo, quê que eu quero? por acaso queria que ela
continuasse minha noiva? Acabei achando a ideia divertida, e pensei numa manchete
de jornal assim: “Mulher apaixonada por um tatu mata-se.” Seria engraçado
(VILELA, 1977, p. 26).
4.3 SONHO E REALIDADE EM “TARDE DA NOITE”
Se formos elencar alguns temas do fantástico, o sonho seguramente será um deles, e
Vilela se serve desse recurso para criar, à semelhança de “O fantasma”, um tenso e ao mesmo
tempo bem humorado diálogo, por telefone, entre um senhor casado e uma moça que ameaça
suicidar-se. É o que se passa no conto “Tarde da noite”, que dá o título à terceira coletânea de
contos do escritor, publicada em 1970.
Ao lado do pacto diabólico, como em Le Diable amoureux (1772), de Jacques Cazotte,
onde natural e sobrenatural constituem o cerne do enredo, do inanimado que de repente passa
a agir por si mesmo, como em “A Vênus da Ilha” (1837), de Prosper Mérimée ou da questão
do duplo, como em “O outro”, de Jorge Luis Borges, o sonho aparece, segundo Rodrigues
(1988), como uma maneira de romper as fronteiras entre o real e o irreal:
O sonho tem sido usado frequentemente como explicação, mas o que determina a
fantasticidade stricto sensu é exatamente a brecha deixada pela narrativa ao inserir
39
no enunciado a pergunta: Será ou não sonho? Ou seja, uma indagação sobre os
limites entre o sonho e o real (RODRIGUES, 1988, p. 33-34).
Essa mistura entre sonho e realidade está presente, a título de exemplo, no famoso
conto “O pé da múmia”, do francês Pierre Jules Theóphile Gautier, em que se pode identificar
“um alto nível de ambiguidade e de ficcionalidade de um texto narrativo” (RODRIGUES,
1988, p. 35).
No conto “Tarde da noite”, logo de início, a ambiguidade decorrente da mistura entre
sonho e realidade é reforçada intencionalmente, tanto no plano da enunciação quanto no do
enunciado, via afirmativas que imediatamente se opõem:
“Um telefone tocava com insistência no sonho – o homem abriu os olhos: não era no
sonho. A mulher também acordou, e os dois se olharam”. (VILELA, 1970, p. 179).
O narrador de terceira pessoa ironiza a situação de embaraço em que se encontram os
personagens, que insistem em separar sonho e realidade, e conduz o leitor a aderir a uma nova
perspectiva, distante da lógica tradicional. Agora, objetividade e subjetividade se misturam no
relato, a ponto de serem desfeitas as fronteiras entre a realidade e a fantasia.
Por meio do diálogo, tomamos conhecimento da profunda frustração de um homem
perante a monotonia que há nove anos envolve o seu matrimônio, a ponto de levar o sujeito a
desejar novas aventuras e insinuar-se para sua idealizada interlocutora. Ela, por sua vez,
diante de sua liberdade de escolha, vê-se impelida ao suicídio; seu raciocínio a tornou cética e
irônica, parece tê-la encaminhado à conclusão de que tudo é relativo, senão inútil e, por isso,
causa tédio e conduz ao não sentido da vida, à tristeza:
“É algum problema de doença? Posso saber?...”
“Saber? Pra quê?... Pode sim; não, não é nenhum problema de doença.”
“Quê que é, então?”
“É que...É inútil, a tristeza jamais me deixaria.”
“Como?...”
“É uma frase de Van Gogh, a frase que ele disse para o irmão, antes de morrer... Fez
uma pausa. O senhor é meu irmão...”. ( VILELA, 1970, p. 196).
A questão do suicídio surge quatro vezes no livro Tarde da noite. Ela está presente já
em “Lembrança”, que abre a coletânea, mas também em “No sábado” e em “O suicida”. Em
“Tarde da noite”, o último de uma lista de vinte e cinco contos, ela reaparece no meio da
40
narrativa, e o protagonista, na tentativa de evitar que o mesmo fato ocorra, é aos poucos
conduzido a um estado de intensa aflição, desespero mesmo:
De novo o telefone. “Alô”, disse. Ninguém atendeu. “Alô”, insistiu. O telefone
estava ligado mas ninguém atendia. “Alô, alô”, repetia aflito, “alô, alô, alô!”
(VILELA, 1970, p. 197).
Referindo-se ao livro Tremor de terra, Ramos (1974, p. 220) afirma que a temática de
Luiz Vilela “[...] se fundamenta no drama existencial, que culmina na metamorfose do homem
nostálgico de suas origens, concretizada através do símbolo do tatu”. Essa temática
existencialista está presente também em vários contos de Tarde da noite.
O Existencialismo surgiu ainda no século XIX, com Kierkegaard (1813-1855), e se
fortaleceu no século passado, com Martin Heidegger (1889-1976) e Jean-Paul Sartre (1905-
1980). Suas doutrinas antropocêntricas, segundo D’Onofrio, deixaram de lado “[...] as
especulações trancendentais sobre a essência de Deus, do homem e da natureza” e se
preocuparam “[...] especialmente com a problemática da existência humana, na tentativa de
alcançar-se a autenticidade através da prática do conhecimento de si próprio e da rejeição das
ideologias aprisionadoras”. (D’ONOFRIO, 1990, p. 412).
A valorização do sofrimento, decorrente da liberdade do homem, é uma de suas
características, como indica Souza (2003, p. 131): “O homem é liberdade; liberdade é escolha;
toda escolha é dolorosa; o sofrimento é, pois, uma decorrência da própria natureza livre do
homem”.
No conto “Tarde da noite”, encontramos personagens marcados pelo angustiante
desafio da condição humana: uma moça provavelmente solitária que, vendo quão inútil
qualquer esforço para se compreender o sentido da vida, acredita encontrar no suicídio um
alívio para suas inquietações; um senhor que, aprisionado à sua entediante vida matrimonial,
vê a mulher idealizada converter-se bruscamente em pesadelo. Ambos, enfim, reduzidos a
duas vozes unidas ao acaso por uma simples linha telefônica e reféns de suas próprias
escolhas.
No final do conto, a ambiguidade entre sonho e realidade é novamente anunciada:
“Acorda”, falou a esposa, “você está sonhando?”
Acabou de abrir os olhos. Por um segundo pensou que o resto também tinha sido um
sonho – “tudo foi apenas um pesadelo”. Mas não; fora real, muito real. (VILELA,
1970, p. 197).
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No conto, os absurdos do sonho vão se mesclando ao absurdo da existência, a ponto de
ambos – o real e o sonho – parecerem fazer parte de um mesmo e único pesadelo. Se por um
lado o narrador irônico consegue rir com o leitor do desencontro e da incompreensão
reinantes entre os personagens, nem por isso ignora que os dramas por eles vividos apontam,
como bem sentencia Azevedo (2003, p. 466), para um elemento bastante presente na narrativa
de Vilela: a vida do homem tem se tornado cada vez mais absurda. Eis um campo que tem
sido fértil para a narrativa fantástica contemporânea.
42
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a declaração de que a literatura fantástica representa situações que desafiam a
lógica racional, se torna até compreensível que muitos acreditem se tratar de uma fuga da
realidade, imaginação doentia ou atividade inútil, desmerecendo-a. É que é mais prático e
cômodo para nós escolhermos o convencional e evitarmos caminhos que não sabemos aonde
nos conduzirá.
No entanto, é preciso reconhecer, como bem observou Jorge Luis Borges (1949 apud
MONEGAL, 1980, p. 179), já na primeira metade do século passado, que a narrativa
fantástica se propõe, antes, a expressar “uma visão ainda mais profunda e complexa da
realidade”.
Ao analisarmos a narrativa fantástica contemporânea presente nos contos de Luiz
Vilela, tomamos como verdadeiras e bem contextualizadas as palavras de Borges. Diga-se,
inclusive, que nunca como antes a narrativa fantástica, hoje, caminha tão próxima da condição
humana.
Na época do seu surgimento, a literatura fantástica era palco privilegiado da luta entre
a razão e a imaginação, e o inverossímil, ao violar as leis naturais e causar espanto, se insurgia
contra os anseios de objetividade do pensamento cartesiano. O fantástico contemporâneo, por
sua vez, rompe as barreiras entre verossímil e inverossímil, libertando-os de questionamentos.
A narrativa fantástica em Luiz Vilela traz para o centro das atenções o homem, sua
realidade e seus dramas existenciais. A mistura entre cotidiano e fantástico, levada a efeito
pela mistura dos gêneros e pelas novas técnicas da enunciação e do enunciado, fortalece ainda
mais a ideia de que, no homem, a despeito do que pretendia o racionalismo positivista,
vontade, sentimento e razão seguem interdependentes, pois fazem parte da própria condição
humana.
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