Texto 4 - SANTIAGO, Mylene Cristina; AKKARI, Abdeljalil; MARQUES, Luciana Pacheco. Os caminhos do
interculturalismo no Brasil. In: ___. Educao intercultural: desafios e possibilidades. Petrpolis: Vozes, 2013. p. 15-
33.
1 Os caminhos do interculturalismo no Brasil
Neste captulo, propomos refletir sobre o processo de emergncia da perspectiva
intercultural no Brasil; para isso, buscamos traar as influncias tericas que iniciaram
essa perspectiva no pas. Em um cenrio de grande complexidade e dificuldade em
assumir mudanas de concepes e de prticas discriminatrias nas instituies escolares
e na sociedade como um todo, vemo-nos diante do desafio de compreender os limites e
as distncias entre as proposies tericas/legislativas e as prticas institucionais e
atitudinais dos seus atores.
Reconhecemos avanos nas proposies acadmicas e na produo cientfica
voltada para a perspectiva cultural, entretanto experincias interculturais ampliadas para
a reformulao dos valores, das polticas e das prticas que sustentam as instituies
escolares ainda so raras e incipientes.
Buscaremos estruturar nossas argumentaes sobre a emergncia da perspectiva
intercultural no Brasil, compreendendo as particularidades desse processo que se encontra
em construo e, posteriormente, defendendo a adoo de uma interculturalidade crtica
no contexto educacional brasileiro.
A emergncia da perspectiva intercultural: compreendendo as particularidades do
caso brasileiro
Na Amrica Latina e, particularmente, no Brasil, a questo multicultural apresenta
uma configurao prpria, uma vez que, nas palavras de Candau (2011), nosso continente
foi marcado por um processo de colonizao que processou ora a eliminao fsica do
outro, ora sua escravizao, resultando em uma violenta forma de negao de sua
alteridade. Nesse contexto, a educao escolar no continente latino-americano exerceu
um papel fundamental no processo de homogeneizao cultural, que teve como funo a
consolidao de uma cultura de base ocidental e eurocntrica, que silenciou vozes,
saberes e culturas de determinados grupos (CANDAU; RUSSO, 2010).
De acordo com Candau (2011, p. 156-157), no que se refere educao
multicultural:
No Brasil, a reflexo sobre esta temtica tem sua especificidade e vai penetrando lentamente na vida acadmica. No cotidiano escolar ainda est muito pouco presente. Nos anos que levamos aprofundando esta temtica, no foi nada fcil identificar propostas educativas concretas que tenham uma referncia explcita a questes que podem ser situadas no mbito das preocupaes multiculturais. A maioria das escolas em que de alguma forma o tema penetra se limita a adicionar alguns contedos que tm que ver com a pluralidade cultural, a ressignificar comemoraes e outras prticas escolares espordicas nesta perspectiva ou a adotar uma perspectiva assimilacionista e/ou compensatria. Em geral, predomina uma abordagem que no afeta a globalidade do currculo, no desenvolve processos de construo de identidades culturais em que se fortaleam a auto-estima e o autoconceito dos alunos provenientes de grupos excludos e discriminados, nem se promove o seu empoderamento.
Segundo a autora, as prticas denominadas multi/interculturais adotadas nas
escolas esto associadas folclorizao e adoo de datas comemorativas, o que no
corresponde a um processo de descolonizao do currculo escolar, descontruo dos
processos que historicamente naturalizaram e subalternizaram grupos sociais. As prticas
pedaggicas, a despeito de marcos legislativos e de lutas sociais, no tm efetuado esforo
que corresponda a resultados reais na promoo e no empoderamento dos grupos
excludos.
Diante desse cenrio pouco otimista, destacamos algumas ocorrncias que
marcaram a emergncia da dimenso cultural na educao brasileira. Atribumos a Paulo
Freire, na dcada de 1950, no Nordeste brasileiro, a inovao da prtica e da teoria
pedaggicas, ao defender a importncia de se considerar o universo cultural dos
educandos no processo de alfabetizao de adultos. Outra contribuio relevante do
educador foi a importncia atribuda dimenso cultural no seu mtodo, que no
denominava o espao de operacionalizao da alfabetizao como salas de aula, mas
como crculos de cultura, apontando para uma no hierarquizao das culturas que ali
se encontrariam e oferecendo uma perspectiva para lidar com a diferena cultural, o que
hoje se aproxima, em alguns aspectos, do que se configura como perspectiva intercultural
(CANDAU; LEITE, 2006).
A Nova Sociologia da Educao (NSE) teve repercusso no final da dcada de
1970, sua teoria se opunha teoria do dficit lingustico e cultural, que compreendia que
os estudantes das camadas populares traziam para a escola uma linguagem e uma cultura
deficiente e inadequada, justificando, dessa forma, o quadro frequente de fracasso escolar
desses estudantes. Segundo Candau e Leite (2006) onde as teorias legitimavam e
percebiam o dficit, a NSE enxergava a diferena cultural, que poderia ser lida como
deficincia no espao escolar devido estrutura social vigente, que determinaria a
constituio de escolas voltadas para os grupos sociais das elites.
Nos anos 1980, perodo ps-ditadura militar, ocorreu um movimento de renovao
curricular e democratizao do espao escolar predominantemente nas regies Sudeste e
Sul, impulsionado pelas eleies de governos de oposio ao regime militar. A inteno
prioritria desse movimento era melhorar a qualidade do ensino oferecido na escola
pblica e reduzir as altas taxas de repetncia e evaso escolar que penalizavam,
principalmente, as crianas das camadas populares. Tais mudanas curriculares propostas
foram subsidiadas pela pedagogia crtico-social dos contedos e pela educao popular,
duas tendncias pedaggicas de significativa importncia na configurao do campo do
currculo na dcada em questo. De acordo com Moreira (2012b), as duas tendncias
eram concordantes com a necessidade de se teorizar a partir da situao especfica da
realidade educacional brasileira, bem como com a urgncia de se construir uma escola de
qualidade para os alunos das classes populares; todavia divergiam radicalmente em
relao ao contedo a ser ensinado nessa escola.
Nos anos 1990, Moreira (2012b) acrescenta que as reformas curriculares foram
influenciadas pelos estudos culturais, pelo ps-modernismo e pelo ps-estruturalismo, os
textos mantiveram a preocupao com o conhecimento escolar, abordando temas como:
relao entre saber e poder no currculo, a transversalidade no currculo, novas
organizaes curriculares, as interaes no currculo em ao, o conhecimento e o
cotidiano escolar como redes, o currculo como espao de construo de identidades, o
currculo como prtica de significao, a expresso das dinmicas sociais de gnero,
sexualidade e etnia no currculo, o multiculturalismo. Entretanto, o autor destaca que:
Toda essa efervescncia, segundo algumas anlises, no se revelou
suficiente para a superao do distanciamento entre a produo
"terica" e a realidade vivida no cotidiano das escolas (Souza, 1993),
bem como para a formulao de currculos em sintonia com as
especificidades do contexto brasileiro. Em outras palavras, o que se
sugere que o discurso elaborado no Brasil, nos anos 90, por seu carter
complexo e abstrato e pela escassez de proposies que oferece para os
profissionais da educao, no chegou ainda a nortear novas prticas e
reformas (MOREIRA, 2012b, p. 118).
De forma similar, Koff (2006) constatou que vrias pesquisas realizadas no pas
nos ltimos anos tm demonstrado uma predominncia em nossas escolas de uma cultura
escolar rgida que enfatiza simplesmente processos de transmisso de conhecimentos e se
dirige cultura de determinados atores sociais, dialogando pouco com o contexto cultural
das crianas e dos jovens que dela fazem parte.
No que tange legislao brasileira, a Constituio Federal de 1988 foi um marco
legislativo na redefinio das relaes entre o Estado brasileiro e as comunidades
indgenas, assegurando s mesmas o direito a uma educao escolar diferenciada,
especfica, intercultural e bilngue (FLEURI, 2003).
A Constituio afirma ainda que o Estado garantir a todos o pleno exerccio dos
direitos culturais e acesso s fontes da cultura nacional, apoiar e incentivar a
valorizao e a difuso das manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-
brasileiras. A nfase na valorizao cultural dos grupos culturalmente marginalizados, ao
nosso entender, explicita a necessidade de transformar o cenrio de excluso, a fim de
garantir os princpios democrticos expressos no documento, porm, em termos prticos
e concretos, essa situao no se consolida, determinando a necessidade de outras
intervenes no campo legal e nas polticas pblicas para efetivao de tais processos
democrticos e de participao para todos.
Para Fleuri (2012), o tema da diferena e da identidade cultural, assim como o
reconhecimento da multiculturalidade e a perspectiva intercultural aparecem de forma
mais consistente no campo da educao no Brasil com o desenvolvimento do Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indgenas, com as polticas afirmativas das minorias
tnicas, com as diversas propostas de incluso de pessoas portadoras de necessidades
especiais na escola regular, com a ampliao e o reconhecimento dos movimentos de
gnero, com a valorizao das culturas infantis e dos movimentos de pessoas de terceira
idade nos diferentes processos educativos e sociais.
Podemos considerar ainda que os Parmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL/MEC, 1997), que elegeram a pluralidade cultural como um de seus temas
transversais, oficializaram o reconhecimento de uma perspectiva intercultural no processo
educacional brasileiro. Entretanto, Akkari e Santiago (2010) analisam que, embora a
incorporao da temtica da pluralidade cultural como interveno curricular represente
esforo na promoo de uma educao democrtica e possa ser considerada como ponto
de partida para repensar prticas pedaggicas e curriculares direcionadas diversidade
cultural, a tendncia em tratar a diversidade cultural como tema transversal pode limitar
essa abordagem ao currculo formal, sem que uma educao multicultural seja
efetivamente implementada e vivenciada nas prticas curriculares e no cotidiano escolar.
Na mesma perspectiva, Canen (2007, p. 105) destaca que:
O multiculturalismo como horizonte de trabalho docente no um
"adendo" ao currculo: deve, ao contrrio, impregnar estratgias,
contedos e prticas normalmente trabalhados em aula pelo professor
[...]. Nesse sentido, mais uma vez, refora-se o papel do professor como
pesquisador constante de sua prtica, construindo, no seu cotidiano,
perspectivas multiculturais que resultem em discursos alternativos, que
valorizem as identidades, desafiem a construo dos esteretipos e
recusem-se a congelar o "outro".
A perspectiva multicultural se configura em uma proposta de educao para a
alteridade aos direitos do outro, igualdade de oportunidades, uma proposta democrtica
mais ampla que, no mundo anglo-saxo, se define como Educao Multicultural e que,
nos pases europeus, assume diferentes denominaes: pedagogia do acolhimento,
educao para a diversidade, educao comunitria, educao para a igualdade de
oportunidade ou, simplesmente, educao intercultural. Para alm da polissemia
terminolgica e da evidente diversidade de propostas interculturais expressas nos
diferentes contextos locais, a sua riqueza consiste na multiplicidade de perspectivas que
interagem e que no podem ser reduzidas por um nico cdigo ou esquema a ser proposto
como modelo transfervel universalmente (FLEURI, 2003).
No que se refere emergncia do multiculturalismo no Brasil, Moreira (2012a)
destaca o papel de crescente centralidade que a cultura tem adquirido nos fenmenos
sociais contemporneos. Nas suas palavras:
Esse papel constitutivo da cultura, expresso em praticamente todos os
aspectos da vida social, reconhecido e destacado: a cultura assume
cada vez mais relevo, tanto na estrutura e na organizao da sociedade
como na constituio de novos atores sociais. Assiste-se a uma
verdadeira revoluo cultural, expanso de tudo que se associa
cultura. Ainda, o conceito de cultura tem seu poder analtico e
explicativo, na teorizao social, significativamente reforado. Da sua
importncia em discursos, prticas e polticas curriculares (MOREIRA,
2012a, p. 16).
O autor acrescenta que um segundo aspecto decorrente da centralidade das
questes culturais; trata-se da diversidade de culturas, que convive, paradoxalmente, com
fortes tendncias de homogeneizao cultural. O cenrio de lutas entre as distintas
identidades culturais, assim como as tentativas de reconhecimento e de representao em
polticas e prticas sociais so conflituosos e nos trazem um cotidiano marcado por
mecanismos de excluso social, o que certamente impe desafios para a organizao da
escola e do currculo.
Finalmente, Moreira (2012a) destaca a associao das diferenas culturais s
relaes de poder. Nas suas palavras: No h como analisar essas diferenas sem levar
em conta que determinadas minorias, identificadas por fatores relativos classe social,
gnero, etnia, sexualidade, religio, idade, linguagem, tm sido definidas, desvalorizadas
e discriminadas por representarem o outro, o diferente, o inferior (p. 17-18).
A educao intercultural no Brasil est situada diante das hierarquizaes sociais,
e o mais complexo problema a ser enfrentado reconhecer as diferenas e integr-las a
um contexto que no as anule. De acordo com Sansone (2012, p. 24):
Embora os temas das sociedades indgenas, das relaes raciais e,
sobretudo, da sociedade escravocrata e das religies afro-brasileiras
tenham sido fundadores para as cincias humanas no Brasil, somente
nos ltimos anos que as questes tico-polticas levantadas por este
campo de investigao alcanaram visibilidade na sociedade [...]. Duas
grandes questes tm contribudo para sensibilizar a sociedade a
respeito das desigualdades sociais entre grupos de cor no Brasil: as
propostas de ao afirmativa em favor de negros, ndios e egressos da
escola pblica para acesso universidade, e a necessidade de
implementar a Lei Federal 10639 de 2003. Neste segundo caso, trata-se
de uma primeira tentativa, generosa, mas desorganizada e
descapitalizada, de criar um multiculturalismo brasileira.
Para o autor, o movimento na direo da ao afirmativa e do multiculturalismo
no pode servir como forma de evitar a questo mais ampla das desigualdades sociais
extremas e estruturais que caracterizam pases como o Brasil. Ao afirmativa que no
enfatiza a luta contra as desigualdades incua.
Embora haja evidncias que indicam que os educadores atribuem importncia s
questes da diferena e da identidade cultural, Akkari e Santiago (2010) identificaram
que o sistema de ensino brasileiro no se encontra preparado para lidar com a
interculturalidade mesmo com a existncia de leis e normatizaes que determinam a
insero das discusses etnico-raciais no contexto escolar, nas aes cotidianas de ensino-
aprendizagem nas escolas e no processo de formao docente , prevalecendo o
monoculturalismo curricular, que transforma diferena em desigualdade, e naturalizando
preconceitos e esteretipos que se traduzem no insucesso escolar.
A adoo de uma perspectiva intercultural pode repercutir no cotidiano das
instituies educacionais, favorecendo o dilogo entre as diferenas e problematizando
discursos que essencializam as identidades. Os autores destacam a importncia de se
formar profissionais da educao interculturalmente orientados, conscientes da
necessidade de promover um ensino culturalmente sensvel que considere as perspectivas
dos alunos provenientes de diversos grupos culturais e com identidades mltiplas de
gnero, raa, padres lingusticos e outras.
No que se refere implementao de polticas pblicas, Silva (2003) destaca a
necessidade de atingir o sistema educacional em todos os seus nveis, englobando todos
os atores da comunidade escolar. Sem esses elementos, qualquer proposta poltica
educacional de interveno em contextos educativos multiculturais perde sua
potencialidade de transformao.
Ao admitirmos que o projeto educativo em uma perspectiva intercultural se
encontra em construo no pas, defendemos a adoo de uma interculturalidade crtica
no contexto educacional brasileiro, o que, nas palavras de Giroux (1997), representaria
tornar o pedaggico mais poltico e o poltico mais pedaggico.
Ao inserirmos a escolarizao na esfera poltica, podemos redimensionar as
relaes de poder presentes em nossa sociedade e reconhecermos a necessidade de se
estabelecer um carter mais democrtico no sentido de rompimento com as injustias
econmicas, polticas e sociais. Por outro lado, admitir prticas pedaggicas que
incorporem interesses polticos sensveis aos estudantes como agentes crticos pode
representar o compromisso de assumir a natureza emancipadora do conhecimento e do
uso do dilogo crtico como possibilidade de articular um projeto intercultural que
reconhea as diferenas como possibilidade de enriquecimento das experincias
pedaggicas para todos os atores escolares.
Por uma interculturalidade crtica no contexto educacional brasileiro
O contexto do interculturalismo no Brasil coloca-nos diante do desafio sobre
como deve ser essa experincia, acarretando a necessidade de uma reviso criteriosa da
forma pela qual o Brasil e suas culturas tm sido representados na escola e na
universidade.
Walsh (2009, p. 21-22), ao fazer uma distino entre a interculturalidade funcional
e a interculturalidade crtica, considera que
Enquanto a interculturalidade funcional assume a diversidade cultural
como eixo central, apontando seu reconhecimento e incluso dentro da
sociedade e do Estado nacionais (uninacionais por prtica e concepo)
e deixando de fora os dispositivos e padres de poder institucional-
estrutural, que mantm a desigualdade, a interculturalidade crtica parte
do problema do poder, seu padro de racializao e da diferena
(colonial, no simplesmente cultural) que foi construda em funo
disso. O interculturalismo funcional responde e parte dos interesses e
necessidades das instituies sociais; a interculturalidade crtica, pelo
contrrio, uma construo de e a partir das pessoas que sofreram uma
histrica submisso e subalternizao.
A diferenciao trazida pela autora nos faz indagar sobre o tipo de
interculturalidade que tem sido produzida nas/pelas polticas educacionais e sociais
brasileiras e de que forma as mesmas tm sido consolidadas nas prticas sociais e em
salas de aula. A ideia de partir do problema estrutural-colonial-racial um caminho
promissor para a transformao das estruturas, instituies e relaes sociais, que no se
limita s esferas polticas, sociais e culturais, mas se amplia s fronteiras do saber e do
ser; o que para Walsh (2009) significa a preocupao com os processos de excluso,
negao e de subordinao de conhecimentos que se privilegiam uns sobre outros,
naturalizando a diferena e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantm
em seu interior. Desse modo, o projeto intercultural que defendemos se constri como
ferramenta que ajude a visibilizar os mecanismos de poder presentes em nossa sociedade
e que provoque a desestabilizao de pensamento e conhecimento totalitrios e
universais. Nesse contexto, a autora prope:
A interculturalidade crtica como ferramenta pedaggica que questiona
continuamente a racializao, subalternizao, inferiorizao e seus
padres de poder viabiliza maneiras diferentes de se viver e saber e
busca o desenvolvimento e a criao de compreenses e condies que
no s articulam e fazem dialogar as diferenas num marco de
legimitidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que ao mesmo tempo alentam a criao de modos outros de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras (WALSH,
2009, p. 25).
Como projeto poltico e social, a interculturalidade crtica exige uma pedagogia
que afirme a diferena em seus aspectos histrico-poltico-sociais e de poder. No que se
refere construo de prticas educativas orientadas por uma perspectiva intercultural, o
trabalho requer que seja oferecido aos estudantes mltiplas situaes que permitam
compreender o mundo a partir de diferentes formas scio-histricas que possibilitem a
reflexo sobre seu prprio contexto e sobre outras realidades. O dilogo entre culturas
viabiliza a integrao entre diferentes tipos de saberes e prticas que outros grupos
humanos produzem, criam e recriam nas suas experincias histricas, de modo
contextualizado, evitando-se assim a reproduo de saberes que tradicionalmente
circularam nas escolas como dados e universais (MARTNEZ et al., 2009).
A perspectiva intercultural impe radicais mudanas na organizao do currculo
e do planejamento escolar. Essa abordagem se refere a uma aprendizagem significativa,
social e culturalmente situada, que promove uma proposta dialgica e de encontro entre
membros de culturas diferentes, possibilitando atitudes que desenvolvam sentimentos
positivos em relao diversidade tnica, cultural e lingustica (PINEDA, 2009).
Ao afirmar que educao intercultural no pode ser reduzida a algumas situaes
e/ou atividades realizadas em momentos especficos nem focalizar sua ateno
exclusivamente em determinados grupos sociais, Candau (2009) destaca que esse
processo trata de um enfoque global que deve afetar todos os atores e a todas as dimenses
educativas, assim como os diferentes mbitos em que ele se desenvolve. Para que isso
ocorra, faz-se necessrio repensar tambm o processo de formao dos professores e a
relao que as universidades tm com a temtica intercultural.
Canen e Oliveira (2002, p. 73-74) acrescentam que:
Perceber a prtica pedaggica multicultural como uma prtica que se
constri discursivamente, por causa de intenes voltadas ao desafio
construo das diferenas e dos preconceitos a ela relacionados, parece
ser um caminho central para a concepo de uma formao de
professores multiculturalmente comprometidos. Em tempos de choques
culturais e intolerncia crescente quanto queles percebidos como
diferentes, a educao e a formao de professores no podem mais se omitir quanto questo multicultural. Narrar nossas experincias,
dialogar com movimentos sociais e com prticas efetivadas nessa linha,
bem como incrementar nossas pesquisas sobre pedagogias
multiculturalmente comprometidas so, sem dvida, alguns caminhos
promissores para a concretizao do ideal multicultural no currculo em
ao.
A dimenso discursiva trazida pelas autoras relevante para o processo de
mudana que uma perspectiva intercultural demanda para nossa sociedade, pois,
conforme Fairclough (2001), mudanas na organizao e na cultura so, de modo
significativo, mudanas nas prticas discursivas. Em outras palavras, o discurso uma
prtica no apenas de representao do mundo, mas de significao do mundo,
constituindo e construindo o mundo em significado.
Nesse processo de significao em que o discurso contribui para (re)construir as
relaes sociais e de poder entre as pessoas, Candau (2005, p. 33-35) enumera alguns
desafios a serem enfrentados para construirmos uma educao intercultural na perspectiva
crtico-emancipatria:
- penetrar no universo de preconceitos e discriminaes presentes na
sociedade brasileira;
- questionar o carter monocultural e o etnocentrismo;
- articular igualdade e diferena;
- resgatar os processos de construo das nossas identidades culturais;
- promover experincias de interao sistemtica com os outros; - reconstruir a dinmica educacional;
- favorecer processos de empoderamento.
H um longo caminho a ser traado para alcanarmos prticas discursivas e
atitudinais que integrem um carter intercultural em nossas instituies educacionais e na
sociedade como um todo. Para que isso ocorra, necessrio identificar e eliminar as
barreiras que se expressam em prticas discriminatrias nas instituies e em outros
espaos sociais, como tambm reconhecer que o direito educao se traduz na
participao e na aprendizagem de todos, em todos os nveis da educao.
O processo de reconhecimento das mltiplas identidades presentes em nossas
instituies educacionais est vinculado reconstruo da dinmica educacional, que
requer: relaes de poder horizontalizadas entre os atores escolares; seleo de currculos
significativos e plurais que rompam com as prticas eurocntricas e universais de saberes;
e proposio de um processo de incluso em educao que afirme a valorizao das
diferenas como oportunidade de elaborao de novos saberes e aprendizagem.
Para que tais mudanas ocorram, faz-se necessrio articular as polticas pblicas
em educao como os processos de formao de professores, possibilitar a participao
de forma decisria dos grupos sociais na elaborao e na implementao de polticas que
objetivem ampliar as perspectivas interculturais na educao e na sociedade. E,
sobretudo, faz-se urgente pensar e construir a(s) proposta(s) intercultural(is) que
desejamos para nossa realidade.
Referncias
AKKARI, A.; SANTIAGO, M. A gesto da diversidade cultural no contexto
educacional brasileiro. Revista Educao em Questo, Natal, v. 38, n. 24, maio/ago.
2010, p. 9-33.
BRASIL. Ministrio da Educao. Parmetros Curriculares Nacionais: pluralidade
cultural. Braslia: Secretaria de Educao Fundamental, 1997.
CANDAU, V. M. Direitos humanos, educao e interculturalidade: as tenses entre
igualdade e diferena. In: ______. Educao intercultural na Amrica Latina: entre
concepes, tenses e propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 154-173.
CANDAU, V. M.; LEITE, M. S. Dilogos entre diferena e educao. In: CANDAU,
V. M. Educao intercultural e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p.
121-139.
CANDAU, V. M.; RUSSO, K. Interculturalidade e educao na Amrica Latina: uma
construo plural, original e complexa. Revista Dilogo Educacional, Curitiba, v. 10,
n. 29, p. 151-169, jan./abr. 2010.
CANDAU, V. M. Sociedade, cotidiano escolar e cultura(s): uma aproximao.
Educao & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 79, p. 125-161, 2002. Disponvel em:
. Acesso em: 10 mar. 2011.
______. Sociedade multicultural e educao: tenses e desafios. In: ______ (Org.).
Cultura(s) e educao. Entre o crtico e o ps-crtico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p.
13-38.
CANEN, A.; OLIVEIRA, A. M. A. de. Multiculturalismo e currculo em ao: um
estudo de caso. Revista Brasileira de Educao, Rio de Janeiro, n. 21, p. 61-74, 2002.
CANEN, A. O Multiculturalismo e seus dilemas: implicaes na educao.
Comunicao e Poltica. Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 91-107, 2007.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudana social. Braslia: Editora Universidade de
Braslia, 2001.
FLEURI, R. M. Intercultura e educao. Revista Brasileira de Educao. Rio de
Janeiro, v. 10, n. 23, p. 16-35, maio/ago. 2003.
______. Polticas da diferena: para alm dos esteretipos na prtica educacional.
Educao & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 95, p. 495-520, maio/ago. 2006.
Disponvel em: . Acesso em: 15
mar. 2012.
GIROUX, H. Os professores como intelectuais: rumo a uma Pedagogia Crtica da
aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.
KOFF, A. M. N. S. Diferena e educao intercultural: reflexes a partir de uma
pesquisa. In: CANDAU, V. M. Educao intercultural e cotidiano escolar. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2006, p. 99-120.
MARTNEZ, M. E. et al. Polticas e prticas de educao intercultural. In: CANDAU,
V. M. Educao intercultural na Amrica Latina: entre concepes, tenses e
propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 44-73.
MOREIRA, A. F. B. Currculo, diferena cultural e dilogo. Educao & Sociedade,
Campinas, v. 23, n. 79, p. 15-38, 2002. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2012a.
______. Propostas curriculares alternativas: limites e avanos. Educao & Sociedade,
Campinas, v. 21, n. 73, p. 109-138, 2000. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2012b.
PINEDA, F. L. hora de sacudir os velhos preconceitos e de construir a Terra: sobre a
educao intercultural. In: CANDAU, Vera Maria. Educao intercultural na
Amrica Latina: entre concepes, tenses e propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009,
p. 94-123.
SANSONE, L. Que multiculturalismo se quer para o Brasil? Cincia e Cultura. So
Paulo, v. 59, n. 2, abr./jun. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 21 jan. 2012.
SILVA, G. F. Multiculturalismo e educao intercultural: vertentes histricas e
repercusses atuais na educao. In: FLEURI, R. M. (Org). Educao intercultural:
mediaes necessrias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 17-52.
WALSH, C. Interculturalidade crtica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-
viver. In: CANDAU, V. M. Educao intercultural na Amrica Latina: entre
concepes, tenses e propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 12-43.