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O DISCURSO DE EXCEPCIONALIDADE NA FOTOGRAFIA DE IMPRENSA: O
SENSACIONAL, O SENSACIONALISMO E O ESTATUTO DE ARTE.
BRUNO DE ANDRÉA ROMA1
A cooperação da gravura e do texto concede à revista o privilégio
de poder tornar-se obra de arte.2
Na última década do século XIX, a imprensa brasileira apresentava ao público seu mais
novo recurso de entretenimento e informação: a fotografia impressa diretamente nas
páginas dos jornais e revistas. Conforme nos recomenda grande parte dos historiadores
especializados no assunto, dentre os quais destacamos o canadense Thierry Gervais,
mesmo internacionalmente não foi com excepcional entusiasmo que o advento foi
apresentado e recebido pelos veículos de imprensa e seu público leitor, já habituados à
tradução gráfica da fotografia por outros recursos visuais, como a xilo ou litogravura
(GERVAIS, 2010). Essa falta de entusiasmo de certa forma se observa também no Brasil
e se reproduz na própria historiografia da imprensa. No clássico A História da imprensa
no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, por exemplo, a fotografia surge de forma muito
discreta, primeiro ao mencionar que na virada do século o Jornal do Brasil já possuía
oficinas de fotografia e galvanoplastia (SODRÉ, 1966: 313), depois quando avalia que
em 1904 a revista Kosmos inovava separando desenho de fotografia (SODRÉ, 1966: 341),
ou ainda colocando a fotografia de forma secundária na esteira da evolução técnica da
ilustração em revistas (SODRÉ, 1966: 343-344).
Cabe notar que em nenhuma dessas menções se estabelece propriamente um marco
fundador e nem se atribui ao advento da impressão direta da fotografia nos periódicos um
1 Doutorado em andamento no Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, USP. 2 Editorial de O Cruzeiro, Anno 1, N. 1, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1928.
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caráter particularmente revolucionário para a imprensa de modo geral. A fotografia não é
um assunto de especial atenção de Nelson Sodré, importante esclarecer, mas mesmo entre
pesquisadores especializados em fotojornalismo não há unanimidade quanto ao ano de
publicação da primeira fotografia diretamente nos periódicos brasileiros. A historiadora
Silvana Louzada, por exemplo, dirá que:
O já citado A Revista do Brasil assegura que a primeira vez foi em 1894, no talvez único
número da Galeria Contemporânea do Brasil, editada no Rio de Janeiro pelo impressor
belga Henrique Lombaerts. É um retrato de Machado de Assis feito pelo conceituado
fotógrafo Insley Pacheco e impresso por fototipia. (...) o periódico A Semana (1885),
editado por Valentim Magalhães, publica em 2 de setembro de 1893 a primeira fotografia
em autotipia(...). (LOUZADA, 2013: 38-39)
Já Cesar Boni considera que “No Brasil, para a maioria dos historiadores da imprensa, o
primeiro periódico a publicar fotografias pelo sistema de autotipia foi o semanário Revista
da Semana, cujo primeiro número circulou encartado no Jornal do Brasil em 20 de maio
de 1900.” (BONI, 2016). Helouise Costa compartilha do posicionamento de Boni ao
afirmar que “(...) a Revista da Semana teria sido pioneira. O primeiro número, de 20 de
maio de 1900, trazia na capa uma foto das comemorações do IV Centenário do
Descobrimento do Brasil.” (COSTA, 2012: 10-11). Na verdade, podemos considerar que
não há interesse em estabelecer necessariamente um marco fundador, uma vez que não
derivariam dele os maiores impactos gerados pela fotografia na imprensa no Brasil. Indica
a própria historiografia apontada, portanto, uma maior conveniência em buscar outros
episódios ou fenômenos que nos ajudam a compreender esses impactos de forma mais
processual e contextualizada.
Vale ressaltar que a análise da imagem fotográfica, ao contrário das demais formas de
produção visual, delimitadas pela adjetivação artística, foi marcada pela multiplicidade,
ou seja, não há efetivamente uma fotografia, mas práticas fotográficas, histórica e
culturalmente definidas. (MAUAD, 2008: 159)
Essa justificada falta de entusiasmo para com a primeira impressão direta da fotografia
nas páginas da imprensa, seja pelo público da época, seja pela própria historiografia,
contrasta com as dimensões espetaculares que esse recurso visual experimentará, fazendo
com que hoje o consideremos um ponto fundamental para se compreender as relações
entre observador e imagem técnica. A fotografia de imprensa não apenas nos educou para
a leitura de jornais, ou para a própria televisão, mas é em parte responsável pela forma
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como atribuímos confiabilidade e valor para a fotografia de modo geral. A fotografia de
imprensa popularizou o dispositivo fotográfico, popularizando também o estatuto de
verdade de que foi revestido.
Tendo isso em vista, apresentamos este trabalho não partindo de uma foto ou revista
fundadora, mas destacando um processo na historiografia da fotografia impressa no
Brasil. O processo que destacamos demonstra a construção do discurso de
excepcionalidade da fotografia como uma constante na imprensa ilustrada moderna, que
pavimentará uma trajetória que parte das páginas das revistas, passando pelos jornais até
chegar aos grandes acervos. Esse trajeto consideramos, portanto, do sensacional,
passando pelo sensacionalismo até o estatuto de arte. Escolhemos para demonstrar esse
percurso as balizas da fundação da revista O Cruzeiro em 1928, passando por algumas
transformações que sofre a revista na década de 1940, a fundação do jornal Última Hora
em 1951 e, por fim, as aquisições por parte do Instituto Moreira Salles (IMS) e Arquivo
Público do Estado de São Paulo (APESP) de grandes arquivos oriundos do
fotojornalismo, entre os anos 1990 e 2018.
O SENSACIONAL
A revista O Cruzeiro, que circulou de novembro de 1928 a julho de 1975, é objeto de
uma robusta e bem estabelecida fortuna historiográfica. Se é verdade que a trajetória da
revista encontrou entusiasmo na historiografia, fazendo inclusive com que a obra de seus
fotógrafos colaboradores conte presentemente com uma excelente inserção em
instituições de guarda de acervo, como arquivos e centros de documentação, também é
verdade que desde o seu lançamento O Cruzeiro foi apresentada ao público com grande
euforia:
O lançamento do primeiro número de O Cruzeiro foi minuciosamente planejado, coisa
inédita no país naquela época. Na tarde quente do dia 5 de dezembro de 1928, à hora em
que as repartições públicas encerravam o expediente e pouco antes do comércio fechar
as portas, a Avenida Rio Branco foi inundada por uma chuva de papel picado. Parecia
que de repente, por um espantoso milagre meteorológico, estava nevando na mais
importante via pública da Cidade Maravilhosa, com 40 graus à sombra. Ônibus e
automóveis estancaram. Uma sinfonia de buzinas encheu o ar. E milhares de transeuntes,
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surpresos, começaram a apanhar no ar, nas calçadas ou sobre o asfalto escaldante os
pedaços de papel, que nada mais eram do que pequenos folhetos impressos, atirados dos
andares mais altos dos edifícios, e que diziam: Compre amanhã O Cruzeiro, em todas as
bancas, a revista contemporânea dos arranha-céus. (NETTO, 1998: 36-37)
O espetáculo do lançamento, claro, não seria suficiente para atrair nossa atenção neste
trabalho, mas de certa forma preconiza o papel que a revista ocuparia no campo midiático
brasileiro. Também com espetaculares proporções se apresentava o editorial do primeiro
número da revista, trazendo até promessa de entrevista com Presidente e autógrafo de Rei
para o número seguinte, auto impingia uma vocação heroica para a revista. Por entre
demolições e brados de modernidade, O Cruzeiro esclarecia mais do que suas ambições
inovadoras, mas sobretudo o papel que almejava, de educadora do leitor-observador
brasileiro:
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Do editorial, destacamos:
Uma revista, como um jornal, terá de ter, forçosamente, um caracter e uma moral. De um modo generico:
princípios. Dessa obrigação não estão isentas as revistas que se convencionou apelidar de frívolas. A
funcção da revista ainda não foi, entre nós, sufficientemente esclarecida e comprehendida. (...) O jornal é
a propria vida. A revista é já um compendio da vida. A sua circulação não está confinada a uma area
traçada por um compasso cujo ponteiro movel raro pôde exceder um círculo de raio superior á distancia
maxima percorrivel em vinte e quattro horas. A revista circula desde o Amazonas ao Rio Grande do Sul,
infiltra-se por todos os municipios, utilisa na sua expansão todos os meios de conducção terrestre,
maritima, fluvial e aérea; entra e permanece nos lares; é a leitura da familia e da visinhança. A revista é
o estado intermedio entre o jornal e o livro. (...) O jornal dá-nos da vida a sua versão realista, no bem e
no mal. A revista redu-la á sua expressão educativa e esthetica. O concurso da imagem é nella um
elemento preponderante. A cooperação da gravura e do texto concede á revista o privilegio de poder
tornar-se obra de arte. A politica partidaria seria tao incongruente numa revista do modelo de Cruzeiro
como num tratado de geometria. Uma revista deve ser como um espelho leal onde se reflecte a vida nos
seus aspectos edificantes, attraentes e instructivos. Uma revista deverá ser, antes de tudo, uma escola de
bom gosto. (Transcrita do Editorial de O Cruzeiro, Anno 1, N. 1, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1928.
Grifos nossos)
No trecho podemos compreender melhor a missão heroica que mencionamos. Depois de
firmar seus propósitos morais, a revista se apresenta como compendio da vida,
corroborando o que revistas como a norte americana Life pretendiam para si. Adiante
destaca a pioneira empreitada da distribuição nacional, que junto com os elevados
números de tiragem, garantiram à revista a importância de que desfrutou. Ao colocar-se
entre o jornal e o livro, concilia a atualidade da informação recente com o prestígio da
perenidade do livro. A imagem, elemento preponderante, cumpre a missão educativa e
estética, que somada ao caráter literário, muito próprio dessa geração de revistas, elevava
a revista ao estatuto de obra de arte. A revista seria, tudo isso visto, uma escola de bom
gosto. O caráter educativo que a revista reclama para si de fato se realizou nos anos que
sucederam esse editorial. Mais do que moralmente, O Cruzeiro seria visualmente
educativa para o leitor-observador brasileiro.3
A pesquisadora Helouise Costa faz as seguintes considerações ao primeiro número de O
Cruzeiro e seu editorial:
Nesse sentido, arvora-se a uma função educativa, em que a imagem tem papel
preponderante. Se ela é um “espelho leal”, a realidade, no entanto, nela se reflete de
modo seletivo, apenas em seus “aspectos edificantes, atraentes e instrutivos”. (...) Na
3 Para compreender melhor esse processo, recomendamos: COSTA, Helouise. Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro. Dissertação de Mestrado. Ano de Obtenção: 1992. Universidade de São Paulo, USP, Brasil.
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primeira edição de O Cruzeiro encontramos as seguintes matérias: “A era das forças
hidráulicas, uma visão do ano 2000”; “O Rio de Janeiro de 1950 (projeto de
reurbanização idealizado por Agache)”; “As gravuras de Dürer (em exposição na
Biblioteca Nacional)”; “A evolução da moeda de ouro no Brasil”; “A múmia de
Lênin”; e “As bandeirantes acampadas em Itaipava”. (COSTA, 2012: 12-13)
Sobre a variedade de temas abordados já no primeiro número da revista, que vão de
previsões futuristas à múmia de Lênin, pesa o trecho que Costa destacou do próprio
editorial: havia uma seletividade temática restrita ao que se considerava “edificante,
atraente e instrutivo”. Nesse sentido, não havia espaço para o trivial, banal ou comum.
Principalmente a fotografia estaria disponível ao registro do que mais sensacional
existisse para se expor.
Nas edições subsequentes a revista abordaria assuntos igualmente variados, que
abrangiam desde cerimônias militares, políticas e religiosas até reuniões filantrópicas,
passando por exposições de pintura, matérias de moda e beleza, até coberturas de
competições esportivas. (COSTA, 2012: 12-13)
Nos grandes grupos de temas mais recorrentes na revista, o excepcional se coloca como
traço transversal de semelhança. A fotografia, largamente aplicada a esses temas, é usada
como elemento gerador de celebridade, valorizando o episódio, a peripécia do registro ou
o retratado. Cabe reconhecermos aqui a longevidade de O Cruzeiro, que passou e se
adaptou por diversos projetos de revista e de fotografia. Por ora, nos referimos aos
primeiros anos da revista, pois, como veremos adiante, passada aproximadamente uma
década, essas características começam a apresentar transformações. Uma pesquisa pelos
primeiros dois anos da revista tendo por norte a busca de palavras chave como “incrível”,
“sensacional” e “fantástico”, nos permite reunir alguns exemplos do que acabamos de
expor.
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Figura 1 Revista O Cruzeiro de 05 de janeiro de 1929: A primeira fotografia, descrita como "Photographia sensacional", retrata um vulcão em plena erupção. Nas outras duas abaixo, o chefe supremo dos índios "White Horse Eagle" aos 107 anos e, ao lado, o ministro de guerra da França Painlevé discursa. Emoldurando as fotografias, quatro quadros expostos no Salão de Independentes, em Paris. Nota-se a excepcionalidade construída pela aliança entre os temas e a fotografia. Acervo da Biblioteca Nacional.
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Figura 2 Revista O Cruzeiro de 12 de janeiro de 1929: o colunismo social, outra presença marcante de O Cruzeiro, celebriza a vida da elite e dos artistas do país. Teve a fotografia como forte aliada em mais um esforço de construção de excepcionalidade. Acervo da Biblioteca Nacional.
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Figura 3 Revista O Cruzeiro de 15 de novembro de 1930: a posse do Presidente, um evento importante por natureza. Destaque para a rigidez das três grandes fotografias, emolduradas pelos muito distintos retratos, ou bonecos como diz o jargão jornalístico, dos ministros. Acervo da Biblioteca Nacional.
Representativos da predominância de temas apontada por Costa, os exemplos
demonstram que a imagem fotográfica não se submetia ao corriqueiro, construindo uma
relação em que pouco a pouco não se torna mais possível ao observador distinguir se o
evento/personagem são excepcionais, ou se o fato de serem fotografados e publicados os
torna excepcionais. Como uma espécie de Midas, a fotografia se reveste de discurso de
excepcionalidade, se impregna dele e torna excepcional tudo o que apresenta para o
deleite visual do leitor da revista. Aqui chamamos redobrada atenção para a primeira
imagem, que retrata a coluna “Pelas cinco partes do mundo” da revista.
A Seção “Pelas cinco partes do mundo” por exemplo, seguia o mesmo princípio utilizado pela revista Vu em “Vu no mundo”, onde eram apresentados mosaicos compostos por inúmeras fotografias de acontecimentos díspares ocorridos nas mais diversas partes do planeta. (COSTA, 2012: 13)
A seção demonstra, portanto, a inserção de O Cruzeiro em um contexto maior de revistas
ilustradas internacionais, das quais inclusive recebia contribuições de fotografias,
garantindo à revista não apenas a possibilidade de abordar assuntos estrangeiros, mas de
inserir-se nos programas visuais que internacionalmente estavam em voga. Na obra
Things as they are: photojornalism in context since 1955 (2007), a historiadora Mary
Panzer apresenta um revelador panorama do fotojornalismo internacional, no qual
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considera como representantes brasileiros as revistas O Cruzeiro e Manchete. Ao discutir
o caráter global do fotojornalismo, apesar de considerar diversos movimentos
internacionais, a autora esclarece que não é possível falar em uma prática fotojornalística
universal, destacando que cada cultura possui identidade, cultura e instrumentos de
comunicação próprios, o que, a despeito das semelhanças, faz com que uma mesma
imagem seja produzida, publicada e lida de forma diferente em cada lugar (PANZER,
2007: 09-10). Ainda assim, revistas como Vu, Photoplay e Life influenciaram
francamente a criação de O Cruzeiro e, mais do que isso, influenciaram ainda as
transformações pelas quais a revista passou nas décadas seguintes.
O SENSACIONALISMO
A década de 1940, intensa e turbulenta como foi, marca também transformações
importantes para a prática do fotojornalismo por todo o mundo, especialmente no pós-
guerra. Destaca-se nesse campo a modernização da linguagem, a proliferação e
fortalecimento de agências de fotografia pela Europa e América do Norte, promovendo a
autonomização da fotografia e do próprio fotógrafo, que alça um lugar de maior destaque
nesse contexto. Emblemática é a fundação da agência Magnum em 1947 nos Estados
Unidos, e com ela, principalmente dois de seus fundadores Robert Capa e Henri Cartier-
Bresson. O segundo criaria mais do que uma linhagem no fotojornalismo, mas uma ética
própria do fotojornalista e uma crença na capacidade informativa e espontânea da
imagem, que possui fortes influências no campo até a atualidade. No caso de O Cruzeiro,
a década também trouxe renovações, que implicaram mudanças em sua diretoria e a
chegada do fotógrafo francês Jean Manzon em 1943, marcando um novo ciclo da revista:
O Cruzeiro surgiu, como vimos, no contexto da primeira geração de revistas ilustradas,
mas foi se distanciando dela ao longo da década de 1930, adquirindo características
híbridas. No entanto, a ruptura efetiva com as revistas do período entreguerras ocorreu
a partir de 1943, quando O Cruzeiro aderiu ao modelo das revistas ilustradas de
atualidades internacionais e incorporou a fotorreportagem, colocando-se de fato como
a mais moderna do país em todos os aspectos. (COSTA, 2012: 17)
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Ao incorporar a fotorreportagem, além de alinhar-se à modernização de revistas como a
Life e Paris Match, O Cruzeiro também inaugurava um novo regime de relação com a
informação visual na imprensa. O discurso de excepcionalidade, ponto central de nossa
reflexão neste trabalho, persiste, mas agora com modificações. A fotorreportagem de
certa forma aproximará o recurso fotográfico do cotidiano das pessoas, da realidade do
mundo, libertando-se do registro apenas do elevado, ou do “atraente, edificante e
instrutivo”. Embora grande parte das fotorreportagens ainda se use de temas
impressionantes, como visitas a tribos intocadas ou lugares exóticos, o impressionante da
miséria, da violência, da doença ou até da própria existência também passa a compor o
rol da revista. Como dissemos anteriormente, já impregnada de excepcionalidade, a
fotografia transferirá para assuntos menos incríveis, sua aura de excepcionalidade.
Poderíamos dizer que o sensacional progressivamente deixa o referente, e se transfere ao
próprio recurso da fotografia, que somada ao texto produz o efeito sensacionalista. Ao
buscarmos as mesmas palavras chamas que buscamos anteriormente, vejamos alguns
exemplos entre os anos de 1943 e 1944.
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Figura 4 Revista O Cruzeiro de 13 de novembro de 1943. A fotografia, em consonância com a manchete, redimensiona a pilha de processos, dando lastro visual para a ideia de “maior processo de espionagem da história!”. Acervo BN.
Figura 5 Revista O Cruzeiro de 27 de novembro de 1943 apresenta a “primeira reportagem fotográfica dentro do Hospício”. Em destaque a fotografia que apresenta o que considera um corredor “impressionante”.
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Figura 6 Revista O Cruzeiro de 24 de junho de 1944. As dimensões gráficas da fotografia já impressionam, sangrada em duas páginas. A legenda, que apresenta o registro como “magnífico flagrante”, demonstra a continuidade da vocação educativa da revista, ao conduzir o olhar do observador sugerindo o que deve buscar.
Nesse sentido, clínicas veterinárias, carnavais, hospícios, prisões, selvas, hospitais,
favelas, animais, plantações, artistas, quartéis, escolas, funerárias, plantões policiais,
países distantes, enfim, uma verdadeira infinidade de temas passam a ter uma coisa em
comum: as lentes de O Cruzeiro. A excepcionalidade, dessa forma, não está apenas no
retratado, mas no próprio recurso do registro e não se contém nele, envolvendo seus
autores. Foi grande o protagonismo de muitos dos fotógrafos colaboradores da revista.
Jean Manzon e David Nasser, o fotógrafo e o escritor inseparáveis, personificaram isso
de forma especialmente exemplar. A heroica revista constrói heroicos repórteres.
A década de 1950 é com certa frequência apresentada por historiadores como a “idade de
ouro” do fotojornalismo4. No caso brasileiro deste período, destacamos a fundação em
1951 do jornal Última Hora, que circulou por mais de vinte anos e foi fortemente
caracterizado pelo uso massivo de fotografias e pelas inovações que promoveu nesse
campo.
O primeiro número de Última Hora, que chega às bancas na terça feira, 12 de junho de
1951, já diz, gráfica e fotograficamente, a que veio. Em oito colunas e letras garrafais,
anuncia uma “Nova Tragédia” e completa em tipos sucessivamente menores “a qualquer
momento – desmorona a Central”. Uma fotografia apresentando a Estrada de Ferro
Central do Brasil mostra uma locomotiva que se funde a um trem apinhado de
4 Por exemplo, Silvana Louzada em Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro 1950/1960 (Niterói, 2013), ou Mary Panzer em Things as they are: Photojournalism in Context Since 1955. (2007)
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passageiros dependurados do lado de fora, uns sobre os outros, tentando se agarrar ao
vagão, e é ainda mais eloquente que a manchete. (...) Já estão presentes três das
características mais marcantes de UH: o apelo visual, a exploração do sensacional e a
inclusão das temáticas cotidianas populares. (LOUZADA, 2013: 141)
Depois do que vimos, não podemos dizer que explorar o sensacional se tratava de uma
novidade. No entanto, a forma como o Última Hora passa a fazer, o caráter de notícia
diária e a popularização tanto do linguajar, como do gosto das imagens e dos temas, fazem
com que possamos considerar que o jornal apresenta novidades importantes nesse campo.
Mais do que nunca, o cotidiano, apresentado pela fotografia, escancara o dia a dia do
observador, convertendo o banal, a tragédia e o cotidiano em sensacional.
Figura 7 Jornal Última Hora de 29 de junho de 1951: neste caso, sensacional é a radiografia que representa a suposta melhora da contusão do artilheiro Ademir. Acervo da Biblioteca Nacional.
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Figura 8 Jornal Última Hora de 21 de janeiro de 1956: Longe das erupções vulcânicas ou tribos isoladas, o sensacional aqui é a briga de um deputado e um homem traído em plena rua.
O ESTATUTO DE ARTE
As décadas de 1980 e 1990 nos apresentam novas transformações no campo do
fotojornalismo, agora mais globalizado pela comunicação em rede e profundamente
marcado pela multiplicação de agências de imagens, que ampliaram a autonomia de
produção dos fotógrafos em relação aos veículos de mídia. A historiadora Mary Panzer
classifica esse período como a ‘new Golden age’ do fotojornalismo (PANZER, 2007: 26),
marcado, além de pelas agências e emancipação dos fotógrafos, por sua inserção em
roteiros de reconhecimento histórico e, sobretudo, artístico.
By the end of the period, and notably with the popular success of Sebastião Salgado’s
epic Workers exhibition that began touring in 1992, photographs once seen only on the
pages of magazines appeared again on the walls of museums and galleries. What made
one photograph a work of art, and another a piece of journalism?(PANZER,
2007. P. 28)
No caso do Brasil, particularmente, o agenciamento nacional de fotografias será uma
grande novidade. No campo da historiografia da fotografia, esse período é marcado por
um ‘boom’ de interesse pelo tema, que se traduzirá na produção acadêmica, publicação
de livros e inserção do dispositivo em grandes acervos de museus, arquivos e centros de
documentação. Apontamos aqui ao menos dois trabalhos que são muito significativos
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para compreender panoramicamente a produção dessas décadas. O primeiro deles, o
balaço bibliográfico produzido pelas historiadoras Vânia Carvalho, Solange Lima, Maria
Cristina Rabelo de Carvalho e Tânia Francisco Rodrigues em 1994. O segundo, o balanço
historiográfico produzido por Ricardo Mendes em 2003, ambos publicados pelos Anais
do Museu Paulista. Sobre o período que destacamos, afirmam:
Como resumo desse encadeamento de eventos, podemos apontar algumas diretrizes:
parece ocorrer um descobrimento do Brasil (pela fotografia), mas antes de tudo um auto
reconhecimento da própria comunidade fotográfica, espelhando-se por um lado num
passado documentarista e, por outro, procurando ser veículo de um olhar
contemporâneo. (MENDES, 2003: 197)
Finalmente, não seria exagero afirmar que estas publicações "preservam" o potencial de
encantamento das fotografias históricas através de altos investimentos na
produção editorial, que garantem reproduções, na maioria das vezes, de excelente
qualidade, em papel nobre, protegidas por capa dura e luxuosa, seguindo o padrão dos
assim conhecidos "livros de arte", que se oferecem à fruição em salas de visita e de
espera de grandes empresas, cujo prestígio se reflete nos tesouros históricos
"descobertos" e na riqueza material de sua divulgação. (CARVALHO; LIMA;
CARVALHO e RODRIGUES, 1994.P. 259)
Nesse contexto, gostaríamos de destacar a aquisição em 1989 por parte do Arquivo
Público do Estado de São Paulo, da ‘Coleção Samuel Wainer’, que se tornou o Fundo
Última Hora, composto por mais de seiscentas mil fotografias oriundas da sucursal
carioca do jornal. Em 2004 mais uma vez a instituição protagonizou a aquisição de um
arquivo composto por fotografias de jornal, esse produzido pelos Diários Associados,
conglomerado proprietário da revista O Cruzeiro, e composto por mais de um milhão de
fotografias. Embora o segundo conjunto tenha sido menos explorado, o primeiro, além de
anos de projetos especializados para sua preservação, motivou a publicação de seis livros,
uma exposição e um website para difusão do acervo. Embora argumentos artísticos não
tenham sido exclusivamente os motivadores da aquisição, colaboraram para que
acontecesse e, mais do que isso, fizeram parte sobretudo dos discursos de extroversão e
preservação da instituição. Objeto de iniciativas de curadoria, procedimento
costumeiramente estranho ao ambiente de arquivo, os acervos passam a ser abordados
com uma dupla valorização: histórica e estética.
Objeto de constantes trabalhos, entre pesquisas acadêmicas, produção de
documentários, filmes etc. o acervo Última Hora continua pouco conhecido do grande
público. Nesse sentido, nossa intensão primeira foi divulgar o acervo e poder contribuir,
tanto para despertar o interesse sobre o assunto, como para somar aos conhecimentos já
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adquiridos. (...) O critério de seleção de imagens levou em conta tanto o valor histórico,
quanto o estético. (OLIVEIRA; PENTEADO, s/d: 10)
Outro exemplo importante desse processo pode ser observado no acervo do Instituto
Moreira Salles (IMS), que desde 1995 passou a construir uma das maiores coleções de
fotografias do país. Nesse acervo encontramos diversos exemplos de arquivos de
fotógrafos fotojornalistas, entre eles: Alécio de Andrade, David Drew Zingg, Henri
Ballot, Hildegard Rosenthal, José Medeiros, Juca Martins, Luciano Carneiro, Marcel
Gautherot, Peter Sheier e, o mais recente, Walter Firmo, adquiridos entres os anos de
1996 e 2012 aproximadamente, com exceção do último, abrigado em comodato desde
2018. O IMS foi responsável também por diversas exposições e publicações que celebram
a obra desses fotógrafos e seus acervos. Nesse novo ambiente, novos discursos se
estruturam em torno desse tipo de prática fotográfica e o fotógrafo troca o heroísmo da
retórica da revista, pelo artístico ou histórico da retórica do preservador.
“Esse é o inventário da sociedade brasileira que teve um fotógrafo que viveu 60 anos
fazendo todas as figuras da música, o futebol, a bandidagem, as festas folclóricas, o
carnaval”. Pode parecer mera presunção, mas em se tratando de Walter Firmo, a
definição que o próprio artista faz de seu arquivo, desde 2018 abrigado em regime de
comodato no Instituto Moreira Salles, é apenas uma constatação. São aproximadamente
145 mil imagens registradas desde que o carioca ingressou no fotojornalismo em 1955,
ainda como aprendiz, no jornal Última Hora. (MILLEN, 2019)
Referindo-se ao caso específico do arquivo pessoal de Marcel Gautherot, Lygia Segala,
no excerto a seguir, nos ajuda a compreender o novo discurso de excepcionalidade que
passa a revestir esse tipo de produção, apontando os fatores de transformação que
sustentam esse discurso.
Nesse processo, o arquivo pessoal fotográfico – como conjunto documental produzido e
acumulado por Gautherot ao longo de sua vida, pautado por uma economia e por usos
específicos das imagens – redefine-se como coleção institucional, em que ganha relevo
sua qualidade estética, a singularização da imagem e sua reprodução, como mercadoria,
nos circuitos interessados em objetos fotográficos como peça de arte. (SEGALA, 2008.
P. 176)
A recente exposição Arquivo Peter Scheier, realizada pelo IMS em 2020 sob curadoria
de Heloisa Espada, nos permite de forma muito bem elaborada confrontar a produção
fotográfica do titular do arquivo em dois ambientes de circulação distintos: as páginas da
revista O Cruzeiro e as paredes do espaço expositivo do Instituto. O efeito nos retoma a
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indagação proposta por Mary Panzer, que mencionamos há pouco, “What made one
photograph a work of art, and another a piece of journalism?”.
Figuras 8 e 9 Exposição Arquivo Peter Scheier, IMS/SP. A fotografia montada na parede da galeria e impressa nas páginas da revista.
Concluímos, dessa forma, que o que compreendemos aqui como discurso de
excepcionalidade, desde os primórdios de O Cruzeiro à recente introdução do
fotojornalismo no circuito dos acervos, na verdade é um processo de construção de
múltiplas possibilidades, que passam pelas valorizações do tema, da peripécia do registro
e do fotógrafo, envolvendo diferentes contextos de realização e afirmação através dos
tempos. Das páginas da revista às paredes da galeria, da valorização do referente à do
fotógrafo, o discurso de excepcionalidade garantiu que a atenção do observador jamais se
perdesse do universo proporcionado por essas imagens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
19
CARVALHO, Vânia Carneiro de ; LIMA, Solange Ferraz ; CARVALHO, Maria Cristina
Rabelo de ; RODRIGUES, Tânia Francisco . Fotografia e História: ensaio bibliográfico.
Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 2, p. 253-300. São Paulo, 1994.
COSTA, Helouise. Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O
Cruzeiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Ano de Obtenção: 1992.
COSTA, Helouise. Entre o local e o global: A invenção da revista O Cruzeiro. IN Costa,
Helouise; Burg, Sérgio. (Org.). As Origens do Fotojornalismo no Brasil: Um olhar sobre
O Cruzeiro 1940/1960. V. 1, p. 8-31 1ed. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.
GERVAIS, Thierry. Witness to War: The Uses of Photography in the illustrated Press,
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