Série Vaga-Lume
NAS ONDAS DO SURFE
Edith Modesto
1 - edição - 2000
Editora Ática
Literatura Juvenil
Literatura Brasileira
Nas ondas do surfe e do bodyboarding
Edith Modesto
Como Edith Modesto consegue criar histórias tão apropriadas ao universo juvenil, usando
com desembaraço a linguagem dos jovens e revelando suas emoções mais íntimas?
Simples. Esse foi seu sonho praticamente desde a adolescência. Um sonho que precisou ser
adiado várias vezes. Primeiro porque ela precisou dar conta da criação de
seus sete filhos; depois porque teve de cuidar da própria formação e dedicar-se às atividades
profissionais.
Casada aos 16 anos, Edith recomeçou a estudar quando seu filho caçula fez
6 anos e entrou na escola. Completou o ensino médio junto com seus filhos mais velhos e
formou-se em Letras pela USP. Foi professora nas áreas de Comunicações
e Letras em diversas universidades, deu aulas em cursos de teatro, foi roteirista de vídeos
empresariais, criou uma empresa de comunicação. Até que resolveu afastar-se
por algum tempo de tudo o que fazia e realizar o ambicionado projeto de se tornar autora de
livros juvenis. Deu tão certo que, em apenas um ano e meio, aprontou
quatro romances, dentre os quais este Nos ondas do surfe, que marca sua estréia pela Editora
Ática.
Atualmente Edith dá aulas na Universidade Mackenzie, em São Paulo, e continua escrevendo,
pensando principalmente em um público muito especial: seus seis netinhos,
que em breve serão leitores de
suas obras.
Sumário
Prólogo
1 Esse professor é um "gato"!
2 As meninas são bodyboarders
3. Uma outra realidade
4 Um pequeno problema
5 A dúvida de Laureano
6 é Vamos à praia!
7 Os rapazes da Equipe Generation
8 Um fato desagradável
9 O Circuito Paulista de bodyboarding
10 Uma prancha diferente
11amos treinar?
12A inexperiência causa problemas
13 Um encontro inesperado
14 A rivalidade entre surfistas e bodyboarders!
15 Decifrando o código secreto - Marcelo entra pra tribo!
16 Os passeios de sábado à noite
18 Um ídolo do surfe
19 O medo de ser diferente
20. A surpresa
11, A meia verdade
21, E a culpa sobrou pra quem?
23. Agrava-se a rivalidade
24. A especialidade de Marcelo
25. Discussão na aula de matemática
26. A outra metade do abacaxi
27. Um menino colombiano
28. Nem só de pão vive o homem
29. Como Laureano descobriu o pó
30 A profissão de Joe
31, Como Joe descobriu o pó
32, Sem saída?
33, Um "complexo empresarial" organizado
34, O Triângulo Vermelho monta a armadilha
35, Laureano versus Feng
36 Suzie
37, A chantagem
38. Suzie e Joe
39. Vidas duplas
40. Uma boa idéia
41. Joe desvenda sua verdadeira identidade
42. O que aconteceu com Suzie?
43. O Campeonato Paulista
44. A disputa do título masculino
45. A vez das meninas
46. Vamos comemorar?
47. Suzie fica confusa
48. A decisão
49. Como vencer na Califórnia?
50. A festa da vitória
51. Outra vez?
52. /l of/#tocfe £/os surfistas
53.4 /ja//£/a c/0 Polícia Federal
54. Sacrifício por amor
55. Os preparativos para a viagem
56. Uma surpresa de última hora
Epílogo
Ao Lauro,
amado companheiro,
com todo o meu carinho.
Ao meu querido filho Renato,
escritor talentoso,
pelo grande incentivo.
Ao meu querido filho Flávio,
que ama o mar
e inspirou grande parte deste livro.
Prólogo
Rosália era uma mulher muito prática. Ela tentava descomplicar tudo e tinha um modo todo
seu de lidar
com o inexplicável. Como sempre dizia aos seus netos:
- Há pessoas cuja vida é em cor-de-rosa. Por exemplo, vocês: são amados... não lhes falta nada.
Já há outras cuja vida é em preto-e-branco.
A avó fazia uma pausa dramática e acrescentava com resignação:
- Assim é, e não adianta nada a gente ficar questionando sobre o porquê disso.
Depois desse "papo cabeça" (de acordo com os netos), Rosália sempre emendava um pequeno
sermão:
- A vocês dois, só falta dar valor ao que já têm! e divertia-se com a cara de tédio dos meninos.
Do ponto de vista de Rosália, podemos até dizer que esta história é uma parte da vida em cor-
de-rosa de Daniela e Marcelo - seus netos - e da vida em preto-e-branco
de alguns que, por acaso, cruzaram seus caminhos.
1 Esse professor é um "gato"!
Era final de inverno em São Paulo e já estava um calor abafado na 8a C. Um pouco por isso,
apesar de a classe estar lotada, poucos alunos assistiam, de fato, à
aula de português. A maioria cochilava, suspirava, conversava, paquerava, se coçava...
A voz do mestre - nem ele mesmo percebera - estava cada vez mais alta, a fim de superar o
burburinho que vinha do fundão.
Alguns alunos, sentados nas primeiras fileiras, esforçavam-se para acompanhar a matéria. Para
Daniela e suas duas melhores amigas, Helena e Lúcia, era fácil, pois
gostavam da aula quase tanto quanto apreciavam o novo professor.
"Meu Deus, que gato! E ele faz covinha quando sorri..."
O mestre virou-se para a lousa a fim de traçar um esquema.
- Ele não é uma graça? - cochichou Dani, empolgada.
- Muito velho e deve ser casado - respondeu Helena.
Daniela brincou:
- Hum... As uvas estão verdes, né, amiga?
- Como é? As uvas...
- É da fábula A raposa e as uvas, Lena. A raposa queria muito as uvas. Como não conseguiu
pegá-las... pôs defeito, fez pouco caso...
- Não é nada disso, sua chata! Não gosto mesmo de coroa.
Daniela acenou que sim e, olhando para o professor, avaliou consigo mesma:
"Ele deve ter uns 26 anos, se tiver... eu com 14..., mas todo mundo acha que aparento 16! Será
que é muita diferença?"
Mergulhada em sonhos, ela sorriu e nem percebeu que o professor interrompera a aula:
- Vocês aí atrás! Silêncio! Carlos! Sempre você, não é? Eu vou considerar matéria dada, hein?
"Pode considerar, cara. Essa porcaria de matéria me obriga a ler um monte de coisa chata. E
cada livro grossão
com uma letrinha bem pequenininha!", pensou Carlos,
arrepiado.
Mas logo se compenetrou da necessidade de ouvir o professor. Tinha voltado a estudar e
prometera ao pai que não perderia mais nenhum ano. Afinal, aos 16 anos, já
era para ele estar no ensino médio.
- Hoje, vamos conversar sobre o primeiro dos textos poéticos que nos falam sobre o homem
do século XXI.
"Sei. Não li. Poesia nem é coisa de macho, quanto mais do século XXI", pensou Carlos.
- Na poesia "O homem; as viagens", de Carlos Drummond, quem, chateado da vida na Terra,
começa a viajar para outros planetas? - perguntou o professor, olhando para
as primeiras fileiras de alunos.
- O homem, pró - respondeu Daniela, enrubescendo.
- Isso, Dani.
Carlos arrumou-se na carteira para enxergar melhor Daniela.
"Hum... Essa mina é jeitosinha... mas nerd... metida a saber tudo...", pensou ele.
- E que sentimento perdura no espírito humano depois de conquistar a Lua, os outros planetas
e até o Sol?
- tornou a perguntar o mestre.
- O tédio? - respondeu, timidamente, Lúcia.
- Isso mesmo, Lúcia. Por quê? Por que o homem se chateia na Lua, em Marte, Vênus, Júpiter e
até no Sol?
O silêncio atento que tomou conta da classe evidenciava o interesse dos que conheciam o
texto e a curiosidade dos demais.
"Por que um homem com essa coragem, vitorioso, não estaria feliz?", perguntava-se Carlos, já
arrependido por não ter lido o texto.
- Todos os lugares, planetas, ficam iguais... tudo vira rotina...? - respondeu, hesitando, um dos
rapazes.
- Muito bem! - avaliou o mestre. - Só que aí o homem fica sem saída, não é? Como ele poderá
sentir-se mais feliz?
O professor fez uma pausa dramática e instigou:
- De acordo com o poeta, o mal do homem não está no desconhecimento que ele tem de
lugares... Vocês concordam?
Silêncio na classe.
- Vamos recordar um trecho do final do poema. E o professor leu em voz alta:
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo:
- E aí? Só resta a viagem do homem para ele mesmo? - perguntou o professor.
Quando Carlos percebeu já tinha falado:
- Sim. Mas, também, em vez de ir estragar os outros planetas, por que o homem não tenta
conhecer, arrumar e preservar o seu, primeiro? Eu, por exemplo, como desportista,
me preocupo com as praias, o mar...
A classe toda, admirada, voltou-se para olhá-lo. Carlos ficou roxo de vergonha. Nesse exato
momento, para seu grande alívio, tocou o sinal, para a saída.
- Continuamos na próxima...
Nem deram tempo de o professor terminar a frase. Foi aquele atropelo, aquele empurra-
empurra, os alunos descendo as escadas aos pulos, ansiosos por liberdade.
Os bedéis gritavam sem nenhum sucesso:
- Calma! É proibido correr...
As três amigas ficavam sempre na classe conversando depois do sinal, enquanto arrumavam
suas mochilas.
Daniela era alta, magra, tinha olhos cor de mel e seus lindos cabelos castanhos com reflexos
dourados estavam compridos, batendo nos ombros. Helena, com sua
pequena
estatura, poderia ser considerada a mais linda das três. Loira, muito clara, tinha cabelos lisos,
curtos, e olhos azuis, herança da avó do norte da Itália. Lúcia,
sem dúvida, tinha um encanto especial. Estatura média, morena cor de jambo, cabelos pretos
e cacheados, olhos escuros, muito vivos e brilhantes.
- Cês viram o carinha? - perguntou Daniela. Preocupado com as praias... o mar...
- Eu notei - respondeu Lúcia. - Ele disse que é desportista... Qual será o esporte...?
- Deve ser natação. Cês viram os ombros...? - comentou Helena. - Até que ele não é de se jogar
fora!
- Ainda mais agora, depois que descobrimos a sua preocupação com o meio ambiente... -
concordou Daniela, rindo.
2 As meninas são bodyboarders
As três meninas eram amigas inseparáveis. Rosália, a avó de Daniela, tinha uma pequena casa
em Ubatuba - litoral norte de São Paulo -, e elas se conheceram lá.
Estudavam no mesmo colégio desde a 1 série e, quase sempre, passavam as férias juntas.
Um dia, Daniela levou para a praia uma prancha velha - ainda de borracha! - que tinha sido da
sua avó
Rosália. E foi assim que as três meninas interessaram-se pelo
bodyboarding.
Nesse mesmo dia, Daniela perguntou:
- Vó, por que aqueles ficam de pé na prancha, sem pés-de-pato?
- Porque eles praticam surfe, um outro esporte, meu amor.
A avó pensou um pouco e corrigiu-se:
- Aliás, os dois esportes são parentes... Veja que, nos dois, a pessoa tem de correr com a onda:
no surfe, em pé na prancha, sem pés-de-pato; no bodyboarding,
deitado
na prancha, com pés-de-pato.
com o passar do tempo, o interesse das meninas pelo esporte foi crescendo, crescendo, até
tornar-se uma mania, quase uma paixão. Se facilitassem, elas só pensariam
na sensação de liberdade, indescritível, de estar naquele aguão, entre o céu e a terra: ora o
abandono sensual de se deixar levar pela onda, abdicando do poder
de
escolher para onde, ora o domínio do turbilhão que parecia incontrolável, frente a frente com
o perigo, adrenalina a mil!
Elas acompanhavam tudo o que acontecia no esporte, pela TV e pelas revistas, e os brasileiros
campeões e campeãs mundiais eram seus ídolos. As paredes e as janelas
dos seus quartos pareciam suportes de arte de vanguarda; Tudo era muito colorido, forrado
com reproduções de manobras poderosas e fotos dos nossos superbodyboarders.
Cartazes de surfe, não se viam.
Várias vezes campeãs amadoras - sempre entre as seis primeiras colocadas, pelo menos -, as
meninas, agora, faziam parte de uma equipe profissional treinada por Alberto,
um ex-surfista.
Havia alguns meses, as três amigas conseguiram aquilo que era um sonho quase impossível de
todo desportista brasileiro: um patrocinador forte. O tio de Alberto,
o treinador da equipe, era o gerente da Generation do Brasil, uma das mais fortes marcas
americanas de bodyboarding.
Naquele mês, aconteceria a quarta e última etapa do Circuito Paulista. A competição apontaria
os campeões estaduais em cinco categorias: masculino e feminino de
Amador e Profissional, e Iniciante. A equipe estava muito bem posicionada no ranking da
categoria profissional, principalmente as meninas. O maior sonho delas era,
algum dia, representar o Brasil no exterior.
- Se a gente for bem no Circuito Estadual, você acha que dá pra conseguir uma viagem pra
fora? - perguntou Lúcia.
- Sem participar do Campeonato Nacional? Talvez... um campeonato americano de equipes... A
nossa marca é americana... - respondeu Daniela.
- Nem acredito em tanta sorte, menina - comentou Helena.
- Ha... mas não foi só sorte - retrucou Daniela.
- Não podemos desprezar o nosso esforço... O que já ralamos! Lavramos um tento, como diria
minha vó Rosália.
- Mas você esqueceu o mais importante: o nosso charme! - completou Lúcia, brincando.
- E não é que é importante mesmo? Ainda mais representando uma marca que é também de
roupas esportivas... - concordou Daniela.
E olhando para o relógio:
- To indo. Vou falar com vó Rosália e ligo pra confirmar a que horas a gente vai pra praia.
Certo, manas?
De longe, Daniela brincou, gritando para as amigas a tradicional saudação dos bodyboarders,
uma espécie de grito de guerra para que nunca abandonassem o esporte:
- Keep bodyboarding!
E ela foi para a saída encontrar-se com Marcelo, seu irmão que estudava na 7 série. Marcelo
tinha 13 anos e praticava surfe. Ou melhor, tentava...
Apesar do orgulho que sentia pelas vitórias da irmã, ele pensava:
"Afinal, bodyboarding é meio esporte de fracote... surfe que é esporte radical... só pra quem é
casca-grossa!"
Mas não confessava. E o medo da reação da irmã e dos amigos dela?
- Nós vamos hoje mesmo, né, Dani? - perguntou ele. - O disksurftá prevendo tempo
bom, com morras e o mo crowd pra amanhã!
- Vou tentar com a vovó, Ma! Cê tem razão! com um tempo lindo desses, as ondas vão estar
demais... Se a gente não madrugar amanhã na praia, nem vai dar pra
treinar,
de tanta gente na água!
3 Uma outra realidade
Na semana anterior, amanhecera um lindo domingo de sol em São Paulo.
Num dos mais aristocráticos bairros da capital, duas privilegiadas famílias da alta sociedade
paulistana divertiam-se à beira da piscina. Os dois homens, sócios
e muito amigos, tomavam uísque e conversavam.
Um deles era ruivo, elegante, freqüentador das altas rodas. Preguiçoso, trabalhava pouco e
não queria se amolar. O outro, bastante caseiro, era barrigudo e já estava
ficando careca. Era muito autoritário e trabalhador. Colombiano, apesar de se ter naturalizado
brasileiro havia muitos anos, ele continuava a estropiar o português
e falava com um forte sotaque espanhol.
Havia bastante tempo, os dois tornaram-se sócios e negócios bem-sucedidos tornaram-nos
proprietários de várias empresas. Entre elas, as mais rentáveis eram as duas
de importação e exportação. Essas empresas tinham sua atividade tão especializada, que só
exportavam e importavam produtos que exalassem um forte aroma, tais como
café, fumo ou pimenta-do-reino. Era de se estranhar...
Naquele domingo, os dois sócios tentavam resolver um problema:
- Eles querem um empréstimo, somente dois quilos de heroína! Acontece que, quando fomos
avisados, a distribuição já estava organizada como de costume - comentou
o ruivo.
- Empréstimo? Muy estranho...
- Também acho.
- Bueno. Hay que pedir para esperarem Ia nueva remessa, ora! - sugeriu o careca.
- Você sabe que não vai dar! Pode demorar... E, agora que conseguimos o acordo com o
Triângulo Vermelho... Você viu o trabalho que deu pra eles pararem de sabotar
a entrada da nossa mercadoria nos Estados Unidos e na França! Temos de demonstrar boa
vontade!
- S. Entonces no hay otra manera. Vamos enviar a cota de heroína de San Pablo.
Os dois sócios trabalhavam com drogas, porém a especialidade deles não era a heroína, mas a
cocaína colombiana. Havia pouco tempo, começaram a exportar também
heroína,
droga bem mais rentável. Os dois eram os chefes da sucursal brasileira do cartel de Cali, cidade
da Colômbia.
O problema que enfrentavam nesse dia era como atender a um pedido de empréstimo de dois
quilos de heroína para o concorrente: o cartel chinês do Triângulo Vermelho.
4 Um pequeno problema
Depois de decidirem mandar para a Califórnia a cota de heroína de São Paulo, o careca pegou
o celular e chamou Laureano, gerente e braço direito dos dois sócios:
- Laureano, soy yo. Necesito de usted. Venga prontamente a mi casa - e bateu o telefone.
"Esse bosta está no Brasil há muito mais tempo do
que eu e ainda não sabe português. . . Quando será que
vai parar de falar portunhol?", perguntou-se Laureano
irritado.
Jovem, de boa aparência, ele, que tambêm
era colombiano, orgulhava-se de falar a nossa língua perfeitamente.
Uma hora depois, um mordomo uniformizado
introduziu Laureano na varanda que dava para a picina. O careca levantou-se e pediu-lhe que o
acompanhasse
ao escritório:
- Laureano, tengo um pequeno problema para usted resolver. Necesito alguém que lleve dos
quilos de heroína pura asta Califórnia o mas rápido posible. És
mucho, mucho
importante... Será una delicadeza para nuestros amigos da Ásia...
- Mas... essa é toda a heroína que chegará na próxima semana... - respondeu Laureano,
esmerando-se na dicção para provocar o outro.
- Si - interrompeu bruscamente o careca. - Como usted vai resolver esto, yo no Io sé, ni quiero
saber. Pero, no admito erros, usted sabe. Toda Ia responsabilidad
es suja...
"Mas que desgraçado! Pequeno problema... responsabilidade suja. Eu sei que a
responsabilidade é minha, infelizmente... Sujo é o que você faz... Sempre querendo fazer
bonito à minha custa...", pensou Laureano, abaixando os olhos para que o outro não pudesse
perceber a raiva e a repulsa que sentia.
E era assim mesmo: quando as coisas saíam bem, o mérito era do outro... mas, coitado do
Laureano, se não dessem certo!
O careca, suado, abriu a gaveta da escrivaninha e pegou um papel:
- A encomienda deve ser entregue nos Estados Unidos, neste endereço, en Ias manos de un
emisario dei cartel chinês.
Usted mismo marca Ia data, o mas breve posible! Recuerde-se: su responsabilidad!
Em seguida, o chefão tocou uma campainha e o mordomo entrou para acompanhar Laureano
à saída.
5 A dúvida de Laureano
No dia seguinte, no elegante escritório da empresa de exportação, na parte nobre da avenida
Paulista, dr. Laureano dava tratos à bola para resolver a contento
o problema apresentado a ele por seu chefe, no final de semana:
"Pequeno problema! Meu Deus! Hoje à noite vou ter de enfrentar aqueles mafiosos orientais:
sempre tão calmos... dissimulados... Preciso explicar muito bem a falta
da heroína no próximo mês em carteados e vários bares prives do bairro oriental, a Hong Kong
paulista! E eles já pagaram pela droga..."
Laureano levantou-se de sua mesa e foi em direção a um quadro dependurado na parede. A
pintura abstrata, como era de se esperar, escondia um cofre. Levou o quadro
até sua mesa, abriu a gaveta e dela retirou uma chave de fenda. Em vez de ir em direção ao
cofre, desprezou-o completamente. Toda a sua atenção estava voltada a
desparafusar a parte de trás da moldura do quadro. Depois de algum esforço, retirou do
esconderijo um disquete.
Sentou-se em frente ao computador e, em poucos minutos, apareceu na tela uma lista de
pequenos traficantes independentes e de transportadores de drogas, com todas
as informações sobre cada um deles: pseudônimo, idade, endereço atualizado, histórico das
atividades passadas e presentes. Laureano imprimiu a lista.
Em seguida, passou a analisá-la, procurando alguém que tivesse o perfil adequado e,
principalmente, a oportunidade de transportar a droga para os Estados Unidos.
Mais da metade da lista já tinha sido vista, quando Laureano chegou ao nome Joe.
"Joe! Ele se encaixa perfeitamente... não tenho outro...", pensou ele, fazendo um círculo em
volta do nome.
E, satisfeito, chamou a secretária para começar o expediente do dia.
6. Vó Vamos à praia!
Ao chegar em casa da escola, conforme tinha combinado com as amigas e para desgosto de
sua mãe, Daniela foi para o telefone, antes mesmo de almoçar:
- Alô! Vó! Já cheguei! A que horas vamos pra praia?
- Já falou com sua mãe?
- Desde ontem, vó!
- Quantos vão?
- A equipe toda tem de estar lá. Foi tudo combinado com o Alberto. Os rapazes vão ficar com
ele na pousada...
- Isso, já sei. Estou perguntando quem vai no carro
conosco.
- A Lu e a Leninha, como sempre.
- bom. Para não pegar muito sol... Também não é bom viajar à noite... Vamos sair às quatro.
Tudo bem?
- Maravilha, vó! Temos treino amanhã de manhã...
- Cuidado para não esquecer nada. Passo mais cedo para vocês arrumarem as pranchas no
bagageiro. Tchau!
E Rosália desligou, sorrindo.
Professora aposentada, viúva, Rosália adorava seus únicos netos, Daniela e Marcelo, e ficava
feliz por proporcionar-lhes a alegria do esporte e da companhia dos
amigos.
Quando Rosália e o marido construíram a casa de dois quartos e sala em Ubatuba, quase não
se falava em surfe, muito menos em bodyboarding. Eles somente queriam
um lugar bonito e sossegado para passar as férias com a família.
E acertaram na escolha. Ubatuba e suas ilhas possuem mais de oitenta praias, cada uma mais
linda que a outra, algumas delas ainda selvagens e de difícil acesso.
com o passar dos anos, as ondas grandes de Itamambuca - uma pequena praia próxima à casa
de Rosália - foram atraindo surfistas e bodyboarders, até que ela
tornou-se
o que é hoje: um dos pontos para surfe e bodyboarding mais famosos do estado, usado para
campeonatos, inclusive profissionais.
7 Os rapazes da Equipe Generation
Na pousada, mal despontara o dia quando Alberto chamou os rapazes:
- Gente! Vamos! O despertador já tocou!
Alberto tinha 22 anos. Era alto, musculoso, de olhos castanhos e cabelos quase loiros de tanto
sol. Calmo, compenetrado, o treinador aparentava mais idade do que
realmente tinha, talvez porque estivesse sempre muito sério. Mais ainda agora, depois de ter
conseguido o patrocínio para a equipe, pois sua responsabilidade como
treinador aumentara. Além disso, ele estava cursando educação física.
Alberto cuidava com o maior carinho de todos os integrantes de sua equipe: do corpo e do
espírito. Por um
lado, ele planejava os cuidados com o corpo: exercícios adequados e alimentação balanceada
(proteínas, verduras e muito líquido). Além disso, a equipe treinava
natação, esporte de base para quem pratica surfe e bodyboarding, e também as manobras do
esporte, sempre tentando inovar. Por outro lado e não menos importante,
Alberto dava apoio psicológico à turma - uma palavra de incentivo, um conselho - e,
principalmente, sabia escutar com interesse os desabafos dos momentos de crise.
Quando mais novo, tinha sido surfista profissional. Impedido de competir por ter levado um
tiro na perna durante um assalto, ele, que nunca tinha sido bodyboarder,
começou a trabalhar com eles. com o passar do tempo, apaixonou-se pelo bodyboarding, fez
muitos amigos e acompanhou os altos e baixos do esporte.
Conhecido por todos como o Beto dos esponjas, também era o presidente da APB - Associação
Paulista de Bodyboarding - e considerado um dos responsáveis pelo grande
sucesso do BB no último ano.
Meia hora depois de terem-se levantado, com suas pranchas debaixo do braço, os três rapazes
e o treinador já estavam a caminho da praia, conversando, animados:
- O tempo tá demais. Promete ondão - comentou Guigo.
Guigo era claro e musculoso. Preocupava-se em apresentar um visual original e exibia, com
orgulho, um condor em pleno vôo, tatuado no peito, além do cabelo, sempre
com cortes e cores os mais inesperados. Nesse dia seu cabelo, ou melhor, a faixa espetada no
alto de sua cabeça, como a de umpunk inglês, era verde.
- Firmeza, mano! - concordou Luisão. - Parece mesmo que vai dar morras, cara!
Luisão era o mais alto dos três, mulato, quase negro de tanto sol, e de temperamento nervoso
e impulsivo.
Não gostava muito de estudar e, no ano anterior, com esforço, terminara a 6 série. Pensava
seriamente em seguir carreira profissional, por isso dedicava-se com
afinco ao inglês.
Pouco depois, passaram pelo camping:
- Esse camping é legal! Sempre fiquei aí. Sabe que a pousada vai ficar uma nota? O camping é
menos da metade! - criticou Marco.
- E ficar no camping é um confortão, né? Deus me livre! Eu largo a equipe - brincou Alberto.
- Eu também - concordou Guigo.
- São uns "filhinhos de papai" mesmo... - disse Luisão, com desprezo. - Santo patrocínio, né?
Nunca se viu rabo igual...
Alberto divertia-se. A verdade é que ele tivera de tomar uma atitude para viabilizar o Circuito
Paulista daquele ano. A primeira etapa do circuito valera pontos,
até para o Campeonato Brasileiro. No entanto, tudo parecia ir muito bem, quando houve a
desistência do patrocinador.
com grande esforço e a ajuda dos principais BBs paulistas, Alberto conseguiu convencer a
Generation do Brasil a patrocinar as outras três etapas do circuito,
já que, da sua equipe, prometia ele, provavelmente sairia pelo menos um campeão paulista.
- Conseguimos o patrocínio graças ao nosso poderoso treinador! - sempre ironizava Marco.
Marco era o mais calado, pensativo, e estava cursando o primeiro ano de engenharia. Quando
as pessoas, admiradas, perguntavam como ele conseguira tal façanha, ele
respondia em voz baixa e calma:
- Passei no vestibular porque praticava bodyboarding. O esporte me deu a tranqüilidade para
aproveitar bem tudo o que eu sabia!
8 Um fato desagradável
Pouco depois de os rapazes chegarem, o carro de Rosália estacionou debaixo de uma árvore,
na praia deserta.
Os rapazes logo viram que alguma coisa desagradável devia ter acontecido, pois Daniela veio
chorosa ao encontro deles.
- O que foi? - perguntou Marco, preocupado.
- Minha prancha nova desapareceu.
- Como? - perguntou Alberto, surpreso.
- Não dá pra saber direito - respondeu Rosália. Todas estavam encostadas na parede da
varanda, onde sempre ficam...
- A minha capa é pra duas pranchas... só a prancha que você trouxe pra teste sumiu! - explicou
Daniela.
- Que coisa estranha! - comentou Alberto.
- O portão fica fechado com o cadeado... não dá pra ver nada da rua... - continuou Lúcia.
- bom... É verdade que é uma porcaria de cerquinha de madeira... - criticou Marcelo, o irmão
de Daniela.
- É. Nunca mais! Devíamos ter deixado as pranchas na sala... mas, quem iria imaginar? -
defendeu-se Daniela.
- As pranchas estavam todas juntas... mas roubaram somente a dela - reforçou Helena.
- Claro! A prancha mais nova! - comentou Rosália.
- Que baita azar! O cara ficou um tempão escolhendo a prancha... e levou logo a dela! -
ironizou Marcelo, rindo para ver se melhorava o clima.
Helena argumentou:
- Minha prancha nova desapareceu.
- Você brinca, mas é estranho, Ma. Uma das minhas pranchas era importada... muito mais
cara... Meu pai trouxe da Califórnia quando voltou das férias... Essa, o
ladrão não quis!
- É. A que desapareceu foi logo aquela que o Beto acabou de trazer pra gente treinar. É pró
final do campeonato... Puxa, adorei aquela prancha... - dramatizou Daniela,
inconformada.
- Havia alguma diferença entre a prancha roubada e as outras? - investigou Rosália.
- Claro, né, vó! - respondeu Daniela. - Essa tem o design novo, personalizado...
com o meu nome e a marca do nosso patrocinador...
- Estranho que o ladrão não tenha levado a capa com as duas... - insistiu Rosália. - Afinal,
Marcelinho tem razão. Ele teve o trabalho de abrir... tirar uma das
pranchas de dentro... Além disso, levar a que tinha marca e nome do dono!
- É isso aí, vó. Que ladrão burro! com a marca vai ser difícil ele usar... vamos pegar logo, logo,
esse desgraçado! - comentou Marcelo.
- Paciência - disse Alberto, tentando acalmar Daniela. - Essas coisas acontecem. Antes isso que
coisa pior... Afinal, deu tempo de testar... ela foi aprovada no
teste... Faremos outra pra você. Eu trago com as outras pranchas da equipe, na semana que
vem.
E dirigindo-se a todos:
- Gente, não vamos deixar esse contratempo estragar completamente nosso final de semana!
A turma concordou.
Para encerrar o assunto, Alberto consultou Rosália:
- Nem vale a pena dar parte do roubo... o que você acha?
- Pra mim tudo bem. Acho que não vai adiantar nada mesmo... - respondeu ela.
9 O Circuito Paulista de bodyboarding
Com todos mais calmos, Rosália foi caminhar à beira d'água, antes que o sol esquentasse.
Marcelo pegou sua prancha de surfe e correu para o mar.
- Marcelinho! Não abuse, hein! - gritou-lhe a avó.
- Galera! Sete pés... mar lisão... ondas buraco... avaliou Luisão, doido para entrar.
com aquele mar, ideal para bodyboarding, foi um verdadeiro exercício de liderança para
Alberto organizar o treino.
- Calma, gente! Vamos à chamada! - brincou ele. Rindo, o treinador foi apontando para cada
um:
- Primeiro, as damas: Dani, Leninha e Lu.
Todas fizeram uma mesura mal-alinhavada como saudação.
- Agora, os cavalheiros: Guigo, Luisão e Marco. Cada um deles batia na palma da mão de
Alberto:
- E aí, truta!
- Firmeza, meu - respondia ele. - Agora, galera! Disciplina... de colégio de padre!
Todos riram.
- Vamos fazer uma reunião rápida pra conversar sobre coisas importantes, inclusive sobre as
pranchas. Depois, partimos para a preparação física.
A equipe sentou-se em círculo na areia, e Alberto, no centro da roda, fez um resumo dos
acontecimentos importantes do Circuito Paulista, até aquele dia:
- Turma, estamos a duas semanas da última etapa do Circuito Paulista e muito bem
posicionados! Parabéns!
Todos se entreolharam, satisfeitos.
- Vamos fazer uma retrospectiva - continuou o treinador -, a primeira etapa aconteceu no final
de abril, aqui mesmo em Itamambuca, e foi moleza pras meninas. Conhecem
esse mar como a palma da mão e assumiram a liderança do ranking.
Os rapazes começaram a gritar, em cadência:
- Minas! Minas! Minas!
As três meninas ergueram-se e levantaram os braços em sinal de agradecimento. Alberto
continuou sua exposição, sorrindo:
- Em maio, na Praia do Tombo, Guarujá, no conjunto, os rapazes se saíram melhor e Guigo
ficou na liderança.
Todos gritaram:
- Guigo! Guigo! Guigo!
Guigo ergueu-se e, com a mão na altura do coração, curvou-se, agradecendo.
Mais uma vez, Alberto continuou:
- A terceira etapa, no final de julho, foi em Camburi, São Sebastião.
Luisão escondeu o rosto entre os braços. O treinador olhou para ele e, com condescendência,
aliviou a repreensão:
- Tá certo que a etapa aconteceu num mar antibodyboarding e era dificílimo conseguir alguma
manobra de pressão, mas a ansiedade deu no que deu: Luisão se machucou
com aquela interferência boba e ainda perdeu pontos. A nossa sorte foi que Marco acabou em
segundo.
Alberto fez uma pausa e finalizou:
- A quarta e última etapa será novamente aqui em Itamambuca, daqui a duas semanas.
Teremos de aproveitar os feriados da Semana da Pátria para treinar... todos já
com as pranchas novas...
E, com ênfase, fez a previsão:
- Da nossa equipe sairão os campeões paulistas deste ano, tenho certeza!
Alegres, mas já impacientes, os futuros campeões começaram a levantar-se, dançar, fazer
caretas horríveis e jogar areia uns nos outros.
- Certo, manos e maninhas, vamos deixar pra comemorar depois... agora vamos sentar... o
tempo tá passando... - pediu Alberto. - Quem deseja comentar alguma coisa
importante?
Daniela levantou o braço.
- Tá com a palavra, Dani.
- A nossa maior dificuldade, acho... to falando pelas meninas, é não poder treinar todos os
dias... - reclamou ela. - Fora o Luisão, que é santista...
- Tá certo que em julho passamos o tempo inteiro dentro d'água... a gente treinava todos os
dias... mas, na maioria das equipes, todos moram em frente à praia...
estamos em desvantagem! - completou Lúcia.
- Ainda bem que temos a Semana da Pátria antes da final - lembrou Daniela.
10 Uma prancha diferente
Alberto mudou de assunto:
- Quero perguntar sobre a prancha nova... parece que passou no teste. Pelo menos os
resultados foram muito bons... Dani está com a palavra.
- Achei demais! Mas todos experimentaram... - e Daniela olhou para a equipe,
interrogativamente.
-Algum comentário, turma?-perguntou o treinador.
- A prancha facilita manobrão, cara! Chega bem até o lip e dá impulso... - avaliou Guigo.
Alberto, satisfeito, respondeu:
- Foi essa a nossa intenção. O bico mais fino facilita chegar até a crista da onda... Desenvolvi
essa prancha na minha oficina, baseado na minha experiência como
atleta e como shaper. Nessa, tentei aliar o desempenho à qualidade.
Fez uma pausa para enfatizar a importância da sua criação:
- Em primeiro lugar, a matéria-prima do bloco e o processo de fabricação são de primeira.
Como resultado, temos um corpo flexível e que nunca amolece na água quente.
- Sabe, cara, uma vez fui pró Ceará, pico de Icaraí... Calor, 40 graus na sombra! Dava pra dobrar
a prancha!
- exagerou Marco.
- É isso aí, mano. O verão brasileiro derrete até asfalto! - confirmou Alberto, sorrindo, e
continuou: - Depois, aliadas ao material de primeira, as medidas são
personalizadas. Por exemplo, pra Leninha, vulgo Tampinha, chegará uma pranchinha... Pró
Luís, vulgo Luisão, vem um pranchão.
Todos riram.
- Pronto! Já pegaram no meu pé de novo! Por que mamãe não passou fermento em mim? -
brincou Helena, lisonjeada por ter sido alvo da atenção do treinador.
- Além disso - continuou Alberto -, o design básico das pranchas foi criado para imprimir
incrível velocidade e projeção na onda.
Olhou para Guigo:
- Guigo acabou de confirmar isso, lembram? Ah! E cada integrante da equipe ficará com duas
pranchas: uma para ondas pequenas, outra para mar grande.
- Isso é profissional, manos! - comentou Luisão.
- É frescura de quem tem patrocinador pra financiar - brincou Guigo.
- Finalmente - completou Alberto -, o fato de as pranchas serem stringer board... o tubo
interno atravessando a prancha...
- Pensei que com isso a prancha ia ficar muito pesada... - interrompeu Helena.
- O peso é praticamente o mesmo - defendeu Alberto - e, além de reforçar as qualidades
anteriores, acrescenta a da durabilidade: as pranchas ficarão sempre retas
e em excelentes condições de uso. Resumindo: velocidade, força e proteção iradas!
- Nossa, cara! Depois dessa propaganda toda, eu compro! - brincou Luisão.
Guigo resolveu tomar a palavra:
- Pra dizer a verdade, no início, fiquei meio inseguro... essa história de mudar de prancha...
Escolhi a minha com a rabeta que eu estava acostumado... escolhi
as medidas, mas eu nunca tive uma com stringer... essa história de tubo interno atravessando
a prancha... dá mesmo a impressão de que pesa. Depois, a gente acostuma
com uma prancha, aí muda... Vai dar cocô, eu pensei...
- Larga de ser besta, Guigo! Tá querendo "zicá", é? Quando a gente pode ter uma prancha de
design exclusivo e tudo... Claro que é melhor - argumentou Marco.
- Você parece bebé que não aceita trocar o bico da mamadeira! - reforçou Lúcia, rindo.
Aí Guigo ficou ofendido:
- Pára de tirar sarro da minha cara, Lu! Não se pode falar nada... O que eu quis dizer foi...
parece que vai dar certo.
Alberto resolveu intervir:
- Todos deviam fazer como Guigo. Falar sobre os medos ajuda a fazer eles desaparecerem.
Depois, é como eu disse: se não gostarem, poderão mudar... a gente reestuda...
poderão usar a velha... o que vai mandar são os resultados. O que importa é que a amostra
com a prancha da Dani foi boa, gente!
E então mudou de assunto:
- Esponjas! Vamos lá, coragem! Quase 8 horas! Agora, aquecimento: vamos correr e fazer
abdominais. Depois, água.
- Qual manobra vamos treinar hoje? - perguntou Lúcia.
- Tivemos sorte. Como vocês estão vendo, hoje o mar está irado. Cheio de onda buraco,
formando rampa, fechando... Vamos então tentar o aéreo - respondeu Alberto.
- Só, meu! To doidão pra voar! - gritou Luisão, entusiasmado.
Todos riram. A manobra não era fácil e, apesar de muito treino, nem sempre se saíam bem.
Mas nenhum deles esperava o empurrão que os levaria a resultados incríveis,
ainda naquela manhã.
11 Vamos treinar?
Depois da preparação física, caíram na água. Alberto comentou com Rosália:
- A senhora viu? As ondas estão a cada minuto maiores e lisas... dignas de um pôster! É o
terral.
- Terral? - estranhou ela.
- O vento soprando da terra para o mar, dona Rosália. E tudo isso só pra nós! - completou ele,
mostrando a praia, que continuava deserta.
Todos tentavam o aéreo. Na cabeça de Daniela, ecoavam as instruções de Alberto: "...
velocidade, acelerar a prancha na parede da onda; ir em direção à crista da
onda como se fosse dar uma batida e subir com tudo! No ar, impulsionar a prancha, até
segurá-la acima da cabeça, quase como se fosse um pára-quedas..." Mas seus
pensamentos foram logo abafados por incríveis sensações: um frio na barriga... um arrepio
percorrendo o corpo de cima a baixo... prazer e sensação de poder e liberdade,
indescritíveis!
Na descida, Daniela também tentou seguir as instruções de Alberto:
"Recoloque a prancha embaixo do corpo e segure-a firme, inclinando-a para cima para não cair
de bico. Tente ficar na linha certa da parede da onda pra não perder
a próxima seção!"
Parecia fácil... mas não era! Ela tinha voado bonito! Como um peixe alado surgindo da espuma
- segundos de surrealismo fantástico - mas, na descida, a prancha escapuliu
de suas mãos... e tudo acabou em ralada ardida!
12 A inexperiência causa problemas
Dolorida, Daniela estava saindo da água para descansar, quando um bando de surfistas,
alegres e barulhentos, entrou correndo no mar.
Marcelo, entusiasmado, foi para o lado das pranchas de fibra. Ele era surfista, queria ficar com
surfistas!
Rosália percebeu e, desviando sua atenção do livro que lia, sorriu com a lembrança de uma
piada maldosa que o neto lhe contara.
"Você quer ver um surfista morto de vergonha, vó? Já no Havaí, com patrocínio, ele é obrigado
a tirar fotos publicitárias pegando onda com um bodyboardl"
Daniela, por sua vez, também viu Marcelo ao lado dos surfistas e ficou um pouco apreensiva
por causa da inexperiência do irmão. Sentou-se na areia, observando. Um
surfista moreno desceu a onda, manobrou e tornou a subir, andando por vários segundos
horizontalmente sobre a crista da onda...
"Nossa! Esses caras são muito bons! Cavada de mestre, em seguida um floater de vários
segundos... Devem ser profissionais...", pensou ela, admirada.
Recostou-se na areia e ficou apreciando a beleza do mar e das evoluções dos surfistas. Mas, de
repente, aconteceu o que ela temia: marinheiro de primeira viagem,
Marcelo acabou cometendo uma intervenção brava!
"Meu Deus! Olha o Ma dando uma rabeada num loiro... Xii! O surfista caiu da prancha... tomou
a maior vaca!"
O surfista loiro era um profissional! Não estava acostumado a se dar mal e, como ela esperava,
saiu, possesso, atrás do menino. Daniela, imediatamente,
levantou-se
para ir defender o irmão.
Antes que o alcançasse, porém, notou que um rapaz moreno interveio:
- Calma, mano! Não foi por mal! O menino tá aprendendo...
- Falta de respeito, ô meu. Não to aqui pra brincar com criança. To aqui pra treinar... Vê se esse
moleque desaparece da minha frente, senão faço dois dele! - respondeu
o loiro, nervoso.
Em seguida, virou-se e entrou na água. com rápidas remadas, o loiro voltou para o pico em
busca das ondas, sem olhar para trás.
Marcelo, muito constrangido, ficou mudo, agradecendo a Deus por ter mandado um anjo da
guarda de última hora para salvá-lo.
- Como é, meu chapinha! Assustou? O Alemão é boa gente... só é um pouco esquentado... logo
passa... e o rapaz sorriu amigavelmente.
13 Um encontro inesperado
Nesse instante, chegou Daniela. Quando vinha vindo, de longe, reconheceu o surfista moreno.
- Carlos! Você aqui! Não sabia que você surfava... Ele é meu irmão - explicou ela, apontando
para Marcelo, que ia se recobrando do susto.
"Ó quem taí A nerd jeitosinha da minha classe... filinha de papai... sabe-tudo...", pensou Carlos
e cumprimentou, admirado:
- Oi, mana! E o que você faz aqui tão cedo?
O olhar de Carlos, disfarçadamente, avaliou e aprovou Daniela de maio.
- Chegamos ontem à noite. A gente vem todo final de semana... Estamos treinando para o
Circuito Paulista de BB... To aí com toda a equipe e o Beto...
- Alberto? Não brinca. O Beto, treinador dos esponjas? Ele é meu amigo! E você... tão
estudiosa... nunca imaginei que...
Daniela sorriu:
- Tudo tem sua hora, não acha, Carlos? Estudo... passeio... esporte... Há um ano conseguimos
um patrocínio forte...
- Eu ouvi falar sobre a Equipe Generation... só não sabia que você...
Ele olhou meio sem jeito:
- A gente não tem muito conhecimento do que acontece no seu esporte...
Daniela achou melhor sair daquele terreno delicado:
- Carlos, você acredita que uma das minhas pranchas, novinha, foi roubada? - contou. - Um
mundo de pranchas e o ladrão escolheu logo a minha.
- Nossa! Que ódio... E agora?
- Tenho outras... mas aquela era o modelo das que o Beto vai trazer para a equipe... Pra usar
na final do Campeonato Paulista. Atrapalhou bastante!
Carlos acenou concordando e confessou:
- Sabe, Dani, alguns desses meus amigos também estão no circuito profissional de surfe. Foi
sempre o meu sonho... O problema é que acaba atrapalhando os estudos,
você sabe... - Olhou preocupado para ver a reação dela. - Mas agora eu resolvi entrar no
Circuito Amador da Associação Brasileira de Surfe. Depois, vamos ver. Se
eu for bem, gostaria muito de participar do mundial por equipes, nos Estados Unidos. Os
rapazes estão animados e tenho um primo que estuda na Califórnia...
- Que coincidência! Ontem mesmo eu estava conversando com as meninas... Nosso sonho é a
equipe participar do campeonato, nos Estados Unidos. O Alberto já nos inscreveu,
mas ainda está negociando a grana com o patrocinador. Acho que tudo vai depender dos
resultados do Campeonato Paulista. Se formos bem...
- E os estudos? O esporte não atrapalha você? perguntou o rapaz.
- Não sei... parece que a gente tem de fazer o que gosta. Aí a gente arranja tempo... Eu estou
no Circuito Paulista e, cê sabe, não sou má aluna...
Carlos não quis ficar por baixo e tentou impressionar Daniela:
- bom. Nos estudos, estou tentando me recuperar, mas vou bem no esporte e... também
aprendi com o Beto a fazer pranchas de surfe... Além de surfista, sou shaperl
- Também amador? - brincou ela.
- Mais ou menos - respondeu ele, sorrindo. - Comecei lixando, botando quilha... Agora, já faço
pranchas pra mim e pra alguns amigos.
Dani não conseguia desgrudar os olhos do rapaz, nem esconder sua admiração.
"E eu que pensei que esse cara fosse um boboca..."
- Vocês voltam aqui amanhã? - perguntou ela, mas logo se arrependeu:
"Que mole escancarado que to dando... vergonhoso... Ele vai pensar que estou a fim dele."
- Amanhã? Às 7 horas estamos chegando.
- Então a gente se vê. Tchau! - despediu-se ela.
- Falou - respondeu Carlos e olhou para Marcelo, que, cansado de esperar a conversa comprida
terminar, estava fazendo um castelo com a areia molhada.
- Vamos, maninho? - convidou Carlos.
- Só, meu! - respondeu o menino. E olhou para a irmã, todo orgulhoso.
Marcelo não tinha a menor idéia, mas Daniela sabia que Carlos estava enfrentando os amigos,
ao levar seu irmão, principiante, de volta ao pico.
14 A rivalidade entre surfistas e bodyboarders
Por causa desse encontro entre surfistas e bodyboarders, aconteceu de, naquela manhã, a
praia de
Itamambuca ser palco de um espetáculo muito interessante. Tanto que Rosália deixou cair o
livro que estava lendo. Admirada com a beleza das evoluções, para ela custava
acreditar que aquela era a equipe cujo desempenho conhecia tão bem:
"Olha só, que danadinhos! Como estão melhorando! Beto deve ser um ótimo treinador!"
No entanto, não era difícil desconfiar do motivo dessa atuação aprimorada. Os BBs estavam
preocupados em não disputar ondas com os surfistas, por dois motivos:
primeiro, para não despertar rivalidades; segundo, por respeito à maior experiência deles.
Afinal, muitos eram profissionais havia mais tempo! Mas, justamente por
perceber que tudo estava contra eles, os BBs sentiram-se provocados e mostraram até o que
não sabiam que sabiam. Voaram de tudo quanto era jeito. Como Marcelo diria:
só dava manobrão!
"Essa turma é casca-grossa!", pensou Carlos, admirado. Mas poucos surfistas concordaram
com o seu
julgamento. com algumas honrosas exceções, os surfistas não deram o braço a torcer. Na
verdade, egoístas, tanto os surfistas como os BBs queriam as boas ondas somente
para eles.
Mais tarde, chegaram outros surfistas, BBs e alguns banhistas:
- Tá na hora de "vaza", gente! - disse Alberto, chamando a equipe para ir embora.
- Certo, mano. Olha o crowdl O mais complicado agora não é completar o drop, mas desviar
das pessoas boiando no inside - concordou Luisão, em "surfes". Agora mesmo,
quase pego um velho gordo...
Era verdade. com muitas pessoas no mar, ele, por pouco, não pegou um senhor boiando na
parte mais rasa. O surfe e o BB podem ser esportes perigosos para os banhistas.
Sendo assim, satisfeitos com o desempenho da equipe naquela manhã, mas, muito cansados e
sem condições ideais de treino, resolveram ir embora.
15 Decifrando o código secreto
Como de costume, Marcelo sentou-se na frente com Rosália, enquanto as três meninas iam no
banco de trás do carro.
No caminho, o menino, entusiasmado, contou para a avó sobre seu novo amigo.
- Vó! Ele tem 16 anos! O cara detona o lip e mesmo com ondas quebra-coco, cê viu né?,
aquelas ondas que fecham inteira, com força, mais no raso? Ele pega as melhores
e descobre a entrada de minitubos fechadões! E ele tá me ensinando, vó! - completou,
orgulhoso.
- Que bom, Marcelinho! E você viu a equipe da sua irmã, que beleza? Eles voavam de tudo
quanto era jeito! A coisa mais linda...
- É. Eles melhoraram... - comentou Marcelo, um
pouco enciumado.
- Ma, afinal, o que vocês chamam de lip? - perguntou Rosália.
- É a crista da onda, vó - respondeu o menino,
impaciente.
- E esse tal de quebra-coco... o que é mesmo? - tornou a perguntar Rosália, sem se dar por
achada.
- Vó, você não aprende nunca! É a última vez que eu explico. Sabe, shorebreak em inglês? - E
continuou sem esperar resposta. - É a onda ou a seção da onda que quebra
rápido, perto da praia, com muita força, e fecha
inteira.
- Ahnn..., sei - respondeu, conformada, a avó.
- Mas, viu? Ele tá me ensinando... Ah! E livrou a minha cara, depois que pratiquei uma
interferência boba... O surfista loiro virou uma fera...
Rosália acenava afirmativamente, sorrindo.
- Vó, e cê acredita que, depois disso tudo, ele ainda me levou junto de novo... A tribo odeia
haole...
- Marcelinho! Assim também não! Você está falando grego!
- Vó, eu não sabia que era grego... Pensei que era havaiano...
- É brincadeira, menino! Eu só quero dizer que não entendo o que você está dizendo..., como
antigamente aconteceu com os povos conquistados pelos gregos da Antigüidade.
Eles não entendiam a língua dos conquistadores...
Rosália vislumbrou a fisionomia de enfado do neto e foi para os finalmentes:
- Me desculpe a ignorância - disse com ironia. E completou, um pouco irritada: - O que eu
quero saber é: o que quer dizer
haole!
- É como os havaianos chamam os surfistas estrangeiros que vão ao Havaí, vó... mas, no Brasil,
é como xingam alguém que quer se passar por surfista.
- Entendi. É mais ou menos o mesmo que "prego" para os bodyboarders...
Marcelo olhou para a avó, intrigado.
- Foi Daniela que me explicou - disse Rosália, rindo. - "Prego" é aquele que vai à praia com a
prancha lotada de desenhos escandalosos, bem "cheguei"... só pega
ondas de meio metro... no meio do... - olhou para o neto com ar interrogativo - ... crowd?
Marcelo riu, confirmando com a cabeça.
- Mas... - continuou Rosália - se desagrada aos colegas... alguém inexperiente como você... por
que Carlos os enfrentaria por sua causa?
- Não disse que ele é meu amigo, vó? Foi com a minha cara, ora! - respondeu o menino,
impaciente.
Rosália não se convenceu muito e ficou um pouco preocupada com a história.
16 Maneio entra pra tribo!
"Afinal, Marcelo só tem 13 anos!", lembrou Rosália. "Que interesse um rapaz de 16 poderia ter
por ele? Estranho..."
Mas logo afastou esses pensamentos da cabeça, dando lugar a outro que a fez sorrir.
"Desde que o Ma resolveu ser surfista, ele tenta falar à maneira deles... Daqui a pouco, lá em
casa vai ser como na Torre de Babel do Velho Testamento... ninguém
vai entender ninguém!"
Nesse momento, Marcelo pediu:
- Vó! O Carlos me convidou pra sair com ele hoje à noite. Na praia... vai ter fogueira, pipoca e
papo de surfe. Não volto tarde...
- Você vai, Dani? - perguntou Rosália, olhando pelo espelho.
Antes que ela pudesse responder, Marcelo se adiantou:
- Imagine, vó. Ela não é da tribo... e também... não foi convidada... - completou o irmão, em
tom de falsa piedade.
- Tudo bem... - respondeu a avó meio a contragosto. - Mas, muito cuidado, viu, Marcelinho?
- Vó, eu não sou mais criança! Que coisa!
No banco de trás, enquanto as amigas trocavam impressões sobre o treino da manhã, Daniela
não falara uma só palavra até aquele momento e continuou calada durante
todo o percurso. Ela pensava:
"Sempre considerei o Carlos um moleque: burro, vagabundo, ignorante, sem respeito... será
que eu estava
enganada? Sua atitude hoje na praia defendendo o Ma... Sua preocupação com o futuro... E
como surfa bem!"
Mesmo sem querer, ela o via:
"As pernas grossas e fortes, equilibrando-se na prancha... os cabelos negros dançando ao
vento... o jogo dos quadris dirigindo a prancha... um deus grego!" As mãos
de Dani já estavam deslizando docemente por aquele peito moreno, musculoso..., quando um
tranco brusco a acordou do devaneio. Tinham chegado.
Dali a pouco, Marcelo, Lúcia e Helena começaram a discutir por causa do banheiro, enquanto
Daniela, deitada na rede, balançava-se: pra lá, pra cá; pra lá, pra cá...
Ela sentia uma aflição funda apertando seu peito. Mudou de posição na rede. Piorou. Agora, a
ansiedade estranha foi invadindo... invadindo... até tomar conta do
seu corpo todo.
"Ele convidou o Ma para hoje à noite... Que inveja!... Não sei como vou agüentar até amanhã...
Se ele não estiver lá, eu morro!"
E Daniela até assustou-se com a voz da avó:
- Dani! Venha tomar banho pra almoçar! "Não sei o que deu nessa menina hoje..."
17 Os passeios de sábado à noite
A noite, o céu pintou-se de estrelas e, amenizado pela brisa marítima, estava um calor gostoso.
com exceção de Daniela, que continuava esquisita, de acordo com a avó, os jovens,
animadíssimos, não viam a hora de sair. O grande problema das meninas era a maquiagem,
o cabelo, qual roupa escolher...
- Você acha que short, camiseta e sandálias brancos vai parecer uniforme de enfermeira? -
perguntou Lúcia.
- Não. Fica parecendo mais é uniforme de babá respondeu Helena, escondendo o riso.
- Sua chata!
- Gente! Olha meu cabelo! Já tá parecendo espiga de milho! - exclamou Helena, aborrecida. Ela
sentia o maior orgulho de seu cabelo loiro.
- Desse jeito vamos chegar tarde. Vamos, que amanhã ajudo você a fazer um banho de óleo -
respondeu, impaciente, Daniela.
- Nossa! Que deu em você?
Mas Daniela, que sempre confidenciava tudo, tudo, às amigas, fechou-se em copas:
"Se eu falar pra elas do Carlos, vou fazer papel ridículo. Imagine! Quantas vezes criticamos os
imbecis do fundão... ou melhor, como nós mesmas inventamos, os 'indiotas':
uma mistura de imbecis com idiotas. Não vai dar!"
- Posso saber pra onde as menininhas vão? - perguntou Rosália.
- Vamos pró Bar Boate 45 Graus - respondeu Helena.
- Como é? Bar Boate 45 Graus? Qualquer alusão sexual é mera coincidência, né? - comentou
Rosália, rindo.
- Vó! Imagine! É claro que o nome é por causa do calorão que faz aqui!
- Sabe, dona Rosália, o ponto de agito de Ubatuba, desde o verão passado, é lá - explicou
Lúcia.
O bar funcionava numa mansão, à beira da praia, no centro da cidade, e lotava a partir da
meia-noite. A moçada dançava e se divertia a valer em seus vários ambientes,
com direito até a banho de piscina.
Logo depois que as meninas saíram para ir ao bar, chegou Carlos.
- Tchau, vó! - despediu-se Marcelo.
- bom passeio! Ele traz você pra casa?
- Claro, né, vó - respondeu Marcelo, impaciente. Ele não se agüentava de orgulho por seus
novos
amigos.
18 Um ídolo do surfe
E na praia, os dois encontraram os surfistas sentados na areia, em torno de uma pequena
fogueira.
Marcelo, tendo Carlos do seu lado direito, logo percebeu que, próximo a ele, do lado
esquerdo, sentara-se o Alemão. Como era de se esperar, o menino ficou um pouco
ressabiado. Pouco à vontade, ouvia calado, mas interessadíssimo: "Só rola papo de surfe!",
pensava ele, maravilhado. No entanto, Marcelo ainda não sabia que a reunião
daquela noite era para homenagear um deles.
O herói da noite era o Duda Vasconcelos. Ele voltara em grande estilo às competições,
conforme prometera havia dois anos. Depois de aparecer na mídia contando os
problemas que tivera com drogas e a dificuldade para superá-los, ele sagrara-se campeão
pernambucano Master do ano anterior e ficara em quarto lugar no Circuito
Brasileiro Profissional.
Depois desses feitos, Duda, um rapaz simples e até tímido, tornara-se um ídolo do surfe. Todos
queriam vêlo, saber de sua experiência e ouviam-no com muito interesse
e orgulho.
- Mano! Como você se sente sendo campeão, logo depois da sua volta? Como conseguiu isso? -
perguntou Carlos, representando o grupo.
- Treinei muito durante o ano todo e comecei a fazer coisas que eu não fazia antes: malhar,
fazer regime balanceado, enfim, continuar a me tratar...
- Você continua pensando no Circuito Brasileiro, né? - perguntou Alemão.
- Esse ano já to começando forte, concorrendo em todos os campeonatos... sinto que estou
com nível pra faturar o Circuito Brasileiro. Além disso, quero manter
o meu título na Categoria Master do meu estado... mas o brasileiro vai ficar difícil - e, olhando
para Carlos. - Está despontando gente que vai me dar trabalho...
Todos riram.
- Puxa, cara... - disse Carlos, encabulado. - Não to com isso tudo... isso falado por você...
- Eu observei, maninho. Você tem um estilo original e irado... Você promete!
Para esconder o orgulho que sentira com os elogios de um de seus ídolos, Carlos perguntou:
- Conta, Duda. A galera quer saber: o que você tem feito além de malhar e o cuidado com o
rango? Não precisa preparo especial? Tanta velocidade... arrepiar nas
ondas!
- Tenho um treinador... mas, sabe? Acho que o meu maior problema não era o físico, nem a
comida... Era nervoso. Muita adrenalina nas baterias... acabava em merda.
- Será que ainda era efeito das drogas que você usou?
- perguntou o Alemão, sem nenhum tato.
Mas Duda não se ofendeu e respondeu com a maior naturalidade:
- Acho que não... é diferente de "fica na lâmpada"... sempre ligado, não sei... Eu era assim,
mesmo antes das drogas... Depois, já tem bastante tempo que parei com
elas... penso que sempre foi ansiedade, insegurança mesmo...
Duda levantou a cabeça e sua voz ficou mais forte:
- Hoje em dia, fiz uma aliança com Deus, gente. Antes de entrar na água e durante as baterias,
eu rezo... essa conversa com Deus me deixa calmo, seguro, e passo
pela bateria como se estivesse num free surf. Sabem? Como se não estivesse competindo?
Ele fez uma pausa, mas os outros permaneceram em silêncio. Carlos disse baixinho a Marcelo:
- Duda e Beto, o treinador da sua irmã, são amigos e já surfaram juntos. Os dois tiveram
problemas: Duda com as drogas e Beto com a perna... Pena que ele não pôde
vir hoje...
Marcelo acenou que sim.
Duda continuava respondendo às perguntas dos colegas:
- ... eu estou com uma prancha muito boa. Ela corresponde às manobras que quero fazer.
Vocês sabem como uma boa prancha, adequada ao seu tamanho e ao mar, é importante!
Fez outra pausa e voltou ao passado:
- Outra coisa ruim que me acontecia, manos, é que eu só "tomava toco" das gatas... isto é,
levava fora daquelas que valiam a pena... Pra mim, só dava Maria Parafina!
- Aquelas interesseiras, que grudam nos campeões
- cochichou Carlos para Marcelo.
- E mesmo assim - continuou Duda -, quando eu comecei a cair no ranking, elas se foram.
Duda interrompeu-se, por um momento, para continuar com um sorriso, misto de orgulho e
timidez:
- Agora vou dar uma notícia em primeira mão pra tribo. Até o final do ano, to fazendo uns
planos...
vou casar com uma mina... eu gosto muito dela - confessou ele.
Todos bateram palmas e, nos cumprimentos, quase o desmontaram com os tapas nas costas.
19 O medo de ser diferente
Em seguida, a conversa diversificou-se. Um dos rapazes estourou pipocas numa panela de
ferro e a bacia corria de mão em mão. De repente, um outro cheiro sobrepujou
o das pipocas. Marcelo começou a sentir... Era um aroma estranho...
O Alemão aspirou longamente e passou o cigarro para ele:
- Quer fumar um?
Marcelo hesitou. Esperto, sabia que não era um cigarro qualquer; mas, mesmo assim, para não
se sentir inferior, diferente dos outros, ele aceitou. A preocupação
com sua imagem era tanta, que nem percebeu vários surfistas somente passando o cigarro de
maconha adiante, sem nenhum problema.
"Imagine se eles descobrem que não gosto de fumar, nem cigarro comum... vão achar que sou
um bebê!", pensou ele, aflito.
Pressionado por esses pensamentos, Marcelo deu duas pequenas tragadinhas e passou a
droga. No entanto, como não estava acostumado, foi o suficiente. Ele ficou engasgado,
vermelho, agradecendo ao escuro da noite e fazendo a maior força para não tossir.
Logo, logo, Marcelo sentiu-se alegre, solto... Toda a sua preocupação sumiu e, com ela, seus
reflexos, sentido de direção... discernimento... Sentia como se sempre
tivesse pertencido àquele grupo. Meio atordoado, as vozes pareciam vir de longe... pedaços de
frases...
- As ondas estavam pequenas, mas abrindo uma boa parede pras manobras...
- As ondas estavam show... o tubo veio na hora certa...
- Chegou uma frente fria... eu logo vi que as ondas iam pra mais de 2 metros!
- Em Sunset... Eta praia pra dar susto na gente! Passei o maior sufoco! Perdi minha prancha
num mar grande e imperfeito... séries que chegavam a 15 pés...
De repente, pensamentos estranhos, caindo para o erótico, passaram pela cabeça de Marcelo:
"Nunca pensei que o fogo queimando a lenha pudesse ser tão bonito! A labareda vermelha
lambendo o tronco, abraçando... quente... excitante..."
Como todos precisavam levantar-se cedo para o treino, algum tempo depois despediram-se:
- "Vamo vaza", maninho - chamou Carlos. Marcelo levantou-se cambaleante e rindo sem parar,
o que o desequilibrava ainda mais. Quem disse que conseguia andar em linha reta? Carlos teve
de guiá-lo até a caminhonete.
- Não sabia que essa praia era tão, grande... que vontade de um sorvetão com calda de
chocolate quente... escorrendo... que sede...! - dizia Marcelo.
- Chapadão, hein, amigo? Acho que você nunca tinha puxado um béqui... Só não sei o que sua
irmã vai pensar disso... - comentou Carlos. E pensou: "O pior é que pode
sobrar pra mim!"
Por sorte, quando Marcelo chegou em casa, sua avó e as meninas dormiam profundamente.
Ele entrou e foi direto atacar a geladeira, sem perceber que se esquecera de
trancar a porta da frente.
20 A surpresa
No domingo, Marcelo levantou-se mais cedo do que de costume. Não dormira muito bem,
preocupado com a bobagem que cometera na noite anterior.
"Eu nem gosto de fumar... Só pra não passar por maricás... merda!"
Pegou um refrigerante na geladeira, umas bolachas e foi para a sala. De repente, estranhou
alguma coisa. Encostada à parede...
"Estou maluco ou... parece a prancha da Dani", pensou.
Levantou-se com a boca cheia de bolacha, chegou perto e custou-lhe acreditar! Era de fato a
prancha roubada da irmã!
Marcelo chegou perto e custou-lhe acreditar! Era de fato a prancha roubada da irmã!
Marcelo disparou pelo corredor afora e, soprando farelos para todos os lados, acordou a irmã
e a avó aos gritos:
- Dani! Vó! A prancha da Dani! O ladrão devolveu! Todas correram para a sala. Examinaram a
prancha:
perfeita!
- Acho que ele nem usou! - comentou Marcelo.
- Que loucura! - exclamou Helena.
- Não deviam ter mexido na prancha! - repreendeu Rosália.
- Por quê? Impressões digitais? - perguntou Lúcia, rindo.
- Você está brincando, mas aqui há pegadas... respondeu a avó, abaixada, examinando o chão.
- E não é que tem mesmo!? - exclamou Daniela, admirada. - Há umas marcas de barro...
- Parecem de ténis... - sugeriu Helena.
- Vamos pegar papel e lápis e colar o desenho dos solados... às vezes... depois vamos ver de
onde pode ser esse barro. Afinal, nem choveu... - sugeriu Daniela.
- Vamos pensar - disse Marcelo. - As pranchas estavam encostadas na parede da sala, onde eu
mesmo as coloquei.
- Isso quer dizer que o ladrão entrou aqui na sala, enquanto a gente dormia - concluiu Lúcia. -
O portão estava com o cadeado e a porta da frente estava trancada...
- Então ele tem a chave dessa porta - declarou Rosália, examinando a fechadura. - Como pode?
Está intacta!
Marcelo assustou-se, pois se deu conta de que se esquecera de trancar a porta. Mas ficou
quieto.
- Ladrão esquisito, não? E destemido! Arriscar-se desse jeito para devolver a prancha... -
comentou Helena.
- Deve ser alguém que consideramos amigo... brincadeira ou maldade... - sugeriu Rosália.
- Concordo. O roubo, seguido da devolução da prancha, parece brincadeira, mas... isso cheira a
sadismo comentou Daniela. - Alguém que não gosta de mim... quer se
vingar de alguma coisa... me odeia e quer me fazer sofrer... - completou , ameaçando cair no
choro.
- Ou não gosta de nós! Roubar a sua prancha pode ter sido uma escolha ao acaso, Dani. Depois
que roubou, devolveu a prancha, só pra enlouquecer a gente - sugeriu
Lúcia.
21 A meia verdade
Marcelo, preocupado, ouvia tudo calado, até que criou coragem:
- Sabe, gente! Tenho uma coisa séria para dizer. Acho que sei quem foi...
Todos os olhares voltaram-se para ele.
- Foram os surfistas. Eles não gostam de bodyboarders...
- Que idéia, Marcelo! - defendeu a avó. - Carlos, que também é surfista, até intercedeu por
você ontem...
Daniela interferiu, concordando com a avó:
- Isso já é preconceito! E logo de você que se diz um deles, Marcelo?
- E se for uma brincadeira de mau gosto do grupo todo? Os surfistas não gostam mesmo muito
de nós. Todo mundo sabe... Esta casa já é conhecida como "a casa dos bebés..."
- disse Lúcia.
- Uma molecagem...? Até que é uma possibilidade aceitável, acho - disse Rosália.
Na mesma hora, para surpresa geral, Daniela interferiu, defendendo os surfistas:
- Imagine, vó! Eles... eles não são moleques... - titubeou ela. E vendo o espanto de todos,
emendou:
- Pelo menos... nem todos - e sorriu amarelo.
Claro que ela pensava em Carlos. Mas Marcelo, ainda com raiva do que o surfista loiro lhe
fizera, e precisando pôr a culpa
da bobagem que aprontara em alguém, completou
a vingança:
- Alguns deles, Dani, como aquele Alemão, não só são moleques, como são vagabundos de
praia e maconheiros!
A afirmação surpreendeu a todos.
- É feio presumir alguma coisa e afirmar como verdadeira só para se vingar, Marcelo! -
repreendeu Rosália.
- Você está fazendo igual aos que estamos criticando...
O menino ficou ofendido e quis se defender de qualquer jeito:
- Não é nada disso, vó. Alguns são maconheiros mesmo. No dia da reunião na praia... a erva
correu solta... eles até me ofereceram...
Alguns dizem que uma meia verdade chega a ser pior do que uma mentira. Talvez seja mesmo,
pois Rosália ficou fuzilando:
- Que desgraçados! Além de drogados, oferecerem droga para uma criança... - exclamou ela. -
Dá vontade de dar parte à polícia!
- declarou, indignada.
22 í a culpa sobrou pra quem?
Daniela, pasmada, pensou, desiludida:
"Como Carlos me enganou! com aquela cara de anjo, amiguinho, falso com ele só! Quase
fiquei gostando dele... Por isso que
não passa de ano..."
Quanto mais Daniela se achava ludibriada, traída... mais raiva sentia.
Marcelo, que tinha feito uma careta ao ser chamado de criança, pensou:
"Meu Deus! E agora? Como vou sair dessa enrascada?"
- Bem. Hoje não podemos fazer nada... mas isso não vai ficar assim. Na próxima semana,
vamos descobrir quem está fazendo
isso conosco - declarou Rosália.
- Lembrem-se! Temos uma pista!
- Qual? - perguntou Helena.
- Claro! As pegadas que vovó desenhou - lembrou-se Daniela.
- Sim. E já descobri, comparando com o tênis do Marcelinho - declarou Rosália. - São da marca
Tyke.
- Xii, vó. Furou. Tyke é a marca que mais tem... comentou Marcelo, desanimado.
- Só que há um detalhe que ainda não contei a vocês.
- E Rosália fez uma pausa para valorizar a descoberta: Havia pegadas lá fora também... e de
duas pessoas!
- Como, vó?
- Eram tênis diferentes... pessoas que não estavam juntas. Parece que um se escondia do
outro, como para espiar... algumas
eram pegadas pequenas... acho que de criança.
- Nossa, vó! Lendo pegadas? Cê parece índio! brincou Marcelo.
Todos riram, concordando.
- Mas e essa agora. Uma criança? - estranhou Daniela.
- Isso reforça a hipótese de que é uma brincadeira de mau gosto... - concluiu Rosália, dando o
caso por encerrado.
No entanto, mais tarde, ela surpreendeu-se pensando: "Roubar a prancha num dia... devolver
intacta no outro... Sem nenhum
motivo... Estranho, muito estranho!"
23 Agrava-se a rivalidade
Nessa manhã de domingo, quando o carro de Rosália chegou, Alberto, os rapazes da equipe de
BB e os surfistas já estavam
na praia. Rapidamente, as meninas entraram
na água. Marcelo, ressabiado, ficou com elas.
Assim, quem olhasse para o mar veria dois grupos tão separados, que pensaria haver,
dividindo-os, aquela cordinha de náilon
que delimita as raias nas piscinas olímpicas:
de um lado, os BBS; de outro, os surfistas.
As ondas estavam mais cheias do que no dia anterior, proporcionando momentos para
manobras radicais. Daniela batia no lip
e girava co a onda, como um parafuso,
já com sua prancha nova, milagrosamente recuperada.
Carlos, que também tinha chegado atrasado, entrou correndo na água para juntar-se aos
companheiros. Na remada, ao passar
próximo a Marcelo, acenou amigavelmente.
O menino, envergonhado, fingiu que não o tinha visto.
Rosália, como de costume, depois de caminhar pela praia, começou a ler.
com o passar do tempo, a ondulação, de boa, tornou-se média, não proporcionando nenhum
exercício radical naquele dia. Como
disse Marcelo:
- Nenhuma onda alucinante está rolando no pedaço, vó. Não dá pra fazer nenhuma manobra
selvagem.
No entanto, só a presença de Duda bastou para animar os surfistas a darem tudo,
aproveitando ao máximo as ondas que apareciam.
Eles rasgavam, davam batidas em série
na parte de trás da onda... Carlos até conseguiu um minitubo e, ao sair dele, aproveitou a onda
até o fim.
De repente, Alemão tentou surfar já atrasado e acabou atrapalhado no degrau da onda.
Marcelo presenciou tudo e,
com a irresponsabilidade própria da idade, riu.
Para quê?
O surfista, mal-humorado com o insucesso da manobra, viu e foi para o lado de Marcelo,
muito ofendido. No momento certo,
bem no fundo, onde se formam as ondas,
o loiro aproximou-se e fez uma interferência clara de remada em cima do menino, inclusive
puxando-lhe a cordinha. Marcelo, ainda inexperiente, tomou um caldo violento!
Bebeu baldes d'água e perdeu a prancha a uma distância respeitável da areia.
Só com muito esforço, ele conseguiu recuperar sua prancha e safar-se do sufoco. Prendendo o
choro, Marcelo, muito assustado,
saiu do mar e foi sentar-se embaixo
de uma árvore, ruminando o ódio.
Rosália, entretida com a trama interessante do livro que lia, não viu a interferência. Logo
depois do incidente, sem entender
muito bem o que acontecera, ela assistiu
de longe ao esforço do neto para nadar até a praia e recuperar sua prancha. No entanto, como
tudo acabou bem, a avó sentiu
que não era o momento de perguntar nada,
nem de consolá-lo.
A volta para casa foi quase em total silêncio. Quase, porque Rosália ainda tentou quebrar o
gelo:
- Marcelinho? Rosnado como resposta.
- Deixa pra lá - disse ela, sorrindo, e adiou o assunto para uma hora mais favorável.
Lúcia e Helena, cansadas do treino, cochilavam. Daniela, além do cansaço, estava triste por
não ter tido oportunidade de
falar novamente
com Carlos. Marcelo, por
sua vez, nunca se sentira tão mal em toda a sua vida. Era uma mistura de tristeza, vergonha e
raiva; uma sensação
amarga de impotência por não ter podido revidar a covarde vingança do outro, mais poderoso
do que ele.
Durante o almoço, comentaram sobre o treino da manhã e ele acabou desabafando.
Naturalmente, todas sentiram-se um pouco
ofendidas, solidárias
com o caçula.
Como conseqüência, esse novo incidente entre Marcelo e Alemão reforçou a desconfiança em
relação a todo o grupo de surfistas.
E como uma das bases do preconceito
é a generalização, o episódio também serviu para acirrar mais ainda a animosidade dos
bodyboarders contra todos os que praticam
surfe.
24 A especialidade de Maneio
Depois do almoço, as meninas resolveram subir para São Paulo mais cedo, pois a estrada
estaria mais livre. Na segunda-feira,
a primeira aula era de matemática. Não
podiam perdê-la.
Começaram a arrumar tudo para a viagem de volta. As mulheres, num instante, lavaram a
louça e arrumaram as mochilas, separando
as roupas úmidas num saco plástico
e os pés-de-pato em outro.
Marcelo, como sempre, estava encarregado das pranchas: lavava, secava, colocava-as nas
capas, prendia todas
com cuidado no bagageiro. Como ele mesmo dizia:
- É a minha especialidade!
Vivia brigando com as meninas por causa dos cuidados com as pranchas:
- Mulher é assim mesmo! Vocês ficam horas passando creme nos cabelos, escovando... Mas a
prancha, quando chegam da praia,
largam no sol... nem pra jogar uma agüinha
nelas!
Ele exagerava e as meninas davam o troco:
- Já vai cuidar da namorada, é? Tem biqueira, tem protetor de rabeta... Banhinho de meia hora
quando chega da praia... capinha
acolchoada... Hum...
- Acho que ele até dorme com ela! - e riam. Depois de tudo pronto e as pranchas bem
amarradas, pegaram a estrada para São
Paulo.
25 Discussão na aula de matemática
Segunda-feira, já iniciada a aula, Carlos entrou afobado e foi sentar-se no seu lugar do fundão.
Ao passar por Daniela,
tocou-lhe o braço e sorriu. Daniela amarrou
a cara e nem sequer olhou para ele. Em seguida cochichou para as amigas:
- Vocês viram? Fingido, sem-vergonha, cafajeste... Age como se nada tivesse acontecido!
Carlos ficou completamente desconcertado. "Vá entender as mulheres... Na praia, tão minha
amiga... agora
faz pouco caso...", pensou ele, e tentou explicar: "Ela deve ter vergonha de mim... eu sou mau
aluno...", e sacudiu os ombros:
"Também, não estou nem aí".
Mas não era verdade e ele sabia disso. A sua maior mágoa era que, depois da conversa
com Daniela na praia, tinha resolvido mudar.
"Como sou burro! Voltei mais cedo... cansado, fiquei até tarde estudando ..."
O professor de matemática estava explicando a noção de conjunto, subconjunto, igualdade e
diferença de conjuntos:
- Classe! Quem me dá um exemplo de subconjunto? - e olhou para os alunos das primeiras
fileiras. Para sua surpresa, no entanto,
um braço ergueu-se no fundão:
- Fale, Carlos!
- Ahn... por exemplo... os bodyboarders (B) são um subconjunto dos surfistas (S), pois B está
contido em S, ou B é parte
de S.
Antes de o professor falar qualquer coisa, Daniela interveio agressivamente:
- Afirmação falsa, pró! Os surfistas é que são um subconjunto dos
bodyboarders!
A classe riu, deixando-a mais furiosa:
- Melhor dizendo, surfistas e bodyboarders são conjuntos disjuntos!
- Tudo bem, gente. Vamos resolver as diferenças em outra hora, fora da aula, tá
bom? - sugeriu o professor, impaciente.
Como o objetivo de Carlos, ao inserir os BBs no conjunto dos surfistas, tinha sido agradar às
meninas, ele ficou muito ofendido.
Mais ainda: sentiu-se derrubado
por uma rasteira, de cara no chão, em público! Nervoso, machucado em sua dignidade, Carlos
pegou suas coisas e
saiu da sala pisando duro, sob as vaias dos amigos do fundão.
"Quem essa fresquinha pensa que é? Pois foi um surfista que, num dia infeliz, criou essa
porcaria de bodyboarding...", pensou
ele.
A aula continuou, mas Daniela não ouvia mais nada. Apesar de não dar o braço a torcer, seu
coração estava apertado... seus
olhos teimavam em arder e lacrimejar...
"O que está acontecendo comigo? Estou perdendo o controle...", pensou ela, amedrontada.
Por fim, não agüentou mais. Também pegou sua mochila, acenou para as amigas e saiu da sala.
Ao pisar no corredor, as lágrimas
teimaram em escorrer-lhe pelo rosto,
aos borbotões. Pouco depois, um pouco mais calma, mas muito triste, Daniela encaminhava-se
para o banheiro, quando viu Carlos,
de cabeça baixa, encostado na parede
do corredor. Num impulso, ela foi até ele. Carlos ergueu o rosto, olharam-se longamente e,
sem uma palavra, abraçaram-se
ternamente.
- Precisamos conversar - disse Carlos ao seu ouvido, puxando-a pela mão. - Vamos! - e
despencaram escadaria abaixo, sob
o olhar espantado do bedel.
26 A outra metade do abacaxi
Carlos e Daniela sentaram-se no barzinho próximo à escola, de mãos dadas.
- Seu maluquinho! Que história foi essa de vocês oferecerem droga para o Ma? Minha vó está
furiosa...
- Imagine! - interrompeu Carlos. - Eu tenho horror disso. Nem cigarro eu fumo... Quando foi
isso? - perguntou, admirado.
- Na noite da reunião de vocês, na praia.
- Imagine! Só pra seu conhecimento, a reunião de sábado à noite foi em homenagem ao Duda,
que,
com grande esforço, conseguiu safar-se das drogas... - respondeu
Carlos, nervoso. E acrescentou:
- Um ou outro puxa um... e só. O "béqu" passou, pegou quem quis. Eu to fora! Drogas e
esporte não
combinam, você sabe.
Calou-se, tremendo. Olhou bem nos olhos de Dani e desabafou:
- Vocês estão de má vontade conosco. Já percebi. Por quê?
- Sabe, Carlos, no domingo de manhã, minha prancha reapareceu, dentro da sala da casa da
praia!
- Que loucura! Mas o que temos com isso?
- Pois é. A porta não foi forçada... como se a pessoa tivesse a chave. E havia pegadas de duas
pessoas...
- Duas? - estranhou ele.
- É. Achamos que pra ter a ousadia de entrar dentro da sala... ter cópia da chave... devolver a
prancha... só
pode ser brincadeira maldosa de gente que está sempre por aí... Conseguiu uma cópia da
chave... Qualquer problema ao entrar,
o cara inventaria uma desculpa qualquer...
- Entendi. Aí acharam que foram os surfistas, né?...
- perguntou Carlos, ofendido.
- É. Pra torturar a gente... uma brincadeira sem graça, sádica...
- Ô, amor... - Carlos ficou vermelho de tão sem graça com a confissão - eu seria incapaz de
fazer isso a alguém... quanto
mais a você... Me sinto tão injustiçado...
Daniela comentou, comovida:
- Você, eu sei que não... Mas pode ser gente do seu grupo... aquele surfista loiro é estranho!
- O Alemão? Pode ser, mas... se eles estivessem fazendo isso, eu saberia... Em todo caso, vou
ter certeza, depois falo pra
você.
- Mudando de assunto... Carlos, vamos falar de nós? O que aconteceu com a gente? -
perguntou Dani, timidamente.
- Não tem explicação... acho que foi o destino. Não queríamos reconhecer que encontramos...
- e Carlos vacilou,
com medo do ridículo.
- A outra metade do abacaxi? - perguntou Dani, sorrindo. - Mas, sabe? Acho que você não me
conhece...
- Acho que conheço você bem mais do que parece... mas pode dizer... vamos!
- Sabe, Carlos, pra mim tem de ser sério... não tem essa de ficar... ou é amizade, ou namoro...
queria que você soubesse...
- Tudo bem. Quando a senhorita deseja que eu vá pedir a sua mão em casamento para dona
Rosália? - perguntou Carlos, rindo.
Dani escondeu o rosto com a mão:
- Você me deixa envergonhada, viu?... Mas fui sincera. Eu sou assim.
- Você já pensou que justamente por você ser assim é que eu gosto de você? Minha certinha...
- disse ele, encostando a mão
dela em seu rosto.
Depois de alguns segundos de silenciosa felicidade, Dani lembrou-se de olhar para o relógio:
- Minha nossa! Precisamos voltar. O intervalo já acabou. Vamos?
E ela completou, preocupada:
- Acabamos perdendo uma parte da aula de matemática...
- Você que nunca perdeu aula nenhuma... - comentou ele, olhando para ela
com malícia.
- Convencido!
- A gente se encontra amanhã na classe... - disse Carlos. - Ai, meu Deus! O esforço para assistir
à aula vai ser maior ainda...
- Prá mim também, seu bobão!
27 Um menino colombiano
Laureano, o gerente do cartel de Cali no Brasil, era descendente dos chibchas, o povo indígena
mais adiantado culturalmente
que os conquistadores espanhóis encontraram,
quando invadiram a Colômbia.
Bastardo, mestiço de índia com colombiano, ele nascera numa pequena vila, incrustada no
sopé do braço ocidental da cordilheira
dos Andes. Sua cidade natal ficava
próxima à cidade de Cali.
Como ninguém sabia quem era seu pai, Laureano mesmo escolhera seu sobrenome. Um dia,
ouvira alguém falar de um general Rojas,
ex-ditador colombiano: "Rojas, Laureano
Rojas". Achou que combinava, adotou o nome e tinha o maior orgulho dele.
Desde pequeno, ele trabalhava em plantações de milho. Na época do plantio, suas mãos
enchiam-se de calos e sentia as costas
dormentes pelo trabalho de afofar a terra
para receber as sementes. Durante a colheita, suas mãos inchavam e ficavam feridas por
apanhar as espigas e, depois dela,
ficava co os olhos congestionados
com a fumaça que subia da palha seca queimada.
Apesar disso, ganhava tão pouco que seu estômago doía de fome, mesmo
com as folhas de coca que mascava. Desde que perdera a mãe, dormia de favor no celeiro da
fazenda.
Naturalmente, nunca tinha ido à escola... nem tinha amigos.
Ainda menino, Laureano já era tratado como adulto, pois todos ali eram tão pobres e
trabalhavam tanto que não lhes sobrava
tempo, nem disposição, para cuidar de
ninguém além deles mesmos.
28 Nem só de pão vive o homem
Ainda assim, dessa infância sofrida, restavam ao menino Laureano duas alegrias. A primeira
acontecia aos domingos. Ele vestia
seu poncho colorido, usava um "chapéu
de homem!", que tinha herdado de alguém, sandálias de tiras de couro, e ia à missa na igreja
matriz.
Laureano chegava cedo e sentava-se na mureta do poço, bem no meio da praça, para apreciar
o movimento. Ali, ele sentia-se
gente. Bem vestido, cabelo penteado...
a igreja tão linda, cheia de ouro... ele emocionava-se com os sons celestiais do órgão e do
coral...
"O céu deve ser assim", pensava, tentando lembrar-se do que sua mãe, que era muito
religiosa, tanto lhe falara.
A segunda alegria, ele tinha vergonha de confessar para si mesmo... "será que é coisa de
macho?"... era
cuidar das flores, de suas papoulas coloridas que balançavam ao vento. Entre uma fileira de
milho e outra, ele semeava carreiras
e carreiras de lindas papoulas e cuidava
delas com carinho.
Os patrões tinham a maior parte da fazenda plantada com o arbusto da coca. Mas Laureano,
desde pequeno, plantava milho.
Eles tiravam duas safras de milho e três de papoulas por ano. O milho era usado para consumo
interno: fubá, para fazer broas,
mingau, milho cozido, sopa... As papoulas
eram colhidas e transportadas de caminhão para um pavilhão, a oito quilômetros da
plantação, próximo à sede da fazenda.
Logo que as papoulas eram cortadas, Laureano
semeava outras. Um dia, contaram-lhe que elas eram levadas de avião para outros países!
"Claro", pensou ele. "Isso explica por que os aviões sempre pousam aqui... Não sou só eu que
acho as papoulas lindas."
Tinha uns 10 anos quando, ouvindo uma conversa aqui, outra ali, concluiu que suas papoulas
serviam para alguma coisa proibida.
Quem esclareceu foi um agrônomo que
veio à fazenda com as sementes da flor e deu assistência técnica aos agricultores.
Pela primeira vez, Laureano foi convidado a participar da reunião: menino de tudo entre
homens feitos! Aquilo encheu-o de
orgulho. As informações, assimiladas em
parte, ficaram por dias ecoando na cabeça dele:
- Pagamos 6 dólares por hectare da plantação de milho, mas o preço subirá para 30 dólares se,
entre as fileiras de milho,
houver a plantação de papoulas - explicava
o doutor.
"Quem vai querer plantar só milho?", pensou Laureano, encantado, pois já ouvira falar do
dólar.
O homem elogiara bastante o clima e o solo da fazenda:
- Aqui temos as condições ideais para o cultivo da papoula! Se vocês seguirem meus conselhos,
poderemos ter até três safras
por ano! - disse ele.
Além disso, o agrônomo dissera algo que custou a Laureano entender:
- Plantações de milho, nuvens baixas e cordilheira alta são o tripé básico da nossa camuflagem.
Precisamos é coordenar a
semeadura da flor
com o tamanho das mudas
de milho...
"Ah! Deve ser proibido plantar flor... porque não dá pra comer!", interpretou o menino, do
ponto de vista da fome constante
que sentia. Laureano também soube que
alguns dos aviões que de vez em quando sobrevoavam a fazenda eram da polícia. Eles
procuravam as papoulas para destruí-las!
"Que maldade!", pensava ele. "Não falta terra pra plantar comida..."
Tão menino, e sempre esfomeado, Laureano já sabia que nem só de pão vive o homem.
29 Como Laureano descobriu o pó
Depois do dia da reunião com o agrônomo, o menino foi promovido. Saiu da lavoura e foi
incumbido de carregar e descarregar
os caminhões, transportando as flores
para um galpão, próximo à sede da fazenda. Era o laboratório.
Naquela mesma semana, ele tomou conhecimento da existência do pó branco:
- Precioso! Caríssimo! Só empregados de confiança... cuidadosos... podem trabalhar
com ele... Eles ganham muito bem! - diziam os companheiros, troçando de sua ignorância.
Laureano, ingênuo, não sabia bem onde se metera. Ele orgulhava-se de ser um trabalhador e
era muito ambicioso. Além disso,
certamente por não ter ninguém, era leal
aos patrões como um cão de guarda, apesar de seu gênio forte e altivo, herança dos
antepassados.
Esse tipo de pessoa - conhecido como inocente útil
- sempre foi muito valorizado pelas organizações criminosas. O resultado disso foi uma carreira
relâmpago. Em poucos anos,
Laureano Rojas foi promovido a olheiro
do patrão no transporte da droga por avião.
Mais algum tempo e preferiram que ele permanecesse no Brasil. Desse modo, Laureano,
mocinho ainda, tornou-se o braço direito
dos chefões da sucursal brasileira do
cartel de Cali.
Naturalmente, houve um momento em que ficaram claras para ele as intenções de seus
patrões e as terríveis conseqüências
do que faziam. No entanto, aquela foi a única
profissão que aprendera, e quando ele pensou em mudar de vida já era impossível. É sabido
que a máfia não esquece, nem perdoa.
Assim também são os cartéis. O destino
empurrara Laureano para um caminho sem volta.
30 A profissão de Joe
Quando Laureano veio da Colômbia para tornarse um dos gerentes do cartel, um jovem
brasileiro, conhecido como Joe, tinha
se iniciado no tráfico de drogas.
Como fazia a cada mês, Joe saiu de São Paulo e, por caminhos tortuosos, para despistar, foi
para o Mato Grosso do Sul.
Depois de viajar durante horas, chegou à fronteira do Brasil com o Paraguai. Para mudar de
país, bastavalhe atravessar a
rua. De um lado, ficava uma cidade brasileira;
do outro, uma cidade paraguaia.
Havia um ano que Joe fazia esse trajeto e já conhecia bem, como ele mesmo dizia, os caminhos
e as "bocas".
com a maior desenvoltura e tranqüilidade, ele entrou na loja de aparelhos eletrônicos, do lado
paraguaio, e cumprimentou
o velho magro e sorridente. Depois de alguns
minutos de espera, surgiu um rapazinho dos fundos da loja que lhe entregou um pequeno
embrulho de papel pardo. Joe agradeceu,
despediu-se do velho e atravessou a
rua, de volta para o Brasil.
No início, fora difícil para Joe se impor, principalmente por sua pouca idade, mas logo ele se
tornou um traficante independente
muito respeitado por quem fornecia
a droga. Mesmo quando estava sem dinheiro, conseguia a "mercadoria" que desejava, em
consignação: pagava a droga somente
depois que a vendia.
- Pode entregar a mercadoria que esse "formiga" é novinho, mas de respeito - diziam eles.
- Um confortão! - dizia o vendedor para Joe. Pra você vendo em consignação, rapaz! Você nem
precisa mais de capital de giro!
E era verdade. Ele nem precisava mais empatar dinheiro... Pegava a droga, vendia, depois
pagava o fornecedor e ficava com
o lucro! Era facilidade para impressionar
qualquer um.
com o pacote dentro da pasta, Joe entrou no lava-rápido da esquina e, como sempre,
escondeu a droga num compartimento já
preparado, dentro do tanque de gasolina
do seu carro. Em seguida, comprou um lanche, pegou a estrada e, atravessando o Mato Grosso
do Sul, seguiu para o Pontal
do Paranapanema. Depois, para fugir de rotas
muito conhecidas, atravessou para o norte do Paraná. Voltaria depois para São Paulo,
atravessando a divisa entre os dois
estados num ponto menos perigoso.
No entanto, risco sempre havia, principalmente porque Joe gostava de trabalhar sozinho. De
vez em quando, passava por sua
cabeça associar-se a alguém - "pelo menos
eu teria um outro carro na frente, um batedor, para me avisar de algum perigo..." -, mas nunca
quisera ligar-se a outro
"formiga", muito menos a cartéis. "Gosto
de ser independente...", pensava, e acabava desistindo dos sócios.
Toda vez que fazia a sua "viagem de negócios", Joe calculava o tempo para chegar à divisa
entre o Paraná e São Paulo depois
da meia-noite. A essa hora, a menos que
houvesse uma equipe da Polícia Federal fazendo barreira
- o que acontecia raramente -, a pequena cidade por onde passava era uma porta aberta para
a entrada no estado de São Paulo.
O único patrulheiro rodoviário estava sempre dormindo. Ele tinha licença superior para isso.
Covardia? Nada disso. Juízo!
Eles sabiam o que acontecia naquela rodovia:
contrabando, drogas, carros roubados. Não tinham viatura, armamento, transmissor-
receptor... mas lhes sobrava amor à vida.
Quem poderia criticá-los?
Mesmo assim, Joe suava frio por horas até chegar ao seu destino, porque sempre havia o
perigo das barreiras dos federais.
Em São Paulo, Joe vendia a cocaína, quase pura, a um distribuidor, que acrescentava à droga
tudo quanto era pó branco...
até pó de vidro! A droga e, naturalmente,
o lucro multiplicavam-se por três!
31 Como Joe descobriu o pó
Pouco tempo antes, Joe era um adolescente sensível, talvez um pouco inseguro, que gostava
de brincar com o perigo.
A primeira vez aconteceu numa reunião com amigos. Um deles ofereceu e ele experimentou
cheirar o pó branco. A sensação de
euforia e segurança foi indescritível!
Semanas depois, estava deprimido por problemas familiares - tinha um relacionamento difícil
com o pai
- e pelas notas baixas na escola. Lembrou-se do pó mágico e procurou o amigo. Ficou surpreso
ao saber que os papelotes eram
vendidos na favela, próxima à escola.
Era cheirar o pó e ele criava alma nova. Sua energia aumentava... É verdade que se tornava
irrequieto, porém a depressão
desaparecia. Sob o efeito da droga, ele
planejava inúmeras coisas que solucionariam todos os seus problemas, mas... no dia seguinte,
de nada se lembrava.
Um ano depois - somente um ano! -, já tinha perdido tudo, até sua identidade: seus
documentos eram todos falsos... outro
nome, outros pais, outra idade...
Joe nem sabia mais como acabara viciado em cocaína. Para se sentir melhor, sempre dizia para
si mesmo: "Eu só cheiro! E
paro na hora que quiser!".
Mas não parava.
Depois de alguns meses, ir à escola, nem pensar! Vivia num estado de excitação tão violento
que não conseguia ficar sentado
numa sala de aula. Um sofrimento indescritível!
Por isso, não havia mesada que chegasse... Sem a droga, agora 5 gramas por dia (!), não
agüentava... era uma ansiedade insuportável!
A quantidade de droga de que ele precisava vinha aumentando a cada dia... até que,
desesperado, Joe, a exemplo do tal amigo,
começou a "viajar a negócios".
Um dia, houve um mal-entendido com os traficantes e, por causa de três dias de atraso no
pagamento da droga, ele quase foi
morto. Nesse tipo de empreendimento,
um pequeno erro é pago com a vida!
32 Sem saída?
Como um cão ferido, Joe ficou caído na sarjeta, lavado em sangue, até que policiais o levassem
para o pronto-socorro de
um grande hospital. Lá, não conseguiu
esconder o vício, embora nada tenha falado sobre o tráfico. Todo o tempo, Joe implorava para
que nada contassem a sua família.
No hospital, ajudaram-no com remédios e ele passava os dias fraco, sonolento, apesar de estar
comendo melhor. com o tempo,
os médicos tornaram-se seus amigos e
aconselharam-no a continuar o tratamento para se livrar definitivamente da droga. Foi por
eles que Joe soube de um serviço
do governo que tratava de viciados.
Sem alternativa, no dia de sua alta do hospital, Joe aceitou ser encaminhado para a Divisão de
Prevenção e Educação do Departamento
Estadual de Narcóticos, em São
Paulo. Lá, uma equipe de psicólogos fez tudo para ajudá-lo e orientou sua família. Assim, com
o auxílio de remédios, muito
sofrimento e coragem, ele conseguiu libertar-se
do vício.
Joe retomou sua identidade... reconquistou seus amigos, reconstruiu sua vida. Voltou a
estudar, começou a trabalhar. A família
orgulhava-se dele.
Sua história parecia um roteiro dramático com final feliz. Isso até Joe descobrir que libertar-se
do vício é dificílimo,
mas com grande esforço ainda dá para conseguir;
libertar-se do tráfico é quase impossível!
33 Um "complexo empresarial organizada"
Um dos principais trabalhos de Laureano, já como gerente de Cali no Brasil, era criar diferentes
sistemas para enviar drogas
do Brasil para o exterior. Alternar
tipos de estratégia era um importante recurso de segurança. Nesse dia, por exemplo, Laureano
tinha de tratar de
uma importante remessa de cocaína para o exterior.
Dessa vez, a carga ilícita iria por um longo e tortuoso trajeto, em duas etapas, até chegar ao
seu destino final.
Uma empresa paulista - fantasma, claro - encomendara 20 toneladas de tabaco do sul do
Brasil. Caminhões partiriam de uma
cidade do Rio Grande do Sul, na semana seguinte,
com o carregamento de fumo pedido por ela.
Por outro lado, no Maranhão, ficava a outra empresa, também fantasma, especializada em
exportação.
Estradas ruins, cuidados com a fiscalização... os caminhões fariam uns 300 quilómetros por dia,
se tanto, levando uns 15
dias até chegar à pequena cidade no Maranhão,
com as 20 toneladas de tabaco. Ali, como a empresa tinha outro nome, para desnortear a
fiscalização as notas fiscais seriam
trocadas e os caminhões iriam pela Belém-Brasília,
evitando os postos de fiscalização, para uma pequena cidade do estado de Tocantins, próxima
de onde ficava a fazenda dos
traficantes para quem Laureano trabalhava.
Na fazenda, depois do transporte em avião particular, a cocaína colombiana já estaria
esperando a chegada dos caminhões.
A droga seria camuflada entre as camadas
de fumo e seguiria para o porto de Santos com destino aos Estados Unidos. Lá, a cocaína seria
entregue para uma importadora
fantasma.
com a heroína, a estratégia era quase a mesma, mas o lucro era mais de três vezes maior. Por
isso o interesse do cartel
de Cali para começar a trabalhar também
com ela.
No "complexo empresarial", que era imenso e muito bem organizado, respeitava-se a
hierarquia. Todo o trabalho baseava-se
em planejamento, competência, dedicação
e confiança mútua. Justamente aí é que estava a dificuldade de ceder a heroína para o
Triângulo Vermelho:
"Primeiro, uma remessa para o exterior fora do esquema! Depois, desta vez não é explicar
para o cliente um simples atraso.
A partida, já paga, não será entregue!",
pensava Laureano, muito preocupado.
34 O Triângulo Vermelho monta a armadilha
Depois do jantar, Laureano foi de táxi para o bairro oriental, muito apreensivo. Mandou o
carro parar na esquina e caminhou
até um pequeno bar. Logo que entrou,
um dos garçons, reconhecendo-o, já o acompanhou
aos fundos, onde uma passagem camuflada levava a um grande salão de jogo, repleto. A
maioria dos freqüentadores era formada
por japoneses, chineses e coreanos. No
entanto, o fato de haver ocidentais entre eles, mesmo em minoria, incomodou-o:
"A heroína já deve estar atingindo outro tipo de consumidor. Isso é mesmo coisa do
demônio!", pensou ele. "Alastra-se como
a peste..."
A única explicação que Laureano dava para o fato de nunca ter usado drogas, apesar de tê-las
tido sempre à mão, era seu
anjo da guarda, que ele confundia sempre
com sua falecida mãe. Laureano lembrava bastante os mafiosos dos filmes italianos: ele
respeitava a família e, por incrível
que pareça, dizia-se religioso.
Ele atravessou o salão. Um oriental imenso, parecendo um lutador de sumo, revistou-o e
entrou no escritório para avisar
o chefe da chegada de Laureano.
O sr. Feng, o velho chinês, estava ao telefone e fez um gesto brusco de desagrado pela
interrupção. Imediatamente o grandalhão
saiu da sala e pediu que Laureano
esperasse. O chinês continuou a conversa:
- Como? A heroína deste mês pode não ser entregue? - perguntou, preocupado. - E os
clientes...
- Escute bem a nossa estratégia, Feng - explicou uma voz impaciente, do outro lado da linha. -
Pedimos ao pessoal de Cali
dois quilos de heroína para serem entregues
nos Estados Unidos, em data próxima. Achamos que, na falta de alternativa, eles vão querer
nos entregar a cota de pó da
sua zona.
- Pois acertaram. Parece que Laureano, o homem de Cali, acabou de chegar... está esperando
para ser recebido por mim...
A voz interrompeu-o bruscamente:
- As ordens são as seguintes: em primeiro lugar, finja que aceita colaborar, de maneira que ele
não desconfie de nada. Em
segundo lugar, o mais importante: você
deve providenciar para que a heroína nunca chegue aos Estados Unidos.
- Nunca chegue... Ah! Entendo. Esse será o motivo...
- Sim. O motivo para tirar Cali da jogada, evitando derramamento de sangue. Você conhece o
nosso código de honra...
- Sim... se não cumprir a palavra, fica desgraçado para sempre...
- Isso mesmo. O general aceita que o cartel de Cali continue a trabalhar com a cocaína, mas ele
não tem nenhum interesse
em dividir a heroína com eles. Se Cali
não conseguir levar a heroína, não terão cumprido um acordo fechado conosco e não terão
moral para exigir mais nada! Caem
fora do negócio da heroína e nada poderão
reclamar.
O homem do Triângulo Vermelho fez uma pausa e continuou a explicar:
- O boicote que fizemos a eles não deu certo... quase desencadeou uma guerra... não temos
interesse em massacres... perdem-se
homens dos dois lados.
- Entendido. Para impedir a entrega da heroína, preciso saber como Cali pretende levá-la para
os Estados Unidos... - comentou
Feng.
- Sim, você disse bem: "preciso saber". Isso quer dizer que você terá de descobrir. Nós
informaremos tudo que soubermos,
mas essa operação está sob sua inteira responsabilidade.
O homem fez uma pausa e continuou:
- Lembre-se bem, Feng. Para eles, você é um simples cliente do cartel de Cali! Não deixe que
descubram que trabalha para
o Triângulo Vermelho. E a voz repetiu em
tom pouco amigável:
- Lembre-se! É muito importante! A heroína não deve chegar à Califórnia! - e desligou.
35 Laureano versus Feng
O velho chinês ficou pensativo por um momento e, em seguida, encaminhou-se para a porta.
Ao ver Laureano, Feng curvou-se
educadamente e, com um gesto, convidou-o
a entrar. Parecia cena de filme oriental, pois
o velho chinês tinha a cabeça branca, barbicha, era muito alto, magro, e estava vestido a
caráter.
- Como sempre, é uma imensa honra para nós receber tão ilustre visitante. Sente-se, por favor.
Aceita chá?
- disse ele.
Laureano cumprimentou com um aceno de cabeça, estendeu a mão e pegou o chá.
- Ha... - pigarreou. - Fui mandado aqui, senhor Feng, para pedir-lhe um grande favor.
Precisamos dos dois quilos de heroína
que chegarão para os senhores na próxima
semana.
Os olhos do velho Feng estreitaram-se ainda mais e ele falou baixinho e pausado, acariciando
de leve a barbicha rala:
- Os cavalheiros sabem que essa encomenda já foi paga por nós, com antecedência... nossos
clientes ficarão muito decepcionados...
nada, nada
bom para os negócios!
Laureano percebeu que a situação estava difícil, para não dizer perigosa.
"Se eu não conseguir por bem, terá de ser por mal... Estourar esses pontos não vai ser
bom pra ninguém", pensou ele.
No entanto, Laureano devia sua ascensão hierárquica dentro da organização no Brasil - de um
reles "mula" a gerente - às
suas qualidades de diplomata. A intimidação
ficaria para depois. "Espero não precisar... ainda mais que estou sozinho..." Ele pensou
rapidamente, respirou fundo e gastou
todo o seu poder de sedução persuasiva.
- Sei que é estranho, fora de nossos padrões de conduta... Eu gostaria de explicar-lhe, pois é
uma situação excepcional
- pediu Laureano.
O velho chinês fez um sinal para que ele continuasse.
- Trabalhar com heroína é um negócio novo para o cartel de Cali - lembrou ele.
Feng acenou afirmativamente e Laureano continuou:
- Os negócios de Cali com heroína dependem de que o Brasil fique como corredor de
exportação da droga, preparada na Colômbia...
- Sim, sim. A heroína de Cali - interrompeu Feng, impaciente.
- ... e que é exportada para a Europa e para os Estados Unidos - completou Laureano.
Feng acenou afirmativamente, outra vez.
- Gostaria de explicar-lhe também - acrescentou Laureano - que nossos negócios com heroína
estiveram em perigo no ano passado,
porque o general Ling, o maior proprietário
das plantações de papoula na Ásia...
- Birmânia, Laos e Tailândia - interrompeu Feng.
- Sim, o cartel do Triângulo Vermelho - disse Laureano e completou: - Como eu ia dizendo, eles
estavam sabotando a entrada
da nossa heroína nos Estados Unidos e
na França...
Ao perceber a fisionomia estranha do chinês, Laureano interrompeu seu discurso:
"Madre de D/os/ Acho que esse cara é do Triângulo Vermelho!", pensou ele, dando um sorriso
sem graça e tentando consertar:
- Há alguns meses, selamos a paz! O Triângulo Vermelho doou trinta mil mudas de papoula à
Colômbia, como um desagravo...
Hoje, trabalhamos em grande harmonia...
Laureano, já desconcertado, observava o outro, tentando perceber a receptividade de seus
argumentos, mas, dali para a frente,
a fisionomia de Feng tornou-se impenetrável.
Sendo assim, o rapaz fez uma pausa, para dar maior ênfase, e concluiu:
- Agora, o Triângulo Vermelho nos pede um pequeno favor... Não temos como dizer não...
Contamos com nossos parceiros e ficaremos
gratos ao senhor...
Feng curvou a cabeça e, afagando a barbicha, foi curto e fino:
- Pode contar conosco. É uma honra colaborar, mas, como retribuição, a nossa próxima cota
deverá vir com
20% a mais de pó.
Laureano, sem alternativa, acenou que sim. Feng fez uma pausa e observou:
- Espero que essa mudança de esquema não nos comprometa junto aos nossos clientes... Uma
curiosidade: como pretendem enviar
a droga?
- Bem. Como é uma pequena quantidade, pensei num "formiga"... Eles são independentes e
estão acostumados a traficar pequenas
quantidades de droga...
- E a coca...?
- A entrega de coca será como sempre, senhor Feng. Pronta entrega. Basta telefonar...
Feng deu-se por satisfeito; sem uma palavra, levantou-se, curvou-se educadamente e
acompanhou Laureano até a porta.
36 Suzie
Imediatamente após Laureano ter saído, Feng voltou à sua mesa e apertou um pequeno botão
escondido debaixo do tampo. Em
poucos segundos, uma porta lateral abriu-se
e por ela entrou Suzie.
Suzie era uma mocinha linda... quase uma criança! Pequenina e delicada no seu tshi pão de
seda azul, seus cabelos lisos
e negros estavam soltos, emoldurando um
rostinho sério de olhos brilhantes e amendoados. Ela parou próximo à porta e curvou-se
respeitosamente.
- Aproxime-se, Suzie - ordenou o chinês.
A menina andou graciosamente em direção a Feng. A cada três passos curvava-se novamente,
numa deferência que, de qualquer
outra pessoa, pareceria humilhante. Mas
não vinda de Suzie. Seu porte era elegante e seus passos leves como os de uma princesa. Seus
cumprimentos tinham o ritmo
e a suavidade de uma coreografia de bale.
- Tenho uma missão importante para você - disse o velho. - Você viu e ouviu esse homem de
Cali que acabou de sair daqui?
- Sim, meu senhor. Como sempre, eu observava pelo visor...
Feng interrompeu Suzie:
- Então sabe que ele foi encarregado de planejar a entrega de dois quilos de heroína para o
Triângulo Vermelho, na Califórnia.
Só que a heroína não deve chegar lá,
de jeito nenhum!
Suzie ficou surpresa, mas nem piscou.
- Só não entendi quem de Cali vai levar a droga...
- comentou ela.
- Um pequeno traficante independente que Laureano escolherá - respondeu Feng, já irritado.
- Ele também não disse como esconderão a droga...
- Você sabe que o telefone dele está grampeado... Descobrir isso faz parte do seu trabalho,
menina! - interrompeu, com um
sorriso perverso, o velho Feng.
- Depois de interceptar a heroína, o que farei com ela, senhor? - perguntou Suzie.
- Traga para nós, de preferência - respondeu Feng com ironia. - Mas nem pense em deixá-la ser
entregue.
com o mesmo sorriso sádico, Feng abriu a gaveta, retirou dela um pequeno revólver prateado
e o pousou delicadamente sobre
a mesa. Em seguida, olhou fixamente para
Suzie.
Para satisfação do velho chinês, a ameaça embaçou levemente o brilho dos olhinhos
amendoados de Suzie. Feng tornou a guardar
o revólver na gaveta e avisou:
- Outra coisa! Não queremos mortes. Se houver alguma, não deveremos ter nada com isso.
- Si... sim, meu senhor.
E Suzie foi se afastando lentamente de costas, enquanto fazia outra série de reverências.
37 chantagem
No dia seguinte, quando Joe menos esperava, tocou o telefone:
- Joe!
Ao ouvir o apelido, que tantas vezes havia amaldiçoado, ele estremeceu.
- Aqui quem fala é o doutor Laureano. Lembra-se de mim?
"Imagine se dá pra esquecer...", pensou Joe, assustado. - Si... sim - engasgou-se ele.
- Tenho uma ótima notícia, Joe! Escolhemos você para uma missão muito importante. Vai
montar na grana, seu rabudo! - exclamou
Laureano, fingindo estar empolgado.
"Maravilha! Todo o meu esforço lá se vai por água abaixo... Eu não mereço!", pensou Joe,
desesperado. E fez uma última tentativa:
- Doutor, eu parei há mais de um ano... Laureano hesitou por alguns segundos:
"E agora?... Mas não tem outro melhor... não tenho saída!", pensou ele e continuou como se
não tivesse ouvido:
- Preste atenção: quando eu avisar, você vai receber uma mercadoria. Você só terá de levá-la
para a Califórnia! Fácil, fácil!
- disse ele com voz sedutora e persuasiva.
O telefonema era em código, mas Joe, ex-traficante, entendeu na hora: "É transporte de
droga. A diferença é que de 'formiga'
fui rebaixado a 'mula'! Agora, só sirvo
pra transportar 'farinha'. Desgraçados!"
- Como vou fazer...? - tentou perguntar. O tom de voz de Laureano tornou-se áspero:
- Sei que você tem possibilidade e oportunidades de viajar pra lá. Estou lhe dando tempo para
planejar. Lembre-se: pagamos
muito bem, mas não admitimos erros!
Joe logo percebeu que não tinha saída: "Imagine o que me farão se eu disser não...", pensou
ele, apavorado.
- Logo você receberá todas as informações para a entrega - disse Laureano, mais calmo.
Joe, muito deprimido, desligou e passou a noite em claro. Virava e revirava-se na cama,
pensando:
"Tenho de levar a droga para a Califórnia... mas como?"
38 Suzie e Joe
Joe almoçava no barzinho de sempre, absorto em seus pensamentos. Continuava preocupado
em resolver o problema do transporte
da droga para a Califórnia. Levar, sem
ser preso e, muito importante, sem se sujar com os amigos e, principalmente, com sua família.
Quase impossível!
"Pobre da minha mãe!", pensava ele, e seus olhos se encheram de lágrimas.
De repente, procurando distrair-se, Joe foi atraído por um par de olhos escuros, amendoados.
"Estranho... Acho que já vi essa menina... Ela deve trabalhar por aqui... Que gracinha... meio
novinha demais..."
Joe resolveu arriscar. Foi até a mesa dela e perguntou, com um sorriso:
- Esse lugar está vago?
A menina acenou afirmativamente e pensou aliviada:
"Até que enfim! Há mais de três dias que venho aqui! Acho que ele não desconfiou de nada.
Vai ser moleza!"
Havia dias que Suzie seguia Joe, obedecendo às ordens do velho Feng. Em sua cabecinha
ecoava ainda a voz desafinada do chinês:
"A heroína não deve chegar à Califórnia! De jeito nenhum!"
- Posso? - perguntou Joe e sentou-se. - Parece que já conheço você... Não é cantada, não... -
disse ele sorrindo. - Tenho
certeza de que já a vi.
- Ahnn... Você vem almoçar sempre aqui...? - perguntou ela.
- Sim, mas... acho que já vi você... em algum outro lugar.
"Xii... ele pode ter me visto no cassino do Feng alguma vez... E agora?"
- Meu nome é Joe - apresentou-se ele. - Trabalho com esportes e venho sempre almoçar aqui.
Mas como visito clientes... -
explicou - devo ter visto você numa dessas
visitas... Você é inesquecível...
- Exagerado! - respondeu ela sorrindo. - Meu avô tem uma lojinha no bairro oriental... Às
vezes, ajudo no balcão...
"Meu Deus! Foi lá que a vi, em alguma entrega de droga!", pensou ele, preocupado.
- O que me impressiona é como esse mundo é pequeno! - comentou Suzie.
- Não. O mundo é grande - afirmou Joe. - Foi a força do destino... - completou, sorrindo.
Suzie riu, e perguntou:
- Você sabe que Força do destino é o nome de uma ópera? De Verdi, um compositor italiano...
- disse ela, certa de que ele
nunca ouvira falar.
- Sei, já ouvi. Meu pai... origem italiana, sabe? Ele adora. A música é linda, mas tão trágica! -
respondeu ele.
- Não mais do que Madame Butterfly, de Puccini...
- respondeu ela, para testá-lo.
- É verdade. Pobre Butterfly, que foi enganada pelas falsas promessas do seu amado e morreu
de amor lembrou ele.
Suzie, admirada, retrucou:
- Só que Butterfly era japonesa e crédula... e eu sou chinesa e desconfiada - comparou ela,
brincando.
- E ele era americano e safado, e eu sou brasileiro e cheio de boas intenções - completou Joe,
já um pouco arrependido do
significado escondido daquela conversa:
"Que declaração de interesse descarada!", pensou ele, preocupado.
Mas, pega de surpresa, com um doce olhar ela o aceitou. E naquele breve instante, como dois
jovens comuns, eles riram.
39 Vidas duplas
No dia seguinte, enquanto almoçavam juntos, Suzie contou-lhe que trabalhava como
secretária em uma empresa cujo escritório
ficava próximo dali. Disse que morava
com o avô chinês, bastante idoso, e era mestiça de chinesa com brasileiro. Somente a última
informação era verdadeira. Mas
Joe acreditou em tudo.
Além da beleza e da inteligência de Suzie, a sua delicadeza, herança da ascendência oriental,
acabou de conquistar Joe.
Em pouco tempo, ela, apesar da pouca idade,
revelou-se uma grande mulher: inteligente, sensível, carinhosa...
Quase sem perceber, Joe apaixonou-se por ela e torturava-se:
"Em que péssimo momento a mulher da minha vida foi aparecer! Como poderei levar essa vida
dupla, sem perdê-la?", perguntava-se.
"A única sorte é que o avô dela é
um velho chinês muito tradicional e não aceita de forma alguma um relacionamento da neta
com alguém de outra raça..."
Pelo menos era o que Suzie lhe dizia, e Joe acreditava piamente. Sendo assim, encontravam-se
às escondidas e ele não precisava
apresentá-la aos amigos. "Quanto mais
cuidado, melhor!", pensava ele.
Apesar das aparências, Suzie, no íntimo, travava uma batalha. Depreciava o rapaz o tempo
todo, mas ele não saía de sua cabeça:
"Moço bobo! Todo romântico... A que isso pode levar? Nem me conhece... Há muito tempo
aprendi com o
velho Feng a não misturar negócios com sentimentos..." E afastava o rapaz do pensamento.
Mas ele voltava:
"Joe é diferente dos outros ocidentais que conheço: gentil, educado... culto..." E logo após:
"Imagine! Um banana! Não suporto
homem de coração mole."
Naquela noite, foram ao cinema. Joe segurou a mãozinha de Suzie com todo o carinho. Em
certo momento, a perna do rapaz roçou
a dela. Suzie quase perdeu o fôlego.
Um arrepio passou-lhe pelo corpo...
"É uma resposta somente física", explicou ela para si mesma. "Tomara que esse negócio se
resolva logo... essa intimidade
já está ficando irritante!"
Era fácil para Suzie explicar o porquê da excitação com a proximidade de Joe. Era jovem...
hormônios em atividade máxima...
Por outro lado, ela percebia-se vivendo
um paradoxo e ficava amedrontada: sempre tão auto-suficiente... agora, a simples presença
do rapaz fazia com que ela se
sentisse alegre, protegida e segura, como
nunca se sentira antes.
Depois do cinema, foram para a casa de Joe, e Suzie descobriu que ele também adorava
música popular brasileira. Trocaram
idéias sobre os cantores, sobre as letras...
Ouviram MPB juntos até tarde da noite. Qualquer tentativa de algo mais íntimo, Suzie vetava
em nome de sua educação tradicional,
respeito ao avô etc. Mas nada impediu
que se despedissem com um terno e demorado beijo.
Suzie sabia que era impossível qualquer relacionamento verdadeiro entre eles e tentava se
enganar:
"Estou só representando... é só teatro!", dizia-se ela. Pelo menos era como pretendia que
fosse, pois o que sentira com
aquele beijo, por exemplo, não confessava
nem para si mesma.
"Sempre trabalhei assim, friamente: nada de amizade... nem amor, nem ódio. Faço o melhor
para os negócios e pronto", raciocinava,
policiando-se.
E agora? Ela sabia que qualquer afeto por Joe mudaria tudo. Em vez de tomar uma decisão
profissional, ela enfrentaria um
trágico impasse.
Afinal, era a vida dele pela dela! Se Joe não entregasse a heroína na Califórnia, certamente ele
pagaria com a vida. Mas,
ao contrário, se ele entregasse a droga,
Suzie é que seria morta.
40 Uma boa ideia
Na madrugada do sábado em que sumira a prancha de Daniela, Joe estivera em Ubatuba,
numa velha construção usada para guardar
barcos de pesca.
Ele acabara tendo uma idéia para resolver o problema do transporte da heroína para a
Califórnia. A prancha de Daniela tinha
sido roubada para testar sua eficácia.
Suzie, que seguira o rapaz até Ubatuba sem que ele de nada desconfiasse, também estava lá.
Havia tempo, ela espiava por
uma fresta da parede de pau-a-pique, esburacada,
a princípio sem entender o que ele fazia.
De onde estava, acompanhava todos os movimentos do rapaz. A luz do candeeiro iluminava
parte da prancha de BB que estava
presa numa espécie de torno.
Gravado nela, lia-se Equipe Generation e, em letras menores, Daniela.
Suzie viu quando Joe tirou de uma sacola um pequeno saquinho de pó branco e misturou-o
com um pouco d'água. Em seguida,
ele pegou uma seringa veterinária, aspirou
o líquido espesso e voltou-se para o bodyboard. Aí, ela entendeu tudo.
"Olha que idéia! Burro ele não é. Vai colocar um pouco do pó dentro do cano interno que
atravessa a prancha... um pouco
só em cada uma para não pesar... Como a heroína
nem chegou, deve ser um teste, com um pó qualquer!"
Era justamente esse o plano de Joe. com todo o cuidado, ele injetou a mistura, tapou o
pequeno orifício e começou a lixar
a prancha a fim de não deixar nenhum vestígio.
Pouco depois, deu o serviço por terminado. Joe guardou as ferramentas na sacola e, para
surpresa de Suzie, tirou a roupa.
Já viera de maio.
"Ai, Deus! Será que ele vai testar a prancha na água, agora?", pensou ela, desanimada. Não
deu outra. Suzie escondeu-se
atrás das moitas, quando ele passou a caminho
do mar.
As ondas estavam de bom tamanho e ele, por alguns momentos, esqueceu os graves
problemas que enfrentava. Já estava amanhecendo,
quando Joe, satisfeito com o teste,
concluiu que a heroína só sairia do springer se a prancha fosse quebrada. "Melhor,
impossível!", pensou ele, aliviado.
Na madrugada do domingo, ele voltou à casa de barcos para fazer o serviço inverso. Tirou o pó
de dentro da prancha e não
deixou nenhum vestígio da operação.
Suzie não entendeu nada. "O que esse cara pensa que está fazendo?", perguntava-se ela.
Quando, finalmente, Joe foi embora da praia, Suzie seguiu-o de longe. Ele andava devagar,
preocupado, esgueirando-se por
entre muros, com medo de ser visto, pois
já era dia claro. Suzie, curiosa, criticava: "Onde será que ele pensa esconder a prancha?
Imagine! E quando forem várias?",
pensou ela.
Até que Joe entrou na pequena viela onde ficava a casa de praia de Rosália.
Nesse momento, Suzie entendeu todo o plano:
"Nossa! Que cara esperto! Ele vai devolver a prancha pra menina! O teste deu certo, e agora
ele tem certeza de que a própria
equipe pode transportar a heroína para
os Estados Unidos!"
Suzie continuava a não querer, ou não poder, confessar a si mesma que simpatizava com Joe:
"Criativo, inteligente, culto..."
Mas logo afastava esses pensamentos:
"Uma besta. Quem mandou se meter nessa?"
Joe avaliou a casa de Rosália: tudo quieto, silêncio absoluto. Depois do roubo da prancha de
Daniela, o portãozinho ficara
trancado.
Ele pulou a cerca, subiu pé ante pé os degraus para a varanda e experimentou a porta da
frente. Enquanto isso, Suzie, bem
escondida, espiava.
A porta, que Marcelo esquecera de trancar quando chegou da reunião na praia, abriu-se sem
nenhum esforço. Joe sorriu ao
perceber a facilidade, entrou e recolocou
a prancha de Daniela, junto às outras, encostada à parede da sala.
Ao descobrir o plano de Joe para levar a droga, foi a vez de Suzie ficar preocupada:
"Duzentos gramas da droga por prancha, no máximo, senão a prancha fica pesada e podem
desconfiar... dez pranchas, no mínimo,
para transportar os dois quilos...
Não vai dar. vou ter de roubar a heroína e trocá-la por um pó qualquer antes de ele colocá-la
nas pranchas...", planejou
ela.
41 Joe desvenda sua verdadeira identidade
No dia seguinte, já em São Paulo, Joe foi acordado, bem cedo, pelo toque estridente do
telefone.
- Alô! Joe! A sua encomenda chegou!
- Alô! Ãhn? - perguntou Joe, sonolento.
- Joe! É Laureano.
"Pronto! É aquele desgraçado do cartel..."
- Sim? Doutor Laureano? Pode falar.
- Venha ao escritório hoje às 15 horas para pegar as duas latas de leite em pó que você
encomendou.
- Tudo bem.
- Aí conversaremos pessoalmente sobre os detalhes.
Tchau.
Joe desligou e segurou a cabeça entre as mãos, desanimado. Ele sabia ser dificílimo sair dessa
situação sem perder a vida.
Já tinha pensado em tudo. Sendo assim,
resolveu ir em frente com seu plano de levar a droga dentro dos springers das pranchas.
Na hora do almoço, Joe, mais uma vez, encontrou-se com Suzie na lanchonete. Sua fisionomia
tensa já levantou a suspeita
da moça.
"A droga deve ter chegado...", pensou ela.
- Preocupado, meu bem? - perguntou, passando a mão carinhosamente na cabeça de Joe.
Esse gesto de carinho bastou para arriar a defesa do rapaz, já tão minada pelo medo de perder
tudo o que tinha construído
e, principalmente, pelo medo de perder
Suzie. Os olhos de Joe encheram-se de lágrimas.
- Meu bem! O que foi? - perguntou ela, aflita. Nesse momento aconteceu algo muito estranho.
A
Suzie independente, calculista e fria perdeu definitivamente a batalha para a outra Suzie, a
que aparecera desde que ela
havia conhecido Joe. Continuava corajosa
sim, mas ao mesmo tempo frágil, carinhosa e sensível.
Joe, descontrolado, começou a soluçar, chamando a atenção dos vizinhos de mesa. Suzie
levantou-se e puxou-o pelo braço:
- Venha, querido. Vamos para a sua casa. Pegaram um táxi e, em poucos minutos, chegaram.
As mãos de Joe tremiam ao abrir a porta. Mal entraram, caíram um nos braços do outro e
perderam a conta do tempo em que
assim ficaram. A cabeça de Suzie fervilhava:
"Preciso salvá-lo! Preciso salvá-lo! Meu Deus! Nunca pedi nada. Me ajude desta vez. Preciso
salvar da vergonha e da morte
o homem que eu amo".
- Suzie, preciso contar-lhe uma coisa - disse ele, com voz trêmula.
Levou-a até o sofá e, olhando-a bem dentro dos olhos, disse:
- Nunca falei nada por medo de perdê-la... agora não tenho outra alternativa...
Joe fez uma pausa, abaixou o rosto e vomitou as palavras:
- Meu nome não é Joe. É Alberto. Já fui viciado em cocaína e acabei traficando. Larguei a
droga. Há um ano que não tenho
mais nada com isso, mas, há alguns dias,
o cartel me ordenou que levasse dois quilos de heroína para a Califórnia. Se eu não levar,
certamente serei morto.
Alberto aguardou alguns segundos e, lentamente, ergueu os olhos. Suzie chorava
silenciosamente.
- Jamais abandonarei você - disse ela, num fio de voz. Enxugou o rosto com as mãos e
continuou: - Se é assim, você leva
a droga pra Califórnia... não tem outro
jeito... e fica livre deles.
- Você acha mesmo, Suzie?
- Sim. Eles vão acabar esquecendo você... - afirmou ela, sem muita convicção.
Ele completou, com os olhos brilhando:
- E nós ainda seremos muito felizes!
Suzie acenou afirmativamente, tentando esconder toda a angústia e o medo que sentia.
Alberto criou alma nova e pegou as
mãozinhas dela entre as suas:
- Suzie, sou um ex-surfista. Levei um tiro dos traficantes, na perna, o que me impossibilitou de
surfar. Apaixonado pelo
esporte como eu era, comecei a pegar onda
de esponja e agora sou treinador de uma equipe de bodyboarding.
- Alberto? - confirmou ela, como se já não soubesse. - Gosto do seu nome.
- Meus amigos me chamam de Beto, Beto dos esponjas - contou ele. Sorriu e, por mais de uma
hora, desvendou-lhe o seu passado
em detalhes: a família, a escola, o
vício, o tráfico, o hospital... Em seguida, abriu-lhe o coração: - Minha família está muito bem...
me apoiou
sempre... eu os amo muito... eles nem sonham que eu esteja passando por isto tudo!
E, com um fundo suspiro, ele concluiu:
- Suzie, minha mãe não pode saber... de jeito nenhum. Ela já sofreu muito...
- Calma, meu bem. Vai dar tudo certo. Você vai ver
- disse ela. E, abaixando o tom de voz: - Como você pretende levar a droga para a Califórnia?
Naturalmente, ela fez a pergunta para que ele não desconfiasse de que ela já sabia de tudo.
Mas a resposta dele a surpreendeu:
- É melhor que você não saiba de nada, amor. Você entende, né? Não quero que corra nenhum
risco. Você não sabe de nada,
não tem nada com isso...
E, mais tranqüilo, ele continuou:
- A minha vida, atualmente, anda muito complicada, mas... você tem razão. Acho que eles vão
acabar me
esquecendo - mentiu ele - e, se Deus quiser, logo eu acerto as coisas.
E, antes que ela pudesse responder, ele brincou:
- Se você ainda me quer, Suzie - e ele esboçou um sorriso -, eu juro que enfrento o seu avô.
Em seguida, Alberto olhou para ela com um olhar matreiro e concluiu:
- Afinal, você já é mestiça mesmo... misturar um pouco mais não vai fazer muita diferença, não
é?
- Engraçadinho! - respondeu Suzie. E, apesar de tudo, os dois riram.
42 O que aconteceu com Suzie?
De repente, Alberto olhou o relógio e exclamou:
- Meu Deus! Eu tenho de me encontrar com um cara às 3 horas!
E, instintivamente, ele olhou para os lados e abaixou o tom de voz:
- vou pegar uma encomenda.
Suzie acenou afirmativamente e pensou: "Como ele é ingênuo! Foi o mesmo que me contar
que vai pegar a droga..." E aconselhou:
- Então vá, meu bem, senão você chega atrasado! Levantaram-se, e Alberto avisou:
- Infelizmente, só iremos nos ver na próxima semana. Amanhã, chegarão as novas pranchas da
equipe e
sexta-feira desço para a praia. Tenho muito serviço... Na segunda que vem, a gente almoça
juntos, tá?
- vou morrer de saudade - disse ela e despediu-se com um beijo.
Suzie preparou-se para segui-lo. Como aquele sempre fora o seu trabalho, foi fácil como tirar
doce de criança.
Tudo aconteceu como ela imaginara. No dia seguinte, Alberto levou a droga e as pranchas para
a sua oficina. Havia duas pranchas
para cada um, já com a marca do
patrocinador e o nome do dono.
O rapaz vestiu um macacão de trabalho e pacientemente começou a injetar a droga dissolvida
dentro de cada uma delas.
Suzie foi embora, pois percebeu que esse era um trabalho demorado. No caminho, pensava:
"Não entendo por que já não roubei a droga! Agora, preciso roubar as pranchas, antes que ele
as leve pra praia..."
Mas a verdade é que ela, angustiada, não sabia o que fazer:
"Coitados... se esforçaram tanto por esse campeonato... estão na reta de chegada..."
Durante dois dias, Alberto voltou à oficina e Suzie assistia a tudo acontecer, sem tomar
nenhuma iniciativa. Estava paralisada.
Quando as pranchas ficaram prontas, Alberto arrumou-as na carroceria da caminhonete e
cobriu-as com um encerado grosso,
desses que se usam para proteger cargas
em caminhões. As pranchas estavam prontas para viajar para Ubatuba e, se tudo ajudasse,
para a Califórnia.
De acordo com o teste feito com a prancha de Daniela, a heroína estava muito bem guardada.
A diferença de peso das pranchas
era insignificante, ninguém notaria
nada. E, para tirar a droga, só quebrando-as uma a uma.
O único problema que restava a Alberto agora era conseguir que a equipe fosse mesmo
competir na Califórnia. Isso ainda dependia
do desempenho deles no campeonato,
e o pior é que disso dependia a sua vida!
43 O Campeonato Paulista
Depois de grande expectativa e muito treino, chegara a final do Campeonato Paulista. com
mais de cinqüenta competidores
inscritos, o campeonato prometia
ser um sucesso.
A equipe da Generation estava muito motivada e treinara um final de semana e durante toda a
Semana da Pátria com as novas
pranchas. Todos tinham manobras originais
no bolso do colete e rezavam por boas ondas.
Na sexta-feira, como o dinheiro era curto, competidores, seus pais e amigos ajudaram o
carpinteiro a demarcar os espaços
e a construir os palanques de madeira na
praia: dos juizes, dos patrocinadores. Havia até uma pequena arquibancada para os pais. O
palanque da premiação foi todo
enfeitado com faixas e cartazes destacando
o patrocinador.
Carlos trabalhou lado a lado com seus amigos boáyboarders. Muitos outros surfistas
esqueceram as rivalidades e interessaram-se
em assistir à competição.
No sábado, chegaram à praia bem cedo. A competição iria começar com as fases masculinas -
amador e
profissional. Ansiosos, os rapazes analisaram as condições do mar.
Luisão, que correra na frente, voltou gritando:
- Turma! Ondas pequenas para médias!
- Que droga! - exclamou Guigo - Logo hoje!
- Mas formação perfeita, mano! - completou ele, satisfeito.
Os outros competidores estavam chegando e, em volta de cada um deles, formavam-se
pequenos grupos.
- Que responsa, meu Deus! Cês viram? Vamos enfrentar os principais nomes do bodyboarding
paulista! constatou Marco.
- Eu já tinha olhado a lista de inscrições - respondeu Guigo. - Vamos ter de dar tudo!
- É isso aí! - concordou Luisão.
- Fiquem sossegados que nós estaremos torcendo por vocês - prometeu Helena.
- E nosso santo é forte! - completou Daniela.
Suzie descera para Itamambuca para assistir ao campeonato. Sua fisionomia estava tensa e
seus olhinhos amendoados estavam
a cada dia mais tristes. Alberto, preocupado
com o campeonato, nada notou. com o maior orgulho, ele apresentou-a aos integrantes da
equipe e à sua família. Todos ficaram
encantados com a menina.
Daniela, que já tinha conseguido recuperar o prestígio de Carlos junto à avó, também
apresentou Carlos a seus pais:
- Pai, mãe, este é Carlos, um amigo meu. Colega da escola... e ótimo surfista.
- Muito bom rapaz - sussurrou Rosália para a filha, mas todos ouviram.
Ficou um clima estranho, até que os pais de Daniela entenderam tudo, entreolharam-se e
sorriram. Todos riram.
com uma platéia animadíssima, Alberto, como presidente da Associação Paulista, abriu o
evento, com algumas palavras. Primeiro,
os agradecimentos de praxe, com
ênfase no patrocinador. A seguir, ele aproveitou para fazer um veemente apelo à platéia:
- O crescimento do BB depende dos patrocinadores! Só comprem de marcas que invistam no
nosso esporte!
Depois, ele fez um rápido histórico do bodyboarding no Brasil. No final, usou seu mote
preferido, num momento emocionante:
- Falou bodyboarding, falou Brasil!!!
A praia lotada, com muito orgulho, repetiu suas palavras. Em seguida, gritos, assobios e muitas
palmas.
- Vocês sabem que, no profissional feminino, as seis primeiras colocadas no mundial
costumam ser brasileiras? - informou
Rosália à filha e ao genro.
- Fazem um bonitão lá fora! E é cada mina linda!
- comentou Marcelo.
44 disputa do título masculino
Começou a competição com baterias de 20 minutos cada uma. Guigo, Luisão e Marco caíram
em chaves diferentes e foram derrotando
seus oponentes um a um, até chegarem
à bateria final.
- Cês viram que, em cada bateria, eles começaram procurando ondas menores...
- É. Queriam retornar rápido para onde se formam as ondas... - explicou Helena.
- Sim - confirmou Lúcia. - Beto falou sobre isso.
- Agora, já que o mar foi subindo, eles seguiram a estratégia combinada. Nas últimas baterias,
estão procurando ondas maiores
para grandes manobras - constatou Daniela.
- O Bob, do Guarujá, está na frente do Marco. Agora é a bateria final... Ai que nervoso! -
exclamou Helena, roendo as unhas.
Todos torceram para que Marco vencesse Bob, mas uma péssima escolha de ondas atrapalhou
o rapaz, logo
de saída. Ansioso, Marco estava esperando as ondas um pouco atrasado em relação à linha
onde elas se formavam e começou
a remar junto com Bob. Logo que percebeu,
abandonou a onda, mas, mesmo assim, os juizes, com grande severidade, julgaram que ele
cometera uma interferência de remada
e Marco perdeu pontos.
Luisão usava as duas bordas da prancha, trocandoas nos momentos mais críticos, e arrancou
aplausos da platéia, quando bateu
no lip e rodou na vertical, num back
flip perfeito.
Marcelo, sentado com seus pais e Rosália, torcia muito. Nesse momento, toda a rivalidade
entre os dois esportes - surfe
e bodyboarding - sumiu, diante da amizade
que tinha pela irmã e pelos amigos.
- Vó! Olha isso! Guigo tá dando um showl Cê viu o aéreo?
Guigo e Luisão, num dia feliz, colocaram, como se não fosse nada, as mais sensacionais
manobras já vistas numa final paulista.
Não deu outra! Guigo sagrou-se campeão paulista, com Luisão como vice e o guarujaense em
terceiro. Marco ficou em quarto
lugar.
Lá pelas 16 horas, com a fase profissional masculina encerrada, chegou o momento de os
rapazes torcerem pelas meninas.
45 A vez das meninas
O mar já tinha dado uma subida considerável e ficou para as meninas aproveitarem as
perfeitas direitas que, ironicamente,
quebravam no canto esquerdo da praia.
Helena e Lúcia impressionaram pela agressividade nas ondas. Mesmo assim, Dani fez a maior
média do dia, deixando Lúcia e
Helena empatadas em segundo lugar, com
uma BB santista, na bateria em que todas se classificaram.
A última bateria aconteceu às 17 horas e valeu a pena para as pessoas que resistiram à fome e
ao cansaço. Lúcia esforçou-se
muito, mas, para tristeza das paulistanas,
a BB de Santos foi melhor do que ela.
De repente, formou-se uma grande onda para Helena. Era uma onda decisiva e, na beira
d'água, Alberto, Carlos e os rapazes
da equipe se entusiasmaram:
- Leninha! Olha a onda! - gritou Guigo, como se desse para ela ouvir.
- Graças a Deus! Ela entrou bem na onda... se posicionou bem... - analisou Alberto, tentando
manter a calma.
- Essa vai ser muito buraco! - admirou-se Marco.
- Não! A cavada foi boa. Acho que rende um tubo!
- comentou Alberto.
- Nossa! Ela tá precisando atrasar... vai mais pra trás, pelo amor de Deus! - gritou Luisão.
- Entubou! - berrou Guigo, e os cinco começaram a pular de alegria.
- Achou a saída do tubo... tá acelerando... pegou a outra seção da onda... Não acredito! -
exclamou Luisão.
- É campeã!!!
- Agora é a Dani - comentou Carlos. - Ela precisa da sorte para aparecer uma onda como essa:
irada, com muito power...
Deus estava do lado da equipe, pois foi só Carlos falar...
- Olha que onda! - exclamou Alberto. - Lá vai Dani... Pegou bem a onda... boa velocidade...
Marcelo, em pé na arquibancada, para espanto dos pais, começou a narrar como se fosse
futebol:
- A onda formou um bowll Dani usa a mesma linha de onda do el rollo, mas antes de bater no
lip já se prepara para o ARS,
minha gente! com a onda em pé, ataca o
lip, sem furá-lo, e joga-se no ar, girando até ficar de cabeça para baixo. É demais! Coloca o
corpo levantado na prancha
e começa um giro de 360 graus; aterrissa
na parede da onda e dá continuidade ao giro.
Emocionado, ele gritou:
- Pai! Não acredito! Foi um air roll spinl Essa manobra vai render um dez!
Todos comemoraram entusiasmados. Logo depois, perguntaram a Rosália:
- Você entendeu aquilo tudo que o Marcelo falou?
- É assim mesmo. Não dá pra entender - comentou Rosália. - E olha que eu estudo essa
"língua" há anos... - disse rindo.
- Só eles entendem.
- Mas que foi bonito, foi-comentou o pai, orgulhoso. Marcelo, de pé na arquibancada, gritava:
- Dani! Dani! - e completou: - Mãe! A Dani vai para o topo do pódio! Tenho certeza!
Enquanto esperavam a pontuação final, Rosália explicou para a filha:
- Se Dani for campeã, vai ser a primeira vez que uma menina de São Paulo ganha o
campeonato.
- É difícil pra gente que mora longe da praia. Que droga! - comentou Marcelo.
- Mas você vê que a força de vontade supera qualquer empecilho, né? - comentou a avó.
- Empe... o quê? - perguntou ele, franzindo a testa.
- Dificuldade, menino! - respondeu Rosália, rindo. E comentou com a filha:
- Essas crianças de hoje não têm nenhum vocabulário! Marcelo, que odiava ser chamado de
criança, virou
a cara para as duas. Poucos minutos depois, perguntou:
- E aí, vó, se a Dani ganhar, eles não vão poder negar o patrocínio para a competição por
equipes na Califórnia, não acha?
- Acho que sim, Ma - respondeu Rosália. - Mesmo porque há a possibilidade de a equipe
representar bem o Brasil lá fora.
Eles estão demais!
No dia seguinte, no jornalzinho de Ubatuba saiu a foto de Alberto, Daniela e Guigo, em
destaque. No texto, comentavam:
BB de São Paulo ganha o Circuito Paulista
Pela primeira vez, uma concorrente de São Paulo torna-se campeã (...) Essa última etapa do
campeonato, em Itamambuca, foi
a que teve o menor índice de invasão na
área de competição de todo o Circuito Paulista. Também não ocorreu nenhum tipo de tumulto
(...)
46 Vamos comemorar?
Alberto foi vitorioso! Conseguiu que os campeões paulistas daquele ano - das categorias
profissionais masculino e feminino
- fossem da Equipe Generation. Mas, também,
e o mais importante, ele conseguiu reerguer o Campeonato Paulista, derrubado pela falta de
patrocínios!
Muito cansados, mas felizes, resolveram adiar a comemoração para a próxima semana:
garoupa assada à moda dos índios.
- Queremos comemorar na praia! - disse Daniela.
- Comer na areia? Que falta de conforto! - criticou Alberto. Na verdade, ele queria
impressionar Suzie: "Ela não está acostumada
com essas coisas..."
- Larga de ser desmancha-prazer, cara! - exclamou Guigo, rindo.
- Não existe receita melhor: braseiro num buraco na areia... só sal. A garoupa assa na própria
gordura, embrulhada em folhas
de bananeira... Hum... que delícia!
- comentou Lúcia.
- Podemos trazer arroz branco já pronto - sugeriu Helena.
- Eu peço pra vovó fazer o pirão - completou Daniela.
- Tá bom, manos. Vocês são todos "naturetes" mesmo... - concordou Alberto, pensando: "A
Suzie pode achar a receita original
e a maneira de comer pitoresca... Ainda
mais que os orientais gostam de peixe..."
Alberto estava mais tranqüilo. com a vitória da equipe, nada o impediria de conseguir do tio,
que era o gerente da Generation
do Brasil, a viagem para a Califórnia.
Já em São Paulo, Alberto marcou uma reunião com os patrocinadores. Foi muito festejado
pelos prémios conseguidos e foi fácil
conseguir a viagem da equipe. Eles
iriam representar o Brasil num campeonato americano por equipes!
De volta a sua casa, Alberto telefonou para Laureano.
- Doutor Laureano! Aqui é o Joe.
- Sim. Como vai o nosso negócio? - perguntou Laureano.
- A farinha vai para a Califórnia dentro de alguns dias, doutor, sem nenhum risco.
E contou-lhe sobre a viagem da equipe.
- Parabéns, Joe! Eu sempre confiei no seu taco respondeu Laureano, satisfeito. - Se tudo correr
bem, logo que você voltar,
além da vitória na competição, receberá
a grana - disse ele, bancando o engraçadinho.
- Obrigado - respondeu Alberto, pensando com raiva:
"Eu quero mais é que vocês me esqueçam pra sempre!"
47 Suzie fica confusa
Depois de uma noite maldormida, Suzie levantou-se triste, mas menos preocupada. Dizem que
a noite é boa conselheira e ela
teve uma idéia para tentar resolver o problema
da heroína. No entanto, continuava com muito medo, pois, por ajudar Alberto, as
conseqüências para ela poderiam ser terríveis.
Durante a noite, ela se lembrou do que ele lhe contara sobre a divisão especial da Polícia
Federal. Eles tinham ajudado
Alberto, logo que ele saíra do hospital;
trataram-no bem e tornaram-se seus amigos... Sem eles, dificilmente Alberto teria largado as
drogas.
De manhã, Suzie resolveu:
"Beto está em perigo de vida! vou pedir ajuda a eles", pensou. Reuniu toda a sua coragem e
pegou o telefone:
- Alô! É do Departamento Estadual de Narcóticos?
E Suzie, apresentando-se como amiga de Alberto, pediu urgência pela gravidade do caso. Por
intermédio do diretor da Divisão
de Prevenção e Educação, ela conseguiu
marcar um encontro com os agentes antidrogas, para o dia seguinte, às 15 horas.
Depois dessa conversa, Suzie, muito tensa, saiu para almoçar com Alberto. Mal entrou no
barzinho, ele veio ao seu encontro.
Seus olhos brilhavam de alegria:
- Consegui a viagem para a Califórnia! - contou ele.
- Eu me orgulho muito de você - confessou a menina, abraçando-o.
Já sentados em sua mesinha de sempre, ele não conseguia falar de outra coisa:
- Já pensou a alegria da equipe, quando souber? O que eles ralaram... Mas valeu! Eles
merecem!
- Você também! - exclamou ela.
- Eu fico até envergonhado... Depois de tanta bobagem que fiz na vida... - respondeu, com
modéstia, Alberto.
- Não se condene, meu bem. Isso é passado. Lembre-se: você conseguiu dar a volta por cima!
Alberto sorriu, pensativo, e disse:
- Como eu tenho sorte! Cê viu? A vitória da equipe... a viagem e, o mais valioso, você gosta de
mim! No final da semana,
vamos comemorar a vitória! Peixe à moda
dos índios... Ah! E você é a convidada de honra completou ele, orgulhoso.
Mas, logo em seguida, o medo de perder tudo, como uma sombra, desceu sobre Alberto:
- Suzie, você reza pra ir tudo bem na viagem pra Califórnia? É muito importante! Mais do que
você possa imaginar...
- Claro, meu bem - respondeu ela. - Mas isso tem um preço.
Ele olhou-a interrogativamente:
- Eu também preciso de reza pra amanhã à tarde explicou ela.
- O que é? Senão, não rezo! - perguntou o rapaz.
- Seu curioso - respondeu ela, sorrindo. - Depois eu conto.
No dia seguinte, Suzie encaminhou-se para a Polícia Federal, com a esperança de que eles
tivessem uma idéia para salvar
Alberto.
Ela sabia muito bem que a polícia não tinha grande chance ao enfrentar o cartel. Sabia
também que, ao impedir que a heroína
chegasse à Califórnia, ela tinha assinado
uma sentença de morte para Alberto. Como a polícia poderia defendê-lo da vingança de Cali?
Certamente, Laureano mandaria matá-lo e, mesmo assim, o gerente de Cali também seria
castigado pelo insucesso da missão
que lhe confiaram.
Quanto a ela mesma, Suzie tentava enganar-se:
"A polícia não saberá nada de mim, portanto não correrei risco algum", tranqüilizava-se. "Pelo
contrário, vou ajudá-la...
O Triângulo Vermelho nunca descobrirá que
fui eu..."
De repente, porém, já sentada no banco do ônibus, Suzie ouviu, como se tivesse sido soprado
por alguém:
"Suzie, entregue-se! Entregue todos: Laureano e o velho Feng! Só assim você terá chance de
salvar Alberto!"
Suzie balançou a cabeça assustada, passou a mão na testa - como para espantar os demônios -
e ajeitou-se no banco.
"Não adianta. Nada poderá salvar Alberto", justificou-se ela.
Em seguida, Suzie forçou-se a olhar pela janela as vitrines das lojas e os transeuntes que
passavam apressados.
48 A decisão
Ao entrar no prédio do Departamento Estadual de Narcóticos, Suzie encaminhou-se para a sala
do diretor. Seu coração batia
acelerado, mas logo acalmou-se, pois foi
muito bem recebida pelos agentes.
Logo que Suzie começou a falar de Alberto, os policiais lembraram-se dele e ficaram
consternados.
- Chantagem? Nós temos tido boas notícias dele. Ia indo tão bem...
- Os senhores sabem que, no último campeonato de bodyboarding, os campeões paulistas são
da equipe que ele treina? - informou,
orgulhosa, Suzie.
- Coisa difícil de acontecer... São poucos os que se safam... Eu tinha certeza de que esse rapaz
teria a coragem suficiente
para largar as drogas e vencer... - era
o comentário geral, entre os agentes.
De repente, Suzie ouviu-se dizendo:
- Senhores! Eu tenho uma proposta para fazer! Todos os olhares voltaram-se para ela:
- Eu entrego Feng, o gerente do Triângulo Vermelho, e todos os seus comandados; entrego
também Laureano, um dos gerentes
do cartel de Cali, e ainda entrego dois
quilos de heroína...
Os agentes, estupefatos, entreolharam-se e voltaramse para Suzie, desconfiados:
- Mas... como...?
Suzie, com coragem, completou:
- Entrego todos e a droga, mas... há duas condições: primeiro, os senhores comprometem-se a
diminuir a minha pena; segundo,
Alberto deve ser preservado. Ninguém,
a família, os amigos, deve saber que ele esteve envolvido nisso. Mesmo porque eu é que fiz
tudo!
Depois de alguns segundos, Suzie quebrou o silêncio que descera sobre a sala. Em voz baixa,
quase inaudível, como se estivesse
falando de outra pessoa, contoulhes
sua triste história: sua infância... seu trabalho, desde pequena ligada às drogas... explicou-lhes
a rivalidade entre os
dois cartéis e como Alberto estava sendo
chantageado para levar a heroína para a Califórnia.
Suzie só não lhes contou qual o motivo que a fizera entregar-se. Mas era fácil descobrir. Os
agentes - já conquistados pela
simpatia e pela delicada beleza da garota
-, embora acostumados com tragédias semelhantes, emocionaram-se. Perceberam logo que
Suzie sacrificavase por amor.
Imediatamente, eles concordaram com as condições e prometeram fazer tudo o que
pudessem para ajudá-la. Além do mais, não
era sempre que conseguiam prender a alta
hierarquia do tráfico, sem falar da do jogo clandestino.
- Vamos combinar o dia da batida no bar do velho Feng - disse o delegado-chefe do
Departamento de Repressão às Drogas. -
Faz tempo que estamos atrás dele! Agora
chegou a nossa vez!
Combinaram tudo. Suzie prometeu que arranjaria um encontro no bar, entre os dois
traficantes, com Laureano entregando cocaína
a Feng.
- Assim matamos dois coelhos com uma só cajadada - disse um dos agentes, rindo.
- Posso fazer isso, sim - concordou ela. - Mas prefiro num final de semana. Beto volta de
Ubatuba sempre na segunda de manhã.
- Tudo bem. Domingo, às 22 horas - definiu o diretor.
E declarou:
- Vamos pegar todos, de uma só vez!
De um telefone público, Suzie ligou para Laureano. Ela estava, de fato, decidida a salvar
Alberto:
- Doutor Laureano? Aqui é Suzie, secretária do sr. Feng.
- Pois não, senhorita.
- Precisamos "daquilo". A quantidade de costume. O sr. Feng pede para que a entrega seja
feita no domingo às 22 horas, por
favor.
- Domingo, às 22 horas - repetiu Laureano, tomando nota, e pensou: "Mas que desaforado
esse chinês! Ele se acha o máximo!
Até marca hora!"
- Tudo bem, senhorita. Diga ao sr. Feng que tudo bem - respondeu ele.
49 Como vencer na Califórnia?
Após uma longa semana de espera, na sexta-feira, depois das aulas, todos foram para a praia.
Suzie prometera a Alberto que iria participar da peixada. Mas somente no sábado à tarde ela
alugou uma caminhonete e desceu
para Ubatuba.
Carlos conquistara a família de Daniela de tal modo que Rosália o convidara para ficar na casa
de praia junto com eles.
Marcelo não se agüentava de contente. Carlos
tornara-se seu ídolo. E Daniela estava exultante.
- A comemoração da nossa vitória no Campeonato Paulista vai ser demais! - diziam os
integrantes da equipe, ao convidar os
amigos.
Sábado, a equipe amanheceu na praia. Como sempre, sentaram-se na areia para ouvir as
instruções do treinador:
- Turma, eu me vejo obrigado a dizer que vocês...
Alberto parou e olhou para eles, um por um. A equipe, em silêncio, esperou, sentindo que
vinha coisa importante:
- ... são uma tribo de cascas-grossas! - terminou ele, rindo.
Felizes, todos começaram a falar ao mesmo tempo, a se abraçar, a jogar areia uns nos outros...
Até que um começou a bater
palmas para Alberto e, como se tivessem
ensaiado, todos o acompanharam. Alberto, muito comovido, agradeceu:
- Nem sei o que dizer, maninhos. Só posso repetir muito obrigado! O mérito foi de vocês...
Parou alguns segundos para se recompor da emoção:
- Galera, vamos lá! Não podemos fazer feio... lembrou Alberto. - Agora é para mostrar lá fora...
para os gringos!
Voltaram a se sentar para ouvir as instruções do treinador:
- Gente! Para ir bem em qualquer campeonato, temos dois tipos básicos de preocupação: o
primeiro tipo acontece dentro d'água.
Você vai escolher o lugar, a onda,
as manobras mais adequadas... Você vai tomar cuidado para não cometer interferências. O
segundo tipo de preocupação acontece
fora d'água.
- Fora d'água... Já sei! - interrompeu Guigo. - Os exercícios físicos, alimentação adequada...
dormir bem...
- Cuidar bem dos cabelos... da pele... Por exemplo, os da Leninha estão parecendo espiga de
milho... - brincou Lúcia.
- Evitar bebida alcoólica... - completou Marco, rindo.
- Drogas... - acrescentou Luisão, rindo mais ainda.
- Já sabemos disso tudo, Beto - reclamou Daniela.
- Os senhores permitem que eu fale? - respondeu o treinador, impaciente - É importante!
No mesmo momento eles fizeram silêncio e Alberto continuou:
- Fora d'água, além de bons BBs, vocês devem ser ótimos competidores!
A equipe olhou para Alberto sem entender.
- vou explicar - disse ele. - Um bom competidor é aquele que conhece, com detalhes, as regras
do campeonato e sabe usá-las
a seu favor. Ele sabe o que os juizes
esperam dele!
- Por exemplo? - perguntou Helena.
- Por exemplo, vou falar do Marco. Todos olharam para o colega.
- O Marco não é um BB radical. Mas, com o seu estilo, menos dinâmico do que o do Luisão, o
Marco tem a possibilidade de
conquistar mais pontos pra nós do que o
Luisão, lá na Califórnia.
- Não entendi! - reclamou Luisão, ofendido.
- Luisão! Todos nós adoramos seu estilo... aliás, lembra o do Guigo - defendeu-se Alberto. -
Mas, agora, precisamos ter
calma para não cometer erros durante as baterias
e devemos fazer aquilo que os juizes americanos mais valorizam.
- Como vamos saber o que eles mais valorizam? perguntou Lúcia.
- A nossa estratégia vai ser a seguinte. Em primeiro lugar, nós já temos as regras. Estou
traduzindo e vou distribuir uma
cópia para cada um de vocês. Em segundo
lugar, logo que chegarmos lá, antes de a competição começar, vou sentar-me com um
organizador, ou juiz, e tentar saber quais
os critérios que estão sendo adotados
para pontuar as manobras.
- O mar muda a toda hora... - comentou Guigo.
- Isso mesmo! Precisamos saber o que os juizes estão valorizando mais naquele momento.
Esquerdas? Tubos? E se não aproveitar
a onda até o final, perde ponto?
- Meu pai disse - interrompeu Helena - que o mar na Califórnia não dá onda tão boa...
- Bem lembrado, Helena. Lá, como no Nordeste... Quem está acostumado a pegar onda ruim
sai sempre com vantagem nas competições.
Vocês já observaram como os nossos
BBs e surfistas do Nordeste estão se destacando?
Depois disso, fez um gesto encerrando a conversa.
- bom, gente. Vamos trotar na beira d'água por uns cinco minutos e, depois, vamos fazer os
exercícios de alongamento.
50 A festa da vitória
O dia passou rápido e a equipe só saiu da praia às
15 horas. Estavam estafados e precisavam descansar, antes de começar a preparar a
comemoração da noite.
Alberto e os rapazes passaram o resto da tarde limpando as garoupas, presente dos amigos
que faziam caça submarina. Às 20
horas, os peixes já deveriam estar no braseiro.
Dani, Helena e Lúcia passaram a tarde ensaiando uma surpresa para Alberto.
Finalmente, chegou o momento tão esperado. A noite começou com reggae, preparando o
clima de balada. Logo que a maioria
dos amigos chegou, eles tocaram música havaiana.
Daniela, Helena e Lúcia, vestidas de havaianas, fizeram uma homenagem a Alberto e dançaram
a hula, dança típica do Havaí.
Foram aclamadas pela platéia. Em seguida,
a surfmusic animou a festa até o final.
- O peixe está delicioso! - era o comentário geral. Rosália, orgulhosa da neta, conversava um
pouco
com cada um.
No meio da festa, Lúcia começou a procurar Daniela e Carlos. Achou-os sentados a um canto,
conversando sobre a viagem à
Califórnia.
- Estou tentando, meu bem - dizia Carlos. - Como minhas notas melhoraram... quem sabe?
Nesse momento ele foi interrompido por Lúcia:
- Eu estava procurando vocês. Dani, cê sabe por que o Alberto está triste? - perguntou ela.
- Você também percebeu? Era o que eu e Carlos estávamos comentando, agora mesmo. Cê
percebeu que a Suzie não chegou? Ele
está preocupado.
- Só não pôde vir... não é nada grave - acalmou-as Carlos.
Eles nunca iriam imaginar que Suzie estava em Ubatuba.
Aproveitando que todos tinham ido para a festa, havia poucos minutos Suzie tinha forçado a
porta da casa de Rosália. Ela
entrou na sala e, cuidadosamente, escolheu
as pranchas que iam para a Califórnia. De uma em uma, arrumou-as na carroceria da
caminhonete.
Em seguida, foi para a hospedaria. Ela tinha ficado lá, na semana do campeonato. O gerente
roncava em sua cadeira na portaria...
e, mesmo que acordasse, ela arrumaria
uma desculpa, pois ele a conhecia.
Calmamente, Suzie arrumou as pranchas dos rapazes ao lado das pranchas das meninas na
caminhonete e pegou a estrada para
São Paulo.
A festa só terminou a altas horas da madrugada, quando Suzie já estava longe. Rosália, as
meninas e Marcelo foram embora
antes. Carlos, Alberto e os rapazes da equipe
ficaram para arrumar tudo e limpar a praia.
51 Outra vez?
Quando Rosália estacionou em frente de casa, Marcelo, o único acordado, logo percebeu que
alguma coisa anormal havia acontecido:
- Vó! A porta da casa está escancarada!
- Meu Deus! Entrou ladrão! - exclamou Rosália. As meninas acordaram e, antes de saírem do
carro,
Marcelo correu para a casa. Logo depois, apareceu na varanda e gritou:
- Vó! Dani! Sumiram todas as pranchas novas!!
- Não acredito! - exclamou Rosália.
Daniela, ainda estremunhada, só conseguia murmurar:
- E agora? A nossa viagem para a Califórnia... Lúcia e Helena começaram a chorar
desconsoladamente.
- Depois de tanto esforço...
- A gente tá quase lá...
- Como vamos competir sem as nossas pranchas? Só uma semana! Não dá mais tempo de
treinar com outras... - comentou Daniela,
desanimada.
Rosália telefonou para a hospedaria. Os rapazes tinham acabado de chegar da praia:
- Alberto! Roubaram todas as pranchas!
- Não pode ser! - respondeu ele, desesperado. E pensou: "Querem a heroína! Mas como
souberam?"
Em seguida, gritou:
- Guigo! Roubaram todas as pranchas das meninas! Largou o telefone e, com o coração
disparado, saiu
correndo. Os rapazes não entenderam nada. Mas Alberto
sabia que havia uma grande probabilidade de que as pranchas dos rapazes também tivessem
desaparecido.
Ao constatar que isso tinha acontecido, ele voltou, completamente aturdido, e começou a
andar de um lado para o outro, como
uma fera na jaula.
- Calma, Beto! Calma! O que é isso? - disse Guigo, assustado.
- A gente acaba dando um jeito... - consolou Luisão.
- Arrumamos outras... - sugeriu Marco.
Alberto sentara-se de cabeça baixa. De vez em quando, olhava para os amigos, calado, com um
olhar vazio. De repente levantou-se
e saiu andando pelo acostamento
da estrada.
"Eu já estou perdido mesmo... agora preciso pensar na equipe. Eles não podem pagar pelo que
não devem...", pensava ele.
"O que posso fazer, meu Deus?"
Guigo, Luisão e Marco resolveram ir para a casa de Rosália, consolar as meninas. Ao chegarem
lá, só encontraram desânimo
e tristeza.
De repente, Daniela teve a idéia:
- Carlos! Se a Generation fornecer a matéria-prima, o Beto poderia fazer outras pranchas para
viajarmos... iguais às outras...
Isso se você ajudar. Você ajuda? -
pediu ela.
- Imagine! - interferiu Lúcia. - Menos de uma semana... não dá de jeito nenhum...
Daniela olhou para Carlos, pedindo socorro.
- Calma, Dani. com os surfistas ajudando, conseguiremos até em menos tempo... - prometeu
ele. - vou já tratar disso com
a tribo.
52 A atitude dos surfistas
Carlos nem precisou usar de seu prestígio entre os surfistas.
Foi só explicar a situação:
- Bons profissionais... um problemaço...
- A equipe do Beto dos esponjas...? Eu conheço ele... gente fina...
- Vão representar a gente lá fora... Foram roubados, quase às vésperas de viajar para o
campeonato... - explicava Carlos.
- Que sufoco, cara!
- Estão precisando de ajuda, manos! Beto orienta a gente... Eu já tenho experiência...
Imediatamente, a generosidade característica dos jovens, o sentimento de união da classe
esportiva e o amor pelo país falaram
mais alto.
- Estamos aqui pra ajudar, maninho! Deixa com a gente!
Imediatamente, Carlos foi atrás de Alberto para lhe dar a boa notícia. Encontrou-o na
hospedaria, desesperado.
- Mano! Anime-se, cara! Nós vamos ajudar! A partir de segunda-feira, os surfistas estarão
"shapeando" junto com vocês! Vamos
nos encontrar na sua oficina... Todos
nós juntos...
Carlos parou de falar, impressionado com a palidez do amigo.
- Você tá parecendo um fantasma! Calma, maninho! Pra tudo se dá um jeito!
- Obrigado, amigo. Vocês vão morar pra sempre no nosso coração - disse Alberto, comovido.
- Também não estamos pedindo vocês em casamento, não... - brincou Carlos. - Tchau. A gente
se encontra na praia.
No domingo, Alberto já sonhava com o impossível: "Se Cali não descobrir agora que a droga
sumiu, até pode ser que eu consiga
acompanhar a equipe... Se não der para
eu ir, tenho certeza de que Carlos assume o meu lugar. Ele é novinho, mas entende de surfe...
é esperto, pode orientar a
equipe..."
Em Suzie, Alberto mal tinha coragem de pensar:
"Por que será que ela não veio para a comemoração da nossa vitória, como prometeu? Até
parece que adivinhou! Não posso nem
pensar... o tamanho da desilusão que a
coitadinha vai ter..."
53 A batida da Policia Federal
Era difícil saber qual dos dois, Suzie ou Alberto, estava metido em situação mais complicada.
Suzie, mal chegara da praia, já levara as pranchas para a polícia. Na mesma hora em que
Alberto, em Ubatuba, estava em situação
difícil por causa delas, em São Paulo
o problema de Suzie era ainda maior.
Caiu a noite. Na frente do bar de Feng, o clima estava tenso. A Polícia Federal, à paisana, de
tocaia, esperava.
Laureano chegou e nada percebeu. Em poucos minutos, Suzie apareceu na porta do bar e fez o
sinal combinado. Os policiais
renderam os porteiros e entraram. Sempre
seguindo Suzie, disfarçadamente, os agentes federais passaram pela porta secreta que dava
para o cassino. Ainda era cedo,
por isso havia poucos clientes. Os federais
desarmaram os seguranças e escoltaram os assustados jogadores até a rua.
Logo que Laureano chegou, ele foi introduzido no escritório do velho chinês.
Feng levantou-se e foi ao seu encontro:
- Que honra para mim recebê-lo! - saudou o chinês, conduzindo-o até sua mesa.
- A honra é minha, senhor Feng.
- O que o traz à minha humilde casa? - perguntou o velho.
Laureano não entendeu. Colocou sobre a mesa do chinês as duas latas de pó e disse:
- A sua encomenda...?
Olhou fixamente para o velho chinês e interrompeu-se, ao mesmo tempo que um alarme
disparou dentro de sua cabeça.
Feng levantou-se, assustado.
Nesse exato momento, ouviu-se um grande estrondo. A porta do escritório veio abaixo e
entraram dezenas de policiais armados.
O velho chinês levantou as mãos, desistindo
de pegar o pequeno revólver de prata que guardava na gaveta.
Laureano estava sentado de costas para a porta. Logo que viu o velho chinês levantar-se
assustado, ele, por instinto, já
pegara o pequeno revólver que sempre
trazia escondido no tornozelo, e foi num relance que tudo aconteceu.
Num segundo, Laureano virou-se e atirou para o alto. Em resposta, veio uma saraivada de
balas e ele caiu. Ficou claro para
todos que o colombiano preferira a morte
a ser preso.
O velho Feng e seus auxiliares foram todos levados pela Polícia Federal. Seriam julgados e a
pena de Feng, principalmente,
não seria nada leve.
No entanto, de modo algum esses traficantes entregariam outros do Triângulo Vermelho ou
dariam alguma informação sobre a
operação fracassada. Eles sabiam que o cartel
chinês não perdoaria a traição. Seriam condenados à morte em meio às piores torturas!
Por outro lado, também não receberiam visitas. Quem iria incriminar-se, visitando-os na
prisão?
Suzie combinara com os policiais que iria entregarse na segunda-feira à tarde. Precisava, antes,
falar com Alberto...
54 Sacrifício por amor
A segunda-feira amanheceu cinza, como se quisesse combinar com o coração de Suzie. Ela
resolveu o destino de suas poucas
coisas e, em seguida, arrumou-se com
capricho. Ia encontrar-se com Alberto para almoçar, no lugar de sempre.
O coração de Alberto não estava nem um pouco mais alegre do que o dela. Ele pensava que,
mais hora, menos hora, teria uma
morte trágica. Por isso, escolhera tomar
uma atitude drástica: resolvera terminar tudo com Suzie. Ela ficaria protegida e sofreria
menos, pensava ele.
Quando Suzie chegou, Alberto já a aguardava. Porém, antes que ele pudesse falar qualquer
coisa, Suzie já foi dizendo que
tinha uma coisa muito importante para dizer-lhe,
em particular.
- Mas... o que eu tenho a dizer também é muito importante! Mais, tenho certeza! - tentou ele.
com sua mãozinha, Suzie fez menção de tapar a boca do rapaz.
- Por favor, vamos até a sua casa - pediu ela.
A voz e a maneira como Suzie falara assustaram-no e os dois ficaram no mais absoluto silêncio,
até lá. Alberto não sabia
mais o que pensar:
"Será que ela soube do roubo das pranchas? Mas como?"
E, incoerentemente, pensou no que mais temia:
"Será que ela desistiu de mim?"
Quando chegaram, Suzie pediu-lhe que se sentasse e contou-lhe, resumidamente, seu
passado. Em seguida, confessou que tinha
roubado as pranchas e explicou-lhe o acordo
que tinha feito com a Polícia Federal.
Alberto, boquiaberto, ouvia.
Ela tirou de dentro da bolsa uma folha de jornal daquele dia e mostrou-lhe a manchete:
Presos chefões do tráfico internacional
A Polícia Federal estourou um importante ponto de drogas no Bairro Oriental, em São Paulo.
Dois chefões da droga foram presos
(...) 2 quilos de cocaína pura foram
apreendidos (...) A polícia descobriu
que os traficantes tentavam levar, escondidos dentro de pranchas de surfe, 2 quilos de heroína
para a Califórnia (...)
- Você vê, amor... eles confundiram os esportes... as pranchas...
Naquele momento, para ele, isso era ultra-secundário. Alberto demorou um pouco para
entender o que tinha acontecido... mas,
logo depois, ficou muito abalado e, em
seguida, bravíssimo!
- De jeito nenhum! Não aceito isso! Então, vamos nos entregar juntos! - gritou.
Suzie esperou que ele se acalmasse e disse:
- De jeito nenhum digo eu! Por que você vai estragar a sua vida sem necessidade?
- Por que você tem de se sacrificar por mim? - retrucou ele.
- Não é nada disso! Você foi chantageado... não tinha mais nada a ver com drogas... foi
vítima...
Nesse momento, Suzie fez uma pausa, pois percebeu que com aquele tipo de argumentação
não iria convencê-lo. Pensou alguns
segundos e mudou de estratégia:
- Amor! Se nós dois formos presos, quem vai me visitar, hein?
O rapaz olhou, surpreso, para ela.
- E o mais importante de tudo - continuou ela -, quem vai ganhar dinheiro e arrumar tudo para
nos casarmos daqui a três
anos?
Alberto, vermelho de nervoso, levantou a cabeça. Ele não podia acreditar!
- Você vai ficar somente três anos? - quis confirmar.
- com redução da pena por bom comportamento, sim. E como vou me comportar como uma
santa...
Alberto, ainda inconformado, sorriu tristemente:
- Estranho. Eu não sou vingativo, mas a morte de Laureano me deixou aliviado!
- Pois eu adoro pensar que aquele chinês desgraçado está preso! - retrucou ela. - Espero que
morra lá!
- É. Mas eu que conhecia os dois... Por incrível que pareça, apesar de os dois estarem
envolvidos com drogas... participarem,
por dinheiro, da destruição de outras
pessoas...
E Alberto sentiu um aperto no coração, lembrando que ele também fizera isso!
- Sabe - continuou, constrangido -, eles eram diferentes! Laureano tinha alguma coisa...
- Como eu? - perguntou ela, com ironia. Alberto, muito sério, pensou um pouco e completou:
- Você sabe que é diferente. Às vezes, o destino coloca as pessoas em becos de difícil saída.
Alguns têm a sabedoria e a
coragem para encontrar essa saída. Como
você!
Pensou um pouco mais e acrescentou:
- Outros são mais burros e covardes. Como eu. Nascem com tudo... mas não têm consciência
disso. Se não fosse você... Você,
sim, foi corajosa! Eu poderia ter o mesmo
fim de Laureano! Já pensou nisso?
Suzie, aflita, tentou mudar de assunto. Ela sabia que ele tinha alguma chance de escapar, mas
não era certeza.
A sorte de Alberto era que, além dela mesma, somente Laureano sabia quem fora encarregado
de levar a heroína para a Califórnia...
E Laureano estava morto. Por outro
lado, Suzie... ela viveria para sempre com uma espada sobre sua cabeça.
- Vamos pensar em coisa mais alegre, meu bem! pediu ela. - Por exemplo, a viagem para a
Califórnia. Tenho certeza de que
farão bonito lá.
Nesse momento, ela se lembrou:
- Meu Deus! E as pranchas?! Os federais quebraram todas... E agora?
- Calma, meu bem - respondeu Alberto. - Você não vai acreditar! Carlos pediu... Os surfistas
vão ajudar a gente a fazer
pranchas novas!
- Que bom! Mas dá tempo? - perguntou ela, preocupada.
- com todo mundo trabalhando, dá - respondeu ele.
- Então, hoje você não vai fazer falta e podemos passar o resto do dia juntos! - sugeriu ela,
tentando esconder a tristeza.
Afinal, eram suas últimas horas de liberdade.
55 Os preparativos para a viagem
Viajar ao exterior para competir é o sonho de todo desportista, mas é muito difícil conseguir.
Principalmente, para quem
está no começo da carreira, como os integrantes
da Equipe Generation.
Sabe-se que, nos dias que antecedem uma viagem internacional, temos de tomar uma série de
providências práticas muito aborrecidas.
No entanto, a euforia que tomou
conta dos integrantes da equipe desde que tiveram a boa notícia, em vez de diminuir com os
preparativos para a viagem, transformou-se
numa atarefada excitação.
Eles mal dormiam e só conversavam sobre a viagem:
- Foi duro convencer o velho... A sorte é que minhas notas estão demais!... Nem acredito que
também vou... - comentava Carlos.
- Que bom! Assim já vamos com torcida organizada - brincava Guigo.
Daniela não se agüentava de contente e esnobava:
- vou competir nos Estados Unidos... Meu namorado vai me acompanhar...
Lúcia nunca tinha andado de avião. Tinha vergonha de confessar aos amigos, mas morria de
medo! Talvez por isso mesmo, ela
só falasse da mãe:
- Gente! Minha mãe está apavorada! Diz que sou muito jovem para viajar sozinha. Sozinha...
Imagine! Diz que é perigoso...
- Isso não é nada! - exclamou Daniela. - Pois não é que meu pai está morrendo de medo dos
terremotos?
- Terremotos??? - perguntaram em coro, rindo muito.
Daniela ficou um pouco ofendida. Não gostou que ridicularizassem seu pai:
- Vocês não sabem que na Califórnia tem uma fenda... tem perigo de terremoto sim, seus
ignorantes! Em São Francisco, por
exemplo, vive dando...
- Meu Deus! - exclamou Lúcia. - Ainda mais essa!
- Gente, primeira viagem é assim mesmo! - disse Helena, a única da equipe que já viajara para
o exterior.
- vou contar uma coisa. Mas é segredo, hein! A primeira vez que viajei para a Europa, fiquei
admirada ao ver que as pessoas
lá eram como nós! Elas também tinham
dois olhos, um nariz, uma boca... O que eu esperava... não sei.
Carlos tomou a palavra:
- Turma! Estou preocupado com uma coisa... Todas as atenções voltaram-se para ele.
- Tá certo que lá acabou o verão, mas... o suor... O Alberto avisou que os homens só poderão
levar bagagem de mão! Vai ser
difícil não ficar fedido o tempo todo...
mesmo com desodorante. com tão pouca roupa...
- Que bobagem é essa? - perguntou Helena, curiosa.
- Pra compensar o excesso de bagagem das meninas... Depois de um segundo de surpresa, as
garotas caíram de tapas em cima
de Carlos.
- Engraçadinho! - disse Daniela, furiosa.
- Até, maninhas! - despediu-se Carlos. - Deixa eu ir... preciso "shapear"... Tá todo mundo lá
comendo pó e eu aqui no papo
mole.
Pensou um instante e completou:
- Aliás, as menininhas podiam ajudar a lixar, não?
- Imagine! - respondeu Daniela. - Temos mil coisas pra fazer! Só arrumar as malas...!
- Malas? Mas faltam cinco dias! - exclamou Carlos, admirado. E completou: - Essas mulheres...
O dia de tirar o passaporte foi uma festa, apesar da fila imensa que tiveram de enfrentar. Os
meninos tinham tirado as fotos
ali perto mesmo, numa máquina automática
de retratos. Mas as meninas mostravam suas fotos uma para a outra... comparavam... Tinham
tirado em fotógrafos, como se
as fotos fossem para books de modelos.
- Elas já estão treinando para quando ficarem famosas! - comentavam os rapazes, rindo.
- O meu cabelo não ficou bem como eu queria reclamava Daniela.
- E essa data escondendo minha blusa nova - dizia Lúcia, inconformada. - Os números
estragaram toda a foto!
No dia seguinte, pretendiam comprar roupas:
- Será que na BB Store, aonde sempre vamos, as roupas de inverno estão transadas...? -
perguntou Lúcia.
- Roupas de inverno? - debochou Helena. - Vamos derreter de calor, Lúcia!
- Nossa! É mesmo. Se aqui estamos no início da primavera, lá ainda não começou o frio! -
lembrou a menina, sem graça. -
As estações são ao contrário...
- Que bom! - exclamou Helena. - Se lá ainda está quente, vamos exibir nossas curvas...
- Que curvas? - disse Marcelo, que ouvia tudo, morrendo de inveja da viagem. E fez com a mão
como se fosse um binóculo.
As amigas entreolharam-se e desataram a rir. Helena era magrinha... parecia uma tábua!
O dia anterior à viagem foi uma loucura. Depois de muita discussão, ficou combinado que cada
um iria ao aeroporto com seus
pais. As pranchas iriam todas juntas
na caminhonete de Alberto.
50 Uma surpresa de última hora
No entanto, na véspera da viagem, anoiteceu e as pranchas não tinham ficado prontas. Ainda
faltavam os últimos retoques
em algumas delas e os surfistas ficaram
encarregados disso.
Na pequena oficina de Alberto, o trabalho era muito bem organizado. Cada um dos rapazes foi
escalado para fazer o que sabia
melhor e a mesma prancha passava de mão
em mão, até o acabamento final. A prancha era
desenhada no bloco, cortada, moldada, lixada... Cobertos de pó, eles trabalhavam brincando:
- Deus me livre! Como esponja dá trabalho...
- Que mal eu fiz a Deus pra entrar nessa fria?
- Fria? Gelada!
- A culpa toda é do Tom Morey! Quem mandou um surfista inventar essa porcaria de prancha?
- Isso é covardia! - dizia Guigo. - Vocês sabem que nós não podemos nos defender...
- Estamos nas mãos deles, né? - concordava Marco, inteirinho branco de pó.
Tarde da noite, Alemão sugeriu:
- Acho que o Beto, o Carlos e a equipe devem ir para casa agora. Afinal, vão ter de estar no
aeroporto cedinho...
Ficou combinado, então, que Alberto deixaria a caminhonete e os surfistas levariam as
pranchas para a casa dele, logo que
ficassem prontas.
Mas o que já se esperava, aconteceu! Ao raiar do dia, as pranchas ainda não tinham chegado!
Tocou o telefone e Alberto,
já nervoso, recebeu um recado curto e grosso:
- Alô! Beto! Pode ir. As esponjas vão para o aeroporto. Pode ficar sossegado! - Alguém soltou
uma risada cavernosa e bateu
o telefone.
Alberto não gostou nada da história. Ficou muito preocupado, mas, considerando o adiantado
da hora, teve de ir direto para
o aeroporto.
Quando todos se encontraram lá, o grupo de BBs chamava a atenção pela alegria. Os pais
ajudavam no que podiam: guardavam
lugar na fila, acompanhavam a pesagem da
bagagem, marcavam os lugares no avião...
A partir de uma certa hora, ninguém comentava, mas todos estavam preocupados: nada de as
pranchas chegarem! Carlos acalmava
a equipe, sem confessar que ele mesmo
estava um pouco nervoso:
-Já vão chegar, gente! O trânsito deve estar pesado... Até que Rosália não agüentou mais e foi
falar com Alberto em particular:
- Beto, as pranchas novas... estão com os surfistas... será que não tem perigo... alguma
brincadeira de mau gosto...
- Eu também estou preocupado, dona Rosália! Não sei o que pensar... Afinal, avião não
espera... mas eles tão fazendo o maior
favor... Em último caso, vocês despacham
as pranchas pró nosso endereço...
Nesse momento, ouviu-se uma música alta e um grande tumulto formou-se no saguão de
espera do aeroporto.
Todos queriam ver o que era aquilo e formou-se uma pequena platéia que assistiu,
boquiaberta, ao desfile de um cortejo inesperado!
Na frente, uma pequena banda com
bastante percussão. Em seguida, dois jovens com uma grande faixa homenageando a Equipe
Generation. Seguindo-os, uma pequena
comitiva de surfistas, cada um deles
com duas pranchas de bodyboarding embaixo do braço!
Certamente, nesses dias, o que cada um desses jovens viveu foram momentos únicos, que
ficariam marcados para sempre em suas
vidas.
- Isso, sim, é história pra eles contarem para os netos! - comentou Rosália, comovida.
A platéia assistiu, boquiaberta, ao desfile de um cortejo inesperado!
Epílogo
Três anos depois, Suzie foi libertada e a polícia ofereceu a ela o seu serviço de proteção a
testemunhas. Infelizmente,
nunca mais ela teria uma vida completamente
sossegada.
Alberto, a conselho da Polícia Federal, estava estudando a possibilidade de morarem em outro
país, uma tentativa para escaparem
da vingança dos cartéis.
Ele estava cada vez mais apaixonado e organizara uma linda festa de noivado como surpresa
para ela. Todos os seus amigos
- surfistas e bodyboarders - e suas famílias
foram convidados. Todos pensavam que Suzie acabara de chegar de uma viagem de estudos
ao exterior.
Apesar de a Generation ter sido desclassificada numa das fases do campeonato americano, os
jovens nunca mais esqueceriam
a viagem para a Califórnia.
Lúcia, Helena e Daniela eram cada vez mais amigas e continuavam a competir. Carlos e Daniela
ainda namoravam e se gostavam
cada vez mais.
Quase todos os jovens presentes estavam estudando para o vestibular. Mesmo assim,
continuavam com o esporte, pois entendiam
como ele é importante para a saúde física
e mental das pessoas, principalmente nessa época de tanto estresse.
Luisão concretizara seu sonho e era campeão internacional de bodyboarding. Viera do Havaí,
onde estava morando, especialmente
para a festa dos amigos.
Carlos, bem posicionado no ranking profissional, já era um dos orgulhos do surfe "brasuca".
Guigo colecionava prêmios, e era considerado uma das promessas do nosso bodyboarding no
exterior.
Marco ainda praticava o esporte, mas resolvera largar as competições. No último ano de
engenharia, ele precisava de mais
tempo.
Marcelo, para orgulho de Rosália, estava muito bem posicionado no ranking, e competindo
pelo campeonato estadual de surfe.
Rosália continuava se esforçando para aprender "surfes" e, de acordo com o neto, logo tiraria
o diploma!
Apesar do grande esforço, a Polícia Federal não conseguira desbaratar completamente as
organizações criminosas de Cali,
nem do Triângulo Vermelho, no território
brasileiro. Mesmo assim, o sacrifício de Suzie valeu a pena, não só para salvar seu amor, mas
também pela grande quantidade
de drogas que deixou de entrar no nosso
país por um certo tempo.
Os livros mais lidos do Brasil
Como é, gostou da história que acabou de ler?
Quanta surpresa, não?
É, na Vaga-Lume só tem livro legal.
Quem lê um quer ler outro e não pára mais.