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Em Defesa do Poeta Árquiasou a Magna Charta do HumanismoPor Paulo Pinto
INTRODUÇÃO
Aulo Licinio Archia1
(Árquias), o poeta de
origem grega que se
estabelece em Roma, é
acusado por um tal
Grátio de ter falseado o
seu direito de cidadania
romana, direito esse
que lhe era facultado
pela Lex Plautia
Papiria2. Grátio,sustentando-se no facto
de um incêndio,
durante a Guerra
Itálica3, ter destruído
toda a documentação,
baseia-se noutra lei, a
Lex Papia4
, e leva opoeta grego a
julgamento.
Cícero, advogado,
político, estadista e
escritor romano do séc.
I a.C., era considerado
um orador de excepção
e um defensor dasletras. Nos primeiros
passos da sua formação
como advogado,
Árquias foi o seu
mestre. Por esse
motivo, o poeta pede a
Cícero que o defendaem tribunal. As
grandes qualidades de
orador de Cícero podem
ser comprovadas na
brilhante
argumentação utilizada
na defesa do poeta
heracliense.
PRO ARCHIA POETA
CÍCERO
N o v e m b r o
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OS ARGUMENTOS
A forma como Cícero começa o seu discurso
em tribunal é paradigmática dos seus
grandes dotes de oratória. Todo o seu saber,
o seu talento e conhecimento adquirido ao
longo do tempo, através de estudos
sistemáticos, é devido ao poeta Árquias. «Na
verdade, até onde a minha memória pode
perscrutar o passado e recordar a mais
antiga época da minha infância,
relembrando tudo desde então, vejo que foi
este meu constituinte quem principalmente
contribui para eu empreender e continuar
este género de estudos»5. Cícero atribui à
sua habilidade e saber a grande influência
de Árquias na sua vida, condição que fazcom que a sua educação e mestria se
reflictam nos seus ditos. É uma astúcia
inteligente, estando Cícero consciente de
seus méritos. O afastamento das práticas
judiciais correntes, patente no seu discurso,
atribui um valor inusitado às letras
enquanto ferramenta de argumentação
técnica, perante aqueles que ele considera«juízes tão rigorosos». A evocação que faz
com que a causa passe de um «tribunal
forense» para um «tribunal humanístico e
literário» surge ao abrigo do enaltecimento
da cultura dos presentes, quando diz:
«...consentirdes que, ao falar em defesa de
um excelso poeta e homem de larga erudição
nesta assembleia de homens tão ilustrados,perante a vossa cultura, enfim, com tal
pretor a presidir ao julgamento, eu discorra
um pouco mais livremente sobre os estudos
humanísticos e literários; e consentirdes
que, a favor de uma personalidade que por
seus ócios literários jamais se viu arrastada
para penosos julgamentos, eu utilize um
estilo oratório quase novo e inusitado.»6.
A partir daqui, Cícero começa a enaltecer
as virtudes do poeta, referindo todo o seu
percurso como cidadão culto e letrado, desde
os primeiros estudos, em Antioquia, sua
cidade natal, passando pela Ásia e Grécia, e
até à chegada a Roma. Nesse tempo, em
Itália, fervilhava a cultura e a erudição
gregas, facto que possibilita o grande
acolhimento que lhe é concedido por
Tarentinos, Locrenses, Reginos e
Napolitanos7. Árquias acompanha LúcioLuculo8 à Sicília e quando regressa vai para
Heracleia, cidade aliada de Roma desde o
séc. III a.C. Este último facto sustenta a
validade do pedido de cidadania que lhe é
concedido pela lei e que entrega ao pretor
Quinto Metelo.
Cícero não se baseou apenas nas leis paraprovar a validade da cidadania do seu
constituinte. Ele pretendeu reafirmar a
validade do mérito de Árquias, lembrando o
seu inestimável contributo para a formação
d o s c i d a d ã o s , b e m c o m o p a r a a
imortalização dos feitos romanos através da
sua poesia. Para o primeiro dos argumentos,
o da cidadania do poeta, Cícero dispunha do
testemunho de Marco Luculo, irmão de
Lúcio, e de mais uma embaixada de ilustres
individualidades daquela cidade. A
reputação e a honorabilidade de Marco
Luculo eram suficientes para garantir a
veracidade e credibilidade das suas
palavras. Diz Cícero: «É ridículo nada dizer
sobre o que possuímos e procurar o que não
podemos ter; fazer silêncio quanto atestemunhos pessoais e pedir com
insistência provas documentais: e, tendo-se
a palavra de um homem tão distinto e a
garantia sob juramento de um município
integérrimo, repudiar aquilo que de modo
algum pode ser corrompido e exigir registos
que tu próprio dizes costumarem ser
viciados».9 Desta forma, Cícero utiliza umargumento que não só é credível, como
escapa à própria afirmação de Grátio sobre
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a não rara falsidade dos registos escritos. O
facto de Árquias ter apresentado a sua
pretensão ao pretor Quinto Metelo, podia
ser validado por tão ilustres testemunhos. A
concessão da cidadania a outros que,
segundo Cícero, não estão à altura da
grandeza de Árquias, serve o propósito de
valorização do seu processo enquanto
merecedor por excelência.
Para o segundo dos argumentos, o
advogado sensibiliza o tribunal para o facto
do poeta Árquias ser um exemplo a seguir
por todos os cidadãos, usando astutamente,
e mais uma vez, as comparações. Enaltece o
cultivo do espírito, o cultivo dos estudos
literários, como forma de combateraltercações impostas por tensões no seio da
sociedade. Vai mais longe, ao reafirmar a
importância das letras na preservação e
transmissão dos feitos valorosos de outrora,
dizendo: «mas todos os livros estão plenos de
obras assinaláveis, plenas estão as lições
dos sábios, plena a Antiguidade de
exemplos: todos ficariam na sombra, se lhesnão valesse a luz das letras. Quantas
figuras de homens valorosos nos deixaram
gravadas os escritores gregos e latinos, não
para as contemplarmos, mas para as
imitarmos!»10. Esta função transmissora de
importância suprema, Cícero pretende ligar
definitivamente ao papel das letras, numa
posição assumidamente apoiante da poesiaépica, numa abordagem seguramente
neoplatónica, e que se coaduna com o
espírito heróico dos generais romanos e as
suas tropas. Cícero descreve então todas as
guerras contadas por Árquias, como são
exemplo as Guerras Címbricas e a Guerra
Mitridática. Cícero continua a enaltecer o
grande contributo das letras para o
enaltecimento das virtudes dos homens, dos
seus feitos heróicos, e para o papel que
poetas da Antiguidade desempenharam
nesta grande virtude. Ao referir-se a
Homero e à Ilíada, ele compara Árquias ao
grande poeta grego, concluindo,
inevitavelmente, que qualquer general
romano lhe concederia a cidadania11. Num
discurso onde estão patentes, além da sua
própria retórica, alguns elementos da
retórica de Aristóteles, Cícero utiliza todos
estes argumentos extra causam como
credenciais mais do que suficientes para que
a Árquias lhe fosse concedida a cidadania
romana. Mais do que por uma questão de
leis, por uma questão de justiça, apoiada na
cláusula aequitas, um dos garantes em que
assentava o ius romanum12 para atenuar adura lex, sed lex13. A rigidez das leis seria
corrigida, sempre que o seu cumprimento
originasse um caso de injustiça. Desta
forma a justiça está na verdade, e esta
supera a própria lei.
CONCLUSÃO
Aparte a importância do contexto em que se
insere, seguramente, é o discurso de Cícero
um hino às letras, uma dignificação da
cultura literária e humanística como base
fundamental para a educação dos cidadãos.
Uma Paideia14 que subtrai a desvalorização
da poesia como terceiro grau de
conhecimento15
e a coloca num plano demagna afirmação. O cultivo da sabedoria
como uma condição para o conhecimento e a
ética. As letras vistas como a conservação e
transmissão de muitos acontecimentos que
contribuem para a formação moral dos
cidadãos, constituindo-se numa função
educadora transversal a toda a
humanidade. É, indiscutivelmente, um
texto apologético da literatura e da poesia,
enaltecendo a superioridade da cultura
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grega na figura do poeta Árquias, e que
adquire especial significado16 no contexto da
aceitação da literatura grega no seio dos
romanos.
Termino a minha análise com uma
citação da Professora Maria Helena da
Rocha Pereira, que é elucidativa da
importância da defesa do poeta Árquias
para o humanismo e para as letras.
"Trata-se da defesa de Árquias, essa oração quehavia de ser redescoberta no séc. XIV por
Petrarca, e que ficou conhecida como a magnacharta do humanismo. É aí que, principalmenteentre os capítulos VI e XI, Cícero exprimedesassombradamente o seu entusiasmo pelas
Belas Letras. Elas são deleite e descanso econtribuem para o aperfeiçoamento espiritual."
Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos deHistória da Cultura Clássica,
II volume, F. Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp.128-9
NOTAS
1 Aulo Licinio Archia chegou a Roma em 102 a.C. duranteo consulado de Mário e Cátulo. Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins: Editorial Inquérito, 1999, p.5.
2 A Lex Plautia Paipiria foi uma lei romana, promulgadaem 89 a.C. Segundo esta lei, as pessoas inscritas comocidadãos de cidades federadas, com domicílio em Itália àaltura da aprovação da lei, tinham direito à cidadaniaromana desde que o comunicassem ao pretor da própriacidade num prazo de setenta dias. Cf. Cic., Arch. 6.
3 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, IV.8.4 Lei que excluia os cidadãos estrangeiros de Roma,
considerada por Cícero uma lei injusta e pouco humana.5 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, I.1.6 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, II.3.7 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, III.5.8 Lúcio Licínio Luculo foi um importante político e general
da República Romana.9 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, IV.8.10 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, VI.14.11 Cf. Cícero, Em defesa do poeta Árquias. Mem Martins:
Editorial Inquérito, 1999, VII.19.12 Direito romano, criado apenas para os cidadãos de Roma.13 Do latim dura lex, sed lex, que significa: a lei é dura, mas
é lei.14 Processo de educação na Grécia Antiga.15 Cf. Platão, República, Livro X.16 Em Roma são conhecidas as hostilidades para com a
cultura grega, principalmente desde a Guerra de Aníbal.
BIBLIOGRAFIA
CÍCERO, Em defesa do poeta Árquias. MemMartins: Editorial Inquérito, 1999.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica, II Volume.Lisboa: F.Gulbenkian,1992.