“REFLEXÕES SOBRE EDMUND BURKE POR SILVA LISBOA: NEM TUDO É
O QUE PARECE SER”
Rosemary Saraiva da Silva
Doutoranda em História na UERJ
O ano de 1812 estava começando, quando José da Silva Lisboa (1756-
1835), futuro Visconde de Cairu (1825), foi surpreendido com a triste notícia do
falecimento de seu benfeitor D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812) no dia 26 de
janeiro. Silva Lisboa estava afastado das atividades políticas e literárias, ainda
guardando o luto pela viuvez repentina, a esposa D. Anna Francisca, companheira por
vinte e sete anos, havia morrido em agosto de 1811(BELCHIOR, 2000, P. 57).
Acometido pelo sofrimento com uma gota em uma das pernas, Silva Lisboa lamenta em
carta ao Lord Strangford, Percy Clinton Sydney Smythe (1780-1855), não poder lhe
prestar as devidas homenagens, mas afirma que receber a mensagem do nobre inglês o
reconfortou no momento da perda de seu benfeitor.1 Aos dois nobres foram
direcionados a dedicatória e o prefácio da edição de 1812 da obra na qual Silva Lisboa
se propõe a traduz alguns extratos dos escritos da lavra de Edmund Burke.
Considerando as ligações de amizade e as tradições do Antigo Regime que
uniam a vida desses homens, a historiografia deixou em aberto a possibilidade de um
estudo que identificasse as razões pelas quais houve uma segunda edição dessa obra de
Silva Lisboa publicada por uma tipografia portuguesa em 1822, onde tais partes de
reverência simplesmente desapareceram. Esse fato não é mencionado, sequer
questionado, por aqueles que se dedicaram a estudar a vida e obra de José da Silva
Lisboa, o futuro Visconde de Cairu. Não há qualquer citação nos livros escritos sobre
ele que, numa leitura mais apurada, indique ter sido observado as partes ausentes, ou
mesmo as acentuadas alterações em seu conteúdo de uma edição para a outra. Nem
mesmo a redução de seu tamanho (de impressão em duas partes com 142 e 136 páginas,
1 Fundo Visconde de Cairu, cód. Ref. BR AN, RJAN RIO R7.0.010.
respectivamente, além de um apêndice, para uma única de 88 páginas, sem apêndice) foi
capaz de chamar a atenção dos estudiosos para essa nova edição (SILVA, 1885, P.203).
Com as pesquisas já realizadas ficaram comprovadas as alterações entre as
duas edições da obra de Silva Lisboa, “Extractos das Obras Políticas e Econômicas de
Edmund Burke”, a brasileira (1812) e a portuguesa (1822), muito além do acréscimo ao
título do adjetivo ao político irlandês, alterado para “Extractos das Obras Políticas e
Econômicas do Grande Edmund Burke, a segunda mais correcta”. O exemplar de 1821,
encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, apresentava como título:
“Extractos das Obras Políticas e Econômicas do Grande Edmund Burke, mui úteis para
a Regeneração de Portugal”, permitindo que novas conjecturas fossem feitas, como a
hipótese de que tais edições portuguesas eram desconhecidas por Silva Lisboa. Até
mesmo seu filho, Bento da Silva Lisboa, no discurso proferido no IHGB, que é
considerado como a primeira biografia do falecido Visconde, só faz referência ao livro
de 1812, indicando que também a família desconhecia as segundas edições da referida
obra (1839, p. 190).
Considerando a necessidade de uma avaliação comparativa entre os
volumes, foi constatado inicialmente que não há diferenças entre as impressões de 1821
e 1822, além do título; que, entre essas e a de 1812, há alterações de palavras, frases,
supressão de parágrafos, de partes inteiras e também de notas de rodapé, o que torna
praticamente as segundas edições novos textos, e que podem alterar o que fora
pretendido por Silva Lisboa com orientação e incentivo de Sousa Coutinho (1812, p.
IX).
Esse incentivo advém da admiração do nobre ministro pelo pensamento
político de Burke, assim como era do pensamento liberal econômico de Adam Smith
(BELCHIOR, 2000, p. 15), cuja principal obra fora traduzida pelo jovem Bento da Silva
Lisboa (1793-1864), à época com dezoito anos (1811), quando esse exercia o cargo de
oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra em 1809
(MELLO MORAES, 1863, p. 4).
A proposta para o Doutorado foi a de analisar detalhadamente o conteúdo
das duas edições, 1812 e 1821/1822, para confirmar se realmente se trata de uma
tradução, de uma adaptação ou mesmo de uma reinterpretação dos textos extraídos das
várias obras do irlandês Edmund Burke (1729-1797) e não somente daquela mais
famosa, “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, publicada em novembro de 1790
(BURKE, 2014).
A questão da tradução feita por Silva Lisboa foi levantada pelo historiador
alemão Ulrich Mücke, da Universidade de Hamburgo, em seu artigo, “José da Silva
Lisboa. Conservatism and Liberalism between Europe and America”, incluso na obra
Latin America and the Atlantic World: El mundo Atlántico y América Latina (1500-
1850), organizado por Renate Pieper e Peer Schmidt, de 2005.
Nesse artigo, Mücke destaca que a obra de Silva Lisboa contendo o que
seria o pensamento de Burke foi o documento mais importante para trazer o pensamento
burkeano para a América Latina. No entanto, afirma que
“No entanto, uma leitura mais atenta da tradução mostra que ela é muito
diferente do texto em inglês. Silva Lisboa não traduziu a crítica de Burke ao
antigo regime, à igreja e ao absolutismo, e assim o brasileiro Burke é muito
mais simpático ao regime político de Luís XVI do britânico Burke. Por
exemplo, Silva Lisboa não traduziu as reflexões de Burke sobre o papel dos
reis. Embora Burke tenha condenado a Revolução Francesa, ele não falou
mais gentilmente sobre o poder dos reis franceses.” (MÜCKE, 2005, p. 187,
com tradução livre desta autora)
Com essa indicação, optou-se pela metodologia de se fazer uma leitura
comparada e basear-se nos princípios da hermenêutica para o estudo da interpretação do
texto nas edições do livro com vistas a compreender quais foram os objetivos que
levaram a publicar cada versão e a que tipo de leitor se dirigia.
Como se desconhecia que obra de Silva Lisboa tinha tido duas publicações
em Portugal, pois somente há referências historiográficas à de 1822, não era possível,
inicialmente, fazer qualquer ligação com o movimento de regeneração da monarquia.
Isso só pode ser possível a partir da localização de exemplares da obra impressa em
1821, cujo título referencia àquele momento histórico, que surge com a Revolta do
Porto em 1820.
Apesar das duas segundas edições portuguesas serem idênticas, não fica
evidente o motivo pelo qual a de 1822 é descrita como sendo a mais correta: se é em
relação à de 1821, ou à primeira de 1812. Cabe avaliar se esta correção estaria atrelada
ao texto ou à interpretação, no discurso ali contido, na transmissão de ideias e conceitos
que porventura o autor ou coautores buscavam alcançar (aqui coautores entendidos
como os responsáveis pela publicação portuguesa e que ainda não foram identificados).
Destacam-se, primeiramente, a ausência da dedicatória existente na
primeira edição dirigida a Percy Clinton Sydney, Lord Visconde de Strangford,
suprimida nas segundas edições e a seguir, a exclusão dos três primeiros parágrafos do
Prefácio, onde era citada a participação do Ministro Sousa Coutinho naquele projeto
editorial (LISBOA, 1821 e 1822).
Pensando nas condições em que foram feitas as segundas edições, podemos
supor que a exclusão da dedicatória esteja ligada à conturbada relação entre os ingleses
que estavam “governando” Portugal no período de resistência aos franceses e ausência
da Corte, ainda instalada no Rio de Janeiro, sendo ponto de reivindicação dos revoltosos
do Porto. Quanto aos parágrafos mencionando o Conde de Linhares, a ausência pode
também estar relacionada ao fato de que o poderoso ministro era conhecido por ser
grande admirador da Inglaterra, tendo sido, inclusive, o responsável pelo estreitamento
dos vínculos de amizade entre as Coroas Portuguesa e Inglesa.
No prefácio há menção ao fato de que tal publicação se dera pos-mortem
(LISBOA, 1812, parte I, p. IX), confirmando-se que D. Rodrigo não chegou a ver o
resultado da obra pronto: os primeiros anúncios de venda da obra foram encontrados na
Gazeta do Rio de Janeiro nos nº 30, de 11 de abril de 1812, página 4, e nº 61, de 19 de
julho de 1812, página 4, pelo distribuidor autorizado da Imprensa Régia e da Gazeta do
Rio de Janeiro, livreiro Paulo Martin.
Um fato interessante que ainda não se tem como rastrear é como Silva
Lisboa teve acesso aos textos de Edmund Burke, visto que se vale deles em citações em
seus escritos, discursos, livros ou panfletos, até anteriores a essa obra. Foram
localizados na biblioteca de Sousa Coutinho dois exemplares da sua conhecida obra,
“Reflexões sobre a Revolução na França”, em língua francesa e inglesa, ambas de
1790.2 Com o leilão ocorrido em 1895 do acervo da chamada livraria de D. Rodrigo não
há como saber onde foram parar esses exemplares do acervo adquirido pelo governo
brasileiro: Ministério das Relações Exteriores, Biblioteca Nacional e Arquivos Públicos
de São Paulo ou de Minas Gerais.3
O exemplar dessa obra de Burke, de 1790, que se encontra na Biblioteca
Nacional no Rio de Janeiro apresenta ex-libris “De la Bibliotheque du Commandeur
d’Araujo”, o que corresponde dizer que pertencia à biblioteca de Antonio de Araújo e
Azevedo, o Conde da Barca (1754-1817), oponente político de D. Rodrigo e
reconhecido francófilo que antecedeu e sucedeu a D. Rodrigo de Sousa Coutinho no
cargo de Ministro Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Sua
biblioteca, herdada pelo irmão João Antonio de Araújo e Azevedo (1764-1823), foi
vendida para quitar as dívidas deixadas pelo Conde (FERRAZ, 2017, p. 37).
No catálogo manuscrito dessa coleção, de 1818, estão relacionados: o livro
de Bento da Silva Lisboa referente à tradução do livro “Riqueza das Nações”, de Adam
Smith, e vários títulos escritos por Edmund Burke4. O acervo adquirido por D. João VI
para compor a Biblioteca Real do Príncipe, formou a Biblioteca Nacional no Rio de
Janeiro. O valor acordado só foi efetivamente pago aos herdeiros seguintes em 1860,
após vários processos judiciais (FERRAZ, 2017, p. 38-40).
Quanto à possibilidade de Silva Lisboa ter livros de Burke em sua própria
biblioteca fica a investigação prejudicada, uma vez que nos periódicos da época foi
encontrada notícia sobre um incêndio na residência dele, conforme a nota publicada no
Diário do Rio de Janeiro nº 21, de 27 de abril de 1824, p. 3 e 4, de agradecimento e
chamamento ao público leitor:
“José da Silva Lisboa não conhecendo pessoalmente todas as pessoas, que
tiverao a bondade de concorrer com toda a diligencia no dia 18 do corrente
mez a apagar o fogo, que appareceo na chaminé da casa em que habita na rua
de Santa Theresa; muito ajudando as Patrulhas Militares; vai por este modo dar os seus agradecimentos por huma acção tão civil e humana. Aproveita
esta ocasião para rogar as pessoas, a cujas mãos possao por alguma
2 Coleção Conde de Linhares, Torre do Tombo: PT.TT.CLNH-0004-001_m0045 (em francês) e
PT.TT.CLNH-0004-001_m0097 (em inglês) 3 Anais da Biblioteca Nacional, nº 128, 2008, p. 27. 4 Catálogo dos Livros da Bibliotheca do Conde da Barca, em 1818, p.19, 165,172.
casualidade chegar os volumes dos Livros, que se lhe desencaminharao na
noite do incêndio, lhe entregar na dita sua casa, com especialidade da Obra
Ingleza de Gibbon, e da Franceza de Condillac; se digne mandar.”
Em pesquisa realizada no Fundo Cairu do Arquivo Nacional encontrou-se
apenas translado de seu testamento, registrado em cartório em 10 de abril de 1827, onde
não há qualquer descrição de bens deixados aos filhos.5
Outro ponto considerado na análise é o contexto histórico em que as edições
foram publicadas para compreender os objetivos a serem alcançados junto aos eventuais
leitores, a quem se esperava influenciar com o discurso utilizado no conteúdo de cada
uma das três edições.
A primeira, de 1812, vem à luz num momento em que a parte europeia do
Império Português sofria com a chamada Guerra Peninsular, onde os ingleses,
portugueses e espanhóis enfrentavam os exércitos de Napoleão Bonaparte, buscando a
libertação do jugo francês. Também no território americano havia turbulência, em
decorrência dos movimentos revolucionários nas colônias espanholas, que levaram a
independência de vários desses territórios entre 1809 e 1811 (Equador, Venezuela,
Colômbia, México, Paraguai), muito influenciados pela abdicação dos monarcas
espanhóis, Carlos IV e Fernando VII, substituídos pelo representante francês José
Bonaparte, que era o novo rei nomeado pelo irmão Napoleão.
Outro fato que devia preocupar D. Rodrigo para manter íntegro o Império
Português, sem o risco de revoltas e separações, teria sido a instalação das Cortes Gerais
Extraordinárias da Espanha, em Cádiz, em setembro de 1810, quando surgia um
movimento de enfrentamento aos franceses para a retomada do governo espanhol, mas
havia a possibilidade de, se restaurado, não ser como antes. Isso se confirmou quando,
em março de 1812, foi promulgada a Constituição de Cádiz, com forte influência das
ideias iluministas e da Revolução Francesa, já trazia em seu bojo mudanças sociais e do
papel do monarca. Entretanto, ao retornar ao trono, Fernando VII a revogou em 1814,
mantendo-se como rei absoluto. Não se pode esquecer que D. Rodrigo já vinha
5 Fundo Visconde de Cairu, Cód. Ref. BR AN, RJAN RIO R7.0.033, p.88 a 92
acompanhando as revoltas que estavam ocorrendo na Europa e no continente americano
desde fins do século XVIII (POMBO, 2015, p. 62-77).
Nos dois momentos em que as segundas edições são distribuídas, o contexto
histórico já era outro, mas não menos conturbado: Napoleão já havia falecido em maio
de 1821 e as monarquias europeias estavam restauradas após o Congresso de Viena; D.
João VI era rei, mas afastado de Portugal, que sofria com a ausência da Corte e via o
Brasil ocupar espaço de destaque dentro do Império luso. Foi um período de
disseminação de ideias, não só revolucionárias, mas de redução do poder da Igreja
católica, e de novas políticas liberais, exigindo mudanças nos governos das monarquias
restabelecidas, trazendo uma versão mais constitucional e democrática. Surge um novo
sentimento unindo o povo antes massacrado pelos franceses.
Com esse novo ideário, a situação de ausência do monarca português,
começava a ser questionada pelos súditos deixados no continente europeu. A ameaça
francesa fora afastada e, em 1820, emerge um movimento revolucionário na cidade do
Porto, forçando a instalação das Cortes em Lisboa, em 1821, quando passou a ser
exigido o retorno imediato do monarca ao seu lugar de direito, fazendo com que o
modelo de Monarquia Pluricontinental fosse revisto em relação ao Brasil. Com o
retorno da Corte, o Brasil assumiria ser província e não mais de metrópole. Essa nova
situação também não agradou aos brasileiros, e na regência do príncipe D. Pedro,
iniciou-se o processo de independência vislumbrado por D. João VI quando decidiu
voltar para Lisboa em abril de 1821.
Não foi possível ainda identificar quando a edição de 1821, cujo título há a
referência à regeneração de Portugal, foi distribuída. Não foi encontrada aviso de venda
nos periódicos portugueses por todo aquele ano de 1821. Foram encontrados apenas
dois exemplares: um encadernado em forma de miscelânea (com outras obras do mesmo
período), no acervo da Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa; e outro, em volume
único, pertence à Biblioteca da Universidade de Chicago, não havendo naquela
instituição registro quanto a origem e data da doação.
Quanto ao impresso em 1822, há um aviso no Suplemento nº 8 da edição de
09 de fevereiro de 1822 do Diário do Governo, informando que estaria à venda nas lojas
de livros da Rua Augusta, do Ouro, Potes das Almas, e Chiado por 360 réis. Nesse
mesmo anúncio observa-se que há outras publicações que enfaticamente apoiavam o
movimento de regeneração ocorrido em Portugal no ano de 1820.
Considerando que a edição de 1821 nunca foi citada pela historiografia
brasileira ou portuguesa até o século XX6, não se pode afirmar que algum exemplar
tenha chegado ao Brasil no período da vida de Silva Lisboa e seus familiares mais
próximos. Ao se consultar o mais antigo volume de referências bibliográficas em língua
portuguesa, o “Diccionario Bibliographico Portuguez” de Innocencio Francisco da
Silva, no verbete dedicado a Silva Lisboa (1860, p.126), nota-se que o item nº 4740 do
livro “Extractos das Obras Políticas e Economicas de Edmund Burke”, há referência
somente ao de 1812 publicado em dois tomos.
Somente no último quartel do século XIX é que, pela primeira vez, a
segunda edição (1822) é mencionada, em obra publicada em 1881(VALLE CABRAL,
1881, p. 403). Ao que tudo indica foi em suas pesquisas junto a diversas instituições que
visitou pelo Brasil afora e na Europa7 que Valle Cabral pode ter identificado a
existência da edição de 1822, que ele cita quase como uma nota no item 10 referente ao
livro sobre os escritos de Burke que “há segunda edição mais correcta feita em Lisboa,
em a Nova Impressão Viúva Neves e filhos, 1822, in-4º, de VII-88 pp.num.-Não traz o
Appendice” (VALLE CABRAL, 1881, p. 403). Como se vê ele não indica a localização
física dessa edição, ou, ao menos, faz menção de como e onde obteve tal informação.
Depois dessa publicação de Valle Cabral, a citação sobre a edição de 1822
consta no “Diccionario Bibliographico Brazileiro”, de Sacramento Blake, em 1899,
como também no “Diccionario Bibliographico Portuguez”, de Innocencio Francisco da
Silva em sua edição ampliada por Brito Aranha em 1885. Cabendo destacar que nesse
6 Somente foi encontrada uma citação direta à edição do livro de 1821 em: LISBOA, João Luís. From
publishing to the publisher – Portugal and the changes in the world of print in the 19th century. (In)
ABREU, Márcia; SILVA, Ana Cláudia Suriani da. (org.). The Cultural Revolution of the 19th century:
Theatre, the Book-trade and Reading in the Transatlantic World. London: I. B. Tauris Publishers, 2016,
p. 75. 7 Anais da Biblioteca Nacional nº 73, 1954, p. 14-19
último, no início do verbete dedicado a José da Silva Lisboa, reporta-se ao volume
anterior (Tomo V, 1860, p. 124), e se menciona diretamente a obra de Valle Cabral,
quando diz que
“Há que rectificar e ampliar, pelo assim dizer, refundir este artigo, não só em
vista das informações colhidas depois da impressão e publicação do trabalho
de Innocencio, mas em presença da excelente biographia escrpta pelo sr.
Valle Cabral, publicada no Rio de Janeiro em 1881, e consagrada à exposição
de história do Brazil realizada no mesmo anno. É o estudo mais apurado e
mais completo que conheço a respeito de Silva Lisboa. D’elle me servirei,
pois, tanto na parte biográfica, como na parte bibliográfica, com tanta maior
confiança, quanto é certo, e o confesso reconhecido, que no exemplar com que me honrou o esclarecido autor, por intermédio do sr. Joaquim da Silva
Mello Guimarães, encontro uma nota autografa para me guiar na enumeração
das obras de Silva Lisboa.” (SILVA, 1885, tomo XIII,p. 200-201)
Tendo por base o escrito de Valle Cabral, Brito Aranha inclui no verbete a
citação à obra “Extractos das obras de Burke” (nº 4740), fazendo menção à “Segunda
edição mais correcta” publicada pela Impressão da Viúva Neves e filhos, em 1822
(SILVA, 1885, tomo XIII, p.203).
Acredita-se, pois, que os que se dedicaram a estudar as obras de Silva
Lisboa, seguiram essas obras de referência (Valle Cabral, Blake e Innocencio Silva por
Brito Aranha) sem que fosse efetivamente vista e lida a versão de 1822. Com isso,
reforçava-se, a hipótese defendida de que Silva Lisboa e seus descendentes nunca
tomaram conhecimento de que a obra fora revista em Portugal, provavelmente, com
interesses bem diferentes daqueles que motivaram sua primeira edição.
Com relação à edição de 1822, essa teve exemplares físicos localizados nas
seguintes bibliotecas brasileiras: na Biblioteca Brasiliana Guita-Midlin da USP;
Biblioteca Histórica do Itamaraty Rio; e na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, todos
sob a forma de miscelânea (encadernados com outras obras). O exemplar da Biblioteca
Brasiliana, que está digitalizado e disponível para consulta na internet, apresenta ex-
libris da Coleção Rubens Borba Alves de Moraes (1899-1986). O volume que está no
Itamaraty está registrado como inclusa na Coleção Francisco Adolpho de Varnhagen
(1816-1878), como também a ela pertence os dois volumes da edição de 1812.
Não há no momento condições de se afirmar quando e como o volume de
1822 foi adquirido por Varnhagen, dependendo de pesquisa junto à biblioteca do
Itamaraty, se possível for. Entretanto, pode-se cogitar a possibilidade de isso ter
ocorrido no período em que ele morava em Portugal (décadas de 1830-40) e frequentava
o meio literário lisboeta, considerando que fora um período de grande movimentação
política entre liberais e monarquistas constitucionais ou em período posterior
(WERLING, 2013, p.160-199).
O volume que está no acervo da Biblioteca Nacional chegou naquela
instituição em 1890, mediante doação em testamento do bibliófilo fluminense residente
em Portugal, João Antônio Marques, que deu nome à seção de Obras Raras, onde há um
retrato de sua figura.
Ocorre que esse exemplar, chegado ao Brasil mais de sessenta anos após o
falecimento de Silva Lisboa, apresenta em seu frontispício uma rubrica que pode ser
lida como J. M. P. Roiz (abreviatura de Rodrigues). Buscas ao possível dono da rubrica
poderiam levar àquele que fora o dono anterior do volume. Encontrou-se a figura de
José Maria Pereira Rodrigues (1837-1885), escritor, tradutor e jornalista, tendo sido
redator do Jornal Chronica dos Theatros, de Lisboa, por seis anos, de 1863 a 1869
(SILVA, 1883, tomo IX, p. 69). Foi deputado nas Cortes representando a província de
São Thomé, quando ali era governador o Sr. Gregório José Ribeiro (1828-1884), seu
cunhado, no período de outubro de 1873 a novembro de 1876.
Outro fato a se destacar é que José Maria Pereira Rodrigues tinha um irmão
mais velho, João Félix Rodrigues (1831-1870), conhecido pela alcunha de o “Tanas” do
jornal “O Português” (1856-1866), tendo sido um polemista dos mais ardentes,
vigorosos e ilustrados. Por causa do irmão João Félix, Pereira Rodrigues passou a ser
conhecido como o “Tanas Lyrico”, devido a sua atuação na área teatral e musical. O
cognome “Tanas” era um anagrama de uma das assinaturas que João Félix usava em
seus artigos (Satan), além de se apresentar também por suas iniciais invertidas: R.F. J.
(SILVA, 1883, tomo X, p. 245-247).
Relata Innocencio Francisco da Silva em seu dicionário no verbete dedicado
a João Felix que
“escreveu-me o sr. J. M. Pereira Rodrigues, que se lembrava de ter ouvido
que seu irmão João Felix redigira, ou estava redigindo, umas Memórias da
sua vida ou do seu tempo, mas que elle não as vira nunca, e lhe parecia que
com outros papeis d’elle ficariam, depois de seu fallecimento, em poder da
família com quem estava ligado, cujo chefe, Manuel Patricio Alvares, também é hoje fallecido” (SILVA, 1883, tomo X, 3º Supl., p. 247).
Na edição nº 44 do periódico “A Illustração Portugueza”, de 17 de maio de
1886 (p.3), na coluna “Recordações de um Jornalista”, consta menção ao nome do
irmão João Félix Rodrigues, como fazendo parte de um grupo de jacobinos, que
formava boa parte do Partido Patuleia (Guerra da Patuleia, de outubro de 1846 a junho
de 1847), que depois aderiu ao Partido Progressista Histórico (ou Partido da Granja, em
1876, houve a fusão com o Partido Reformista de origem vintista e setembrista e na
Patuleia com o Partido Histórico), sendo franco opositor ao Partido Regenerador. O
articulista explica que usou o termo jacobino por serem esses partidários intransigentes
e que tinham na cabeça duas únicas ideias: “Viva a constituição de Vinte! E abaixo os
Cabraes, que são uns ladrões!” João Félix fora redator do jornal “Portuguez”, legítimo
herdeiro do “Patriota”.
Ao que se vê havia envolvimento dos irmãos na área dos jornais que
atuavam ativamente na política portuguesa no movimento regenerador que se seguiu à
insurreição militar de maio de 1851, levando à queda de Costa Cabral e dos governos de
inspiração setembrista, tendo durado até 1868. Esse movimento teve como inspiração a
ideia de regeneração advinda do movimento vintista, no pensamento e discurso liberal
desde os anos de 1817 a 1820.
Ao falecer, J. M. P. Rodrigues ocupava o cargo de primeiro verificador da
Alfândega de Lisboa e vogal suplente do Conselho Geral das Alfândegas, conforme
consta da notícia do Correio da Manhã, em sua edição nº 128, de 1885. Deixou viúva e
única herdeira, D. Elisa Virgínia Ribeiro Pereira Rodrigues, conforme consta de avisos
de habilitação ao benefício de pensão junto à Direção do Monte Pio Official e à
Associação dos Empregados do Estado, publicados, respectivamente, nos nº 107, de 15
de maio de 1885, p. 6, e nº 141, de 30 de junho de 1885, do Diário do Governo. Não
sendo possível confirmar se fora ela quem teria vendido ao bibliófilo brasileiro o
exemplar doado e remetido à Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro em 1890.
Diante dessas informações pode-se supor que as ideias expressas na versão
da obra de Silva Lisboa publicada em 1822, em pleno movimento regenerador vintista,
podem ter de alguma forma inspirado os irmãos jornalistas. Talvez se possa cogitar a
possibilidade do exemplar que está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tenha
pertencido inicialmente a João Felix, e que ao falecer foi herdado por J. M. P. Rodrigues
(FERREIRA, 1970, p. 343).
A pesquisa a ser aprofundada visará interpretar os textos de forma a
identificar como, em cada uma das edições, poderia ter sido usado politicamente pelos
seus autores (aqui considerando os editores portugueses como responsáveis pelas
alterações sofridas no texto original de Silva Lisboa) em cada uma das épocas em que
foram disponibilizadas ao público leitor que se buscava alcançar.
Em primeiro lugar, deve-se recordar que Edmund Burke era um parlamentar
britânico que, em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, pôs-se em embate
com os defensores do ideário da Revolta francesa, e que antes mesmo desse evento
chegar ao regicídio, Burke já indicava que os procedimentos que vinham sendo
adotados levariam a um final trágico para aquele país, deixando-o à beira do caos,
desgovernado. Tais procedimentos revolucionários não seriam, ao ver de Burke, a
melhor opção para corrigir os problemas que aconteciam no reino francês, sugeria o
irlandês que fosse seguido o mesmo caminho encontrado pelos ingleses por ocasião da
Revolução Gloriosa (1688).
Desta forma, vê-se que Burke não era um defensor de monarcas
representantes do Antigo Regime, logo, muito dificilmente suas propostas se
coadunariam com o pensamento tanto de D. Rodrigo quanto de Silva Lisboa. Assim,
deverá ser analisada a suposta tradução dos textos de Burke que foram escolhidos por
Silva Lisboa para compor a sua obra e interpretar o quanto foi alterado do seu sentido
original, questão levantada por Ulrich Mücke mencionada anteriormente.
A seguir, considerando as alterações feitas no texto original de Silva Lisboa,
pelos coautores portugueses, que podem ser tanto o responsável pela distribuição da
obra original aqui no Brasil (Paulo Martin) como o impressor português (Nova
Impressão Viúva Neves & Filhos) ou mesmo terceiros, que tenha encomendado a
impressão, dando novo sentido ao texto. Não esquecendo que a edição de 1821 indicava
em seu título o processo de regeneração buscado pelos revolucionários de 1820,
alterando o sentido do conteúdo inicial para alcançar um público leitor diferenciado do
anterior.
Ao se considerar que, mais de trinta anos depois, aquela versão de 1822
ainda encontrou novos interessados (os Rodrigues), o texto volta a se destacar em outro
momento de mudanças políticas em Portugal, na década de 1850, quando um novo
movimento regenerador assume o protagonismo político, encontrando nova
interpretação ao pensamento de Burke, já modificado por Silva Lisboa: novo discurso,
novo uso.
Ficam-se, portanto, três textos-base (Burke, Silva Lisboa-1812 e Silva
Lisboa/Viúva Neves-1821/22) que se apresentam com quatro objetivos diferentes:
a) final do século XVIII, Revolução Francesa;
b) primeiro decênio do século XIX, era Napoleônica;
c) segunda década do século XIX, pós-Napoleão e crise do Antigo
Regime/Sistema Colonial;
d) por fim, na segunda metade do século XIX, Monarquia
Constitucional portuguesa no período de Regeneração de 1851.
Se Burke pudesse ter acompanhado o caminho que seu pensamento político
e econômico percorreu, com certeza teria se surpreendido com tamanha mudança nas
interpretações a partir das releituras feitas.
Espera-se que, concluída a pesquisa, a tese levantada possa ser comprovada
e que se reescreva uma nova interpretação da obra feita por Silva Lisboa com base no
pensamento de Burke (ou não), mas que interessou a leitores que viveram em épocas
diferentes dentro do mesmo Império, em territórios distantes e unidos, lutando por uma
mesma causa: construir uma nova sociedade condizente com os novos tempos que
surgiam no horizonte político.
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