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*> Artigo elaborado a partir de comunicação no “X Encontro Anual da Formação Freudiana – Beleza e fei-

úra em psicanálise” (Rio de Janeiro, 2001).

O artigo mostra que existem várias noções de estética na obra de Freud: reino das atividades

associadas ao prazer obtido pelo próprio funcionamento do aparelho psíquico (1905);

doutrina da qualidade de nossos sentimentos (1919); ciência do belo (1929). Mostra também

ao menos dois usos do adjetivo “estético”: referente a “ideais/padrões de beleza” e sinônimo

de “formal”. Com isso, consolida-se a idéia, já apontada por outros autores, de que, em

Freud, estética e arte são campos diferentes, distinção que traz numerosas e importantes

conseqüências.

> Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave::::: Estética; estética freudiana; belo; experiência estética

In this paper Iargue that there are several concepts of aesthetics in Freud’s work: (a)

the realm of activities associated to the pleasure obtained by the psychic system

(1905); (b) the doctrine of the quality of our feelings (1919); and (c) the science of

beauty (1929). In addition, I show at least two uses of the adjective ‘aesthetic’ – one

refers to ‘ideas/patterns of beauty’, and the other is a synonym for ‘formal.’ In this

light, I concur with other authors who assert that for Freud aesthetics and art are

different fields. Such distinction bears numerous and important consequences.

> Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words: Aesthetics; Freudian aesthetics; beauty; aesthetic experience.

Estética e teoria da arteOs escritos sobre psicanálise e arte, ousobre a estética deste ou daquele psica-nalista pós-freudiano, não cessam decrescer. Parece um terreno em que as pes-soas se sentem espacialmente à vontadepara dispensar-se de maiores interroga-ções sobre os termos com os quais estão

trabalhando. Pouco se discute sobre umapergunta tão simples quanto fundamen-tal para os estudos nesta área: “o queFreud entende por estética?”. Veremosque uma releitura atenta dos textos freu-diano pode nos revelar, como de costu-me, várias e gratas surpresas.O exame das concepções de estética pre-

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sentes na obra de Freud mostra-se espe-cialmente profícuo quando se tem emmente uma distinção entre estética e teo-ria da arte. Segundo as pistas sugeridaspelo filósofo Hubert Damisch, seria pos-sível discernir duas vertentes no conjun-to de proposições freudianas – as idéiasreferentes ao belo (estética) e as concep-ções referentes à arte (teoria da arte) –,distinção que abriria caminhos para umasérie de novas reflexões sobre a teoriapsicanalítica e também sobre suas rela-ções com esses campos adjacentes.Um rápido parêntese para situar a histó-ria do termo estética. Ele provém do gre-go aisthesis (“sensação, sentimento”) e foireabilitado por Alexander Baumgarten,em 1750, com o intuito de unificar o tra-tamento dispensado a dois tipos de pro-blemas em voga nos debates filosóficosda Alemanha oitocentista: os relativos àsensibilidade e ao conhecimento sensível,de um lado, e os referentes à esfera daarte, de outro.

Baumgarten ressuscitou o termo grego

aisthesis a fim de remediar problemas nas áreas

da sensibilidade e da arte, os quais tinham se

tornado evidentes com o sistema de Wolff. O

racionalismo de Wolff reduzira a sensibilidade

à “confusa percepção de uma perfeição racio-

nal” e não deixara lugar para o tratamento fi-

losófico da arte. Baumgarten tentou solucionar

ambos os problemas ao mesmo tempo, afir-

mando que o conhecimento científico ou esté-

tico tinha sua própria dignidade e contribuía

para o conhecimento racional, e que a arte

exemplificou esse conhecimento ao oferecer

uma imagem sensível da perfeição. (Caygill,

2000, p. 129-30)

Em Kant, o termo é empregado em duasgrandes acepções. Grosso modo, na “Es-

tética transcendental” da Crítica da razãopura (1781), refere-se ao conhecimentosensível, sobretudo às formas a priori dasensibilidade (espaço e tempo); já na Crí-tica da faculdade do juízo (1790) amplia-se o alcance do termo, uma vez que osjuízos estéticos são aqui consideradoscomo aqueles que “concernem ao belo eao sublime da natureza ou da arte” (Kant,1790/1993, p. 13).Mas deixemos de lado as discussões sub-seqüentes sobre a natureza e os limites daestética (cf. Jimenez, 1997). De minha par-te, subscrevo a posição de Wolfgang Iser,segundo a qual “o estético não possuiuma essência própria. Ao contrário, estásempre relacionado a realidades contex-tuais que governam sua concepção” (Iser,2001, p. 40; grifos meus). A suposta “natu-reza” da estética identifica-se com a con-ceitualização de que ela é alvo nos diver-sos momentos históricos, e cada concei-tualização produz certas feições, opera-ções e relações contextuais (cf. Ibid., p.36). A estética teria passado por váriasdestas configurações a que Iser denomi-na “entrincheiramentos gerativos”, ao queeu acrescentaria que Freud bem poderiaser tomado como o núcleo de um impor-tante “entrincheiramento gerativo” na his-tória da estética.Voltemos às proposições de Damisch, au-tor que insiste na necessidade de diferen-ciação entre pensamento sobre a arte epensamento sobre a beleza, demonstran-do o quanto ela pode ser proveitosa parauma nova leitura de Freud. Em Lejugement de Pâris, ele denuncia a existên-cia de um automatismo grave e corri-queiro, qual seja, a tendência de reduzirestética às belas-artes, “tradição que nosfaz sistematicamente ler ‘arte’ lá onde o

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texto – de Freud, de Kant, mesmo de Pla-tão – diz ‘beleza’, e vice-versa” (Damisch,1997, p. 15). Ou seja, parece haver um es-quecimento generalizado de que a refle-xão sobre o belo pode ser autônoma emrelação à arte e vice-versa. Aliás, um dospoucos pontos consensuais nas leiturasda Crítica da faculdade do juízo é, justa-mente, a constatação de que Kant nãoconfunde as duas esferas, bem como aprimazia que confere ao belo natural emdetrimento do artístico. Como veremos,Freud também discrimina claramente osdois domínios.Entre nós, Benedito Nunes é um dos au-tores que assinala a distinção:

Assim, na acepção ampla para a qual todas es-

sas correntes confluem, a Estética é tanto fi-

losofia do Belo como filosofia da Arte.

Precisamos, no entanto, distinguir entre Esté-tica e Filosofia da Arte. A rigor, o domínio dos

fenômenos estéticos não está circunscrito

pela Arte, embora encontre nesta a sua mani-

festação mais adequada (...). Mas, por outro

lado, a Arte excede, de muito, os limites das

avaliações estéticas. Modo de ação produtiva

do homem, ela é fenômeno social e parte da

cultura. (Nunes, 1989, p. 15)

Em suma: a linguagem corrente legitima ouso de “estética” como sinônimo de teo-ria da arte, uso também referendado porinúmeros especialistas (Huisman, 1984;Pareyson, 1989); porém, aqui seguiremosa pista dos estudiosos que enfatizam a di-ferença entre os dois campos.

E o que tem Freud a ver com isso?O fato é que, conforme aponta Damisch,pode ser muito instigante assumir e ex-plorar as conseqüências de tal distinção,no que se refere aos escritos freudianos.Vejamos o porquê.

Como se sabe, a obra de arte é aí conce-bida conforme o modelo das “formaçõesde compromisso”, o que nos remete deimediato à presença de um conteúdo la-tente a ser interpretado. As fantasias pes-soais do artista criador, os mecanismosde “disfarce” e atenuação destas fantasias,o papel secundário atribuído às caracte-rísticas propriamente formais da obra, asfreqüentes comparações entre o artista eo neurótico (embora a obra, na maiorparte das vezes, seja pensada como alter-nativa ao sintoma), tudo isso dificulta àteoria da arte freudiana dar conta dasmanifestações artísticas mais contempo-râneas, bem como das discussões atuaisem história/crítica de arte. Por isso, pre-tendo em outro trabalho retomar a teo-ria freudiana da arte a partir de algumasreleituras a que foi submetida (principal-mente por parte de Ernest Gombrich eJean-François Lyotard), de modo a retra-çar as etapas de uma transição funda-mental: a passagem de uma postura emque a obra é tida como “decifrável” e “le-gível” para outra em que ela é concebidacomo meramente visível. Mas disto trata-remos em outra ocasião.No momento, eis a questão que se noscoloca: é possível distinguir, em Freud,um pensamento sobre o belo indepen-dente de suas teorizações sobre a arte?Se sim, onde nos levaria tal distinção? Ameu ver, o mínimo que ganhamos comesse empreendimento seria a possibilida-de de divisar na teoria freudiana algomais do que uma (simples) psicologia dacriação.Em Le jugement de Pâris, Hubert Damischexercita e demonstra os alcances de seupróprio projeto teórico, algo que ele de-nomina iconologia analítica: um “discur-

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que a beleza não-artística pareceria capazde acionar um prazer cuja natureza se faznecessário investigar, mas que talvezindependa dos conteúdos recalcados esuas transformações.Caberiam ainda muitas perguntas suscita-das sobretudo pelo belo não-artístico: atéque ponto é um atributo “real” do objeto,em que medida é compartilhado social-mente, quais os mecanismos que articu-lam percepção/juízo do belo e, principal-mente, a qualidade do prazer por ele sus-citado; afinal, haveria alguma especifici-dade metapsicológica no prazer estético?(ou, ainda, haveria alguma diferença en-tre o prazer estético proporcionado pelaobra de arte e pela beleza não-artística?).Em relação a esta última questão, Damischobserva que, também em O mal-estar nacultura, os prazeres oferecidos pela artee pela beleza partilham algo em comum:produzem efeitos semelhantes aos dadroga (embriagamento, narcose), metáfo-ra ainda mais sugestiva, porque Freud res-salta que ninguém conhece os mecanis-mos em jogo na intoxicação química.Penso que o núcleo organizador das re-flexões freudianas sobre a arte e o belo –núcleo de onde provém e para o qual seencaminha grande parte das questõesmencionadas até aqui – é o problema daexperiência estética. Creio que tudo oque Freud chegou a formular sobre artee beleza origina-se em uma preocupaçãocom a experiência psíquico-corporal porelas provocada, e não em um interesseabstrato pela beleza ou pela arte em simesmas.1 Impossível abordar aqui esteproblema tão complexo quanto mal deli-

1> Em qualquer caso, como bem observou Mezan (1986, p. 222), a experiência estética é invariavelmente

o ponto de partida para as análises freudianas de uma obra de arte.

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mitado, mas deixo esboçadas as seguintesindicações: a) seria preciso investigar asorigens histórico-filosóficas da problema-tização da experiência estética (cf.Tatarkiewicz, 1996); b) também seria ne-cessário acompanhar certas tentativas deelucidar o campo da experiência estética,seus contornos e especificidades. Um dosmais interessantes esforços neste sentidoé o de Jean-Marie Schaeffer, para quem aexperiência estética é uma experiência deprazer (embora possa ser acompanhadade desprazer) que independe do objetoque a aciona; tem a ver, isso sim, com umcerto tipo de relação que estabelecemoscom os objetos, relação esta caracteriza-da por uma atividade representacionalauto-suficiente (que tende a se manter enão deriva para outra ação sobre o obje-to). Ou seja, o prazer estético proviria damera atividade representacional – “na ex-periência estética, a atividade representa-cional é uma fonte de prazer autônoma”(Schaeffer, 1992, p. 35). Claro que seria ne-cessário discutir o que é esta atividade re-presentacional, mas talvez seja possívelreduzi-la à simples constituição/configu-ração mental de um objeto (não necessa-riamente oferecido pelos sentidos); e c)conviria, por fim, examinar com detalhesos vários patamares ou “momentos” (se éque se pode pensar em um processo tem-poral) do prazer estético, da percepção àformulação do juízo estético – para o es-tudo destes aspectos, as proposições deGuillaumin (1998) podem ser um bomponto de partida.Porém, antes de discutir o estatuto me-tapsicológico da experiência estética, ouainda, de especular sobre as relações en-tre o belo e a sexualidade ou a sublimação,é preciso se deter sobre uma questão pré-

via: afinal de contas, o que Freud enten-de por estética? Aparentemente desim-portante, tal indagação é um pré-requisi-to fundamental para a discussão de todase de cada uma das indagações anteriores,e por isso constitui o foco deste trabalho.

As várias noções de estética emFreudUma releitura atenta dos textos freudia-nos mostra que eles abrigam, no mínimo,três diferentes noções de estética, assimcomo ao menos dois usos do adjetivo “es-tético”.Engana-se quem pensa encontrar no“item F”, da segunda parte de “Múltiplointeresse da psicanálise”, alguma pista so-bre o assunto (cf. Freud, 1913, p. 1.864-1.865). Apesar das traduções sistematica-mente traduzirem este item como “O inte-resse da psicanálise para a estética” ou“do ponto de vista estético”, o título ale-mão é Das kunstwissenschaftliche Inte-resse – o interesse do ponto de vista deuma ciência da arte. Eis, aliás, um exce-lente exemplo do automatismo apontadopor Damisch, agora nos fazendo ler “esté-tico” onde escrevera-se “artístico”. Comoera de se esperar, todo o item é dedicadoaos principais temas que povoam a refle-xão sobre a arte: sua função para o artis-ta e o público, as forças impulsoras dacriação, o problema do dom, os proces-sos de constituição da obra e da fruiçãoartística, as relações entre obra e biogra-fia, o estatuto da arte e da realidade porela instaurada, e assim por diante.Passemos então ao que Freud entendepropriamente por estética. Uma primeiranoção se anuncia em O chiste e suas re-lações com o inconsciente (1905), aindaque não de maneira explícita. Freud não

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chega a formular uma “definição” de es-tética, mas emite várias opiniões sobre aespecificidade deste terreno e de suasmanifestações. No início do texto, sãoconvocados como interlocutores algunsfilósofos (Jean-Paul, Kuno Fischer, Theo-dor Lipps) que situam o chiste no domí-nio da estética, mas Freud acabará por seafastar desta tradição, principalmente noque diz respeito à finalidade da atividadeestética. Em Kuno Fischer, segundoFreud, a conduta estética se caracterizapelo fato de que, nela, nada demandamosao objeto:

... não lhe pedimos, sobretudo, a satisfação de

nossas necessidades, e sim nos contentamos

com o gozo que nos proporciona sua contem-

plação. Em oposição ao trabalho, a conduta

estética não é senão um jogo. (Freud, 1905, p.

1.030)

É por este motivo que o chiste pôde serincluído no âmbito da estética. Ora, algu-mas páginas adiante (ao longo das quaisvai se firmando a idéia de que a “alma” dochiste e de seu poder de desencadear oriso encontra-se na forma que reveste oconteúdo ideativo), Freud retoma essasreferências filosóficas, agora para pensarespecificamente a questão do prazer. Dizele:

... os filósofos (...) caracterizam a manifestação

estética pela condição de que nela nada que-

remos das coisas; não necessitamos delas para

satisfazer nenhuma de nossas grandes neces-

sidades vitais, e sim nos contentamos com sua

contemplação e com o gozo da própria mani-

festação. (Freud, 1905, p. 1.080)

Segue-se imediatamente uma citação deK. Fischer:

Esta classe de manifestação é a puramente es-

tética, que não repousa senão em si mesma e

tem sua única finalidade em si própria, com a

exclusão de qualquer outro fim vital. (Ibid.)

É neste ponto que se anuncia a discordân-cia, com Freud dizendo que se encontrade “quase completo acordo” com tais pa-lavras de Fischer. Para o psicanalista, emprimeiro lugar, não se pode afirmar quea atividade chistosa careça de objeto oude fim, “dado que se propõe inegavelmen-te a despertar o riso no auditório” (Ibid.).E aí introduz sua principal ressalva:

Não creio, ademais, que possamos empreender

nada completamente desprovido de intenção.

Quando não precisamos de nosso aparato aní-

mico para a consecução de alguma de nossas

imprescindíveis necessidades, deixamo-lo tra-

balhar por puro prazer; isto é, buscamos extrair

prazer de sua própria atividade. Suspeito que

esta é, em geral, a condição primeira de toda

manifestação estética; mas meu conhecimen-

to da estética é escasso demais para que me

atreva a deixar fixada esta afirmação. (Freud,

1905, p. 1.080-1.081)

Muitas questões entrelaçam-se aqui, demodo que o comentário extenso destetrecho nos desviaria do objetivo de ga-rimpar as várias acepções de estética aolongo da obra. Indicarei brevemente asdireções gerais de uma análise futura: a)toda essa questão em torno da atribuiçãode uma finalidade à atividade ou ao pra-zer estético (que teriam em si mesmos seuúnico fim) origina-se na filosofia kantiana.Um aspecto central desta discussão: seráque finalidade (Kant) e intenção (Freud)de fato são termos que se referem a umamesma problemática?; b) o problema dagratuidade da atividade estética (isto é, deseu “desinteresse”) é aqui postulado demaneira ambígua. Por um lado, a ativida-

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de é gratuita, pois não está atrelada a ou-tros interesses (em termos freudianos:não serve a nenhuma outra atividade vi-tal; em termos kantianos: não está a ser-viço do conhecimento ou da moral, nemhá interesse na posse do objeto que sus-cita o prazer estético). Por outro, Freudpostula que a produção de prazer é umafinalidade precípua do psiquismo (o seupróprio “motor”, neste momento da obra);assim, as atividades estéticas seriam uminstrumento privilegiado de consecuçãodeste objetivo, nada tendo, portanto, degratuitas ou desinteressadas. Ao concluirsuas observações a respeito, Freud levan-ta a hipótese de que a possibilidade deobter prazer a partir do mero funciona-mento do psiquismo é um quesito indis-pensável para caracterizar o caráter esté-tico de uma manifestação. Mantém-se,pois, a idéia de que a atividade estéticacarece de utilidade imediata, embora nãoseja desprovida de intenção; c) Jean-Philippe Catonné (1998) indica que, emrelação aos limites colocados por Kant, aposição freudiana se situa como nitida-mente “interessada”. Estaríamos não nodomínio do belo, mas naquele que Kantdefine como “agradável”, isto é, o prazerligado às características sensíveis e mate-riais do objeto (tanto mais porque a be-leza, em Freud, enraíza-se no sexual); d)há, ainda, as considerações tecidas porRenato Mezan, a propósito deste trecho,mereceriam ser comentadas com vagar;por ora, basta dizer que Mezan aproveitaessa questão do interesse/desinteressepara mostrar que Freud lança mão deconceitos filosóficos estabelecidos, mas

rapidamente os transforma, conferindo-lhes outro sentido: “Freud permanece,pois, tributário da tradição kantiana aoconsiderar que a estética e o prazer sãotermos da mesma série; mas subvertecompletamente esta mesma tradição, aoconceber o prazer não como soma har-moniosa das potências anímicas, e simcomo subtração efetuada por uma àsexpensas da outra. Ao mesmo tempo, otranscendental é eliminado do horizonte,para ser substituído pelo metapsicológico...” (Mezan, 1986, p. 227); e e) por fim,Freud nos lembra de algo que devemosmanter sempre em mente ao longo dessasinvestigações: aponta sua condição de lei-go no assunto e, portanto, alerta-nospara o caráter meramente especulativodessas hipóteses.

Passemos a um segundo entendimentoacerca da estética, introduzido na célebrepágina de abertura de “O sinistro” (1919).Vejamos: Freud diz que o psicanalista ra-ramente se sente motivado a empreenderinvestigações estéticas, ainda que não sepretenda restringir a estética à doutrinado belo, mas que a considere como dou-trina das qualidades de nossos sentimen-tos.2 Prossegue dizendo que a atividadepsicanalítica tem pouco contato com osimpulsos emocionais inibidos em seu fim,que formam comumente o material daestética. As exposições estéticas não tra-tam do tema do sinistro, pois

... preferem ocupar-se do belo, grandioso e

atraente, quer dizer, dos sentimentos de tom

positivo, de suas condições de aparição e dos

2> Diz o original alemão: Lehre vom Schönen einengt, sondern sie als Lehre von den Qualitäten unseres

Fühlens beschreibt (Studienausgabe, Band IV, p. 243. Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 1982).

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objetos que os despertam, desdenhando a re-

ferência aos sentimentos contrários, repulsivos

e desagradáveis. (Freud, 1919, p. 2.483)

O início deste trecho nos leva a uma pe-quena digressão. Freud endossa umaacepção mais ampla de estética como“doutrina da qualidade dos sentimentos”.Creio que é neste sentido que se pode in-cluir no terreno da estética o estudo dediferentes experiências emocionais; con-cordo com Guillaumin quando diz que,

... sem dúvida, é preciso estender também o

campo da experiência estética não apenas a

todos os objetos designados ou reconhecidos

coletivamente como ”belos”, mas ainda a expe-

riências ou a sensações mais sutis que formam

complexos representativos mais pessoais, liga-

dos ou não explicitamente à beleza como tal

(Guillaumin, 1998, p. 43).

O autor inclui nas experiências estéticasexaminadas por Freud o sentimento deestranheza e o de transitoriedade. Talvezpudéssemos incluir aí outros sentimentos,como o célebre “sentimento oceânico” etambém a sensação de irrealidade queacomete Freud quando de sua visita àAcrópole, em 1904, mas cuja análise sópublica trinta anos depois (cf. Freud,1936).Retornemos ao texto de 1919. Ele deixaentrever que o terreno da estética com-porta sub-regiões: dentro de um conjun-to maior (doutrina das qualidades donosso sentir) situa-se um círculo mais es-pecífico (doutrina do belo). Este é o âm-bito tradicionalmente privilegiado pelosestetas, interessados apenas nas condi-

ções de aparição e objetos que despertamos sentimentos positivos. Mas Freud estásupondo que os psicanalistas, ao se de-bruçarem sobre o tema do sinistro, estãotrabalhando numa seara relegada pelosestetas, mas que pertence igualmente àestética. A meu ver, a cartografia que sedesenha em filigrana é a traçada por Kantna sua Crítica da faculdade do juízo; e seisso for verdade, o sentimento de estra-nheza é aqui associado ao terreno do su-blime.3

Por fim, em O mal-estar na cultura (1929)encontramos talvez a mais circunscritanoção freudiana de estética. Na verdade,algumas dessas considerações retomamquase literalmente os acréscimos feitosem 1915 aos Três ensaios para uma teoriada sexualidade (1905), mas naquela oca-sião Freud acentuara a origem sexual dabeleza – tese central da estética freudia-na. No limiar da década de 1930, Freudaponta a fruição da beleza como um dosmétodos para evitar a infelicidade. Comovimos, refere-se à beleza em geral, dasformas e gestos humanos, dos objetosnaturais e paisagens, assim como das cria-ções artísticas e científicas; em suma, estáconsiderando a beleza “onde quer queseja acessível aos nossos sentidos e aonosso juízo” (Freud, 1929, p. 3.029). Acres-centa algo importante à discussão que ini-ciara no texto sobre o chiste: “A belezanão tem utilidade evidente nem é manifes-ta sua necessidade cultural; porém, a cul-tura não poderia dela prescindir” (Idib.).Em seguida, afirma: “A ciência da estética

3> Não poderia explorar aqui o “parentesco” entre o estranho e o sublime; de todo modo, parece-me

uma aproximação mais pertinente do que a sugerida pela contigüidade dos termos sublimação e subli-

me (kantiano).

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investiga as condições nas quais as coisassão percebidas como belas, mas não con-seguiu explicar a essência ou a origem dabeleza” (Ibid.; grifos meus) – aspecto quea psicanálise pode, segundo Freud, escla-recer. Portanto, estética aqui não é maisdo que ciência do belo (e reputada, nocorrer da argumentação, como ciênciafracassada e pretensiosa).Três das alusões incluídas no trecho pa-recem-me dignas de atenção posterior: abeleza das obras humanas em geral, inclu-sive das criações científicas; a menção aossentidos e ao juízo em separado; o para-doxo segundo o qual a beleza é imprescin-dível, embora inútil.Creio, portanto, que as três noções de es-tética que conseguimos divisar podem serassim sumariadas: a) domínio das ativida-des associadas ao prazer obtido pelo pró-prio funcionamento do psiquismo e semoutra finalidade que não esta (1905); b)doutrina da qualidade dos nossos senti-mentos (1919), que envolve o estudo dobelo mas não se reduz a ele; e c) ciênciado belo (1929).

O uso do adjetivoSobre o emprego do adjetivo “estético” eseus correlatos, creio que se pode distin-guir ao menos dois tipos de uso. A utili-zação mais freqüente é num sentido lato,em expressões como “ideais éticos e esté-ticos” ou “padrões estéticos”, cujo signifi-cado geral remete a uma consideraçãoaos ideais e padrões de beleza. Encontra-se implícita a idéia de que a beleza é umvalor “elevado” e socialmente comparti-lhado. É também em trechos como essesque vemos justificada a hipótese de Hu-bert Damisch, para quem o belo está emíntima conexão com o recalque (mais

particularmente, com o que incide sobreas pulsões parciais), como um dos diquesque se elevam contra o desenvolvimentodesses componentes. Em uma segundaacepção do adjetivo, ele é, inequivoca-mente, sinônimo de formal: “O poeta (...)nos suborna com o prazer puramenteformal, isto é, estético, que nos proporcio-na a exposição de suas fantasias” (Freud,1908, p. 1.348). Penso que é neste mesmosentido de prazer desencadeado exclusi-vamente pela forma que o adjetivo encon-tra-se associado aos ditos de espírito.Pareceria, à primeira vista, que na primei-ra série o estético estaria alinhado com orecalcamento e, na outra, com o prazer.Na verdade, creio que só pode ser conce-bido nesta dupla vinculação, como se ti-vesse, necessariamente, duas faces. A jus-tificativa desta dupla vinculação estariano axioma freudiano de que a beleza sefunda no sexual; resta saber como fica arelação prazer estético/recalcamento nocaso de concepções psicanalíticas sobrea beleza que não a vêem necessariamen-te como tributária da sexualidade (masesta já seria uma outra e interessantíssimahistória...).Por outro lado, e ainda em termos freu-dianos, o prazer estético (formal) é apre-sentado quase como sendo de “segundaclasse”, pois que de segunda ordem (subs-titutivo) e de menor magnitude (na medi-da em que a forma possibilitaria apenasum prazer preliminar).No entanto, cabe perguntar se tal prazerestético continuaria a ser consideradocomo de “segunda ordem” e “substituti-vo” no caso de derivar da contemplaçãoda beleza não-artística ou de obras dearte que prescindem de um conteúdo re-presentacional. Um dos horizontes mais

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Page 10: Sobre as várias noções de estética em Freud, Inês Loureiro

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amplos para o qual apontam essas refle-xões é, exatamente, o da possibilidade depensar o prazer estético em sua positivi-dade e em sua autonomia em relação aum suposto conteúdo ideativo a ele sub-jacente, sublinhando o relevante papelque pode exercer no funcionamento psí-quico. E isto também em termos coletivos:a ornamentação floral nos espaços públi-cos ou privados, o respeito pela belezanatural, o embelezamento do mundo,apesar de “inúteis”, são dos principais ín-dices de cultura de um povo (cf. Freud,1929, p. 3.035). “Útil” ou nem tanto, a be-leza nos é extremamente preciosa.Já a estética, bem, talvez não seja impres-cindível, embora importante para a com-preensão psicanalítica do humano; mascomo outras criações teóricas, decertopode ser bela – e este é um dos motivospelos quais a estética de Freud mereceser revisitada.

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Artigo recebido em maio de 2003

Aprovado para publicação em setembro de 2003

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