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SUCESSO E FRACASSO ESCOLAR: VISES E PROPOSIES
Bernard Charlot
Este captulo apresenta a problemtica da pesquisa: discorre, primeiramente, sobre os marcos
tericos que a guiaram desde sua formulao. Alm disso, apresenta a experincia de dois
outros pases na rea da formao educacional de suas respectivas populaes.
So quatro os tpicos a seguir: (1) Fracasso escolar: questo antiga, problema novo; (2)
Sucesso e fracasso na escola: o que se sabe, sobre qu se debate, (3) Experincias para
melhorar o nvel de formao da populao os casos dos Estados Unidos e da Frana e (4)Brasil: desafios da formao da populao.
FRACASSO ESCOLAR: QUESTO ANTIGA, PROBLEMA NOVO
Quem aprende espera atingir seus objetivos, mas sempre corre o risco de fracassar. Desse
ponto de vista, a possibilidade do fracasso consta da prpria idia de aprendizagem. Aprender
arriscar e expor-se; uma aventura, ao mesmo tempo excitante e psicologicamente perigosa.
Sabe-se, por sinal, que, algumas vezes, crianas se recusam a aprender por medo de fracassar,
de serem devoradas, destrudas (BOIMARE, 1999). Esse medo tanto maior quando j
viveram a experincia de fracasso, humilhao e desvalorizao de si mesmas.
Sendo assim, pode-se dizer que o fracasso sempre existiu, uma vez que o ser humano no
pode viver sem aprender e, quando aprende, s vezes fracassa. Entretanto, outra a questo
que hoje se coloca sobre o fracasso escolar, que passou a ser um problema importante nas
sociedades contemporneas. J no se trata de uma mera questo pedaggica, mas de umproblema social e econmico. Para melhor entender como adveio essa perspectiva, poder-se-
ia distinguir, grosso modo, trs momentos histricos.
Na poca em que a maioria da populao nem sabia ler ou escrever ou no tinha completado a
instruo primria, isto , o que equivale 5a srie no Brasil atual, nem fazia sentido falar em
fracasso escolar.
A maioria no entrava na escola e quem tinha a sorte de ser escolarizado e a desgraa de terfracassado no estava em uma situao particular. Sabia poucas coisas, como os demais. O
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fracasso na escola no trazia problema social algum. Ao contrrio, chamava a ateno quem
adquiria inesperadamente um saber que no correspondia sua situao social. Ao longo dos
sculos XVIII e XIX, na Europa, ouviram-se e leram-se freqentemente queixas a respeito
dos que aprendiam alm do que convinha sua posio social e que, por isso, passavam a ser
amargos e sediciosos. At o iluminista Voltaire, admirado por ter um esprito aberto e
tolerante, escreveu coisas muito elitistas sobre este assunto:
conveniente que o povo seja guiado, e no seja instrudo. Ele no
digno de s-lo. Parece-me essencial que haja indigentes ignorantes. Se
vocs fizessem valer uma terra, como eu, e se vocs tivessem arados,
seriam da minha opinio, no a mo-de-obra que preciso instruir;
o bom burgus, o habitante das cidades, essa tarefa bastante rdua ebastante grande1.
Ainda na primeira metade do sculo XX no se falava em fracasso escolar. Quem detinha a
ateno era o personagem do bolsista, ou seja, o jovem europeu oriundo do povo que
continuava seus estudos graas a uma bolsa recebida por suas qualidades pouco comuns.
Mais tarde chegou um outro momento histrico, em que a maioria da populao completava
quatro, cinco, e at oito ou nove anos de escolaridade, sem por isso seguir estudando no
ensino mdio e, muito menos, no ensino superior. Foi o que aconteceu na Europa do sculo
XX at a dcada de 1970 ou 1980 e o que est acontecendo no Brasil de hoje. Em uma
configurao sociohistrica desse gnero, quem fracassa na escola encontra problemas mais
tarde, na medida em que no sabe, ou no sabe fazer o que todos sabem. Todavia, o fracasso
escolar no pesa demasiadamente em sua vida e no o impede ter uma vida normal, isto ,
uma vida com trabalho, sustento, famlia, condies decentes de vida. Realmente, ainda
existem empregos formais ou informais em que os saberes adquiridos na escola no so muitoteis e, em todo caso, no so imprescindveis. Naquela poca, quando uma pessoa passava
fome, no era por ter fracassado na escola e, sim, por ter nascido no lugar e tempo errados, na
periferia pobre de uma grande cidade ou no serto.
A esse momento histrico se segue um outro, em que os Estados Unidos, a Europa, o Japo,
os pases do Sudeste Asitico e alguns outros j entraram e que, ao que parece, constitui hoje
1 Voltaire, cartas de 19 de mar o ode l de abril de 1766, citad as por B. Charlot
(1979).
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em dia o desafio educacional para o Brasil. Nessa configurao scio-escolar, a norma que
todos os jovens de uma gerao completem o ensino mdio, geral, tcnico ou
profissionalizante. Na verdade, esse o objetivo e, de fato, h jovens que no conseguem
concluir o ensino mdio, nem sequer o ensino fundamental. So considerados em situao de
fracasso escolar.
Cabe notar que esse chamado fracasso sempre relativo a uma sociedade em determinada
poca. No sculo XVIII, quer na Europa quer no Brasil, quem sabia ler e escrever e no sabia
mais do que isso desfrutava de uma fama de pessoa instruda. H no muito tempo, quem
tinha completado o ensino fundamental constava do grupo dos brasileiros instrudos. Hoje, no
Brasil, quem sabe apenas ler e escrever pouco instrudo e quem no estudou alm do ensino
fundamental no muito instrudo. At pouco tempo, essas pessoas no eram rotuladas defracassadas, j que, na maioria das vezes, no haviam tido a oportunidade de estudar. Hoje, j
se pode considerar como fracassado o jovem que no concluiu o ensino fundamental e, em
breve ser tambm o caso de quem no completar o ensino mdio.
As pessoas que no atingiram o nvel educacional considerado bsico na sociedade moderna
correm cada vez mais o risco de ficarem desempregadas. Na Frana, por exemplo, exigem-se
diplomas para quase todos os tipos de empregos, includos os de caminhoneiro e barman, a
ponto de ser muito difcil encontrar ocupao quando no se tem diploma algum. At o
campons deve ter diploma para obter um emprstimo bancrio. Em uma situao desse
gnero, quem fracassou na escola, isto , quem no alcanou o mesmo nvel que a maioria da
populao, enfrenta muitas dificuldades para ter uma vida normal, ou seja, igual dos demais.
Sendo assim, o fracasso escolar passa a ser um fracasso socioeconmico e incide em todos os
aspectos da vida.
Cabe tambm destacar o fato de que, na sociedade moderna, ou ps-moderna, no apenas aatividade profissional que requer um nvel de escolaridade cada vez mais alto, tambm a
vida cotidiana. Estamos entrando em um mundo de auto-atendimento, senhas, processos
seqenciais, bulas de remdios, etc., que exige de ns novas competncias, formas de pensar e
novos modos de nos relacionarmos com os outros. Isto no significa dizer que ser impossvel
usar o programa da mquina de lavar roupa ou usufruir de todas as possibilidades do celular
sem ter conhecimentos de mecnica, eletrnica e informtica. Trata-se de outra coisa: de
lgica seqencial, de inteligncia das situaes, de sentido de responsabilidade. O seguranado banco ou do condomnio deve ter uma cultura bsica que no era necessria 20 anos atrs,
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bem como a faxineira, que deve saber que no se limpa o computador ou a impressora com
baldes de gua.
Em suma, tanto do ponto de vista da produo e do trabalho como no que tange ao consumo e
vida cotidiana, melhorar o nvel de educao e formao da populao como um todo se
tornou um imperativo econmico, social e cultural. J no suficiente ter bons mdicos e
enfermeiras, como h no Brasil, chegou a hora de formar tambm a pessoa que cuida da
agenda do mdico e de educar os prprios pacientes para pr fim ao desperdcio de milhares
de horas de trabalho, a cada ano, nas ante-salas dos gabinetes mdicos brasileiros.
nesse novo cenrio que comea a ser colocada, hoje, a questo do sucesso e do fracasso
escolar no Brasil. Trata-se de caminhar, o quanto antes, para uma situao em que o nvelbsico de formao do brasileiro ser a concluso do ensino mdio. Perante tamanho desafio,
preciso definir recursos e mtodos para melhorar a qualidade e a eficcia do ensino e das
escolas. J se sabia que, quando uma criana deixa a escola sem saber ler, uma lstima tanto
para ela como para os adultos. Hoje se sabe que tambm um absurdo econmico.
Entretanto, por ter se tornado um problema econmico e social, a questo do fracasso escolar
no deixou de ser tambm uma questo institucional, pedaggica, relacional, didtica e
cognitiva. A ambio desta pesquisa tambm melhor entender as situaes e os processos
que levam ao chamado sucesso ou fracasso escolar. Com a esperana de contribuir para a sua
reduo.
SUCESSO E FRACASSO NA ESCOLA: O QUE SE SABE, SOBRE O QUE SE DEBATE
Existem vrios tipos de pensamento sobre o fracasso escolar, quer espontneos, isto ,
enraizados no senso comum ou nas ideologias sociais e profissionais, quer tericos. No cabe
apresentar aqui a histria do conceito, mas importante destacar os principais argumentos,
uma vez que teremos de analisar opinies sobre o fracasso. Trs configuraes conceituais
podem ser identificadas:
acerca da noo de dom, j ultrapassada do ponto de vista terico, mas ainda viva nosenso comum e no discurso dos docentes;
em torno da noo de reproduo social, que dominou o palco argumentativo nasdcadas de 1970 e 1980 e ainda constitui o discurso dominante entre os docentes;
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em redor de noes como mobilizao, atividade, relao com o saber, que propem iralm da teoria da reproduo, sem por isso negar a desigualdade social perante a
escola.
O DOM: UMA ABORDAGEM TERICA ULTRAPASSADA, MAS UMA EVIDNCIA
DO SENSO COMUM
Por muito tempo a capacidade intelectual de aprender foi considerada como natural, ou ligada
compleio natural do indivduo.
Plato j falava de trs tipos de almas: a alma racional do filsofo, a irascvel do guerreiro e a
concupiscvel dos artesos e agricultores. S o filsofo podia contemplar as Idias em si e,
portanto, conhecer a verdadeira ordem do universo, o que lhe conferia o direito e, sobretudo, o
dever de dirigir a cidade.
No sculo XIX, Gall, com a frenologia, sustentou a idia de que as faculdades intelectuais das
pessoas e, de modo mais amplo, as suas caractersticas psquicas, so localizadas em rgos
especficos, passveis de serem identificados, uma vez que se manifestam por protuberncias
no crnio. Foram assim identificados os rgos do roubo e da morte (no crnio dos
bandidos e assassinos), bem como outros rgos mais simpticos, como o da benevolncia ouda auto-estima. Tudo isto no tem nenhum valor cientfico, claro. Mas, apesar disso, foi
feita uma longa necropsia no crnio de Einstein para saber de onde vinha a teoria da
relatividade. Sem resultado algum, obviamente.
O desenvolvimento da gentica poderia constituir um novo suporte, modernizado, dessas
opinies do senso comum. No foi assim e, pelo contrrio, esvaziou-as de toda aparncia
cientfica. Hoje em dia se sabe que no possvel imputar um comportamento a um gene ou a
um conjunto de genes, muito menos quando se trata de um comportamento to complexo
como a aprendizagem. Podem ser considerados conhecimentos slidos as seguintes idias a
respeito deste assunto.
1.No h dvida de que um determinado processo ou comportamento psquico precisa de
uma base material, anatomofisiolgica, e, portanto, gentica. Se no tivssemos um
corpo, no teramos nem emoes, nem idias, nem nada. De forma mais precisa,
sabe-se que determinadas funes cerebrais (viso, memria, fala, etc.) deixam de serdesempenhadas quando determinadas regies cerebrais so afetadas e, ainda, que um
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distrbio gentico acarreta conseqncias psquicas, em particular efeitos intelectuais.
Entretanto, observam-se tambm, algumas vezes, processos de compensao ou
substituio. Diferentemente da mquina, o organismo vivo se auto-regenera, ou, pelo
menos, tenta faz-lo.
2.Posto isto, necessrio acrescentar logo que o equipamento anatomofisiolgico, os
genes, as regies cerebrais no produzem o comportamento. No so eles que se
comportam bem ou mal, mas sim o sujeito humano, psquico e social. No se devem
confundir as bases orgnicas com as causas do comportamento. As bases so
indispensveis, mas o que orienta o comportamento o conjunto de desejos e normas
que definem o sujeito, conjunto esse que se construiu ao longo de uma histria
singular, por meio de inmeras mediaes psquicas, sociais e culturais. Em outras
palavras, no se podem postular dons, diferenas naturais ou a gentica para
explicar diferenas entre desempenhos intelectuais. Pouco se conhece sobre isso e, at
onde sabemos hoje, uma questo impossvel de ser respondida. De fato, o que
podemos observar nunca passa de diferenas em que impossvel separar o que diz
respeito natura e o que diz respeito histria singular e social do sujeito. Atribuir a
supostos dons diferenas de comportamento ou de atuao que podem ser explicadas
por diferenas entre as condies de vida e entre as histrias dos sujeitos correr o
risco de ocultar desigualdades sociais indubitveis atrs de supostas diferenas
naturais. Talvez o desenvolvimento das neurocincias permita, um dia, a construo
de modelos explicativos complexos, aqui possibilitem entender melhor os efeitos da
base orgnica sobre a construo dos indivduos e os efeitos das mediaes
socioculturais sobre os processos anatomopsicolgicos. Mas estamos longe desse
momento, se que ele chegar um dia.
Entretanto, por mais inconsistente que seja a idia de dom, ela est profundamente enraizadana ideologia profissional dos docentes. Sob esse ponto de vista, pouco mudou desde Gall e at
Plato. De nada adianta criticar e culpar os docentes, mais interessante tentar entender por
que tanta gente inteligente acredita em postulados sem fundamento e usa conceitos do senso
comum sem distanciamento crtico.
Em primeiro lugar, a noo de dom livra o docente da responsabilidade do fracasso: no
culpa sua se, por natureza, um aluno no bem dotado. No se trata de um comportamento
cnico dos professores, mas de uma proteo psicoprofissional. Cada profissional precisa de
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um corpo de princpios e de noes que o proteja dos perigos psicolgicos gerados por sua
atividade. o caso do docente, do mdico e da enfermeira, do advogado, do policial etc.
Trata-se sempre de noes que, ao mesmo tempo, protegem o profissional contra as
conseqncias desagradveis de sua atividade e repousam sobre a experincia profissional
coletiva. Essa experincia prova e confirma repetitivamente a pertinncia da noo e isto
porque, na verdade, uma experincia interpretada pelo profissional. O docente sempre
encontra alunos que fracassam apesar de o professor ter feito de tudo para ajud-lo de
tudo o que o professor sabe fazer, mas essa restrio no sua, nossa. Perante essa
resistncia, aquele no sei o qu impensvel, o que Lacan chama de real (MRECH,
2005); resta apenas uma sada: a explicao pelo dom.
Sendo assim, o dom permite explicar... o inexplicvel. Quando um docente se depara comfracassos ou tambm, alis, com xitos, inesperados, estranhos e incompreensveis, resta uma
explicao: esse aluno dotado ou, ao contrrio, intelectualmente limitado. No apesar
de ser obscura que a noo de dom faz sucesso, mas sim porque obscura: sem contornos
conceituais precisos, ela possibilita justificar o que no se consegue pensar. uma dessas
noes cuja funo prtica consiste em fechar, pelo menos aparentemente, as questes que
no se sabe resolver, sequer levantar de maneira clara.
Enquanto houver fracasso pedaggico inexplicvel, enquanto alunos continuarem fracassando
apesar dos esforos intensivos dos docentes, ressurgir a explicao pelo dom, sejam quais
forem os resultados das pesquisas. Entretanto, a idia de dom constitui um empecilho no
caminho para uma escola mais eficaz. Na realidade, difcil educar quando no se acredita na
educabilidade de cada ser humano e, desta maneira, a idia de dom simboliza a renncia a
educar, a tentar de novo, apesar dos fracassos anteriores.
A REPRODUO SOCIAL PELA ESCOLA: OS APORTES DA SOCIOLOGIA DOSANOS 1960 E 1970
Nas dcadas de 1960 e 1970 foi construda, na Frana, uma teoria chamada de sociologia da
reproduo que se espalhou pelo mundo inteiro, at mesmo no Brasil, e se tomou a explicao
dominante do sucesso e do fracasso escolares. Na verdade, existem vrias verses da
sociologia da reproduo, bastante diferentes: as de Bourdieu, de Passeron, de Baudelot e
Establet na Frana, a de Bowles e Gintis nos Estados Unidos e a de Willis na Inglaterra.
Todavia, a idia fundamental a mesma: a escola contribui para a reproduo da desigualdade
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social e, sendo assim, o fracasso escolar funcional na sociedade capitalista, burguesa etc.
Em outras palavras, o fracasso pedaggico um sucesso social da classe dominante.
Cabe evocar rapidamente as idias centrais dessas teorias, uma vez que sustentam muitos
discursos de docentes, de jornalistas, de polticos e at de alguns pesquisadores, em particular
os que atuam na rea da avaliao quantitativa.
A teoria mais elaborada foi proposta por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em
particular no seu livro La Reproduction, e da decorre a denominao dessa corrente
sociolgica2. Eles explicam que a escola transmite e avalia uma cultura que no socialmente
neutra. Assim, as crianas que receberam na sua famlia e na sua classe social uma educao
voltada para aquela cultura que a escola privilegia tm mais chances de ser alunos bem-sucedidos na escola. Esta a base de todas as teorias da reproduo. Mas Bourdieu e Passeron
criaram ou utilizaram conceitos especficos que fazem com que a sua teoria seja mais
requintada que as demais. Eles so os seguintes:
O conceito de autonomia relativa. A escola cumpre uma funo social atravs do seu papel
cultural: ela contribui para a reproduo das desigualdades, mas produz esse resultado por
meios especficos (ensinar, transmitir saberes...). Por isso, ela desfruta de uma autonomia
relativa: uma instituio social com atividades e objetivos especficos. Essa autonomia
imprescindvel para que a escola possa cumprir a sua funo social. De fato, se a escola
selecionasse de forma aberta e transparente os filhos da classe dominante e rejeitasse os filhos
das classes desfavorecidas, aconteceria uma revolta. Mas a escola pretensamente aprova os
alunos que sabem e reprova os que no sabem, o que parece justo. Porm, a sociologia mostra
que os que sabem so os filhos dos dominantes e os que fracassam os filhos dos dominados.
Portanto, a escola no apenas reproduz as desigualdades, mas tambm as legitima,
transformando-as em diferenas de saber e de competncia. Essa funo de legitimao essencial: outras estruturas sociais participam da reproduo das desigualdades, mas a escola
a instituio que d legitimidade s diferenas. Pode-se dizer tambm que os jovens das
classes desfavorecidas so vtimas de uma violncia simblica, isto , de uma violncia que
no produzida por agresso fsica, mas por meios simblicos. Do ponto de vista de Bourdieu
e Passeron, a escola uma instituio violenta, que pratica a violncia simblica, encoberta,
2
Entreta nto, c ab e a ssinalar que a id ia de rep rod u o j se enc ontra em Marx. Olivro de Bourd ieu e Passeron fo i pub lica do em franc s em 1969, e h va rias
trad u es em po rtugus.
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voltada contra os filhos das classes dominadas e em proveito dos herdeiros das classes
dominantes.
Entretanto, resta entender por que e como a cultura escolar favorece esses herdeiros. Trs
conceitos so essenciais nesse assunto33: os de habitus, de capital cultural e de arbitrrio
cultural.
O habitus um conjunto de disposies psquicas construdas m um determinado meio social,
refletindo as estruturas desse meio. Em outras palavras, nas crianas se constroem disposies
psquicas que condizem com as condies sociais em que vivem. A seguir, os indivduos tm
prticas e representaes aparentemente livres, isto , de acordo com o que lhes agrada.
Porm, o que lhes agrada decorre das suas disposies psquicas e estas acatam as normassociais do seu meio. O conceito de habitus explica por que as pessoas obedecem a regras sem
querer e sem saber. Explica, ao mesmo tempo, o determinismo social e a aparncia de
liberdade do sujeito. Cada um faz o que quer e, ao faz-lo, contribui para a reproduo das
estruturas e das desigualdades sociais. Na escola, cada um, quer seja docente, quer filho de
ricos ou filho de pobres, faz o que gosta e no faz o que no gosta e, sendo assim, todos
participam da reproduo das desigualdades sociais.
Para enfrentar a reproduo, Bourdieu e Passeron propem tambm o conceito de capital
cultural. A famlia transmite para as crianas um capital econmico (bens e servios), um
capital social (relaes mantidas pela famlia) e um capital cultural (domnio da lngua,
conhecimentos cultos, relao com a cultura etc.). Esse capital possibilita s crianas oriundas
dos meios mais favorecidos atenderem s exigncias da escola, enquanto as crianas dos
meios desfavorecidos no entendem essas exigncias. De fato, a escola valoriza e avalia
formas de cultura e de relao com a cultura que condizem com as das classes dominantes.
o que Bourdieu e Passeron chamam de arbitrrio cultural.
Essas idias ainda constituem um corpo explicativo potente, embora hoje sejam criticadas. As
obras de Christian Baudelot e Roger Establet e de Samuel Bowles e Herbert Gintis, por
interessantes que sejam, no proporcionam tantos instrumentos conceituais como as de
Bourdieu e Passeron. Elas decorrem de uma origem comum: as idias de Louis Althusser
3 Outros conceitos so essenciais no pensamento de Bourdieu, em particular o
c onc eito de c am po . Mas o nosso foc o a questo do suce sso e frac asso e sc olar,e no a teo ria de Bourdieu, porta nto, nos limitam os ao s c onc eitos teis para o nosso
propsito.
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sobre os aparelhos ideolgicos de Estado. Segundo Althusser, cada sociedade produz nos
jovens, ao mesmo tempo, competncias e maneiras de se comportarem que os levem a aceitar
seu futuro lugar na diviso social do trabalho. Na sociedade moderna, incumbe, sobretudo
escola, a funo de produzir a submisso ideolgica (ALTHUSSER, 1974).
Baudelot e Establet explicam que a escola, longe de ser nica, como se pretende, dividida
em duas redes estanques: uma rede primria-profissional, que prepara a mo-de-obra de
execuo, e uma rede secundria-superior, que forma para as funes de concepo e de
comando. Ambas as redes inculcam nos jovens a mesma ideologia, mas sob formas
diferentes, relacionadas ao seu destino social. O instinto de classe dos jovens proletrios
resiste a essa presso ideolgica de modo espontneo e no organizado, por meio da baguna,
da violncia e da recusa de estudar (BAUDELOT e ESTABLET, 1971).
Idias parecidas, adaptadas situao norte-americana, so encontradas na teoria da
correspondncia de Bowles e Gintis (1976). Segundo esses autores, a escola da sociedade
capitalista inculca formas de disciplina e de obedincia que dizem respeito aos vrios nveis
da diviso do trabalho. futura mo-de-obra de execuo, ensina o respeito absoluto s
regras. Ao pessoal de nvel intermedirio, inculca, ao mesmo tempo, o sentido de hierarquia,
de iniciativa e de responsabilidade. Aos futuros dirigentes, ensina a interiorizao das normas
e da ordem, de modo que tenham a iluso de no obedecer seno sua conscincia ao
exercerem funes de comando.
Por fim, socilogos anglfonos desenvolveram teorias da resistncia que podem ser
consideradas como um prolongamento da sociologia da reproduo, mas tambm uma critica
da sua abordagem demasiadamente objetivista (Giroux, Willis, Hargreaves, Ball)44. Em vez
de considerarem o aluno de meio popular como uma vtima passiva da reproduo, essas
teorias destacam a sua resistncia e a sua participao involuntria no processo de reproduo.A teoria mais elaborada a de Paul Willis. Com um mtodo etnogrfico, mostra que os
rapazes da classe operria (os lads) valorizam a cultura viril da fora fsica, da briga, da
cerveja e desprezam as normas escolares e os buracos de ouvido (ear-holes), como
denominam os que no Brasil designamos como CDF. A cultura da antiescola (anti-
schoolculture), ao mesmo tempo que lhes possibilita resistir ideologia dominante, levando-
os ao fracasso, participa do processo de reproduo (WILLIS, 1977; trad. em 1991). Nas
4 Ver Giroux, 1988 e o artigo de sntese de Charlot, 1992.
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abordagens desse gnero a escola no apenas um lugar onde os jovens do povo so vtimas
da dominao, da violncia simblica, do arbitrrio cultural, tambm um local de lutas
sociais.
Ao chamar a ateno sobre o fato de que os contedos e formas escolares no so neutros e
que a escola no fica afastada dos processos de dominao social, as teorias da reproduo
puseram fim a certa ingenuidade sociolgica. Esse foi o seu grande mrito histrico. Hoje em
dia, a existncia da desigualdade social em frente e dentro da escola um fato estabelecido.
Alm disso, foi tambm levantada, na esteira das teorias da reproduo, a questo da
contribuio da escola para outras formas de desigualdade que no as formas sociais, em
particular as desigualdades de sexo e de raa ou etnia.
Alm disso, as sociologias da reproduo criaram e trabalharam conceitos que passaram a
constar dos instrumentos de anlise usados nas cincias sociais: violncia simblica,
resistncia, anti-school-culture etc. Outros, como habitus ou capital cultural, continuam a ter
inegvel valor heurstico, embora sejam objeto de debates e controvrsias.
O fato da desigualdade social na escola est estabelecido. Os processos financeiros e
institucionais que geram a desigualdade so conhecidos: existncia de duas redes de ensino,
uma pblica e outra particular (no Brasil, por exemplo), hierarquizao e concorrncia entre
estabelecimentos escolares, inclusive no ensino pblico (no Japo, por exemplo), escolas
pblicas cuja populao escolar reflete as condies sociais dos moradores do bairro (no
Brasil, na Frana etc.), cursinhos pagos que complementam a escola regular e alteram a
concorrncia entre alunos (no Japo, na Coria do Sul, no Brasil etc.). Quando determinados
recursos beneficiam uma parte da juventude, entende-se, sem dificuldade, porque apenas uma
parte segue estudando, ao passo que a outra pra de freqentar a escola.
Entretanto, h um assunto que permanece bastante obscuro: por que, entre alunos que
recebem o mesmo ensino, nos mesmos estabelecimentos, com os mesmos docentes, nas
mesmas condies, diferem tanto nos nveis de sucesso? Este o problema que o Brasil ter
que enfrentar de agora em diante. Quando no conseguia escolarizar todas as suas crianas, a
prioridade era encontrar recursos financeiros e humanos para matricular todos os jovens.
Apesar de o objetivo no ter sido completamente atingido, j que ainda h crianas pouco
escolarizadas, pode-se considerar que agora a meta outra: levar os jovens brasileiros no
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apenas escola, mas tambm ao saber, s referncias humanas fundamentais, ao esprito
crtico e, se que se pode sonhar, ao prazer de aprender. Essa ambio sustenta esta pesquisa.
ALM DA QUESTO DA REPRODUO: MOBILIZAO, RELAO COM O
SABER, EFICCIA DA ATIVIDADE
A desigualdade social diante e dentro da escola um fato. A explicao pela noo de
reproduo uma teoria. O fato permanece inegvel. A teoria hoje criticada por ser
insuficiente, e foram desenvolvidas novas abordagens que incidem no modo como colocada
e pesquisada a questo do sucesso e do fracasso escolar.
As abordagens qualitativas enraizadas no interacionismo simblico ganharam espao na
sociologia da educao, em particular a etnografia da escola (WOODS, 1999;
HAMMERSLEY, HARGREAVES, BALL e al.)55 e a etnometodologia (COULON, 1993).
Foram pesquisadas as interaes e a questo do sentido da escola.
Foi proposta tambm uma teoria da relao com o saber e com a escola (CHARLOT,
BEILLEROT, CHEVALLARD e al.)6, que levanta as questes do sentido e da atividade, O
tema da atividade igualmente o foco das abordagens construtivistas e didticas.
Observam-se convergncias entre essas abordagens. Por exemplo, a noo da relao com o
saber cada vez mais usada pelos didticos, em particular, na rea da matemtica e das
cincias (MAURY e CAILLOT, 2003). Seria difcil (e intil) apresentar aqui todas essas
correntes. Portanto, nos limitaremos a alguns princpios que, a nosso ver, esto no mago das
pesquisas atuais acerca do sucesso ou do fracasso sco1ar.
1.Diante e dentro da escola h desigualdades de classe, de sexo, de cultura, de etnia ou
raa.2.Essa desigualdade origina-se em bases materiais, financeiras, institucionais. Portanto, o
combate ao fracasso escolar requer uma atuao contra a desigualdade social, a
misria, a fome, etc. Uma teoria pedaggica que desconhecer esses aspectos do
problema corre o risco de cumprir uma funo ideolgica e mistificadora: dar a
5
Ver cHARL0T, 1992 e WO ODS, 1999.6 Ver na b ibliog rafia : CHARLOT, 2000 e 2005: BEILIEROT, 1989 e 1996; MO SCONI, 2000;
HATCHUEL. 2005; MAURY e CAILLOT, 2003.
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entender que o problema do fracasso seria resolvido se os alunos pobres e sua famlia
se esforassem.
Entretanto, essas bases no podem explicar tudo. Na realidade, a desigualdade escolar repousa
sobre bases sociais objetivas, mas produz seus efeitos por intermdio de processos subjetivos.
No por ser pobre que o aluno fracassa, por no estudar o suficiente. Porm, isto no quer
dizer que a pobreza pouco importa: se o aluno no estuda o suficiente, muitas vezes porque
pobre e tem outras preocupaes que no a escola. A cadeia completa a seguinte: pobre,
luta para sobreviver, no estuda muito, fracassa. um erro desconhecer a importncia da
pobreza, outro erro desprezar a implicao do sujeito na produo do sucesso ou do fracasso
escolar. Ignor-la , na maioria das vezes, substituir o trabalho paciente de transformao real
das situaes atuais por uma denncia sociopoltica legtima, porm impotente. Alm disso, preciso deixar claro que sujeito e social no so duas palavras opostas, uma vez que cada um
de ns ao mesmo tempo ser humano, membro de uma sociedade e uma cultura (ou vrias) e
sujeito singular, original e insubstituvel. Em outras palavras:
a transformao escolar requer a transformao social; a transformao escolar contribui para a transformao social;
uma mudana sociopoltica da noite para o dia no basta para resolver osproblemas de aprendizagem da leitura mas pode ser que ajude;
todos aprenderem a ler no basta para mudar a sociedade mas ajuda, comcerteza.
O problema contemporneo do sucesso e do fracasso escolar coloca-se nessas tenses entre o
que social e o que mais especificamente escolar, o que remete s relaes sociais
estruturais e o que se refere vida psquica do sujeito. O aluno , ao mesmo tempo,
indissociavelmente, humano, social e psquico (CHARLOT, 2000 e 2005).
Nessa perspectiva foram realizadas a coleta e a anlise dos dados desta pesquisa.
3.O ser humano no objeto e nunca poder ser reduzido a esse estado, mesmo se ele
prprio o quisesse. Portanto, no pertinente considerar o aluno fracassado como
vtima passiva das classes dominantes. Ele vive uma experincia que interpreta e,
conforme o sentido conferido a essa situao de fracasso, age e reage de maneira
diferente. Pode-se ir at mais longe na anlise e perguntar em que medida, como e por
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que o prprio aluno participa da construo da sua situao de fracasso. a
perspectiva de Willis, como j foi mencionado. Podemos resgatar tambm a
abordagem de Howard Becker, com a idia de rotulao, de Irving Goffman, com o
estudo do estigma e, de modo mais geral, a da sociologia interacionista nas suas vrias
formas. Segundo Becker, quem rotulado acaba por adaptar o seu comportamento ao
que se espera dele e, assim, por participar do processo de rotulao (BECKER, 1963).
De acordo com Goffman, o estigma no deve ser entendido como uma caracterstica
fsica, psquica ou social da pessoa estigmatizada, mas sim como uma relao entre
esta ou aquela que a estigmatiza (GOFFMAN, 1975). Pode-se dizer, nessa perspectiva,
que o sucesso ou o fracasso escolar tambm uma relao social e o efeito de
processos de rotulao. Ao prolongar essa abordagem se chega idia de que o
sucesso ou o fracasso escolar no uma coisa, um fato que acontece, mas uma
situao construda ao longo da histria pessoal, institucional, cultural e social do
aluno e, ainda, de um conjunto de relaes. Segundo Charlot, preciso pesquisar as
relaes com o saber e, de modo mais geral, com o aprender, quer fora da escola quer
dentro e, para tanto, necessrio investigar as relaes do aluno com o mundo, com os
outros, consigo mesmo, com a linguagem, com o tempo etc. Assim abordados, o
sucesso e o fracasso escolares deixam de ser objetos sociomiditicos e passam a ser
objetos de pesquisa.
Esta pesquisa busca melhor compreender os sentidos do sucesso ou do fracasso escolar na
mente dos atores, quer sejam alunos, quer sejam professores ou diretores, supervisores, pais
etc. Portanto, presta ateno aos processos pelos quais os alunos constroem o seu mundo
escolar, como diz a fenornenologia, definem as situaes, segundo a expresso do
interacionismo simblico e, de forma mais particular, a de Goffman. Interessa-se tambm
pelas configuraes das relaes que constituem a relao com o saber.
4.Que o ser humano no seja objeto traz outra conseqncia: nunca suficiente conhecer
sua posio social objetiva, embora seja til, e sempre preciso saber qual sua
posio social subjetiva (CHARLOT, 2000). Cada ser humano ocupa na sociedade
uma posio que pode ser levantada e analisada de fora, com base em uma
categorizao objetiva. Por exemplo, o estatstico estabelece uma lista de categorias
socioprofissionais e encaixa o aluno numa dessas categorias. Esse processo legitimo,
mas nem sempre suficiente. De fato, quando se trata de um assunto em que importa a
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questo do sentido, como o caso nesta pesquisa, leva tambm em considerao o
sentido que o aluno confere, subjetivamente, posio social objetiva que ocupa. Ser
objetivamente filho de operrio, de desempregado, de negro, de ndio etc., uma
posio social que pode ser vivenciada de vrias maneiras: com amargura, orgulho,
vontade de demonstrar (aos demais) o seu valor etc. essa posio subjetiva que
incide na mobilizao escolar da criana e, s vezes, da sua famlia, e no a posio
atribuda na classificao estatstica do IBGE.
5.A escola uma instituio de formao, de cultura, de transmisso e apropriao de
saber, e no apenas um lugar de reproduo social. Como mencionado anteriormente,
no por ser pobre que se reprova, mas por no ter adquirido os saberes e construdo
as competncias atinentes a um determinado nvel de escolarizao. Portanto, a
questo compreender por que alunos, proporcionalmente mais numerosos nos meios
populares, no conseguem atingir o nvel esperado.
Pode acontecer que alunos no consigam aprender porque vivem em condies em que
quase impossvel aprender: trabalham para sobreviver, sofrem pssimas condies de estudos
etc. Sobra, entretanto, outro caso: quando o menino fracassa apesar de as condies familiares
e escolares serem corretas. Por que, em um pas como a Frana, onde a escola pblica boa,
com material, turmas de 25 alunos, docentes formados e corretamente pagos, h alunosfracassados? Esse problema j no apenas problema do Primeiro Mundo, est se tornando
nosso tambm, no Brasil. Nesse caso, no so somente as condies de escolarizao que
devem ser investigadas, igualmente, e antes de tudo, o confronto do jovem com o saber. Se
o aluno reprovado porque no sabe. Sendo assim, o problema da reproduo passa a ser:
por que, na escola, os alunos dos meios populares encontram mais dificuldades para aprender?
Por muito tempo, a sociologia falou da escola, do fracasso e do sucesso, da reprovao, da
seleo e da reproduo sem pesquisar mesmo esse confronto do jovem com o saber e
propondo respostas amplas demais. Arbitrrio cultural? Talvez, mas onde, exatamente? As
crianas de meios populares deparam-se com mais dificuldades do que os seus colegas de
classe mdia para aprender a ler. Conclui-se que arbitrrio cultural ensinar a ler a essas
crianas? De nossa parte, claro que no iremos concluir isto. O habitus dessas crianas no
condiz com as exigncias escolares? Talvez, mas quais disposies psquicas das crianas e
quais exigncias da escola? Ademais, esse habitus pode ser mudado ou no? Se no pode, a
sociologia est nos propondo um novo fatalismo, com determinismo inexorvel. Se pode,
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como sustenta Bourdieu, a questo passa a ser: como transformar o habitus escolar das
crianas do meio social desfavorecido? E se for assunto de capital cultural, preciso saber
como transmiti-lo na escola aos jovens que no o herdaram da famlia. Seja qual for a porta de
entrada para o problema, a porta de sada a mesma: entender o que acontece quando uma
pessoa se envolve em um ato de aprendizagem, em particular quando se trata da criana e da
escola.
Vale a pena assinalar que, na Frana, os socilogos prestaram maior ateno ao que
chamaram de xitos paradoxais. No se surpreendem quando um aluno oriundo dos meios
populares fracassa, corno se fosse coisa normal, esperada, lgica. Ao contrrio, admiram-se
quando uma criana pobre atinge um grande sucesso. Nesse caso paradoxal, no h discurso
pronto para explicar o fenmeno, necessrio abrir mo dos preconceitos, refletir e pesquisar.Por sinal, interessante tambm o caso dos fracassos paradoxais dos filhos de classe mdia, e
at de classe mdia alta, fracassos esses que foram pouco pesquisados. Quando se analisam
dados, quer sejam quantitativos ou qualitativos, o interesse pelas situaes inesperadas e
paradoxais leva a prestar ateno s margens e no apenas s maiores freqncias.
6.Aprender requer uma atividade intelectual. Pode-se ensinar, ajudar, acompanhar quem
aprende, mas ningum pode aprender no lugar do outro. Por sinal, talvez essa seja a
maior fonte de sofrimento dos docentes: eles so cobrados pelos resultados do ato de
ensino/aprendizagem, apesar de no poderem produzir diretamente esses resultados
(CHARLOT, 2005).
O esquema seguinte apresenta as ligaes bsicas entre os elementos do ato de
ensino/aprendizagem.
A atividade intelectual do aluno que produz o saber aprendido.A atividade do professor incide na atividade do aluno (mas no a determina).
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As condies materiais, financeiras, institucionais etc., incidem nas prticas do professore do aluno (mas no as determinam).
O saber incide nas atividades do aluno e do professor.Seria possvel completar o esquema introduzindo o grupo de alunos, as condies sociais, a
histria pessoal etc. Contudo, ao fazer isso, o esquema se tornaria complexo a ponto de no
esclarecer mais nada. Portanto, nos limitamos ao essencial.
O esquema evidencia que:
as atividades do aluno e do professor se constroem na encruzilhada entre, por um lado,exigncias cognitivas e epistemolgicas (que decorrem da natureza do saber a ser
apropriado) e, por outro, condies materiais, financeiras e institucionais;
a atividade do aluno o ponto de articulao entre os demais elementos do ato deensino/aprendizagem.
Portanto, a pesquisa deve prestar ateno particular questo da atividade. Esta remete a dois
assuntos ligados, mas diferentes: a questo da mobilizao para e na atividade e a questo da
eficcia.
7.O conceito de mobilizao passou a ser importante nos debates contemporneos sobre a
escola e o sucesso escolar.
Em primeiro lugar, pesquisas mostraram que a mobilizao da famlia um elemento
essencial nas histrias de xito paradoxal (LAURENS). Quando os pais encontram os
professores, valorizam a escola e o que ela ensina, as chances de o filho ser bem-sucedido so
maiores. So maiores tambm quando os pais so militantes (pouco importa do qu), uma vez
que os militantes valorizam o saber.
Em segundo lugar, as pesquisas sobre a relao com o saber mostraram a importncia da
mobilizao do prprio aluno. Charlot e sua equipe tentaram entender por que certos jovens se
mobilizam para uma atividade intelectual, enquanto outros permanecem indiferentes ao que a
escola ensina. Falam de mobilizao e no de motivao, por considerarem que se motiva
algum de fora, ao passo que se mobiliza a si mesmo a partir de dentro. O que importa o
motor interno da ao que leva a pessoa a adentrar a atividade intelectual. Beillerot e sua
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equipe pesquisaram a questo dos desejos, conscientes e inconscientes, que sustentam a
relao com o saber. (BEILLEROT, 1996).
S aprende quem entra em uma atividade intelectual, e s entra quem est animado por um
desejo. Essa mobilizao depende do sentido que o aluno confere escola, ao saber, ao fato
de aprender, quer na escola quer fora dela. Portanto, esta pesquisa atribui grande importncia
questo do sentido e da mobilizao, quer entre os alunos, obviamente, mas tambm entre
os professores e na comunidade que cerca a escola.
8.Para aprender preciso se mobilizar intelectualmente, mas tambm desenvolver uma
atividade eficaz. Alexis Leontiev, colega e seguidor de Vygotsky, define a atividade
como uma unidade entre trs elementos: um motivo, um objetivo (ou um resultadoantecipado) e uma ao (constituda por uma seqncia de operaes). Em sua
opinio, o sentido a relao entre o motivo e o objetivo, e a eficcia a relao entre
a ao e o objetivo (LEONTIEV, 1984). Essa conceituao da atividade evidencia que,
por necessria que seja a mobilizao do aluno, ela no suficiente. Estar com
vontade de saber um bom ponto de partida, mas no garante o sucesso na chegada.
A questo da eficcia da atividade de aprendizagem no est ausente desta pesquisa, mas
permanece nas suas margens. A pesquisa focaliza a questo do sentido, da mobilizao e no
entra diretamente nos aspectos epistemolgicos, metodolgicos ou didticos da atividade dos
alunos e de seus professores. Esse ponto muito importante, mas exigiria a construo de
uma rede de pesquisa mais ampla, provida de maiores recursos e, sobretudo, com grande
disponibilidade de tempo para novas investigaes.
ESTADOS UNIDOS E FRANA: DUAS EXPERINCIAS DE POLTICAS PARA
MELHORAR O NVEL DE FORMAO DA POPULAO
Os pases do chamado Primeiro Mundo comearam a se preocupar com a modernizao dos
seus sistemas educacionais a partir do fim da dcada d 1950 e ao longo da dcada d 1960.
Estavam entrando no perodo de crescimento econmico acelerado que se seguiu
reconstruo da economia europia depois da Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento
econmico fez com que se tornasse necessria uma mo-de-obra mais qualificada e, de modo
geral, uma populao com nvel de formao mais alto. O lanamento ao espao do primeiro
Sputnik, pela URSS, em 4 de outubro de 1957, contribuiu tambm para chamar a ateno dos
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pases ocidentais, em primeiro lugar dos Estados Unidos, sobre a importncia da educao na
sociedade moderna. Ao longo dos anos 1960 foram publicados muitos relatrios, foram
propostas numerosas reformas e implantadas vrias medidas.
Nos Estados Unidos da dcada de 1960, a questo mais polmica foi a da democratizao
racial das escolas. Em 1966, James Coleman publicou seu famoso relatrio Equality of
Educational Opportunity (Igualdade de oportunidades educacionais), em que sustentava que a
influncia dos colegas no aproveitamento escolar era muito significativa. Assim, a segregao
dos alunos de condio socioeconmica mais baixa era prejudicial. Consequentemente, era
necessrio integrar os jovens pobres das minorias tnicas nas mesmas escolas em que
estudavam os brancos de classe mdia. Comeou o debate a favor ou contra o h&isiig
(deslocamento por nibus de jovens negros para escolas situadas em outros bairros que noaqueles onde moravam).
Na Europa, a questo candente da dcada de 1960 foi a da escola secundria, ou seja, da
abertura a todos os jovens das sries entre o final do ensino primrio e o inicio do ensino
mdio (o que corresponde no Brasil atual aos ltimos anos do ensino fundamental):
comprehensive school/ inglesa, collge francs e seus equivalentes em outros pases, em
particular na Itlia e nos Pases Baixos.
bvio que no possvel relatar aqui os debates, tentativas, reformas, etc. relacionadas de
uma forma ou de outra com as polticas de reverso do fracasso escolar. Por outro lado,
importante aproveitar a experincia de pases que se depararam com o problema antes do
Brasil, especialmente em se tratando de um relatrio da UNESCO, organizao internacional
voltada para educao, a cultura e a cincia. Diante disso, sero apresentados, a seguir, dois
casos em que se articulam a poltica educacional e preocupaes pedaggicas: o movimento
de reforma do ensino da matemtica e das cincias nos Estados Unidos, da dcada de 1960 de 1990, e o dispositivo francs das Zones dPrioritaries (reas Educacionais Prioritrias),
implantado em 1982 e ainda vigente.
A REFORMA DO ENSINO DE MATEMTICA E DE CINCIAS NOS ESTADOS
UNIDOS
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Comeamos por indicar as principais etapas do movimento de reforma e, a seguir,
apresentamos os seus norteadores sciopolticos e pedaggicos7.
O movimento de reforma
Em outubro de 1957, o Sputnik russo foi lanado ao espao. Em 1958, a Organizao de
Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) criou um Escritrio do Pessoal
Cientfico e Tcnico com o intuito de melhorar a eficcia do ensino de matemtica e de
cincias. Em 1959, a OCDE organizou na Frana um seminrio considerado como o ato de
fundao da reforma da matemtica moderna. Esta foi implantada na dcada de 1960.
Propunha uma aprendizagem precoce das estruturas lgico-matemticas abstratas. A reforma
deparou-se com muitas dificuldades e o movimento a favor do ensino desse tipo dematemtica refluiu na dcada de 1970.
No entanto, no se renunciou idia de uma reforma do ensino de matemtica e de cincias,
muito ao contrrio. Em 1980, nos Estados Unidos da Amrica, National Council of Teachers
of Mathematics (NCTM) Conselho Nacional dos Professores de Matemtica deu incio
a uma mobilizao dos docentes, professores universitrios, pesquisadores, acadmicos e
autoridades pblicas, da qual decorreu, em 1989, o documento fundamental da reforma:
Curriculum and Evaluation Standards for School Mathematics (Parmetros de Currculo e
Avaliao para a Matemtica na Escola).
A presso por uma reforma cresceu na dcada de 1980, por causa da publicao, em 1983, de
um relatrio alarmante que iria se tornar famoso: A Nation at Risk: The Imperative For
Educational Reform (Uma nao em perigo: a necessidade de uma reforma educacional). No
mesmo ano de 1983, uma comisso publicou um relatrio cujo ttulo constitua em si um
programa de ao: Edaca/IngAmeriransfor lhe 21s/ Ceinurg: A plan f ar/loa for improziingrnathernalics, science and /echnofogy criara/loa for ali American elemen/arj and secoadar
s/uden/s se 1/mi their ac!iievemea/ is lhe hes/ ia lhe worid
I 1995 ou seja, Educando americanos para o sculo XXI: um plano de ao para melhorar
a educao matemtica, cientfica e tecnolgica de todos os alunos norte-americanos do
7
Esta seo sobre os Estados Unidos utiliza amplamente, com autorizao daautora, um captulo da tese de doutorado defendida, em 2002, por Veleida Anahi
da Silva , na Universida de d e Paris 8 (Franc a).
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ensino fundamental e mdio, de modo a que seu sucesso seja o maior do mundo por volta de
199588.
Em 1985, a American Association for the Advancement of Science (AAAS) Associao
Norte-Americana para o Avano da Cincia) deu incio a um projeto que levou, em 1989, a
um livro de referncia, Science for All Americans (Cincia para todos os Americanos). Para
definir um currculo que possibilitasse atingir os objetivos enunciados no documento, foi
constituda uma rede de trabalho. Seis equipes, cada uma com 25 pessoas (docentes e pessoal
administrativo dos vrios nveis de ensino e disciplinas), em cinco estados, e com o apoio de
consultores que participaram do projeto da AAAS, trabalharam durante trs anos. Com base
nesse trabalho, um grupo transversal de docentes elaborou um questionrio, dirigido a
milhares de pessoas. Levando em conta cerca de 1.300 respostas, recebidas de 46 estados, ogrupo transversal redigiu o relatrio definitivo, publicado em 1993:
BenchmarksfrrScienceLileracj (Referncias para uma cultura de base cientfica). Alm disso,
a AA.AS produziu livros, CDRoms, etc., e oferece programas de formao para os docentes.
A reforma ainda faltavam os Standards (Parmetros), que definiriam de forma precisa a
organizao do ensino. J em 1990, a National Science Teachers Association (NSTA)
Associao Nacional dos Professores de Cincias, deu incio a um projeto de reforma
curricular e, em 1992, publicou um documento. Em 1991, a NSTA e outras organizaes
pediram ao National Research Council (CNR) Conselho Nacional de Pesquisa , da
Academia Nacional das Cincias, que coordenasse a implementao de parmetros para o
ensino das cincias. Em 1994, um relatrio preliminar foi enviado a 18.000 pessoas e a 250
grupos. Em 1995, foi publicado o relatrio definitivo do CNR: Natioiia/Scjence Educaiin
Standards (Parmetros Nacionais para a Educao Cientfica).
O estado federal acompanhou o processo por intermdio do EisenhoiverNaalPrqgram(Programa Nacional Eisenhower), que coleta e produz material pedaggico, assessora as
reformas locais, distribui verbas para a formao inicial e continuada dos professores de
matemtica e cincias, etc.
8
A d ata de 1995 se o bt m soma ndo a 1983, ano de pub lic a o do relatrio, os 12anos do ensino bsico norte-americano. Por ensino bsico entende-se, aqui, o que
c orrespond e, no Brasil, ao ensino fund amenta l e md io.
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Apresentamos esse movimento de reforma com alguns detalhes porque ele revela um modelo
interessante de elaborao e implementao de reforma educacional.
Nesse modelo, a reforma no elaborada por um pequeno grupo de amigos do ministro, nem
por um grupo partidrio ou universitrio. , de fato, um movimento amplo, que liga vrias
associaes e autarquias: associaes de professores de matemtica ou de cincias,
Associao para o Progresso da Cincia, Academia de Cincias, Congresso e governo federal.
A ningum permitido apoderar-se do assunto como sendo seu, afastando os demais. Alm
disso, um pr-projeto foi elaborado e amplamente divulgado. As reaes foram levadas em
conta para a redao do projeto definitivo. Nesse movimento, a opinio dos docentes contou
muito. Eles aplicariam a reforma, o que lhes dava o direito de participarem, com um grande
peso, do seu processo de elaborao. Da sua parte, os docentes assumiram plenamente oprojeto, que no passou a ser um mero libi para obter melhores salrios e condies de
trabalho.
Vale a pena salientar tambm que o processo durou aproximadamente dez anos, quer se
tratasse do ensino da matemtica ou das cincias. Pode-se considerar que demorou muito.
Pode-se, ao contrrio, ressaltar que o resultado foi amplamente aceito e que a reforma no foi
alterada e anulada alguns anos mais tarde, ao passo que no Brasil a reforma da matemtica
moderna, concebida por um pequeno grupo de especialistas, teve um tempo de vida bastante
curto.
Por fim, no foram elaborados programas oficiais para serem respeitados risca. A reforma
recomenda e sugere s escolas (isto , neste caso, aos conselhos locais que dirigem as escolas
boards of education) contedos, mtodos e estratgias que foram elaborados por meio de
consulta ampla e aberta.
Os norteadores sociopolticos e pedaggicos da reforma
O documento de 1983 Educatin Americaus for lhe 2lst Ceuturji no deixa dvida a
respeito do motivo essencial da reforma: trata-se de concorrncia econmica e de poder
internacional.
A iVaco que, de modo eip etacu lar e audaq, conduziu o mundo para a
idade da tecnoleriia esta fracassando hoje em prover as suas prop riascrianas dos iustrsuuentos intelectuais necessrios para o sculo XXI
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(..j. Nossas criancas poderiam passar a ser indivduos atrasados em um
mundo tecnoloico. No devemos permitir que isso ocorra; a Amrica
no deve se tornar um dinossauro industrial9.
As citaes desta seo foram extradas da tese de doutorado de Veleida Anahi da Silva
(2002) e traduzidas pelos responsveis por esta pesquisa.
As mesmas idias so encontradas no livro da AAAS, Science for All Americans, publicado
em 1989:
A primeira preocupao o aparente declnio econmico ela Amrica.
Os fracassos dos Estados Unidos no que tange educao acabarampor ler considerados coletivamente como a principal fonte dos fracassos
econmicos.
Essa preocupao econmica levou a objetivos de democratizao do ensino da matemtica,
das cincias e da tecnologia. O documento de 1983, j mencionado, declarava que as bases
que definem a alfabetizao, cultura bsica do sculo XXI,
so necessrias a todos10 os estudantes no apenas aos sbios de
amanh, no apenas aos que tm talento e fortuna, no apenas ao
pequeno grupo para quem a excelncia uma tradio social e
econmica. Todos os alunos precisam ter bases slidas em matemtica,
cincias e tecnologia.
Em 1989, o livro da AAAS dizia a mesma coisa:
Quando se contemplam as realidades demogrficas, as necessidades
nacionais e os valores democrticos, aparece de maneira clara que a
nao no pode mais seguir ignorando a educao cientfuica para todos
os estudantes. J no se deve aceitar que a raca, o idioma, o sexo ou a
condico econmica sejam fatores que determinem quem recebe e
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quem no recebe uma boa educao em cincias, matemtica e
tecnologia.
E aqui fica claro o quadro econmico e sociopoltico da reforma: um pas que pretende ser
uma potncia econmica deve proporcionar urna boa educao em cincias, matemtica e
tecnologia a todos os seus filhos, includos os pobres, os negros, as mulheres, os imigrantes,
etc. H mais de 20 anos que os Estados Unidos esto cientes disso.
Para que a educao possa atingir os que ainda no atingia, preciso mudar os mtodos
pedaggicos. So iguais as concluses dos grupos que elaboraram as reformas do ensino de
matemtica e do ensino de cincias.
Para levar a matemtica a todos os jovens preciso contemplar suas necessidades, orientao
intelectual, estilo de aprendizagem. Deve-se ensinar uma matemtica em relao com os
problemas do mundo real (real-ivorld prohlemsj. Portanto, recomendam-se explorao,
experimentao, grupos de discusso, inquiry.
Inquiry: esta palavra sempre repetida, que pode ser traduzida aproximadamente por investi
ga&e, resume a reforma pedaggica em matemtica e, ainda mais, em cincias. No relatrio
do NRC de 1995, l-se:
A iuv6stlgao iiqui;y,) sobre questbcs autnticas ,geraelasp6las
e.>perlncias elos alunos a estratgia central para ensinar a cincia.
Os docentes focaliam a iveestigaccio, de frma predominante, sobre
fenmenos reais, nas salas de aula, fora delas ou nos laboratrios, l
onde investigaces podem ser propostas aos alunos, ou sej, l onde
possvel gui-los para elaborarem investigaccies, nos limites da, suas
capacidades (NRC, 1995, citado por Silva, 2002).
Inquiry uma atividade em colaborao com outros alunos, em interao com o docente e
com o meio ambiente. tambm um conjunto de atividades: coletar, observar, anotar,
desenhar, medir, contar, entrevistar etc. ainda um mtodo inspirado pelas abordagens
cientficas. Inquiry muda contedos e mtodos da educao cientfica e, ainda, a relao com
o mundo ambiente, com os outros, consigo mesmo e, afinal, a relao ao mesmo tempo com a
cincia, com o ensino, com a escola (SILVA, 2002).
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decidido levar 80% da gerao at esse nvel no ano 2000, e os outros 20% deviam receber
uma formao profissionalizante pela via da aprendizagem prtica nas lojas, usinas, oficinas,
etc. A oferta dos lycees (liceus), encarregados do ensino mdio, foi ampliada, acrescentando
sries profissionais s sries gerais e tecnolgicas j existentes. A meta de 80% era ambiciosa
demais e no foi atingida. Todavia, hoje, na Frana, cerca de dois teros dos jovens de cada
gerao completam o ensino mdio. Os demais ora se formam pela aprendizagem
profissionalizante fora da escola, ora abandonam o ensino mdio antes do final, ora constam
dos cerca de 10% dos jovens em situao de fracasso escolar grave. Vale a pena assinalar que,
em todos os grandes pases do chamado Primeiro Mundo, se encontra uma minoria de 8% a
15% de jovens aqum do nvel de formao considerado como mnimo no pas.
Para entender essa situao, preciso distinguir o fracasso escolar relativo e o fracassoabsoluto ou quase absoluto (CHARLOT, 1987). Quando um jovem no aprende a ler e no
tem domnio das quatro operaes da aritmtica, faltam-lhe as prprias bases da cultura
escolar e isto um smbolo de fracasso. Ainda h, na Frana e no Brasil, esse tipo de jovem.
Todavia, entre os alunos considerados fracassados na Frana, a grande maioria entrou no
colgio e completou o que corresponderia aqui ao ensino fundamental; esses alunos sabem ler
e fazer contas, embora tenham dificuldade de entender as sutilezas de um texto. Na Frana,
eles so considerados fracassados, enquanto no Brasil, constam da maioria da populao. Seufracasso relativo apenas ao nvel de sucesso da maioria dos jovens, e diferente do fracasso
chamado por simetria de absoluto dos jovens que nem conseguem ler ou nada entendem do
que lem.
Os socilogos da reproduo no prestaram ateno a essa diferena, ao passo que a escola,
ao mesmo tempo, educa os jovens e contribui para a reproduo social. O exemplo da Frana
evidencia a importncia dessa distino. Quando criou o colgio e, assim, abriu a todos o
ensino secundrio, o governo francs organizou trs sees diferentes e, de fato, socialmente
marcadas. Ao fazer isto, democratizou o sistema de ensino, mas manteve para os filhos das
classes dominantes uma seo de excelncia. Quando o colgio passou a ser nico,
permaneceu a seleo socioescolar graas ao ensino mdio, em que, aos poucos, a
Nem todos conseguem o batca/aiaiat, exame e diploma nacional de final do ensino mdio. que
da direito automatico a uma vaga em uma universidade (no ha vestibular na Frana; quem
obtm o hataJaijrea1, que um exame e no um concurso, pode entrar e entra nauniversidade). Todavia, mais de 800o desses jovens conseguem esse diploma seo
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matemtica e fsica se tornou a seo da elite2. Hoje, mais de dois teros de cada gerao
cursa o ensino mdio, mas em sees que, de fato, so hierarquizadas. A sociedade capitalista
moderna precisa de uma escola que hierarquize os jovens e, ao proceder desta maneira, cria o
fracasso relativo. Ela no precisa de jovens que no saibam ler, que fiquem desempregados e
que s vezes se tornam violentos, entram no trfico, ou seja, de jovens que constituem mais
uma fonte de despesa do que uma oportunidade de ganho.
Portanto, o fracasso escolar assim entendido no beneficia a sociedade capitalista moderna,
nela includa a sociedade neoliberal globalizada. E um investimento perdido e pressupe
despesas com polticas de assistncia social, de segurana, de represso. Isto se tornou muito
claro na Frana atual. Os fenmenos de imigrao (com uma maioria de imigrantes islmicos
oriundos de pases africanos), de crise industrial e desemprego, de segregao espacial dospobres, articulados uns com os outros, levaram a uma situao em que existem, na periferia de
cidades grandes ou mdias, bairros onde a maioria da populao constituda de filhos e
netos de imigrantes, hoje franceses, pobres, desempregados. As escolas desses bairros
acolhem at 80% de jovens oriundos dos fluxos imigratrios. A maioria desses jovens
calma, estudiosa, etc., mas h uma minoria agitada, revoltada, engajada no trfico ou na
militncia islmica fundamentalista. Essa minoria foi recentemente s ruas e evidenciou o
quanto profunda a fratura social nos bairr os da periferia.
Em uma situao desse gnero, a questo educacional muito importante. A Frana tentou
enfrentar o problema, que j tem quase 25 anos, por meio das Zunes dLducation Pdorilaires
(ZEP) Areas de Educao Prioritrias).
A POLTICA E A PEDAGOGIA DAS ZONES DDIJCTION PRIORITA IRES (REAS
DE EDUCAO PRIORITRIAS)
O conceito de reas de Educao Prioritrias nasceu na Inglaterra, em 1967, no relatrio de
Lady Plowden entregue ao governo trabalhista, que havia solicitado recomendaes para
enfrentar a crise
No liceu francs existem vias diferentes (geral, tecnica e prossiunalizante) e, em cada uma
delas, sees diferentes, conforme as disciplinas ou tecoicas dominantes ou as profisses de
referncia das escolas primrias inglesas. O relatrio props, entre vrias medidas, uma
poltica de discriminao positiva (poithe dLcrirniatn), atribuindo mais verbas a escolas ou
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reas socialmente prioritrias (Educacina/PriritjAreas). O dispositivo foi implantado em 1968
e abandonado aos poucos depois de uma avaliao negativa, em 1972, e da chegada ao poder
dos conservadores e de Margaret Thatcher. Na mesma poca, a idia foi adotada por um
sindicato de docentes franceses, e da passou para o Partido Socialista, em 1977. Em maio de
1981, o socialista Franois Mitterrand se elegeu presidente da Repblica e, j em julho, o
governo anunciou a criao das Zones dducazionprortaires. Essas ZEP, como so
comumente chamadas, foram organizadas em 1982 e a idia se espalhou por vrios pases da
Europa e mesmo alm dela.
A idia bsica a de discriminao positiva, traduo direta da expresso inglesa. O objetivo
fundamental das ZEP, em todos os textos oficiais, o combate ao fracasso escolar, em
particular o fracasso das crianas das famlias desfavorecidas. Trata-se de atribuir maisrecursos s escolas freqentadas por essas crianas, que receberam menos da sociedade.
discriminao, mas positiva. Notem que se poderia equiparar essa idia de dvida social
usada no Brasil. Todavia, logo se percebeu que esse suplemento de verba apenas permitia
diminuir em dois ou trs o nmero de alunos em cada turma, o que no mudava a situao de
maneira sensvel. Portanto, idia de discriminao positiva foi acrescentada a de projeto.
Concretamente, uma ZEP contempla, no caso mais freqente, algumas escolas maternais e
primrias (l a 5a sries) e um ou dois colgios (6 a ga sries). S podem participar das ZEP
estabelecimentos escolares pblicos (que representam mais de 80% dos estabelecimentos
franceses). A ZEP designada como tal pelo Ministrio da Educao Nacional, em uma
articulao entre os escales central e local do ministrio. Os critrios utilizados so de ordem
social e escolar, em particular: categoria socioprofissional dos pais, percentual de
desempregados, nmero de intervenes da assistncia social, percentagem de alunos
estrangeiros, atrasados etc. Algumas vezes, ocorreram presses polticas locais, mas so casos
raros. As unidades dependem administrativamente do fiscalizador local das escolas
(funcionrio pblico), mas, na maioria dos casos, o personagem mais importante o
coordenador da ZEP. Trata-se de um docente, cujo horrio de trabalho reduzido em 5O (ou
100% nas maiores ZEP).
A ZEP elabora um projeto, que leva em conta o projeto de cada escola, de carter coletivo. O
papel do coordenador fundamental para ultrapassar o isolamento de cada escola, fomentar a
elaborao de um projeto coletivo e, a seguir, acompanhar a sua realizao. Muitas vezes, oprojeto focaliza aes ligadas leitura (inclusive a organizao de uma biblioteca), cultura
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geral (visitas a museus, convites a escritores ou pintores locais), s relaes com o bairro
(jornal ou rdio da ZEP), a eventos interculturais (festivais, por exemplo). A administrao
incentiva muito, em particular por meio das verbas atribudas, as parcerias entre as escolas,
por um lado e, por outro, associaes culturais e sociais, prefeitura, instituies culturais
(teatro, museu...), etc. Em princpio, o projeto elaborado para trs anos e a ZEP avaliada
no final desse perodo. De fato, h pouca avaliao institucional das ZEP.
A principal dificuldade com que se depara o dispositivo ZEP que ela se transforma em
instituio permanente. rarssimo que uma ZEP saia do dispositivo depois de trs anos. A
maioria das ZEP criadas em 1982 ainda existe e o nmero de ZEP aumentou muito: eram 362
em 1982, so 710 em 2005. Para enfrentar essa dificuldade, o ministrio criou, em 1998, redes
de educao prioritria, ou seja, dispositivos mais leves e flexveis que as ZEP quepossibilitam acolher escolas a serem ajudadas, mas sem participao plena na ZEP e, tambm,
dar uma ajuda s escolas que estavam em ZEP quando esta no foi renovada. Entretanto,
permanece a dificuldade bsica. Ajudam-se escolas de um bairro para elas melhorarem o nvel
de sucesso dos alunos. Caso melhorem mesmo esse nvel de sucesso, saem da lista das escolas
com dificuldades e perdem a verba suplementar com o risco de retornar s dificuldades.
Caso as escolas no tenham melhorado nada, permanecem na lista das escolas com
dificuldades, e se pode colocar a questo de saber por que uma escola que no soube usar averba suplementar para resolver os seus problemas iria receber nova verba.
Alm disso, os franceses cometeram o mesmo erro dos ingleses: atribuiram aos docentes de
ZEP um prmio insuficiente para atrair os mais experientes e que complica a questo da
eliminao do dispositivo. Ensinam nas ZEP mais docentes novos do que em outras regies.
Na realidade, o trabalho nessas escolas mais difcil, o prmio no compensa e uma parte dos
docentes que a trabalha no tem outra opo. Se eles investirem muito, a ponto de melhorar a
situao, o salrio baixa porque a ZEP acaba e, com ela, o prmio ZEP!
Outra dificuldade fundamental de ordem pedaggica. Aconselha- se a ZEP a fazer projetos
relacionados com a vida cotidiana dos alunos, a se ligar ao bairro (os franceses no falam em
comunidade), a se abrir etc. A pedagogia oficial das ZEP prima da pedagogia valorizada
pela reforma do ensino das cincias nos Estados Unidos. Mas, paralelamente, os docentes
devem cumprir as obrigaes dos programas oficiais e so avaliados em relao a eles. Dessa
forma, encontram-se nas ZEP, nas suas escolas e classes, por um lado, uma pedagogiacotidiana que hesita entre a tradio e o salve-se quem puder e, por outro, projetos
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interessantes que devoram o tempo necessrio para cumprir o programa. As ZEP no
resolveram o problema que fica tambm no centro da reforma do ensino da matemtica e das
cincias nos Estados Unidos: a dupla injuno contraditria (o ckubk bind da teoria da
comunicao) de levar os alunos a um saber constitudo, socializado, predeterminado e de
acompanhar as suas experincias, descobertas, investigaes.
Talvez seja por isso que a avaliao das ZEP no leve a concluses otimistas. preciso ter
cuidado com esse tipo de avaliao nacional de um dispositivo por natureza local. Existem
unidades cuja existncia no ultrapassa o documento oficial: o responsvel redige o projeto,
as escolas compartilham o dinheiro e, na verdade, nada acontece. H outras ZEP que atingem
resultados bastante positivos, inclusive no que tange s aprendizagens. Entretanto, a avaliao
nacional permite ter uma idia dos pontos fortes e das fraquezas do dispositivo. Ora, todas asavaliaes realizadas, desde 1982, chegam s trs mesmas concluses:
1.o dispositivo ZEP eficaz em diminuir a tenso, os conflitos, a violncia nas escolas e
melhorar a vida cotidiana de cada um;
2.o dispositivo no mostra eficcia nenhuma no que diz respeito s aprendizagens e
questo do sucesso e do fracasso escolar: sob esse ponto de vista, no diminui a
discrepncia entre as escolas das ZEP e as demais;
3.no entanto, essa discrepncia no cresceu, ao passo que as condies sociais de vida
nesses bairros pioraram. Pode-se considerar que a existncia das ZEP impediu que o
fracasso escolar passasse a ser ainda maior.
Hoje, os franceses consideram que as ZEP constituem um dispositivo positivo, mas que no
resolvem o problema do fracasso escolar.
O BRASIL: DESAFIOS DA FORMAO DA POPULAO
Os ventos do ps-guerra que sacudiram os Estados Unidos e a Frana, no bojo dos quais se
colocaram novos desafios para a educao nacional daqueles pases, tambm se fizeram
presentes no Brasil. Na verdade, esse movimento em direo a uma escola que enfrentasse as
exigncias do mundo contemporneo parecia explodir no sculo XX, quando o Brasil iniciava
de forma mais contundente a passagem de uma economia predominantemente rural para a
urbana, industrializada.
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A despeito de tudo o que se tentou realizar anteriormente, s na aproximao da metade do
sculo XX o pas iria construir um sistema educacional para atendimento s grandes massas:
na estimativa de (SAVIANI, 2004, p. 50-5 1), entre 1933 e 1998, enquanto a populao global
do pas quadruplicou, a matrcula geral aumentou 20 vezes, passando de 2.238.773 para
44.708.589 alunos3.
A partir da dcada de 1960, intensas experimentaes educacionais aconteceram tambm no
interior do campo educativo, pressionando pela realizao de reformas que culminaram em
novas leis federais (1961, 1971 e 1996). Mas o pas terminou o sculo com uma gama de
problemas educacionais a serem enfrentados, alm dos que ainda haviam sido herdados do
sculo XIX por exemplo: taxas relativamente altas de analfabetismo da populao a
requererem aes especficas quanto os que chegavam com o novo sculo se avizinhando como, por exemplo, a problemtica da incluso digital. Assim, era preciso universalizar o
ensino primrio (o que fez, por exemplo, a Frana no incio do sculo XX) e o ensino
fundamental (a Frana, nos anos 1960 e 1970), generalizar o ensino mdio (Frana anos
1980 e 1990, ainda no estando concludo esse esforo) e expandir o ensino superior. Mas, ao
contrrio da Frana, que distribuiu tais aes educativas ao longo do tempo, no Brasil est
sendo preciso fazer tudo isto concomitantemente, desde a alfabetizao de adultos criao
de um sofisticado sistema de ps-graduao nacional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional em vigncia, seus diversos aparatos
jurdicos de regulamentao e complementaridade e o corpo de diretrizes e referncias
como os Parmetros Curriculares Nacionais podem ser considerados equivalentes, no
plano da necessidade de aes, ao que outros pases, tais como Estados Unidos e Frana,
tambm sentiram4. Mesmo assim, dadas as imensas diferenas entre aqueles pases e o
Brasil, mais complicado pinar um programa especfico que tenha, aqui, uma natureza
semelhante ao que foram as ZEP na Frana ou a reforma do ensino da matemtica e das
cincias nos Estados Unidos, na busca do enfrentamento do que se configurava, para aqueles
pases, em uma situao de fracasso escolar5.
A prpria noo de fracasso escolar no Brasil parece ser bastante difusa; no h ainda, no
plano da ao, uma agenda na qual se possa indicar o que vem conseguindo reunir os
diferentes segmentos sociais ao redor da priorizao da educao nacional e da busca do
sucesso escolar. Do mesmo modo, no plano da construo de conhecimento sobre a temtica,o impacto dos estudos parece se restringir ao uso que deles se faz no mundo acadmico.
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Muitos desses trabalhos, diga-se, so bastante significativos como o caso do estudo
seminal que foi desenvolvido por Patto, em um livro que ajudou a formar, desde ento, vrias
geraes de educadores brasileiros (PATTO, 1999). Por outro lado, parte da produo ainda
rudimentar, como deixa transparecer um estudo desenvolvido por (ANGELUCCI e/ai. 2004),
que abordam o estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar no perodo de 1991 a 2002
na Universidade de So Paulo USP.
Angelucci e outros identificaram quatro concepes de fracasso escolar como fontes
norteadoras das pesquisas analisadas. A primeira entendia o fracasso escolar como um
problema psquico em qu havia uma certa culpabilizao das crianas e de seus pais. De
acordo com aqueles autores, tais pesquisas partiam do princpio de que o fracasso escolar se
deve a da ccpacidade intelecinal dos alunos, decorrentes de problemas emocionais. A segundaconcepo enfocava o fracasso escolar numa perspectiva tcnica, ou melhor, na inadequao
das tcnicas de ensino. Assim, atribua-se o fracasso do aluno falta de domnio da tcnica
correta por parte do professor. Havia, portanto, uma transferncia da culpa do aluno para o
professor. O enfoque mudava quase que radicalmente na terceira concepo, ao abordar o
fracasso escolar como uma questo institucional. Aqui o entendimento era que o fracasso era
produzido, na medida em que considerava a escola como instituio inserida em uma
sociedade de classes regida pelos interesses do capital, sendo a prpria poltica pblica, aservio daqueles interesses, um dos determinantes desse fracasso. A quarta e ltima
concepo, ainda que calcada na mesma lgica anterior, isto , na sociedade de classes,
deslocava o foco das atenes para o interior da instituio escolar, mais especificamente,
para nas relaes de poder estabelecidas no interior da escola e aqui se partia do princpio
de que a escola, ao estruturar-se na cultura dominante, estaria praticando um ato de violncia,
pois passaria a no reconhecer, ou a desvalorizar, a cultura popular.
Numa viso longitudinal, pode-se afirmar que as elevadas taxas de reprovao e de evaso
constituem objeto de pesquisas e de polticas pblicas h longo tempo. Mudam, porm, as
suas percepes e explicaes. Nos anos 1960, eram freqentes as anlises que realavam a
pobreza dos alunos (e em muitos casos dos professores) e a insuficincia de recursos, mtodos
e tcnicas da escola para promover o seu sucesso, aplicando-se com freqncia a teoria dos
sistemas, Os insumos, basicamente, explicavam os resultados. Deslocando o foco para a
caixa preta, foram importadas concepes sobre a privao cultural dos alunos, que deveria
ser suprida a partir da pr-escola. A esta concepo de ausncia de cultura do aluno ou de sua
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deficincia, contrapuseram-se crticas antropolgicas de grande peso que contestaram a
cultura da pobreza e as suas polticas compensatrias. Poppovic, no Brasil, foi uma das
principais autoras a refutarem essa perspectiva, propondo o conceito de marginalizao
cultural (POPPOVIC, 1972). A criana socialmente desprivilegiada possui uma cultura rica,
voltada para os desafios do ambiente em que vive, capaz de assustar uma criana de condio
social mais alta. Entretanto, a sua cultura desvalorizada e marginalizada pela sociedade e
pela escola, que, assim, impe requisitos.
A esta viso antropolgica e psicolgica correspondeu, no campo da sociologia, a teoria da
reproduo, j mencionada. Uma das obras-chave foi a de Cunha, que confrontou o discurso
liberal da igualdade de oportunidades com as condies concretas da educao brasileira,
concluindo que o acesso e a qualidade esto desigualmente distribudos (CUNHA, 1975).Mais ainda, a escolarizao, ao avaliar o aproveitamento, se organiza para premiar as aptides
desenvolvidas pelas classes no-trabalhadoras. As chamadas razes de ordem intelectiva que
impedem o progresso escolar so, na verdade, geradas por distines sociais prvias que no
refletem o mrito individual. Assim, a escola contribui para reproduzir as linhas de classe.
A essa posio, quase fatalista, se contraps outra, ainda nos anos 1970, que enfatizou os
fatores intra-escolares do fracasso. As condies internas da escola podem ser menos
selecionadoras, por isso se destacou o sentido poltico da prtica do professor, que se realiza
por meio da sua competncia tcnica. O sentido poltico da escola dado pela transmisso de
conhecimentos teis tambm aos dominados. Cria-se, deste modo, uma contradio:
promover a escolaridade interessa classe dominante, mas esta mesma escola pode transmitir
conhecimentos relevantes aos dominados (MELLO, 1982). Estudando o fracasso escolar, a
pesquisa verificou que o perfil de bom aluno traado pelos professores se fundamenta em
padres dificilmente alcanveis pela criana pobre. Em geral, as explicaes do fracasso no
questionam a ao da escola, ao contrrio, culpam o aluno pelo fracasso. Revela-se, assim, a
recuperao do pensamento liberal, que considera as pessoas e a sua posio social em termos
de dons ou peculiaridades tidas como autnomas em vista de condies objetivas da vida
material. Se a escola promotora da igualdade de oportunidades, a criana fracassa por falta
de esforo individual. Deste modo, absolve-se a escola e condena-se a vtima.
As crticas s teorias da reproduo passaram a ver a escola como uma arena onde se exerce a
resistncia dos alunos e das classes populares e onde geraes, culturas e valores diferentes seopem. Assim, o fracasso mais complexo que o alegado. A reproduo no uma forma de
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barro, em que a escola se encontra a servio das classes dominantes, mantendo a sociedade de
classes.
Por outro lado, h trabalhos que registram o que os prprios afetados diretamente pelo
fenmeno do sucesso/fracasso escolar os alunos pensam sobre a temtica. Um estudo
transcultural envolvendo estudantes do Brasil, da Argentina e do Mxico, desenvolvido por
Ferreira e/ai. com o objetivo de identificar a atribuio de causalidade ao sucesso e ao
fracasso escolar, verificou no haver diferenas quanto explicao de seus prprios
desempenhos. Os resultados do estudo evidenciaram que
a causa bsica a que alunos mexicanos, a)genziu1os e brasileiros se
referenciam, ao explicarem seu prprio desempenho acadmico e o deoutros a/tinos, sejam eles bem ou malsucedidos, estudem em escolas
pblicas ou particulares e pertenam ao seu prprio pas ou a outro pas
o eijcff co, seguido, a certa cia, da capacidade, eipecialmenle quando
se hata de explicar sucesso escolar (FERREIRA, et al., 2002).
Ferreira assinala, no entanto, que a maioria das pesquisas brasileiras que envolvem crianas
do ensino fundamental aponta para o fato de que os alunos tendem a atribuir seu sucesso a
fatores internos, com destaque para o esforo (FERREIRA, 2002). Por outro lado, o fracasso
tende a ser atribudo a causas internas e externas, isto , falta de esforo e dificuldade da
tarefa, respectivamente. Os resultados indicariam, portanto, que os alunos tendem a se
responsabilizar tanto por seus sucessos quanto por seus fracassos.
Tal fato pode ser corroborado pelos resultados de uma pesquisa realizada por Ireland &
Carvalho com alunos da 4a srie de cinco escolas pblicas, em que se constatou que mais de
90% desses alunos atriburam a si mesmos a responsabilidade pelo fato de algum dia virem asofrer uma reprovao (IRELAND & CARVALHO, 2005). Nesse sentido, Tratenberg, em
seu polmico artigo A escola organi7acdo complexa, ao comentar o formato da instituio
escolar, assinala que
urna escola jhndada na rnemori7acdo do conhecimento, num sistema de
eXames que mede a eficcia dapreparaco ao mesmo, nadaprovando
quanto forrnaco durvel do indivduo, desenvolve urna pedagogia
paranica, estranha ao concreto, ao seu fim. Quando falha, inteeprefa
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cite evento corno reiponsahilidade do educando. (TRATENBERG,
1976).
De certa forma, o que se observa nos resultados da maioria das pesquisas que as atribuies
do sucesso e/ou do fracasso escolar raramente so concebidas como resultado da conjuno
ou ausncia dela de quatro fatores: o esforo do aluno, o compromisso do professor, a
estrutura da escola e o envolvimento dos pais.
Os prprios instrumentos de verificao do sucesso/fracasso escolar ainda so de certa forma
incipientes. Nesse contexto, pode-se at mesmo atribuir um certo sentido expresso fracasso
escolar conforme o que medido pelo SAEB, isto : fracassa aquele que no atinge um
determinado escore nesse exame. O que, obviamente, projeta, no mesmo movimento, aatribuio de um certo nexo expresso sucesso escolar, pelo que igualmente medido pelo
SAEB, ou seja: exitoso aquele que atinge ou ultrapassa esse mesmo escore. Aquele que
fracassa, ou o seu reverso aquele que exitoso pode ser o aluno que prestou o exame,
ou a escola onde se estuda, ou a rede escolar, ou a Unidade da Federao, a regio, o pas
isto depende do nvel de agregao dos dados obtidos pelo SAFE.
interessante notar que estudos existentes sobre o fracasso escolar no Brasil raramente
utilizam uma definio como a referida acima. O que mais comum so as formas de se
circunscrever o fenmeno, falando-se, por exemplo, de taxas de analfabetismo, das
precariedades fsicas e materiais das escolas pblicas, da (des) qualificao e dos baixos
salrios dos professores, de taxas de (des)escolarizao das crianas e adolescentes na faixa
da obrigatoriedade escolar, de reprovao e de evaso. Os conceitos vo, ento, se compondo,
com novos indicadores sendo agregados. Por exemplo: medida que a busca de uma taxa de
escolarizao universal vai deixando de ocupar um lugar proeminente na agenda, fala-se,
ento, de fluxo idade/srie este fortemente mencionado na segunda metade dos anos 1990.Mais recentemente, inclui-se tambm o absentesmo de alunos e de professores um
tema ainda relativamente pouco pesquisado. E, medida que se caminha para a
institucionalizao de exames externos escola como so os casos do SAEB, do ENEM,
da participao do Brasil no Pisa, etc. o conceito de proficincia passa a ser includo na
discusso sobre sucesso e fracasso escolar e, quem sabe, possa vir a refletir uma certa sntese
dos fenmenos anteriormente mencionados (reprovao, evaso, absentesmo, etc.).
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nessa direo que esta pesquisa tambm caminha: a de que, mesmo com a possibilidade de
se criticar os exames de proficincia hoje aplicados nas escolas brasileiras, esse conceito o
de proficincia uma ferramenta que pode ter grande potencial tanto para o mundo da
investigao cientfica quanto para o da articulao dessas pesquisas com a formulao de
polticas pblicas no mbito da temtica do sucesso/fracasso escolar. De resto, encontra-se
exatamente a, nesse ponto o do cmzamento entre necessidade de pesquisa e possibilidade
de articulao de seus resultados com a formulao de polticas pblicas uma justificao
da parceria que ora a UNESCO e o INEP realizam sob a forma do presente trabalho.
Uma das hipteses, nesta pesquisa, que sustenta essa adoo do conceito de proficincia tal
como formulado pelo SAEB/INEP a de que, na proficincia, ou melhor, em seus resultados,
est consubstanciado o que geralmente se entende, de forma flexvel, e muitas vezes ambgua,por sucesso fracasso escolar fenmenos ora aparentemente desconectados, ora muito
facilmente conectados, quando essa aparncia de facilidade enganadora. Em outras palavras,
quanto mais penetrados pelo senso comum como o caso do conceito de sucesso/fracasso
escolar mais esses conceitos precisam ser buscados na complexidade que o senso comum
tende a esconder. Para alm do fracasso escolar tema que j figurou como ttulo inspirado
de um livro sobre a temtica um mote que orienta a busca dos possveis significados que
esses conceitos comportam.
Uma das dimenses de originalidade desta pesquisa em relao a muitas outras que versam
sobre o mesmo tema reside precisamente na assuno da necessidade de mais investigaes
sobre os resultados do SAEB. Na verdade, o SAFE identifica fracasso/sucesso escolar por
intermdio de uma avaliao de competncias cujo resultado pode ter um tratamento
estatstico, quantitativo, do tipo taafs por cento dos iiknios X so c&paes de levando