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Dossiê A Música e suas Determinações Materiais – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/

ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 1, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i1.27449

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RacionaisMCs,Indústriacultural,mercadoriaeperiferia

RacionaisMCs,cultureindustry,commodityandperiphery

LucianeSoaresdaSilva ProfessoraassociadadaUniversidadeEstadualdoNorteFluminenseDarcyRibeiro.MestrepelaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul.DoutoraemsociologiapelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.PresidentedaAssociaçãodeDocentesdaUENFechefedelaboratóriodoLESCE(LaboratóriodeEstudosdaSociedadeCiviledoEstado).ÉvicepresidentedaADUENFecoordenaoNúcleodeEstudosCidadeCulturaeConflito(NUC).

Submetidoem16demarçode2020Aceitoem07demaiode2020

RESUMOEntreasinterpretaçõescontemporâneassobreaexistênciadeumestilojuvenil,umdos principais demarcadores de seu comportamento é a forma de consumo nasgrandescidades.Amúsica,principalmenteapósadécadade50,marcaesteestiloeinsere determinadas formas de adesão a mercadorias (jeans, motos, bebidas,cigarros).Estapesquisaaplicaatécnicadaanálisedeconteúdosobre16letrasdecanções do grupo de rap Racionais MCs, propondo a problematização destesdemarcadores de consumo também presentes na indústria fonográficaestadunidense.Acríticasocialacompanhadadodesejopelapossedebensexigeumaanálise sobre categorias centrais à sociologia contemporânea, como alienação,conflito social e cultura globalizada. É possível classificar/compreender estageraçãoapartirdaexibiçãodedeterminadogostoporobjetos?Oreferencialteóricopara esta pesquisa partirá dos estudos culturais, dos trabalhos da escola deFrankfurt (especialmente as discussões de T. Adorno sobre arte e técnica) e dadiscussãodePeterMcLarensobre“multiculturalismorevolucionário”parapensararelaçãoentremúsica,políticaeconsumo.PALAVRAS-CHAVE:favela,músicanegra,conflitoracial,arte

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ABSTRACTAmongcontemporary interpretationsof theexistenceofayouthstyle,oneofthemaindemarcatorsofhisbehavioristheformofconsumptioninlargecities.Music,especiallyafterthe50s,marksthisstyleandinsertscertain formsofadhesiontogoods(jeans,motorcycles,drinks,cigarettes).Thisresearchappliesthetechniqueofcontentanalysison16lyricsofsongsbytherapgroupRacionaisMCs,proposingtheproblematizationoftheseconsumptionmarkersalsopresentintheAmericanphonographicindustry.Socialcriticismaccompaniedbyadesireforpossessionofgoodsrequiresananalysisofcategoriescentraltocontemporarysociology,suchasalienation, social conflict and globalized culture. Is it possible to classify /understand this generation from the display of a certain taste for objects? Thetheoreticalframeworkforthisresearchwillstartfromculturalstudies,theworkoftheFrankfurtschool(especiallyT.Adorno'sdiscussionsonartandtechnique)andPeterMcLaren'sdiscussionof“revolutionarymulticulturalism”tothinkabouttherelationshipbetweenmusic,politicsandconsumption. KEYWORDS:slum,blackmusic,racialconflict,art

Introdução

Otextoapresentadoconstituiumaprimeiratentativadesistematizaçãode

questõessobreindústriacultural,periferiaeconsumo.Nestetrabalho,aculturaé

pensadaenquantoespaçodeconflito(Bourdieu,1989).Especificamenteinteressaa

produçãodiscursivadeumgrupopaulista,osRacionaisMCs.

Metodologicamente, seráaplicadaa técnicadeanálisede conteúdoem16

letras do grupo. A leitura de livros, teses, dissertações e artigos sobre o tema

colaborounapercepçãodequeamaioriadaspesquisastrabalhadeformacanônica:

asorigens,acrítica,omomentoatual,focandoarelaçãoentreperiferiaeindignação

comoprincipalqualidadedomovimentohip-hopnoBrasil.

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Na maioria das pesquisas sobre o tema, são empregadas técnicas de

entrevistas,eestasnãosedetêmsobreoconteúdodasletras,jáqueasexplicações

emgeralassemelham-seàsdadaspelosnativosdomovimento:acríticaaosistema

(quepodeassumirdiferentesrepresentações),aviolênciaeolugardasperiferias

nasgrandescidades.

O exercício de pensar a produção musical, as letras e seus artistas foi

realizadoporKhel(1999),avaliandoossignificadosdaformaçãodestesgruposna

periferia de São Paulo. O artigo é um dos primeiros a inaugurar uma chave

interpretativaquereapareceráempartedaproduçãocientíficabrasileirasobreo

rapemgeraleogrupoRacionaisMCsemparticular:

Éacapacidadedesimbolizaraexperiênciadedesamparodestesmilhõesdeperiféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles sejadefinitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda sepretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma falasignificativa e nova sobre que faz dos Racionais MCs o mais importantefenômenomusicaldemassasnoBrasildosanos90.(KHEL,1999,p.97)

Em2004,outroartigosobreotemaseguealinhadoanterior.Em“Onegro

dramadorapentrealeidocãoealeidaselva”(ZENI,p.2282004),aanálisede

letrasdosRacionaislevaoautoradeclararque:

OrapdosRacionaispretende,aoqueparece,levaraleidaselvaquedominaaperiferiaparaointeriordacasagrande,aosouvidosdaelite,comacertezabrutal–comaagressividadequeosafirmaeprotege–dequeelessãodemaisparaoquintaldasclassesdominantes.

AopçãoporanalisarorapcomoummovimentodeinterpretaçãodoBrasil

vindodaperiferiaéutilizadaporCamargo(2015)esegueamesmatônica:asletras

esuarelaçãocomosmarginalizadoseadesigualdade/racismo/violênciapolicial.

Nesteartigo,apropostaérealizarumaanálisedaproduçãodeletrassema

obrigação conclusiva de uma missão ou engajamento por parte dos artistas. O

estudo das letras de um grupo torna-se relevante como indicador de um tipo

específicodeprodução cultural e tambémda complicada relaçãoentremercado,

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arteepolítica.Asletrassãoumachavepoderosaparacompreensãodessasrelações

a partir de enunciados que deslocam a função das mercadorias para outras

possibilidades que não seu uso ou exibição. O desafio enfrentado neste artigo

consisteemanalisarasformascomoestesartistasdesfazemerefazemosignificado

debensdeconsumocomocarros,motos,relógios,bebidas,têniseoutrosobjetos

cujovaloréproblematizadonasletras.

Sobremudançasediásporamusicalnegra

Aproduçãomusicaldepessoasnão-brancas(negrxs,latinxs)empaísescomo

Estados Unidos e Brasil é comumente classificada como “menor” diante dos

demarcadoresdedistinçãodoqueconvencionou-seclassificarcomo“boamúsica”:

Parausarumaexpressãoprópriaàteoriamusical,tantonoBrasilcomonosEstadosUnidos, amusicalidadeafricanaapresentou-se comoumdefinitivo“contraponto”àculturanacional,oficializadanasidealizaçõescomunaisqueaspiravam à construção de uma nação inspirada na sociedade europeia.Portanto,asensibilidademusicalépensadaaquicomoprodutoradeafiliaçõesque expressamnão só umgosto estético. Afiliar-se a determinadas formasmusicais no Brasil produz demarcações identitárias, uma vez que estasafiliaçõessempreestiveramemdisputanaformaçãodogosto.Do lunduaosamba,passandoporexpressõesregionaisclassificadas(pelosmodernistas,por exemplo) como “folclóricas”. Em um primeiro momento, modinha,maxixe, lundu, samba, eram consideradas “expressões chulas” da culturanacional,enquantoaóperaapareciacomosinônimodenobrezaedistinçãodeclassesmaiscultivadas.Maistardeéamúsicaamericana(rockn’roll, jazz)que aparece como signo de modernidade em oposição ao que é nacional(sinônimode atraso).Mesmo comdivisões internas regionaisnaproduçãomusical, podemos falar em uma constante preocupação com o que eraeminentemente “nacional” e o que era importado. Estas fronteiras sãoalteradasapartirdadécadade90.Principalmentenaformadeassimilaçãodamúsicaeculturaestadunidensenasáreasurbanasbrasileiras.Seem1970osbailesemsubúrbioscariocastêmumamusicalidadenegraestrangeiracomofio condutor, apartirdadécadade90,aproduçãonacional apropria-sedebases sonoras para emissão de letras em língua portuguesa (SILVA, p.502019).

O advento da cultura de massas vem acompanhado da popularização de

músicasdeentretenimento,promovidasporumaindústria fonográficaquealiao

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desempenhodeartistaspopulares(oconceito“pop”quedominaomercadohápelo

menos duas décadas) à reprodução incessante de imagens e performances em

espaçostelevisivos.Oadventodasmáquinasdesomdomésticas(osaparelhosque

estãonaorigemmíticadosurgimentodohip-hop)colaboraramnamassificaçãode

umtipodeacessoaosbensculturais.Aquestãoqueseráproblematizadanestetexto

é a relação entre a produção no campo do hip hop e a indústria cultural. Seria

possívelpensarumpossíveldistanciamentoemrelaçãoaoconsumodemassas?

Classificações como “música de gueto”, “música de periferia”, “música de

bandidos”sãoempregadascomfrequênciaemrelaçãoàsproduçõesmusicaisfeitas

fora dos cânones de gosto mais largamente aceitas pela mídia e crítica musical

especializada.NoBrasil,podemospensarnasconfiguraçõesqueenvolvemosamba:

recusa, aceitação, consagração (de um tipo de samba que torna-se signo de

brasilidade, posteriormente presente no Carnaval como parte da brasilidade

estéticanacional).Apósosanos50,abossanovaservirácomotrilhadaurbanização,

enãoporacasoopresidenteJuscelinoKubitschekrecebeuoapelidode“presidente

bossa nova1”. Estes dois exemplos são fundamentais para entender amúsica no

séculoXXnoBrasil.Eapósaredemocratização,orockbrasileiro,juntoaopunkrock,

será pavimento de uma nova trilha. Questionadora da democracia, das

desigualdades e das formas de utopia e revolução perdidas. A década de 90

apresentará ao país o rap e o funk, primeiramente como importação e

posteriormentecomocriaçãodeletrasemlínguaportuguesa.

Oiníciodadécadade1980émarcadopelaaberturademocráticalenta,tendo

como expressões culturais o movimento punk e o Rock Brasil. Ambos já

tematizavamapolítica“quepaíséesse”,dabandaLegiãoUrbana,ouquestõessobre

desigualdade (“com tanta riqueza por aí, onde é que está, cadê sua fração?”), da

bandapunkPlebeRude,deBrasília.Ocenárioeraurbano,industrializadoenãomais

1Aletradacanção“Presidentebossanova”,deJucaChaves(“Depoisdesfrutardamaravilha/deseropresidentedoBrasil/voardaVelhaCapparaBrasília/veraalvoradaevoardevoltaaoRio[...]Mandarparenteajatoprodentista/almoçarcomtenistacampeão/tambémserumbomartistaexclusivista/tomandocomDilermandoumasaulinhasdeviolão”),ironizaumacertavisãodonovo,dourbano,damodaqueestariaemalta.Abossanovarepresentavaosanseiosdeumaparceladapopulação–anovaclassemédiaurbana–quereconheciaeexibiaseussignosdearrojoedistinção.

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rural.Oquestionamentoestavanasletrascomopartedeumcampotemático.Essa

geraçãoocupouatelevisão(emsuafasemaisexperimental,comoosmemoráveis

programasdoChacrinha)comexpressõesderebeldia,contestaçãodeinstituições

comoapolícia(“políciaparaquemprecisa”-Titãs)ouantecipandoatemáticadas

favelas(“alagados,Trenchtown,FaveladaMaré,aesperançanãovemdomar,nem

das antenasdeTV” –ParalamasdoSucesso).Oque tinhamemcomum, alémda

temática questionadora? Eram jovens, brancos e de classe média, filhos de

ministros, médicos, militares, engenheiros, psicólogas, professoras de violão...

Participavam de um movimento marcado pelo desejo de mudança social

acompanhadadecertadesconfiançaemrelaçãoàsinstituiçõespostas.

Ademocratizaçãodoacessoàinformaçãoeacertosbens(comotoca-discos,

caixasemicrofones)alteramestecenário.Amúsicaeletrônicaserviucomobasede

trabalhoparaumaparcelada juventude jáengajadadesdeadécadade1970nos

bailes black, ouvintes do ritmo funk (como praticado então nos Estados Unidos,

antesdoMiamibassquedominariaocenáriocariocanadécadade1990).Podemos

encontrarumelodeaproximaçãoentreaproduçãonacionalegruposdehip-hop

como Public Enemy, usando temporariamente o termo “música de diáspora”,

pensando nos trabalhos de Paul Gilroy sobre musicalidade africana e de

afrodescendentes?

AbasedamúsicanegraproduzidaprincipalmentenosEstadosUnidosesteve

presenteempraticamentetodocenáriomusicalocidentalemdiferentesmomentos,

sendoojazzeohip-hoposmaisconhecidos,masnãoosúnicos.Nocasoespecífico

dohip-hop,estáemjogoaconstruçãodeumaidentidadevisualsemelhanteàdo

rapper,comumgesticulareumestilodevidasemelhantes,quetorna-seumideal

nãoapenasparaaquelesquevivemnasperiferiasdeParis,SãoPauloouDetroit.

Tambémumapartesignificativadajuventudeoriundadasclassesmédiasadotauma

formadecomportamentosemelhanteade ídoloscomoTupacShakur,Emineme

ManoBrown.

Sãoreproduzidasaslinguagens(gírias,termoslocais,metáforas),formasde

vestir e, portanto, formasde consumo.Ogangsta rap torna-seumdosestilosde

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maior êxito na indústria fonográfica estadunidense a partir da década de 90,

principalmenteatravésdegravadorasalternativasaomainstream,comoaRuthless

Records e a Death Row Records. O mesmo fenômeno ocorre no Brasil com o

processodeproduçãodogrupoRacionaisMCs.Umdeseusmaisconhecidosálbuns,

SobrevivendonoInferno,ocupao14ºlugarentreoscemprincipaisálbunsdoBrasil

segundo a revista Rolling Stone. O álbum de 1997 foi produzido pelo selo Cosa

NostraFonográfica2,umselodogrupodedicadoaartistasderap.Ofatoderetratar

“situaçõescotidianasdeviolênciapolicial,racismoedesigualdade”fezcomqueuma

geração de pesquisadores focasse no estilo produzido nas periferias ocidentais

comotemadeartigos,livrosmonografiaseteses.Comfrequência,estaspesquisas

relacionam amúsica rap com o protesto dos excluídos na nova ordemmundial

capitalista. Talvez umadas referências principais desta tendência seja o livrode

PeterMcLaren,MulticulturalismoRevolucionário,noqualaatuaçãodosrappersé

comparadaaoconceitodeintelectualorgânicodeGramsci.Ocontextopolíticono

qualMcLarenescreveseu textoapaixonadosobreogangstarapamericanoéem

algunsaspectossemelhanteaoBrasilcontemporâneo:explosãodadiscussãosobre

racismo e ações policiais em bairros de periferia, abertura de espaço para

manifestações culturais de grupos cujo discurso explicita as contradições

econômicas,discussãodaspolíticaspúblicasparaosnegros,comoaçõesafirmativas

epolíticasdeassistênciasocial.

ArecepçãodogangstanoBrasilinfluenciouparteimportantedosgruposque

surgemapartirdadécadade1980-entreestes,emSãoPaulo,osRacionaisMCs.A

invasãodacenaurbanajuvenilpelohiphop(Herschmann,2000)recebeupesadas

críticasporpartedamídiaedoEstado,principalmenteórgãosligadosasegurança

pública.Asletrasocupamespaçonaconformaçãodeumcomportamentojovemde

periferiaparalelamenteàascensãodatemáticadaviolênciaedocrimedentrodas

ciências sociais no Brasil. Além disso, sucedem ao Rock Brasil, intensificando o

diálogocomoespaçodascidades,jápresentenastemáticassobrenação,juventude

epolítica.Aassociaçãoentreproduçãohip-hop,periferiaeviolênciadistingue-seda

2http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq131109.htm,acessadoem22demaiode2015.

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produção estadunidense por algumas razões: uma das principais refere-se às

condições materiais da indústria fonográfica, que possibilita a estes artistas

participarem de um circuito de consumo elevado. As cifras movimentadas por

artistascomoJayZ,Diddy,KanyeWest,SnoopDog,DrDreeEminemchegamàcasa

dosmilhões.Nãosóamúsica,masumuniversocompletodemarcasqueenvolve

roupas, perfumes, bebidas e outras mercadorias consumidas avidamente no

mercado estadunidense. Não há paralelo no Brasil a estas formas de lucro no

universohip-hop.

A crítica em relação à exibição de objetos de ouro, carros e mansões

apareceránasletrasdosRacionais,nanomeaçãodemarcaseobjetosdeconsumo

desejados.EmboraasrelaçõesentreclasseamúsicalevemoscríticosnoBrasila

acusarosartistasde“imitação”,essaexplicaçãopareceinsuficienteselevarmosem

contaadiferençanaatuaçãodomainstreamnosdoispaíses.Aexistênciadegangues,

conflitosgeradosporenfrentamentosentresociedadecivilepolícia(motivadoscom

frequênciaporabusospoliciais)emortesviolentasenvolvendocantoresconstituem

elementosimportantesdediferenciação.

Preliminarmente é possível inferir que a produção acadêmica sobre o

movimentohip-hopnoBrasilconcentrasuasexplicaçõesnarelaçãoentreperiferia,

desigualdade/violênciaeproduçãoculturalcomoaçãopolítica.Ouseja,amesma

tesedeMcLarensobreogangstarapestadunidense.Existeumtipoderoteiromais

oumenosfrequentenasproduçõesqueiniciacomarecuperaçãodosprimórdiosdo

movimento nos Estados Unidos e no Brasil. A temática da juventude é

frequentemente posta como condição da produção cultural. A produção destes

jovens seriaum indicadorde tensõesurbanas. Porúltimo, háumaadesãoquase

irresistívelaosconteúdosmanifestosnasproduçõesderapnaperiferia.

A construção do rapper enquanto um “intelectual orgânico”, como o faz

McLaren,estápresentenosartigoselivrossobreotema.Napesquisasobregangues

egalerasemFortaleza,Diógenes,(p.194,1998)endossaque:

AperspectivapolíticadoHip-Hop,atravésdoMH2O,projeta-senoqueelesvãodenominarcontracultura.Aideiapreconizadapelomovimentoéadeque

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aguerraentrericosepobrestemorap,ografite,obreakeosmurfdancecomoarmaspolíticasparatomaroquenospertenceeacabarcomasdesigualdadessociaiseaopressão,tornandoahumanidadeigual,justaefeliz.

A análise de Diógenes apresenta aspectos do cotidiano desses grupos

(violência,olugardosenfrentamentos,avisãosobreacidade).Apartirdosrelatos

de campo, suaanálise serve comocomplementoaodiscursonativo, construindo,

assim,umdiscursodeadesãoaostemasapresentadosporseusentrevistados.

O termo “abalou” foi empregado porHerschmann em sua pesquisa sobre

funk e hip-hop, como forma de demonstrar a importância dessas produções

culturaisparaocenárionacional.Seupontodepartidaparaanálisedofenômeno

nosanos90foramosarrastõesque“constituíramumaespéciedemarcoparaofunk

e o hip-hop, uma espécie de divisor de águas. A partir daquelemomento, coma

intensaveiculaçãodamídia,ambosadquiremumanovadimensão,colocandoem

discussãoolugardopobrenodebatepolíticoeintelectualdopaís”(HERSCHMANN

,P.17,1997).

Emtrabalhobemmaisrecente,Camargos(2015)segueomesmofioanalítico

apresentado por Diógenes dezessete anos antes. Para o autor “as experiências

negativasestimularamosrappersaverosresultadosdestastransformaçõessociais

deformabastantecrítica.Parteconsideráveldesuasmúsicasveiculoureferências

acercadovivernasociedadeatual”.

Camargosrelacionaofenômenodorapaumaideiaderesistência:

Dessamaneira,mesmosobahegemonianeoliberal construídaapartirdos1990, não se eliminaram os discursos que interpelam o funcionamento dasociedade capitalista e as questões a ela inerentes, como a exploração dotrabalho e as dificuldades de enfrentar os danos causados pelamercantilizaçãodavidanasuaquasetotalidade(p.150).

Reflexividadeepesquisa

Em maio de 2001, iniciei meu trabalho de pesquisa de campo sobre o

movimentohip-hop.UmfestivaldebreaktrouxeaPortoAlegreThaídeeDjHum,

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além de parte dos Racionais, Ed Rock e KL Jay. Durante um fim de semana,

acompanheiThaídeemsuaparticipaçãonofestivalqueuniadançarinosdaAmérica

Latina noAuditório Araújo Vianna. A presença de Thaíde conferia certa aura ao

evento. Demarcava o que deveriam ser os atos, os fundamentos, as atitudes dxs

participantes.Àépoca, tenteiumaentrevista comEdiRockeKL Jay.Após terem

cumprido uma agenda de shows, estavam exaustos, o que impossibilitou nosso

encontro. Mas, neste momento, um problema surgia. Já havia realizado várias

entrevistasnasquaisumdiscursoerabastantefrequente:“aquisomosumafamília

unida”.Asfalascontraosistemaeassituaçõesdedesigualdadeeramigualmente

frequentes,maseraperceptívelnaanálisedesituaçõesdocotidianoaexistênciade

rivalidades,sexismoecríticasinternas.Nãosaberiacomotrabalharoquepercebia

emcamponaquelemomento,pareciaimpossíveliralémdeumdiscursojápronto,

umdiscursoatraenteparapesquisadoresinteressadosemumaversãodohip-hop

comoummovimentoderesistênciadaperiferia.Comotrabalharcomdiscursose

práticas,oucomosaberquaisaspectosprivilegiarnaanálise?

Mais de uma década depois, morando em frente a uma das favelas mais

conhecidasdoRiodeJaneiro,afaveladoJacarezinho,percebiapermanênciados

mesmos temas que animavam xs ouvintes de rap em Porto Alegre em 2001. As

máquinas em bares e restaurantes na favela, nas quais são escolhidas músicas,

seguiamtocando“DiáriodeumDetento”,“FimdeSemananoParque”,“Capítulo4

Versículo3”.Umadécadanãohaviaalteradoamodanaquelesespaços.Eramais

como um tempo congelado, com acirramento dos enfrentamentos policiais,

aumentodonúmerodeprisõesdeadolescenteseterritorializaçãodasfacções.Em

2007,cânticosdoComandoVermelhoeramentoadosnoônibus474,queligavaa

zonanorteàzonasuldacidade.Ofantasmavoltariaemeassombrar:RacionaisMCs,

emáreasdebailefunk,deproibidãoefunkerotizado.Diantedaimpossibilidadede

fazerumtrabalhodecampocomxsouvintesdehip-hop,umcaminhopossívelfoi

compreenderoquediziamasletras.

Posteriormente,emumadasvindasdogrupoaoCircoVoador,espaçocentral

naformaçãodogostoculturalfluminense,naLapa,percebiqueumcorodecentenas

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devozesacompanhavaogrupoemletrascommaisdedezminutosdeduração,sem

repetições. O que explicaria esta adesão a um grupo que não fazia parte do

mainstream dedistribuição fonográfica?Erammaisde15pessoas emumpalco-

periferia (a construção do cenário apresentava elementos como barracos,

lembrando vielas de uma favela em qualquer lugar do país). Não seria exagero

afirmarqueohip-hopé,atualmente,umdosestilosmusicaisquegeramaioradesão

entreajuventudeurbanabrasileiradeclassemédia.

Não há uma única versão sobre a recepção do hip-hop no Brasil. Mas é

possívelafirmaraexistênciadeumcertoconsensosobreaocupaçãodeespaços

públicospordançarinosdebreakemSãoPaulonofimdosanos1980.Aruacomo

espaçodeexecuçãodeperformancesdedançaerima.

Entre Brasil e Estados Unidos existem semelhanças nas formas de

tratamentodenão-brancxs,napersistênciadeindicadoresdedesigualdadetendoa

corcomovariávelimportante,naperseguiçãoàsmanifestaçõesculturaismarcadas

porculturasafricanasoudeafrodescendentes(jazz,samba),nainteraçãoviolenta

comapolícia.Mesmoconsiderandoosistemaestadunidensedeclassificaçãoracial

distintodobrasileiro,creioqueosaspectoscitadosexemplificamaspossibilidades

dodiálogoculturalentrediferentescontextosnacionais.Certamenteestecenáriode

recepçãoculturaldorapémuitodistintodaformacomoosBeatlessãoapropriados

noBrasilapartirdaJovemGuarda.

A primeira demarcação biográfica importante no caso dos Racionais é a

construçãodesuatrajetóriaforadaindústriafonográfica(grandesgravadorascomo

aSomLivre)eforadatelevisão(RedeGlobodeTelevisão).Orockbrasil,aMPBea

bossa nova sempre foram acolhidos pelas grandes gravadoras e programa de

televisão. Contratados e, portanto, subordinados ao processo de “emplacar”

sucessosdevenda.Umaobrigaçãoquetornouboapartedessxsartistasdescartável.

Asegundaliga-sediretamenteàprimeira,poisdizrespeitoaopúblicoquesegueas

apresentaçõesdabanda.Sãoindivíduosentre10e40anos,muitxsnascidxsapósa

décadaneoliberal,pósanos90,presxs,egressxsdosistemaprisional,adolescentes

emconflitocomalei,moradorxsdefavela,líderesdefacção.Quandoxsintelectuais

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eopúblicomaisamplodescobremosRacionaiscomSobrevivendonoInferno(quarto

álbumdabanda),aquelxsdequemsuasletrasfalamjátinhamtotaldomíniosobre

“DomingonoParque”,umadasprimeirascomposiçõesdogrupoareceberatenção

como “a grande novidade do momento”. São diferentes formas de relação e

consumo. Embora participe da produção cultural de massa, a especificidade de

construçãodatrajetóriadogrupo,seualcancediscursivoesuarelaçãocomagrande

mídianãopossibilitamumaclassificaçãoapressadaqueenquadresuaobracomo

partedaindústriacultural.Esteargumentoseráretomadonaconclusãodotexto.

OmundoigualcidadãoKane

Emumtrabalhoanterior,aoselecionar21letrasderapnacional(Silva,2008,

p.172-3),aplicou-seatécnicadaanálisedeconteúdo,

técnicapropíciaparaobtenção,porprocedimentossistemáticoseobjetivos,dedescriçãodeconteúdodemensagens,indicadores(quantitativosounão)que permitam a inferência de conhecimento relativos às condições deprodução/reproduçãodestasmensagens(Bardin,1979,p.41).

Supunha encontrar termos relativos a crime e violência como tônicas temáticas.

Contrariamenteaisso,ostermosmaisempregadosforammãeedeus,seguidosde

crime,dinheiro,morte,inferno,guerra,droga,consciência,liberdadee,porúltimo,

prisão(Silva,2008,p.172-3).

OfatodenãoseapresentarnaGloboeaindaassimvenderquaseummilhão

de cópias criou uma espécie de “aura” em torno do grupo, e principalmente do

vocalistaManoBrown.O contextoemquea frase “queroomundo igual cidadão

Kane”écitadaservirácomotônicaparaanálisedasletras.Em“Daponteparacá”,

ouvimosque“eununcativebicicletaouvideogame/agoraeuqueroomundoigual

cidadão Kane”. No caso específico dos Racionais, há uma segunda inscrição: o

documentário Muito além do cidadão Kane3, dirigido por Simon Hartog. O

documentário tornou-se fonte importantede informação sobreo crescimentoda

3Podeserassistidoaquihttps://www.youtube.com/watch?v=s-8scOe31D0

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maiorrededetelevisãodoBrasil,aRedeGlobo,easuaimposiçãodeumpadrãode

comunicaçãoquenegaadiversidadenacional.Alémdisso,mostraarelaçãoentrea

emissoraeoperíododitatorialbrasileiro.

Apropostaconsisteemumrecorteapartirde16letraseposterioranálise,

semdesconhecerocontextoemquesãoproduzidas.Interessapraticarumcontrole

da complexa relação entre pesquisadorxs (produtorxs do discurso acadêmico) e

artistas(produtoresdasletrasedeumdiscursodeexplicaçãodofenômenosocial:

ohip-hopnasperiferiasbrasileiras).Estasletrasforamselecionadasseguindouma

pesquisa sobre popularidade, indicações de sítios especializados, potencial de

debatesentreconsumidorxseespecialistas.

Foram analisadas 16 letras, distribuídas em58 páginas (em espaçamento

simples),compoucasrepetições(semumrefrãosimpleseemmédiacommaisde7

minutosdeduração).Privilegiaram-serepetiçõesdepalavrasnasmúsicas“Negro

Limitado”, “Fim de Semana no Parque”, “Mano na Porta do Bar”, “Capítulo 4,

Versículo3”,“FórmulaMágicadaPaz”,“MágicodeOz”,“PeriferiaéPeriferia”,“AVida

éDesafio”,“CrimeVai,CrimeVem”,“NegroDrama”,“DaPontepraCá”,“Eusou157”,

“EstiloCachorro”,“VidaLoka(parteIeII)”,“CoreseValores”.Antesdaanálisedos

termos,algumasobservaçõesimportantes,externasàsletras.Opúblicoparaoqual

Racionais endereçam suas letras são moradorxs de periferias urbanas (Cohab,

Jardim Rosana, Tremembé, Capão Redondo, Santa Tereza, Baixada Fluminense,

Ceilândia, Guarulhos, Tucuruvi...). Sua saudação inicial, em formade convocação,

nomeiaestasáreasdacidade:zonasul,zonaleste,zonaoestedeSãoPaulo(eoutras

cidadescomoRiodeJaneiro).

Ocenárionoqualseestabelecenosshowsdesafiaxpesquisadorxapensar

termos como “entretenimento” e “cultura de massa”. Precisamos problematizar

estasnoçõesconsiderandoqueasrelaçõesdeconsumodestaparceladapopulação

fogem à definição tradicional de consumidor burguês dos produtos culturais (a

referênciaaquisãoostrabalhosdaEscolhadeFrankfurt).AcidadedeSãoPauloéo

temacentraldosRacionais,estápresentedeformaexplícitaemalgumasletras:“Em

SãoPaulo,deuséumanotadecem”,“passageirodoBrasil,SãoPaulo,agonia”,“em

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SãoPaulo,terradearranha-céu,agaroarasgaacarneéatorredeBabel”,“acada4

horas,umjovemmorreviolentamenteemSãoPaulo”.

Éatematizaçãosobreavidaemgrandescidadesapartirdaóticados“filhos

de baianos”, assinalando a intensificação do processo migratório na direção do

sudeste a partir dos anos 20 do século XX. Portanto, o outro aspecto central da

narrativaéaconstruçãoclássicadoenfrentamento“nósversuseles”.Masapartir

daanálisedasletras,importaobservarquegruposencarnamesteoutro.Emuma

leituraapressada,talvezatônicadominantenasinterpretaçõessobrerap,osistema

capitalista opressivo, apareça como objeto do discurso (ou assim seja percebido

pelos seus analistas mais entusiasmados). Mas nas letras analisadas, existem

oposições locais:o termo“zé-povinho” fazreferênciaàs interaçõesdentrodestas

áreas, mediadas por sentimentos como inveja, traição, rancor. Estas oposições

demonstrama existênciade fragmentaçõesdentrodos gruposnos territóriosde

periferia.Otermozé-povinhoevidenciaasrelaçõescomunsdeinvejaedifamação

existentesentrevizinhos,parentes,amantesedesconhecidosqueacompanhamo

êxitodequemconseguesairdessesespaços.

Épossívelafirmarqueháumarelaçãodialéticapresentenaconstruçãodas

letras. Esta dialética tensiona constantemente o fora e o dentro. Passagens que

narram temas ligados à vida dentro das periferias serão, para efeitos de

esquematização,classificadascomo“dentro”.Emumaproporçãomuitoequilibrada,

as letrasapresentam-secomoumadescriçãodassituaçõescotidianas,mirandoo

fora(principalmenteasrelaçõesdeconsumodeartigosdeluxo).Aomesmotempo

emquetermoscomo“playboy”sãocitadoscomfrequência,estascitaçõessãofeitas

a partir da relação que se estabelece com a periferia: “playboy bom é chinês,

australiano, fala feio,mora longeenãomechamademano”, “hojeeusou ladrão,

artigo157,ascachorrameamam,osplayboysederretem”.Apolíciaéooutrode

dentro, oposição, “inimigo” presente no espaço cotidiano. Assim como o termo

“prisão”,apolíciaparticipadeumcircuitonoqual“morte”,“crime”e“violência”são

termos que descrevem o cotidiano masculino nesses espaços. Não se trata de

criminalidadedifusa.Sãonomeadasasrelaçõessociaisesuasconsequênciassobre

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cadaumdosagentesqueparticipamdassituaçõesnarradas.Nasletrasrompe-sea

possibilidadedeumpactosocialharmônico.

Éprecisoesclarecerqueousodaoposiçãofora/dentropretendecolaborar

para uma primeira compreensão da construção das letras. É uma opção

instrumental entre outras formas de recorte possíveis.Não deve ser classificada

como filiada a uma explicação estruturalista, mas é necessária em um primeiro

momentodeapresentaçãodastemáticas.Outraobservaçãoimportanteéapresença

constantedetermossobrereligiosidade:“deus”,“fé”.Sãoconstantesasreferências:

“opromotorésóumhomem,deuséojuiz”;“unsjuntandodinheiro,outrosjuntando

inimigos,sempretemumparatestarsuafé”;“conhecioparaísoeconheçooinferno,

vi Jesus de calça bege e o diabo de terno”. A questão da religião não será

desenvolvidanesteartigo,masimportaobservarqueestádistribuídacomotemática

nasletrasanalisadas.

Natrajetóriadogruponãoháumamudançaprofundanoconteúdodasletras:

acidade,oterritórioperiférico,aoposiçãoagruposecomportamentosnomeados

emsuasletras,olugardareligiãonocotidianoe,paraosobjetivosespecíficosdeste

trabalho,arelaçãocomganhosfinanceiros,mercadoriasestatussocial.

Paraanálisedasletras,foramcontabilizadosostermos“dinheiro”(citado64

vezesnas16letrasanalisadas,alémdetermoscomo“ouroeprata”,“money”,“dólar”

e “verdim”, também presentes em 20 citações), “carro” (16 citações), moto (6

citações), tênis (6 citações). As grifes, nomes de empresas e bancos merecem

atençãoespecialcomoindicadoresparaanalisarasrepresentaçõessobreestilode

vidaemercadodebensde luxo.Oobjetivoéanalisaressaspassagensnarelação

comaletraecomasdemaisletras,masnãotemosapretensãodeapresentaruma

“verdadeúltima”sobreestasproduções.

Os trechos serão apresentados com comentários e, ao final, algumas

consideraçõessobreoconjuntodasletras.Agrafiapermaneceráfielàformacomo

escritapelogrupo,semcorreçõesortográficasougramaticais.Aprimeira,“Fimde

Semana no Parque”, certamente foi uma das responsáveis pela ascensão dos

Racionaisnocenáriodorapnacional:

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Um, dois, três carros na calçada/Feliz e agitada toda "prayboyzada"/Asgaragens abertas eles lavam os carros/ Desperdiçam a água, eles fazem afesta/Vários estilos vagabundas,motocicletas/Coroa ricoboca aberta, iscapredileta/Amolecadaládaáreacomoéquetá?/Provavelmentecorrendopraláepracá/Jogandoboladescalçosnasruasdeterra/É,brincamdojeitoquedá/Gritandopalavrãoéojeitodeles/Elesnãotêmvideogameeàsvezesnemtelevisão/Mas todos eles têm um dom São Cosme e São Damião/A únicaproteção.

Amúsica “Fim de Semana no Parque” pode ser pensada como a situação

inaugural,oquadro(frame)apartirdoqualconhecemosocotidianodazonalsulda

cidade de São Paulo. Ali estão alguns dos elementos que serão vocalizados

constantemente:apercepçãosobreasmercadoriaseostatus conferidoaosseus

detentores(carros,motos,sapatos,roupas),oprivilégionousodaáguaedoespaço

(emoposiçãoàscasasecondiçõesdesaneamentodosobservadores),asformasde

viver(brincardojeitoquedá)nasáreasdeperiferia/favela.Namesmamúsicasão

feitas referências a religião, família e dinheiro, outras constantes nas letras:

“dinheironobolso,Deusnocoração, famíliaunida”.Acríticaemrelaçãoaalguns

conhecidos/amigos/moradores é igualmentepresente, principalmentequanto ao

usodebens:“malandrobomnãohumilhaenãodesanda,ligaooutromano,odamil

e cem, pagandonoCapão é o quemais tem, deAudi ouCitroën”.O empregode

marcasdecarros,relógios,tênisegrifesderoupasseráigualmenteconstantenas

letrasanalisadas.

Saberdiferenciarosindivíduosesepará-losporsuacondutacomoamigosou

traidoresparececentralnocotidianodosterritóriosdeperiferia:“queméquem,diz

que diz, buchicho nãome faz feliz”. Há umamétrica que intercala explicações e

diálogosdiretosentreosintegrantesdabandaquesimulamumasituaçãorealdo

cotidiano, reproduzindo interações de rua, assaltos, mortes, enfrentamentos e

reuniõesdeamigosefamiliaresparafestejos.

O lugar de construção discursiva é o de um observador atento às ações

próximas ou mais ou menos próximas de seus iguais, mediadas pelo desejo de

obtençãodeganhosfinanceiros,convertidossimultaneamenteempossibilidadesde

conquistasamorosaseexperiênciassingularesemrelaçãoaocotidianodetrabalho

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(consideradomal remunerado). Vejamos “Mágico de Oz”, uma das cançõesmais

conhecidasdogrupo:

Como ganha o dinheiro?/ vendendopedra e pó/Rolex, ouro no pescoço àcusta de alguém/ uma gostosa do lado, pagando pau pra quem?/a políciapassouefezoseupapel/dinheironamão,corrupçãoaluzdocéu/quevidaagitadahein?/gentepobretem/periferiatem/vocêconhecealguém?

Novamenteumamarcaconferestatus.Nestecaso,amarcaderelógiosRolex,

conhecidamundialmente como sinônimo de distinção social. Amarca apresenta

informaçõesaosseuscompradoresquevãodeleilõesnaSuíçaacorridasdeFórmula

1,eospreçosvariamdeR$7.500atéR$40.000,dependendodomodelo,coleçãoe

outros critérios. Na comparação com a média salarial no Brasil, o que significa

desfilar emCapãoRedondo comum relógioRolex ou TagHeuer?De Citroën ou

Audi?Nestescontextos,ovalordasmercadoriastemdeserrepensado.Apresença

das marcas converte o objeto (valor de uso, como definido por Marx) em uma

qualidade muito específica, pois só pode ser compreendida dentro de uma

comunidadequevalorizaasrelaçõesapartirdaexposiçãodestesobjetos.Ouseja,

onde há algum consenso sobre o significado da marca-mercadoria. Em muitos

contextos, a marca Tag Heuer sequer é conhecida, e esta evidência se aplica

especialmenteemcenáriosdedesigualdadecomoobrasileiro.Aoiniciarapesquisa,

eu não saberia diferenciar relógios, pistolas e carros quanto aos seus valores. O

poder conferido pelas marcas só é possível se demonstrado publicamente no

território. Não é diferente das festas de luxo nos bairros nobres, mas enquanto

nestasaexibiçãodoRolexpoderiasignificarpertencimentodeclasseedistinção,

nas periferias a exibição pode ou não significar distinção em relação ao demais

moradores,denominadosrancorosamente,emalgumasletras,como“zé-povinho”.

Oconceitodefetichismodamercadoriacultural,desenvolvidoporAdornoe

HorkheimeremsuaspesquisasnosEstadosUnidos,seráútilnaanálisedestasletras.

Quanto ao caráter subjetivo, nota-se que o fetichismo, sob o ponto de vista

adorniano e horkheimeriano, não está vinculado tão somente aos objetos-

mercadorias,mastambémaummododeco-determinaçãodapsique.Aoapontar

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para um processo ideológico de “pseudo-humanização” dos objetos inanimados

(Silva,2010,378),teriacomocontrapartidaacoisificaçãodossujeitos,servindoeles

tãosomentecomo“apêndicesdaprodução”e,consequentemente,objetivandosuas

relaçõesintersubjetivas.

Gostaria de propor que o tratamento conferido aos objetos não fosse

equacionadopelateoriadefetichizaçãodamercadoria.Arazãoparaestatentativa

éaformacomoestessãoapresentadossobasmarcas.Emalgumassituaçõessãoa

demonstraçãododesejopelaobtençãodebens:“misériatrazmiséria,evice-versa/

inconscientemente/vemnaminhafrenteinteira,alojadetênis/oolhardoparceiro

feliz/ de poder comprar/ o azul, o vermelho/ o balcão, o espelho/ o estoque, a

modelo/nãoimporta/dinheiroéputa/eabreasportas”.Em“VidaLokaParteII”,

repete-se uma ideia presente em outrosmomentos. Não é apenas amercadoria

como ostentação. Ou melhor, esta explicação não resolve o tipo de atitude

apresentadanasletras.É“omundoigualcidadãoKane”,apossibilidadedecomprar

o estoque e a modelo, ou seja, obter mais do que a mercadoria: “vem de artes

marciais,queeuvoudeSigSauer,querosuairmã,seurelógioTagHeuer”.Emuma

cidadecomoSãoPaulo,naqualsãoexibidos“Cross,Fox,Tucson,X5”,serum“preto

tipoAcustacaro”.

Amanifestaçãodeumasensaçãodetempoperdido,deatrasoemrelaçãoà

obtençãodeumtipodestatussocial,deveserobservadaempassagenscomoesta,

em“NegroDrama”:“agoratádeolhonodinheiroqueeuganho,agoratádeolhono

carroqueeudirijo,demorou,euqueroémais,euqueroatésuaalma”.Juntas,essas

expressõessãomaisdoqueodesejoalienadopelaobtençãodecarros,motosou

roupasdegrife.Seriapossívelsuporqueaobtençãodestesbenséumadasformas

dedemonstraçãodaintensidadedoconflitosocialemumacidadecomoSãoPaulo.

Mas seria apressado ver, aqui, um discurso político contra a opressão ou seu

contrário,umaadesãoaoconsumoemumprocessodecoisificaçãodosujeito,como

emAdornoeHorkheimer.

Os custos desta aquisição/exibição de bens são evidenciados nas letras,

explicitandoumcircuitofechadodeconsumo:

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Semprefuisonhador/éissoquememantémvivo/quandopivete,sonhavaemserjogadordefutebol,vaivendo/masosistemalimitanossavidadetalforma/quetivequefazerminhaescolha,sonharousobreviver/osanossepassarameeu fuimeesquivandodociclovicioso/porémocapitalismomeobrigouaserbemsucedido/acreditoqueosonhodetodopobreéserrico.

Esta passagem, presente em “A vida é um desafio”, exemplifica o circuito

fechadoemqueseusagentessemovimentam.Massealetraexplicitaodesejode

riquezade“todopobre”,avançareflexivamenteapresentandouma“lição”(recurso

utilizadoemgrandenúmerodeletras)paraalertarsobrearelaçãocomocrimeea

aquisiçãofácilderiquezas:“embuscademeusonhodeconsumo,procureidaruma

solução rápida e fácil pros meus problemas/ o crime/ mas é um dinheiro

amaldiçoado/quantomaiseuganhava/maiseugastava/logofuicobradopelaleida

natureza/14anosdereclusão”.Em“Capítulo4Versículo3”,ogrupoenfatizaque

“emtrocadedinheiroeumcarrobom,temmanoquerebolaeusaatébatom”.Estas

observações sobre “vender-se” são presentes em parte das letras, enfatizando a

possibilidadede“perdadaalma”noprocessodeenriquecimento.Ouorompimento

doslaçosprimários.

Arelaçãoambivalente(ouambígua)comapublicidadeeostatusaparecem

aindanamesmaletra:“Vinteeseteanoscontrariandoaestatística/seucomercial

deTVnãomeengana/eunãoprecisodestatusnemfama/seucarroesuagranajá

nãomeseduz/enemasuaputadeolhosazuis/eusouapenasumrapaz latino-

americano/apoiadopormaisde50milmanos”.

Amensagememitidaéde“sobrevivência”(osnúmerossobrehomicídiosde

jovensnegros noBrasil demonstramque chegar aos 27 anos é contrariar dados

oficiais)emrelaçãoainúmerassituações:pobreza,prisão,desemprego,crime.Eo

desvelamentodolugardasmercadoriasvinculadaspelapublicidade(nãoapenasna

televisão,masemoutdoors,rádioseoutrasmídias)éapresentadoapartirdarecusa

àformahabitualdeconsumo.Aexperiênciaéampliada“atodapopulaçãopobreda

zona sul”, oquepoderiaabarcar todasasperiferiasmundiaisque contamcoma

presençadeletrasderap.Osindicadoressociaisemrelaçãoaempregoeeducação

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sobreestaparceladajuventudetêmpreocupadooEstado,tantonosEstadosUnidos

quantonoBrasil.Aacusaçãodeincitaçãoaoódioocorrefrequentemente,emalguns

casoscominterrupçãodosshowsdosRacionais,prisãodosintegrantesdebandase

instauração de quadros de violência. Atos como estes foram praticados contra

artistaspeloEstadoduranteoregimeditatorial.Seguemagoracomaproibiçãode

bailesfunknoRiodeJaneiroouapresençaostensivadapolíciaemshowsderapem

SãoPaulo.

Na obra dos Racionais, uma de suas principais letras surge no que

poderíamosanalisarcomooápicedeumprocessoreflexivo.Pós-reconhecimento,

augedeumprocessocriativodetrocascomplateiaecrítica;afinal,ogrupoteria

alcançadolugardedestaquenocenáriomusicalnacionaleagoracolheriaosfrutos

deste êxito. Este percurso apareceria em letras que problematizam a visão da

sociedade (dentroe foradeCapãoRedondo): “negrodrama/entreosucessoea

lama/dinheiro,problema,inveja/luxo,fama”.Aletrasegueapresentandotensões

inerentesaoreconhecimento:“euseiquemtramaequemtácomigo,otraumaque

eucarregopranãosermaisumpretofodido”.Novamenteaoposição“nósversus

eles”écitada,demonstrandoqueasrelaçõesdedesconfiançaoperamdentro/fora

daperiferia:“euseiquemtrama”.O“drama”narradoresgataoprocessodeascensão

socialpelaartevividopelogrupo.

Talvezumadasprincipaispassagenssobreesteprocessoreflexivoesobrea

relaçãocommobilidadesocialascendentepossaseraquisituada:“odinheirotira

umhomemdamiséria,masnãopodearrancardedentrodeleafavela”.Namesma

letra,arelaçãocomomercadooucomapublicidadedesencarnadaapareceemuma

nomeação dos bens que estão (nomomento atual) presentes nos territórios de

periferia:“cêdissequeerabomeasfavelaouviu/lá/temwhisky,redbull,tênisnike

e fuzil”.Para logoapósseremnovamentepontuadasasrelaçõesdistintascomos

bens:“admito,seucarroébonito,é,eunãoseifazê/internet/videocassete/oscarro

loco/atrasadoeutôumpoucosim/tôeuacho/sóquetemqueseujogoésujoeeu

nãomeencaixo/eusouproblemademontão/decarnavalacarnaval/euvimda

selva,souleão/soudemaisproseuquintal”.Ainterpelaçãopodeserlidacomouma

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recusa em relação à sociedade de consumo. O termo “selva” faria referência às

dificuldadesde interaçãocomo fora,umavezquemesmocomdinheiro,a favela

permanece como principal indicador social biográfico. Aqui a condiçãomarginal

está posta como sina, destino imutável, condição semelhante a cor ou origem

(nordestina,parda,negra).Restandoanegociaçãosocialapartirdacompreensãode

queobterganhosemudançadestatusatraiolharesdedesconfiança:“naépocados

barracosdepaulánaPedreira,ondevocêstavam?/oquevocêsderampormim/o

quevocêsfizerampormim?/agoratádeolhonodinheiroqueeuganho,agoratáde

olhonocarroqueeudirijo”.

Em“DaponteparaCá”,umapassagemfazanomeaçãodemarcasconsumidas

emumasequênciasingular,umacenacompleta,quepossibilitaacompreensãode

comoestesgruposconstituemrepresentaçõessobrestatus(considerandoabanda

comopartedeumaconfiguração,no sentido trabalhadoporNorbertElias): ”hey

truta,eu to louco,eu tovendomiragem,umBradescobememfrenteda favelaé

viagem/declasse’A’daTAMtomandoJB/ouviajardeblazerpro92DP/viajarde

GTIquebraabanca/sónãopodeviajarcomosmãobranca”.

Durantepesquisadedoutoradoemfavelascariocas,foipossívelobservarque

apesardeabrigaremumapopulaçãonumerosa,eramrarasasagênciasdebanco

nesses espaços.Apóspesquisanas favelasdaMaré,Acari, SãoCarlos,Morrodos

MacacoseRocinha,aúnicaagênciaencontradadentrodeumafavelalocalizava-se

emumaavenidamovimentadadaRocinha–nãoporacaso,umafavelaqueconta

comlojasdemóveisetodaumarededeserviços.Quantoàsduasexperiências,uma

representaria o ápice de uma ideia compartilhada historicamente no Brasil, de

distinção:aviagemdeaviãonaprimeiraclasse.Aoutra, igualmentepresentenas

representações de favela, é a viagem de camburão para delegacia. Novamente é

apresentadoocircuitodedeslocamentodosagentesquevivemnestesespaços.

As trêspróximas letras foramselecionadascomoexemplosdemomentos-

limite na relação entre ordem/desordem, legalidade/ilegalidade, percepção do

cotidianoedecisõesdiantedequadrosmaisamplos.Aoproporaanálisedasletras

enquantonarrativas/crônicasurbanas,seránecessáriorecuperarestaspassagens.

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A primeira, “Mano na Porta do Bar”, de 1993, narra a vida de um morador,

respeitadoporseucomportamentohumilde,porterumfusca1973eumamulher

apaixonada.Emsíntese,ahistóriadeumhomemcomum,semmaioresambições,

queemalgummomentosenteinsatisfaçãoemrelaçãoà“vidaqueleva”:

Você viu aquele mano na porta do bar/ultimamente andei ouvindo elereclamar/dasuafaltadedinheiro,eraproblema/quesuavidapacatajánãovaleapena/queriaterumcarroconfortável/eledissequeamizadeépouca/dissemais,queseuamigoédinheironobolso/particularmenteparamimnãotemproblemanenhum/pormim,cadaum,cadaum/aleidaselva,consumirénecessário/ compremais/ compremais/ supereo seuadversário/o seustatusdependedatragédiadealguém/éisso,capitalismoselvagem/elequertermaisdinheirooquantopuder/qualqueéadessemano?

Amudançaemrelaçãoàvidaque levava trouxeváriasmulheres, clientes,

inimigos.Armado,agoranomercadodedrogas,usadeaçõesviolentas,umtraficante

“peculiar”.Atéomomento emqueé fatalmentebaleado, “dois tirosna cara”.No

circuito fechado, sua ascensão meteórica tem como contrapartida uma morte

“inglória”aosolhosdosqueacompanhavamsuatrajetóriadehomemsimples,bom

cidadão,bomirmão.

Asegunda,“Eusou157”,narraumstatussingularexperimentadoquandose

opera a conversão do estigma de desviante. “Hoje eu sou ladrão, artigo 157/ as

cachorrameamam/osplayboysederrete”.Anarrativaapresentaesteanti-herói:

“eusóconfioemmim,maisninguém,cêmeentende/falagíriabem,atépapagaio

aprende/vagabundoassaltabancousandoGuccieVersace/Civildáoboteusando

caminhãodaLight”.Aadesãoao“mundodocrime”éjustificadanaletracomuma

fraseendereçadaàmãe:“juroqueeuvouteprovarquenãofoiemvão/mascumprir

ordemde bacana, não dámais não”.Novamente a situação final émarcada pela

mortedeumdosparticipantesemumatentativadeassalto.Nestaletra,apesarda

possível atração pelo anti-herói, o conselho vem ao final, pedagógico: “e aí

molecadinha, todeolhoemvocês,hein/nãovaipragruponão/a cenaé triste/

vamosestudar,respeitarpaiemãe/eviver,éessaacena”.

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Aterceiraletra,“EstiloCachorro”,é,dentretodas,aúnicaquenãoapresenta

umfinalviolento.Talvezportratardeumasituaçãode interaçãoparaconquista.

Somosapresentadosaumhomemquesabegerenciarmuitobemseusnegócios,é

eleganteeconquistador.“Temnaipedeartista,piquedejogador/impressionano

estilodepatife/roupasdeshop/artigosdegrife”.Éumtiposocialmuitocitadonas

entrevistascomjovensfunkeiros,moradoresdefavelascariocas,quemencionama

posse demoto e dinheiro como condição para conquista amorosa de “mulheres

desejáveis”.Algunsrevelavamsofrimentopornãoconseguiremexibirasmotose,

em alguns casos, por serem “trocados” quandooutros commotosmais potentes

apareciam nos bailes. A demarcação da conquista é constantemente vinculada à

possibilidadedeproporcionarumaexperiênciadedistinção(oespumante,amoto,

asroupas).“Nomomentoqueinteressa/elejátem/umaKawasaki/eliberdademeu

bem/oqueessecara temsanguebom?/os invejosoeuescuto/moto,dinheiro/

vagabundoficaputo/ah,istonãoéjusto,eosirmão?/umafatiadobolo,teorienta

doidão/conheceváriasgatas/ tiposdiferentes/aspretas,asbrancas,as frias,as

quentes”.

EmCoreseValores,últimoálbumdosRacionais,arepetiçãodorefrão“somos

o que somos”, quase como um mantra de afirmação de um tipo de “verdade

fundamental”,apresentaumapossívelterceirafasenaproduçãodiscursiva:

Difícilcompreendersematua,semassuasleis/nãosãominhasleis,nemasinventei/ eume adaptei/ guerra fria, muçulmanos e USA/ preto e brancocomojogodexadrez/unscorrecomojogodexadrez/unscorrenojogonacaçadeprataedoouro/Rolexamarelonobraçoéumestouro/umaCayenneeosbancoscobertodecouro/oscaradeolhoazulnãorepresentamomeutesouro/somosoquesomos/AudieHornet/deR1eGolfãonoboysdandochoque/Somosoquesomos/somosoquesomos.

Acitaçãodemarcasseguenasletras,mastemospelaprimeiravezumrefrão,

após25anosdeexistência.Consideradaaprincipalbandaderapnacional,ouvidos

comotrilhasonoraemperiferiase instituiçõesprisionais,abandademonstraem

sua letra a mesma oposição “nós versus eles” expressa em “Fim de Semana no

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Parque”, no início deste texto. Fora e dentro, lei e ilegalidade, constituem as

oposiçõesempregadasnaespinhadorsaldestaletra.

Kane,SomosoqueSomos,algumasconsideraçõesfinais

Nãoépossível(etalveznãosejanecessário)saberseaoescolherestetermo

(“omundoigualCidadãoKane”)osRacionaisconheciamaobradeOrsonWellesou

oimpactododocumentáriofeitosobreaRedeGlobo.Háumúnicopersonagemde

fala nas letras do grupo: ele é um homem, não branco,morador de periferia no

Brasil. Tem entre 18 e 40 anos e conhece perfeitamente o cenário em que se

movimenta.Suarelaçãocomomundodotrabalhoedosbenséatravessadaporuma

condiçãosocial,ouumabiografiaestigmatizadaeasexperiênciasviolentasestão

presentesnocotidiano.Suarelaçãocomoconsumonãoéadesimplesaquisiçãode

bens. Estes são exibidos como prêmios custosos. Os custos são apresentados ao

longodasletrasevãodaperdadocírculomaispróximodeafetosatéamorte(por

policiaisouporinimigoslocais).Esteéumcircuitofechadodedeslocamento.Mas

asletrasdemonstramumprocessoquesetorna,aolongode25anos,maisreflexivo,

beirandoomoral-pedagógico,comoem“Eusou157”.

Para quem falam os Racionais? As narrativas poderiam ser apresentadas

como “políticas de resistência”? Ou seria essa uma classificação externa, com

categorias exógenas ao narrado e vivido? Seria possível ver neste discurso a

articulaçãoexplícitadeumaposiçãopolítica?OsRacionaisfalamparaSãoPaulo,o

principalmercadodebenseserviçosdopaís.Oalcancedesuasletraséglobal,talvez

menosporumprocessointencionalemaisporumaaproximaçãodasrealidadesde

periferianomundoatual.

Ainfluênciadogangstarapéinegável,masaadesãoaumcomportamento

fetichistanãoseriaaplicávelàobradabanda.AimportânciadeestudarosRacionais

consiste no fato de que geram aquele tipo de adesão fervorosa. A orfandade

explorada por Kehl (1999) em texto sobre “a grande frátria Racional”

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experimentadaporseusadeptosédupla:nãosó“maisumfilhopardo,sempai”,mas

umarelaçãoestruturalmenteinadaptadaemrelaçãoaoEstado.Aproduçãodeum

tipode revoltaquanto à condiçãodemoradorxdeperiferia.Porúltimo, importa

frisarqueesteprimeiroensaioéumatentativadearticularumdiscursoapartirda

produçãoartística.Outrosrecortesedimensõespodemserprivilegiadosemoutras

pesquisas.Apropostaétentarousodetécnicasquefujamdousodasentrevistasou

análisededocumentosquecorroboramodiscursonativo.Libertarxsagentesde

nossasexpectativasdeseulugarde“intelectuaisorgânicos”quedesejaMcLarene

proporoutrasinterpretaçõespossíveis.

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