Professora Selma Maria Ferreira Lemes
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PARECER - Arbitragem e Sociedade de Economia Mista1
“Não há vedação legal para a Sociedade de Economia Mista, que atua na área de comercialização de energia elétrica, firmar contratos com cláusula compromissória.”
CONSULTA
Pelo advogado ....em nome da empresa..... foi-me formulada a
seguinte consulta:
“1. Trata-se de procedimento arbitral administrado pela Corte
Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI
em que são partes AAA, na qualidade de demandante (s) e Companhia
BBB, sociedade de economia mista por ações, de capital aberto, com sede
no Estado xxxx, Brasil, na qualidade de demandada, referente à
controvérsia oriunda do contrato assinado em .... pelas partes.
2. O(s) referidos contrato(s) foram assinados no Brasil e são
regidos pela Lei Brasileira. Também foi a Lei Substantiva Brasileira que as
1 Parecer publicado no Livro Direito Empresarial e Outros Estudos de Direito em Homenagem ao Professor Rodrigo R. Monteiro de Castro, Walfrido Jorge Warde Júnior e Carolina Dias Tavares Guerreiro, São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 831/858.
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partes indicaram na(s) clausula(s) compromissória(s) para reger a solução
de controvérsias.
3. Assim, considerando o ordenamento jurídico brasileiro, em
especial a Lei nº 9.307 de 23 de setembro de 1996, que dispõe sobre
arbitragem, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Novo Código Civil
brasileiro – NCC, a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 e alterações
posteriores que disciplinam as sociedades por ações na modalidade de
sociedades de economia mista, no Capítulo XIX, as Leis nºs. 8.987 de 13
de fevereiro de 1995 e n. 9.074 de 07 de julho de 1995, que regem as
concessões de serviços públicos federais, bem como as demais normas
jurídicas que entender aplicáveis, formula-me as seguintes questões:
I – À luz do ordenamento jurídico brasileiro como interpretar os
conceitos de (i) arbitrabilidade subjetiva e (ii) arbitrabilidade objetiva, em
especial na área de compra e venda de energia elétrica, atividade cuja
exploração deriva de concessão ou autorização de serviço público
federal ?
II – A Companhia BBB, na qualidade de sociedade de economia
mista, que explora serviços e instalação de energia elétrica como
concessionária de serviço público federal pode firmar contratos que
estabeleçam a solução de controvérsias por arbitragem?
Solicita minha opinião quanto às questões supracitadas, o que
passo a esclarecer por meio do seguinte
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PARECER
INTRODUÇÃO
A matéria versada neste Parecer deve ser analisada no ordenamento jurídico
brasileiro à luz do: (i) Direito Constitucional e do Direito Administrativo e, (ii)
Direito Empresarial, Direito Civil e Direito Processual Civil (Arbitragem).
(i) Direito Constitucional e Direito Administrativo
A atual Constituição Federal Brasileira de 1988, foi sensivelmente alterada a
partir de 1995, por meio de sucessivas Emendas Constitucionais, com o objetivo
de impulsionar o desenvolvimento nacional e rever o papel do Estado na
economia, para deixar de ser “empresário” e se tornar “agente regulador e
fomentador” das atividades realizadas pelo setor privado. 2
2 Emenda Constitucional (EC) nº 05/95, que permite a outorga de concessão de serviços locais de gás canalizado; EC nº 06/95, que revogou o art. 171 que diferenciava a empresa em decorrência da origem do capital (nacional ou estrangeiro), entre outros fatores, inclusive para permitir a exploração de atividades relacionadas aos recursos
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Em decorrência, foram revistos os conceitos e princípios de Direito
Administrativo 3 com o objetivo de democratizar a Administração Pública, com a
participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela
colaboração entre público e privado na realização das atividades administrativas
do Estado. Inicia-se amplo processo de privatização com o objetivo de diminuir o
tamanho do Estado e permitir que a Administração Pública atue com eficiência.
Iniciam-se as parecerias público-privadas, substitui-se a Administração Pública
de atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada e
hierarquizada. 4
(ii)Direito Empresarial, Direito Civil e Direito P rocessual Civil
(Arbitragem)
Como conseqüência das alterações constitucionais, em especial a permissão da
participação privada na execução de atividades até então exercidas pelo Estado
(arts. 37, XIX, 173 e 175 da CF e outros), bem como em decorrência de
alterações havidas na esfera privada, diversas novas leis foram promulgadas ou
alteradas, entre elas, a Lei de Sociedades por Ações, que regula a sociedade de
minerais e energia hidráulica; EC nº 07/95, referente aos transportes aéreo, aqüaviário e terrestre; EC nº 08/95, referente à exploração de serviços de telecomunicações; EC nº 9/95, que revê o monopólio do Estado Federal quanto às atividades de petróleo e gás; EC nº 13/96, que revê a participação oficial na fiscalização de seguro e resseguro; EC nº 20/98, que revê o sistema de previdência social. Cf Caio TÁCITO, A Constituição e o Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo (RDA) 232:53-58, abr./jun. 2003. 3 Cf Odete MEDAUAR, O Direito Administrativo em Evolução, São Paulo, RT, 2º ed., 2003, p. 241/263. 4 EC nº 19/98 e a conseqüente expedição de diversas leis infraconstitucionais, tais como, as que alteraram os regimes de concessão de serviços públicos e que criaram as agências reguladoras. CF Maria Sylvia DI PIETRO, Parcerias na Administração Pública, São Paulo, 4º ed., Atlas, p. 16, 2002; Caio TÁCITO, A Reforma do Estado e a Modernidade Administrativa, in Temas de Direito Público, Rio de Janeiro, Renovar, 3º v., 2002, p. 41/50 e Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, Globalização, Regionalização, Reforma do Estado e da Constituição, RDA 211:1-20, jan./mar. 1998 e A Globalização e o Direito Administrativo, RDA 226:265-280, out./dez. 2001.
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economia mista (Lei n. 6.404/76 e 10.303/01).5 Ainda, entrou em vigor em 2003
o Novo Código Civil – NCC, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que
revogou/alterou parte da legislação comercial anterior (Código Comercial de
1850), etc.
Na área da solução de controvérsias por arbitragem operaram-se movimentos
renovadores em duas dinâmicas distintas. A primeira, no âmbito do direito
processual civil, enquanto passa a enaltecer que a prestação jurisdicional deve
priorizar a efetividade e a informalidade no contexto das denominadas “ondas
renovatórias do direito” apregoadas por Mauro CAPPELLETTI,
consubstanciadas, no ambiente doméstico, nas Leis que disciplinaram os juizados
especiais cíveis e criminais (Leis nº 9.099/95 e 10.259/01), na tutela antecipada e
execução provisória (Leis nºs 8952/94 e 10.444/02), etc. Neste contexto insere-se
a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, que alterou a regulamentação da
arbitragem.6 Por sua vez, a segunda, ocorreu no cenário mundial, em que a partir
da década de 50 a arbitragem voltou a ser prestigiada e, definitivamente
impulsionada, na década de 80 com a globalização da economia, em que os
contratos internacionais com os mais variados objetos, valores e complexidades
técnicas, quase que à unanimidade, elegem a arbitragem para solução de
dissensos, principalmente por ser especializado e desvinculado do Estado, sendo
os árbitros nomeados pelas partes que, além da independência e da
imparcialidade, podem ser especializados na matéria objeto da arbitragem. 7
5Cf Carlos Ari SUNDFELD, Reforma do Estado e Empresas Estatais, in Direito Administrativo Econômico, Carlos Ari SUNDFELD (org.), São Paulo, Malheiros, 2002, p. 264/285. 6 Cf nosso artigo Princípios e Origens da Lei de Arbitragem, Revista do Advogado, Associação dos Advogados de São Paulo, - ASSP, São Paulo, n° 51, p. 32/35 out. 1997 e em Enfoque Jurídico, Suplemento do Tribunal Regional Federal da 1° Região, Brasília, jan./fev. 1997, p.5/6. 7 Diversos diplomas internacionais passaram a ter eficácia no ordenamento interno brasileiro a partir de 1996, tais como, a Convenção Interamericana de Arbitragem Comercial Internacional, firmada em 1975, na cidade do Panamá (Decreto nº 1.902, de 09 de maio de 1996), a Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial de
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Na área especifica dos contratos firmados entre o setor público (Estado e
Empresas Estatais) com empresas privadas, em decorrência das peculiaridades
presentes nas novas formas de parcerias firmadas e notadamente o vulto e
envergadura dos empreendimentos, aos quais o Estado não pode dispensar a
colaboração e o aporte de capital privado, houve a flexibilização da relação
contratual, priorizando o equilíbrio de interesses das partes. 8 Passa-se a dar
maior relevo à igualdade de tratamento contratual, tal como no direito privado,
sem com isso deixar de acatar as cláusulas exorbitantes, peculiares aos contratos
administrativos. À luz desses novos paradigmas, alicerçados nos princípios
jurídicos da igualdade, legalidade, boa-fé, justiça, lealdade contratual, do respeito
aos compromissos recíprocos das partes, da eficiência, da subsidiariedade, etc., a
Administração é conduzida a eleger formas mais dinâmicas de solução de
controvérsias (mediação, conciliação e arbitragem), que envolvam direitos
patrimoniais disponíveis nos contratos administrativos e que gravitam em torno
Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, firmada em 1979 em Montevidéu (Decreto nº 2.411, de 02 de dezembro de 1997), a Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras firmada em 1958 em Nova Iorque (Decreto nº 4.311 de 23 de julho de 2002). Cf nossos artigos A Arbitragem no Brasil e a Convenção de Nova Iorque, Carta Internacional do Núcleo de Pesquisas Internacionais da USP – NUPRI/USP, nº 117, nov. 2002 e Reconhecimento da Sentença Arbitral Estrangeira, Jornal Valor Econômico, 08.08.03, p. E-4. Ambos artigos reproduzidos em www.camaradearbitragemsp.org.br e A Lei Brasileira de Arbitragem e a Convenção de Nova York sobre Sentenças Arbitrais Estrangeiras: O Futuro Próximo, Anais do I Seminário Internacional sobre Direito Arbitral, Belo Horizonte, 27 a 29 de maio de 2002, p. 288/93, 2003. No âmbito do MERCOSUL o Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional, firmado em Buenos Aires em 1998 (Decreto nº 4.719, de 04 de junho de 2003) e nas relações entre Estados-Partes o Protocolo de Brasília para Solução de Controvérsias entre os Estados Partes, de 1991, alterado pelos Protocolos de Ouro Preto de 1994 e de Olivos de 2002. Ainda, no âmbito do Mercosul, podemos citar os acordos de promoção e proteção de investimentos. cf nosso artigo Mercosul e Nafta. Os Acordos de Proteção e Promoção de Investimentos. A Solução de Controvérsias por Arbitragem, in A Arbitragem na Era da Globalização, José Rossani GARCEZ (org.), Rio de Janeiro, Forense, 2° ed. 1999, p. 215-253. 8 “A flexibilidade do Direito Administrativo contemporâneo, no setor econômico e, particularmente, nos aspectos referentes às relações negociais mantidas pelo Estado com os particulares, com vistas à execução de obras vinculadas às concessões de serviços públicos é um dos traços essenciais do Direito Administrativo hodierno” . Arnold WALD, Luiza Rangel de MORAES e Alexandre de M. WALD, O Direito de Parceria e a Nova Lei de Concessões, São Paulo, RT, 1996, p.39. Impende observar que novas modalidades de contratações conjuntas em projetos que envolvem vultosos investimentos nas áreas de infra-estrutura (setor elétrico e de saneamento básico) estão em discussão nos legislativos federal e estaduais. São os denominados contratos PPP – Parceria Público-Privada (Public Private Partnership), que elege a arbitragem como forma de solucionar controvérsias.
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das cláusulas econômicas e financeiras (equilíbrio econômico-financeiro); enfim,
que se referem a direitos patrimoniais, ente eles, a responsabilidade contratual. O
objetivo desta iniciativa é o de preservar e conciliar os interesses da empresa
particular e da Administração (e dos usuários das obras/serviços) relativos à boa,
correta e justa governança dos contratos que explorem atividades econômicas de
quaisquer tipos, sejam de concessão de serviço público, sejam de atividades
correlatas, tais como contratos de geração, transmissão, distribuição e compra e
venda de energia elétrica. Ademais, não se pode esquecer que essas várias
modalidades de contratos são ou derivam de contratos administrativos de
colaboração (concessão de serviços e obras públicas). 9
Assim, esclarecido o quadro presente no ambiente interno brasileiro, as alterações
existentes no contexto jurídico-institucional nacional, passo a analisar e
responder as questões propostas.
I – À luz do ordenamento jurídico brasileiro como
interpretar os conceitos de (i) arbitrabilidade subjetiva e (ii)
arbitrabilidade objetiva, em especial na área de compra e venda de
energia elétrica, atividade cuja exploração deriva de concessão ou
autorização de serviço público federal ?
O art. 1º da Lei nº 9.307, de 1996, dispõe que “As pessoas capazes de contratar
poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos
9 Os contratos administrativos podem ser de colaboração e de atribuição. Nos contratos de colaboração o particular se obriga a prestar ou realizar algo para a Administração e nos contratos de atribuição a Administração confere ao particular determinadas vantagens ou direitos, tal como o uso especial de bem público.Cf Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 28º ed., 2003, p. 207.
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patrimoniais disponíveis.” Deste enunciado deflui o conceito de arbitrabilidade, 10 que se subdivide em ( i) arbitrabilidade subjetiva e (ii) arbitrabilidade objetiva.
(i) Arbitrabilidade Subjetiva
A arbitrabilidade subjetiva refere-se aos aspectos da capacidade para poder se
submeter à arbitragem no âmbito do direito público administrativo, seja como
pessoa jurídica de direito público (União, Estados, Municípios, Territórios e
Autarquias) ou de direito privado (sociedade de economia mista e empresa
pública), qualificadas como entidades da administração pública direta e indireta,
todas possuem capacidade para firmar convenção de arbitragem. 11
A possibilidade da Administração submeter-se à arbitragem foi objeto de detida
análise de Castro NUNES, que acentuou “não ser possível a interdição do juízo
arbitral, mesmo nas causas contra a Fazenda, o que importaria numa restrição à
autonomia contratual do Estado que, como toda pessoa sui juris, pode prevenir
o litígio, pela via transacional, não se lhe podendo recusar esse direito, pelo
menos na sua relação de natureza contratual ou privada, que só esta pode
10 Cf João Bosco LEE, O Conceito de Arbitrabilidade nos Países do MERCOSUL, Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem (RDBA), 8:346-358, abr./jun., 2000; Clávio VALENÇA FILHO, Arbitragem e Contratos Administrativos, na mesma obra p. 365/73; José Maria Rossani GARCEZ, Arbitrabilidade no Direito Brasileiro e Internacional, RDBA 12:337-356 abr./jun., 2001; e nosso artigo Arbitragem em Propriedade Intelectual- Instituições Arbitrais, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, 74:120-131, out./nov., 1995. 11 Conforme estabelece o art. 5º do Decreto-Lei n. 200, de 23 de fevereiro de 1967, alterado pelo Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969 e pela Lei nº 7.596, de 10 de abril de 1987, a Administração Direta compreende os serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e na dos Ministérios. A Administração Indireta abrange as autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista. Cf Maria Sylvia DI PIETRO, Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 15º ed., 2003, p. 356/7.
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comportar solução, pela via arbitral, dela excluídas aquelas em que o Estado
age como Poder Público que não pode ser objeto de transação.” 12
O leading case brasileiro que definitivamente declarou que o Estado pode
solucionar conflitos por arbitragem foi o referente à demanda entre o Espólio de
Henrique Lage e outros x a União Federal.13 No Tribunal Federal de Recursos
foi esclarecido que “a natureza consensual do pacto de compromisso, sendo de
natureza consensual, não constitui foro privilegiado, nem tribunal de exceção,
ainda que regulado por lei específica.” Posteriormente, em 1973, a questão foi
levada ao Supremo Tribunal Federal-STF, que por unanimidade do Plenário
decidiu que a União poderia submeter-se à arbitragem privada.
Observe-se que a plena capacidade de o Estado submeter-se à arbitragem já era
permitida por força da Lei nº 1518, de 24 de dezembro de 1951 e do Decreto-Lei
nº 1.312, de 15 de dezembro de 1974, que autorizavam o Tesouro Nacional a
firmar contratos contendo cláusula compromissória na esfera internacional. 14
José Carlos de MAGALHÃES, ao analisar o referido precedente jurisprudencial
à luz das premissas do contrato administrativo acentuou que “a capacidade de se
comprometer é matéria de direito civil, não se podendo negar ao Estado
brasileiro sua legitimidade em ajustar convenção de arbitral, como reconhecido
pela já citada decisão do Supremo Tribunal Federal.” 15
12 Cf Castro NUNES, Da Fazenda Pública em Juízo, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1950, p. 279. 13 Agravo de Instrumento n. 52.181 – GB, RTJ 68/382. 14 Ver José Carlos de MAGALHÃES, Do Estado na Arbitragem Privada, José Carlos de MAGALHÃES & Luiz Olavo BAPTISTA, Arbitragem Comercial, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1986, p. 78/79. 15 Op. Cit. p.84.
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10
Destarte, a autorização para o Estado, as empresas públicas e sociedades de
economia mista submeterem-se à arbitragem decorrem da Lei Civil que regula o
compromisso (NCC) e, que, por sua vez, conduz à Lei nº 9.307 de 1996, Lei de
arbitragem. O Novo Código Civil – NCC brasileiro dispõe:
“Art. 851 - É admitido compromissso judicial ou extrajudicial para resolver
litígios entre pessoas que podem contratar.”
Art. 852 – É vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito
pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente pessoal.
Art. 853 – Admite-se nos contratos a cláusula compromissória para resolver
divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial.”
Destarte, a autorização para o Estado, as empresas públicas e de economia mista
estipularem a arbitragem nos contratos que firmarem decorre do art. 851 do NCC
e do art. 1 da Lei nº 9.307/96 (lei especial na acepção do NCC). Assim, quando a
legislação de direito administrativo vincula os atos da Administração ao princípio
da legalidade, não está dispondo quanto à necessidade de lei específica que
permita a arbitragem, mas que aquelas empresas atuem em obediência à lei, que,
no caso, como salientado pela Suprema Corte brasileira, é o NCC e a Lei de
Arbitragem. Repise-se, juízo arbitral é matéria de competência da legislação civil
e processual civil e não de direito administrativo.
Por esse motivo, que não tem fundamento jurídico válido, no nosso entender,
opiniões que pretendem condicionar a participação do Estado e das Empresas
Estatais (Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista) à previsão expressa
de Lei nesse sentido. Este equívoco também ocorre quando parcela da doutrina
brasileira e manifestações do Tribunal de Contas da União interpretam
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11
dispositivo da Lei de Licitações (Lei n. 8.666 de 1993) que considera cláusula
necessária do contrato a indicação do foro da sede da Administração (art. 55,§
2º). A cláusula de eleição de foro para matérias que não se referiram a direitos
patrimoniais disponíveis, não pode ser interpretada como impeditiva ou
excludente da arbitragem, quando possível (direitos patrimoniais disponíveis).
Por sua vez é na própria Lei de Licitações, que se referenda a utilização da
arbitragem, tal como considerada matéria de direito civil, pois o art. 54 determina
a aplicação nos contratos subsidiariamente as regras do direito privado.
Por oportuno e na linha do argumentado reproduzo ponderada lição da professora
Odete MEDAUAR, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo –
USP, que, ao tratar do legalismo acirrado, adverte que, se “a Administração só
pode realizar atos ou medidas que a lei ordena – se predominasse como
significado geral do princípio da legalidade paralisaria a Administração,
porque seria necessário um comando legal específico para cada ato ou medida
editados pela Administração , o que é inviável.” 16
(ii) Arbitrabilidade Objetiva
Por sua vez a arbitrabilidade objetiva refere-se ao objeto da matéria a ser
submetida à arbitragem, ou seja, somente as questões referentes a direitos
patrimoniais disponíveis.
16 Apud Ada Pellegrini GRINOVER, Arbitragem e Prestação de Serviços Públicos, RDA, 233:380, jul./set., 2003. (negrito no original)
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12
Neste sentido, para esclarecer devidamente a matéria objeto deste Parecer,
analiso a questão em três óticas no contexto do Direito Administrativo: (a) o
conceito geral de direito patrimonial disponível, (b) a disciplina estabelecida na
Lei Geral de Concessões de Serviços Públicos para a solução amigável de
controvérsias e (c) os contratos de compra e venda de energia na qualidade de
concessão ou autorização de serviço público.
(a) o conceito geral de direito patrimonial disponível
No conceito de arbitrabilidade objetiva há de ser verificado na área
administrativa o que se considera direitos patrimoniais disponíveis. Deve-se
distinguir os atos em que a Administração age com poder de império, e outros, no
campo do direito privado, com poder de gestão, em que lhe é autorizado margem
de negociação que não agrida, ou conflite com o interesse público. 17
Em elucidativa explanação Diogo F. MOREIRA NETO salienta que o interesse
público subdivide-se em interesse público primário e o secundário (ou derivado).
O interesse público primário está relacionado com a sua relevância, considerando
a segurança e o bem-estar da sociedade, sendo que o ordenamento jurídico os
destaca, os define, e compete ao Estado satisfazê-lo sob regime próprio. Esses
interesses estão fora do mercado, submetendo-se ao princípio da
indisponibilidade absoluta. O interesse público secundário ou derivado tem
natureza instrumental, referindo-se às pessoas jurídicas que os administram e
existem para que os interesses primários sejam satisfeitos, resolvendo-se em
direitos patrimoniais e, por isso, tornam-se disponíveis. Assim esclarece que,
17 Para verificação da questão no Direito Comparado cf nosso artigo Arbitragem na Concessão de Serviço Público - Perspectivas, RDBA 17:342-54, jul./set. 2002 e em Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação, André Gomma AZEVEDO (org.), Brasília, UNB, Ed. Brasília Jurídica, 2002, p. 45/61.
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“ ..são disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados
que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados
monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e
normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou os seus
delegados, dos meios instrumentais de modo a que estejam em condições de
satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado.” 18 (grifo
original)
O jurista argentino Rafael BIELSA, precursor no estudo desta questão, anota que
devemos distinguir os “atos administrativos de autoridade” e os “atos de
simples gestão” (gestão patrimonial). 19 Assim, a sentença arbitral nunca poderia
versar sobre matéria de “poder” de autoridade e vigilância, mas poderia se
manifestar sobre questões pactuadas. E questiona:“qual é o princípio que se
oporia a que o preço de um serviço prestado ao Estado ou o valor de uma
indenização fossem fixados por árbitros? 20
O que não se pode confiar a árbitros são matérias ou atribuições que importem no
exercício de um poder de autoridade ou de império e dos quais não se pode
transigir. ”Assim, por exemplo, é nula a cláusula que confia à decisão de árbitros
a determinação da natureza da corrente elétrica, ou seja, se ela deve ser
contínua ou alternada porque, estabelecido pericialmente que a corrente
alternada é perigosa, não se pode admitir que os árbitros declarem que ela
convém e deve prestar-se.” 21
18 Diogo F. MOREIRA NETO, Arbitragem nos Contratos Administrativos, RDA 218:84, jul./set. 1997. 19 Rafael BIELSA, Estudios de Derecho Publico, Buenos Aires, Depalma, 1949, p. 290 20 Op. cit., p. 290. 21 Op.cit., p. 290.
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14
Para BIELSA as decisões que sobrevenham na execução de um contrato ou sua
dissolução, por serem puramente patrimoniais, são arbitráveis. 22 No mesmo
sentido, Caio TÁCITO salienta que, nos contratos administrativos quando se trata
“tão-somente de cláusulas pelas quais a Administração está submetida a uma
contraprestação financeira, não faz sentido ampliar o conceito de
indisponibilidade à obrigação de pagar vinculada à obra ou serviço executado
ou ao benefício auferido pela Administração em virtude de prestação regular do
outro contratante. 23
Em artigo anterior em que abordei esta matéria salientei que “...a Administração
Pública pode submeter-se à arbitragem e é conveniente que o faça quando não
se trate de examinar nem decidir sobre a legitimidade de atos administrativos,
mas de suas conseqüências patrimoniais” 24 (grifo no original)
Eros Roberto GRAU ao analisar as particularidades do contrato administrativo
firmado com particulares pondera que “ ...embora a Administração disponha, no
dinamismo do contrato administrativo de poderes que se tornam como expressão
de ‘puissance publique’ [alteração unilateral da obrigação, v.g.], essa relação
não deixa de ser contratual, os atos praticados pela Administração enquanto
parte nessa mesma relação, sendo expressivos de meros ‘atos de gestão’. Em
suma, é preciso não confundirmos o Estado –aparato com o Estado-
ordenamento. Na relação contratual administrativa o estado-aparato [a
Administração] atua vinculado pelas mesmas estipulações que vinculam o
22 Op,cit., p. 294. 23 Caio TÁCITO, Arbitragem nos Litígios Administrativos, RDA 210: 114, out./dez. 1997. 24 Selma M. Ferreira LEMES, A Arbitragem e os Novos Rumos Empreendidos na Administração Pública – A Empresa Estatal, o Estado e a Concessão de Serviço Público, in Aspectos Fundamentais da Lei de Arbitragem, Pedro Batista MARTINS, Selma M. Ferreira LEMES e Carlos Alberto CARMONA, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 194.
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15
particular; ambos se submetem à lei [Estado-ordenamento]; ou seja, a
Administração não exerce ato de autoridade no bojo da relação contratual.”25
Porém, é na própria definição de contrato administrativo que encontramos a
resposta insofismável a permitir a utilização da arbitragem, ao se referir aos
direitos patrimoniais disponíveis. Aduz Celso BANDEIRA DE MELLO que o
contrato administrativo “é um tipo de avença travada entre a Administração e
terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a
permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a
cambiáveis imposições do interesse público, ressalvados os interesses
patrimoniais do contratante privado” . 26 (negrito nosso) Por sua vez, as espécies
de contratos administrativos, nas modalidades de contrato de concessão de
serviço público, de concessão de obra pública, ou de autorização de serviço
público não alteram a natureza patrimonial da avença. 27
Nesta linha, por oportuno, note-se que os contratos de concessão de serviços
públicos possuem peculiaridades específicas, tal como acentuado por Maria
Sylvia DI PIETRO, “ do duplo aspecto da concessão ainda decorre outra
peculiaridade: a submissão da empresa concessionária a um regime jurídico
híbrido. Como empresa privada, ela atua, em regra, segundo as normas do
25 Eros Roberto GRAU, “ Da arbitrabilidade de litígios envolvendo sociedades de economia mista e da interpretação de cláusula compromissória”, Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, 18/401, out./dez.2002. 26 Celso Antonio BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 15º ed., 2002, p. 569/70. 27 Contrato de concessão de serviço público, na definição doutrinária, é aquele pelo qual a administração pública delega a outrem a execução de um serviço público, para que o execute em seu próprio nome, por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário ou outra forma de remuneração decorrente da exploração de serviço (arts. 2º, inciso II e 4º da Lei nº 8987/95). O contrato de concessão de obra pública recebe da doutrina a definição de ser aquele pelo qual o poder público transfere a outrem a execução de uma obra pública, para que a execute por sua conta e risco, mediante remuneração paga pelos beneficiários da obra ou obtida em decorrência da exploração dos serviços ou utilidades que a proporciona (art. 2º, inciso III da Lei nº 8987/95). Cf Maria Sylvia DI PIETRO, Parcerias na Administração Pública, São Paulo, 4º ed., Atlas, 2002, p. 75 e 127.
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direito privado, no que diz respeito à sua organização, à sua estrutura, às suas
relações com terceiros (...) como prestadora de um serviço público, suas
relações com a Administração concedente se rege inteiramente pelo direito
público, já que a concessão é um contrato tipicamente administrativo...”28.
Todavia, saliento que, não obstante se submeter às regras do direito público, estas
não impedem, ao contrário, autorizam a utilização da arbitragem para solucionar
os diferendos oriundos do contrato e que digam respeito aos interesses públicos
derivados, com repercussões patrimoniais, que nos contratos de concessão
encontram guarida nas cláusulas financeiras e econômicas (repercussões técnicas
e econômicas), inclusive as referentes à responsabilidade contratual.
Os contratos de concessão de serviços públicos possuem cláusulas
regulamentares e cláusulas financeiras. As primeiras são aquelas que outorgam
prerrogativas públicas ao concessionário e, as segundas, as que denotam o caráter
contratual da obrigação e o direito do concessionário à manutenção do equilíbrio
econômico-financeiro, bem como as suas repercussões patrimoniais, entre elas, a
responsabilidade contratual na acepção civil-administrativa. 29
Neste sentido pode-se dizer que todas as questões disciplinadas no contrato de
concessão que gravitam em torno dos interesses patrimoniais do contrato são
suscetíveis de solução arbitral. Todas as matérias que versarem sobre
disponibilidade de direitos patrimoniais poderão estar sob a égide arbitral. Há de
ser notado, igualmente, que a Administração está adstrita ao princípio da
legalidade e este prisma, como anteriormente afirmado, coaduna-se com art. 1º da
28 Op. cit. p. 74. 29 Op. cit. p. 77.
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Lei nº 9.307/96: “ as pessoas capazes de contratar [pessoas físicas e jurídicas de
direito privado ou público] poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios
relativos a direitos patrimoniais [entre particulares e entre estes e a
Administração] disponíveis [bens apropriáveis, alienáveis que se encontram no
comércio jurídico”]. 30
Assim, nos contratos de concessão de serviço público, tudo que diga respeito,
tenha reflexo patrimonial e esteja relacionado ao equilíbrio econômico-financeiro
do contrato será suscetível de ser dirimido por arbitragem. Seja quando o objeto
do contrato de concessão referira-se a obras de construção civil ou à prestação de
serviços públicos (efeitos patrimoniais), bem como quando de refere a contrato
de autorização para executar serviço público. Por outro lado, as disposições
classificadas como regulamentares e atinentes à Administração, previstas no
contrato, estariam fora da zona de direito disponível e, portanto, sujeitas à
jurisdição estatal.
A título de exemplo e por analogia, saliente-se que, nos contratos de concessão
firmados no âmbito da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, as
questões referentes à violação do direito da concessionária à proteção de sua
situação econômica, revisão das tarifas e indenizações devidas quando da
extinção do presente contrato, inclusive quanto aos bens revertidos, são matérias
suscetíveis de serem dirimidas por arbitragem, após esgotadas as negociações
amigáveis.
30 Cf Cláudio VIANNA DE LIMA, A lei de Arbitragem e o Art. 23, XV, da Lei de Concessões, Rio de Janeiro, FETRANSPOR, 1997, p. 4.
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À guisa de complementação, vale notar, também, as ponderações efetuadas em
precedente jurisprudencial que analisou a pertinência da inclusão de cláusula
arbitral em contrato que objetivava a adaptação e a ampliação da Estação de
Tratamento de Esgotos de Brasília (este era o fim público colimado) objetado
pelo Tribunal de Contas da União - TCU. 31 O Conselho Especial do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal salientara que “...para sua consecução havia o
fornecimento de diversos bens, prestações de obras civis, serviços de montagens
eletromecânicas, etc. No caso, havendo dúvidas atinentes a tais disposições,
podem perfeitamente ser solucionadas ante o juízo arbitral, tudo visando a
eficiente consecução do objeto contratado.”32 Este precedente tornou-se o
leading case para a matéria salientando que “...pelo art. 54 da Lei n. 8.666/93,
os contratos administrativos regem-se pelas suas cláusulas e preceitos de direito
público, aplicando-se-lhes supletivamente os princípios do direito privado o que
vem reforçar a possibilidade de adoção do juízo arbitral para dirimir questões
contratuais. Cabe à Administração Pública cumprir as normas e condições
constantes do Edital de Concorrência, ao qual está vinculada.” 33
Pedro Batista MARTINS, ao concluir estudo jurisprudencial sobre a questão
salienta:”...seja na exploração empresarial de atividade econômica, ou na
prestação de um serviço público afeta a atos de gestão patrimonial, é legal e
31 Vale notar que persistindo nessa linha, não obstante a manifestação em contrário do precedente judicial mencionado, o TCU vem de objetar a fixação de cláusula arbitral em contrato firmado pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial – CBEE (Processo TC – 005.250/2002-5, Acórdão da 2º Câmara, Ata nº 12/2003, em 10.04.2003). 32 Julgamento em Mandado de Segurança n. 1998002003066-9, em 18.05.99 (DJ 18.05.99). v.u., Conselho Especial do TJDF. Reitere-se que nenhuma incompatibilidade existe entre o disposto no caput do art. 54 da Lei nº 8.666/93 e o art. 23, XV, da Lei nº 8.987/95 confrontados com o art. 55, § 2º da Lei nº 8.666/93 (eleição de foro). Cf nosso artigo A Arbitragem e os Novos Rumos Empreendidos na Administração Pública – A Empresa Estatal, o Estado e a Concessão de Serviço Público, in Aspectos Fundamentais da Lei de Arbitragem, Pedro Batista MARTINS, Selma M. Ferreira LEMES e Carlos Alberto CARMONA, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 194. 33 Excertos do referido acórdão encontram-se publicados na RDBA 8:358-65, abr./jun. 2000. CF Clávio VALENÇA FILHO, Arbitragem e Contratos Administrativos, comentários ao citado acórdão, na mesma obra p. 365/73.
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recomendável valer-se (e sujeitar-se) o Estado aos efeitos da cláusula
compromissória.” 34
O precedente jurisprudencial citado pode ser analisado invocando o princípio
ético-jurídico da boa-fé, pois é ilegítima a alegação de quem negocia (inclui no
edital), e depois pretende invalidar a cláusula arbitral. Neste mesma linha ética
pondera com muita propriedade Adilson Abreu DALLARI, “...o interesse
público não se confunde com o mero interesse da Administração ou da
Fazenda Pública; o interesse público está na correta aplicação da lei e se
confunde com a realização concreta da justiça. Inúmeras vezes, para defender
o interesse público, é preciso decidir contra a Administração Pública”35
(grifamos). É por isso, igualmente, que ao eleger a arbitragem não se está
transigindo ou negligenciando com o interesse público; ao contrário, está-se
elegendo um modo mais célere e especializado de solucionar controvérsias, que
observará os ditames de um julgamento justo, em que o procedimento acolha os
princípios da igualdade de tratamento das partes, do contraditório, da
imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento (art. 21, § 2º da Lei nº
9.307/96).
É neste sentido igualmente que pondera o ilustre professor de direito
administrativo Diogo F. MOREIRA NETO, que, ao analisar as modalidades
preventivas de solução de conflitos em que a Administração esteja envolvida,
34 Pedro Batista MARTINS, O Poder Judiciário e a Arbitragem. Quatro anos da Lei n. 9.307/96 (3º parte), RDBA12:333, abr./jun., 2001. 35 Adilson de Abreu DALLARI, “Arbitragem na Concessão de Serviço Público”, Revista Trimestral de Direito Público, 13/9, 1996.
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entre elas, a arbitragem, adverte que jamais se cogita em negociar ou questionar o
“interesse público, mas negociar os modos de atingi-lo com maior eficiência,” 36
(b) a disciplina estabelecida na Lei de Concessões de Serviços Públicos para
a solução extrajudiciária de controvérsias
A inclusão das formas extrajudiciárias de solução de controvérsias nos
contratos de concessão de serviços públicos, de acordo com o art. 23, inciso XV,
da Lei nº 8.987, de 1995 (Lei Geral das Concessões), reitere-se, representa
importante mudança de paradigma a regular o moderno direito administrativo
brasileiro, em que se procura novas formas de gestão pública que melhor se
coadunem com os atuais papéis atribuídos ao Estado. Verifica-se, assim, por
coerência e justiça, uma mudança de postura e tratamento em relação aos
particulares, seus parceiros, que são considerados colaboradores da
Administração. Neste diapasão, o legislador procurou estabelecer um equilíbrio
entre os direitos e deveres da Administração e os direitos e deveres do parceiro
privado, determinando a inserção, nos contratos de concessão de serviços
públicos, na categoria de cláusula essencial, a eleição de foro e o modo amigável
de solução de divergências, entre elas a arbitragem, haja vista ser a celeridade e
especialidade um dos principais atributos desta forma extrajudiciária de solução
de controvérsias, e que representa importante fator de otimização do contrato
administrativo.
36 Diogo F. MOREIRA NETO, Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa, RDA, 231:154, jan./mar.,2003. Saliente-se que a reforma constitucional administrativa brasileira erigiu o princípio da eficiência como um fim a ser perseguido por toda a administração pública sob todos os ângulos do conceito. Cf. Alvacir Correa dos SANTOS, Princípio da Eficiência da Administração Pública, São Paulo, LTr, 2003, 270 p. e Rogério Garcia de LIMA, Ética e Eficiência na Administração Pública, RDA 233: 13-32, jul./set., 2003.
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Note-se que a inserção de cláusulas que, a bem do interesse público atendem aos
interesses tanto da administração como do particular, foi objeto de análise de
Themístocles CAVALCANTI ao enfatizar que “... parece-me que a
administração realiza muito melhor os seus fins e a sua tarefa, convocando as
partes que com ela contratarem, a resolver as controvérsias de direito e de fato
perante o juízo arbitral, do que denegando o direito das partes, remetendo-as ao
juízo ordinário ou prolongando o processo administrativo, com diligências
intermináveis.”37
A Lei de concessão de serviço público ao dispor como cláusula essencial nos
contratos de concessão (Lei nº 8.987/95, art. 23, inciso XV) às questões
referentes ao foro e ao modo de solução das divergências contratuais está
ampliando e esclarecendo o previsto no art. 54 da Lei nº 8.666/93 (Lei de
Liicitações), em linha com a Constituição Federal, haja vista o disposto nos arts.
173, § 1º,II e 175, § único, I.
Adverte Diogo F. MOREIRA NETO, que com o advento da Lei nº 8.987/95
nenhuma dúvida mais pode pairar quanto ao uso da arbitragem e que o legislador
erigiu em cláusulas essências, portanto obrigatórias, os modos de solucionar
amigavelmente controvérsias e que não são outros do que a mediação, a
conciliação e a arbitragem, salientando que “... o importante é ter-se patenteado
um reconhecimento inequívoco da Lei, este sim, bem definido, de que há sempre
um campo de interesses patrimoniais disponíveis dentro do qual a arbitragem
não é apenas aceitável, porém, mais que isso, recomendável como alternativa ao
37 RDA 45/517 Apud Eros Roberto GRAU, Da Arbitrabilidade de Litígios envolvendo Sociedades de Economia Mista e da Interpretação de Cláusula Compromissória, RDBA 18401, out./dez., 2002.
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litígio judicial. E neste ponto reside a inovação oportuna e modernizadora
introduzida pelo legislador brasileiro.” 38 (negrito do autor)
Neste sentido, não resta a menor dúvida da necessidade de os contratos de
concessão disporem sobre a arbitragem quando a negociação ou a conciliação,
utilizadas prévia e preferencialmente, não dissiparam a controvérsia.
Com efeito, verifica-se que o objetivo do legislador ao incluir a solução
extrajudicial de controvérsias foi de contrabalançar as necessidades do Estado e
os interesses do particular, procurando firmar a igualdade jurídica entre as partes,
priorizando a composição amigável e a arbitragem que, com mais propriedade, se
coadunam com os objetivos do contrato de concessão (contrato de colaboração).
Nesta linha, as formas extrajudiciárias de solução de conflitos inaugurada com a
Lei nº 8.987/95, art. 23, inciso XV, passaram a ser incluídas nas legislações
posteriores, aprimorando a aplicação do instituto da arbitragem. No âmbito dos
contratos de concessão firmados pela Agência Nacional de Telecomunicações -
ANATEL, estabeleceu a Lei nº 9.472 de 1997, no art. 93, XV que esses contratos
disporão sobre o foro e o modo extrajudicial de divergências contratuais. 39 No
mesmo sentido a Lei nº 9.478 de 1997, art. 43, X, para os contratos de concessão
firmados pela Agência Nacional de Petróleo-ANP estabelecerão as regras sobre
solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a
conciliação e a arbitragem internacional. A Lei nº 10.233 de 2001, no art. 35,
inciso XVI, estabelece que, nos contratos de concessão de transporte aqüaviário, 38 Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, Arbitragem nos Contratos Administrativos, RDA 209/88, jul./set. 1997. No mesmo sentido verificar Adilson de Abreu DALLARI, Arbitragem na Concessão de Serviço Público, Revista Trimestral de Direito Público, 13:7, 1996.
39 No âmbito da ANATEL o modelo de contrato de concessão de serviços (de diversas especialidades) prescreve a arbitragem no Capítulo XXX.( www.anatel.gov.br).
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23
haverá cláusula que disponha sobre as controvérsias relacionadas com o contrato
e sua execução, estipulando a conciliação e arbitragem, etc. Impende observar
que, no âmbito da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, o
denominado Mercado Atacadista de Energia - MAE, dispõe como cláusula
obrigatória dos contratos a solução de controvérsias por arbitragem, a teor do
disposto na Lei nº 10.233, de 24.04.02, art. 2º, §§ 3º a 5º e na Resolução da
ANEEL nº 102, de 01.03.02, que institui a Convenção do Mercado Atacadista de
Energia e a forma de funcionamento do MAE, atualmente sucedida pela Câmara
de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE (Lei nº 10.848, de 15 de março
de 2004).
E, ainda mais. Os contratos administrativos, ainda que não se refiram à concessão
de serviços públicos, a teor do disposto no art. 54 da Lei nº 8.666/93, devem
enaltecer a solução arbitral, a bem do interesse público. A boa e oportuna
administração da Justiça pelo Judiciário deve priorizar as questões que não digam
respeito a direitos patrimoniais disponíveis, bem como é papel do Estado e de
suas empresas públicas e sociedades de economia mista envidar esforços neste
sentido, além de dar o exemplo à sociedade. Assim, matérias que digam respeito
aos interesses públicos derivados, de natureza instrumental, devem ser
solucionadas por arbitragem (inclusive para otimizar a gestão pública, posto que
ao estabelecer o preço dos serviços ou obras o contratante privado leva em
consideração os custos que incorrerá com possíveis e futuras demandas judiciais
duradouras). Por isso, decisões esporádicas e dissociadas da realidade (dir-se-iam
anacrônicas), no âmbito dos órgãos incumbidos de revisar os atos
administrativos, que ainda não se ativeram às modernas técnicas administrativas
existentes no novo cenário que une o contratante público e o privado, deveriam
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rever e analisar a pertinência da arbitragem como meio idôneo de solucionar
diferendos contratuais.
Com muita pertinência Diogo F. MOREIRA NETO, ao analisar e situar o direito
administrativo contemporâneo e o princípio da consensualidade 40 esclarece que
não se pode confundir “monopólio de jurisdição” com “monopólio de justiça”,
advertindo que a consensualidade deve ser levada também “à solução dos
conflitos pelas amplas vias, já extensas e universalmente desenvolvidas da
‘conciliação’, da ‘mediação’ e da ‘arbitragem’ afastando de vez, a confusão
ainda existente entre ‘monopólio de jurisdição’, de sentido coercitivo, e
‘monopólio de justiça’, em que a força do consenso das partes em conflito é que
conduz a uma fórmula de composição.” 41
Conclui-se, portanto, que os contratos de concessão de serviços públicos não
apenas podem estabelecer a solução de controvérsias por arbitragem, como
devem assim proceder. Em suma, é um imperativo imposto pelo legislador (art.
23, inciso XV da Lei n] 8.987/95), que teve como fundamento propiciar às
partes, quando factível, modo célere de solução de controvérsias e, em
conseqüência, dar efetividade aos princípios de direito aplicáveis no campo
obrigacional, tais como, a boa-fé, evitar locupletamento ilícito, etc, cuja vertente
pública se reflete no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos que firmam
com os particulares. 42 Neste sentido aduz Caio TÁCITO que: “ A convenção de
40 Cf Cláudio Cairo GONÇALVES, O Princípio da Consensualidade no Estado Democrático de Direito – Uma Introdução, RDA, 232: 105-114, abr./jun., 2003 e Diogo F. MOREIRA NETO, Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa, RDA 23:129-156, jan./mar., 2003. 41 Diogo F. MOREIRA NETO, A Globalização e o Direito Administrativo, RDA, 226: 279, out./dez., 2001. 42 Neste particular observa o professor Romeu BACELLAR FILHO, que o contrato administrativo não se liberta das características ínsitas de qualquer avença. Como consectário de uma obrigação, o contrato resulta de um acordo de vontades. “A autonomia da vontade é elemento imprescindível a ser observado em qualquer contratação. Do mesmo modo os princípios lex inter partem e pacta sunt servanda, fazem certo que o contrato é a lei entre as partes e que estas, devidamente ajustadas, devem observar o que foi pactuado.” A Natureza
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arbitragem será, em tais casos, caminho aberto a que, pelo acordo de vontades,
se possa alcançar a plena eficácia da relação contratual. A discriminação entre
as hipóteses, tendo como fundamento a natureza própria das obrigações
contratuais, está a merecer tratamento no plano normativo que faculte, nos
contratos administrativos, equivalência entre partes desiguais, de tal modo que
as prerrogativas da Administração não onerem excessivamente a outra parte ou
eliminem a fruição do direito do contratante privado.
Se, indubitavelmente, em certos casos, o princípio da indisponibilidade do
interesse público repele o compromisso arbitral, não há por que obstar o
benefício da transação quando a natureza da obrigação de conteúdo mercantil, a
ser cumprida pelo órgão público, possibilita que ao acordo de vontade, fruto do
vínculo bilateral, possa igualmente suceder o procedimento amigável como
dirimente de eventual discrepância no entendimento da latitude da obrigação do
administrador”. 43
(c) os contratos de compra e venda de energia na qualidade de concessão ou
autorização de serviço público.
Como mencionado na introdução deste Parecer, em decorrência das
transformações verificadas no cenário jurídico-institucional brasileiro oriundas
das reformas efetuadas na Constituição Federal de 1988, diversas normas legais
se seguiram, inclusive as do setor de energia elétrica. A Lei Geral das
Concessões, Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 a Lei nº 9.074, de 07 de
julho de 1995, que nos arts. 4º a 25 regulam os serviços de energia elétrica, a Lei
Contratual das Concessões e Permissões de Serviço Público, Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, n° 94, 4° trimestre, 2000, p. 55. 43 Op. cit. p. 114/5.
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nº 9.427 de 26 de dezembro de 1996, que institui a Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL, o Decreto nº 2003, de 10 de setembro de 1996, que
regulamenta a produção de energia elétrica por produtor independente, o Decreto
nº 2.335, de 06 de outubro de 1997, que regulamenta as atividades da ANEEL, a
Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre o mercado atacadista de
energia elétrica, recentemente alterada e em futuro revogada pela Lei nº 10. 848,
de 15 de março de 2004, bens como outras disposições legais e regulamentares
baixadas pela ANEEL.
Em todos esses textos o conceito de que a atividade desenvolvida é de natureza
mercantil e comercial, portanto, disponível e explícita, não obstante referir-se a
serviço público. Note-se, inclusive, que as concessionárias ou autorizadas podem
oferecer os direitos emergentes como garantias, tal como disposto no art. 28 da
Lei Geral das Concessões, verbis, “nos contratos de financiamento, as
concessionárias poderão oferecer em garantia os direitos emergentes da
concessão, até o limite que não comprometa a operacionalização e a
continuidade da prestação do serviço.” No mesmo sentido dispõe o art. 19, § 1º
do Decreto nº 2003, de 1996. Destarte, como estabelecido na Lei Civil, só podem
ser dados bens em garantia, quando podem ser alienados e comerciáveis (arts.
756 do Código Civil de 1916, equivalente ao art. 1420 do NCC). Portanto,
reitere-se e a toda evidência, são bens plenamente disponíveis.
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Neste sentido e na linha do aduzido deve ser observado que a produção de
energia como um produto comerciável está explicitamente estipulada nos arts. 11
e 12 da Lei nº 9.074, de 1995.44
Importa destacar que o simples fato de a atividade ser considerada como serviço
público em razão do interesse público inerente, não retira a qualidade de direito
disponível. Por coerência, note-se, que o atual regime de concessão de serviços
públicos é misto, vale dizer, nele atuam tanto concessionárias vinculadas aos
Estados na qualidade de sociedades de economia mista, como empresas
exclusivamente privadas e, para todas, o produto gerado é alienável e
comerciável como qualquer bem, não obstante ser um produto de interesse
público. A disciplina é uniforme, tanto para as concessionárias sociedades de
economia mista, suas subsidiárias, como para os concessionários ou agentes
autorizados privados. Reitere-se, a Lei é única e para todos estabelece o mesmo
tratamento.
44 “ Art. 11 – Considera-se produtor independente de energia elétrica a pessoa jurídica ou empresas reunidas em consórcio que recebam concessão ou autorização do poder concedente, para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por sua conta e risco. Parágrafo único. O produtor independente de energia elétrica está sujeito a regras operacionais e comerciais próprias, atendido o disposto nesta Lei, na Legislação em vigor e no contrato de concessão ou ato de autorização. Art. 12 – A venda de energia elétrica por produtor independente poderá ser feita para: I – concessionário de serviços público de energia elétrica; II – consumidor de energia elétrica, nas condições estabelecidas nos artigos 15 e 16; III– consumidores de energia elétrica integrantes de complexo industrial ou comercial, aos quais o produtor independente também forneça vapor oriundo de processo de cogeração; IV – conjunto de consumidores de energia elétrica, independentemente de tensão e carga, nas condições previamente ajustadas com o concessionário local de distribuição; V - qualquer consumidor que demonstre ao poder concedente não ter o concessionário local lhe assegurado o fornecimento no prazo de até cento e oitenta dias contado da respectiva solicitação. Parágrafo único. A venda de energia elétrica na forma prevista nos incisos I, IV e V deverá ser exercida a preços sujeitos aos critérios gerais fixados pelo poder concedente.”
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Acrescente-se, que todos os contratos firmados entre o concessionário e terceiros
para o desenvolvimento das atividades inerentes à concessão ou autorização
regem-se pelas normas de direito privado, consoante disposto no art. 25, § 2º da
Lei nº 8.987, de 1995 (Lei Geral das Concessões e Autorizações). 45
Saliento, ainda, que o próprio Mercado Atacadista de Energia – MAE previa a
solução de controvérsias por arbitragem (Lei nº 10.433 de 2002, art. 2º § 3º)
sucedida pela Lei nº 10.848, de 2004 que instituiu a Câmara de Comercialização
de Energia Elétrica - CCEE, que do mesmo modo prevê a arbitragem no art.4º §
5º. 46
Desta forma, não há a menor dúvida que a atividade mercantil de
comercialização de energia elétrica em todas as suas modalidades, tais como,
produção, geração, transmissão, etc representa direito disponível, na acepção
conferida ao termo na Lei nº 9.307, de 1996, art. 1º. Ademais, em nada afeta esta
óbvia conclusão o fato de a prestadora do serviço (concessionária ou autorizada)
ser entidade vinculada ao setor público (sociedade de economia mista) ou
empresa privada.
45 Neste sentido verifica-se, conforme já mencionado, a inconsistência de decisões esporádicas que surgem tanto no âmbito do Tribunal de Contas da União como no Judiciário que se equivocam em considerar a atividade de exploração de serviços de energia elétrica como não econômica, pelo simples fato de ser um serviço público. 46 A latere e a titulo de informação saliento que a Lei nº 10.848 é resultante de Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003, baixada pelo Presidente da República e que por ocasião de sua tramitação legislativa houve a propositura de ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal- STF (Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.100-7) interposta pelo Partido da Frente Liberal- PFL, que entre outros assuntos alegaram a inconstitucionalidade do art. 4º § 5º, que previa a arbitragem. Referida alegação foi imediatamente afastada pelo Ministro Relator Gilmar Mendes, que inclusive referendou a aplicação da Lei nº 9.307 de 1996 (Lei de Arbitragem) em 04 de fevereiro de 2004. (www.stf.gov.br)
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29
II – A Companhia BBB, na qualidade de sociedade de
economia mista, que explora serviços e instalação de energia elétrica
como concessionária de serviço público federal pode firmar contratos
que estabeleçam a solução de controvérsias por arbitragem?
A Companhia BBB é uma sociedade de economia mista na forma da Lei das
Sociedades por Ações e foi criada por Lei do Estado do xxx, Lei nº 1.384 de 10
de novembro de 1953, Decreto Estadual nº 14.947 de 1954 e Decreto nº 37.399
de 1955. No seu objeto social estão incluídas todas as atividades peculiares à área
de exploração de serviços de energia elétrica e nessa qualidade exerce funções
como concessionária de serviço público federal, pois é atividade de competência
da União (art. 21, XII, b e 175 da CF). Destarte, toda a atividade que exerce está
vinculada aos termos das Leis Federais, que dispõem sobre a exploração de
serviços de energia elétrica e se submetem à fiscalização da ANEEL. A BBB, na
qualidade de concessionária de serviço público, não detém a titularidade da
atividade, mas apenas o seu exercício.
A forma legal assumida pela sociedade de economia mista, seja integrante da
Administração Federal ou dos Estados (caso da BBB) observará a Lei Federal
que disciplina a Sociedade por Ações, Lei nº 6.404, de 1976 alterada pela Lei nº
10.303, de 2001, arts. 235 a 240. Nesta qualidade, segue estritamente as regras de
direito privado e é considerada uma sociedade comercial.
A instituição da sociedade de economia mista foi uma forma encontra pelo Poder
Público, por meio de uma única empresa voltada para a execução de serviço
público de natureza comercial ou industrial acumular grande volume de recursos
financeiros que não dispõe e, ao mesmo tempo, atuar na forma das empresas
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30
privadas. Desde a Constituição Federal de 1967 (art. 170, § 2º) as sociedades de
economia mista regem-se pelas regras de direito privado. No âmbito federal, o
art. 5º inciso III do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, dispôs que “a
sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de
direito privado, criada por lei para o exercício de atividade mercantil, sob a
forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam, na sua
maioria, à União ou à entidade da Administração Indireta.” Posteriormente, o
Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969, alterou a expressão “exercício de
atividade mercantil” para “ exploração de atividade econômica.”
Na forma de sociedade de economia mista o Estado quer unir-se a particulares,
para com as vantagens da comunhão de esforços (financeiros e/ou gerenciais)
implantar ou manter um empreendimento, no qual a regra é a gestão segundo as
normas cíveis e empresariais. 47 A exceção será a adequação aos preceitos
administrativos, vinculados a determinados princípios de direito público, que
devem ser observados, tais como, os princípios da moralidade, legalidade,
publicidade, eficiência, etc. previstos no art. 37, caput da Constituição Federal e
que estão presentes em diversos outros dispositivos da própria Constituição, bem
como em Leis infraconstitucionais, que determinam a exigência de criação por
lei, controle externo do legislativo, finanças públicas, submissão de suas contas
ao Tribunal de Contas,etc.
Maria Sylvia DI PIETRO a esse respeito observa “ Embora elas [sociedade de
economia mista] tenham personalidade dessa natureza [direito privado], o
regime jurídico é híbrido, porque o direito privado é parcialmente derrogado
47 Carlos Ari SUNDFELD, Reforma do Estado e Empresa Estatal – A participação Privada nas Empresas Estatais, in Direito Administrativo Econômico, Carlos Ari SUNDFELD (org.), São Paulo, Malheiros, 2002, p. 269.
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pelo direito público. Mas, falando-se em personalidade de direito privado, tem-
se a vantagem de destacar o fato de que ficam espancadas quaisquer dúvidas
quanto ao direito a elas aplicável: será sempre o direito privado, a não ser que
se esteja na presença de norma expressa de direito público.” (negrito no
original, grifo nosso). 48 49
Na seara arbitral, para solucionar a questão da arbitrabilidade subjetiva referente
à sociedade de economia mista, em especial a BBB, entendo que poderia abordar
a questão sob o enfoque da arbitrabilidade subjetiva: (a) intrínseca e
(b)extrínseca.
(a) arbitrabilidade subjetiva intrínseca
A arbitrabilidade subjetiva intrínseca refere-se ao aspecto societário, adstrito às
normas das sociedades por ações, na qualidade de sociedade comercial e, sob este
ótica, nenhuma dúvida pode pairar quanto à sua capacidade de firmar contratos e
dispor da arbitragem para solucionar dissensos.
(b) arbitrabilidade subjetiva extrínseca
48Maria Sylvia DI PIETRO, Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 15º ed., 2003, p. 385. 49Ao efetuar estudo sobre a influência e inserção das regras e princípios do direito privado no direito administrativo a professora titular de direito administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, Odete MEDAUAR, salienta três movimentos distintos: a privatização de primeiro grau para qualificar o uso do direito privado na disciplina de atuação dos entes públicos; a privatização de segundo grau, existente na criação de entes de personalidade jurídica privada, regidos pelo direito privado e a privatização de terceiro grau ao transferir ao setor privado áreas antes absorvidas pelo Estado. CF Odete MEDAUAR, o Direito Administrativo em Evolução, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2. ed., 2003, p. 173.
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A arbitrabilidade subjetiva extrínseca refere-se à sua conformidade com as
premissas e princípios do direito público, verificando-se que a sociedade de
economia mista, a Copel, está adstrita à Lei, tanto na sua perspectiva positiva, de
somente atuar na forma da Lei, como na perspectiva negativa, de deixar de fazer
algo quando vedado por Lei. Com efeito, não existe norma legal que proíba a
sociedade de economia mista de submeter-se à arbitragem, 50 mas existe Lei que
permite que assim proceda.
Como asseverei anteriormente, o STF no leading case conhecido como Caso
Lage afirmou que a disciplina arbitral é de direito civil (e processual civil) e,
portanto, regulada no NCC (arts. 851 a 853) e na Lei de Arbitragem, Lei nº
9.307, de 1996, que no art. 1º esclarece que qualquer pessoa capaz, seja pessoa
física ou jurídica, de direito público ou privado, pode solucionar controvérsias
por arbitragem. 51
Acrescente-se que, inclusive na condição de concessionária de serviço público
federal, a BBB está autorizada pela Lei Geral das Concessões (Lei nº 8.987 de
1995) a submeter-se a arbitragem duplamente: seja na sua relação com o poder
concedente (art. 23, XV), seja nos contratos que firmar com terceiros (art. 25, §
2º).
50 Reitere-se que não se deve invocar o argumento equivocado de que a Lei nº 8.666 de 1993, que regula as Licitações Públicas veda o uso da arbitragem, por determinar nos contratos a indicação do foro da sede da Administração. A indicação do foro não consiste em vedação ao uso da arbitragem, pois os contratos, nos casos das denominadas cláusulas exorbitantes estão adstritos à Justiça Estatal. Ademais, no art. 54 da citada Lei, há a estipulação expressa que se aplicam supletivamente nos contratos firmados com a Administração os princípios do direito privado. Nesta linha, inclusive, é que se interpreta o art. 23, XV da Lei nº 8.987 de 1995, que inclui a eleição de foro e o modo amigável de solução de controvérsias. 51 Cf José Carlos de MAGALHÃES, Do Estado na Arbitragem Privada, José Carlos de MAGALHÃES & Luiz Olavo BAPTISTA, Arbitragem Comercial, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1986, p.84.
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Acentua nesta linha Marcos J. Villela SOUTO que “a Lei de Concessões já
admite a solução amigável de controvérsias; a conciliação, mediação e
arbitragem, inseridas na competência de algumas agências reguladoras, também
fornecem alternativas à prevenção do litígio judicial, que também já resta
acolhida pela Lei nº 9.307/96, que trata da arbitragem comercial e pode ser
empregada nos contratos firmados por sociedades de economia mista e empresas
públicas.” 52
A participação de Sociedade de Economia Mista em arbitragem foi recentemente
confirmada pela 7º Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná:
“Compromisso Arbitral- Sociedade de Economia Mista- Personalidade Jurídica
de Direito Privado – Exploração de Gás Canalizado não Caracteriza Prestação
de Serviço Público, mas Atividade de Regime Privado – Não Envolve Direitos
Indisponíveis – Contrato Administrativo – Admissibilidade da Arbitragem- Vícios
do Compromisso não Configurados – Recurso Improvido.” 53
Assim, concluo que a Companhia BBB, sociedade de economia mista por ações e
de capital aberto, pode firmar contratos com cláusula compromissória em
conformidade com as Leis de regência acima indicadas.
Para finalizar registro as palavras da professora Ada Pellegrini GRINOVER, ao
analisar a arbitragem na prestação de serviços públicos:“não deve pairar
52 Marcos J. Villela SOUTO, Direito Administrativo Contratual, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 219 53 Apelação Cível n. 247.646-0 de Curitiba – 3º Vara da Fazenda Pública. Partes: Apelante: Companhia Paranaense de Gás – Compagás e Apelada: Consórcio Carioca –Passarelli. Julgamento unânime, 11.02.2004.
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qualquer dúvida sobre a admissibilidade da arbitragem envolvendo a
Administração e, com maior certeza, órgãos da administração indireta.” 54
Este é o meu parecer.
São Paulo, 07 de abril de 2004
Selma Maria Ferreira Lemes
Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP Membro da Comissão Relatora da Lei de Arbitragem
Assessora do Ministério da Justiça Brasileiro na elaboração do Acordo de Arbitragem Comercial Internacional do Mercosul - Buenos Aires, 1998.
Coordenadora e Professora do Curso de Arbitragem - GVLAW da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas - São Paulo e Rio de Janeiro
Coordenadora do Curso LLM em Direito Arbitral do IbmecLaw – São Paulo
54 Ada Pellegrini GRINOVER, Arbitragem e Prestação de Serviços Públicos, RDA 233: 385, jul./set, 2003.